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Delícias do Descobrimento - Sheila Hue

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DelíciasdoDescobrimentoSheilaHue

Zahar(2008)

Este livro enfoca a história do Brasil por um viés diferente: o da gastronomia. Resultado deuma preciosa pesquisa – que garimpou os textos de missionários, senhores de engenho,aventureiros e viajantes de diversas nacionalidades que por aqui aportaram -, põe o leitordiante do nascimento da cozinha brasileira do século XVI.

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Listadereceitas

1.Conservadeananás2.Maçapão(marzipan)decastanhadecaju3.Marmeladadegoiaba4.Peradadecuruanha5.Compotademarmelo6.Beilhósdecarimã7.Marmeladadeabóbora8.Casquinhas9.Pastéisdetutano10.Alféloas11.Vinhodeaçúcar12.Tortadeporco13.Pastéisdecarne14.Coelhodainfantad.Maria15.Tigeladadecoelho16.Peixe-boiguisadocomcouves17.Picadinhodecarnedepeixe-boi18.Pastéisdefígadodecabrito19.Tigeladadeleite20.Macucocozidoeensopado21.Tigeladadeperdiz22.Pastéisdepombinhos23.Manjarbranco24.Frangoparaoshécticos25.Galinhamourisca26.Galinhaalbardada27.Conservadepeixe28.Escabeche29.Carapitangaemgigote30.Peixefrito31.Douradofresco

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32.Pratinhosdemexilhões33.Tortasdedemexilhões34.Berbigõesdetigelada35.Jabuti36.Jabutideconserva37.Tartarugaassadaelardeada38.Ovosmexidos

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N

Introdução

Doquesabemosdosmedas,persas,assírios,babilônios,fenícios,cartagineses,gregos,romanos,germânicos,hebreus,árabes,IdadeMédia,Renascimentoéumasinistrarelaçãodefomeseempanturramentos.

LUÍSDACÂMARACASCUDO

os testemunhos que chegaram até nós sobre o Brasil do primeiroséculo após o Descobrimento – escritos por padres, senhores de

engenho, humanistas, cronistas, corsários e viajantes franceses, ingleses,alemães, italianos, espanhóis e portugueses –, alternam-se episódios defome e de abundância. Embrenhados em sertões pela primeira veztrilhadosporeuropeusouemlongaseacidentadasviagensmarítimaspelacosta brasileira, nossos primeiros cronistas, principalmente os padres daCompanhia de Jesus e os homens do mar, sofriam com a escassez devíveres, com as doenças tropicais e com a fome absoluta. Outros, aonarrarem a vida cotidiana nas aldeias indígenas, nas vilas colonizadas enas abastadas fazendas dos senhores de engenho, descrevem umaabundância e diversidade de caça, animais domésticos, peixes e plantasque espantavam os europeus, que nunca tinham experimentado tantafartura.Éentreessesdoispólosquesedivideaalimentaçãobrasileiradosprimeirostempos:entreascomidasdi íceisdeengolir,ingeridasporpuranecessidade, os faustosos banquetes senhoriais e as frescas e saudáveisrefeiçõesdoshomenscomuns.

A alternância entre fome e fartura indica dois tipos de vivência. Aprimeirasedáemumaterraempermanentetensãoentrecolonos,índiose viajantes estrangeiros, ou ainda nas agruras vividas no mar e nasviagens por matos desconhecidos e inóspitos. O missionário calvinistafrancêsJeandeLérycontaemViagemàterradoBrasil,impressoem1578,que ao abandonar a França Antártica e voltar para sua terra natalenfrentou uma tal fome em alto-mar que a tripulação da frota em queestava, após cozinhar todos osmacacos, papagaios (que seriam vendidosna França) e ratos, teve que comer duríssimas rodelas de couro de antatostadasnabrasa.TambémoinglêsAnthonyKnivet,numaexpediçãopelointerior da capitania de São Vicente, na década de 1590, comeu,juntamente com seus companheiros, escudos de couro cru de búfalo:“Quem tinha um sapo ou uma cobra para comer considerava-se feliz”,

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relatouemseu livrodememórias.OalemãoHansStaden,nos sertõesdoRiodeJaneiro,em1554,tevemaissorte:comeu“lagartoseratossilvestreseoutrosanimaisassimestranhos”,que,aliás,eramiguariasindígenasqueviriamaserapreciadaspeloscolonos.NumaviagempelointeriordaBahia,o padre José de Anchieta conta como precisaram comer “preás, rãs,serpentes e víboras venenosas”, que, famintos, tiveram por “ inasiguarias”, numa antevisão da culinária brasileira do inal do século XVI,quandotaiscomidasseriamconsideradasdeliciosaspormuitos.

Havia fome tambémnosprimeiros temposdevilasquedepoisseriamricas e bem abastecidas, como Salvador, São Vicente e Piratininga (SãoPaulo).NumacartaescritanaBahiaem1550,opadreManueldaNóbrega,recém-chegadoaoBrasil,queixa-sedeque“ascomidasdeummodogeralsãodi íceisdedigerir”.Acostumadosaopãobrancode trigo,aovinho,aoazeite e aos pratos da cozinha portuguesa, era di ícil adaptar-se a umadieta à basedemandioca, caça e frutas locais. Em1553, emSãoVicente,Nóbregaescreve:“Estacasaéamaispobredetodasepadecemosirmãosepadresemeninosmuitafomeefrio.”Emoutracarta,de1561,escritaemSão Vicente, Nóbrega observa que “aqui não há trigo, nem vinho, nemazeite, nem vinagre, nem carnes, senão por milagre”. E o milagrerealmenteocorreriaaolongodosanos.SãoVicentesetornariaumceleirode frutas e legumes, o maior produtor de marmelos do Brasil, e suamarmeladaviriaaserartigodeexportação.EmSalvador, jánadécadade1580, as hortas abasteceriam um mercado farto em todos ostipos dehortaliçasefrutaslocaiseestrangeiras,eondesepodiacomprar,também,pão de farinha de trigo (um luxo naqueles tempos) e vinhos da Ilha daMadeira.

Os que não estavam em busca de almas, mas de mercadorias ouapenas de comida, tinham mais facilidade em conseguir provisões. PeroLopesdeSousa,emseureconhecimentodacostabrasileiraem1531,nãoteve di iculdade em abastecer sua frota com os índios do litoral, emencionou especialmente as grandes postas de carne de veado, quemantiveram sua tripulação muito bem alimentada. O militar espanholCabeça de Vaca, em expedição pelo sul do Brasil em 1542, espantou-secomaabundânciadeporcos-do-matoecomafacilidadedecaçá-los,oquenão deixou que passassem fome. O piloto italiano Antônio Pigafetta, aonarrar a passagem de Fernão de Magalhães pelo Brasil em 1520 – acaminho da primeira viagem de circunavegação –, relata como seaprovisionaram de galinhas, mandioca, dulcíssimos abacaxis, palmito e

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carne de anta. As negociações com os índios foram fáceis e vantajosas:“Trocaram um anzol por cinco galinhas, um pente por dois gansos, umespelhoporpeixesu icienteparaalimentardezpessoas,umcintoporumcestodemandiocas,eporumacartadeumreideouros,cincogalinhas.”

Nastrêsúltimasdécadasdoséculo,atingimosumapogeunoquediziarespeitoàcomida.OsrelatosdohumanistaportuguêsPerodeMagalhãesdeGândavo, autordaprimeiraHistóriadoBrasil, publicada em1576,dojesuítaFernãoCardim,queescreveusobreoBrasilnasdécadasde1580e1590,edoportuguêsGabrielSoaresdeSousa,ricosenhordeengenhonaBahia, que ofereceu o manuscrito de seuTratado descritivo do Brasil aovice-rei dePortugal, d. CristóvãodeMoura, em1587, pintamum cenáriode prosperidade e abundância. O livro de Gândavo, assim como o deSoares de Souza, tem uma forte intenção de elogiar e divulgar o Brasil,ampli icando suas qualidades. Ao descrever as capitanias, quase semprediz,decadaumadelas,quesãoprovidasdetodososmantimentosequeosmoradores vivem todos “mui abastados” com suas roças. Segundo ele,bastava ter dois pares de escravos para obter tudo de que uma famílianecessitava:umcaçaria,outropescariaeosoutroscultivariamasroças.Oque é corroborado pela experiência de Anthony Knivet, um detrator dopaís: o inglês, quando foi escravo de um “mestiço” no Rio de Janeiro,abastecia,sozinho,adespensadeseusenhor.GabrielSoaresdeSousa,umdos maiores conhecedores das coisas do Brasil, além de ótimo escritor,também concorda com a tese de Gândavo e descreve em detalhes asabundantes delícias brasileiras e seus sabores, mostrando-nos o que(bem)comiamos“principais”easgentes“deserviço”daBahia.

A melhor descrição de hábitos referentes à alimentação é do padreFernãoCardim,que,aoacompanharavisitaaoBrasildopadreCristóvãodeGouveia–umalongamissãodoanode1583até1590–,nosrelataumasucessãodealmoços,jantaresemerendas,comqueosricossenhoreseosíndios recebiam a autoridade apostólica. São muitas as refeições ao arlivre, embaixo de frondosas aroeiras, à sombra fresca de cajueiroscarregados e à beira de rios e regatos, sempre animadas pormúsica delautas ou gaitas ou por cantigas devotas entoadas pormeninos índios, equase sempre servidas “com todo o concerto e limpeza”. Nas casas dossenhores de engenho, emporcelanas da Índia e serviços de prata, sobremesas cobertas por inas toalhas, serviam-se banquetes de“extraordinárias iguarias”,comoaves,perus(entãoconsideradascomidasluxuosas),ecarnedecaça,acompanhadasporvinhosdePortugal,eainda

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pordocesrequintadoscomoosovosreais( iosd’ovos),umaespecialidadedorecôncavobaiano,eporconfeitos,conservase“outrosmimos”.

Um dos senhores de engenho, provavelmente o rico criador de gadoGarcia D’Ávila, chegou a oferecer à comitiva o pratomais requintado daépoca,omanjarbranco,queentãoerafeitocompeitodegalinha,equejátinha sido objeto de proibição no reinado de d. Sebastião por serconsideradoexcessivamenteluxuoso.UmricosenhordeIlhéusmandouaoencontro dos jesuítas que chegavam, em uma praia, uma índia vestida àmoda indígena (ou seja, seminua), carregando uma porcelana cheia de“queijadinhasdeaçúcar”ecomum“grandepúcarodeáguadorio”,oquemuitosurpreendeuospadres.Haviamesasaoarlivreemquecabiam cempessoas, e no Espírito Santo, durante um banquete, o menu incluía trêsserviçoscompletos,comastoalhasdemesatrocadasentrecadaumdeles,para espanto dos jesuítas. Em Pernambuco, os senhores de engenho,segundo Cardim, eram “sobretudo dados a banquetes”, nos quais sereuniam dez ou doze senhores que passavam o dia comendo e bebendoincríveisquantidadesdevinhoportuguês,oquefezopadreobservarque“emPernambucoseachamaisvaidadequeemLisboa”.

Os índios,porsuavez, contaFernãoCardim, recebiamacomitivacomceias compostas por comidas indígenas, como “peixinhos de moquémassados, batatas, carás, mangarás e outras frutas da terra”. Os jesuítasretribuíamoferecendoàstribosrefeiçõescompostasporumavacainteira,porcos-do-mato e de criação, carne de caça, legumes e frutas, além de“vinhos de várias frutas, a seu modo”, ou seja, bebidas indígenas, quetodosapreciavam.

Não há registros que documentem como eram servidas as refeiçõessimples,dodia-a-dia,emcasadepessoascomuns.Massabemos,peloqueescreveramvárioscronistas,quehaviaabundânciatambémnasrefeiçõesdos trabalhadores e escravos, que comiam, além de bananas e outrasfrutas, farinha demandioca e vários tipos de peixes salgados, que eramdestinadosexclusivamenteàalimentaçãodas“gentesdeserviço”.

UmBrasilsemmangueirasejaqueirasPelas rotas marítimas portuguesas que ligavam o Oriente, a América, aEuropa e as ilhas Atlânticas, foram transportadas não somente pessoasmas também plantas e animais. Os portugueses foram responsáveis, noséculoXVI,porumaampladispersãodeespéciesnativasdeváriasregiões

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pelo vasto território de seu império, numa espécie de “globalização”botânica que provocou profundas e permanentes transformações naalimentação, agricultura e economia de diferentes partes do globo.Espécies asiáticas, européias e africanas foram trazidas para o Brasil, edaquiseguirammudasparatodasaspartesdomundoligadaspelasrotascomerciais portuguesas, provocandoum intenso e inédito intercâmbiodeprodutosentreoscontinentes.

A paisagem das praias nordestinas no início do século não incluía oscoqueirais que hoje são sua principal característica: os coqueiros, umaplantaasiática,foramtrazidospelasnausportuguesas.Tambémnãohaviamangueirasou jaqueirasnoBrasil,plantas indianasquesóchegariamnoséculo XVIII. A banana, fruta nativa do sudoeste asiático, foi uma dasprimeirasaseremplantadasnoBrasil,provavelmentevindadailhadeSãoTomé,naÁfrica.O inhametambémveiodocontinenteafricano.Emtroca,forammandadospara láanossamandioca,oamendoim,ocará,abatata-doceeapimenta.ParaGoa,naÍndia,viajaramomamãoeocaju,quelásederam muito bem e se espalharam pelo Oriente. Algumas especiariasasiáticas foram trazidas para cá e se multiplicaram, como aconteceu aogengibre,que,mesmo tendosidoproibidonoBrasilpordeterminaçãodacoroa portuguesa, disseminou-se incontrolavelmente. A cana-de-açúcar,nativadaÁsiaeaclimatadanas ilhasatlânticas,chegouaindano iníciodoséculo XVI. Impulsionadora de uma das maiores movimentaçõesdemográ icas da história, com o transporte em larga escala de africanos,marcouprofundamenteopaís.

De Portugal, vieram para o Brasil laranjeiras e limoeiros, além defrutas várias, como marmelos, igos e melões, e também couves, alfaces,salsinha, coentro emuitos outros legumes e verduras, que se adaptaramextremamente bem na nova terra. Os portugueses também trouxeramanimais, como vacas, porcos, cabras, carneiros e galinhas. Da Américaespanholaveiooqueentãoerachamadode“galodoPeru”,edaÁfricaashojechamadasgalinhasd’angola.

Tínhamos, portanto, além dos animais e plantas nativos,tradicionalmente empregados na alimentação indígena, gêneros vindosdosquatrocontinentes,oque tornouocardápiobrasileiroextremamentediversi icado.Comonativotajaçupassouaconviveroporcoeuropeu,comasavesbrasileiras,comoomacuco,conviviaagalinha;tínhamoscompotasde abacaxi, de mangaba e também de marmelo; ao tradicional beijuindígenajuntou-seoaçúcar,eospeixespassaramasercomidosaquinão

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comespinafre,mascomfolhasdetaioba.Aabundânciadegênerosnativoseexóticos,avitalidadedacaçaedapesca,ocultivodehortaseacriaçãodeanimaisproduziramumavastíssimavariedadede ingredientesparaaculináriabrasileiradenossoprimeiroséculo.

A cozinha indígena e a portuguesa também trocaram experiências,técnicas de preparo, sabores e ingredientes. Na falta de azeite de oliva,temperavam-se pratos com óleo de peixe-boi; na ausência da farinha detrigo, faziam-sebolosàmodaportuguesacoma iníssimacarimã(farinhainademandioca).Ascompotasmedicinaisprescritasnaépocapassarama ser feitas, aqui, com goiaba, abacaxi e outras frutas nativas, numacontribuição tropical ao receituário renascentista. Quando não tinhamvinho de uvas, colonos e viajantes apreciavam os “vinhos” indígenas,bebidas fermentadas feitas de mandioca, milho e de variados frutosnativos.Paraconfeitarfrutas,usava-seumamassafeitaàbasedeleitedecajueiro,umsubstitutodore inadoalcorce.Opaladareuropeuseampliouaoserapresentadoàs iguarias indígenascomoa tanajura frita, as rãs,oscágados,ascobraseobicho-de-taquara.Masosíndiosnãoassimilaramasplantas e animais introduzidos pelos portugueses: criavam galinhas paravendê-las,masnãoascomiam.

Ao descrever a natureza brasileira, os cronistas do século XVI nãoapenas escreviam sobre a aparência dos gêneros, mas tambémdetalhavamseususosesabores.Eraumdesa iodescreveranimaisnuncaantes vistos, desconhecidos dos autores clássicos e ausentes daHistórianaturaldePlínioedaMatériamédicadeDioscórides,entãotidoscomoasmaiores autoridades em ciências naturais. Para enfrentar o desa io, osnovos autores lançavam mão dos animais, plantas e sabores queconheciam, construindo comparações para nós inusitadas, como aaproximação entre castanhas de caju e um rim de lebre, a a irmação dequeasbananassãosemelhantesaospepinos,ouaindadequeabacaxitemgosto de melão. Alguns animais brasileiros, como o tatu e o tucano, sãovistos como verdadeirosmonstros pelo olhar europeu. Monstros muitasvezes deliciosos, e que se receitavam aos doentes.Nessas descrições sãoempregadas as categorias médicas da época: cada alimento tinha umavirtuderelacionadaàsuanatureza,sejaelafria,quente,secaouúmida.Osalimentos frios eram receitados para equilibrar humores quentes, e osúmidos empregados para combater doenças causadas pelo excesso desecuranoorganismo,evice-versa.Efoiassim,nostrópicosbrasileiros,queos “frios” cajus começaram a ser usados para febres e os “quentes”

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abacaxis foram empregados para curar feridas, entre outras aplicaçõesmedicinaisdasplantaseanimaisnativos.

O que mais sobressai nos depoimentos que chegaram até nós é aimpressionante variedade da natureza brasileira, a rápida disseminaçãodeplantaseanimaistrazidosdeforaeafacilidadecomqueíndios,colonose viajantes caçavam, pescavam, criavam, plantavam e colhiam os maisvariadosgênerosdeplantaseanimais.Masessaabundâncianãodurariamuito tempo. Com o aumento da produção de açúcar e o incremento dainstalação de engenhos, a expansão para o interior e a conseqüentediminuiçãodasáreasdecaçaedosterrenosdestinadosàsroças,somadasao declínio da população indígena, o século XVII já não seria o édengastronômicodoprimeiro séculoapósoDescobrimento.Nasnarrativasedescrições empregadas neste livro temos a imagem de um Brasilexuberante, farto, generoso, diverso, em que gêneros vindos dos quatrocontinentes começavam a misturar-se nas cozinhas de “mestiços”,portugueses e viajantes de várias nacionalidades, criando novos hábitosalimentares, novos pratos e formas de comer, dando início à cozinhatipicamenebrasileira.

SHEILAMOURAHUE

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P

Nota

aratentarrecuperaroquesecomianoBrasilnoprimeiroséculoapóso Descobrimento, a pesquisa para este livro se baseou nos textos

escritosnoséculoXVI,buscandoaíostestemunhoscontemporâneossobreaalimentaçãodaépoca.Deformaaorganizarasinformações,optamosporreproduzir a ordenação empregada pelos cronistas, que dedicavamdiferentes capítulos ou seções de seus livros a cada uma das espéciesdescritas, divisão temática pautada na estrutura de livros mais antigos,comoaHistórianatural,dePlíniooVelho.Preferimosseguirmaisdepertoo formato daHistória da província Santa Cruz , de Pero deMagalhães deGândavo,começandopelasplantaseemseguidapassandoaosanimais.Noentanto,adaptamos,àluzdaciênciamoderna,aantigaformadeorganizar;por exemplo, dividimosos animais entremamíferos, aves, peixes etc., emvezdereproduzirconceitosdaépoca,comoclassi icarabaleiacomopeixe(e não como mamífero) e outras concepções semelhantes. Quanto àordenaçãodecadaitemdentrodeseusgrupos,começamossemprepelosnativos do Brasil; além disso, organizamos as entradas de forma atransmitiraimportânciadadaacadaelementopeloscronistas.Assim,porexemplo, o camurupim e o bijupirá são os primeiros peixes da lista, porserem,justamente,osmaisapreciadosemaiscitados.

Quanto às receitas, optamos pelas escritas na época, e para issousamos os doismais antigos livros de culinária escritos em português:Olivrodecozinhada infantad.Maria, do séculoXVI, e aArtede cozinha, deDomingosRodrigues,doséculoXVII.

A infantad.Maria dePortugal (1538-1577), netaded.Manuel, levouparaa Itáliaem1565,quandosecasoucomAlexandreFarnese,oduquede Parma, um manuscrito com receitas portuguesas compilado naqueleséculo. O manuscrito está na biblioteca de Nápoles, e só em 1967 foiidenti icadocomodepropriedadedainfantaecorretamentedatadocomoum códice do século XVI. Empregamos, aqui, duas edições desse livro decozinha,dasquaistranscrevemosasreceitas:

•UmtratadodecozinhaportuguesadoséculoXV(RiodeJaneiro,

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InstitutoNacionaldoLivro,1963),ediçãopreparadapeloprofessorAntônioGomesFilho,cujastranscriçõesmodernasnosforamespecialmenteúteis.

•Olivrodecozinhadainfantad.Maria(Lisboa,INCM,1986),organizadoporGiacintoManuppellaeSalvadorDiasArnauteoriginalmentepublicadoem1967.

Domingos Rodrigues (1637-1719), cozinheiro do rei português d.Pedro II (não confundir com o nosso Pedro II), publicou em 1680, emLisboa, o seu vasto livroArte de cozinha, que, apesar de ser produto deoutra época, em que a gastronomia portuguesa assimilava in luências deoutras cozinhas européias, também traz várias das receitas encontradasno livro de cozinha da infanta, como a galinha mourisca e a galinhaalbardada(receitasqueincluímosaqui).Dessacoletânea,selecionamosospratos mais tradicionais. Para a transcrição das receitas empregamos aediçãoimpressaemLisboa,porJoãoAntôniodaCosta,em1765.

Em alguns casos, adaptamos as receitas originais, substituindoingredientes europeus por brasileiros, muitas vezes seguindo sugestõescontidasnaArtedecozinhaquantoaessassubstituições.

Os dois livros são testemunhos da cozinha aristocrática portuguesa, eprovavelmentealgumasdesuasreceitaserampreparadasnascasasmaisabastadasdoBrasil.Masalgunsacepipes,comoascompotasdefrutaseosbeilhós, eram populares e comuns a várias classes sociais, como nosatestamobservaçõescontidasnascartasjesuíticasescritasnoBrasileemtextosdeoutroscronistas.

As receitas descritas pelos escritores do século XVI não foramdestacadas, encontrando-se espalhadas ao longo do livro nas seçõescorrespondentesaoseuingredienteprincipal,comoafarinhadepalmito,omilhoquebradocozidocomcaldodecarne,ospeixescozidoscomtaiobaeaindaoutraspreparaçõesqueosleitorespodemtentarreproduzirusandoobomsensoeumpoucodeimaginação.

Ressaltamos que algumas receitas são hoje impossíveis de seremrealizadas, sejaporutilizaremanimaisagoraameaçadosdeextinção, sejapor requereremprocessoscaídosemdesuso, sendoportantomeramenteilustrativasdacozinhadaépoca.

As ilustrações foramextraídasdevários livrosdosséculosXVIeXVII.Algumas estão nas primeiras edições de autores que vieram ao Brasil e

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relataram suas experiências em livro, como André Thevet, Hans Staden,frei Cristóvão de Lisboa, Guilherme Piso e Georg Marcgraf. Outrasencontram-se em obras de autores que nunca vieram ao país, comoCristóbal Acosta, e em obras que catalogam a lora e a fauna domundoentão conhecido, como os livros de Conrad Gesner, Rembert Dodoens eCharles L’Ecluse. Em muitas delas observamos o tortuoso processo derepresentar uma coisa nunca vista, o que resulta em imagenssensivelmentedivergentesdoobjetorepresentado.

***Demodoaesclarecerecompletarasinformaçõesescritaspeloscronistas,identi icar corretamente os animais e plantas e não reproduzir conceitosbotânicos e zoológicos já há muito ultrapassados, produtos da visão doshomens do Renascimento, contamos com a revisão cientí ica do biólogoespecialista em biodiversidade Angelo Augusto dos Santos. Sempre quepossívelfornecemososnomescientí icosdeanimaiseplantas,sódeixandodefazê-loquandosãodedifícilidentificação.

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Plantas

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Frutos

•ANANÁS/ABACAXI

NoBrasilécomumsevenderemabacaxisàstalhadasnosdiasquentesdeverão. Já em Portugal, porém, muita gente aprecia um bom sumo deananás. Acontece que aquela fruta que os irmãos d’além-mar chamamananás é amesmaque chamamos, cá, abacaxi. Ao longodos séculosXVI,XVII eXVIII, osque escreviam sobre a fruta chamavam-nade ananás, sóocorrendo documentação escrita de “abacaxi” no século XIX, numaCorogra ia paraense, de A.C. Silva, onde o autor estabelece umadiferenciação entre abacaxi (o termo é, com forte probabilidade, oriundodo tupiibacati, “bodum e fedor de fruto, ou fruto fedorento”) e ananás(também do tupi,naná, “cheiro forte”)quandoescreve: “Osananases sãoemabundância,enotam-seosabacaxismuigrandes,esuperioresaosdeCuba...”.Mas,naverdade,oabacaxieoananássãodiferentesnomesparadesignar a mesma fruta, oAnanas comosus, da família das bromeliáceas,provavelmenteorigináriadoBrasiledepois irradiadaportodaaAméricado Sul e Central. Antes da descoberta de Colombo, o abacaxi já eracultivadoemextensasregiõesdaAmérica.

A fruta foi uma das primeiras a serem levadas para as colôniasportuguesas e espanholas: em1518 já estavaplantadanaOriente e logo

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foiintroduzidanaÁfrica.OmédicoportuguêsGarciadeOrta,radicadoemGoa,descreveem1563oananásquecomianaÍndiacomo“reidasfrutasnosabor,emuitomaisnocheiro”.Oananaseiroganhouassimomundoeespalhou-se fácil e rapidamentepelas regiões tropicaisde todooglobo,oqueoriginouumasériedevariedadesdafruta.

O primeiro a encontrá-lo foi Colombo. Nas Pequenas Antilhas, na ilhade Guadalupe, a 4 de novembro de 1493, foi posta diante do primeiroconquistadorbrancoqueaquichegaumadasmaioresdelíciasdaAméricatropical. “Fruto de grande lavor e fragrância”, declarou Colombo. VáriosabacaxisforamlevadosparaaEspanha,masapenasumresistiuàviagem,efoicomidopeloreid.FernandooCatólico,quesentenciouqueoabacaxilevavaapalmasobretodososdemais.

Os primeiros cronistas e viajantes que escreveram sobre o Brasilfazemmenção, aliás comgrande interesse, ao abacaxi, que já vem citadopelo italiano Antônio Pigafetta, piloto da viagem de circunavegação deFernão de Magalhães, em 1520, quando ele escreve sobre “um frutoparecidoaumafrutadepinho,masqueédoceemextremoedeumgostoexquisito”.

OabacaxiétambémdescritoeadmiradoporNóbrega,porGândavo,naHistória da província Santa Cruz , por Fernão Cardim e por todos os queescreveramsobreoBrasilnessaépoca.Nóbrega,emumadesuascartas,fazreferênciaaoenvioparaametrópoledeconservasdeananases queláeram usadas como remédio para as pedras nos rins, não deixando de

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lembrarque, para isso, os verdes faziammelhor efeito.Gândavo registraque “a este nosso reino [Portugal] trazem muitos desses ananases emconserva”,exaltaa frutacomo“amaisprezadadequantashánaterra”eregistraseucultivoemlargaescala:“Fazemtodostantoporessafrutaquemandam plantar roças delas como de cardais.” O padre Fernão Cardim,nosTratadosdaterraegentedoBrasil, dizque “a frutaémuito cheirosa,gostosa, e uma das boas do mundo, muito cheia de sumo, e boa paradoente de pedra”. Há, entre cronistas, missionários e viajantes, umacompletaunanimidadenolouvordoabacaxi.

“Sãotãosaborososque,ajuízodetodos,nãoháfrutanestereinoquenogostolhesfaçavantagem.Eassim fazemosmoradoresporelesmais, eos têmemmaiorestimaquequalqueroutropomoquehajanaterra.”

PERODEMAGALHÃESDEGÂNDAVO

Como é de praxe, ao descreverem plantas ou animais desse mundonovo recém-descoberto, os europeus, para darem idéia da coisa novanunca antes vista, estabelecem comparações com frutas e animais de lá,comparações que hoje, para nós, parecem surpreendentes, comoaproximaroabacaxidaalcachofra,dizerquesuas folhas lembramaervababosaouaindacomoescreveuocronistadaRelaçãododescobrimentodaFrolida: “Tiradaa casca,pareceomioloumpedaçode coalhada.”Oentãoestranho aspecto desse fruto foi, como vemos, um desa io aos quedescreveramsuaaparênciaeseumaravilhososabor.

OfrancêsJeandeLéry,emsuaViagemàterradoBrasil, dizdoananás:“ÉmuitodoceeoreputoofrutomaissaborosodaAmérica.”Eacrescenta:“Quandoaíestive,espremiumananásquedeucercadeumcopodesucoeeste me pareceu saudável.” Seu patrício André Thevet, que considera afruta“excepcionalmenteboadesecomer,tantoporsuadoçuraquantoporseusabor”, compara-aao “açúcar ino”edemonstra interesseem levara

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prodigiosafrutaparaaEuropa:“Éimpossíveltrazê-laparaaFrança,anãoser em forma de compota, pois ela, quando madura, não se conservaincorruptapormuitotempo.Ademaistrata-sede frutasemsemente,cujareprodução é feita por meio de pequenos brotos, como os enxertos quenósconhecemos.”

Desuascascas faz-seosaborosoaluá,umaespéciedegengibirra,umtanto gasosa por causa da fermentação, extremamente refrescante econhecidaemsuasvariantesregionaisemtodooBrasil.Talvezoaluásejaum descendente direto do “vinho” feito pelos índios com o abacaxi,registradoporvárioscronistas.DiziaoportuguêsGabrielSoaresdeSousa,senhor de engenho na Bahia, que o vinho que os índios fazem com ascascas do ananás “mal maduro”, com o qual se embebedam, era o maisapreciado tanto por “mestiços como portugueses”, como o padre FernãoCardim,queoconsiderava“debomgosto”.

Gabriel Soaresde Sousa, depoisde exaltar os sabores e os odoresdoananás, descreve pormenorizadamente a planta, suas folhas, suaresistência, as fruti icações, e aborda o aspecto medicinal: “A naturezadesse fruto é quente e úmida, emuito danosa para quem tem ferida ouchagaaberta;osquaisananasessendoverdessãoproveitososparacurarchagascomeles,cujosumocometodoocâncereacarnepodre,doqueseaproveitaogentio.”Outrasutilidadeseproveitostemoananás,segundoosenhorde engenhoportuguês. Suas cascas, quando verdes, eramusadaspara limpar a ferrugem das espadas e facas, e para tirar manchas daroupa.Aconservaera“muitoformosaesaborosaenãotemaquenturaeumidade de quando se come em fresco”. Tanto melhor é unir o útil aoagradável:remédioesobremesa.

“O sabor dos ananases é muito doce e tão suave que nenhuma fruta de Espanha lhe chega naformosura,nosaborenocheiro.”

GABRIELSOARESDESOUSA

Afrutaémuitocheirosa,gostosa,eumadasboasdomundo,muitocheiadesumoegostoso,etemsabordemelãoaindaquemelhor,emaischeiroso.

FERNÃOCARDIM

Fernão Cardim advertia que “para febres é muito prejudicial”, mas“cruas, desenjoam muito no mar, e pelas manhãs com vinho são

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medicinais”. André Thevet diz que o abacaxi é a fruta que os índioscomiam quando estavam doentes. O padre Francisco Soares, em CousasnotáveisdoBrasil,acrescentaoutraspropriedadesaoananás:édiuréticoefaz sair a peçonha das serpentes venenosas “pelo mesmo lugar” de suapicada. O cronista ilustra esse efeito contando de “dois índios em lhemordendoduasjararacaslhesfezlogoumvergão,emo[ananás]comendoodesfezlogoebotouapeçonhaamarela...”

CONSERVADEANANÁS

Escolham alguns ananases bonitos e perfeitos, que já estejam maduros, e partam-nos empedaços,deitando-os imediatamentenumavasilhacomáguafria.Numtachoaofogotenhamumacaldabemrala,naqualsearrumamospedaçosdeananásbemapertados,demaneiraaicarem cobertos pela calda. Cubram tudo comumpano ouuma tampaqualquer, e deixemcozer. Se a caldaminguar, acabem de encher o tacho com outra fervendo, e se icar escurapassemoananásparaoutracalda,tambémfervente.Depoisdebemcozido,tiremoananásdacalda,colocando-onumrecipientecomáguafria.Repitamessaoperaçãodurantequatrodias,trêsvezesaodia, istoé,demanhã,detardeeànoite.No imdessesquatrodiasarrumemospedaços de ananás num tacho, encham-no com água fervendo, cubram-no com um pano edeixem o ananás de infusão. Façam outra calda rala, e depois de escorrer o ananás de suaágua, deitem-no naquela calda, que deverá estar fervendo. Por quinze dias ande o ananásnessacalda,quedeverálevarumafervuracadadia,ecadavezmaisforte.No imdessetempoacompotaestarápronta.

AdaptadodareceitadeCompotadeDiacidrãodoLivrodecozinha

dainfantad.Maria

•CAJU

Omaisantigoregistrodapalavra“caju”éde1576,naHistóriadaprovínciaSanta Cruz , de Pero deMagalhães de Gândavo: “A esta fruta chamamoscaju; temmuito sumo, e come-sepela calmapara refrescar,porqueé elapor sua natureza muito fria, e de maravilha faz mal, ainda que sedesmande nela.” Chamou-lhe também a atenção a castanha, cuja casca“amargosa” fazempolarabocaecujomiolo,assado,é“muitodoceemais

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gostosoqueaamêndoa”.

ComocostumamfazeraodescreverasnovasfrutaseanimaisdoBrasil,Gândavocomparaoscajusa“perosrepinaldos”(maçãsdoceseoblongas),opadreCardimresgistraqueé“umpomodotamanhodeumrepinaldooumaçã camoesa” e o francês André Thevet diz que tem “a forma e otamanho de ovos de gansa”. Gabriel Soares de Sousa, em seu TratadodescritivodoBrasil,escrevesobreasqualidadesterapêuticasdocaju,queseria de natureza fria e bom para os doentes de febre e de fastio. MasparaSoaresdeSousaamaiorqualidademedicinaldocajuéque“osquais[cajus] fazem bom estômago emuitas pessoas lhes tomam o sumo pelasmanhãs em jejum para conservação do estômago, e fazem bom bafo aquemoscomepelamanhã,epormaisquesecomadelesnãofazemmalanenhuma hora do dia e são de tal digestão que em dois credos seesmoem”.

Acastanha,SoaresdeSousaaaproximadospinhõesdePortugal,mas

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aconsidera“demuitavantagem”sobreestes.OpadreCardima irmaqueela é tão boa ou melhor que a de Portugal. O que hoje nos causa maisadmiração é o fato de as portuguesas utilizarem a castanha de caju nas“conservasdocesquecostumam fazercomamêndoa,oque temgraçanasuavidadedo sabor”.Registra o padreCardimousoda castanhade cajunaconfecçãode“maçapães[marzipãs]ebocadosdocescomoamêndoas”.Ainformaçãodequeseusavamascastanhasemlugardeamêndoas(nãoexistentes na colônia) é retomada por Ambrósio Fernandes Brandão, noDiálogodasgrandezasdoBrasil : “Esobretudoomaisexcelente legumedetodossãoumascastanhasquechamamcaju,muitogostosasdecomeredemuitonutrimento,queseconservam longo tempo,esecomemassadas,edamesmamaneira se servem delas para tudo em lugar das amêndoas.”ParaAndréThevet,ocatólicoautordeSingularidadesdaFrançaAntártica ,as castanhas tinham o “formato de um rim de lebre”, e adquiriam“excelente sabor quando levadas ligeiramente ao fogo”, mas o fruto,afirmou,nãoera“muitobomdecomer”.

Ao contrário de seu compatriota, o protestante Jean de Léry vai sedeliciarcomocaju,esquecendo-sedacastanha.EscreveeleemsuaViagemàterradoBrasil :“Quandomaduraafrutasetornamaisamarelado queomarmelo e não só tem bom gosto mas ainda dá um caldo aciduladoagradávelaopaladar.Nocaloresserefrescoéexcelente,masasfrutassãomuito di íceis de colher por causa da altura das árvores e só podíamos

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obterquandoosmacacos,aocomê-las,derrubavamgrandequantidade.”

“ConvémtratardaquipordiantedasárvoresdefrutonaturaisdaBahia,águasvertentesaomarevista dele, e demos o primeiro lugar e capítulo por si aos cajueiros, pois é uma árvore demuitaestima e de que há tantas ao longo do mar e na vista dele. Estas árvores são como igueirasgrandes,têmacascadamesmacoreamadeirabrancaemolecomo igueira,cujasfolhassãodafeiçãodasdacidreiraemaismacias.As folhasdosolhosnovossãovermelhasemuitobrandasefrescas,a lorécomoadosabugueirodebomcheiromaismuitobreve.Asombradestasárvoresémuitofriaefresca,ofrutoéformosíssimo.”

GABRIELSOARESDESOUSA

Soares de Sousa observa diferentes variedades de caju: o de frutovermelho e comprido, os também vermelhos e redondos, outros partevermelhos e parte amarelados, e ainda os amarelos e compridos. EramdeliciosososcajusdaBahiadeGabrielSoaresdeSousa:“Todossãomuitogostosos, sumarentos e de suave cheiro, os quais se desfazem todo emágua.”Desaborespecialíssimo,outra“casta”,chamadacajuí( Annacardiummicrocarpum), que crescia nas campinas do sertão, era amarelo e dotamanho de “cerejas grandes”: “Tem maravilhoso sabor, com umapontinhadeazedo”,dizSoaresdeSousa.

MAÇAPÃO(MARZIPAN)DECASTANHADECAJU

Façamumacaldagrossacomumquilodeaçúcareadicionem-lhealgumasgotasdeágua-de-lor.Quandoacaldaatingiropontodebalamole, juntem-lheumquilodecastanhasdecajuassadas.

Logoquemisturaremascastanhascomacalda,tiremotachodofogo(mexendosempreamistura), acrescentem-lheumacolherdesopa,mal cheia,de farinhade trigo,e continuemabater,paraqueamassafiquebemfofa.Levemotachonovamenteaofogo.

Parasaberopontodecozimento,tomemumpouconamão:seestiverbemligada,amassajáestarácozida.Entãotiremotachodofogoeponhamamassanumatigeladelouça.

Assimqueamassaforesfriando,comasmãosmolhadasfaçamosmaçapães,dofeitioquedesejarem.

AdaptadodoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Haviaaindacajusmaisazedos,utilizadosemconservas“muitosuaves”,

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e “para se comerem logo, cozidos no açúcar cobertos de canela não têmpreço”.Eacrescenta: “Dosumodesta fruta fazogentiovinho comque seembebeda, que é de bom cheiro e saboroso”. O francês André Thevetprovoueachouapenasrazoávelabeberagemindígena:“Algunspreparamcomeleumabebidacujogostolembraodesorvamalamadurecida.”

As mulheres portuguesas ainda encontraram um novo uso para ocajueiro, que nos mostra o quanto a doçaria brasileira quinhentista erare inada.Comaalvaresinaexsudadapelocauleepelosgalhosdocajueiro,fazia-sealcorcedeaçúcar–umamassacompostadeaçúcar,farinha,claradeovoedealcatira(aresinadaadraganta,muitousadanaEuropa),equeera empregada para cobrir uma série de doces, como os confeitos deamêndoas.

O caju (Anacardiun occidentale), provavelmente originário das costasdo Nordeste brasileiro, foi levado, ainda no século XVI, para a Índia eoutras regiões do Oriente, e lá se deu tão bem que chegou a serconsideradoorigináriodaÍndia,ondealémdeapreciadocomofrutaeporsuas propriedades medicinais era usado na produção do popular fenin,umabebidadestiladafeitadosucodecajufermentado.

•BANANA

Ao escrever seu livro sobre a província Santa Cruz – o Brasil –, Pero deMagalhães de Gândavo observa, entre outras coisas surpreendentes, umfenômeno que fazia jus ao santo nome do país. Ao cortar-setransversalmenteumabanana,miraculosamenteoquesevia?Umacruz!TambémosenhordeengenhoGabrielSoaresdeSousaregistraomesmofenômeno:“Quemcortaratravessadasasbananas,ver-lhe-ánomioloumafeiçãodecrucifixosobreoqueoscontemplativostêmmuitoadizer.”

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Era uma época em que cristãos, e principalmente os jesuítas,encontravamnoNovoMundodiversossinaisdapresençadivina,comoasentão famosas pegadas de são Tomé, o que vinha a lhes comprovar queaquelaterra,apesardebárbaraeselvagem, faziatambémpartedoreinodeDeus.Abanana,portanto,tãoabundantenoBrasil,encarnavamaisumdesses milagres no cotidiano dos primeiros colonos, e havia quem, emrespeitoàsantacruz,nemmesmocortassebananasàfaca.

Gândavo e Soaresde Sousa repercutiamumanoção comumna épocaquevinculavaabananaaumaorigembíblica.VáriosescritoresdoséculoXVIacreditavamqueo frutodoqualEvaprovounoparaíso,eque julgou“bom de comer... belo aos olhos e de aspecto deleitável”, era não umamaçã,masumabanana.Eoutrossustentaram,ainda,queasfolhasdefícus

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comasquaisAdãoeEvasecobrirameramfolhasdebananeira.Porissoojesuíta Fernão Cardim, ao descrever a fruta, que conheceu no Brasil,pondera: “Esta é a igueira que dizem de Adão”, “a mais admirável detodasasfrutasqueseconhecematéhoje”.

Todos os cronistas do século XVI, ao escreverem sobre a banana,compararam-naa igosouapepinos.Gândavoobservaquetem“feiçãodepepinos”e“umapelecomodefigo(aindaquemaisdura)”.Thevetescreve:“Quantoàgrossura,adestafrutaéigualàdeumpepino,frutocomoqualela aliás muito se assemelha.” Todos também eram unânimes quanto aosabor e a tinham como uma das mais saborosas e boas da terra. Comoobserva o francês Jean de Léry, “é verdade que são mais doces e maissaborosasdoqueosmelhores igosdeMarselhaedeve,portanto, igurarentreasfrutasmelhoresemaislindasdoBrasil”.OcorsárioinglêsRichardHawkinsregistrouqueasbananaseram“maciascomomanteiga”equeasmelhoresquehaviacomidoeramasdaIlhaGrande,noRiodeJaneiro.

Abananaénaverdadeorigináriadosudoesteasiático,efoitrazidaaoBrasil,pelosportugueses,dasilhasCanárias.ConhecidanaÍndiacomo igoe pelos povos brasileiros como pacova, seu nome hoje mais difundido éprovavelmente de origem africana. Um de seus nomes cientí icos éMusaparadisíaca,devidoaotermocomqueosárabesadenominavam:musa,ouamusa. Pouco versado em árabe, porém, um padre católico a irmou queassimsechamavaporserafrutadasMusas...

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A exemplo de outras frutas asiáticas, logo os portugueses aintroduziram em suas possessões africanas e americanas, onde de talforma se disseminou que alguns cronistas, como o senhor de engenhoGabriel SoaresdeSousa, acreditavamque fossenativadaAmérica.E eratal a fartura que a banana se tornou uma das peças de resistência daalimentação brasileira. Como registra Gândavo, “assadas verdes passampor mantimento e quase têm substância de pão”. Muitos viajantesobservamque algumas tribos indígenas e amaioria dos escravos negrosalimentavam-se quase que exclusivamente de banana. Também oseuropeus, em apertos de fome, valeram-se do nutritivo fruto – comoizeram os jesuítas recém-instalados no Espírito Santo que, “sofrendoalegremente mínguas e necessidades corporais”, “comiam bananasassadasemilhoverde”.Abananaeraumaespéciedepãovegetal,dealtovalorcalóricoemuitonutritiva.

Além de excelentes propriedades alimentares, a banana tambémdesempenhava, no Brasil quinhentista, o papel de medicina das maisempregadas. “Assadas maduras são muito sadias e se mandam dar aosenfermos”, diz Gândavo, não sem fazer um alerta: “faz dano à saúde ecausa febre a quem se desmanda nela”. Fernão Cardim recomenda seuuso para “os enfermos de febres e peitos que deitaram sangue”. GabrielSoares de Sousa registra: “Dão-se estas pacovas assadas aos doentes emlugardemaçãs.”NaÍndia,o“ ísico”GarciadeOrtaregistraqueosmédicosindianos também as davam “em dieta para febres e para outras

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enfermidades”.Orta, que alémdemédico e botânico era umótimo garfo,aconselhacomê-lasmuitobemassadas,deitadasemvinho,comcanelaporcima,observandoqueassim“sabemamarmelosassadosemuitomelhor”,e também receita que se as cortem aomeio e fritem em açúcar até queestejambemtorradas,polvilhando-asentãocomcanela.GabrielSoaresdeSousa, apesar de achar a geléia de bananas “muito sofrível”, julgava-as“muito gostosas”: “Cozidas no açúcar com canela são extremadas epassadas ao sol sabem a pêssegos passados.” E concluía: “Basta que detodasasmaneirassãomuitoboas.”

“Estáéa igueiraquedizemdeAdão,neméárvore,nemerva,porqueporumapartesefazmuitogrossa, e cresce até vinte palmos em alto; o talo é muito mole, as folhas que deita sãoformosíssimasealgumasdecomprimentodeumabraça,emais, todasrachadascomoveludodeBragança,tão inasqueseescrevenelas,tãoverdes,efrias,efrescasquedeitando-seumdoentedefebre sobre elas ica a febre temperada com sua frialdade, são muito frescas para enramar ascasaseigrejas.…Afrutasepõeamadurare icamuitoamarela,gostosaesadia,maximeparaosenfermos de febres e peitos que deitaram sangue; e assadas são gostosas e sadias. É frutaordináriadequeashortasestãocheias,esãotantasqueéumafartura,edão-setodoano.”

FERNÃOCARDIM

Registram-se várias “castas” e diversos tamanhos. Gabriel Soares deSousa gostava especialmente de umas avermelhadas, pequenas, docomprimentodeumdedo,“tãodocescomotâmaras”.Gândavorefere-seadois tipos: “Umas são pequenas como igos berjaçotes, as outras sãomaiores e mais compridas.” O inglês Richard Hawkins observou umaspequenas, redondas e verdes. Como resume Ambrósio FernandesBrandão, noDiálogo das grandezas do Brasil , ao descrever o fruto: “Unsgrandes e outrosmais pequenos, de diferentes castas e feições, gostososnocomeredebomcheiro,dosquaishánúmeroinfinito.”

•GOIABA

Numacartade1561,opadreManueldaNóbrega,escrevendoaumpadrede Lisboa, enumera todos os produtos brasileiros que estava enviandopara Portugal e faz uma das primeiras menções à goiaba (Psidiumguajava). Entre as conservas enviadas de São Vicente para os irmãos

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enfermos portugueses estão as geléias (chamadas em Portugal demarmeladas)dearaçá,especialmenterecomendadasparaascâmaras,ouseja, para disenterias e outros desarranjos intestinais. Diz o padreNóbrega, acenando com uma possível exportação regular do saborosoremédio: “Dissopodemoscadaanodaquiproverosnossos irmãos, se forcoisaqueláqueiram.”

A geléia e a conserva de goiaba são louvadas por grande parte doscronistas, tanto pelo sabor quanto pelos efeitos medicinais. O padreFrancisco Soares a considerava muito boa para o fastio, ou seja, comodigestivo. E advertia que “pelos campos e matos há deste fruto muito;fazem conserva deles para câmaras e também assim maduros servemparaasestancaresãomuitoapetitosos”.

“Araçazeirassãooutrasárvoresquepelamaiorpartesedãoemterrafracanavizinhançadomar,asquaissãocomomacieirasnagrandeza,nacordacasca,nocheirodafolhaenacorefeiçãodela.A lorébrancadafeiçãodademurtaecheiramuitobem.Aofrutochamamaraçazesquesãodafeiçãodasnêsperas,masalgunssãomuitomaiores.Quandosãoverdestêmacorverdeequandosãomadurostêmacordasperas.”

GABRIELSOARESDESOUSA

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O senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa apreciava a fruta innatura: “Esta fruta se come toda, e tempontadoazedomui saboroso,daqual se faz marmelada, que é muito boa, e melhor para os doentes decâmaras.” Também o padre Fernão Cardim era um apreciador: “Sãogostosas,desenfastiadas,apetitosas,porteremalgumapontadeagro.”

AmbrósioFernandesBrandão lastimaquenãose izessemplantaçõesde goiaba: “Que osmoradores do Brasil por negligência as deixam estaratéagoraagrestes,espalhadaspelosmatos,asquais, se foramcultivadas,se avantajariam em bondade e gosto.” Era uma fruta do mato, nãocultivada, e ao ser levada pelos portugueses para a África e o Orienterapidamentesedifundiudevidoàsuarusticidade.

As goiabas ou araçás brasileiros (espécies do mesmo gênero), aoserem descritas pelo olhar europeu, são quase sempre comparadas anêsperas,perasoumaçãs,esuas loresefolhassãolouvadaspelocheiro.Enquantooscolonoseeuropeussedesenfastiavamcomgoiabascruasoucuravam suas câmaras com apetitosas geléias, os índios, conta-nosFranciscoSoares,empregavamafrutanaconfecçãode“vinhodearaçá”.

MARMELADADEGOIABA

Paradoisquilosdegoiaba,usemdoisquilosemeiodeaçúcar.Cozinhem as goiabas inteiras, só na água, abafando-as bem. A seguir descasquem-nas,

cortem-nasempedaços,passando-asentãoporumapeneirafina.Pode-setambémdescascarasgoiabasantesdelevá-lasaofogoe,nessecaso,serãocozidas

com um pouco de açúcar e passadas depois pela peneira. Façam uma calda em ponto deespelho, adicionem-lhe um pouco de água-de- lor, deitem dentro as goiabas passadas pela

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peneiraemisturemtudomuitobem,foradofogo.Levemnovamenteotachoaofogoemexamamarmeladaatéquesedesapeguedofundo.

AdaptadodoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Conheciam-se várias “castas”da fruta. “Perinhos amarelos, vermelhoseverdes”, segundoa classi icaçãodeFernãoCardim. JáFranciscoSoaresera mais especí ico e identi icava os araçá-pitanga de São Vicente,vermelhoseamarelos, alémdosgrandesaraçá-guaçusedosaraçaetes, eGabrielSoaresdeSousa,naBahia,registraumasgoiabasdecascagrossacomolaranja,muitosaborosas,provenientesdeumasárvoresgrandes,àsquaisseaparavaacascaantesdecomê-las.

•MARACUJÁ

Louvado por suas lores, sua fresca sombra e seu fruto, os pés demaracujá plantavam-se em agradáveis latadas, onde os colonos seabrigavamnas tardesde calor.Aoexplicaroque eraummaracujá aumeuropeu que nunca vira a fruta, Brandônio, personagem do Diálogo dasgrandezas do Brasil , de Ambrósio Fernandes Brandão, descreve-o como“umfrutodotamanhodeumapinha,muiregalado,cujomioloqueécomoo da abóbora, se sorve ou come às colheradas, com dar muito emaravilhoso cheiro”.OpadreFernãoCardim foi o primeiro a divulgar asvirtudes do maracujá, a irmando que é “fruta de que se faz caso”.Agradava-lhe comer, tudo junto, a “substância de pevides [caroços] e osumo com certa teia que as cobre”, a irmando que “é de bom gosto” eapreciando especialmente a pontinha de azedo. Já o senhor de engenhoGabrielSoaresdeSousa,naBahia–tambémafeitoàpontadeazedo,quetornava a fruta “fria de suanatureza”, “mui desenfastiada” –recomendava-aparadoentesdefebres,ensinando:“Enquantoénova,faz-sedelaboaconserva;eenquantonãoébemmadura,émuiazeda.”

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Conheciam-seváriascastasdemaracujás,variandootamanho,formaecordeseusfrutos,eabundandoemváriostiposdemagní icasecheirosaslores. Brandão registra o grande maracujá-açú e o maracujá-peroba,“excelente para conserva”, omaracujá-mexiras e o pequeninomaracujá-mirim. Fernão Cardim é menos especí ico e comenta apenas que algunssão redondos como laranjas e outros “da feição de ovo”, sendo unsamarelos e outros pretos. Existem 400 espécies pertencentes ao gêneropassi lora, 60 delas dão frutos comestíveis, e algumas são originárias doBrasil,comoasespéciesdescritasporBrandão.

Pelo padre Francisco Soares sabemos que havia maracujás emquantidadenoBrasildoséculoXVI.Alémdeseremapreciadospelosabor,

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erammuitoconhecidaseusadasassuaspropriedadesmedicinais.Afolha,depoisdebempisada,erapostaemcimadeferidaspara“desafogá-las”epara,comasuanaturezafria,tirar“ofogoeocâncerquetiver”.Tambémera remédio para uma doença muito freqüente na época, a sí ilis. E sãodois padres jesuítas os cronistas que se referem a esse emprego, eensinamseusleitoresqueasfolhasdomaracujáespremidascomverdete“sãooúnicoremédioparaboubas”.

Na lor do maracujá os missionários europeus souberam ver umasimbologia da paixão de Cristo – daí sua designação comofruit-de-la-passionemfrancêsepassionfruiteminglês.Acoroa loralrepresentavaacoroa de espinhos, os três estigmas da lor simbolizavam os três cravosqueprenderamCristona cruz, e as cincoanteras lorais, as cinco chagasde Cristo; as gavinhas eram os chicotes com que o açoitaram e o frutoredondorepresentavaomundoqueoCristoveiosalvar.FranciscoSoaresdescrevelindamenteaplanta:

“Nopédecadafolhanasceumtalinhodelgadoondenascemtrêsfolhazinhasamododelancetasequasedomesmocomprimento,eemcimadestasnascemcincodomesmomodo,comoutrascincobrancasdomesmomodo, e todas em torno como coroa; nopédestas nasceuma coroade raiosmuitodelicados,redonda,azulmuito inoemetadebranca,eemcimadestacoroanasceoutradecincohastespequenas;naspontasdashastestemcincocovascomodeargentaria,andamàrodaenãoquebram;emcimasecriaopomo,queécomoredondoecomoumalaranjapequena;emcimadestepomoestãotrêscravosmuitobem-feitos,eesteéorematedesuaflor.”

FRANCISCOSOARES

•SAPUCAIA

Descrita por quase todos os cronistas, a sapucaia impressionavaprincipalmentepelotamanhoeformatodacabaça,epelamaneiracomoosfrutossedispõemdentrodela.Os“vasos”,parecidoscom“jarrasdaÍndia”,fechados comdelicadas e esculpidas tampas,maravilhavamos europeus,por mais parecerem feitos “por arti ício de indústria humana” do quecriados pela natureza. Quando o fruto cai no chão, a bem talhada tampadesprende-se,edentrodacabaçaosviajantesecolonosencontravam“dezou onze repartimentos e em cada um uma fruta tamanha como uma

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castanhadeEspanha”.

Muito antes de a culinária brasileira descobrir a castanha-do-pará –queéumadasváriasespéciesda famíliaLecythidaceae,comoasapucaia(Lecythis pisonis) –, os colonos e viajantes do Brasil quinhentista sedeliciavamcomas castanhasda sapucaia, nozesde alto valornutricional.“Muito doces e saborosas em extremo”, segundo Gândavo. “Muitosaborosas, assim assadas como cruas”, dizia Gabriel Soares de Sousa.“Quasecomomesmogostodasamêndoas”,nadescriçãodeJeandeLéry.Mas havia uma restrição, conhecida por todos: “se comemmuitas cruas,dizem que faz pelar os cabelos”, dizia o padre Francisco Soares. No queeraapoiadopelopadreFernãoCardim:“Secomemmuitadelaverde,pelaumapessoaquantoscabelostememseucorpo;masassadaéboafruta.”

“Continuando a descrição das árvores do Brasil, mencionarei a sabucaié, que dá um fruto dotamanhodedoispunhosjuntos;formadoàfeiçãodeumataça,nelesseencerrampequenoscaroçoscomoamêndoasequasecomomesmogosto.Acascadessefruto,quejulgoserococodaÍndia,éutilizada para fazer vasos que, torneados e bem trabalhados, são encastoados de prata cá naEuropa.UmcertoPedroBourdon,excelentetorneiro,fez,quandoestávamosnoBrasil,lindosvasoseoutrosutensíliostantocomosfrutosdasabucaiécomocommadeirasdecor,tendopresenteadoVillegagnoncomalgunsdeles.”

JEANDELÉRY

Os belos “vasos” da sapucaia eram apreciados tanto pelos europeus,como objeto utilitário ou decorativo, quanto pelos índios, como cuia para“pisar” o sal e a pimenta. E amadeira dessa alta e belíssima árvore eraempregadanoseixosdosengenhosdeaçúcar.

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•MAMÃO

Temosaquiumdosmaisbem-sucedidoscasosdefrutanativadaAméricalevadapelosportuguesesparaaÁfricaeparaaÍndia,deondeseespalhoupelo Oriente, tornando-se praticamente nativa e ingrediente básico dacozinha demuitos países orientais – damesma forma como, para nós, aindianamangueiraé,afetivamente,umaárvorebrasileira.

São poucos os cronistas a se referirem ao mamão ( Carica papaya).Segundo diz o padre Fernão Cardim, as altas árvores, cujos frutosmaduros eram “muito gostosos e de fácil digestão”, eram raras. Ao quetudo indica, o primeiro a usar essa palavra para designar o fruto foiGabriel Soares de Sousa, que, aliás, faz uma bela descrição, indicando,provavelmente,quemuitooapreciava:“DePernambucovieramàBahiaassementes de uma fruta que chamammamões. São tamanhos de feição ecor aospêros camoeses, e têmmuitobomcheiroquando sãodevez, nasárvores. E em casa acabam de amadurecer e quando são maduros sefazemmolescomomelãoeparasecomeremcortam-seemtalhadascomomaçã e tira-se-lhes as pevides que são crespas e pretas como as depimentadaÍndia,eoquesecomeédacorebranduradomelãoeosaborédoceemuitogostoso.”

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Soares de Sousa também descreve o mamoeiro-bravo ou mamão-do-mato(Jacaratiaspinosa),“queemtodoseparececomestesmamões,senãoquemaispequenos,oqualos índioschamamjacarateá…o fruto,amareloporfora,dafeiçãoetamanhodos igos-abóborasoulongaisbrancos,temacasca dura e grossa … tem bom cheiro, o sabor toca de azedo”. Dojaracatiá,opadreFranciscoSoaresfaziausomedicinal, indicandoqueera“uma fruta boa para câmaras de sangue [diarréias sangüíneas]” e que araiz moída também era usada para esse im. O leite branco extraído dotronco também tinha sua serventia, segundo conta Fernão Cardim:“Coalha-seepodeservirdelacresequiseremusardele.”

•MANGABA

Ao falar sobre as árvores de fruto que se dão na vizinhança domar daBahia,osenhordeengenhoportuguêsGabrielSoaresdeSousadetém-senas mangabeiras(Hancornia speciosa), nativas do Brasil, que seespalhavampelascampinaseterrasfracas.

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A descrição é detalhada: são do tamanho de pessegueiro, têm ostroncos delgados, a folha miúda, a lor como a do marmeleiro, de frutoamarelocoradodevermelho,dotamanhodeameixasoumaiores.Quandoverdes, as mangabas são todas cheias de leite, e eram colhidas assiminchadase levadasparaamadurecerememcasa,deumdiaparaooutro(se as deixassem na árvore, cairiam no chão e apodreceriam). No diaseguinte,comiam-seasmangabas inteirinhas, semdeitarnada fora,comose comeum igo, porque a casca é tão delgada “que se se lhe pela se asenxovalham”. De bom cheiro e suave sabor, a mangaba tinha a grandevantagem de poder ser comida em grandes quantidades, sem causardesconfortos. “É de boa digestão e faz bom estômago, ainda que comammuito”, dizia Gabriel Soares de Sousa. “E por muitas que comam nãoempacham nem enfastiam”, sustentava o padre Francisco Soares. “Pormais que comam, parecem que não comem fruta”, concordava omissionárioFernãoCardim.

A lor também era muito apreciada, conta Cardim: “É toda comojasmim, e de tão bom cheiro,masmais esperto.” Sendo uma fruta “fria”,recomendava-separadoentesdefebres.Eaconservadeaçúcar,feitacomasfrutasaindanãototalmentemaduras,eraconsiderada“muitomedicinale gostosa”. Já os índios, segundo seus hábitos, usavam-na no fabrico devinhos.

•JABUTICABA

OpadreFranciscoSoares,quetinhacorridotodasasvilasdeSãoVicente

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atéPernambuco,eraumentusiastadajabuticaba(Myrciariacauliflora):“Édas melhores frutas do Brasil.” Ao descrever doze frutas brasileiras, ojesuíta a elegeu como a número um. E eram enormes as jabuticabas em1590:“EmSãoVicenteasviboas,sãocomolimõespequenos”diziaSoares,ecoandooqueFernãoCardim,tambémdaCompanhiadeJesus,escreveu:“Édotamanhodeumlimãoseitil.”Osdoisconcordavamsobreosabor,quehoje nos parecemeio improvável: “O sabor é como de uvas” a irmava oprimeiro;“nogosto,parecedeuvaferral”,descreviaCardim.

As jabuticabasnãoeramabundantescomoosabacaxis,oscajusouasbananas. Segundo Cardim, era “fruta rara”, sendo encontrada somentepelosertãoadentrodacapitaniadeSãoVicente(a frutaénativadamataatlântica de São Paulo e Minas Gerais). Ao que tudo indica, os colonosainda não tinham descoberto o licor de jabuticaba, que talvez viriam aaprender inspirando-senos índios,que faziam“vinhos”coma fruta, “quecozemcomovinhodeuvas”.

Curiosamente,emtupi,jabuticabaquerdizer“comidadecágado”.

•UMBU

Gabriel Soares de Sousa dedica um capítulo inteiro ao umbu (Spondiastuberosa), mas não era um entusiasta da fruta. Relata, secamente, quetinha o tamanho, a feição, a cor e o sabor das ameixas brancas. Ávidocomedor de outras frutas, o sábio senhor de engenho português nãosofreuasdesagradáveisconseqüênciasrelatadaspelosjesuítas.OspadresFernão Cardim e Francisco Soares eram enfáticos sobre o fruto: “Fazperder os dentes e os índios que as comem os perdem facilmente”, “sãomuitogostosas,masruimparaosdentes,portempoosfazcair”.

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Nativa da caatinga, “que está pelomenos vinte léguas domar, que éterraseca,depoucaágua”,comoexplicaGabrielSoaresdeSousa,aárvorepareciaque tinha sido feitanamedidaparamatara sededos índiosquealiviviam,emregiãotãoárida.Suasraízes,compridascomobatatas,eramdescascadas e assim icavam branquinhas e “brandas como coco”, e osaboreratidocomo“muidoceetãosumarentoquesedesfaznabocatudoemáguafrigidíssimaemuidesencalmada”.ComoexplicaSoaresdeSousa:“Comoqueagentequeandapelosertãomataasedeondenãoachaáguaparabeber, emataa fomecomendoesta raiz, queémui sadia, enão feznunca mal a ninguém que comesse muito dela.” Cardim assevera queessasraízes“sãofrias,sadiasedão-seaosdoentesdefebres”.

•MUCUJÊ

Para os portugueses, o também chamado macuoé, mocujê ou macujê(Couma rigida) parecia-se com as “peras do mato de Portugal”, os“perinhos do mato do Alentejo” e maçãs pequenas. Eram redondos epardosou “almecegados” (amarelados).Colhiam-severdeseerampostosamadurar,poismaduroserammuitogostososedefácildigestão,comumsabor “algum tanto doce sobre o azedo”. Comiam-se inteiros, como igos.GabrielSoaresdeSousaéenfático:“OsaborémuisuaveetalquelhenãoganhanenhumafrutadeEspanhanemdeoutranenhumaparte.”

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•PEQUI

Apreciadapelopadre jesuíta Francisco Soares, que se admirou comumaenormeárvorequeviunoRiode Janeiro, denoventapalmosde largura.Seu fruto (Caryocar brasiliense), que comparou à maçã, precisava serabertoparaquesedescobrisseumaespéciedeamêndoa,“decarnemuitogostosa”. Gabriel Soares de Sousa achava o gosto parecido com o depinhõescrus.Hojeéintegrantefundamentalnacozinhatípicagoiana.

•PEQUIÁ

Descritacomouma frutado tamanhodeuma laranjaoudeummarmelo,comacascagrossacomodelaranjaoudecabaça,decorpardaporforaeguardando dentro de si, além de grandes sementes, “ummel tão claro edoce como açúcar”, “um mel que parece açúcar clari icado”, “um melbranco e muito doce”. O mel se come “aos sorvos” ou “com colher” e“refrescamuitonoverão”.SeunomecientíficoéCaryocarvillosum.

•ARATICUM

Conheciam-semuitascastasdeumaárvoredoportedeumalaranjeiraouamoreira, cuja fruta do tamanho e aparência de uma pinha era louvadapelo cheiro, por ser “desenfastiada” e por ter “um azedo bom”. TantoFernãoCardimquantoFranciscoSoares,aodescreveremoquedesignamcomo araticu, estão se referindo ao araticum ( Annona crassi lora), frutanativadoBrasil,damesmafamíliaemuitoparecidacomafruta-do-conde(batizadaemhomenagemaocondedeMiranda,queaintroduziunaBahiaem1626),querelegouonossoaraticumnativoaoesquecimento.

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Existem mais de três dezenas de espécies do gênero Annona, entreelasafruta-do-conde,acherimolia,acondessaeosnossosváriostiposdearaticum, todas nativas daAmérica. Já no século XVII foram introduzidasnoOriente,ondesedifundiramrapidamente,ehojeaindasãoconhecidascomo a “jaca dos portugueses”. Também na África, principalmente emAngola,algumasespéciesdogênerosedisseminaram,sendochamadasde“coração-de-negro”.Hoje,asanoneirasestãoespalhadasportodoomundotropical.

Ao escrever sobre o araticu, Gabriel Soares provavelmente está sereferindo não ao araticum, mas à graviola ( Annona muricata), quandodescreveumafruta todamolepordentro,comumacascamuito ina,que“para se comer corta-se emquartos lançando-lhe foraumaspevidesquetem, amarelas e compridas”. A graviola era louvada por ser “fresca” eespecialmenteindicadaparaosdiasdeverão:“Ofrutocheiramuitobem,etaléoseucheiroqueestandoemcimadaárvoreseconhecedebaixoqueestámaduropelocheiro.”

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•PITANGA

Ahojeapreciadíssimapitanga(Eugeniauniflora)nãorepresentavaparaosbrasileiros, em nosso primeiro século, nem a sombra do que é agora. Opersonagem Brandônio, nosDiálogos da grandeza do Brasil , cita aubapitanga, fruta “da feição de ginjas”, em meio a uma grande lista defrutas,masnãosedetémnelaouemsuaspropriedades.

Curiosamente, o único a descrever uma fruta com todas ascaracterísticasdapitangaéocorsárioinglêsRichardHawkins,quepassoupeloBrasilem1593.EmumailhaentreoestadodoRiodeJaneiroeodeSãoPaulo,elesemaravilhoucom“umaespéciedecereja,decorvermelha,comumcaroço,não totalmenteredonda,masemgomos,ecomumsaborextremamenteagradável”.

•ABAJERU

EraapreciadoporGabriel SoaresdeSousa,queobservavaasárvoresaolongo das praias da Bahia e se deliciava com seus frutos “da feição e dotamanhodasameixasdecáedecorroxa”:“Comem-secomoameixas,mastêm maiorcaroço, o sabor é doce e saboroso.” Trata-se do carnudoabajeru-vermelho (Chrysobalanus icaco), ainda encontrado nas praias edunasdolitoralbaiano.

•MUNDURURU

Ao descrever as árvores de fruto afastadas do mar, Gabriel Soares deSousa é o primeiro a dar notícia domundururu (Mouriri pusa), tambémconhecido como mandapuçá: “Árvore que dá umas frutas pretas,tamanhas como avelãs, que se comem todas, lançando-lhes fora umas

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pevidesbrancasquetem,aqualfrutaémuitosaborosa.”

•AMAITIM

TambémdescritoporGabrielSoaresdeSousa: “Temcachosmaioresqueasuvasferais,unsbagosredondos,tamanhoscomoosdasuvasmouriscase muito esfarrapados, cuja cor é roxa e cobertos de um pêlo tão maciocomo veludo, metem-se estes bagos na boca e tiram-lhe fora um caroçocomodecerejaque temopêlo,entreaqualeocaroço temumdocemuisaborosocomosumodasmesmasuvas.”Frutadedifícilidentificação.

•APÉ

Com a forma de amoras,mas de cor esbranquiçada, os frutos “têm bomsaborcompontadeazedo”,sãoindicadosparaquemtemfastioenascememárvoresquecrescemaolongodomar.Talveztrate-sedaamora-branca(Rubuserythrocladus).

•MURICI

Amarelos e menores que cerejas, os muricis ( Byrsonima crassifolia)nascemempinhas,sãomolesecomem-seinteiros.SegundoGabrielSoaresde Sousa, o “murusi” temum gosto inusitado: “Cheira e sabe a queijo deAlentejoquerequeima.”

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•BURANHÉM

OfrancêsJeandeLéryprovouofrutodoburanhém(Pradosialactescens)–queelechamoudehiyraré–edissequeeramuitoagradávelaopaladar,principalmente quando recém-colhido. André Thevet descreveu o frutocomodotamanhodeumaameixaeuropéiaeamarelo“comoouro inodeducado”, indicando, ainda, que “o pequeno caroço tenro e delicado” eraindicado para “os que sofrem de moléstias ou enjôos”. A casca dessagrande árvore, conhecida dos índios como imbiraé, ou seja, “madeira-doce”, também tinha propriedades medicinais: André Thévet observouqueosíndiosaempregavamparacombateraentãofreqüentepiã,istoé,asífilis.

•COPINHA

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Os frutos dessa árvore que cresce ao longo domar e dos rios por ondeentra a maré são pretos e “maiores que murtinhos”. A árvore ica tãocarregadadeles,que“ordinariamentenegrejamaolonge”.NadescriçãodeGabriel Soares de Sousa: “Sua fruta se come como uvas e tem o sabordelas quando vindimam as que estãomuito maduras e tem uma pevidepretaqueselhalançafora.”Frutadedifícilidentificação.

•MAÇARANDUBA

Gabriel Soares de Sousa chama-a de maçarandiba (Manilkara huberi) eelogia sua madeira, cuja qualidade é muito conhecida. Não é muitodifundidoofatodequeseufrutoécomestível,parecidocomsapotilha.

“Seufrutoédacordosmedronhos[frutosemelhanteaomorango]edeseu tamanho, cuja casca é tesa e tem duas pevides dentro que se lhelançamforacomacasca,omaisselhecome,queédoceemuitosaboroso,equemcomemuitodessafruta,pegam-se-lheosbigodescomosumodela,queémuitodoceepegajoso”,descreveGabrielSoaresdeSousa.

•MUCURI

Árvore comum nas praias baianas, o mucuri (Astronium macrocalyx) dá“umas frutas amarelas como albaricoque, que cheirammuito bem, e temgrandecaroço”.Come-sedescascado.SegundoGabrielSoaresdeSousa,“édemaravilhososabor”.

•CAJÁ

Descritocomoumfrutoamarelo,semelhanteàsameixasnotamanhoenacasca, com um grande caroço, de “pouco que comer” e de muito bomcheiro. “O sabor é precioso com ponta de azedo, cuja natureza é fria esadia,dão-se estas frutas aosdoentesde febrespor ser fria e apetitosa”,

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ensinaGabrielSoaresdeSousa.Hojeocajá(Spondiasmombin)continuaasertãoapreciadoquantonaépocadogulososenhordeengenho.

•INGÁ

Comparada às alfarrobas daEspanha, o fruto ( Inga edulis) é uma vagemgrande e verde. Dentro dela encontra-se uma substância brancaadocicada,muitosaborosa,envolvendosementespretas.

•BACUPARI

Louvadopelobomcheiro, édescrito comoum frutoamarelo coma cascagrossa comode laranja, facilmente removível. Em tornodosdois caroços,encontra-se a substância comestível, “de maravilhoso sabor”. Seu nomecientíficoéPeritassacampestris.

•COMICHÃ

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Trata-se da grumixama (Eugenia brasiliensis). Gabriel Soares de Sousadescreve as vermelhas: “Tamanhas e de feição demurtinhos, se comemtodaslançando-lheforaumapevidepreta,aqualfrutaémuitogostosa.”

•MANDIBA

“Tamanha como cerejas, de cor vermelha e muito doce, come-se comosorva lançando-lhe o caroço fora e uma pevide que tem dentro e a suasemente”,descreveGabrielSoaresdeSousa.Frutadedifícilidentificação.

•CAMBUÍ

Era descrito como um fruto do tamanho, feição e cor (amarelado) dasmaçãs de anáfega. “Muito saborosa e temponta de azedo”, louvaGabrielSoaresde Sousa.Os frutosdo cambuí (Myrciaria tenella) também podemservermelhosehojesãousadosparaaconfecçãodegeléias.

•CURUANHA

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Se um senhor de engenho oferecesse a um visitante uma perada e ovisitanteseregalassecomodoce, icariamuitosurpresoaosaber,depois,quese tratavanãodeperadade fato,masdedocedecuruanha.Nascidade uma trepadeira, a fruta (Dioclea malacocarpa) tem forma de fava.Quando aberta, deixa ver três ou quatro caroços, que eram usados paramoléstiasdo ígado, sendoamassa comestívelda grossuradeuma cascade laranja.GabrielSoaresdeSousaerauma icicionado: “Temextremadosabor;comendo-seestafrutacrua,sabeecheiraacamoesas,eassadatemomesmosabordelasassadas; faz-sedesta frutamarmeladamuitoboa, aqualporsuanaturezaenvoltanoaçúcarcheiraaalmíscar,e temosabordeperadaalmiscarada.”

PERADADECURUANHA

Cozinhemcomcascaumquiloemeiodecuruanhas,passando-asdepoisporumapeneira.Aseguirfaçamumacaldaempontode io(comumquilodeaçúcar),misturemamassaàcaldae deixem tomar o ponto. Se quiseremo doce emponto de compoteira, deixem-no cozer umpoucomenos,devendotirá-lodofogoumpoucomaismole.

AdaptadodoLivrodecozinhadainfantad.Maria

•CAMBUCÁ

São frutas amareladas, do tamanho de abricós, com um grande caroço epouca massa comestível. Apesar do “pouco que comer”, era tida comomuitodocee“dehonestosabor”.SeunomecientíficoéPliniaedulis.

•GUTI

Dotamanhoedacordas“peraspardas”,oguti(Licaniatomentosa),ouoiti,

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fruta “de honesta grandura” e com um grande caroço, segundo GabrielSoares de Sousa, era descascado e comido em saborosas talhadas.“Lançadas essas talhadas em vinho não têm preço. Faz-se desta frutamarmelada muito gostosa, a qual tem grande virtude para estancarcâmaras de sangue [disenterias]”, comenta Gabriel. No século XVII, freiCristóvãodeLisboa,nasuaHistóriadoBrasil,entreaspouquíssimasfrutasquedescrevedálugaraohojeesquecidofrutodooiti,doqualtambémeraapreciador: “É de tanto sabor e cheiro que não parece simples, senãocompostodeaçúcar,ovosealmíscar.”

LuísdaCâmaraCascudo,emsuaHistóriadaalimentaçãonoBrasil , fazumaótimaobservaçãoarespeitodafrutaedeseuempregonoséculoXVI,quandoeraconsumidaimersaemvinho:“Humilíssimafrutaqueapenasopovopobrecolheecome,gutiassumeproporçõessurpreendentes…creioquenuncamaisosoitisprovaramvinho.”

Hoje, as altas e belas árvores dos oitis são muito empregadas naarborizaçãodecidades.

•COCO

No iníciodo séculoXVI, nãohavia coqueiraisnaspraiasdoNordeste, e apaisagemera,portanto,imensamentediferentedaqueconhecemosagora.Ococo, tãonosso,éuma frutaestrangeira–umadasprimeirasplantasaseremtrazidasedisseminadasporaqui.Ecertamenteumadasmaisbem-sucedidasentreasmuitasviagensdeespécimesvegetaisna“globalização”botânica promovida pelas navegações portuguesas. Como a cana-de-açúcar,ococodisseminou-sepelostrópicos,sendosuaorigemcontroversa(talvez seja nativo do sudeste asiático). Transportado por caravelas e

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galeõesportugueses, espalhou-sepelaÁfrica,pelas ilhasatlânticasepeloBrasil,eentranhou-seàsnovasterrascomosefosseumaplantanativa.

GabrielSoaresdeSousacontaqueasmudasdecoqueirochegaramàBahia vindas de Cabo Verde, e que aqui os cocos eram, segundo ele,melhores que na Índia e “maiores e melhores que em outras partes”.Apesar disso e da abundância do fruto, ainda não havia penetrado nacozinha brasileira. Não há referências, nos cronistas do nosso primeiroséculo,aousodococonadoçariaouaoleitedecoconopreparodepratos.

Ainda segundo Soares de Sousa, não se davamuito valor ao coco noBrasilenãohavia“quemlhesoubesseaproveitardosmuitosusosquenaÍndiasefaz”.JánoséculoXVII,freiVicentedoSalvadordizia:“Cultivam-sepalmeiras de cocos grandes, colhem-semuitos, principalmente à vista domar,massóoscomemelhesbebemaáguaquetêmdentro,semosmaisproveitosquetiramnaÍndia.”NãoapenasnaÍndiamasemoutrasregiõesdoOriente,deondeeranativo,oCocosnuciferaeraempregadodemuitasmaneiras,enãosónaculinária.

O médico português radicado em Goa Garcia da Orta dedica umcapítulo de seu livro de botânica ao coco, enumerando seus usos: amadeira era empregada em velas e cordas de navios, as folhas paracobertura de casas, a seiva do tronco para aguardente e para açúcarescuro, a casca do fruto para cordas e para ser adornada por ourives, apolpa para vários tipos de óleos medicinais e para o leite de cocoempregado nos pratos de curry e para cozer arroz, entre outrosmuitosusos.

Arainhad.Catarina,avóded.Sebastião,eraumaa iccionada,epediaque lhe mandassem sempre da Índia. O coco precisaria de mais de umséculo para ser aproveitado em toda sua potencialidade, até surgir nascocadasenospratossalgadoscomleitedecoco.CâmaraCascudoregistraque no inal do século XVI na África Oriental, em Sofala, já se faziaarrozdocecomleitedecoco.MasnoBrasil,amodademorariaachegar.

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OcorsárioinglêsRichardHawkins,queestevenoBrasileempaísesdaAméricaespanhola,noscontaqueseacreditavaqueaáguadecocotinhaumapropriedadesingular,adeconservaramaciezdapele,equeporisso,naEspanhaeemPortugal,asdamaslavavamcostumeiramenteorostoeopescoçocomessaágua.

Quandoosportuguesesconheceramofruto,noOriente,estechamava-setenga, na língua dos malabares, enarle, no idioma dos canariis. Maspreferiramchamá-lode coco.PeloquerelatamalgunsescritoresdoséculoXVI,“coco”eraonomeempregadoparadesignaroqueconhecemoscomobicho-papão. Escreve o historiador português João deBarros: “Os nossoslhe chamaram coco, nome imposto pelasmulheres a qualquer coisa comque querem fazer medo às crianças, o qual nome assim lhe icou, queninguémlhesabeoutro.”

•FRUTASEUROPÉIAS

“Morpião é um lugar dominadopelos portugueses, situadona direçãodorio da Prata e do estreito deMagalhães, a 25 graus da Linha Equinocial.Sob o comando de um tenente-general, vivem aí numerosas pessoas detodas as categorias sociais, inclusive escravos. O rei de Portugal aufereenormes lucrosdos rendimentos de sua exploração”, conta o cosmógrafofrancês André Thevet, nas suasSingularidades da França Antártica ,publicadas em 1556. Morpião, a “rica e bela, esplêndida região” que“produzenormequantidadede frutas”e “grande quantidadede laranjas,limõesecana-de-açúcar”era,naverdade,acapitaniadeSãoVicente,“cujaagriculturaprosperamaisemaisacadadiaquepassa”.

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limão

Eram tão abundantes osmarmelos na capitania de São Vicente, e tãogrande a produção de marmelada, que se exportava para outrascapitanias, conta o senhor de engenho português, radicado na Bahia,Gabriel Soares de Sousa: “Os marmelos são tantos que os fazem deconserva, e tanta marmelada que a levam a vender por as outrascapitanias.” Fernão Cardim é outro a assombrar-se com os abundantesmarmelos de São Vicente: “No campo de Piratininga se dão muitosmarmelos, e há homem que colhe doze mil marmelos, e aqui se fazemmuitas marmeladas e cedo se escusaram as da ilha da Madeira.” Mas,segundoAndré Thevet, a compota típica emais saborosa de São Vicenteera a de ananás. Se São Paulo exportava compota e doce de marmelo,Porto Seguro produzia conserva de melancia e uma “muito substancial”conservadecidra.

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figo

As árvores de espinho e outras frutíferas trazidas da Europa logo seespalharam pelo território brasileiro, sendo plantadas extensivamente. Ofrancês Jean de Léry nos conta a história dessa expansão: “Emboraantigamente não existissem laranjeiras nem limoeiros nessa terra daAmérica, comoouvi dizer, depois queosportugueses asplantarampertoda costa, essas plantas semultiplicaram demodo admirável e produzemlaranjas, a que os selvagens chamammorgonia, do tamanho de doispunhos,elimõesaindamaiores,emgrandeabundância.”

Jáoutrofrancês,NicolasBarré,pilotodeVillegagnon, lastimavaqueoshabitantes locais, os índios do Rio de Janeiro, fossem “extremamentenegligentes no seu cultivo”. O padre Fernão Cardim, ao falar sobre vilascolonizadas, observa: “Há grandes laranjais, cidrais, até se darem pelosmatos, e é tantaaabundânciadestas cousasquedelas senão faz caso…comonão falta açúcar se faz in initas conservas, a saber, cidrada, limões,lorada etc.” Em Porto Seguro, Gabriel Soares de Sousa registra que aágua-de- lor de laranjeira ali produzida era tão boa que era “exportada”para Salvador: “Se dão todas as frutas de espinho, onde a água-de- lor éfiníssima,eselevaàBahia,avenderportal.”

“Aslaranjeirasseplantamempevide,e faz-lhesaterratalcompanhiaqueemtrêsanossefazemárvores mais altas que um homem, e neste terceiro ano dão fruto, o qual é o mais formoso egrandequehánomundo;easlaranjasdocestêmsuavesabor,eéoseudocemuidoce,eacamisabrancacomquesevestemosgomosétambémmuitodoce.Aslaranjeirassefazemmuitograndese formosas, e tomammuita lor de que se faz águamuito ina e demais suave cheiro que a dePortugal;ecomoas laranjeirasdocessãovelhas,dãoas laranjascomumapontadeazedomuitogalante.”

GABRIELSOARESDESOUSA

ErambelíssimososquintaisdeSalvadorem1587,anoemqueSoaresde Sousa escreve: “E tornandodessemosteiro [de SantoAntônio] para apraça pela banda da terra vai a cidademui bem arruada, com casas demoradores com seus quintais, os quais estão povoados de palmeirascarregadasdecocoseoutrastâmaras,edelaranjeiraseoutrasárvoresdeespinho, igueiras, romeiras eparreiras, comoque icamuito fresca.”Aoolhar-seacidadeaolonge,viam-se“palmeirasqueaparecemporcimadostelhados”e“laranjeiras,quetodooanoestãocarregadasdelaranjas,cuja

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vista de longe é mui alegre, especialmente do mar”. Havia aléias delaranjeirasnailhadeJorgedeMagalhães,todalavradadecanaviais,“coisamuito para ver”. As roças nas imediações de Salvador produziamhortaliças e frutas que eram vendidas na praça e abasteciam a cidade.Cumprira-se, en im, o prognóstico de Pero Vaz de Caminha, em seplantandotudodá...

laranja

Havia várias castas de tamareiras, cidreiras, laranjeiras, limeiras,limoeiros, romeiras, parreiras, igueiras em profusão, além de melões(“bonse inos”)emelancias.TantoGabrielSoaresdeSousaquantoFernãoCardim dedicam um capítulo ao assunto. Cardim, ao falar das árvores eervasquevieramdePortugalesedãonoBrasil,declara:“EsteBrasiléjáoutroPortugal.”SoaresdeSousaéumentusiastadaaclimataçãodasfrutaseuropéias. Segundo ele, todas as nascidas aqui fazemmuita vantagemàsdePortugal,“assimnograndorcomonosabor”.

COMPOTADEMARMELO

Escolhamalgunsmarmelosalongados,dotipopêra,bemcompridoselisos,podendo,inclusive,

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ser marmelos silvestres. Descasquem-nos, partam-nos em quartos, dando-lhes a seguir unscortesoitavados.

Tenham um tacho ao fogo com água fervente, e ponham ali os marmelos, para umafervuramuitorápida.Depoistiremosmarmelosdessaágua,ecoloquem-nosemoutravasilhacomáguafria.

Emágua fria icarãodoisdias, trocando-lhes a água três vezes aodia, e cadadiadando-lhesumaligeirafervura.

A última fervura deverá cozer osmarmelos completamente, até que sejam atravessadoscom facilidadecomumal inete.Tiremospedaçosdessaúltima fervura, coloquem-nosnumavasilha funda e cubram-nos com água quente. Depois escorram muito bem essa água ecoloquem sobre a fruta uma caldamorna, emponto de io. Durante quinze dias levem só acaldaaofogo,paraumaligeirafervura,derramando-asempremornasobreosmarmelos.Noderradeirodialevemtudojuntoaofogo,deixemferverbrandamente,tiremotachodofogoedeitemnacompotaumpoucodeágua-de-flor.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Dos igos, haviaosbêberas, osnegrais, osberjaçotes eoutrosmuitos,quedavamduas colheitaspor anoaténoRiode Janeiro.Dasuvas, haviaferrais, boais, bastarda, verdelho, galego e muitas outras, das quais sefaziam vinhos, mas ainda não se conseguia conservá-los, e alguns osferviamantesdeguardá-losparaquenãoperecessem.Faziam-setambémbonsprognósticossobreaproduçãodevinhoemSãoVicente,constatandoque os homens já colhiam três a quatro pipas de vinho cada ano. Eramtemposdeotimismo.

marmelo

A introdução e alta produção de laranjas ligava-se diretamente àsnecessidades básicas das muitas frotas que freqüentavam as rotasbrasileiras. Após meses de navegação, chegavam ao Brasil em busca de

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água fresca e mantimentos, e as laranjas eram uma mercadoriaespecialmentevaliosaparatripulaçõesfamintas,exaustasegrassadaspeloescorbuto. Entre os víveres cobiçados pelos navios e presenteados peloshabitantes da costa, fossem colonos ou índios, estavam as muitovalorizadasdúziasde laranjas.Comoconta JeandeLéry:estandonomar,naalturadocabodeSãoVicente,“encontramosumnavioirlandês,aoqualosnossosmarinheiros,apretextodefaltadevíveres,tomaramseisousetepipasdevinhodeEspanha, igos, laranjaseoutrascoisasqueconstituíama sua carga”.Olivier vanNoord, depassagempeloBrasil, logo identi icouque não era bem recebido pelos portugueses pela parca quantidade delaranjas enviadas a seunavio: “Nodia dez, depois demeio-dia, voltounamesmacanoaoditoportuguês,quesótrouxeumascinqüentaousessentalaranjas, demonstração evidente das intenções do Governador paraconosco.”O inglêsRichardHawkins tevemaissorte:conseguiuemSantostrezentas laranjas e limões, que foram um alívio para sua tripulaçãoenfraquecidapeloescorbuto.

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LegumeseCereais

•MANDIOCA

Amandioca (Manhiot esculenta) é uma espécie de personagem épica daalimentação brasileira. O ingrediente básico, onipresente, resistente,potente e versátil, de onde se extrai amatéria-prima para uma série decomidas e bebidas. Nativa do sudoeste da Amazônia, a mandioca foidomesticadaporíndiostupihácercade5.000anos,navastaáreadoAltorioMadeira,deondeseespalhoupeloBrasiladentro,atingindooParaguai,aBolívia,oPerueaGuiana.Aindahojegomas,polvilhos,beijus, tapiocas,tacacás, bebidas fermentadas, farinhas e medicamentos produzidos naregião amazônica são um testemunho de sua brasileiríssima origem. Amandioca desde então ganhou omundo e é atualmente uma das plantasalimentares mais importantes, sustentando cerca de 500 milhões depessoasnaÁfrica,ÁsiaeAméricaLatina.

É no século XVI, com os Descobrimentos, que a mandioca –especialmentenaformadefarinhasedebeiju–começaaseespalharporoutros continentes. Por sua durabilidade e capacidade nutricional, afarinhademandioca, então conhecida como farinha-de-pau, passoua ser

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mantimento fundamental no abastecimento das frotas noNovoMundo, etambémnas expedições que exploravam o continente por caminhosterrestres.Navegadores e viajantes identi icaramobeiju – e o caçavedaAmérica espanhola – com o pão branco europeu, e assim o acepipe dosíndios tornou-se “o pão da conquista”. Colombo, em 1492, na ilha deHispaniola, foiumdosprimeirosadescreveranova iguaria– “umpão, aque chamam caçave” –, e também a abastecer sua frota com farinha demandiocaeo“pão”local.

O cultivo da mandioca foi logo iniciado no litoral africano, a im degarantiroabastecimentodasnausnasrotasmarítimas,earaizfoitãobemaceitanocontinentequeem1575jáeraoprincipalalimentodafeitoriadeAngola–amandioca,apartirdaí,foigradualmenteabsorvidapelaculturalocalaté instalar-sede initivamentenaalimentaçãoafricana.Nocomérciode escravos, a farinha demandioca brasileira não apenas alimentava astripulações durante as viagens, mas, fazendo as vezes de moeda, eratrocadaporescravosnolitoralafricano.

Não eram só os portugueses, espanhóis e africanos que sebene iciavam dos múltiplos usos da mandioca. Também franceses eingleses carregavam seus navios de beijus e farinha de mandioca comoprincipal alimentode subsistência.O inglêsRichardHawkins,quepassoupeloBrasilem1593,contacomosuafrotasealimentouduranteaviagemmarítima para o estreito de Magalhães depois de ter se abastecido nascostasbrasileiras:opetiscopreferidodoshomenserabeijufritonabanha

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deporcoesalpicadocomcanela.Nossapoderosaplanta tambémteveoutrosusos,menosmaterialistas.

Osjesuítas,empenhadosemseuprojetodeconverterosíndiosbrasileiros,souberam ver nas origens míticas da mandioca um dos sinais de que anovaterraestavarealmentedestinadaasercatólica.ManueldaNóbregaeJosé de Anchieta acreditavam que a mandioca era uma planta africanaintroduzida no Brasil por são Tomé: “É tradição antiga que veio o bem-aventurado apóstolo são Tomé a esta Bahia e lhes deu a mandioca e abanana”, registraNóbrega.Aconcepçãocatólicadasorigensda mandiocairmou-se de tal maneira que os eminentes naturalistas alemães Spix eMartius, em pleno século XIX, por não terem encontrado amandioca emestado silvestre, chegaram a admitir sua origem africana, com base nalenda,divulgadaporNóbregaeAnchieta,doZumé(mito indígenaqueosjesuítasassociaramaoapóstolosãoTomé).

Há várias espécies demandioca, e todas contêm veneno. Geralmente,chama-sedeaipimoumacaxeiraos tiposmansos(compoucaquantidadedeácidocianídrico),quesepodemcomercozidos,edemandiocaaquelescomelevadosteoresdoveneno,dosquaisseproduzemamaiorpartedasfarinhasedasbebidas.Os índiosdesenvolveramumae icaz técnicaparatransformarumaplantavenenosanumalimentodefácildigestão,delongadurabilidade e fácil armazenamento: o ácido cianídrico é eliminado pelaevaporação provocada pelos sucessivos cozimentos e secagens por quepassam as raízes ao serem transformadas em farinhas. Como explicavaAnchieta: “São venenosas e nocivas por natureza, a não ser que pelaindústriahumanasepreparemparacomer.”

Colonos e viajantes registraram detalhadamente a distinção entre osdoistiposdaraizeassinalaramsuatoxidade–oqueeraumcasodevidaou morte para os recém-chegados. No entanto, são raros os relatos demortes causadas pelo veneno da mandioca. Um dos únicos casos foiregistrado pelo inglês Anthony Knivet. Em 1591, numa expedição pelosertãodeSãoVicente,seuscompanheirosacharamgrandequantidadedaraizemumaaldeiaabandonada:“Naquelanoitenossoshomenscomeramtantamandiocaque,nomomentoemquedeveríamosestarprontosparaoataque, eles estavam prostrados, vomitando tanto que não conseguiamsequerficardepé,etrezedelesmorreram.”

O processo de extração do veneno é meticulosamente descrito porquasetodososcronistas.“Énecessáriodeitá-lasnaáguaatéapodrecerem;apodrecidas,desfazem-seemfarinha,quesecome,depoisde torradaem

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vasosdebarrobastantegrandes. Isto substituientrenóso trigo”, explicaAnchieta. Pero deMagalhães de Gândavo relata com extrema precisão oprocesso,descrevendoasetapasatéhojepraticadasnasmilharesdecasasde farinhaexistentesno interiordoBrasil: “E logoqueasarrancam, põe-nasacurtiremágua trêsouquatrodias,edepoisdecurtidas,pisam-nasmuitobem.Feitoisto,metemaquelamassaemalgumasmangascompridase estreitas que fazem de umas vergas delgadas, tecidas à maneira decesto, e ali a espremem daquele sumo, de maneira que não ique delenenhumacoisaporesgotar;porqueétãopeçonhentoeemtantoextremovenenoso, que se uma pessoa, ou qualquer outro animal, o beber, logonaquele instante morrerá. E depois de a terem curada dessa maneira,põem um alguidar sobre o fogo, em que a lançam, a qual uma índia icamexendo até que o fogo acabe por secar sua umidade e ique enxuta edispostaparasepodercomer,oquelevarámaisoumenosmeiahora.”

As roças de mandioca eram plantadas pelas mulheres, que eramtambém as responsáveis pela confecção das farinhas e bebidas. Foramelasasprimeirascozinheiras,comonosrelataopadreNóbrega: “Quandocheguei a esta capitania achei umas índias, parte forras e livres, parteescravas, solteiras e algumas casadas, as quais serviam a casa e traziamlenha e água e faziam mantimentos para os meninos.” Na cozinha doscolonos portugueses e dos jesuítas, essas índias provavelmentecozinhavampratosindígenasàbasedemandioca.

Os índios produziam três tipos de farinha: a de guerra, a fresca e apuba (também conhecida como carimã), que até hoje estão presentes namesabrasileira. Comoexplica o francês Jeande Léry: “Fazem farinhadeduas espécies: umamuito cozida e dura, a que os selvagens chamamuhiantan, usadasnas expedições guerreiras por se conservarmelhor; outramenos cozida emais tenra, a que chamamuhipon,muitomais agradáveldo que a primeira porque dá à boca a sensação domiolo de pão brancoainda quente. Ambas, depois de cozidas, mudam de sabor, tornando-semaisagradáveisedelicadas.”Porémoquemaisimpressionouofrancêsfoia maneira como a comiam: “Os tupinambás, tanto os homens como asmulheres, acostumadosdesdea infânciaa comê-la secaem lugardopão,tomam-nacomosquatrodedosnavasilhadebarroouemqualqueroutrorecipienteeaatiram,mesmode longe, com taldestrezanabocaquenãoperdem um só farelo. E se nós, franceses, os quiséssemos imitar, nãoestando com eles acostumados, sujaríamos todo o rosto, bochechas ebarbas. Por isso só a comíamos com colher.” André Thevet também

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observa a técnica empregada por muitas de nossas bisavós: “É muitoestranho o modo pelo qual os selvagens comem a farinha, pois jamaislevam a mão à boca, e sim arremessam, com os dedos, punhados defarinha de uma distância de um pé ou mais, no que sãoextraordinariamente hábeis. Por isso, riem-se dos cristãos pelo fato decomeremdemododiferente.”

“Esta farinha, além do ótimo sabor que apresenta quando é nova, constitui também excelentealimento.Enote-sequeelaé encontradanoPeru,noCanadá,naFlórida, e em todaa terra irmesituada entre o oceano e omar deMagalhães, ou seja, na América, na Terra dos Canibais e atémesmonas imediaçõesdoestreitodeMagalhães, sendo seuusobastantedifundido, conquantodeumextremoaooutromedeieumadistânciasuperioraduasmilléguasdeterra.”

ANDRÉTHEVET

A farinha de guerra, seca e dura, foi companheira inseparáveldaqueles que se aventuraram pelos sertões, a quem alimentou emperíodos de fome. Em muitos relatos, lemos como colonos e viajantespassaram dias e dias comendo apenas farinha. Era também, como nosconta o inglês Anthony Knivet, a comida servida nas prisões do Rio deJaneiro: “Fui levado à presença do governador e ele, olhando-me muitozangado,mandou-mepara a prisão ondedurante quinze dias fui tratadocomoumcão:eudormianochão,enãotinhaoquecomerexceto farinhademandiocaeágua.”

Na alimentação cotidiana, essa dura farinha apresentava o seu ladomais brando e suave ao sermisturada com caldos quentes depeixe, aveou carne, e temperada com pimenta, resultando num muito apreciadoprato semelhante ao nosso bem conhecido pirão, mas que na épocachamava-semingau.OfrancêsJeandeLéryeraumadmiradordomingauindígena: “Todavia essas farinhas prestam-se para papas a que osselvagens dão o nome de mingau e quando dissolvidas em caldo gordotornam-segranuladascomooarrozesãodeótimopaladar.”OsenhordeengenhoGabriel Soares de Sousa também era um apreciador: “Molhadanocaldodacarneoudopeixeficabrandaetãosaborosacomocuscuz.”

Outro prato indígena a ser entusiasticamente adotado por colonos eviajantes,comojáobservamos,foiobeiju,feitoapartirdafarinhafresca,etidoporquemdeleprovoucomoumaiguaria.Suaidenti icaçãocomopãodetrigoeuropeutalvezsetenhadadoporqueeracomidodamesmaforma

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que se comia o pão. A receita indígena logo foi assimilada, adaptada eadotadapeloscolonos.ComoexplicaGabrielSoaresdeSousa:“Estesbeijussãomui saborosos, sadios e de boadigestão, que é omantimento que seusa entre gente de primor, o que foi inventado pelas mulheresportuguesas, que o gentio nãousavadeles.” Era comidade índio,mas aoser reinventado pelas mulheres dos colonos tornou-se ino, iguaria decasassenhoriais,merendade“gentedeprimor”.

Havia, portanto, vários tipos de beiju. Os consumidos nas longasviagens marítimas, tipicamente indígenas, erammais grossos, feitos comfarinha seca, e podiam resistir até um ano, substituindo os igualmenteduros biscoitos europeus usados para esse im. Gândavo descreveu doistipos de beiju fabricados pelos colonos: “Dessa mesma mandioca fazemoutra maneira de mantimentos que se chamam beijus, os quais são defeiçãodeobréias,porémmaisgrossosealvos,ealgunsdelesestendidosàfeiçãode ilhós.Destesusammuitoosmoradoresdaterra(principalmenteosdaBahiadeTodososSantos)porquesãomais saborososedemelhordigestãoqueafarinha.”Acomparaçãodobeijucomasobréiaseos ilhósébastantecomum.Asobréiassãoumamassa inaredonda,umaespéciedehóstia,eos ilhóssãobiscoitosfritos,aindacomunsemMinasGerais,feitosdefarinhaeovos,geralmentepassadosemmisturadeaçúcarecanelaoumolhados em calda aromatizada de mel. As novas receitas de beijuinventadas pelas portuguesas em terras brasileiras provavelmenteincluíam açúcar e mel, transformando o “pão” indígena em deliciosamerenda. Havia também outras adaptações do preparado indígena:Francisco Soares faz referência a um pão feito de farinha de mandiocafrescamisturadaaoarroz.

Umdosúnicosanãoidenti icarobeijucomopãoeuropeueaveri icarquefarinhademandiocanãoseprestaparaapadariafoi,logicamente,umfrancês, Jean de Léry: “Embora essas farinhas, principalmente quandofrescas,constituamumbomalimento,saborosoefacilmentedigerível,nãoseprestamemabsoluto ao fabricodopão, comopude veri icar. Amassaincha comoado trigo levedado e, comoesta, é branca emacia; ao assar,porém, a crosta superior queima e a parte interna se resseca,permanecendo farinhosa. Creio, pois, que quem a irmou que os índiosdentreosgraus22e23alémdalinhaequinocial,equecertamentesãoosnossos tupinambás, viviamdepão feitodepau raladoobservoumal e seequivocou.” Já naquela época um bom francês não podia se confundirsobre a qualidade de um bompão de trigo... e não levava beiju por pão.

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MasLéryclassi icouobeijucomo“umexcelentemanjar”.Entretanto,“pauralado” era mesmo o modo como se costumava designar a farinha demandioca.

“BRANDÔNIO: Os mantimentos, de que se sustentam os moradores do Brasil, brancos, índios eescravosdeGuiné,sãodiversos,unssumamentebons,eoutrosnãotanto;dosquaisosprincipaisemelhores são três, e destes ocupa o primeiro lugar amandioca, que é a raiz de um pau, que seplanta de estaca, o qual, em tempo de um ano, está em perfeição de se poder comer; e, por estemantimentosefazerderaiz-de-pau,lhechamamemPortugalfarinha-de-pau.”ALVIANO: Assim é: quando querem vituperar o Brasil, a principal coisa que lhe opõem demal édizeremquenelesecomefarinha-de-pau.BRANDÔNIO: Pois essa farinha é um excelente mantimento, e tal que se lhe pode atribuirmeritamenteosegundolugardepoisdotrigo,comexcederatodososdemaismantimentos,dequeseaproveitaomundo.

AMBRÓSIOFERNANDESBRANDÃO

Alguns autores distinguem o beiju da tapioca, o que continuaacontecendo em certas regiões do Brasil. A diferença está no ponto decozimento:enquantoatapiocaéúmidae lexível,obeijuémaisseco,comoumbiscoito.GabrielSoaresdeSousa,escrevendosobreascoisasdaBahia,éumdosqueobservamessadistinção. “Fazemmaisdessamesmamassatapiocas,asquaissãogrossascomo ilhósdepolmeemoles,efazem-senomesmo alguidar como os beijus, mas não são de boa digestão, nem tãosadias; e querem-se comidas quentes; com leite têmmuita graça; e comaçúcar clari icado também”, explica ele, indicando as adaptações pelasquais passou o acepipe nas cozinhas das casas portuguesas. Luís daCâmaraCascudo,emseuclássicoHistóriadaalimentaçãonoBrasil ,ensinaqueatapiocaé feitacomagoma(farinha inaobtidaapartirdocaldodamandioca ralada) fresca, seca ao sol, e o beiju é feito com a goma seca,assadano forno.A gomautilizadapara a confecçãoda tapioca edobeijutinhaaindaoutras inalidades, comonosexplicaGabrielSoaresdeSousa:“Podesermisturadaàs farinhasouparaengomaroucoisassemelhantes,porqueémuitomelhordoqueagomaquesefazemPortugal.”

As farinhasbrasileiras logose juntaramaoaçúcar–aoqualos índiostinhamaversão–,dandoorigemanovaspreparações,commatéria-primalocal e concepção européia. Gilberto Freyre supõe que a primeirasobremesa feita no Brasil foi a mistura da farinha de mandioca com omeladodeengenho,apreciadaporDuarteCoelhoeseucunhadoJerônimode Albuquerque, que estabeleceram um engenho de açúcar em

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Pernambuco,em1535.Umdosregistrosmaisantigosdaprimeiradoçariabrasileira édeGândavo, quando se refere aosbolosde aipim, feitos comovos e açúcar, talvez o primeiro bolo brasileiro, louvado por várioscronistas.Masosbolostipicamentebrasileiroseramfeitostambémcomaprópriafarinhademandioca,adelicadaelouvadacarimã:“Destacarimãepó dela bem peneirado fazem os portugueses muito bom pão, e bolosamassados com leite e gemas de ovos, e desta mesma massa fazem milinvenções de beilhós”, conta Gabriel Soares de Sousa, indicando nestetrechoquecomacarimãascozinheirasportuguesasfaziamváriosdeseusdoces natais, como as frutas envoltas emmassa doce, e como os beilhós,que sãobolinhos fritos epassados emcaldade açúcar.TambémopadreFranciscoSoaresexplicaquecomacarimãfaziam-seamendoadoseoutras“coisasdoces”.Háregistrosdeumdelicadomingaudecarimãcomaçúcar.EopadreFernãoCardimcontaquecomelasefaziam“muitasmaneirasdebolos, coscorões (massas fritas), tartes, empenadilhas (pastéis doces),queijadinhasdeaçúcaretc.,emisturadacomfarinhademilho,oudearroz,sefazpãocomfermentoelevedoqueparecetrigo.”

Mesmo tendo acesso à farinha de trigo de Portugal, as senhorasbaianas, se essa farinha não estivesse muito fresca, preferiam a carimã,alvíssima, “com a qual fazem tudo com muito primo”, explica GabrielSoaresdeSousa.Essa inaedelicada farinhaéobtidade formadiferentedasdemaisfarinhasdemandioca:araiznãoéralada,masdescascada(ounão), posta demolho na água, e deixada no sol durante quatro ou cincodias,paraquefermenteeamoleça,entãoéprensadaenovamentesecaaosolpormaisquatrodias.

Se a mandioca brava se prestava a tantas preparações, também amansa,conhecidacomoaipimoumacaxeira,encantoucolonoseviajantes.Uma das primeiras menções ocorre numa carta do jesuíta Luís da Grã,escrita na Bahia, em 1553: “O aipim come-se cru, como muitas outrasraízes de que usamos, e desta farinha se faz pão de muitas maneiras.”Gândavo aponta seus usos alimentares: “Também há outra casta demandioca que tem diferente propriedade desta, a que por outro nomechamamaipim,daqualemalgumascapitaniassefazemunsbolosquenosabor excedem o pão fresco deste reino. O sumo dessa raiz não épeçonhento, como o que sai da outra, nemfaz mal ainda que se beba.Tambémsecomeestaraizassadacomobatataouinhame,porquedetodamaneiraseachanelamuitogosto.”

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BEILHÓSDECARIMÃ

Cozinhem um pouco de carimã, bem peneirada, com leite, açúcar e uma pitada de sal, eponham-naaesfriar.

Batamdoisovosseparadamente,misturando-osentãoaocremejáfrio.Levemaofogoumafrigideiracommanteigae,quandoestaestiverbemquente,deitem-lhe

amassaàscolheradas.Se os bocados se espalharem muito pela frigideira, enrolem-nos depois na farinha de

carimã.Numapanelaquejáestánofogo,comcaldabemgrossa,vão-sedeitandoosbolinhos,quedepoissãopostosaescorrernumapeneira.

Servem-sepolvilhadoscomaçúcarecanela.

AdaptadodoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Amaioriadosquedescreveuosabordaraizcomparou-oaogostodastãoestimadascastanhaseuropéias.ComonoscontaJeandeLéry:“Quantoà raizdoaipim,não só seprestapara ser transformadaem farinha,masaindaparaserassadainteiranabrasaounofogo; icaassimmaistenraetorna-se farinácea como a castanha assada no borralho e cujo gosto émuito semelhante. Omesmo não se pode fazer com a raiz da mandioca,que só serve para farinha, sendo venenosa quando preparada de outromodo.”GabrielSoaresdeSousaéoutroa louvarosabordoaipim: “Estasraízes são alvíssimas; quando estão cruas sabem às castanhas cruas daEspanha; assadas são muito doces e têm o mesmo sabor das castanhasassadas, e, davantagem, as quais se comem também cozidas, e sãomuitosaborosas;edeumamaneiraedeoutrasãoventosascomoascastanhas.”SoaresdeSousatambémrelataqueasraízesdeaipimerammaismaciasquandocomidaslogoapósacolheita;seismesesdepoisjáestavamduraseentão se prestavam “para beijus e para farinha fresca, que émais docequeadamandioca”.

“Eporquetudoémandioca,concluamosqueomantimentodelaéomelhorquesesabe,tiradoodobom trigo, porque pão de trigo do mar, de milho, de centeio, de cevada, não presta a par damandioca,arroz,inhameecocos.”

GABRIELSOARESDESOUSA

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O emprego das folhas damandioca, ainda hoje ingrediente básico dacozinhadonortedoBrasil,éregistradoporAmbrósioFernandesBrandão,noseuDiálogodasgrandezasdoBrasil ,comoumalimentoparamomentosdeescassez: “... as folhasdemandiocacozidas,aquechamammaniçobas,as quais são também excelentes para tempo de fome, e ainda a usammuitaspessoaspormantimento”.

A mandioca era também o ingrediente de uma bebida indígenafermentada,preparadapelasíndias,oconhecidocauim,queportugueseseviajanteschamavamgenericamentede“vinho”.Feitaapartirdamandiocamastigadapor índias,abebidacausoureaçõesopostasnoseuropeusquedelaprovaram:enquantoalgunsgostaram,outrosaacharamrepugnante.Havia também controvérsia sobre seu preparo: uns diziam que eramastigada por índias jovens ou virgens, outros, como o corsário inglêsRichardHawkins,relatamqueeramasíndiasidosasasresponsáveispelamastigação.

JeandeLéryfazumadasmelhoresdescriçõesdapreparação:“Depoisde as cortarem em rodelas inas, como fazemos com os rabanetes, asmulheresasfervememgrandesvasilhasdebarrocheiasdeágua,atéqueamoleçam; tiram-nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito issoacocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-asdepois em outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura,mexendo-ascomumpauatéquetudoestejabemcozido.Feito isso, tiramdo fogo a pasta e a põem a fermentar em vasos de barro de capacidadeigual a uma meia pipa de vinho de Borgonha. Quando tudo fermenta eespuma,cobremosvasose icaabebidaprontaparaouso.”OsfrancesesdaFrançaAntártica,enojadospelamastigação,resolveramtentarprepará-lodeumanovamaneira,comonoscontaLéry:“Noquenosdizrespeito,aochegarmos a esse país procuramos evitar a mastigação no preparo docauimefazê-lodemodomaislimpo.Porissopilamosasraízesdeaipimemandiocacommilho,mas,paradizeraverdade,aexperiêncianãoprovoubem. Pouco a pouco nos habituamos a beber o cauim da outra espécie,embora não o izéssemos comumente.” Preparavam tambémumabebidafeitacomcana-de-açúcarfermentadaemágua.

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Para os índios a bebida estava associada a longos dias e noites dedanças, cantose festas.ComoexplicaGabrielSoaresdeSousa: “Obebem,com grandes cantares, e cantam toda uma noite.” Entre essas festasestavamaslongascauinagensqueacompanhavamoritualdecanibalismo.“Quando querem divertir-se e principalmente quando matam comsolenidade um prisioneiro de guerra para o comer, é seu costume (aocontrário do que fazemos com o vinho que desejamos fresco e límpido)beberocauimamornadoeaprimeiracoisaquefazemasmulhereséumpequeno fogo em torno dos potes de barro para aquecer a bebida. Comefeito, eu os vi não só beberem três dias e três noites consecutivas,masainda,depoisdesaciadosebêbadosamaisnãopoder,vomitaremquantotinham bebido e recomeçarem mais bem-dispostos do que antes”,descreveJeandeLéry.

Como vários outros alimentos, a mandicoca também tinha empregomedicinal. Curtidas, pisadas e espremidas, eram usadas para curar“postemas” (abcessos): “feito da massa um emplastro, posto sobre apostema a mole ica de maneira que a faz arrebentar por si, se a nãoqueremfurar.”Afarinhadecarimãrecomendava-separa“dordecólicasemaleitas”, e tambémpara “meninosque têm lombrigas,aosquais sedáabeberdesfeitanaágua, emata-lhesas lombrigas todas”– remédiomuitousado tanto por índios como por colonos. Também sobre as feridasaplicava-se uma regeneradora papa de carimã, e para diversos tipos dedoenças usavam-se uns caldinhos de carimã, mingaus tipicamente

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indígenas, que eram incrementados commel ou açúcar pelos colonos. Amandioca deixada dias de molho e depois curada ao fumo servia comoantídotoparapicadasdecobras,eocauimindígenaeraconhecidoporser“medicinalparaofígado”.

De raízes “brancas, tamanhas como cenouras”, como as descreveu ohistoriador português Damião de Góis, “da feição de inhames”, como apintou Gabriel Soares de Sousa, a mandioca, aquele “excelentemantimento” a quem Ambrósio Fernandes Brandão, no Diálogo dasgrandezas do Brasil , dá o segundo lugar depois do trigo por “exceder atodos os demais mantimentos”, tinha ainda uma virtude até entãodesconhecidadoseuropeus.Aocontráriodoscereaisedostubérculosqueconheciam,plantadosporsemeadura,amandiocacresciapormeiodeumatécnica inteiramente nova: era plantada através de pedaços en iados emcovas, por mudas ou estacas. E, ao contrário dos vegetais de produçãoanual, tinhaaespantosacaracterísticadepoder icarestocadana terraesercolhidaanosdepois.

A mandioca foi descrita com minúcia por todos os cronistas,reconhecida comooprincipal alimentoda terraeodemais “substância”.“RainhadoBrasil”,nade iniçãodeCâmaraCascudo,aversátileresistenteraiz estava, como o Brasil quinhentista, igualmente ligado a Deus e aodiabo. Se por um lado era o alimento cotidiano, por outro, podia matar.ComobeminterrogaAndréThevet:“Presentesnamesmaplantaovenenoeoalimento...Deixoaosfilósofosaexplicação.”

•JETICA/BATATA-DOCE

OstubérculoseasraízesquesecomiamnoBrasilnoséculoXVIeramasbatatas-doces,oscarás,osinhames,asmandiocas,osmangaráseostaiás.Alguns eram nativos, outros foram aqui introduzidos. A variedade detubérculoseraízesencontradapeloseuropeusnostrópicoscausougrandeconfusãonanomenclatura.Oscronistasgeralmentechamamabatata-docedebatata, que aliás é o vocábulo genéricousadoparadesignarqualquertipodetubérculo.Quandofalameminhames,podemestarfalandonãodeinhames,quesãoafricanos,massimdecarás,mangarásoutaiás.Mesmoamandiocaporvezesénomeadadeinhame.

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Essaimprecisãoegeneralizaçãonasdescriçõesdostubérculoseraízesdeve-se ao fato de que os cronistas, por desconhecerem as espéciesnativas brasileiras, associavam-nas a tubérculos conhecidos, como osinhamesafricanos,ouasdesignavamgenericamentecomo“batatas”.

JánacartadePeroVazdeCaminha,observamosessefenômeno:“Nãocomemsenãodesseinhame,queaquihámuito.”OinhameaqueserefereCaminha é a mandioca, que foi confundida com os grandesinhames dacosta africana da Guiné, ou da ilha de São Tomé, já conhecidos pelosportugueses. Também na relação do Piloto Anônimo, outro cronista dafrotacabralina,diz-se:“Algunsdosnossos[trouxeramdeumaaldeia]umaraizchamadainhame,queéopãodequealiusam.”

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Apalavra“batata”temsuaorigemnostainosdoCaribe,queausavamparadesignarabatata-doce,queosbotânicoschamamdeIpomeabatatas ,uma representante da família das Convolvuláceas com mais de 1.500espécies espalhadas pelo mundo. Não há dúvida de que a batata-docechegouàEuropaanteriormenteàbatataandina(Solanumtuberosum);elafoi inclusive umadas provas do descobrimento daAmérica queColombolevouparaarainhaIsabel.

Planta de fácil propagação e de grande produção, a batata-docedispersou-se rapidamente pelo mundo, inclusive por ação dosportugueses,elogoadaptou-seaoutrasregiões.Abatata-doceeracomumnas roças dos índios, e os narradores fazem freqüentes citações à jetica,seunometupi:“Elevadopelafomemeti-mepelomatoaverseencontravabatatas ou matava alguma caça. No seguinte dia voltamos com uma boaprovisãoderaízesdebatata”,contaoinglêsAnthonyKnivet,aonarrarsuachegada ao Brasil. O francês Jean de Léry as descreve com entusiasmo:“Existemoutrasraízesbulbosaschamadasjetica,ecrescemtãofacilmenteno Brasil como os nabos na Sabóia e no Limousin; e não é raro seencontraremdotamanhodedoispunhos juntosecompéemeiomaisoumenosdecomprimento.”

Osíndioschamavamdejeticuçu(Ipomoeahederacea)àbatatadepurgaoumechoacão. SegundoGabriel Soares de Sousa, desse tubérculo ralado

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se faziam “conservas de açúcar”, que provocavam intensas descargasintestinais:“Tomadapelamanhãumacolherdestaconservafaz-secomelamais obra, que com açúcar rosado de Alexandria.” (O açúcar rosado deAlexandria erauma mezinha purgativa feita com rosas de Alexandria eaçúcar.) A batata-doce purgativa brasileira foi aos poucos sendoreconhecida também no Reino, como testemunha o personagemBrandônio, doDiálogo das grandezas do Brasil : “Se acham nesta terraexcelentespurgasdequeomaisdagenteusacomoéabatata,játambémmuitoestimadaemPortugal.”

Umadasmelhores descrições da jetica está no livro de Jean de Léry:“Como são plantas que não dão sementes, as mulheres selvagens, noempenhodepropagá-las,cortam-nasempequenospedaçoscomofazemoscomacenourapara fazersalada,eossemeiam,obtendoassimno imdealgum tempo (coisa maravilhosa na agricultura) tantas raízes quantospedaços se plantarem. Constitui a jetica o melhor maná dessa terra doBrasil.Nãosevêoutracoisaportodaparteecreio,porissomesmo,quenamaiorpartenascesemintervençãodohomem.”

O francês André Thevet registra um interessante mito relativo àbatata-doce: “Quando lhes falamos a respeito de Deus, como algumasvezes o iz, eles nos escutam atentos e maravilhados, perguntandoeventualmentesenãoseriaesteDeusomesmoprofetaquelhesensinouaplantar os tubérculos que chamam de jetica. Aprenderam com seus paisque, antes do conhecimento desta e de outras raízes, alimentavam-sesomente de ervas e de raízes, como os animais. Contam que uma vezapareceuentreelesumgrandecaraíba,ouseja,umprofeta,quesedirigiua uma jovem e lhe con iou uma raiz volumosa denominada jetica,semelhante ao nabo limusino, ensinando-lhe a cortá-la em fatias,plantando-asdepoisna terra.Assimfezamoça,eesseconhecimento temsido desde então transmitido de pai para ilho até os dias de hoje. E foitamanho o sucesso desse cultivo, que os indígenas atualmente possuemgrande abundância dessa raiz, quase não comendo outra coisa, pois talalimentoéparaelestãocomumquantooéparanósopão.”

Osíndiosjáhaviamdesenvolvidoasvariedadesbásicasqueaindahojeencontramos nos mercados: a batata-doce amarela, a roxa e a branca.Como bem observou o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa, “háumasbatatasgrandesebrancasecompridascomoasdasIlhas;há outraspequenas e redondas como túberasda terra, emui saborosas; háoutrasbatatasque são roxasao longoda cascaebrancaspordentro;háoutras

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que são todas encarnadas emui gostosas; há outras que são de cor azulaniladamuito ina, asquais tingemasmãos;háoutras verdoengasmuitodocesesaborosas;eháoutracasta,decoralmecegada,muisaborosas;eoutras todasamarelas,de cormuito tostada, asquais são todasúmidaseventosas, de que se não faz muita conta entre gente de primor, senãoentre lavradores”. Os franceses também apreciavam as diferentesvariedades, comoconta JeandeLéry: “Forada terraparecemàprimeiravista todas damesma espécie; existe porémgrandediferença entre elas,pois, cozidas, arroxeiam umas, amarelecem outras como os marmelos eoutras ainda se tornam esbranquiçadas; donde ameu ver existirem trêsespécies.Comoquerqueseja,possoassegurarque, assadasnoborralho,não são menos saborosas do que as nossas melhores peras,principalmenteasqueamarelecem.”

Osportugueses, naturalmente, passarama fazerdocedabatata-doce:faziam-se “bocados”, “doces maravilhosos e batatas em panelas, comomarmelada”, enumera Ambrósio Fernandes Brandão, acrescentando que“tambémsecomemassadasecozidas”.

•INHAMEECARÁ

Como sentencia o bem-humorado Luís da Câmara Cascudo, em suaHistória da alimentação no Brasil, “nenhum brasileiro, em tempo algum,confundiu inhame com cará e sabe, pelo aspecto e sabor, diferenciá-losindiscutivelmente. São ambos Dioscoreá-ceas, como eu e Shakespearepertencemos ao mesmo gênero humano.” Até meados do século XX istopoderia ser verdade, mas hoje em dia é bastante discutível. A palavra“inhame” vem denyame, da língua worlof, falada na costa do Senegal,signi icandooverbocomer.Ovocábulocaráédeorigemtupi:osindígenasdacostabrasileirachamavamdecaráos tubérculos Dioscoreatri ida,quehoje em dia encontramos nas feiras livres emercados por todo o Brasil,muitasvezescomonomedeinhame.

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inhame

Ainda no início do século XVI, da África vieram espécies de inhamesintroduzidasaquiapartirdasilhasdeSãoTomé,CaboVerdeedaCostadaGuiné.GabrielSoaresdeSouza,em1587,anotaaexcelenteadaptaçãoaobiomadamataatlânticabaianadosinhamesafricanos,cujosabornãoeraapreciado pelos indígenas, que continuavam preferindo os carás nativos,comocon irmariaséculosdepoisCâmaraCascudo.ContaSoaresdeSousa:“Da ilhadeCaboVerdeedadeSãoTomé foramàBahia inhamesqueseplantaram na terra logo, onde se deram de maneira que pasmam osnegrosdeGuiné, que sãoosqueusammaisdele; e colhem inhamesquenãopodeumnegro fazermaisque tomarumàscostas;ogentioda terranão usa deles porque os seus, a que chamam carás, sãomais saborosos,[dequemdiremosemseulugar].”

cará

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Tambémosportugueses eramapreciadores dos carás, de que faziamdocese tambémcomiamempratossalgados: “Estescarásseplantamemmarçoecolhem-seemagosto,osquaissecomemcozidoseassados,comoos inhames, mas têm melhor sabor... Da massa destes carás fazem osportuguesesmuitosmanjarescomaçúcar,ecozidoscomcarnetêmmuitagraça”,relataSoaresdeSousa.

•TAIOBA

Mesmo com todas as couves européias que tinham em suas hortas, oscolonosaprenderamcomosíndiosacomertaioba,epassaramaempregá-la empratosqueoriginalmente levavamespinafres. FernãoCardim é umdos primeiros a descrever a hortaliça: “ tajaobas, que são como couves, efazempurgar”.Jánadécadade1550,JeandeLéryprovousopadetaiobana ilha de Villegagnon, no Rio de Janeiro, então um reduto francês.Segundoele, tratava-sede “umaespéciede couve,que tem folhas largas,semelhantes às do nenúfar das nossas lagoas”. Gabriel Soares de Sousanos conta que para substituir as castanhas, inexistentes no Brasil, ascozinheiraslançavammãodostubérculosdetaioba.

“Dão-se nesta terra outras raízes tamanhas comonozes e avelãs, quesechamammangarás;equandosecolhemarrancam-nosdebaixodaterraemtouçascomojunçasetira-sedecadapéduzentosetrezentosjuntos.Asfolhas destesmangarás nascem emmuitas, como os espinafres, e são damesma cor e feição, mas muito maiores, e assim moles como as dosespinafres, as quais se chamam taiobas, também servem cozidas com opeixe.Asraízesdestesmangarássecomemcozidascomáguaesal,edãoacasca como tremoços, emolhados em azeite e vinagre sãomui gostosos;comaçúcar fazemasmulheresdelesmilmanjares”, contaGabriel Soares

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deSouza.Osmangarássãoasraízesdasbrasileiríssimastaiobas;comelesse faziam doces, e suas cascas serviam como tira-gosto, aplicações jáesquecidas em nossa culinária. As folhas das taiobas, comparadas àscouves de Portugal, eram ainda mais saborosas quando comidas comazeite.

Gabriel SoaresdeSousaéumdospoucosa fazer referênciaaos taiásque muito apreciava: “Dão-se nesta terra outras raízes, que se chamamtaiás,queseplantamcomoosmangarás,esãodefeiçãodemaçarocas,asquais se comem cozidas na água,mas sempre icam tesas. As folhas sãograndes, de feição e cor das dos plátanos que se acham nos jardins daEspanha,aosquaischamamtaiobuçu;comem-seestas folhascozidascompeixeemlugardosespinafres,ecomfavasverdesemlugardasalfaces,etêmmuiavantajadosabor;osíndiosascomemcozidasnaáguaesal,ecommuitasomadepimenta.”

Taiobas, taiás e mangarás (Xanthosoma sagittifolium ) pertencem àgrande família das Aráceas, com mais de 3.500 espécies nos paísestropicais.

•HORTALIÇASECEREAIS

Uma cozinheira portuguesa que chegasse ao Brasil na década de 1580,nãopoderiareclamar,poisencontrariaporaquimuitosdostemperosseusconhecidos,alémdeváriashortaliças.Oscolonoscultivavamassuasroçasde legumes,eemSalvador jáhaviauma feiranapraça,ondesevendiamprodutosagrícolasvindosdossítiosaoredor.

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gengibre

Gabriel Soares de Sousa, senhor de engenho na Bahia, nos conta deumain inidadedehortaliças:alfaces,berinjelas,cenouras,pepinos,nabos,rábanos, coentros, endros, funcho, salsa, hortelã, cebolinha, alho,tanchagem, poejos, agriões, manjericão, alfavaca, beldros, chicóreas,acelgas,espinafres,vários tiposdecouveemostarda. “VaimuitasementedePortugal,dequeosmoradoresaproveitam”,explicaele.FernãoCardimcompletaaabundantelistacomgergelim,ervilhas,almeirões,beldroegaseserralha.Comosintetizao jesuítaFranciscoSoares,oBrasil tinha “muitascouvesetodahortaliça,comorábãos,alface,cheiros,couvesedediversascores, não como as nossas, mas com azeite são melhores que as dePortugal”.

Mostarda e nabos eram a infeliz alimentação dos mais famintosextratos sociais europeus na época, e José de Anchieta, nos váriosepisódios de fome em suas viagens pelos sertões brasileiros, escreveamargas linhas sobre as “mínguas” que passava junto a seuscompanheiros, alimentando-se exclusivamente de “folhas de mostardascozidas, legumesda terraeoutrosmanjaresque lánãopodeis imaginar”.O inglês AnthonyKnivet, trabalhando emum engenho noRio de Janeiro,plantava “couves e nabos” a mando do seu senhor, provavelmente paraalimentaroutrosescravoscomoele.

Também podia ser encontrada no Brasil uma especiaria asiáticaaltamente valorizada: o gengibre (Zingiber of icinale), originário da Ásia

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tropicaletrazidopelasnausportuguesasnasrotasqueligavamoOriente,asilhasatlânticas,aÁfricaeoBrasil.ContaopadreFranciscoSoaresqueNicolaudeVillegagnon teria sido atraídopeloBrasil, nadécadade1550,por causa do “muito pau e pimenta, gengibre e algodão”. O gengibre foitrazido de São Tomé para a Bahia. Gabriel Soares de Sousa conta que,poucotempodepoisdeintroduzidonoBrasil,“deunaterradetalmaneiraquedaíaquatroanossecolherammaisdequatromilarrobas”.

Foi tão grande a produção, fazendo concorrência comoque vinhadaÍndia,epodendoameaçaromonopólioportuguêsdasespeciariasasiáticas,que a coroa proibiu que o semeassem, colhessem e vendessem, contaSoares de Sousa.No entanto, era impossível controlar a disseminação dogengibre, que se propagou com muita facilidade pelo território. Não sepodia vendê-lo ou exportá-lo, mas não havia como proibir que fossecomido:costumava-sefazerótimasconservasdegengibre.Asrestriçõesaogengibre só foram revogadas em 1671, depois da restauração da Coroaportuguesa, na tentativa de tornar o Brasil um novo pólo produtor deespeciarias.OcronistaAntonioGalvão,estandonasMolucaseescrevendoà rainha d. Catarina, explica que o gengibre “nos dias de peixe nos dásabor àsmesas, e excita o apetite com saladas feitas dele em conserva”.Pelo uso que dele faziam os portugueses tanto em Portugal quanto noOriente, pode-se supor que o gengibre fosse cotidianamente empregadonas cozinhas brasileiras no século XVI, talvez temperando os peixesnativosemdiasdeabstençãodecarne.

PeçaderesistênciadaalimentaçãonoOriente, tambémoarroz(Oryzasativa),plantaorigináriadoSudesteasiático,foilogointroduzidonoBrasil,onde se desenvolveu extraordinariamente. O alemãoUlrico Schmidel, em1554,contaterenchidoumdeseusbarcos,emSantaCatarina,comarroze mandioca, o que mostra o quanto o cereal asiático já era comum noBrasil. Tambémos jesuítas registram ter encontrado “arrozmuito bom eem muita quantidade”. Havia mesmo um dízimo sobre o arroz, que oscolonos pagavam ao rei, um rendimento anual que os jesuítas, em umacarta,dizemesperarreceberdacoroa.

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arroz

SegundoGabrielSoaresdeSousa,asprimeirassementestinhamvindode Cabo Verde, e o arroz, em 1587, se dava “na Bahia melhor que emoutra nenhuma parte”, ou seja, melhor do que em todo o Oriente. Noentanto, como registra Ambrósio Fernandes Brandão, no Diálogo dasgrandezas do Brasil , os brasileiros ainda preferiam amandioca ao arroz,por acharem a farinha “de mais substância”. Os colonos tinham o arroz“porfruta”,ouseja,comiamdeledevezemquando,enãocotidianamentecomo faziam com os derivados da mandioca. O hábito asiático de comerarroztodososdiassóiriaseinstalarporaquimaistarde.

nhambi,ouinhabu,ouaindajambig

Havia ainda uma folha nativa do Brasil, muito estimada, comida cruapelos índios e “mestiços”, que “temperam as panelas dos seus manjarescomela”.Eratambémempregadapeloscolonos,“porquedepoisdecozidastêmumrequeimosaboroso”.Tratava-sedeumtemperolocal,tipicamente

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indígena, e que os colonos tinham aprendido a usar, como um substitutoouumsimilardocoentro.Chamadapeloscronistasdenhambi, inhabuoujambig, tinha também emprego medicinal, sendo indicado como ótimoremédioparaosdoentesde ígadoe“depedra”.Nhambiénomegenéricopara duas plantas, o agrião-do-pará e o coentro-de-caboclo, e ainda hojeempregado,especialmenteemmoquecasbaianasenotacacáenopatoaotucupi, famosos na culinária amazônica. Como observou Luís da CâmaraCascudoemsuaHistóriadaalimentaçãonoBrasil,“quinhentosanosdeusosãocredenciaisinigualáveis”.

•FAVASEFEIJÕES

O personagem Brandônio, noDiálogo das grandezas do Brasil , é umentusiastadasfavasbrasileiras:“Querodaroprimeirolugardoslegumesdesta terraàs favas,porquesãopor extremoboas,enagrandezaegostomuito melhores que as de Portugal.” Também Nicolas Barré, piloto deVillegagnon,tãopoucoafeitoàscoisasbrasileiras,deixou-seseduzirpelas“favasgrandesepequenas,ambasmuitoboasparacomer”.GabrielSoaresdeSousa,gourmet luso-baiano,comia-as“comascerimôniasqueseusamem Portugal”, ou seja, com tudo a que tinha direito, provavelmente comcarnes,lingüiçasemiúdosdeporcooudeaves.

Vale apenaobservarque, antesda importaçãodas favas e feijõesdocontinente americano, empregava-se na Europa um tipo de feijãomenor,que foi logo substituído pelas apetitosas e substanciais espécies doNovo

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Mundo, como o feijão branco, que passou a ingrediente básico de pratostípicos europeus como ocassoulet francês, aolla podrida espanhola e ofeijão com “as cerimônias” de que fala Gabriel Soares de Sousa. Receitaseuropéiascomamatéria-primaamericana,queacabariamdesembocando,séculosdepois, nanossa típica feijoada.Os feijõesdoNovoMundo, assimcomoomilhoeaabóbora,provocaramumaimportantetransformaçãonoshábitosalimentareseagrícolaseuropeus.

As leguminosas, como as favas e os feijões, são das poucas plantas afornecerem proteína, sendo portanto altamente nutritivas. Segundotestemunham vários cronistas, os índios cultivavam, além demandioca emilho, também favas, que comiam cozidas em água e sal, conforme noscontaAndréThevet.Todosafirmamquehaviamuitasfavasedediferentescastas, e esta abundância e variedade tornou-as um dos elementosprincipaisdaalimentaçãodaépocanasterrasbrasileiras.

Os franceses foram grandes conhecedores. Jean de Léry admira-secom as favas gigantes, de uma polegada de espessura, que os índioschamavam comandaçu. André Thevet descreve umas inteiramentebrancasebastanteachatadas,“mais largasecompridasqueasnossas”,etambém umas pequenas e brancas, parecidas, segundo ele, com as daTurquia e Itália. Em Cabo Frio, na capitania do Rio de Janeiro, Thevetobservou umas favas grossas e avermelhadas, com aparência quasearti icial,abundantesnasplaníciesarenosasdolitoral,“aqualdenominamos espanhóis fava marinha”. Não eram comestíveis, mas guardavampropriedadesmedicinaisnadaortodoxas.Desprezadaspelos índios,eram

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cobiçadas pelos portugueses que, segundo conta Thevet, as importavamem quantidade para a Europa: “As damas e senhoritas espanholascostumamtrazê-lasaopescoço,emengastesdeouroouprata,dizendo-asportadorasdepropriedadescontracólicas,doresdecabeçaetc.”

Gabriel Soares de Sousa descreve vários tipos de favas, que segundoele, grandedefensordas coisasbrasileiras, “fazemvantagemnosaboràsde Portugal”: as que os índios chamavam “somenda”, “alvas, delgadas eamassadas como igos passados”; outras pequeninas, metade brancas,metade pretas, que podiam ser comidas verdes ou secas, e eram maisfáceis de cozinhar que as portuguesas; e ainda outras, brancas e todaspintadas de pontinhos pretos. Soares de Sousa descreve também osfeijões: “uns são brancos, outros pretos, outros vermelhos e outrospintadosdebrancoepreto”,quesecomiamverdesousecos.Cadapédava“uma in inidade de feijões” na fértil Bahia em que morava o ufanistasenhordeengenho.

•ABÓBORA

N oLivro de cozinha da infanta d. Maria , compilado no século XVI emPortugal, há uma receita bastante complexa de doce de abóbora, cujopreparoexigiamaisdequinzediasentrefervuraserepousosemáguafriaequente.Curiosamente,odocenãolevavaaçúcar.

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Mas, no restante da Europa, as conservas de abóbora com açúcar jáeram conhecidas e prescritas pelos “ ísicos” (médicos). Nostradamus, emseu livro“cientí ico”sobreaspropriedades medicinaisdosdoces,oTraitédes fardements et con itures , publicado em 1552, explicava: “Esse doce ébompara comer, embora diga respeito àmedicina refrigerante. Come-sepela sua suavidade e para mitigar o calor exuberante do coração e dofígado.”

No Brasil, o açúcar, produzido em abundância, veio a se juntar àsabóboras nativas,muito estimadas pelos índios, compondo a entãomuitoapreciadaemedicinal“marmelada(geléia)deabóbora”queeramandada,segundonos contaopadre JosédeAnchieta, paraos jesuítasdoentesdeLisboa. Além das geléias, as conservas de abóboras também erammuitocomuns. Aparentemente, a abóbora era empregada pelos colonos empreparações com açúcar, de acordo com a tradição culinária emedicinaleuropéia, mas ainda não tinha entrado nos pratos salgados ou secombinadoàscarnes,comoviriaaacontecerposteriormente.

MARMELADADEABÓBORA

Paradoisquilosdeabóbora,usemdoisquilosemeiodeaçúcar.Cozinhemasabóboras inteiras, sónaágua,abafando-asbem.Aseguirdescasquem-nase

cortem-nasempedaços,passando-asentãoporumapeneirafina.

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Façamuma calda em ponto de espelho, adicionem-lhe um pouco de águade- lor, deitemdentroasabóboraspassadaspelapeneiraemisturem tudomuitobem, forado fogo.Levemnovamenteotachoaofogo,emexamamarmeladaatéquesedesapeguedofundo.

Baseadonareceitade“Marmeladaded.Joana”,do

Livrodecozinhadainfantad.Maria

Asabóboraseramprepa-radasàmaneirados índios,queascoziameassavaminteiras,edepoisascortavamcomomelões,tiravamassementese assim as comiam. Preparadas dessa forma, inteiras, conta-nos GabrielSoares de Sousa, são mais saborosas do que cozidas em pedaços. Outrareceita indígena apreciada era a abóbora defumada: “curam-se no fumoparaduraremtodooano”,explicaele.

Conheciam-semuitascastas.Asmaioreseramusadaspelosíndiosparaa confecção de cabaças e gamelas, e não como alimento. Ainda segundoSoares de Sousa, havia dez ou doze tipos de abóboras comestíveis. OfrancêsJeandeLéryfazreferênciaacertasabóborasdenominadaspelosíndiosdemorugans,muito“docesaopaladar”.Provavelmentesereferiaàsabóboras-morangas(Curcubitamaxima).

Existem várias espécies de abóboras que pertencem ao gêneroCurcubita, entre elas a abóbora “comum” ( Curcubita moschata ) e aabobrinha (Curcubita pepo ). Originárias da América, eram alimento desubsistênciadaantigacivilizaçãoolmeca,eforamdepoisincorporadasporastecas, incas e maias, sendo utilizadas há pelo menos dez mil anos. NoBrasil, as abóboras já eram parte da dieta indígena antes dodescobrimento. Além das espécies nativas que aqui encontraram, osportugueses também se bene iciaram das abóboras que trouxeram, naprimeirametadedoséculoXVI,daGuiné,asentãochamadas“abóborasdeQuaresma”,quesedisseminarampeloterritório.

•AMENDOIM

OsenhordeengenhoGabriel SoaresdeSousadedicaumcapítulo inteiroaoamendoim(Arachishypogaea)emseu livroTratadodescritivodoBrasil ,justi icando:“dosmendoinstemosquedarcontaparticular,porqueécoisa

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quesenãosabehaversenãonoBrasil.”Defato,oamendoiméumaplantaorigináriadaAméricadoSul,mastambémeraencontrada,noséculoXVI,nos territórios daAméricaEspanhola, ou seja, noPeru, noParaguai e naBolívia. A cultura do amendoim se disseminou por vários continentes,adaptando-semesmoao sul daEuropa.NaÁfrica, elepassou a serpartefundamentalnaalimentaçãodediversospovos.

O nome tupimandowi, oumandobi, quer dizer “enterrado no chão”.Issoporque,comoexplicavaSoaresdeSousa,“crescemdebaixodaterra,eosamendoinsnascemnaspontasdasraízes”.OfrancêsJeandeLéry,quea irma ter comido muito amendoim no Rio de Janeiro, faz curiosascomparações:“Crescemdentrodaterracomoastrufas,ligando-seentresipormeiode ilamentosdelgados,avagemtemcaroçodotamanhodeumaavelã, cujo sabor imita.” Na verdade, não nascem nas raízes, mas nasextremidadesdeginóforos,muitopróximosàsraízes.

O senhordeengenhoportuguêsdescreveosmodosde seprepararaiguaria tipicamente brasileira. Eram comidos crus, quando apresentavam“sabordegrão-de-bico”;assadosecozidoscomcasca,“comoascastanhase assim são muito saborosos”; e ainda torrados fora da casca, “osmelhores”.OpersonagemBrandônio,nos DiálogosdasgrandezasdoBrasil ,fazsuaapologia:“Sãomaravilhososnasubstânciaenogosto.”MasSoaresdeSousaadverte:porserfruta“quenteemdemasia,causadordecabeçaaquemcomemuitos”.

Uma curiosidade. Ainda segundo o autor doTratado descritivo , quem

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cuidava das roças de amendoim eram as índias e as “mestiças”, que nãodeixavam que homem algum tocasse na plantação, temendo que, se talacontecesse, as plantas não vingassem. As mesmas que semeavam osamendoins deviam colhê-los, quando faziam “grande festa”. E, para quedurassemmais,costumavam“curá-losnofumo”,ouseja,defumá-los.

Enquantoasíndiastinhamtaiscuidadosnaplantação,nacolheitaenaconservação, as portuguesas introduziram o amendoim do mundo dadoçaria. “Desta fruta fazem asmulheres portuguesas todas as castas dedocesquefazemdasamêndoasecortadososfazemcobertosdeaçúcardemistura com os confeitos. E também os curam em peças delgadas ecompridasdequefazempinhoadas,quemosnãoconhece,portalacomeelhadão”,escreveSoaresdeSousa.

•ABATI/MILHO

Abati signi ica “cabelos brancos” em tupi, indicando os ilamentos dasespigas do milho. Para os cronistas portugueses, o milho americanoapresentava características de outras espigas que já conheciam, como omilho-painço (milhete), um cereal antigo já cultivado pelos egípcios, omilho-zaburro (sorgo), omilho-miúdo (outro tipodepainço)eomilhodeBissau (um painço africano), plantas do norte da África cultivadas napenínsula desde o tempo da ocupação árabe ou introduzidas peloscruzados.Ovocábulo“milho”jáseencontraemantigasobrasportuguesascomo as crônicas de Fernão Lopes, do século XIV, mas refere-se àsespécies já conhecidas e não ao milho da América, oZea mays, espéciedomesticadanocentro-suldoMéxico.

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Cristóvão Colombo conheceu o milho americano em sua primeiraviagem, durante a exploração das Bahamas. Bartolomeu de las Casasrelata que o almirante avistou um extensomilharal que identi icou comoumaplantaçãode“panicum”(painço).Osespanhóis introduziramomilhoamericanonaEuropadesdeostemposdaprimeiraviagem.Colombolevouomilho para a Espanha, onde provavelmente foi cultivado pela primeiravez emSevilha. É sabidoqueosportugueses semearammilho trazidodeSevilhanoscamposdeCoimbra,combastantesucesso.Em1530,omilhojáhaviaseespalhadoporPortugal,FrançaeItália.Teveumaaceitaçãomaisrápida que a batata na alimentação européia,mas serviu primeiramentecomo alimento para os animais domésticos, e somente a partir do séculoXVIIpassaaproverasubsistênciadospobres.

Presume-se que em 1550 o milho já estava no continente africano,inicialmente na Costa do Ouro, de onde se espalhou rapidamente, e em1591 já era cultivado no Congo. Tanto portugueses quanto espanhóislevaram o milho ao Oriente, ainda no século XVI, atingindo a Índia e aChina. Pelo inal do século XVII já havia se dispersado por todos oscontinentesdoplaneta, inclusiveemterras longínquascomooHimalaiaeasdistantesilhasdoTimor.

OmilhoeraamandiocadospovosdaAméricaespanhola.Seentrenós,comoobservaGrabrielSoaresdeSousa, “tudoémandioca”,paraastecas,maiase incasreinavaomilho,principal fontedesubsistência.Ovocábulo“maize”, da língua taino, que passou a designar o milho americano emváriaslínguas,éumtestemunhodesuaforçanaquelasculturas.

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AprimeiramençãoaomilhonoBrasilvemnoRelatodoPilotoAnônimo–umdosdocumentossobreaviagemdeCabralem1500–,ondeécitadováriasvezes.Mas,aoescreveremsobreomilho,nossoscronistassãomuitomenos entusiastas que ao tratarem da mandioca. A nomenclatura paradesignar o milho nativo é ampla: emprega-se tanto o termo tupi abatiquanto as designações milho-zaburro, milho-maçaroca, maís e milho-da-guiné.

Segundo Câmara Cascudo, os índios brasileiros apreciavam o milhocomo guloseima, assado na brasa, ou como uma bebida fermentada. É oque também diz Gabriel Soares de Sousa em 1587: “Este milho come ogentioassadoporfruto,efazemseusvinhoscomelecozido,comoqualseembebedam.”Comer“porfruto”,comoexplicaCâmaraCascudo,épetiscar,beliscar. Mas há registros de indicam um aproveitamentomais amplo. Opadre jesuítaAntônioPiresconta,numacartaescritaemPernambucoem1552,quefoipresenteadopelos índiosdeumatribocommilhosu icienteparamantê-lo por um ano. O inglês AnthonyKnivet, na década de 1590,embrenhado pelos sertões da capitania de São Vicente, encontraplantaçõesdemilhoemaldeiasabandonadas(afomedoshomenseratãogrande que interromperam a viagem por doismeses esperando omilhoamadurecer). São muitas também as referências à farinha de milho,produzidapelosíndioseutilizadacomoafarinhademandioca.

Asplantaçõesdemilhoeramextremamenteprodutivas:“Estemilhoseplanta por entre asmandiocas e as canas novas de açúcar, e colhe-se anovidadepor trêsmeses,umaemagostoeoutraem janeiro”,dizGabrielSoares de Souza. O potente alimento era empregado para sustetar as“gentes de serviço” e os animais. Ambrósio Fernandes Brandão, em seuapologéticoDiálogodasgrandezasdoBrasil ,doiníciodoséculoXVII,a irmaque é o terceiro mantimento mais importante do Brasil (depois damandioca e do arroz): “Este terceiro é o milho-maçaroca, que em nossoPortugal, chamamzaburroenas ÍndiasOcidentaismaís,eentreos índiosnaturais da terra, abati: é mantimento mui proveitoso para sustentaçãodosescravosdeGuinéeíndios,porquesecomeassadoecozido etambémem bolos, os quais são muito gostosos, enquanto estão quentes, que sefazem dele, depois de feito em farinha; e para sustentação de cavalos émantimentodegrandeimportância,eparacriaçãodeaves.”

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As casas senhoriais e os colonos também utilizavam o milhocotidianamenteemsuascozinhas.GabrielSoaresdeSouzafazreferênciaaumaespéciedemilho“queésempremole”,empregadonareceitadeumprato que ainda hoje é muito comum nas terras mineiras e paulistas, acanjiquinha: “Quebradoepisadonopilãoébompara se cozer comcaldode carne, ou pescado, e de galinha, o qual émais saboroso que o arroz.”Deste mesmomilho faziam “os portugueses muito bom pão e bolos comovos e açúcar”. Havia também, segundo o testemunho demuitos, pão demilho, que, segundo Gândavo, era “muito alvo” e bom. Com os índios oscolonosaprenderamacuraraofumoumaespéciedemilho,demodoquese conservava mais de um ano. Também aprenderam um remédio paracurar “boubas” (sí ilis): “Costuma este gentio dar suadouros com estemilhocozidoaosdoentesdeboubas,osquaistomamcomobafodele,comoqueseachambem;dosquaissuadourosseachamsãosalgunshomensbrancosemestiçosquesevalemdeles.”

SegundoAndré Thevet, o principal emprego domilho entre os índioserao fabricodebebida, o cauimdemilho, fartamentebebidodurante asfestas.Opreparo eramuito semelhante aodo cauimdemandioca, comafermentaçãoiniciadapelamastigaçãodasmulheres.Thevet,quedescreveo milho como uma espécie de “sorgo cujos grãos são do tamanho deervilhas”, explica o preparo da bebida: “Depois de ferver o milho emenormes vasos de argila engenhosamente fabricados e que têm acapacidade de um moio, algumas donzelas mastigam os grãos cozidos,cuspindo-osemseguidaemoutravasilhaapenasparaeste im.Nocasodeser chamada alguma mulher casada para colaborar nesta tarefa, énecessário que ela se abstenha das relações com seu marido durantealguns dias; caso contrário, a bebida jamais alcançaria a necessáriaperfeição. Feito isto, fervem novamente o líquido até que ele esteja

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purgado, como se faz entre nós ao vinho do tonel. Só tomam a bebidaalgunsdiasdepoisdoseupreparo.”Aomilho se juntavamtambémoutrasraízeseoresultado inalera“umlicordecolocaçãosemelhanteàdovinhoclarete … espesso como mosto de vinho”. A bebida era igualmenteapreciadaporviajantesecolonos.

•PALMITO

OitalianoAntônioPigafetta–pilotodeFernãodeMagalhãesnaviagemdecircunavegação–nãogostou.O“pãobrancoeredondo”feitocomamedulade uma certa árvore, e que, segundo ele, guardava alguma semelhançacom“leitecoalhado”,nãoagradou,aliás,aninguémdatripulação.

PeroVazdeCaminha,emnossaprimeiracarta,nãoserefereaogosto,dizendoapenasquecomeramdaqueles“muibons”palmitosquecolheram.Tripulações em apertos pelo litoral brasileiro, e também viajantes emissionários embrenhados pelos sertões, tinham no palmito um meiogarantidodematarafome,semnuncaregistrarcomentáriosentusiásticospelomiolodapalmeira,geralmentecomidocozidoemáguaesal–quandohaviasal.Eraumacomidatalvezassociadaà fomeeàausênciadeoutrosmantimentos, mais saborosos. Mas, ao mesmo tempo, era um alimentomuito prático. Como sintetiza Hans Staden: “Abatemos uma palmeira e

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comemosopalmito.”O aventureiro inglês Anthony Knivet, em longas andanças por

caminhosantesnão trilhadosporeuropeusoucolonos,alimentava-se “demelsilvestre,palmitoseumaespéciedecobra”.Tambémopadre JosédeAnchieta, percorrendo os sertões em busca das almas dos índios,alimentava-se dos palmitos do mato “que Nosso Senhor provia”, quandofaltava-lhe “já o mantimento”, ou seja, na ausência de algo melhor paracomer. O palmito parecia ser a última opção. Outro jesuíta, o irmão PeroCorreia, em uma missão entre os índios do interior de São Vicente, em1554, dizia que quando “a fome apertava conosco comíamos algunspalmitos cozidos em água e algumasfrutas bem desengraçadas, demaneira que quando chegamos ao povoado levávamos as cores muidemudadas”.

Masnãoerasócozidonaáguaesalqueaspalmeiraseramingeridas.Havia ummodo aindamais insípido, registrado pelo senhor de engenhoGabriel Soares de Sousa: sob a forma de uma farinha seca e resistente,empregadaparaviagens.“Essaspalmeirastêmotroncofofo,cheiodeummioloalvoesoltocomoocuscuz,emole;equemandapelosertãotiraessemioloecoze-oemumalguidaroutacho,sobreofogo,ondese lhegastaaumidade, e é mantimento muito sadio, substancial e proveitoso aos queandampelosertão,aquemchamamfarinha-de-pau.”

“O palmito é uma espécie de tamareira, acredito que seja uma espécie dela, mas selvagem.Encontram-se em todas as partes da África e da América, e em alguns lugares da Europa, e emcadalugarédiferente.NaÁfricaenasÍndiasOrientaissãopequenos,deformaquesepodecortá-loscomumafaca,equantomenores,melhoressão.MasnoBrasilsãotãoimensos,quedi icilmenteumhomempodecortá-locomummachado,equantomaiores,melhoressão.”

RICHARDHAWKINS

Português radicado na Bahia, e grande conhecedor dos quintais,lavouras e roçasbrasileiras,Gabriel Soaresde Sousa, apesarde tacharopalmitode “mantimentodogentio”, ou seja, comidade índio, era tambémum conhecedor das várias castas: apreciava os formosos palmitos doanajá-mirim,admirava-secomaspindobas,do“olho”dasquaissetiravam“palmitos façanhosos de cinco a seis palmos de comprido, e tão grossosquanto a perna de um homem”, e considerava “muito gostosos” ospequenospalmitosdapatioba.

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•CANA-DE-AÇÚCAR

Em contraste com a América espanhola e a fantástica descoberta eexploração de Potosí, a montanha de prata, e com as quantidadessuperlativasdeourodoPeruedoMéxico,aAméricaportuguesa–oBrasil– tinha apenas uma extensa e desconhecida terra povoada por índioscanibais, abundante em pau-brasil. E foi essa escassez de riquezas emmetais que indiretamente contribuiu para a implantação da cana-de-açúcarnacolônia.

Amadeiravermelhaeospapagaios–asprimeirasriquezasdestaterra–foramexploradosnãosóporportugueses,masporfranceseseingleses,quenegociavamdiretamentecomosíndios.EntreasmedidastomadasporMartim Afonso de Sousa para consolidar a presença portuguesa emterritório brasileiro estava a que viria criar, a partir de um produtoestrangeiro,nativodaÁsia,amaior fontederiquezadopaís:oplantiodecana-de-açúcar. A introdução do cultivo desta planta em larga escala noBrasilprocuravareproduzirumapráticadesucessodacoroaportuguesanaMadeira,nosAçoresenasCanárias.Doencontroentreaplantaasiática,ainiciativaportuguesaeasvastasextensõesbrasileiras,começouanasceroBrasildosengenhos,dosescravos,doaçúcar,daopulênciaedosdocesmuitodoces.

O primeiro registro de açúcar no Brasil data de 1526, quando aalfândega de Lisboa assinala a entrada e a taxação da mercadoria.Tambémna primeira feitoria instalada no Brasil, em Pernambuco,dedicadaàextraçãodepau-brasil,jáhaviacana-de-açúcar.Masémesmoapartir de Martim Afonso, em 1532, que se inicia a rápida expansão dasplantações e dos engenhos, ao longo da costa e das capitanias – de talmodoque,empoucotempo,emterritóriobrasileiroamoedacorrenteeranão amoeda portuguesa,mas o açúcar. Compravam-semercadorias nãocom“reaisdeoito”mascomo“dinheiro”branco,docee ino,moldadoemcaixas. Em um documento da época, vemos como um pregador espanholchamado frei Francisco decide sair da capitania de Porto Seguro “por alilhe pagarem seu trabalho em açúcar e em outra parte lhe pagarem emdinheiro”.ObservavaopadreManueldaNóbrega,naBahia:“Amoedaquenestacapitaniacorrenãoésenãoaçúcar.”

CASQUINHAS

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Tomem cidras verdes, partam-nas em quatro ou oito partes e tirem-lhe todo o miolo, queiquem bem ininhas, colocando-as em seguida numa vasilha com água fria. A seguir dêemumapequenafervuranascidras,comumpoucodesalnaágua,voltando-asemseguidaparaáguafria.Deixemascascasde infusãodurantetrêsdias, trocando-lhesaáguaduasvezesaodia.

No im desse tempo levem as cidras a cozer, até que possam ser perfuradas facilmentecomumal inete.Façamumacaldaecoloquemdentroasfatiasdecidra,demaneiraqueestasfiquembemcobertas.

Durante novedias permanecemas fatias nessa calda, e cada dia levamuma fervura.Noúltimo,acrescentemalgumasgotasdeágua-de- loràcalda, levandoacompotamaisumavezaofogo,paraumaúltimafervura.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Caro e raro, o açúcar era até então um artigo de botica, medicinal.Como resume o frade francês André Thevet: “Maravilhosamentereconfortante e de soberanas propriedadesmedicinais, quase não sendoempregadopara outras inalidades.”A umpreço alto, compravam-senasantigas farmácias alféloas, conservas e outros doces prescritos para osmaisvariadosmales.

A experiência agrícola portuguesa nas ilhas atlânticas e no Brasilpassou a proporcionar à Europa quantidades de açúcar nunca dantesvistas,penetrandonascozinhasepassandodeartigodeboticaaapreciada

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especiaria. Como observa André Thevet: “Hoje em dia, porém, avoluptuosidade aumentou bastante, especialmente em nossa Europa, demodoquenão se saberia preparar nemmesmouma refeição trivial semque todos os molhos não contenham açúcar, ou às vezes até mesmo ascarnes.” Os dentes negros da rainha Elisabeth I, cujos corsáriosfreqüentavam as costas brasileiras, denunciavam uma dieta com altasdoses de açúcar. No Atlântico, os navios carregados da especiaria, eramalvodeataquesdefranceseseingleses,jáqueamercadoriaalcançavaumaltopreçonaEuropa,apesardesuaextremaerápidadifusão.OcorsárioinglêsRichardHawkinsalimentousuatripulaçãonarotaparaoestreitodeMagalhãescombeijus fritosnabanhadeporcoepolvilhadoscomaçúcar,acepipequefoieleitoopreferidopelosmarinheirosingleses.OsfrancesesdaIlhadeVillegagnon,maravilhadoscomaabundânciadacana-de-açúcar,lastimaramnãoter“nemagentenemcoisasnecessáriasparadelaextrairo açúcar”. “Só a usávamos em infusão para fazer água açucarada ou lhechupávamossimplesmenteocaldo”,contaJeandeLéry.

PASTÉISDETUTANO

Cozinhemumadúziadeovos,demodoque iquembemduros.Levemotutanoaofogo,parauma ligeira fervura. Em seguida cortem tudo bem miudinho, as gemas, os tutanos, emisturem-noscomaçúcar,canelaempóesalagosto.Façamamassadefarinhadetrigo,comum pouco de manteiga, e abram-na bem ina. Depois de feitos os pastéis, fritem-nos namanteiga,envolvendo-osemseguidaemaçúcar.Polvilhemcomaçúcarecanela.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

EmPortugalumaapreciadareceitadefrangocomarrozlevavagrandequantidadedeaçúcar,agalinhamouriscaeragulosamentepolvilhadacomaçúcarecanela,eomesmosefaziaaospastéisdetutanoeaoutrospratosàbasedecarnes.Oaçúcar,comovemos,erausadocomoumaespeciaria,umtempero,enãoapenasnadoçaria.Eomesmodeveteracontecidoaqui,nascozinhasdasfamíliasabastadas.

OBrasilpassouaexportarnãoapenasaçúcar,mastambémconservasde frutas nativas, indicadas para os mais variados males, dando a suacontribuição tropical à medicina quinhentista. Eram enviadas para

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Portugalas famosasconservasdeananás,usadasparapedrasnosrins,eas saborosas geléias de cará e de goiaba, especialmente e icazes nocombateadisenteriasemalessemelhantes.Fabricava-seemPiratininga(aprimitiva São Paulo) um medicinal açúcar rosado, feito das rosas deAlexandria que ali se plantavam, empregado para purgas, ou seja, comolaxante.

As capitanias brasileiras produziram grandes quantidades do “ourobranco”,egeraramumariquezaconsiderável,quesere letianoshábitosda aristocracia açucareira descrita por vários cronistas do século XVI.“Vivem como condes”, resume o espantado padre Fernão Cardim, quenunca tinhavisto tamanhaprodigalidadecomoaqueobservaranamesa,roupas, louças e nos hábitos das casas dos senhores de engenho doNordeste. Os presentes dados aos visitantes também eram pródigos:“quando nos houvéramos de partir, proveram-nos de açúcar e muitaconserva e outras cousas de açúcar”, conta um jesuíta em viagem peloNordeste.

A Coroa isentava por dez anos o pagamento de impostos paraengenhos recém-instalados, oque semdúvida incentivavao investimentonas plantações e nos engenhos. NoDiálogo das grandezas do Brasil , opersonagemBrandônio de ine a importância econômica do açúcar: “Digoque as riquezas do Brasil consistem em seis cousas, com as quais seuspovoadoressefazemricos,quesãoestas:aprimeiraalavouradoaçúcar,asegundaamercancia,aterceiraopauaquechamamdoBrasil,aquartaos algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta eúltima a criação de gados. De todas essas cousas o principal nervo esubstânciadariquezadaterraéalavouradosaçúcares.”

ALFÉLOAS

Façam uma calda com um quilo de açúcar e adicionem-lhe algumas gotas de água-de- lor.Deixem o tacho no fogo, até que a calda atinja o ponto de bala. Para conhecer esse pontotomemumbastãozinhoe introduzam-nonaáguafria,depoisnacalda,enovamentenaáguafria.Seoaçúcarsedesgarrardobastãozinho,mantendosuaformacilíndricaecristalizar-se,opontojáestarábom.Seessaprovasetornardi ícil,ponhamumpoucodecaldanaáguafria,façam com ela uma bolinha e provem-na com os dentes. Se não agarrar, o ponto está bom.Tenhamumapedra-mármoreuntadacomóleo-de- loroudeamêndoas,ederramemacaldarapidamenteali, paranãoaçucarar, e,muitodepressa, dêem-lheumas trêsouquatrovoltascomumaespátulaoucolherdepau.Emseguida,comasduasmãos,estiquemoaçúcaromais

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possível sobre o mármore, fazendo com ele o movimento de abrir e fechar os braços, bemdepressa.Depois de bemesticado, corramamãopelo açúcar, numa só direção, e torçam-noumpoucodando-lheformadeespiral.Éindispensávelfazertudoissoforadecorrentedear,paraqueoaçúcarnãosecristalizeantesdeaoperaçãoterminada.Finalmente,estendamumpano úmido sobre umamesa e deitem sobre ele a trança de açúcar. Assim que endurecer,cortem-naempedacinhos.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

O açúcar introduziu-se nos hábitos brasileiros na sua fusão com osprodutos locais, como as frutas, as abóboras, a batata-doce, a raiz detaioba,oamendoim,acastanhadecaju,ocaráeamandioca,entreoutros.Desta uniãonascemos primeiros frutos de uma cozinha brasileira, comobem observou Gilberto Freyre. Daí surgiram, além das já mencionadasconservas de frutas nativas, as castanhas de caju confeitadas, aspinhoadas e o marzipã de amendoim, os bolos de mandioca, os beijusdoces, os confeitosde carimãede cará, os cajus cozidospolvilhados comaçúcarecanela,eatéaalcorça(umamassadeaçúcarcomquesecobriamdoces) à base de leite de cajueiro. Todos os doces que em Portugal sefaziamcomamêndoas,aqui foramfeitoscomamendoim,castanhadecajuecomalgumasraízescomoasdetaioba,chamadasmangará.Eosbolos,nafaltadefarinhadetrigo,eramfeitoscomfarinhas inasdemandioca,comoacarimã.Essa farinha iníssimaesaborosaeraapreferidadasmulheresportuguesas, que a usavam não só para os bolos como para fazerdeliciososbeilhós (ou ilhós), alémde frutasdoces envoltas emmassadecarimã e também substanciais mingaus polvilhados com açúcar, e icazesnocombatea lombrigas, cólicasemaleitas.DiziaGabrielSoaresdeSousaque, na Bahia, mesmo tendo farinha do reino (de trigo), as portuguesaspreferiamabrasileiríssimacarimã.

VINHODEAÇÚCARQUESEBEBENOBRASIL,QUEÉMUITOSÃOEPARAOFÍGADOÉMARAVILHOSO

Tomemumvasograndee lancem-lheseiscanadasdeáguadafonte,eumpardelasquente,que ique águamorna, e lancem-lhe cinco arráteis de açúcarmuito extremado emexam-nocom uma colher e, depois que icar bem desfeito, cubram-no muito bem e ponham-no empartequeestejaquente,emumvaso,efervamdoisoutrêsdias,edepoisqueestejaumdiasebebe, e émuitobom;e comopassade cincoou seisdias,não sebebe,porque se faz forte e

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embebeda;equandoavasilhaénova,faz-seemdozedias,equandoestáavinhada,faz-seemcincoouseis.

Estavasilhanãoselavanunca,porqueopéqueficadáofermentoparaooutro.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

A doçaria brasileira no século XVI já era, como vemos, ampla ediversi icada.EmSantos, segundoo testemunhodopirata inglêsAnthonyKnivet, faziam-seaté frutascristalizadas,dequese fartoua tripulaçãodeThomas Cavendish quando tomou de assalto a cidade em 1592. Eramprovavelmenteasfamosascasquinhas,conservasfeitascomascascasdosfrutoscítricostradicionalmenteproduzidasnaIlhadaMadeira,famosaporsua doçaria, e extremamente úteis nas longas viagens marítimas comoformadecombateroescorbuto,doençacausadapelacarênciadevitaminaC.Outrotestemunhosobreesses inosdoces,semelhantesaosdaMadeira,feitosnoBrasil, é dopadreFernãoCardim, quenos contaque comeunacasa de um rico homem de Salvador, “várias coisas doces tão bem-feitasquepareciamdaIlhadaMadeira”.

•PIMENTAS

AspimentasdoNovoMundosuplantaramomilenareexclusivoreinadodapimenta-negra indiana, a que chamamos pimenta-do-reino. As nossaspimentas(damesmafamíliadabatata,dotomate,daberinjela,dojilóedofumo) são as únicas que “queimam”. As outras, como a pimenta-negra –um dos impulsores das grandes navegações –, têm sabores muito maisdiscretos esãoapenasardidas,possuemsomenteasmoléculasda famíliadas Piperidinas, enquanto as nossas têm as potentes moléculas daCapsaicina. Hoje as pimentas sul-americanas dominam o comércio dasespeciariaspicantesnomundo:cercadeumquartodapopulaçãomundialconsomeumgrandenúmerodeCapsicumfrescaouprocessada.

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AorigemdogêneroCapsicuméaregiãocompreendidaentreosudestebrasileiro, nas montanhas da mata atlântica, e a parte baixa da Bolívia;registrosarqueológicosmaisantigosdeCapsicumremontama9milanos.

Os índios brasileiros, como os demais povos da América do Sul eCentral, tinham nas pimentas ingrediente fundamental de suas comidas.Quandooseuropeuschegaramnestapartedomundo,osnaturaisdaterrajáconsumiamumagrandevariedadedepimentas.Osíndiosusavammuitopouco sal, não gostavam do sabor; sua comida não era salgada,mas eraapimentada.

Ousoabundanteecotidianodapimentanaculturaindígenabrasileiraé relatado por quase todos os que escreveram sobre o Brasil no séculoXVI. Como nota Anchieta: “Comem-se estas folhas [taiobas] cozidas compeixeemlugardosespinafres,…osíndiosascomemcozidasnaáguaesal,ecommuitasomadepimenta.”EtambémHansStaden:“Quandoosíndioscozinhampeixeoucarne,põemdentrohabitualmentepimentaverde.Logoqueestáumtantocozida,retiram-nadocaldoefazemdelaumapapa inaque se chama mingau.” Gabriel Soares de Sousa relata que tambémcomiamaspimentasinteiras,misturadascomfarinha.

Havia ainda outras maneiras de comer pimenta. Os índios aempregavam na confecção de uma peça sólida, semelhante à jiquitaiaamazônica,queerafeitaapartirdesalepimenta.AndréThevetobserva:“Para a obtenção do sal, fervem a água do mar até que seu volume sereduza à metade, empregando depois um determinado processo parasepará-lo. Utilizam-no ainda misturado a uma certa pimenta moída para

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fazer uma espécie de pão do tamanho de uma cabeça de homem, quemuitosgostamdecomercomcarneoucompeixe,sobretudoasmulheres.Além disto, às vezes misturam a pimenta à farinha, antes de esta serpulverizada,ou seja, logo que acabou de cozinhar.” Gabriel Soares deSousatambémfazreferênciaàpimentapiladacomsalmisturadaàfarinhaqueosíndiosempregavam“quandonãotêmoquecomercomela”.

Foram observadas várias espécies. Hans Staden nos conta: “Há duasqualidades de pimenta naquela terra. Uma é amarela, outra vermelha.Ambas as qualidades crescem porém da mesma maneira. Quando apimentaestáverde, temo tamanhodo frutodaroseirabrava,quecrescenoespinheiro.Opimenteiroéumpequenoarbustodemaisoumenosumabraçadealto,tempequenasfolhase icacheiodepimenta.Apimentatemumgostoardido.Os selvagensa colhemquandoestámadurae secam-naaosol.Háoutraespéciedepimentinhas,queseparecebastantecomesta,esecamdomesmomodo.”

“À sombradestes legumes [amendoins], e na sua vizinhança, podemos ajuntar quantas castas depimenta há na Bahia, segundo nossa notícias; e digamos logo da que chamam cuiém, que sãotamanhascomocerejas,asquaissecomememverdes,e,depoisdemaduras,cozidasinteirascomopescadoecomoslegumes,edeumamaneiraedeoutraqueimammuito,eogentiocome-ainteira,misturadacomafarinha.Costumamosportugueses,imitandoocostumedosíndios,secaremestapimenta,edepoisdeestarbemseca,apisamdemisturacomosal,aoquechamamjuquiraínaqualmolhamopeixeeacarne,eentreosbrancossetraznosaleiro,enãodescontentaaninguém.”

GABRIELSOARESDESOUSA

Quando os portugueses chegaram, os índios haviam desenvolvidomuitas variedades, e não somente duas. “Maravilhosas drogas, como sãopimentas demuitas sortes e castas, grandes e pequenas, e ainda outrasque são doces no sabor”, como diz Ambrósio Fernandes Brandão, noDiálogo das grandezas doBrasil , obra com omais extenso trecho sobre apimenta,equeressaltaseuvalormedicinal.Onomegenéricoemtupiparapimenta era cuiém e a descrição mais completa das variedades vem deGabriel Soaresde Sousa, que faladeumas grandes como cerejas, que secomiamtantoverdesquantomaduras, e eramcozidas inteiras compeixeou com legumes: “de uma maneira e de outra queimam muito”. Essamesmacuiémerasecaepilada juntamentecomsal,demodosemelhanteaoque faziamos índiospara obteremoque chamavam juquiraí,misturade que os portugueses e colonos enchiam seus saleiros. Soares de Souza

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registraaindaacuiemuçu,queseusavadamesmamaneiradaanterioredurava “muitos anos semse secar”.Havia tambéma cuiepiá, “aqual tembico, feição e tamanho dos gravanços”, que se comia verde e crua, equandomaduratorna-severmelhae“queimamuito”;acuiejurimu,comoaspecto de uma abóbora, que antes de amadurecer é azulada, e depois,vermelha.Eaindaacumari,que “ébraviaenascepelosmatos”,amenordetodas,e“queimamaisquetodasasquedissemoseémaisgostosaquetodas”.“Quandoseachadestasnãosecomeoutra”,explicaGabrielSoaresdeSousa,demonstrandoqueapreferênciaindígenapelaspimentasforteslogocaiunogostodoscolonos.Alémdessasvariedadespicantes,AmbrósioFernandes Brandão registra umas pimentinhasmuito apreciadas, “docesnosabor”.

Aspimentastinhamváriosusosalémdoculinário.Eramumconhecidoremédio para verminoses, como nos conta o aventureiro inglês AnthonyKnivet:“Amaioriadenossosíndiosmorreudeumtipodedoençacomumem todos os países quentes: sofrem de suores e a sensação de corpocansado, com vermes no ânus que lhes consomem o estômago, fazendocomquede inhemsemquesaibamoqueestá lhescausandomal.Contraesta moléstia os índios comem rodelas de limão e pimenta verde, e acolocamnoânus,masousodeáguasalgadatambémébom.”

Osíndiosquenãoqueriamescutaraspregaçõescatólicasusavamumavariantedohojeconhecidospraydepimentaparaespantarosjesuítas,aoque parece semmuito resultado: “Nalgumas casas das aldeias, para quenãofôssemoslá,faziamfogo,equeimavamsalepimenta,paraque,comaforçaefedor,nãopassássemos;enóscontudovisitávamosascasascomaCruzlevantada…emmuitasaldeiasnãonosqueriamverefugiamdenósescondendo-secomseus ilhos,pensandoquelogohaviamdemorrer,comograndemedoque tinhamdenós;enoutraspartesqueimavampimentaque dá um cheiromuito forte e fumo que parece que afoga”, contam osmeninosdocolégiojesuítadaBahianumacartaescritaem1552.

Os tupinambás costumavam queimar pimentas também paradesentocar inimigos de suas aldeias: esperavam o vento correto, faziamuma grande fogueira e lançavam dentro muitos pés de pimenta, o queforçavaoinimigoasairdesuascasasoufortificações.

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Anchietarelataqueosfrancesesvinhamregularmentecomercializarapimentanativa,eostruchments (francesesqueaderiramaoshábitosdosnativos e que serviam de intérpretes ou negociadores) plantaram suaspróprias roçasdepimentas: “SendooVillegaignonemFrançae comestanovanão tornoumaisaoBrasil,nem izeramos francesesmaispovoaçãonele,senãoalgunsquese icaramentreosíndios,tomandoseuscostumese amancebados comas índias, e faziam roçarias depimenta e ajuntavamoutras mercadorias da terra para dar aos seus quando viessem. EstesdepoissetomaramtodospoucoepouconasguerrasdeEstáciodeSá.”

ParaopadreFranciscoSoares,overdadeiromotivode instalaçãodosfrancesesemterrasbrasílicastinhasidoariquezadesua lora:“Porcausadomuitopau,epimentaealgodão,veiomr.deVillegaignon,grão-capitão,pormandado,segundodizem,dorei;secretamente, fezumagrã fortalezano Rio de Janeiro, esteve ali quatro ou cinco anos, e cada ano mandavavinteeduas,vinteequatronauscarregadas.”

Alguns cronistas acreditavam que o Brasil poderia se tornar umimportantefornecedordepimenta-negraindiana,alémdecomercializaraprópria pimenta nativa. No entanto, o plantio de especiarias orientais noBrasil, assim como sua comercialização, tinha sido proibido pela Coroa.BemodizAntônioFernandesBrandão,noDiálogodasgrandezasdoBrasil :“SuaMajestadedeviademandarumacaravelaàÍndia,paraquesomentelhetrouxessedelámuitasementedepimentaempipasouemoutraparte,onde mais acomodada viesse, e que a tal caravela passassepelo Brasil,

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onde a fosse entregando nas capitanias de Sua Majestade aos capitães-mores que a repartissem pelos moradores, obrigando-os a que aplantassem e bene iciassem, e desta maneira se colheria do Brasil maispimentadoque se colhena costa doMalabar.”Mas “SuaMajestade” nãoqueria concorrência para os interesses da Coroa na Índia. Somente em1683 é que foram introduzidas quatromudas na Bahia, e já em 1690, oprovedor da fazenda informa o sucesso da plantação: 4 mil pés depimenta-negraestavamproduzindo.

Os portugueses difundiram rapidamente as pimentas brasileiras pelomundo através de suas rotas marítimas e suas colônias ultramarinas.Primeiro na África. Não se sabe ao certo quando e por qual porto aspimentasCapsicumforamintroduzidasnascolôniasafricanas,masaceita-sequejáláestavamnaprimeiradécadade1500.

Quando as picantes pimentas vermelhas sul-americanas foramintroduzidasnascolôniasafricanas,suplantaramasnativas,esetornaramum elemento fundamental na culinária do continente. Depois foramlevadas para a Índia, para a China e espalharam-se por todo o sudesteasiático, onde se fundiram intimamente coma culinária local.Aspicantespimentasvermelhas sul-americanas seadaptaram tãobemnospaísesdeintrodução e se tornaram tão importantes para a culinária local quedurante séculos acreditou-se serem nativas. Os iorubás nigerianospraticantes do candomblé, que oferecem pimenta Capsicum aos seusorixás, teriam muita di iculdade em acreditar que estão cultuando suasdivindadescomplantasnão-africanas.

Quando as cozinhas de especiarias conheceram as pimentas sul-americanas, delas se apropriaram rapidamente, adicionando um novoreforço, o gosto picante, às suas receitas. Não foram os africanos queapimentaramacozinhabrasileira(ouamexicanaouacaribenha),esimocontrário,diferentementedoquedeixasuporGilbertoFreyre,paraquema culinária da pimenta foi um elemento desenvolvido pelo africano. OspovosnativosdasAméricassemprecomeramcommuitapimenta,desdeoatual México até a parte sul do Brasil. Podemos pensar mais numaconvergência de paladares do que numa in luência alienígena nodesenvolvimentodeumacozinhaapimentadabrasileira.

É curioso observar que os primeiros botânicos, tendo conhecido aspimentas sul-americanas nos países asiáticos, onde eram usadasabundantemente, pensaram que fossem originárias da Ásia e deduziramque tinham sido introduzidas na América após o Descobrimento. A

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ilustraçãomais antiga de uma pimenta Capsicum foi publicada em 1542,na obraDehistoriastirpium , deLeonhartusFuchsius,médicoeprofessoralemão e um dos patriarcas da botânica, que descreveu algumasvariedades de pimentas sul-americanas, a irmando serem asiáticas, erroperpetuadoporváriosséculos.Em1776,NikolausvonJacquin,ummédicolamengo, deuonomede “chinense” paraumadas espécies deCapsicumencontradasnoCaribe,poracharqueeramnativasdaChina.Somenteem1882,obotânico francêsDeCandolle, emOriginedesplantescultivées, fezjustiça à origem sul-americana das mundialmente apreciadas pimentasCapsicum.

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Animais

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Mamíferos

•CAPIVARA

A primeira documentação do nome “capivara” é de Anchieta, em suafamosa carta em latim, em que descreve a natureza da capitania de SãoVicente, escrita a seus irmãos jesuítas de Portugal em 1560. Escreve opadre:“Outraalimáriadogêneroan íbioquesedenominacapivara,issoé,comedor de erva.” É perfeita a explicação que o jesuíta, autor de umagramáticada língua tupi, dáparaa etimologiadonomenativodoanimal.Capivara,emtupi,significa“comedordecapim”.

Tanto Anchieta quanto Cardim, Gândavo e Gabriel Soares de Sousaaproximam a capivara, cujas características anatômicas eles vêem edescrevem,doporco.HansStadenregistraaidenti icaçãodacapivaracomoporcoquandodizqueela “temsabordeporco”.Noentanto, a capivara(Hydrochaeris hydrochaeris ) não é uma espécie de porco, mas umherbívororoedor,omaiordomundo.

Gabriel Soares de Sousa, em seuTratado descritivo do Brasil, a irmaque a carne da capivara é “mole, e o toucinho pegajoso; mas salpresa[salgada] é boa de toda a maneira, mas carregada para quem não temsaúde”. Gândavo, aocontrário, informaqueacarneésaudávele indicadaparaosenfermos: “Eassimacarnedestes (porcos), comoadosoutros,émuitosaborosae tãosadiaquesemandadaraosenfermos,porqueparaqualquerdoençaéproveitosaenãofazmalanenhumapessoa.”

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N oDiálogo das grandezas do Brasil , o personagem Brandônio,dialogandocomAlviano,dizqueascapivaras,“asquaisvivemnaságuasepastamsobrea terra”, “secriampelasalagoaserios”,a irmandoquesãosemelhantes à lontra “na natureza, mas não nas feições” e boas paracomer, não entrando em detalhes sobre seu sabor ou preparo. Diantedessadescrição,oespantadoAlvianopergunta:“Eesseanimaléreputadopor peixe ou por carne?” Ao que responde Brandônio: “Por carne sereputa, porque a tem ele muito boa e gostosa; além de que, conformerezam,erabemquefossetidoporcarne,porpastarnaterra,queéaoquesedevedeterrespeitoparasemelhantesdúvidas.”

O padre Fernão Cardim nãomenciona a capivara como animal a sercomido, mas se refere a uma pedra “muito grossa” que têm no céu daboca,“quelhesservedequeixais”.Essapedraeradadaàscriançasetidapelosíndioscomoumajóia.

Na correspondência do padre Anchieta, que dizia que as capivaras“eram próprias para comer”, há referência à domesticação delas:“Domesticam-see criam-seemcasa comocães, saemapastar e voltamacasaporsimesmas.”Hábitosindígenasincorporadosporcolonos.

“Eoutros [porcos]quecomemesecriamnaterraeandamdebaixod’águao tempoquequerem,aosquais, comocorrampoucopor causade teremospés compridos easmãos curtas,proveuanatureza de maneira que pudessem conservar a vida debaixo d’água, onde logo se lançam demergulhoassimquevêemgenteouqualqueroutracoisaquetemam.”

PERODEMAGALHÃESDEGÂNDAVO

•ANTA/TAPIR

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Em sua bela carta em latim, dirigida aos irmãos de Lisboa, escrita em1560, emquedescreve a naturezada capitania de SãoVicente,Anchietade ineotapir(Tapirusterrestris)comoumanimal“próprioparacomer”,eo identi ica à anta, conhecida na Europa. A palavra “anta” é de origemárabeedesignaumaoutraespécienativadosudoestedaÁsia,conhecidadesde antes da descoberta do Novo Mundo. Gândavo não menciona onome indígena, mas faz minuciosa descrição dos hábitos do animal, queandaànoiteeseescondeduranteodia“comoavesnoturnasaquea luzdodiaéodiosa”.A irmanossoprimeirohistoriadorqueoanimal,queelejulgavaparecidocomumamulamascom“obeiçocompridoàmaneiradetromba”,“temsaborcomoodavaca,daqualparecequenãosediferenciacoisa alguma”. O francês André Thevet registra que o animal era muitoabundante na América, “estimadíssimo pelos indígenas, que o caçam emgrandequantidade,nãosóporsuacarne–aliás,excelente”.

Gabriel Soares de Sousa, ao escrever sobre os animais da Bahia, dáprioridade ao tapir: “E comecemos das antas, a que os índios chamamtapiruçu,porseramaioralimáriaqueestaterracria.”Desuasqualidadescomoalimento,dizocronistaesenhordeengenhoquesuacarneémuito“gostosa”,comoadevaca,comavantagemdenãotersebo,“masquer-sebem cozida, porque é dura”; de seus ossos torrados emoídos faziam osíndios remédio, que bebiam “para estancar câmaras”, ou seja, curardiarréia;comsuapele,porsermuitoresistente,eramfeitosimpenetráveisbroquéis e couraças. Também as antas eram criadas em casa, “onde sefazemmuito domésticas, e tãomansas que comem as espinhas, os ossos,comoscachorrosegatosdemistura;ebrincamtodosjuntos”,contaSoaresdeSouza.

ParaJeandeLéry,emsuaViagemàterradoBrasil ,acarnedotapiruçu“tem quase omesmo gosto da do boi”. É falando do tapir que o cronistafrancêsdescreveatécnicaindígenadamoqueação:“Osíndiosenterramnochãoquatroforquilhasdepau,enquadradasàdistânciadepoucomaisdenoventacentímetroseàalturadesetentaepoucoscentímetros, esobelasassentam varas, formando uma grelha de madeira. Sobre essa grelhacolocam a carne cortada em pedaços e acendem sob esse tipo de grelhaumfogodelenhaseca,paranãofazermuitafumaça;dequinzeemquinzeminutosviramacarne,atéqueestejabemassada.Comonãotêmohábitode salgar as carnes como fazem os europeus, esse era um meio deconservaçãoquepossuíam.”

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“Oprimeiroemaiscomuméotapiruçudepêloavermelhadoeassazcomprido,dotamanhomaisoumenosdeumavaca,massemchifres,compescoçomaiscurto,orelhasmaislongasependentes,pernasmais inasepéinteiriçocomformadecascodeasno.Pode-sedizerque,participandodeumeoutroanimal,ésemivacaesemi-asno.Difereentretantodeambospelacauda,queémuitocurta(háaqui naAmérica inúmeras alimárias sem cauda), pelos dentes que são cortantes e aguçados;nãoéentretantoanimalperigoso,poissósedefendefugindo.”

JEANDELÉRY

Outro francês, André Thevet, nas Singularidades da França Antártica ,expõeasduas razõespelasquaiso tapir é tão estimadopelos índios: emprimeiro lugar pela qualidade de sua carne, e depois por outra razãoigualmenteimportanteparaeles–apele,“jáquecomelapodemfabricarescudos queusamnas guerras”. E continua o autor: “Essa pele é de fatotãoresistentequesócomgrandedificuldadeseconsegueatravessá-lacomum tiro de bacamarte.” Jean de Léry conta como, na viagem de volta àFrança,duranteumagrande fome,os tripulantesdeseunavio,depoisdecomerem todos os ratos, inventaram uma exótica refeição, à base dosduríssimos escudos de pele de anta: “Já estávamos porém tão magros efracos, quemal nos podíamos suster de pé para as manobras do navio;mas a necessidade sugeria a cada um uma solução para encher oestômago e alguém se lembroude cortar rodelas do courodo tapiruçu efazê-lasfervernaágua,imaginandoqueassimpudessemsercomidas;masa receitanão foi julgadaboa.Outros,porém,que tambémdavam tratosàbola, lembraram-se de assar essas rodelas na brasa. Depois de tostadas,rasparam a parte queimada e isso deu tão bom resultado que os que acomiam declaravam que pareciam torresmos. Depois dessa experiência,quemtinharodelasasguardava,ecomoeramdurascomocourosecodeboiforamcortadasempedaçoscomfoiceseoutrasferramentas,eosqueaspossuíamescondiam-nascuidadosamenteempequenossacosdepano,pois davam-lhes tanta importância quanto aos escudos dão entre nós osusurários.”

•TATU

Sua aparência maravilhou e espantou os cronistas, que o descreveram

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detalhadamente e produziram uma série de ilustrações desse estranhoanimal coberto por uma espécie de couraça em forma de lâminas, comoumaarmadura.Era“diferentedetodososoutrosanimaisquequantosatéagora se têm visto”, de ine Gândavo. Segundo os que escreveram sobreele, parecia-se comum “cavalo armado”, tinhao casco “comode cágado”,pernas curtas, “focinho de leitão, ainda que mais delgado”, “dentes degato”, “unhas de cão”, rabo comprido. Omonstro, apesar da assustadoraaparência, era pací ico. Conta o padre Fernão Cardim que os tatus eramdomesticados e criados “em casa”. Havia pelas matas em abundância, eeramfacilmenteapresados.

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Era uma das carnesmais apreciadas pelos colonos e pelos índios. NaopiniãodeGândavo,“éamelhoreamaisestimadaquehánestaterra”.Osaboreradescrito comosemelhanteà carnedegalinhaoude leitão. Joséde Anchietaachava osabor muito agradável. Para outro jesuíta, FernãoCardim,era“muitogostoso”.HansStadencomeudelemuitasvezeseelogiasua carne “gorda”, uma das características mais louvadas. Os francesestambém eram apreciadores. André Thevet achava sua carne “dedelicadíssimo paladar”, e Jean de Léry disse que era “branca e muitosaborosa”.

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Tatuéumbichoquesevêpintadonosmapaspelasuaestranhezaefeição.

AMBRÓSIOFERNANDESBRANDÃO

Éanimalparaver,chamam-lhecavaloarmado:acarneparecegalinha,ou leitão,mui-togostosa,daspelesfazembolsas,esãomuitogalantes,ededura;fazem-sedomésticosecriam-seemcasa.

FERNÃOCARDIM

O tatu era, portanto, uma unanimidade entre os diferentes paladareseuropeus,epresençaconstantenamesabrasileiraquinhentista.Todasasespéciesdoanimal(pequenas,médiasegrandes)eramconsumidas,tantocozidas como assadas. Um único tatu da maior espécie existente, o tatu-canastra (Priodentes maximus), capaz de atingir um metro de altura epesar30quilos,poderia,assado,proporcionarumregaladobanquete.

•PACA

Suacarneeraconsideradamaisgostosadoquecarnedeporco.Era“umadasmelhoresquehánaterra”,segundoGândavo,oprimeiroadescreveressemamíferoroedor.Todososportuguesescomparamosabordacarnedepaca (Agoutipaca) ao da carne de porco.Mas o francês Jean de Léryachava o gosto parecido com vitela, e via para a bela pele do animal ummercado certodaFrança: “Émuitobonita,manchadadebranco, pardoepretoeseotivéssemosseriamuitoapreciadonovestuário.”

NoBrasilquinhentista,aspacaserammuitoabundantes,ecostumava-secomê-lasguisadas,paraoquenãoasesfolavam,deformaaaproveitarseu couro tenro e saboroso. Eram também assadas inteiras e estimadas

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pelo seu couro crocante e apetitoso, como de leitão. Uma carne gorda,consideradasadiapelamaioria.ParaopadreFernãoCardim,noentanto,era“gostosa,mascarregada”.

“Criam-senestesmatosunsanimaisaqueosíndioschamampacasquesãodotamanhodeleitõesde seismeses, têma barriga grande e os pés emãos curtos, as unhas como cachorros, a cabeçacomolebre,apelemuitomaciaeraiadadepretoebrancoaocompridodocorpo,têmorabomuitocomprido,corrempouco.”

GABRIELSOARESDESOUSA

•CUTIA

As índias grávidas não comiam cutia para que a criança não nascessemagra.Mas o resto da população brasileira se rendeu ao sabor delicadodesse franzinomamífero roedor. Na verdade, o nome cutia designa umasérie de espécies do gênero Dasyprocta. Conheciam-se, de fato, váriascastas:pequenas,médiasegrandes,pardas,pretasouamarelas.

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Paraosíndios,oagutieraumanimaldoméstico.Oscolonosadquiriramohábito indígena,eeracomumverpequenascutiasandandodentrodascasas e pelos quintais, perfeitamente integradas à paisagem domésticacolonial.

Sua carne de “sabor agradabilíssimo”, como de ine Jean de Léry, eradegustada cozida ou assada. Para que todas as suas potencialidades serevelassem,requeriaosmesmoscuidadosqueacarnedepaca:nãoseasesfolavam, apenas pelavam-na, como um leitão. A pele crocante era seugrandeatrativo.

“Encontra-seali tambémumpequenoanimal chamadoaguti,grandecomoum lebrão,que temopêlo duro e eriçado como o do javali, a cabeça como a de uma ratazana, as orelhas e a bocasemelhantes às da lebre, e uma cauda de apenas uma polegada de comprimento. Seu dorso éinteiramente glabro da cabeça à cauda, e suas patas fendidas como as do porco. Alimenta-se defrutas. Os selvagens criam os agutis como animais de estimação, mas também apreciam-nosbastanteporcausadesuacarne,queéexcelente.”

ANDRÉTHEVET

•PORCOS

Eram tão abundantes os porcos nativos do Brasil que o padre FernãoCardimdiziaqueeramo “ordináriomantimentodos índios”, isto é, oqueeles comiam facilmente todososdias.Omilitar espanholCabeçadeVaca,embrenhado em caminhos no sul do Brasil, admira-se com a quantidadedeporcoscaçados,quemantinhamaexpediçãomuitobemalimentada.

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Os europeus geralmente os associavam aos porcosmonteses de seuspaíses,masosnossosnãosãomonteses,esimporcosdomato,dogêneroTayassu: oTayassutajacu (catituoucateto)eoTayassupecari (queixada).Diferenciavam-se dos europeus por terem “o umbigo nas costas”, naverdade uma glândula odorífera, o que facilitava a sua caça: “Por ele saiumcheiro,comoderaposinho,eporestecheiroosseguemoscãesesãotomadosfacilmente”,explicaFernãoCardim.

A carne era considerada uma espécie de remédio: “A carne destes émuitosaborosae tãosadiaquesemandadaraosenfermos,porqueparaqualquer doença é proveitosa e não faz mal a nenhuma pessoa”, contaGândavo.Acarnemagra,sembanhanemtoucinho,dasespéciesmenores,era,naopiniãodosenhordeengenhoegourmetGabrielSoaresdeSousa,quepreferiaacarnedaqueixadaàdocateto, “carregadaparaquemnãotem boa disposição”. Os tajaçus maiores tinham a carne gorda, comtoucinho, mas cheiravam muito mal e o “umbigo” precisava serrapidamentecortado,paranãoestragaracarne;esteserammaisferozes,perigososemaisdifíceisdeseremcaçados.

Quanto às formas de preparo, provavelmente preparavam-se ostajaçusdosmesmosmodosqueosporcoseuropeus:assados,guisados,emmorcelaselingüiças,empastéiseemtortas.

TORTADEPORCO

Piquembemmiudinhocarnedecarneirooudeporco,elevem-naacozinharcompoucaágua,umpoucodeaçúcaremanteiga.Quasecozida,lancem-lhealgunscravos-da-índia.Acabemde

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cozê-laeretirem-nadoseucaldo.Àpartebatamumadúziadeovos,clarasseparadas,adicionando-lheumpoucodeaçúcar.Numafrigideiracommanteigabemquente,coloquemametadedosovosbatidos;deixem-

nos tomar consistência e derramem por cima a carne cozida. Logo que os ovos estiveremcoradosviremtudonumprato.Esquente-se,denovo,manteiganafrigideira,colocando-lheorestodosovosbatidose,porcima,afritada,tendoocuidadodenãodeixarpegarnofundo.

Sirva-sepolvilhadacomaçúcarecanelaeborrifadacomágua-de-flor.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

“Émaismagro,descarnado;temumgrunhidoespantosoeapresentanascostasumadeformidadenotável, uma abertura natural, como a do gol inho na cabeça, por onde sopra, respira e aspiraquandoquer.”

JEANDELÉRY

PASTÉISDECARNE

Tomemcarneiro,alcatraou lombodeporco fresco,eumafatiade toucinhode fumeiro,paradargosto.Piquemtudomuitobem.Comcravo,açafrão,pimenta,gengibre,coentroseco,caldodelimãooudeagraço,eumacolherdemanteiga,façamorefogado,aoqualsedeitamacarneeotoucinhopicados.Cozinhememfogobrando.Depoisdeprontodeixemesfriare façamospastéis,bemrecheados.Pincelem-noscomgemadeovoelevem-nosaassaremfornoquente.

Domesmomodosefazemospastéisdegalinha.Ospastéisficarãomaisgostososserecheadoscomcarnecrua.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

•VEADOS

Pelo que descrevem os cronistas do Brasil quinhentista, os índiosgostavammais de carne de veado do que os colonos. Quase ninguém seentusiasma com a iguaria. Mesmo o maior comentador gastronômico daépoca, o senhorde engenhoportuguês radicadonaBahiaGabriel Soares

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de Sousa, que costuma escrever detalhadamente sobre os sabores e osmodosde comerplantase animaisbrasileiros,nãoémuitoenfático.Paraele, dentre as três espécies de veado que conhecia – os pequenos, dotamanho de cabras, ruivos e “sem cornos” (suaçu), provavelmente oMazama govazoupira, os brancos, maiores e com “cornos” (talvez oOzotocerus bezoarticus), e os maiores que os da Espanha, com enormes“cornos” (suagupara) (talvez oBlastocerus dichotomus ) –, os únicos decarne“muitoboa”eramosmaiores,queviviamnosfundossertões,eeramportantorarosnamesabaiana.De fato,existemváriasespéciesdesuaçubrasileiros, como o veado-mateiro, pequeno e avermelhado, e o veado-campeiro,degrandeporte,tambémchamadoveado-branco.

OjesuítaFernãoCardim,quenãoéumentusiastadaboamesa,apenascomenta que os colonos “fazem muito caso das carnes” dos veadosgrandes e galhudos que se encontravam no rio São Francisco e nacapitania de São Vicente, talvez o cervo-do-pantanal, espécie hojeameaçadadeextinção.

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O único entusiasta é o grande propagandista do Brasil, Pero deMagalhãesdeGândavo,quedizqueacarneésaborosaemedicinal,sendodadaaosenfermos,assimcomoacarnedosporcosselvagens.

Todos os que se embrenharam pelos caminhos desconhecidos dosertão alternaram episódios de fome com outros de fartura de carne, eespecialmente de carne de veado, dada a abundância do animal noterritóriobrasileiro.Os índios, ao receberemosdesconhecidos,ofereciamveadoseporcos.Aoencontraremosjesuítas,muitasvezespresenteavam-lhespedaçosdeveadoe,emtroca,pediamparaaprenderadoutrinacristãeparaserembatizados.PeroLopesdeSousa,irmãodeMartimAfonsodeSousa,emsuaviagemmarítimaaolongodolitoralbrasileiro,estocavaemseusnavios“tassalhosdecarnedeveado”queconseguiacomos índios,eassimmantevesuatripulaçãobemalimentada.

Os índios tinhamumaótima razãoparapreferirema carnedeveado:evitavam comer os animais vagarosos para não adquirirem sua lentidão,masvalorizavamenormementeoságeisevelozes.ComoexplicaofrancêsAndré Thevet: “Já as de animais que voam ou correm com ligeireza, taiscomoveadosecorças,porexemplo,comem-nastodas.”

Thevet também observa que os índios conheciam uma outrapropriedademedicinaldochifredeveado,amplamenteusadonamedicinaeuropéia.Elesusavamoschifresnos“ori íciosfaciaisdascrianças”porqueacreditam que combatiam e impediam “o surgimento de in lamaçõeslocais”. Na Europa, o chifre de veado era empregado como antídoto etambémpara“fortalecereconfortaroestômago”.

Ainda que os colonos não aproveitassem na culinária a abundânciadessa caça, enriqueceram sua vestimenta e seu mobiliário com botas emesmocadeirasfeitasdepeledeveado,queerammuitoapreciadas.

•COELHOS

Aodescreveremumasériedepequenosanimaisbrasileiros,comoapaca,o tatu ou a cutia, os cronistas do Brasil quase sempre comparam-nos aocoelho,sejapelodelicadosabordacarne,sejapelotamanho.Opequenoesaboroso animal era o paradigma para todos os da sua estatura edelicadeza.Ascutias,ostatuseaspacaseram,paraoseuropeusdoséculo

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XVI, os novos coelhos, os coelhos do Novo Mundo. Mas, além dessespequenosanimais,arremedosdecoelhos,havia tambémos“verdadeiros”coelhosbrasileiros,chamadospelosíndiosdetapiti(Silvilagusbrasiliensis),que eramabundantes, e, para ampliar aindamais esse variado cardápio,havia ainda uma multidão de coelhos europeus, que tinham semultiplicadononovoterritório.

COELHODAINFANTAD.MARIA

Assem um coelho temperado só com sal, e em seguida cortem-no em pequenos pedaços.Façam então um refogado com manteiga, cebola batida, vinagre, cravo-da-índia, açafrão,pimenta-do-reinoegengibre.Ponhamemseguidaospedaçosdocoelhodentrodorefogado,edeixemlevantarafervura.Sirvamsobrefatiasdepão.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Ograndeconhecedordamesabrasileira,osenhordeengenhoGabrielSoaresdeSousa,descrevecincotiposdecoelhosnativos–quenaverdadenão eramcoelhos,mas roedores (ver ilustraçãonapágina seguinte).Unspequenos chamados sauja,outros com rabo grande semelhante a ratochamadospunari,unsparecidoscomestes,denominadosapariás(preás),que eram excelentes para se comerem, uns “pequeninos a que chamammocó,osquaisse fazemdomésticosesetrazempelacasa,paracontraosratos, por seremgrandeperseguidores deles”, e ainda outra casta a quechamavam reruba. Nenhum desses era coelho, mas eram comidos esaboreadoscomoseofossem.

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JeandeLéry,nasuacurtaestadanoBrasil, viuduasou trêsespéciesdiferentesde tapitis.Eleéoprimeiroaregistrarovocábulo tupi.Dizqueparecem muito com as lebres francesas, embora o pêlo seja maisavermelhado.

ComonoBrasilseachavamtodosostemperosusadosemPortugal,erabempossível que emalgumas casas fossem servidospratos semelhantesaosdametrópole.

TIGELADADECOELHO

Temperemum coelho a gosto e levem-no a cozer compedaços de toucinho. Quando estiverbemmacio, tirem-no fora,piquem-noepartamo toucinhoemtalhadasbem inas.Arrumemtudodentrodeumatigeladebarro,entremeandoocoelhocomotoucinho.Ajuntemcravo-da-índia e uma pitada de açafrão, e cubram com salsa, coentro, hortelã e cebola, tudo bembatidinho.Entãoderramemdentroocaldoemqueocoelhofoicozidoelevematigelaaofogo.

Assimquelevantarfervura,tirematigeladofogo,derramememcimameiadúziadeovosbatidos,clarasegemastudojunto,elevemaofornoparacorar.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

•TAMANDUÁ

Eles eram ferozes. “Acometem muito a gente e os animais”, advertia opadreFernãoCardim.UmquadroigualmenteapavorantepintavaojesuítaFranciscoSoares:“Redondas,asunhassãocomodedos,masagudascomopunhal; a tigreouaqualquer coisaque ele lançamãodespedaça; ospéscomohomem, e assim espera sem temer nada e tem grande força.” Comsuascerdaslongasearrepiadas,maisgrossasqueasdoporco,“recebemerepelem o golpe das armas”, conta Anchieta. Mas, estranhamente, esseverdadeiromonstrodoNovoMundocomiaapenasformigas.

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Todososcronistasqueseocuparamdotamanduá(animaisdogêneroMyrmecophaga) descreveram pormenorizadamente seu estranho aspectoe a forma como capturavam e engoliam as formigas. Alguns diziam quetinhaotamanhodeumcão,outroscomparavam-nocomraposas,carneirosoupotros.Pernascurtas,oraboduasvezesmaiorqueocorpo,umfocinhocomprido como funil, uma boca mínima e uma língua de quatro palmos,estranhíssimasunhas.

Os índios não comiam tamanduás. Tinham nojo, conforme explicaGabriel Soares de Sousa, e também “tinham agouro”, segundo FranciscoSoares.Masoseuropeusecolonoseramapreciadores.Anchietaéumdosadeptos:“Émuitobomparacomer,dir-se-iacarnedevaca,senãofossemcarnesmenossubstanciosas.”OinglêsAnthonyKnivet,emumaexpediçãopelo sertão da capitania de São Vicente, conta como mataram “grandequantidade de tamanduás”, que foram assados e guardados, de forma aalimentarem os homens durante dias seguidos. E não registroureclamaçõessobreoexóticoacepipe.

“Estebicho semantémde formigasque tomadamaneira seguinte: chega-seaum formigueiro edeita-se ao longo dele comomorto e lança a língua para fora, que temmuito comprida, ao queacodem as formigas commuita pressa e cobrem-lhe a língua umas sobre as outras e quando asentebemcheiarecolhe-aparadentroeengole-as,oquefazatéquenãopodecomermais.”

GABRIELSOARESDESOUSA

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•QUATI

Oprimeiroadescreveroquati(Nasuanasua)éojesuítaFranciscoSoares,em1594.Diz que são comoos texugosdePortugal: andamembandos etêm“pelesparaforros,boasqueparecemveludo”.OfrancêsAndréThevetescreve que os índios jamais comiam a carne do quati, pois osconsideravamimpuros,porviverem“nabeiradosregatos,alimentando-sedosrestosdeanimaismortosquealiencontram”.

Fernão Cardim conta que eram domesticados e que brincavam “comgatinhos e cachorrinhos, e são maliciosos, aprazíveis, e têm muitashabilidades”.

O único a considerar o quati como uma possibilidade gastronômica éAmbrósioFernandesBrandão, emseu DiálogodasgrandezasdoBrasil , aoafirmarqueacarnedosquatisétãoboaquantoadascutias.

•RATOS

Haviamuitos,deváriasespécies,ruivos,pardosepretos.Osratosdomato,alguns grandes como coelhos, erammuito apreciados por portugueses ecolonos. Como resume o padre Fernão Cardim: “Todos se comem e sãogostosos.”Osíndiostambémeramadeptosdessaabundantepresa.

GabrielSoaresdeSousadedicaumcapítulodeseulivrosobreoBrasilà “diversidade dos ratos que se comem”, e descreve várias espécies desauiá, vulgarmente chamado rato-de-espinho, roedores da famíliaEchymidae. Do tamanho de ilhotes de coelho, os sauiás se criavam emcovas, alimentavam-se de frutas silvestres e eram capturados emarmadilhas. Todos tinham o pêlo como de lebre, por vezes vermelho,

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algunscomraboscompridos,massemprecomacarne“muitoboa,sadiaesaborosa”, estimada por todos. Soares de Sousa descreve os sauiá, ossauiatingaeossuiá-coca(espéciesdedifícilidentificação),todoscomcarnesemelhante àdos coelhos. Ele também faladas aperiás, ou seja, aspreás(Cavia aperea), “ratos” de carne muito saborosa, sem rabo, “o rosto dafeiçãodeleitão,orelhascomocoelhoecabelocomolebre”.

Mas nem todos comiam ratos com essa naturalidade e esse prazer.Hans Staden, o bucaneiro alemão, comeu ratos e lagartos durante umagrandefomenossertõesdacapitaniadoRiodeJaneiro,quandonãotinhaoutraalternativa.

O francêsAndréThevet dedicaum capítulode suas Singularidades daFrança Antártica à “Ilha dos Ratos”, uma belíssima ilha “assim batizadadevidoàvariedadeeabundânciadessesanimais”.Tratava-sedeFernandode Noronha. A tripulação da frota onde estava Thevet passava fome háquatro meses e resolveu desembarcar na ilha. Não acharam água doce,mas se fartaram com os abundantes pássaros. Ali, Thevet conheceu osoiatã–provavelmenteosauiá–,umratocinzento,cujacarneera“gostosae delicada como a de um lebracho”. Encontrou também outra espécie,“porémdecarnemenossaborosa”,aquedesignaieruçu.

Eram ratos, mas todos concordavam que parecia coelho, não semrazão.Ossauiáseramtãosaborososquepraticamentedesapareceramdoterritório brasileiro. Uma de suasmaiores espécies, o Phyllomys unicolor,cienti icamente descrito pela primeira e única vez pelo alemão AndreasWagnär,em1824,nuncamaistinhasidovisto.Emdezembrode2007umfilhotefoicapturadonosudoestedaBahia.

•MACACO

O macaco fazia parte dos hábitos alimentares indígenas (no Brasilencontra-se uma grande variedade de espécies e subespécies deprimatas). E quando os viajantes, embrenhados em suas expedições,encontravam tribos indígenas, quase sempre havia carne de macacoassada. Mas os colonos, cronistas e viajantes não demonstram nenhumentusiasmoporessacomida,consideradade índioesótoleradaemcasosextremosdefome. JeandeLérycontacomoosmembrosdatripulaçãodonavio em que estava, voltando para a França, ao passarem uma grande

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fome,depoisde comerem todaa comida, tiveramde comerosmacacoseos papagaios, como uma das últimas alternativas – antes de comeremosescudosdepeledeanta.

Aúnica exceção a essa repugnâncianos registrosde então é opadreJosédeAnchieta,quenacélebrecartade1560a irmaquetodasasquatrocastasdemacacosentãoconhecidaseram“muitoboasparasecomerem”,dizendo que os padres com freqüência experimentavam do exóticomanjar, um alimento “muito são até para os doentes”. Anchieta era umdevotoadmiradordascoisasbrasileiras.

•GAMBÁS

Nosdoisprimeirosmesesdoanode1500,poucoantesdePedroÁlvaresCabral chegar ao Brasil, a frota do espanhol Vicente Yañez Pinzónpercorreu a costa brasileira, da ponta de Mucuripe, no Ceará, até oOiapoque, descobrindo a foz do rio Amazonas – como demonstrou oalmiranteMaxJustoGuedesapartirdaanálisedomapa-múndideJuandela Cosa. Os relatos sobre essa expedição, escritos por Pedro Martyr,registramaprimeiravezemqueumanimalbrasileiroédescritoporumeuropeu.Tratava-sedeumafêmeadegambá,comseus ilhotes,capturadano rio Amazonas, que causou admiração pela bolsa no ventre, ondecarregavaacria,eporsuararaaparência–“umanimalmonstruoso,comcaraderaposa,rabodemacaco,orelhasdemorcego,mãoshumanasepés

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comodemacaca”,descreveocronista.Oespantosoanimalfoiembarcado,mas não resistiu à viagemmarítima: os ilhotes logomorreram e “amãesobreviveu ainda alguns meses, mas tampouco pode suportar umamudançatãograndedeclimaealimentação”.

Gândavo, ao descrever os gambás na primeira versão de sua obrasobreoBrasil,chama-osderatos,etambémdestacaofatodeteremumabolsa onde criavam seus ilhotes.Osmarsupiais eramdesconhecidos doseuropeus, e vários cronistas explicaram, cada um ao seumodo, por queessasbolsasexistiam,comoessesanimaisnasciamecomosegeravam.Aodescrevê-lospelasegundavez,naversãocorrigidaeaperfeiçoadadeseutratado,Gândavojáindicacorretamenteonomeindígena:sarigüê,queemtupisignifica“animaldesacooubolsa”.

Poucosconfessamtercomidogambá(váriasespéciesdemarsupiaisdogênero Didelphis). Uma exceção é o francês Jean de Léry: “Existe outroanimal do feitio de uma doninha e de pêlo pardacento, ao qual osselvagens chamamsariguá; temmau cheiro, e não o comemos índios deboa vontade. Esfolamos alguns desses animais veri icando estar nagordurados rinsomauodor; tirando-lhesessavísceraa carneé tenraeboa.”

“Háoutrosemelhanteaumaraposapequena(queos índioschamamsariguéia)quecheiramuitomal e gostamuito de comer galinhas. Temno baixo ventre um saco, aberto de cima para baixo,onde se escondem as tetas, e, quando pare, as crias entram nele, pega-se cada qual à sua teta, enuncamaissaemsenãoquandojánãoprecisamdoauxíliodamãeepodemestarempéecaminharporsi.”

JOSÉDEANCHIETA

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•LONTRA

Háduasdescriçõesde viajantesque se referemaumaespéciede lontrade di ícil identi icação – talvez aLontra longicaudis ou a ariranha. PeroLopesdeSousarefere-seaumanimalmeio terrestreemeioaquático,debompaladar: “Neste rio [daPrata]háumasalimárias comoraposas,quesempreandamnaágua,ematávamosmuitas;têmsaborcomocabritos.”Etambém André Thevet, ao falar da região circunvizinha ao rio da Prata,descreve“umcertoanimalchamadopelosselvagensdesaricuiena”,oquesigni ica“bichoguloso”.“Trata-sedeuman íbioquevivemaisnaáguadoquenaterraeépoucomaiorqueumgatinho.Seupêlo,malhadodecinza,brancoenegro,é inocomoveludo.Seuspésparecem-secomosdasavesaquáticas. Por im, sua carne é delicada e de ótimo paladar. Nesta terra,para as bandas do Estreito, encontram-se muitos outros animaisextraordináriosemonstruosos,masnão tão ferozesquantoosdaÁfrica”,contaThevet.

•PEIXE-BOI

Numa época de excessivo rigor nas práticas religiosas e de severaobediênciaaosditamesda igrejaCatólicacomrelaçãoaosdiasde jejumeabstinência, um grande animal aquático que habitava toda a costa doBrasil foi causa de confusão e até problemas de consciência. Trata-se dopeixe-boi, abundantenos estuários dos rios e nas enseadas e baías ondese misturavam água doce e salgada – e hoje ameaçado de extinção. Opadre Fernão Cardim menciona a dúvida dos iéis quanto a comer, nosdiasdepreceito,acarnedoanimal–queéummamífero,enãoumpeixecomopensavamoscronistasdaépoca:“Jáhouvealgunsescrúpulosporsecomer em dias de peixe”, ou seja, em dias de abstinência de carne. Naépoca, eram166 os dias anuais de jejum religioso e abstenção de carne,sendo 40 deles na Quaresma, quando se ingeria, no que toca às carnes,somentepeixe.

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Osíndioschamavam-nodeiguaraguá.Anchietadánotíciadesseanimalnuma carta escrita em latim, datada de 1560. Escreve o jesuíta: “Há umcerto peixe que chamamos de boi-marinho e os índios de iguaraguá,freqüentenacidadedoEspíritoSanto.”

Anchietavoltaafalarmaisdetalhadamentesobreopeixe-boiemoutracarta. O jesuíta o compara a um boi pelo tamanho e a um elefante peladurezaecordapele:“Émuitobomparacomeremalsepodedistinguirseécarneouseantessedeveconsiderarpeixe.”Econtinua:“Agordura,queestápegadaàpeleesobretudojuntodacauda,derretidaaofogo,torna-selíquida e pode-se bem comparar à manteiga, não sei se aindamelhor, eusa-se em vez de azeite para temperar comidas.” Em tempos de

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abundância do animal, a banha de peixe-boi era também utilizada nacozinhaparaosmesmosfinsqueseusava,naEuropa,abanhadeporco.

“Guararáépeixeaqueosportugueseschamamboi…oqualpeixetemocorpotamanhocomoumnovilhodedoisanos, e temdois cotos comobraços, enelesumasmãos semdedos;não tempés,mastemoraboàfeiçãodepeixe,eacabeçaefocinhocomoboi;temocorpomuitomaciço,eduasgoelas,eumasótripa;oqualtemosfigadoseosbofeseaforçuramaisdeboi,etudomuitobom.”

GABRIELSOARESDESOUZA

Gândavo, nosso primeiro historiador, é pródigo na descrição desseanimal,quecausavaimensaadmiraçãoaoseuropeus:“Edeixandoàpartea muita variedade daqueles peixes que comumente não diferem nasemelhançadosdecá[dePortugal],tratareilogoemespecialdeumcertogênerodelesquehánestaspartesaquechamampeixes-boi,osquaissãotãograndesqueosmaiorespesamquarenta,cinqüentaarrobas.”Opeixe-boi marinho (Trichechus manatus) pode, de fato, atingir 800 quilos; umpoucomenoréopeixe-boiamazônico(Trichechusinunguis).

PEIXE-BOIGUISADOCOMCOUVES

Ponha-seaafogardoisarráteisdepeixe-boicortadoempedaçoscommeioarráteldetoucinhoe seus cheiros, quando ferver, se lhe meterá a couve, e duas cabeças de alho, e algumapimentainteira,estandojácozidotempere-secomtodososadubosesirva-se.

BaseadonareceitadeCarneirocomCouvedoArtedecozinha,

deDomingosRodrigues

Nossohistoriadorescrevetambémsobreomododepreparoeosabor:“Essepeixeémuitogostosoemgrandemaneiraetotalmenteparececarne,tantonasemelhançacomonosabor,eassadonãotemnenhumadiferençadelombodeporco.Tambémsecozecomcouveseguisa-secomocarne,eassim não há pessoa que o coma que o julgue por peixe, salvo se oconhecerprimeiro.”

Tanto o padre Fernão Cardim quanto Gabriel Soares de Sousa

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descrevem pomenorizadamente o peixe-boi. Ambos começam a irmandotratar-sedeumpeixe.FernãoCardimescreve:“Estepeixeénestaspartesrealeestimadosobretodososdemaispeixes,eparasecomermuitosadio,edemuitobomgosto,orasejasalgado,orafresco;emaisparececarnedevacaquepeixe.”

SoaresdeSousaassiminiciasuadescrição:“Guaraguáéopeixeaqueosportugueseschamamboi,queandanaáguasalgadaenosriosjuntodaáguadoce, dequeelesbebem; e comemdeumaervamiúda comomilhãque sedá ao longoda água; oqualpeixe temo corpo tamanhocomo umnovilhodedoisanos.”Seambosestãodeacordoquesetratadeumpeixe,não se furtam amostrar seus atributos demamífero: “As fêmeas paremumasócriança,etêmoseusexocomooutraalimária.”

Eram muitos os usos e as formas de preparar esse falso peixe. DizCardim:“Acarneétodadefebras,comoadevaca,eassimsefazcomoemtassalhos,ecura-seaofumeirocomoporco,ouvaca,enogostosesecozecom couves, ou outras ervas, sabe a vaca, e comida com adubos sabe acarneiro,eassadaparecenocheiro,egosto,agorduradeporco,etambémtemtoucinho.”

“O aspecto deste peixe lembra um odre de couro de bode ou de cabra cheio de azeite ou vinho.Saem-lhedaalturadoombroduaspatasqueeleutilizaparanadar.Apartirdoumbigo,seucorpovaia inandoemdireçãoàcauda.Suacabeçalembraadeumboi,sebemqueacarasejaumpoucomaisdelgadaeoqueixomaiscarnudoevolumoso.Paraumcorpomedindo10pésdelargurae20decomprimento, seusolhos sãobempequeninos.Apeleé cinzentae cobertadepêlos tãogrossoscomo os de boi. Por im, as patas inferiores lembram as do elefante, redondas, cada umaapresentando quatro unhas muito compridas. É o peixe mais disforme que já se viu por essasbandas, mas sua carne é muito saborosa, se bem que não tenha gosto de peixe: lembra antesveação.”

ANDRÉTHEVET

SoaresdeSousaé tambémminuciosonadescriçãodos saboresdessemaravilhoso animal. Depois de escrever que é esfolado como novilho,completa que a “carne muito gorda é saborosa; e tem no rabo comotoucinhosemternelenenhumacarnemagra,oqualderretemcomobanhadeporco, e sedesfaz todoemmanteiga, que servepara tudoparaoquepresta a de porco, e tem muito melhor sabor; a carne deste peixe emfresco, cozida com couves, sabe a carne de vaca, e salpresa melhor, eadubada parece e tem o sabor de carne de porco; e feita em tassalhosposta de fumo faz-semuito vermelha e é feita toda em fêveras com sua

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gordura misturada; e em fresca e salpresa, e de vinha-d’alhos, assada,parece lombo de porco, e lhe faz vantagem no sabor; as mãos cozidasdestepeixesãocomoasdeporco,mastemmaisquecomer.”

Gândavo dá as melhores informações sobre os locais onde sãoencontrados os animais: “Esses peixes pela maior parte se acham emalguns rios ou baías destas costas, principalmente são mais certos ondealgumribeiroouregatosemetenaáguasalgada,porquebotamofocinhopara fora e pascem as ervas que se criam em semelhantes partes, etambém comem as folhas de umas árvores a que chamammangues, deque há grande quantidade ao longo dos mesmos rios.” Dá-nos tambémGândavo informações sobre a captura dos peixes-boi: “Osmoradores daterra os matam com arpões e também costumam tomar alguns empesqueiras,porqueelesvêmdaraostaislugarescomaenchentedamaré,ecomavazantesetornamairaomardondevieram.”

“BRANDÔNIO:Eporesterespeitosecomeestepescadocozidocomcouvesese fazdelepicadosealmÔndegas,comaproveitarparatudoodequeseusadacarnedevacaeaalgumaspessoasadeieujÁacomerelhesnÃodisseoqueera,eficaramentendendoquecomiamcarnedevaca.”

ALVIANO:PoisnÃodeixaraeude termuitoescrÚpulo, senosdiasdepeixeusassedessepescado;porqueentenderaquecomiacarne.

BRANDÔNIO:Essemesmohouve jÁnesta terrae foiquestÃoassazdebatida;masdeterminou-sepor teÓlogos que era realmente peixe e que por tal devia de ser recebido realmente, visto tersemelhantepeixeasuahabitaÇÃosemprenasÁguas,enÃosairnuncaapastarforadelas.

AMBRÓSIOFERNANDESBRANDÃO

Sobre sua captura, Cardim diz apenas que “esse peixe se toma comarpoeiras”.SoaresdeSousaébemmaisdetalhado:“Aestespeixessematacomarpõesmuito atados [a] umbarril ou outra bóia, porque lhe largamcomoarpãoaarpoeira,eoarpoadorvainuma jangadaseguindoorastodobarril oubóia, queopeixe levaatrásde si commuita fúria, atéqueopeixe se vaza todode sangue, e se vemacimada águamorto.”AmbrósioFernandes Brandão relata que havia grandes pescarias de peixe-boi,animaisdóceisquesedeixampegarfacilmente,equeeramcapturadosemgrupos,compoucoesforço.

Nãopassadespercebido aos cronistas o empregomedicinal dopeixe-boi. Cardim escreve sobre a propriedademedicinal da banha do rabo etambém das “pedras” que o animal tem na cabeça, usadas em remédio

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muito empregado “contra a dor de pedra”, ou seja, para pedra nos rins.“Feita em pó e bebida com vinho, ou água, faz deitar a pedra”, receitaCardim. O padre Francisco Soares aprovou o remédio, que já eraconhecidona Itália: “Opeixe-boi temduaspedrasnas frontesda cabeça;estamoídaparadordepedraéúnicaefazbotarempedaços;eumviqueeracomoamêndoapilada,ejácáemPortugalexperimentei,ealançouempedaços,edeRomano-lamandampediraoBrasil.”

PICADINHODECARNEDEPEIXE-BOI

Lavemcarnedepeixe-boi,epiquem-nabemmiudinha.Aseguiradicionem-lhecravo,açafrão,pimenta,gengibre,cheiro-verdebemcortadinho,cebolabatida,vinagreesal.Refoguemtudonoazeite,edeixemcozinharatésecaraágua.

Sirvamsobrefatiasdepão.

BaseadonareceitadePicadinhodeCarnedeVacadoLivrode

cozinhadainfantad.Maria

•BALEIA

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Todos a irmam: havia “grande multidão” de baleias no litoral brasileiro,principalmente demaio até setembro, “quando parem seus ilhos”, comoexplica opadreFernãoCardim.Chamadaspelos índiosdepirapuã, eramabundantes, temidas, e representavam perigo para os barcos, quecostumavamafundar.Produziammuitoâmbar,queseachavanaspraiasetornavamuita gente rica. E forneciam, alémdisso,muito azeite, usadonailuminação.

O inglês Anthony Knivet comeu carne de uma baleia encalhada napraia,jáaapodrecer,quandofoiabandonadosemimortonolitoraldoatualestadodeSãoPaulo,masos cronistasnãomencionamousoda carnedebaleianaalimentaçãocotidiana.OfrancêsJeandeLérycontaumepisódioemque podemos observar o quanto não se apreciava a carne das então“horríveis baleias”, e faz uma curiosa referência a uma língua de baleiasalgadaemconserva,enviadaparaVillegagnon,naFrança:

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“Certavez,quandoaindanãonosencontrávamosnailha,surgiuumdessescetáceosàdistânciadedez ou quinze léguas do forte, e chegou-se tão perto da terra que não teve bastante água paravoltareencalhounapraia.Masninguémousouaproximar-sedeleenquantonãomorreu...Acarnefrescanãoeramuitoboaepoucocomemosdaquetrouxeramparaailha.Aforaalgunspedaçosdegordura,quederretemosparaservirdeazeitedeiluminação,orestodacarne,que icouexpostaàchuva e ao vento, só nos serviu para esterco. A língua, que era a melhor coisa, foi salgada eremetidaembarrisparaaFrançaaosenhoralmirante.”

JEANDELÉRY

•GOLFINHO

Uma das únicas referências à carne de gol inho aparece no relato dofrancês Jean de Léry. A tripulação do navio em que chegou ao Brasilapanhou 35 gol inhos, pescados com arpão de ferro emuito esforço dosmarinheiros. Léry conta que os ígados têm omesmo gosto de ígado deporco, mas que a carne fresca “é muito adocicada e pouco saborosa”. Adieta dos franceses incluiu também fetos de gol inho assados: “Como noventre de alguns desses peixes acharam-se ilhotes, que assamos comoleitão, creio que os gol inhos geram fetos como as porcas e não osreproduzem por meio de ovos como quase todos os outros peixes.Entretanto,sealguémduvidardoquea irmo,louvando-seantesnoslivrosdoquenaquelesqueviramaexperiência,nãoo refutarei,mas tampoucodeixareideacreditarnoquevi.”

“Na véspera de Natal [de 1554] vieram à proximidade do navio muitos peixes, a que chamamgol inhos. Pescamos tantos deles que durante alguns dias pudemos fartar-nos. Também para anoitedosSantosReisbrindou-nosoSenhorcompescariaabundante.ForadoqueDeusdomarnos

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dava,nãotínhamosmuitoparacomer.”

HANSSTADEN

•MAMÍFEROSESTRANGEIROS

Não era apenas de uma abundante variedade de caça que se provia amesa brasileira no nosso primeiro século. Nas principais vilas haviatambém fartura de animais trazidos da Europa. E aqui, como nos contaGabriel Soares de Sousa, alguns deles se deram muito bem – como asvacas. Relata entusiasticamente esse senhor de engenho, ao escreversobre a rápida reprodução do gado na Bahia: “As novilhas, como são deano, esperam ao touro e aos dois anos vêm paridas, pelo que acontecemuitasvezesmamarobezerronanovilhaeanovilhanavaca.”NaBahiahavia o enorme rebanho de Garcia D’Ávila, que talvez corroborasse aufana observação de Soares de Sousa. As vacas abasteciam a colônia deleite,doqualsefaziamanteiga“easmaiscoisasdeleitequesefazememEspanha”,ouseja,queijosedocesvariados.OpadreFernãoCardimcontacomo,naBahia,jantandoemumafazendadosjesuítas,comeu“requeijõesenatasquefaziamesquecerAlentejo”.

vaca

Havia também ovelhas e cabras de carne gorda, “mui sadia esaborosa”. Gabriel Soares de Sousa apreciava especialmente a carne dosanimaismaisvelhoseregistraquedoleitesefaziammanteigasequeijos.

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cabra

ovelha

Asporcas,nadescriçãoufanistadosenhordeengenhobaiano,pariam“in inidadedeleitões”,todosmuitotenrosesaborosos.Carnesadia,quesemandava dar aos enfermos, como se fazia com a carne de galinha. Umaressalva: os toucinhos não eram tão gordos como em Portugal, comexceção daqueles produzidos no Rio de Janeiro e em São Vicente, e quetalvezfossem“exportados”paraaBahiademodoachegarnasmesasdosgrandessenhoresdeengenhocomoGabrielSoaresdeSousa.

PASTÉISDEFÍGADODECABRITO

Cozinhem ígado de cabrito e ovos. Amassem tudo muito bem, dos ovos só as gemas,adicionandoàmisturacravo-da-índia,canelaempóeaçúcarqueadoce.

A seguir, tomem as tripas do cabrito, já bem lavadas, cortando-as em pedaços de uns

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quatrodedosdecomprimento,maisoumenos.Recheiemessastripascomamisturaacima,passem-nasemfarinhadetrigoelevem-nasa

fritar em gordura bemquente, colocando-as a escorrer, logo após, numapeneira compapelpardo.

Por último façam uma calda em ponto alto e passem por ela os canudinhos, que emseguidasãopostosasecar.

Sirvam-nospolvilhadoscomcanela.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

TIGELADADELEITE

Batammuitobemquatroovoscomcincocolheresdeaçúcar,cincodefarinhadecarimãeumapitada de sal. Em seguida untem umas forminhas de barro com bastante manteiga, ecoloquemnelas o creme, levando ao forno para assar, com um pouquinho demanteiga porcima.

AdaptadodoLivrodecozinhadainfantad.Maria

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Aves

•MACUCAGUÁ

Uma das aves mais apreciadas na mesa quinhentista era o macucaguá,tambémconhecidocomomacuco(Tinamussolitarius)ehojeameaçadodeextinção.Gândavo é oprimeiro adescrever a ave, e diz que sãomaioresque galinhas e têm “três ordens de titelas (peitos)”: “São mui gordas etenras, e assim os moradores as têm em muita estima, porque são elasmuito saborosas emais que outras que entre nós se comem.”Os demaiscronistascomparamotamanhodomacucaguáaodopatoesuaaparênciaàdeumfaisão,apesardeacinzentado.Todosenfatizamaboaquantidadedecarnequeaaveoferecia(“maiorqueumcapão”,diziaJeandeLéry)eofatodeporementre13e15ovosverdesegrandes.

“EstaaveémaiorquenenhumagalinhadePortugal;parece-secomfaisão,eassimlhechamamosportugueses,temtrêstitelasumasobreaoutra,emuitacarne,egostosa,põeduasvezesnoano,edecadaveztrezeouquinzeovos.”

FERNÃOCARDIM

Gabriel Soares de Sousa, o grande entendedor, explica que o peito étenro como perdiz, mas que o resto da carne é um pouco dura quandoassada,recomendando,porisso,queapreparassemcozida.NoséculoXVIaindanãoseencontramreferênciasaumpratoqueséculosdepoisfariaadelíciadosbrasileiros:acanjademacuco.

MACUCOCOZIDOEENSOPADO

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Levem a cozer o macuco temperado com sal, salsa, coentro, hortelã, cebola e um pouco devinagre.Assimqueestivercozido,retirem-nodoseucaldo,oqualécoadoepostoaferveremoutra panela. Nesse caldo ponham meia dúzia de ovos batidos, gemas e claras, ao qual semisturamaindaquatro gemas cozidas. Batam tudomuito bem, paraque adquirauma certaliga. Ponham o macuco numa travessa funda, sobre fatias de pão, e derramem por cima ocaldodeovos.Coloquemovoscozidosemvolta,epolvilhemcomcanela.

AdaptadodoLivrodecozinhadainfantad.Maria

•MUTUM

O sabor, segundo alguns, parecia-se com carne de peru, “muito bom” ou“excelente”. No tamanho, algo como um pavão. Pretos nas costas, asbarrigas brancas, comuma “crista de galo espargida de branco e preto”,dizia-sequeeramraros.Mashaviaquemcriasseemcasa,poiserammuitodomesticáveis.

Osovoseramumcapítuloàparte.Muitoalvos,dotamanhodeovosdepata, e “sarabulhentos”, ou seja, “tão crespos da casca como confeitos”, e“tão rijos que batendo um no outro, tinem como ferro”, conta FernãoCardim, o primeiro a descrevê-lo. A clara lembrava banha de porco e“enfastiava”muito.

Os mutuns, assim como os macucaguás, eram mortos a lechadas oucaçadoscomcães.

Existem aproximadamente dez espécies de mutum no Brasil, ave dafamíliadoscracídeoshojeameaçadadeextinção.

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•JACU

“Posso assegurar que não há melhor carne”, sentencia o francêsprotestante Jean de Léry, que identi ica três espécies: o jacutinga ( Pipilejacutinga), o jacupema (Penelope superciliaris) e o jacuaçu (Penelopeobscura), todas de plumagem negra e que, segundo ele, pareciampertencerà famíliados faisões (naverdade sãoda famíliadosCracídeos,dos gêneros Penélope e Pipile). Havia também quem achasse o jacuparecido com as “galinholas de Guiné”, que hoje chamamos de galinha-d’angola. Ambrósio Fernandes Brandão sustentava que os jacus erammuitomaissaborososqueasgalinhas,mesmo“quesejammuitogordas”,ea irmava que havia “grande multidão” dessas aves pelos “bosques ecampos”.Osíndioseramconsumidoreseospegavamnomatoa lechadas.Os portugueses, também adeptos, estavam tão familiarizados que oschamavamde“galinhas-do-mato”.

Com relação ao jacu, Gabriel Soares de Sousa faz as mesmasobservaçõesfeitassobreomacucaguá:apesardeopeitosermacioebomcomodeperdiz,edamesmacor,orestodacarneéduraparaserassada,eelerecomendavaquefossecozida,poisentãoficava“muitoboa”.

•PERDIZ

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Fernão Cardim diz que “nesta terra hámuitas espécies de perdizes queaindaquesenãopareçamde todocomasdeEspanha, todavia sãomuitosemelhantesna cor, enogosto, enaabundância”.O jesuíta, comovemos,eraumapreciadordessaspequenasetenrasaves,aocontráriodosenhorde engenho Gabriel Soares de Sousa, que, sempre tão pródigo noscomentáriossobreanimaisepeixes,éextremamenteeconômiconoqueserefere às aves, e praticamente ignora as várias espécies de perdizesbrasileiras, descrevendo sumariamente apenas duas, a inhambu(designaçãogenéricadessasaves,dafamíliadosTinamídeos,dosgênerosTinamuseCrypturellus,dasquaisexistemváriasespécies)ea inhapupé.Segundo Soares de Sousa, inhambu era uma ave da cor e do mesmotamanhodaperdiz,depésebicovermelhos,comum“grandepeito,cheiode titelas muito tenras e saborosas”. A inhapupé, ao contrário, era dotamanho de “uma franga”, punha muitos ovos, mas a carne era “muitodura”,eporisso,deveriasercomidacozida.AmbrósioFernandesBrandãonão era da mesma opinião e considerava as inhapupés as melhores detodas.Esobreosinhambus,dizia:“Nãoinvejamembondade,gostoesaboraostãoestimadosfaisõesdaEuropa.”

TIGELADADEPERDIZ

Partem-se em pedaços uma perdiz mal assada. À parte, numa caçarola, prepara-se umrefogado com azeite ou manteiga, cebola picada, cravo, pimenta e açafrão. Passam-se ospedaços da perdiz na farinha de trigo e em seguida arrumam-se na panela, onde já está orefogado. Toma-se vinagremisturado com água, e deita-se essamistura na panela, onde jáestáaperdiz,demodoqueatinjaomeiodorecipiente.Salagosto.Leva-seacozinharemfogobrando.

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DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Jean de Léry, um arguto observador de aves, identi ica oinhambuguaçu(Crypturellusobsoletus ), descrevendo-o como uma “perdizde grande porte, quase como as perdizes da França”, e o pequenoinhambumirim(Crypturellustataupa),quejulgavamuitosaboroso.

•POMBASEROLAS

Caça que se encontrava em “grande abundância nasmatas, nas praias enasmargensdosrioselagoas”,segundoJeandeLéry,queafirmaqueumadas espécies então conhecidas, o paiacuçu, “vale uma rola”. Comum namesabrasileiradaépoca,acarnedospicuís (rolinhas, Columbinapicui) edos picaçus (designação genérica para as pombas silvestres brasileiras)eraconsideradatenraesaborosaportodososqueescreveramsobreelas.Diz o autor doDiálogo das grandezas do Brasil que “as rolas sem conta,assazgordas”eramcapturadascompouquíssimotrabalho:“Eassim icamservindo,quasecomoasdomésticas,aosmoradoresdaterra.”

“Hánestaterramuitasespéciesderolas,tordosemelros,epombasdemuitascastas,etodasestasaves se parecemmuito comas dePortugal; e as pombas e rolas são em tantamultidão que emcertoscamposmuitodentrodosertãosãotantasquequandoselevantamimpedemaclaridadedosol,efazemestrondo,comodeumtrovão;epõemtantosovos,etãoalvos,quedelongesevêemoscamposalvejarcomosovoscomosefosseneve.”

FERNÃOCARDIM

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Conheciam-seváriasespécies.OpadreFranciscoSoaresfaladopicaçue de outras hoje di íceis de serem identi icadas, como o picaçuete, opicaçupitanga,oajuberabaeoipepotinga.GabrielSoaresdeSousarefere-se, entre outras, ao pairari, também conhecida como avoante ( Zenaidaauriculata),“dotamanho,corefeiçãodasrolas”,quesecriavamemcasa,ecujo peito era apreciado por ser “muito cheio e de boa carne”; descrevetambémojuriti(pomba-juriti,Leptotilarufaxilla),decor“aleonada”(fulva),“cujacarneémuitotenraeboa”.

PASTÉISDEPOMBINHOS

Tomemospombinhos já limposedêem-lhesunscortesnacarne,colocandodentro fatiasdetoucinho. Temperem-nos a gosto, levando-os ao fogo, a cozer. Façam amassa de pastelão ecoloquemdentroospombinhos,comcaldodevaca,decarneirooudegalinha,eumpoucodeagraço[sucodeuvaverde]oucaldodelimão.Cubramtudocomamesmamassadopastelãoelevemafornobrando.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

•PATO

Além das galinhas, trazidas pelos portugueses, os índios criavam patosnativos do Brasil, que chamavam de ipeca (Cairina moschata). SegundoJeandeLéry,essespatosnãoeramempregadosnaalimentaçãoindígena.Entretanto,CabeçadeVaca, aovisitaroutraspopulações indígenas, contaqueospatostinhamumadupla inalidade:“Alémdeseremutilizadosparacomer, servem para eliminar os grilos que existem por ali em umaquantidadeimpressionante.”

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Segundo Gabriel Soares de Sousa, eram abundantes nos rios e naslagoas, e além de parecidos com os da península ibérica, erammaiores.Gândavodizqueospatosegansosbrasileirosnãoerammenos“saborosose sadios” que os europeus, e que os moradores os tinham “em maisestima”.

•PAPAGAIO

Os índios apreciavam a carne. Os europeus, a princípio, estimavammaissua plumagem, suas variadas cores, além de sua habilidade em falar. Os

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papagaios foram uma das primeiras mercadorias brasileiras valorizadasna Europa, e atingiam um alto valor, sendo comercializados desde osprimórdios.Havia,segundováriosrelatos,umain inidadedessespássaros,assim como várias espécies. O que é pouco conhecido é o emprego dopapagaio na alimentação entre os colonos e viajantes doBrasil do séculoXVI.

Explica o padre José deAnchieta: “Os papagaios,mais abundantes doque aí [Portugal] os corvos, são de diversos gêneros, todos se podemcomer,unsajudamaprenderoventre,outros imitamvozeshumanas.”Ofrancês Jean de Léry confessa que achou a carne “um tanto dura”, masmesmoassimaaveestevepresentenocardápiodosmoradoresdaFrançaAntártica:“Comosabeaperdiz,nósacomíamossempre.”OpadreFernãoCardimgostava:“Éboacarne.”Tambémos inglesesapreciaramopetisco.WilliamDavies,umcirurgião-barbeirodeLondres,queparticipoudeumaviagemao rio Amazonas, nos conta: “Os papagaios sãomais abundantesaqui do que os pombos na Inglaterra, e de carne tão boa quanto a dospombos,eufreqüentementecomidela.”

“Nãoobstantea fome,duranteaqual,comojádisse, foramcomidostodososbugiosepapagaiosque trazíamos, guardara euaté entãoumadessasaves, grande comoumpato, bom falador edelinda plumagem, porque desejava com ela presentear ao senhor almirante; mas tal foi anecessidade,quenãopudeconservá-lamaistempoeteveamesmasortedasoutras. Jogadasforaaspenas,serviramocorpo,astripas,ospés,asunhaseatéobicoaduncodealimentodurantetrêsouquatrodiasparamimealgunsamigos.”

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JEANDELÉRY

Gabriel Soares de Sousa, o grande gourmet de nossos primeirostempos, gostava dos grandes ajuruaçus (também conhecidos porpapagaios-moleiros,Amazonafarinosa), “verdes, do tamanho de um pato,que se fazem domésticos e falam muito bem”. E explica por quê: “Sãomuitogordosedeboacarne,emuitosaborosos,mashãodesercozidos.”Segundo ele, também se comiam os coloridos ajuretés (papagaios-verdadeiros,Amazona aestiva), e, na falta de coisa melhor, tambémserviamde refeiçãoos curicas (Pionopsittacaica) eosmaracanãs (váriasespécies dos gêneros Propyrrhura, Diopsittaca e Aratinga), ambos decarnedura.

•EMAS

De carne dura,mas “muito gostosa”, segundoGabriel Soares de Sousa, ecomgosto de carne de vaca, segundo o padre Francisco Soares, as emas(Rhea americana) também eram valorizadas por seus grandes ovos. Ojesuíta observou que por serem “muito domésticas”, seria possível fazercriaçõesdessasgrandeseespaçosasaves,sugestãoquedemorariaséculospara ser acatada (as emas fornecem não apenas carne, mas tambémpenas e couro). Ainda segundo Francisco Soares, os índios acreditavamque morreriam se as criassem: “tinham agouro”, como se dizia naquelaépoca.

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“Chamam-se emas, as quais terão tanta carne como um grande carneiro, e têm as pernas tãograndes, que são quase até os encontros das asas da altura de um homem. O pescoço é muicompridoemextremo, e têma cabeçanemmaisnemmenos comodepata; sãopardas,brancas,pretasevariadaspelocorpodeumaspenasmui formosasquecáentrenóscostumamservirnasgorrasechapéusdepessoasgalantesequeprofessamaartemilitar.”

PERODEMAGALHÃESDEGÂNDAVO

•OUTRASAVES

O que mais encantava europeus e colonos, no que se refere às avesbrasileiras, era a sua imensa diversidade e suas diferentes emulticoloridas plumagens. Era hábito criar em casa tanto os papagaios,valorizadosporsuascoresepelacapacidadedefalar(português, francêse tupi), quanto belas aves dos mais variados tipos, canoras ou não.Algumas eram raras e caras, como os guigrajubas ( Guaruba guarouba),lindose tristespássarosamarelosquenão seachavam, segundoopadreFernão Cardim, “senão em casa de grandes principais”, objetos de luxodaqueles primeiros tempos. Os índios, ainda segundo o jesuíta, tambémalimentavamoprósperocomérciodeaves,edavamdeduasatrêspessoascomoescravosemtrocadeumquereiuá( Cotingamaculata)deplumagemazul e roxa. As coloridas penas eram apreciadas não só por índios, mastinhamummercadocerto tambémnaEuropa,ondeatingiamaltopreçoeonde iam enfeitar os chapéus da nobreza, dos ricos comerciantes e dascabeçascoroadas.

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tucano

Em meio a tantas “obras-primas” da natureza, para usar umaexpressão que os franceses empregavam com relação aos pássarosbrasileiros, é compreensívelque,nasdescriçõesquechegaramaténós,oaspecto estéticoe comercial prevaleça sobre o gastronômico. Mesmoassim,apesardenão tãoricascomoas referênciasaplantaseaanimais,temosumelencodasavesempregadasnaalimentação.

tucano

O tabujajá, ou maguari (cegonha brasileira,Ciconia maguari), deplumagembrancaecaudanegra,era,segundoGabrielSoaresdeSousa(oprimeiro a descrevê-lo), muito maior que um pato, tinha a carne dura,“masboapara comer”.Tambémdecarnemuitoduraemagra,o canindé(Araararauna ), ouararadebarrigaamarela, era consumidoporaquelesque,embrenhadosnomato,nãotinhamoutracoisaparacomer.Aelegantesaracura (Ludwigia repens), com suas longas pernas, era apreciada na

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mesaquinhentistaporsuas“tenrastitelas”etambémpelorestodacarne,igualmentemacia.

jaburu

Ostucanossãosemprecitadoscomadmiração,devidoasuascoreseaseubico,emboraAndréThevet,queofertouaoreidaFrançaumchapéucom as penas da ave, observe que “o tucano é incrivelmente disforme emonstruoso”. A carne desse monstro do Novo Mundo era consideradadura.Oúnicoadizerque“sãobonsparacomer”éopadreFernãoCardim.

Muito apreciados eram os pequenos urus (Odontophorus capueira),também conhecidos como capoeira. De cor preta e “bico revolto”, tinhamum peito generoso, “cheio de titelas” e carnudo, e eram todos tenros esaborosos“comogalinha”.

Ambrósio Fernandes Brandão, o autor do ufanista Diálogo dasgrandezas do Brasil , é um dos únicos a deixar registros do emprego dofeíssimo jaburu (Jabirumycteria) na alimentação. Descreve-o comomuitomaiorqueumpavão,esu icientementegrandeparasatisfazeroapetitede“meia dúzia de companheiros, posto que famintos, por ser carne assazsaborosa”.

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cegonha,outabujajá,ouaindamaguari

•GALINHASEPERUS

Na Europa do Renascimento, a carne da galinha não era um alimentocotidiano, mas uma comida especial, que se dava aos doentes – comopodemos observar pela receita doLivro de cozinha da infanta d. Mariaintitulada “Frangos para o hécticos” (tuberculosos) – ou era comida emdiasimportanteseporpessoasigualmenteimportantes.Omanjarbranco,umdospratosmaisrefinadosdaépoca,levava,comoingredienteprincipal,peitodegalinha.

frango

Agalinhafoiumdosprimeirosanimaiseuropeusaseremintroduzidosno Brasil, e já estava na armada de Pedro Álvares Cabral. Os índios se

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assustaram com o animal, que julgaram estranhíssimo. Mas logo já oestavam criando pelos matos adentro. Não comiam nem o bicho nem osovos, porém. Apenas usavam como moeda, para vender aos colonos eviajantes em troca de mercadorias. Conta o francês Jean de Léry: “Asgalinhas se multiplicaram entretanto de tal forma nesse país que hálocalidades ou aldeias pouco freqüentadas pelos estrangeiros onde poruma faca do valor de um carolus se tem uma galinha da Índia (galinha-d’angola), e por cinco ou seis anzóis se obtém três a quatro galinhaspequenas comuns.” Ainda segundo Léry, as galinhas-d’angola eramchamadasdearinham-açueasgalinhascomuns,dearinham-mirim.

peru

MANJARBRANCO

Cozinhe-se demoradamente um peito de galinha em água pura, de tal modo que se possades iarcomfacilidade.Emseguidacoloque-seessepeitodes iadonumavasilhacomáguafria.Tomem-se450gramasdearrozbemlavadoesecocomumpano,pise-se-omuitobem,ecoe-se-o numa peneira bem ina. Num tacho deite-se 1,4 litro de leite, adoçando-o com 200gramasdeaçúcar.Aesseleiteajuntem-seentãoopeitodagalinha,umpoucosocado,afarinhade arroz e sal a gosto. Leve-se tudo ao fogo brando, mexendo sem parar. Quando o cremeestiverquasecozido,ébomprová-lo,paraversenecessitademaisaçúcar.Depoisdeprontotire-seotachodofogo,continuando-seabaterocremepormaisalgunsminutos.Sirva-seemtigelinhas,comaçúcarporcima.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

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FRANGOSPARAOSHÉCTICOS

Criem separados uma dúzia de frangos, cujo único alimento consiste de titela [peito] decágado, cozida ou cevada; esse alimento deverá ser sempre fresco. Diariamente cozinhe umfrango empouca água, atédesmanchar. Em seguida espremaa carne, que saia todoo suco;coeocaldoe leve-onovamenteàpanelacomumacolherdeaçúcarrosado.Deixe ferverumpouco,coenovamente,eestaráocaldopronto.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Criadasnasvilase sertõesbrasileiros,nossasgalinhaseram, segundomuitoscontam,“maioresemaisgordasqueasdePortugal”,alémdemuitosaborosas.Etambémnosgalosnãotínhamosrival,segundoGabrielSoaresdeSousa.Aúnica exceçãoéodepoimentodopadreFernãoCardim,que,apesardeadmitirqueasgalinhasdaquierammaioresqueasdaEuropa,afirmouque“nãoéacarnedelastãogostosacomonoReino”.

Haviapomboseuropeus,masaindanãoconseguiamsemultiplicar,poisseus ovos eram atacados por cobras. Patos e gansos, “excelentes decomer”, também se deram muito bem nos trópicos e forneciam carne“gorda e saborosa”. Tínhamos tambémmuitos “galos do Peru”, que hojeconhecemos simplesmente por peru (Meleagris gallopavo), vindos daAméricaespanholaeperfeitamenteadaptadosporaqui,decarne“gordaesaborosa”,e,segundoCardim,presentesemtodososbanquetesdaépoca.

GALINHAALBARDADA

Asseumagalinhamuitobemecorte-aempedaços.Passeentãoospedaçosemovobatidoeleve-osa fritaremmanteiga.Tome fatiasdepãopassadasnoovoe frite-asemmanteiga, talqual a galinha. Passe tudo em açúcar, e arrume numa vasilha, as fatias de pão no fundo.Polvilhecomaçúcarecanela.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Aseguirvãoduasreceitasdegalinha(amouriscaeaalbardada),que

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só se preparavam na casa de “principais”, como se costumava dizer naépoca,eemocasiõesmuitoespeciais.Essasreceitas,doLivrodecozinhadainfantad.Maria, do séculoXVI, aparecem tambémno livrode cozinhadeDomingos Rodrigues, publicado em 1680, e ainda eram preparadas, nasgrandeseabastadascasas,duranteoséculoXIX.

GALINHAMOURISCA

Tome uma galinha crua e faça-a em pedaços. Em seguida prepare um refogado com duascolheresdemanteigaeumapequenafatiadetoucinho.Deitedentroagalinhaedeixe-acorar.Cubraagalinhacomáguasuficienteparacozê-la,poisnãosehádedeitar-lheoutra.Estandoagalinhaquasecozida,tomecebolaverde,salsa,coentroehortelã,piquetudobemmiudinhoedeite na panela, com um pouco de caldo de limão. Acabe de cozinhar a galinhamuito bem.Tome então fatias de pão e disponha-as no fundo de uma terrina, e derrame sobre elas agalinha.Cubracomgemasescalfadas[escaldadas]epolvilhecomcanela.

DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

•ALCATRAZ

Nas grandes fomes que naus de várias nacionalidades padeciam nosmaresdoSul,comia-sedetudo.Entreospetiscosdeocasiãoencontrava-seoalcatraz,tambémconhecidocomoatobá(Sulaleucogaster),avemarítimaquedeunomeaoarquipélagodeAlcatraz,emSãoSebastião,estadodeSãoPaulo, devido à imensa população dessas aves no local. Pero Lopes deSousa, a 10 de agosto de 1531, conta como, em sua navegação dereconhecimentopelacostadoBrasil,toparamcomumailha,acaminhodeSão Vicente, provavelmente do arquipélago de Alcatraz, onde acharamtantosalcatrazes “quecobriama ilha”.PeroLopes foi atéanaucapitâniapegar seu irmão, Martim Afonso de Sousa, e juntos desembarcaram:“Matamos tantos rabiforcados e alcatrazes que enchemos o batel deles.”Suprimentosuficienteparaalgunsdias.

Uma das mais curiosas referências à ave marítima é a do corsárioinglês Richard Hawkins. Com a tripulação fraca e desnutrida, e sem

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conseguir alimentos das povoações costeiras, onde eram recebidos comoinimigos, Hawkins ancora no mesmo arquipélago e faz com que seushomensealgunsmédicosdesembarquem.Paracuraroshomens,ediantede uma multidão de pequenos alcatrazes em seus ninhos, os médicosinglesesmandaramprepararumapoderosasopa.Ferveramos ilhotesdealcatraz com porco em conserva e engrossaram o caldo com farinha deaveia.Comessepoderosocaldo,puderamserestabeleceretomarorumodoestreitodeMagalhães.

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Peixes

•CAMURUPIM

Opeixecamurupim(Megalopsatlanticus)épelaprimeiravezdescritoporGândavo,grafadocomocamboropim,em1576:“Sãoquasetamanhoscomoatuns. Estes têm umas escamas muito duras e maiores que os outrospeixes, tambémsematamcomarpões.”Porcausadasgrossasescamas,oarpão precisava atingir determinado ponto vulnerável do peixe parapoder capturá-lo. Gândavo fala ainda da necessidade de o arpoadorcolocar-se “em alguma ponta ou pedra, ou em outro qualquer postoacomodadoaessapescaria”.Ocronistaexaltasuasqualidades:“Éumdosmelhores peixes que há nestas partes, porque além de ser gostoso, étambémmuito sadio emais enxuto de sua propriedade que outro algumquenaterrasecoma.”

CONSERVADEPEIXE

Ponham em conserva de vinho, vinagre, alhos, oregãos e sal, duas postas de peixe quequiserem, por espaço de duas horas. Tirado o peixe da conserva, assado, e posto no prato,façam-lhe um molho de uma pouca de conserva em que esteve, com um golpe de azeite,deitando-oporcimadopeixe,mande-seàmesa.

Estaconservaserveparatodosospeixes.

DaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

O padre Fernão Cardim acrescenta outras informações sobre ocamurupim, também conhecido como tarpão, “um dosreais e estimados[peixes]nestaspartes”.SeGândavohaviaditoqueé“maisenxutodesuapropriedade”, Cardim a irma que sua carne “é toda de febra em folha,cheiadegorduraemanteigaedebomgosto”,emboraa irmetambémque,por causa de suas espinhas, “é perigoso ao comer”. Fazia-se muitamanteiga de camurupim, que era usada para frigir outros pescados.Quantoaotamanhodessepeixe,Gândavoocomparaaoatum,masCardim

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viualgunsbemmaiores,poisdizque“épeixecompridodeatédozeetrezepalmos,edeboagrossuraetêmbemquefazerdoishomensemlevantaralgunsdeles.”

GabrielSoaresdeSousacorrobora,afirmandoqueopeixeétãograndeque“doisíndiosnãopodemcomumàscostasatadonumpau”.OcronistadaBahia é o primeiro a falar das ovas “tamanhas que enchemumpratograndecadaumadelas.”

EmCousasnotáveisdoBrasil ,FranciscoSoaresreiterainformaçõesdoscronistas anteriores, mas acrescenta que o camurupim “tem a escamacomoapalmadamãograndeesepodefazerdelasboasarmas”.

Jean de Léry fala do camurupim ao tratar das danças dos índios: “Ocamuroponi-uassu é um peixemuito grande a que os tupinambás fazemmençãoemsuasdançasecantos,repetindomuitasvezes:‘pirá-uaçuauéhcamurupií-uaçu...’,oquequerdizer‘bomdecomer’.”

Em seuDiálogodasgrandezasdoBrasil, AmbrósioFernandesBrandãonão se limita a escrever sobre o tamanho e a utilidade desse “pescadograndeedebomcomer”.Ocronistaencanta-secomoquevêentreessespeixes: “Vi fazeruma cousa estranha, naqualmemostraramclaramentehavertambémamorentreestesmudosnadadores.”

O camurupim espalha-se dos Estados Unidos até o Brasil, e tambémnas costas africanas e do Atlântico europeu. Aqui, é mais abundante noNordeste. Como se percebe pelas descrições dos cronistas, não era umpeixe conhecido dos europeus, mas muito apreciado pelos índiosbrasileiros.

•BIJUPIRÁ

GabrielSoaresdeSousa,profundoconhecedordascoisasdoBrasil,a irma

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serobijupirá(Rachycentruscanadus)“omaisestimadopeixedoBrasil.”Ocronista o exalta na hipérbole tautológica “e tem sabor saborosíssimo”.Saborosas também são “as ovas amarelas, e cada uma enche um pratogrande”. Esses tão admirados peixes “andam pelos baixos ao longo dapraia, onde esperam bem que os arpoem”. Segundo o cronista, tambémsão pescados com anzol, mas para isso é necessário que o pescadordesloque a isca para atraí-los. Como poucos índios conheciam esseexpediente, poucos bijupirás eram pescados. Isso, é claro, na opinião doilustrecronistae,peloquevemos,experientepescador.

Quemprimeiroescreveusobreessepeixe foiopadreFernãoCardim,queoconsiderousemelhanteaosolhodePortugal:“Muitoestimadoetidopor peixe real; émuito sadio, gordo e de bom gosto, o corpo é redondo,preto pelas costas e branco pela barriga.” Também Francisco Soares vêsemelhançasentreosolhoeobijupirá.

ESCABECHE

Ferva-seemumatigelaumpoucodevinagredestemperadoemágua,umpoucodeazeite,sale folhas de louro, sumo de limão e de lima e gengibre pisado com asmais espécies pretas.Quando isto tiver fervido, tempere-se do que lhe for necessário, provando-o, para que nãofiqueforteoescabeche.Esempresefaráaquantidadeconformeforadopeixe.

DaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

N oDiálogo das grandezas do Brasil , o peixe, registrado vejupirá, é omaislouvado:“Podelevarapalmaatodosembondade.”FranciscoSoaresassegura que tem “soberano sabor”, e apreciava sobretudo a cabeça,“cujosossossãomuitotenrosedesfazem-senabocaemmanteiga”.

Como vemos, entre o camurupim e o bijupirá não havia unanimidadesobre qual o melhor peixe nacional. Velhas contendas gastronômicas doBrasilcolonial.

•TAMBUATÁ

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Oprimeiroa falardessespeixes foiGândavo,queoschamade tamuatás.São de água doce, do tamanho de sardinhas, e se destacam dos demaispela carne de uma cor amarelo-alaranjada muito forte. Estimados pelosíndios por seremmuito saborosos, hoje são ingrediente de um saborosotucupidoNortebrasileiro.

Gândavo,comoosdemaiscronistas(GabrielSoaresdeSousa,FranciscoSoares,AndréThevete JeandeLéry),descreveasescamascomque taispeixes se armam como lâminas de proteção. Com exceção de AndréThevet, que provavelmente nunca o experimentou – já que escreve“parece tratar-se de um peixe bom de comer” –, os outros demonstramconhecimento e aprovaçãodo sabor do tambuatá. Gândavoopina: “muitosaboroso”;GabrielSoaresdeSousa:“muitogostosoesadio”;JeandeLéry:“acarneétenraemuitosaborosa.”

“Emsuma,trata-seeste[CaboFrio]deumlugaraprazívelefértil.Equandosepenetranointerior,depara-secomumaextensaplanície,cobertadeárvoresdiferentesdasnossasdaEuropaecortadapor belos rios piscosos, de águas maravilhosamente límpidas. Entre os peixes destes rios,descrevereiumquepodeserconsideradocomoverdadeiramentemonstruoso,considerandoquesetratadeumpeixedeáguadoce.Constadestevolumesuagravura,sendoeledefatotalequalnelaorepresentamos. Seu comprimento e seu volume são pouco menores que os do nosso arenque. Érevestidodeplacas,desdeacabeçaatéacauda,assimcomoumpequenoanimal terrestrequeosselvagenschamamdetatu.Temacabeçabemmaisvolumosaqueocorpoepossui trêsossosnaespinha. Parece tratar-se de um peixe bom de comer, ou pelo menos é isto o que pensam osselvagens,queochamamemsualínguadetamuatá.”

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ANDRÉTHEVET

Éinteressanteobservarqueatendêncianaturalque levaoscronistasa estabelecerem comparação entre as novidadesdoBrasil e as coisas daEuropanãoocorreemrelaçãoao tambuatá ( Callichthyscallichthys ), peixecoberto de placas ósseas duras. O animal a que o comparam é obrasileiríssimo tatu. Isso acontece em Gândavo – “andam armados damaneiradostatus”–eemLéry:“comoumpequenoanimal terrestrequeosselvagenschamamdetatu”.

•OLHO-DE-BOI

Ospeixeseramtãomaisapreciadosquantomaisgordoseram.VejaoquediziaopadreFernãoCardimsobreoolho-de-boi( Seriola lalandi), queeleachavaparecidocomosatuns:“Émuitogordo,temàsvezesentrefolhaefolhagorduradegrossuradeumtostão;tiram-se-lhelomboseventrechascomo aos atuns, e deles se fazmuita e boamanteiga, e lhe tirambanhascomo a um porco.” E resume: “É peixe estimado, e de bom gosto.” Alémdisso tinha olhos “propriamente de boi”, daí também seu nome, e eramsaborosos. A banha dos peixes, como vemos, era um ingrediente muitoapreciadonacozinhacolonialdenossoprimeiroséculo.

•PEIXE-SERRA

Chamado pelos índios de araguaguá, com pele e aspecto de tubarão, eraconsideradoumpeixedecarne“seca”.Costumava-secortá-loemtassalhosedepoiseraseco.Opeixe-serra( Pristismicrodon)eramuitousadoparaaalimentação da “gente de serviço”, ou seja, de escravos e demaisempregados. Os grandes ígados serviam para óleo de candeia e para acalafetaçãodebarcos.

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“Nestemarhápeixesvoadores,assimcomooutrospeixesgrandesemaravilhosos,baleiaseoutrosque se chamam Schubbut, porque têm na cabeça um grande disco com o qual, dizem, podemtornar-semuito perigosos e daninhos com outros peixes com os quais se enfrentam. É um peixegrande emau. Tambémhá outros que têmumosso coma formade uma faca, e que em línguaespanhola se chamam peixe-espada; outros têm serras, que também são grandes, e se chamampeixe-serra,assimcomomuitosoutros,estranhosegrandes,quenãopossodescrevê-lostodos.”

ULRICOSCHMIDEL

•CARAPITANGA

Alguns eram grandes como pargos, outros um pouco menores, e todoseram vermelhos (como diz seu nome tupi,pitanga). Muito apreciados,principalmente os “gordos”, e considerados muito sadios, icavamespecialmentesaborososquando“salpresos”,istoé,salgados.

Contaocosmógrafo francêsAndréThevetque,chegandoaAraruama,na capitania do Rio de Janeiro, em um canal que liga a lagoa ao mar,encontraram “diversas espéciesdepeixesdeboaqualidade, destacando-seas‘mulatas’,quesãotantasquedecertafeitavimosumselvagempegar

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maisdemildestepeixecomumsólançoderede!”Mulataéumdosmuitosnomesdessebelopeixevermelho.

Sob o nome genérico de carapitanga, também conhecido comovermelho (Lutjanos vivanus) ou cioba (Rhomboplitesm aurorubens ),encontram-seváriospeixesdafamíliaLutjanidae.

CARAPITANGAEMGIGOTE

Depois de cozido um carapitanga, piquem-no, e ponham-no a ferver emuma frigideira comazeite,vinagreepimenta.Logoqueacabardeferver,mandem-noàmesa.

Estegigoteserveparatodopeixe.

AdaptadodareceitadeCibaemGigotedaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

•PURÁ

Também conhecido como puraquê ou poraquê (que em tupi signi ica“fazer dormir”, “entorpecer”), é um peixe-elétrico ( Electrophoruselectricus), porém comestível, uma das maravilhas do Novo MundodescritaspelopadreFernãoCardim:“Temtalvirtudequequemquerqueotoca logo icatremendo;tomam-secomredesdepé,esesetomamcomredes demão todo o corpo faz tremer, e pasmar com a dor, masmortocome-se,enãotempeçonha.”

•PANAPANÁ

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Uma espécie de cação (Sphyrna zygaena), tem na ponta do focinho uma“roda de meio compasso de palmo e meio e de dois palmos”, e grandeígado como os tubarões. “Comem-se os grandes secos em tassalhos e ospequenos frescos, e são muito gostosos e leves, frescos e secos”, a irmaGabriel Soares de Sousa. O francês André Thevet, que descreve o peixecomoumdosmaisimpressionantesemonstruososquetinhavisto,dizque“acarnenãoéládasmelhores”,tendoumgostoquelembraadocação.

“A imdenãoalongarmuitooassunto,descrevereiespecialmentealgunsmonstruosospeixescujasgravuraspodemservistasnestelivro,comoporexemploopanapaná,cujapeleésemelhanteàdocação, grosseira e áspera como uma lixa. Este peixe possui seis fendas estreitas de cada lado dagoela,dispostasdomesmomodocomoasda lampreia.Acabeçaé talqualsevêrepresentadanagravura. Os olhos icam quase nas extremidades da cabeça, a um pé emeio de distância um dooutro.Trata-sedeumpeixebastanteraro.”

ANDRÉTHEVET

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•PIRAMBÁ

Erachamadodepeixe-roncador,poisosíndiosoidenti icavampeloronco,que se ouvia de cima d’água. Conta Fernão Cardim que os pirambás(Conodonnobilis) tinhamdeoito anovepalmos e eramde “bomgosto” eestimadosnasmesascoloniais.Asduaspedrasencontradasnabocadessepeixeeramusadaspelosíndioscomopingentesdecolares.

•PEIXE-PORCO

Chamado de maracuguara pelos índios, ganharam este nome emportuguêspor “roncarem”comoumporcodebaixod’água,e são tambémconhecidos como cangulo (Balistes carolinensis ). Segundo Gabriel Soaresde Sousa, tinham o tamanho e a aparência dos sargos, porém maiscarnudose“tesos”,edebomsabor.Tambémosgrandesegordos ígadoseramapreciadosnaculináriaquinhentista.

•AIMORÉSEAIMOREUÇUS

Freqüentesnavazantedosrios,pertodomar,osprimeirosparecidoscomosentãofamososxarrocosdePortugaleosoutroscomoseirós(enguias)deLisboa, porémmenoresmas igualmente escorregadios.Ambos tinham

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carne “mole”, mas muito gostosa quando cozida ou frita, e eramconsideradosmuitolevesesadios.Asovaseramtidascomosaborosasmaspeçonhentas, ou seja, davam um mal-estar passageiro; mesmo assim,muitosascomiam.

Osaimorés–ouamorés–sãoprovavelmenteo Bathygobiussoporator ,freqüente nas poças de marés. Os aimoreuçus, ou aimoré-guaçus(Chonophorustajacica)sãoumaespéciedemoréia.

PEIXEFRITO

Tomememumatigelapequenademanteigaeponhamaderreter,evãofrigindotodoopeixequequiserem.Depoisdefrito,façam-lheomolho,pondomanteigaemumatigelanova,evãomexendocomumacolher,paraque senãocorteaditamanteiga, e lhedeitemduasou trêsgemasde ovos, conforme a quantidadedopeixe, sumode limão, e deitem tudo em cimadopeixe.Ecomramosdesalsaerodelasdelimãoporcimamandemàmesa.

Estemolhosefaztambémparapeixecozido.

DaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

•PARATI

Capturavam-se milhares de paratis (Mugil curema), de uma só vez,usando-se um cercado de madeira que fechava a entrada dos rios.Identi icados pelos portugueses com as tainhas (Mugil platanus), osparatis-fêmea saíam do mar e subiam os rios para desovar – na épocachamada de piracema pelos índios e descrita por vários cronistas –, equandovoltavamviam-sepresos,eeramimediatamentemortos,salgadose secos, em um dia inteiro de trabalho ininterrupto. Um espetáculo que,segundo o padre Francisco Soares, “é para ver”. Esses peixes salgadoseramdestinadosà alimentaçãodosescravos, assimcomoaspostas secas

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depeixe-serra.

“Nestetempoprocuram[os índios]umaespéciedepeixesqueemigramdomarparaascorrentesdeáguadoce,paraaídesovar.Estespeixessechamamemsualínguaparatiseemespanhol lisas.Nessa época empreendem eles em geral uma excursão guerreira, a im de melhor poderemaprovisionar-se de víveres. Pescam grande número de peixes com pequenas redes. Também osatiramcom lechasetrazemmuitosassadosparacasa.Fazemtambémumafarinhaaquechamapiracuí.”

HANSSTADEN

JeandeLérycontaqueos índiosospescavamà lechadas,quandoosparatissubiamosrios,equeacarneeraconsiderada“muito friável”, istoé,semgordura,epor issocostumavammoqueá-losereduzi-losa farinha.Segundo Léry vários tipos de peixes eram torrados sobre o fogo, e emseguida esmagados, até serem reduzidos a farinha, que então era bemsecaa imdequeseconservassepormuitotempo.Essasfarinhasdepeixeeram comidas juntamente com a farinha de mandioca. No entanto, ofrancêspreferiaosparatisassadosoucozidos,comotambémos índiososcomiam.

•ALBACORA

Estimava-se sobretudo as enormes albacoras (Euthynnus alletteratus ,Thunnusalbacares), consideradasdosmelhorespeixesdomar, “de carnetão friável quanto a da truta”. Mesmo estando em alto-mar e, portanto,“semoscondimentosnecessáriosparaprepará-lo”,contaJeandeLéry,aspostasdealbacoras foramtemperadascomsaleassadasnabrasa, tendo

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resultadonumprato “excelente e saboroso”.E completa: “Seos senhoresgulososperdessemomedoaomare fossemaostrópicosapanhá-los,poistal peixe não se aproxima das praias a distância su iciente para quepossamospescadoresapanhá-los,etrazê-lossemquesecorrompa,seossenhores gulosos osmandassempreparar comomolho daAlemanha oudequalqueroutromodo,certamentelamberiamosdedos.”

Outro francês, André Thevet, também considerava as albacoras osmelhorespeixesdomundo:“Suacarneéótima,senãomesmoamelhordetodasascarnesdepeixedeáguasalgada,quersejadosmaresocidentais,quersejadosorientais.”

•MORÉIA

Fernão Cardim, geralmente econômico em comentários gastronômicos, éenfático:“Sãomuitogordos,sabemaleitão”–umelogiosupremonaquelestemposemquesedesconheciaosefeitosnocivosdocolesterol.Esseleitãodomar, no paladar do padre jesuíta, era, segundo os índios, produto docruzamento com cobras, e, ainda segundo o depoimento de Cardim,aleijavamuitagente:“Hámuitoshomensaleijadosdesuasmordeduras,delheapodreceremasmãosoupernasondeforammordidos.”

Comíamos,mastambéméramoscomidos.O caramuru, uma espécie de moréia, peixe ósseo da família dos

Muraenídeos,pode terdadoseunomeao famosoCaramuru,oportuguêsDiogoÁlvares,casadocomaíndiaParaguassú,contrariandoatesedefreiSantaRitaDurãodequeonometeriasidodadoemfunçãodeumtirode

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mosquetão e da subseqüente interpretação dos índios, que lhe teriamchamado de “ ilho do trovão”. Trata-se de uma hipótese, digamos,ictiológica.

•TUBARÃO

Diz Gabriel Soares de Sousa que os índios gostavam muito da carne doiperu, que era abundante no mar da Bahia. Os colonos não eramapreciadores.A carnedo tubarão,depoisde seca, eradestinadaà “gentedosengenhos”,aosescravos.Osenormes ígadosrendiammuitoóleoparacandeiaeparaosengenhos.

Testemunho contrário dá o cosmógrafo francês André Thevet, queescreve sobre o que viu na então França Antártica, atual Rio de Janeiro:“Os selvagens entram na água para pescar esse terrível peixeinteiramente nus, como aliás sempre estão. Não obstante, temem-noextraordinariamente,enãosemrazão:quandoesteanimalconseguepegá-los, arrasta-os para o fundo e os despedaça; ademais, onde quer quemorda,semprearrancaumpedaço!Porissoosselvagensevitamcomê-lo,mas se porventura o pegam vivo (o que fazem às vezes por vingança),matam-noaflechadas.”

“Há muitos e de muitas castas; japerujaguara é muito ruim, tem sete ordens de dentes muitohorrendos; servem estes dentes para lechas, e tal há que corta pela canela com os dentes uma

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perna, e assim se achou em meu tempo aí dentro da Bahia, na barriga de um que um homempescou,umapernacomumameiacalçadeum inglês, e foique, indo inglesesàBahia,umanossaembarcaçãoarremeteuaumasua lanchaeameteuno fundoematouseisousetedos ingleses,equatroficaramvivos,edealgumdaquelesfoiapernaqueseachounabarrigadotubarão.”

FRANCISCOSOARES

Os europeus também não gostavam de tubarão. Conta Jean de Léryque tal carne só era consumida pelos marinheiros em caso de extremanecessidade e na ausência de peixemelhor. “Esses tubarões não servemdealimentoenãofazemsenãoomal”,declara.

•ARRAIA

HavianoBrasilmuitaarraianosmares,etodaseramcomidas.Suasváriasespécies, grandes ou pequenas, eram todas, como diz Gabriel Soares deSousa, “muitosaborosasesadias”. JeandeLérydiziaqueasnossaserammaiores que as da Normandia, da Bretanha “e de outros lugares daEuropa”. Perigosas e venenosas, causavam danos aos pescadores, comoconta o francês: “Um dia apanhamos uma e ao colocá-la na embarcaçãoaconteceu picar um companheiro nosso na perna; esta logo se tornouvermelhaeinchada.”

“Neste rio [baíadeGuanabara]há tambémgrandeabundânciade raiasdeumaespécie diferentedasnossas:sãoduasvezesmaislargasemaiscompridas,comacabeçachataealongada,emcuja

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extremidade existemdois longos cornos, cadaqual de umpé de comprimento, nomeio dos quaisficamosolhos.Têmseisfendassoboventre,todaspróximasumasdasoutras,eumacaudadedoispésdecomprimento,delgadacomoadeumrato.Osselvagenspornadacomeriamestesanimais,pelamesmarazãoporquetambémnãocomemacarnedastartarugas:comoestepeixecaminhamuito vagarosamente sob as águas, tornar-se-iam lentos como aqueles que o comessem,transformando-se empresa fácil do inimigo, impedidos que icariamde correr com ligeireza.Nalínguadosindígenas,araiaédenominadainevoneá.”

ANDRÉTHEVET

•PEIXE-VOADOR

Era a comida voadora. Nos navios, em alto-mar, esses “galantes” epequenospeixes, de “olhosmuito formosos” e asasprateadas, alegravamosmarinheirosaocaíremnoconvésouentraremvoandopelasjanelasdoscamarotes.Alémdebonitos, eram “bonspara comer”.Uma festaemalto-mar.

OfrancêsJeandeLérysóacreditounelesdepoisdeultrapassaralinhadoEquadorevê-loscomosprópriosolhos: “Apanhamospeixes-voadorescujaexistênciasemprejulgaraserpetademarinheirosequenarealidadeécerta.”

“Essespeixessãoabundantesnafaixacompreendidaentreos10grausaquémealémdoEquador.Pode-sevê-losvoandoalto,semprefugindodealgumperseguidorávidoporcomê-lo...”

Especialmenteànoite,écomumseremavistadosenormescardumesdepeixes-voadores,sendo

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oseunúmerotãoexageradoquemuitosdelesestãofreqüentementechocando-secontraasvelasdonavio,caindodepoisnoconvés.

ANDRÉTHEVET

O cosmógrafo francês André Thevet descreve dois tipos de peixes-voadores.Umgrande comoumarenque, comquatro asas, duas grandes,como as demorcego, e ainda duasmenores, perto da cauda. O segundotipo, chamados de pirauena pelos índios, diz ele, “lembra uma grandelampréia”, e seu vôo é comparado ao de uma perdiz. A espécie menor,segundoThevet, “voamelhoremaisaltoqueagrande”.A carnedosdoiseraconsiderada“delicadaesaborosa.”

Os peixes-voadores pertencem à família dos Exocetídeos, sendoconhecidasalgumasespécies,comooHirundichthysaffinis, oDactylopterusvolitanseoExocoetusvolitans.

“Talcomonaterrafazemcotoviaseestorninhos,cardumesdepeixessaíamdomareseerguiamvoando fora da água cerca de cem passos e quase à altura de uma lança. E como aconteciafreqüentemente baterem alguns nos mastros de nossos navios, facilmente os apanhávamos noconvéscomasmãos.Estepeixe,conformeoqueobserveinaidaenavolta,édeformasemelhanteaoarenque,emboraumpoucomaiscompridoeredondo;tempequenasbarbatanasnasfaces,asasimitantesàsdomorcego,quasetãograndesquantoocorpo,eédemuitobompaladar.”

JEANDELÉRY

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•TAINHASEOUTROSPEIXESJÁCONHECIDOS

Era grande a fartura de peixes no mar, como testemunham todos oscronistas. Especialmente ilustrativo é o trechododiário de navegaçãodePero Lopes de Sousa relativo ao dia 16 de outubro de 1531, numa ilhajunto ao cabode SantaMaria: “Fomos comos batéis fazer pescaria e emumdiamatamosdezoitomilpeixes,entrecorvinasepescadaseanchovas;pescávamos em fundo de oitobraças; quando lançávamos os anzóis naágua,nãohaviaaívagarderecolherospeixes.”

bagre

xaréu

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socuri

linguado

Um dos mais abundantes e mais aproveitados pela população era atainha. Peixe comumnos países atlânticos, tinha a virtude, como alerta opadre Fernão Cardim, de combater veneno de cobra: “A tainha fresca,posta a carne dela emmordedura de cobra, é outro unicórnio”, ou seja,umapanacéia.Eram“infinitas”epescadasemredes.

Havia aqui também, como no Reino, muitas garoupas, peixes-agulha,pescadas, sardinhas, albacoras, chicharros, cavalas, corvinas, bonitos,dourados, xaréus, cações, bagres, anchovas, além de saborosas e gordasmoréias.En im,tudoqueosportuguesesjáestavamacostumadosateremsuasmesas.

Contam-sealgumaspeculiaridadessobreosdaqui.Osnossoslinguadosprecisavamseraçoitadosantesdeseremcozidosouassados,paraquesuacarne icassemais consistente e rija, e assimmelhor para comer; se nãofossemsubmetidosaessasova,ficavammoleseinsossos.

“Tãograndeéacópiadosaborosoesadiopescadoquesemata,tantonoalto-marquantonosriose baías desta província, de que se bene iciam osmoradores em todas as capitanias, que esta sófertilidade bastara para sustentá-los abundantissimamente, ainda que não houvera carnes nemoutrogênerodecaçanaterra.”

PERODEMAGALHÃESDEGÂNDAVO

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As lixas salgadas eram comida de escravos e para “matalotagem dagentequehádepassaromar”,eos ígadoseramusadosparaofabricodeóleo. Eram saborosíssimos os xaréus dos mares da Bahia, que os índioschamavam guiári, principalmente os gordos, considerados muito sadios,assimcomooslevesegostososbagres.Eramespecialmentevalorizadosospequenos cações, chamadosde socuri pelos índios.Abundantesno litoralbrasileiro,eramtidospor levesesaborosos, iguaisaosquesecomiamnaEspanha.

“Nas vizinhanças do Equador encontra-se uma tal abundância de peixes de incontáveis espécies,oferecendoumespetáculomaravilhosoquandoaparecemàtonad’água.Tiveaoportunidadedevê-los quando faziam tal escarcéu ao redor de nossos navios que só com grande di iculdadeconseguíamosescutaroqueoutrapessoanosdizia.”

ANDRÉTHEVET

A fartura era muita e a pescaria, uma diversão. Conta o padreFranciscoSoaresque,aojogarcincoanzóis,pescoucincopargos“depalmoemeio,doispalmos”, semnenhumesforço, tal era aquantidadedelesnomar.OmesmopadreobservavaqueassardinhasdaquinãoeramtãoboascomoasdePortugal,masqueasmelhoreseramasdoRiodeJaneiro.

Uma curiosidade: enquanto na Europa evitava-se dar peixe aosdoentes, por ter famade causar sarna e “outras enfermidades”, aqui eraum alimento especialmente recomendado para os acamados. ComoesclareciaCardim:“Todoestepeixeésadiocánestaspartes,quesecomesobreleite,esobrecarne,etodaumaquaresma,edeordináriosemazeitenemvinagre.”OucomofestejaAnchieta: “Nesta terraospeixessãomuitosadios,podem-secomertodooanoaténadoença,semmalparaasaúde.”

•PEIXINHOSDEÍNDIOS

Pequeninosefáceisdetomar,naspoçasdasmarésvazantes,eramiguariatipicamente indígena. Enchiam-se os balaios de mirucaias (talvez aBairdiella ronchus ), piraquiras, de redondinhos carapiaçabas ( Chaetodonstriatus) e de piquitingas(manjubas). Estes últimos eram assados aosmilhares,embrulhadosemfolhaspostasembaixodasbrasas,edepoisde

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assadosformavamumamassacompacta,comaspectode“maçaroca”.

•PEIXESTOMADOSEMREDES

Destaca-se, entre os muitos peixes que surgiam nas redes do Brasilquinhentista, além das onipresentes tainhas, o peixe-galo (Selenesetapinnis), chamado pelos índios de zabucaí, um dos mais apreciados,tantopelasuaaparência(“alvacento,delgadoelargo”),suabocapequenaesuadelicadacristanacabeça,quantoporserleveesaboroso.

O senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa descreve outro peixemuito bem-vindo nas mesas coloniais, a tareira (Chaetodipterus faber ),quasequadradaecommuitacarnenolombo,eraigualmenteconsideradaleve e saborosa. Apreciadíssimos ainda eram uns peixes parecidos comtainhas chamados coirimás (ou curimaís,Mugil liza), admirados por suagordura, suas “banhas”, seu sabor e suas grandes ovas. Já os araburis(talvez oSeriola fasciata), parecidos com as savelhas de Lisboa e commuitas espinhas, eram comidos salpresos, e tinham o gosto muito

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semelhanteaodassardinhasdePortugal.

•PEIXESMEDICINAIS

Segundo Gabriel Soares de Sousa alguns peixes das nossas costas eramespeci icamente recomendados aos doentes, por sua carne saborosa eleve: o jaguaraçá (Holocentrus ascensionis) de ígado vermelho, opiraçaquem(espéciedecongro,dogêneroConger)semescama,obodiãodecarnemole(dafamíliadosEscarídeos),otucupá(espéciedecorvina,dogênero Micropogonias), e os azulados guaibiquatis (peixe de di ícilidentificação).

•OUTROSPEIXES

Segundo Jean de Léry, que elogia sobretudo os peixes de alto-mar, nãoexistenenhummelhordoqueodourado(Coryphaenahippurus):“Reputo-onão só melhor do que todos os outros mencionados, mas ainda maissaborosodoquequalquerpeixedeáguadoceousalgada.”

pescada-bicuda,oucupá

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mero

ubarana

Os bonitos (peixes da família dos Escombrídeos) e os camurins(robalos, do gênero Cantropomus) dividiam opiniões. Alguns não osconsideravambonsparacomer,maso francês JeandeLérydissequeosbonitos que capturaram em alto-mar no Brasil “são os melhores aopaladaremuitoparecidoscomasnossascarpascomuns”.

Osmeros(Epinephelus itajara)eramtãograndes,contaGabrielSoaresdeSousa,que“por façanhasemeteu jáumnegrinhodetrêsanosdentroda boca de um destes peixes”. Estimavam-se sobretudo os ígados doscunapus (seu nome tupi) servidos “salpimentados”, ou ainda recheandosuas próprias tripas cozidas. Os meros também eram consumidos“salpresos”, ou seja, salgados, assim como as corvinas e as “pescadas-bicudas” (cupás, em tupi), “em extremo saborosas” quando salpresas deumdiaparaooutro.Osmeros,peixesquepodematingir400quilos,estãohojeameaçadosdeextinção,esuapescafoiproibidaporlei.

Nas mesas brasileiras também não faltavam as cavalas(Scomberomorus cavala), chamadas pelos índios guarapicu, peixesaborosíssimoqueGabrielSoaresdeSousadescrevecomprazer:“Quandoestágordosabemassuasventrechasasável,cujoraboégordíssimo,etêmgrandes ovas, em extremo saborosas; os ossos do focinho se desfazemtodosentreosdentesemmanteiga;esalpresoestepeixeémuitogostoso,esefaztodoemfolhascomopescada,masémuitoavantajadonosaborelevidão.”

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DOURADOFRESCO

Depoisdelimpoodourado,façamumacaldadeduaspartesdevinagre,umadevinho,eoutradeágua,ummolhograndedesalsa,epimentabempisada,eponhamacozer.Quandoferver,metam-lheodourado,eestandocozido,tiremfora,ecomamfrio.

BaseadonareceitadeSalmãoFrescodaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

As tacupapiremas (Cynoscion acoupa), parecidas com as “corvinas dePortugal”, eram tidas por muito gostosas; sua carne não era consumidafresca porque era considerada “mole”, mas icava deliciosa quandosalgada,desfazendo-seem folhas “comoapescada”.Apiracuca (garoupa,Epinephelusguaza),mesmo tendoa carne “mole”, era consumida fresca etida por saborosa e sadia, assim como as belas abróteas (Urophycisbrasiliensis).Eram tambémapreciadasas alongadase coloridasubaranas(Elopssaurus),parecidascomtainhas,assimcomoasgordaseespinhentassororocas(Scomberomorusbrasiliensis).

Diz JeandeLéryqueos índiosnãoconheciamasredesdepesca,maslogoaprenderamamanejá-lasmuitobem.Eos anzóisde ferro europeuspassaram a ser um dos bens de troca mais valorizado entre os povosindígenas. Porém, os índios eram grandes pescadores e usavam lechas,comumapontariacerteiraqueespantavaoseuropeus.ComotestemunhaJeandeLéry:“Quantoaomododepescar,usamosselvagens lechascomopara os sargos. Aliás assim fazem com todos os peixes visíveis dentrod’água.CabeobservarquenaAméricatantooshomenscomoasmulheressabemnadaresãocapazesde irbuscaracaçaouapescadentrod’águacomoumcão.”

É ainda vívido o depoimento do alemãoHans Staden: “Assim também[osíndios]seguemospeixespertodapraia.Têmavistaaguçada.Quandoalguresvemumpeixeà tona,atiram-no,epoucassetas falham.Logoqueum peixe é alcançado, saltam n’água e nadam-lhe atrás. Muitos peixesgrandes afundam, quando sentem em si a lecha. Mergulham ao seuencalço,atécercadeseisbraçasdeprofundidade,etrazem-nosparafora.”

E ainda André Thevet: “A maneira de pescar que empregam é aseguinte: entrando inteiramente despidos na água doce ou salgada,

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acertamo peixe com suas lechas, no que sãomuito destros, puxando-osem seguida para fora d’água por meio de cordinhas de algodão ou decascadeárvores,quandonãoacontecequeosprópriospeixes,depoisdemortos,subamnaturalmenteparaasuperfície.”

•PEIXESVENENOSOS

O padre Francisco Soares alerta o viajante desavisado: há peixesformosíssimos, que enganam por sua beleza, mas escondem peçonhamortal. O carapeaçaba (Gymnura micrura), lindamente preto, amarelo epardo,é,entretanto,peçonhentíssimo,alertava;pode-secomê-lo,eébom,mas depois de retirar cuidadosamente o veneno. O mesmo vale para oamajacuguara,azulederaboamarelo.

O mais venenoso de todos é o conhecidíssimo baiacu (designaçãogenéricaparaváriasespéciesdepeixes teleósteos), tambémnomeadodepeixe-sapo por alguns cronistas. Todos se impressionaram com suaestranha capacidade de inchar “como uma bolsa cheia de vento”. Essepeixevenenosoedecuriosoaspectoeraapreciadíssimopelos índios,quesabiam lhe tirar apeçonha contidanapele (emesmoassimaconteciadealguns morrerem ao comê-lo). Os colonos usavam o baiacu como e icazveneno para matar ratos. Relata-se outra variedade de baiacu, comespinhos, que, tirada a pele, recomenda-se para combater “câmaras de

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sangue” (disenterias). Há registros ainda de outra variedade, chamadaitaoca, altamente letal, cujo veneno se encontrava não só na pele, mastambémnasvísceras.

•PEIXESDEÁGUADOCE

A mesma abundância que havia no mar, havia também nos rios. FreiGaspar de Carvajal, no descobrimento do rio Amazonas, em 1542,testemunha uma espécie de milagre dos peixes na selva. Navegando aolongo do rio, em 7 de junho, véspera de Corpus Christi, em busca demantimentos para a tripulação faminta, aportaram em uma pequenapovoação,ondeacharammuitacomida:“Depeixeseachoutantoeemtalabundância que pudemos carregar muito bem nossos bergantins.” Ospeixes embarcados estavam sendo secos pelos índios, que os venderiamnointerior,segundoCarvajal.

acará

O alemão Ulrico Schmidel, em expedição ao longo do rio Paraná,atravessou um território em que as tribos indígenas se alimentavamexclusivamentede carne e depeixe, e algumas, segundo ele, somentedepeixe,alimentoquenãofaltouaosviajanteseuropeus.

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traíra,oumaturaqués

enguia,oueiró

Em seu ufanistaDiálogodasgrandezasdoBrasil , Ambrósio FernandesBrandão não contém seu entusiasmo ao relatar a abundância de peixesnosriosbrasileiros: “Emoutros temposaarrumam[umacanoa]contraamaré vazantedamesmamaneira; e estando assim inclinadaspor espaçode duas horas, sem mais outro bene ício, se enchem de peixeexcelentíssimo.”

Gabriel Soares de Sousa, na sua descrição dos peixes de água doce,começa pelas enguias que se criam debaixo das pedras e que os índioschamammucim (oumuçum,Synbranchusmarmoratus ), fala das grandespescariasdetareiras(Chaetodipterusfaber),peixespretos,semescamas,ecommuitas espinhas,mas com ótimas ovas, e conta como se pegavam, amão,entreaspedras,os juquiás (parecidoscomoscongrosdaEspanha),tambémsemescamaemuito saborosos. Fala aindadosmiúdos tamuatás(Callichthys callichthys ), que são assados inteiros – só depois retirava-sesua couraça grossa –, tidos comomuito gostosos e sadios, e tambémdaspiranhas (diversas espécies da família dos Caracídeos), famosas porarrancarem“osgenitais”dosíndiosquese“atrevemameternaáguaondehá este peixe”, apreciada por sua carne gorda e gostosa. São citados eelogiados também o querico (semelhante às savelhas ibéricas), aspequenas e saborosas piabas (da família dos Anostomídeos), omaturaqués (traíras, Hoplias malabaricus), e os acarás (da família dos

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Ciclídeos,quehojesãomaisusadoscomopeixeornamental).

piranha

OpadreFranciscoSoares falado jaú ( Paulicea lutkeni), de 15 palmosde comprimento, gordo e saboroso; do formoso surubim(Pseudoplatystomacorruscan),todopintadonas“maisgalantescores”;dastabaranas (Salminus hilarii), que parecem tainhas; e ainda de outrospeixes, de di ícil identi icação, como mandaig (“como bagre, tem doisferros”), aramari, jajaboçui, ibiau e pirajuba. Destacava-se, pelo sabor, onhundiá ou jandiá (peixe-onça,Leiariusmarmoratus), semespinha,muitogostoso, gordo, e com o gosto parecido com o do salmonete que secostumavacomeremPortugal.

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surubim

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Invertebradosaquáticos

•CAMARÃO

Conta Pero Vaz de Caminha, em sua carta, que osmarinheiros saíram abuscarmariscosemCoroaVermelha,onde foi rezadaaprimeiramissa,enãoosacharam.Emlugardeles,encontraram“algunscamarõesgrossosecurtos, entre os quais vinha um muito grande camarão, e muito grosso,que em nenhum tempo o vi tamanho”. Os índios eram comedores decamarão,quechamavamdepotipema.EmumacartaescritapelosmeninosdocolégiodosjesuítasdaBahia,conta-secomoforamrecebidosporíndiosde uma tribo do litoral com “muita farinha, peixe cozido e muitoscamarões,dequecomemoscomabundância”.

Os camarões marinhos eram tomados “em redinhas de mão” pelosíndios,nosesteiosdeáguasalgada,etambémvinhamnasredesdepesca,misturados aos outros peixes, conta o senhor de engenhoGabriel Soaresde Sousa. São descritos de maneira curiosa: unhas curtas, barbascompridas, “esborrachados na feição”, com a casca branda e “muisaborosos”.

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Curiosamente, hámuitomais referências aos camarõesde águadoce.SoaresdeSousadescrevequatroespéciesqueeram abundantesnos riosda Bahia e apreciadíssimos pela população, e todos muito saborosos e“nada carregados”, que ele identi ica pelos nomes indígenas. Todos eramfacilmentetomados“àsmãos”esecriavamentreaspedraseasraízesdasárvores das ribeiras. O poti ganha o primeiro lugar, do tamanho dosgrandes camarões de Lisboa, porém mais grosso; em seguida temos oaratuem,maispretosedecascamaisduraqueosde lá;ehavia tambémos pequenos araturé (de di ícil identi icação) e os grandes potiaçu(Macrobrachiumgarcinus),como“cascogordocomolagosta”.

Diz o personagem Brandônio, doDiálogo das grandezas doBrasil , quehavia talquantidadedecamarõesnasalagoasque “todasaspessoasquevivem pelo sertão se sustentam deles”: à noite abriam-se covas onde secolocavamcestos,edemadrugadatiravam-seoscestos,entãocarregadosdecamarões.

•POLVO

Ospolvosdaqui tinhamomesmogostodosdePortugal.Eramcapturadosnas marés baixas, geralmente à lecha, e o pescador indígena assobiavapara sua presa antes de disparar. Eram também tomados à noite,iluminadoscomfachosde fogo.Paraprepará-lo, jáerausadaaconhecidatécnicadoaçoite,explicadapelopadreFernãoCardim:“Parasecomeremosaçoitamprimeiro,equantomaislhederemmaisentão icammaismoles

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egostosos.”Aslulaserampoucas,segundoodepoimentodeCardim.

•LAGOSTINSELAGOSTAS

Os lagostins eram abundantes nas concavidades dos recifes maissaborososeramos tomadosna luanova, segundoSoaresdeSouza.Haviagrandequantidadedelespelacosta,juntoaosarrecifesepedras.

Sobre as lagostas (assim como os lagostins, crustáceos da famíliaNephropidae),asopiniõesdivergem.EnquantoFernãoCardimdizquenãohavia, outro jesuíta, o padre Francisco Soares, diz que elas eramabundantes.

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•CARANGUEJOS

Os caranguejos domangue (Ucides cordatus) erammuito estimados pelagentedaBahia, contao senhordeengenhoGabriel SoaresdeSousa,queos identi icava pelo nome indígena uçá. Muito grandes e com muito “decomer”, eramabundantemente empregados na alimentação dos escravosnegros e da “gente de serviço”. Soares de Sousa preferia os assados aoscozidos.Eram“in initos”eporisso“faziamespanto”.Todososdias,quatroou cinco “mariscadores” saíam dos engenhos da Bahia para capturarcaranguejos para seus patrões: recolhiamde 300 a 400 caranguejos pordia, com os quais alimentavam-se todos os empregados. Abundantes efáceisdepegar, eram“verdadeiro sustentodospobres, índios,naturaiseescravosdeGuiné”.

Muito elogiados também são os guaiamuns (Cardisoma ganhumi),grandescaranguejosazuis,encontradosnasmargensdosrios,“saborososemmaravilha”.Osenhordeengenhoapenasalertaparaoperigoda“tintapretamuito amargosa” que precisa ser retirada antes que o caranguejosejatransformadoemdeliciosarefeição.

Havia ainda o aratú (Aratus pisoni), geralmente vermelho. SegundoFernão Cardim “esses caranguejos habitam nas tocas das árvores, queestãonoslamarõesdomar”.

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Outras espécies de caranguejos apreciadas na mesa quinhentistaeram:osserizes,oscompridosgoaiáseospequenosaratusdecascamole,achadosnosmangues,entreoutros.FernãoCardimdizquehámaisdedezespécies,todassaborosaseconsideradassadias.

•OSTRAS

Algumaseramtãograndesqueeraprecisoservi-lascortadasemtalhadas.Gabriel Soares de Sousa louvava as “formosas” ostras da Bahia – “muitomais sadias que as de Espanha” e recomendava que fossem comidascruas, assadas ou fritas, ou seja, eram boas de qualquermaneira. Haviatantas que se carregavam barcos com suas conchas para a produção dacalempregadanaconstruçãodosengenhos.

“Falando a respeito de peixes, não posso deixar de relatar um fato maravilhoso e digno de serlembrado.Noterritórioque icaaoladodorio,próximodomar,encontram-seumasárvoreseunsarbustos que icam inteiramente cobertos e carregados de ostras, de alto a baixo. Como o leitordeve saber, quando amaré sobe, uma grande onda penetra pela terra adentro, repetindo-se estefenômenoduasvezesacada24horas.Estaondacobreamaioriadestesarbustos,especialmenteosmais baixos. Como as ostras possuem uma certa viscosidade própria, icam agarradas nos seusramos em quantidades incríveis. Por isto, quando os selvagens as querem comer, cortam estesramos cheios de ostras (lembrando galhos de pereira carregados de frutas), levando-os consigoparacasa.Preferemestasostrasdomangueàsgraúdasdealto-mar,alegandoqueasmiúdassãomaissaborosasesadias,aopassoqueasoutrasgeralmenteproduzemfebres.”

ANDRÉTHEVET

As chamadas leripebas eram muito saborosas, de “miolo teso” e de

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“muitogosto”,comotestemunhaGabrielSoaresdeSousa.Haviatambémaspequenas leri-mirim, igualmente apreciadaspor todos.Os índios tambémapreciavameaindaassecavamnomoquém,deformaaduraremeseremconsumidasaolongodoano.

ContaGabrielSoaresdeSousaque“noriodeParaguaçueemtodososseusrecôncavos,porondeentraosalgado,hámuitomariscodetodasorte,especialmenteostrasmuitograndes,ondenumamarévaziaquatronegroscarregamumbarcodelas”.

Jean de Léry, da ilha de Villegagnon, na baía de Guanabara, contoucomocozinhavamgrandespaneladasdeostraspescadaspelosíndios,quemergulhavam no mar e pegavam “grandes pedras com in inidade deostras”.

ÉmuitointeressanteapassagemdolivrodeFernãoCardimemque,aofalar das ostras, conta como os portugueses encontraram sambaquisdentrodas lorestas.Cardimexplicacommuitacorreçãoqueosambaquiéum depósito de conchas pré-histórico, e conta como um só sambaquiforneceu matéria-prima su iciente para construir os mais importantesedi ícios de Salvador: “Os índios naturais antigamente vinham aomar àsostras, e tomavam tantas que deixavam serras de cascas, e os mioloslevavam de moquém para comerem entre ano; sobre estas serras pelodecursodotempose izeramgrandesarvoredosmuitoespessos,ealtos,eosportuguesesdescobriramalgumas,ecadadiasevãoachandooutrasdenovo,edestascascasfazemcal,edeumsómontesefezpartedoColégiodaBahia,ospaçosdogovernador,eoutrosmuitosedi ícios,eaindanãoéesgotado.”

•MARISCOS

PRATINHOSDEMEXILHÕES

Albardados [passados em ovos batidos] osmexilhões e fritos emmanteiga, passem-nos pormolhodevinagre,alho,pimenta,laranjaemanteiga,emandem-nosàmesa.

Omesmosefazdeostras,amêijoaselingueirões.

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DaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

Seguimosaqui adescriçãodeGabriel SoaresdeSousa sobreosmariscosda Bahia. Os sernambis (Lucina pectinata), parecidos com as amêijoasgrandes de Lisboa, comiam-se assados e cozidos, “mas o melhor destemarisco é frito”. Os tarcobas (tarioba, Iphigenia brasiliana), tambémsemelhantes às amêijoas,comidos crus ou “abertos no fogo”, podiam serconservados em casa, vivos, por 15 a 20 dias em água salgada, e eramconsiderados muito leves e de “maravilhoso sabor”. Eram in initos osmexilhões,chamadospelos índiosdesururus,e tinhamomesmoaspecto,tamanho e sabor dos mexilhões de Lisboa. Havia “grande multidão” deberbigões, chamados de sarnambitinga (Trachycardium muricatum ),comidoscrusoucozidos,quetinhamumpeculiarsabor:“Requeimaalgumtanto na língua.” E ainda havia os lingueirões, em tupi guaripoapem,compridoscomoumdedo,emuitogostososecarnudos,queseabriamnofogocomoasamêijoas.

TORTASDEMEXILHÕES

Pique-semuitobemumapequenadesalsaecebola,eponha-seaafogar;depoisdeafogadadeite-se-lhe os mexilhões com seu vinagre. Quando ferverem, tempere-se-os com ovos, eponha-seaesfriar;feitaatorta,ecozidamande-seàmesa.

DaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

Sãotambémcitadospeloscronistasosmariscosdeáguadoce,massementusiasmo. Gabriel Soares de Sousa não é um apreciador. Fala dosmexilhões, não tão gostosos como os domar, e das insossas amêijoas deáguadoce,apreciadaspelosíndios.

BERBIGÕESDETIGELADA

Lavadosmuitobemosberbigõesdaareia,ponham-nosaabrirnumtacho.Quandoestiverem

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abertos, lavem-nos outra vez em água limpa, enxuguem-nos em um pano lavado,enfarinhando-os com uns pós de farinha. Mandem-nos ao forno em uma tigela com azeite,vinagre,alhosesumodelimão.Depoisdecozidos,mandem-nosàmesanamesmatigela.

Domesmomodosefaztigeladademexilhões.

DaArtedecozinha,deDomingosRodrigues

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Répteis

•LAGARTOS

O grande gastrônomo Gabriel Soares de Sousa não é um entusiasta.Sempre generoso nos elogios às caças que aprecia, ao falar dos lagartosnãodeclarasuaopinião,apenasdizqueacarne“éhavidapormuitoboaesaborosa”.

sinimbu

TalvezfosseumpreconceitopessoaldeSoaresdeSousa,poisolagarto(Tupinambis teguixin) é louvado por todos os outros cronistas do Brasilquinhentista. O padre Francisco Soares gostava, e dizia que “algunscuidam, se não o sabem, que é galinha”. Ou seja, numa mesa brasileiradaquelaépoca,agalinhasemprepoderiaser,naverdade,lagarto.Galinhaera uma comida re inada, aristocrática – e, portanto, o lagarto era umadelicatessen.

É essa a opinião de Jean de Léry: “Os nossos americanos tambémapanhamtuús, lagartos que não são verdes, como os nossos, mas

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cinzentos,depeleásperacomoadaslagartixas.Emboratenhamdequatroa cinco pés de comprimento, e sejam proporcionalmente grossos erepugnantes à vista, conservam-se em geral nasmargens dos rios e noslugares pantanosos, tais quais as rãs, e não são em absoluto perigosos.Direi ainda que, destripados, lavados e bem cozidos, apresentam umacarne branca, delicada, tenra e saborosa como o peito do capão,constituindo uma dasboasviandasque cominaAmérica.Aprincípio, emverdade, repugnava-meessemanjar,masdepoisqueoproveinãocesseidepedirlagarto.”

Tejuéonomegenéricodos lagartosentreos índios.Domaiordeles,otejuaçu,falaGabrielSoaresdeSousa:“Criam-senomatooutroslagartosaqueosíndioschamamtejuaçus,osquaissãomansos,ecriamemcovasnaterra,mantêm-sedas frutasquebuscampelomato e sua carne éhavidapormuitoboae saborosa.”SeSoaresdeSousaapresentao tejuaçucomoanimalfrugívero,AmbrósioFernandesBrandão,noDiálogodagrandezadoBrasil, faz do teju (sem o su ixo aumentativoaçu) um perseguidor degalinhas: “Grande perseguidor de galinha, e contudo estimado para sehaverde comer”.Alémdo teju e do tejuaçu, outro lagartodeque se temnotícia é o sinimbu (Iguana iguana), de que fala o sempre informadoGabriel Soares de Sousa: “No mato se criam outros lagartos, a que osíndios chamam sinimbus, que também são grandes, mas não tamanhos

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comoosjacarés;criam-senostroncosdasárvores;cujacarneémuitoboaesaborosa.”SoaresdeSousapodianãogostardoslagartos,masapreciavaasverdesiguanasbrasileiras.

•JABUTI

Sim, comia-se jabuti, que, além de gostoso, era dieta recomendada aosdoentes.

JABUTI

Limpem o jabuti em água quente, tirando-lhe as vísceras e dando-lhe golpes na carne.Coloquem-noenrolado,numatigela,etemperem-nocomazeite,coentro,salsa,cebolaraladaesal.Deixem-noemrepousopor algum tempo, levando-oemseguidaao fogo.Depoisdebemrefogado, deitem-lhe um pouco d’água com vinagre, cravo, pimenta, açafrão e gengibre.Cozinhememfogolento.

AdaptadodareceitadeLampréiadoLivrodecozinhadainfantad.Maria

Em1587,GabrielSoaresdeSousaescrevequeemqualquerpartedosmatosdaBahia se achavammuitos, que se criavamnospésdas árvores.HaviaunsmaioresqueosencontradosemPortugal,maisaltosecommaiscarne,estimadaporser“gorda,saborosaesadiaparaosdoentes”. Outrosse chamavam jabutiapeba, commenos carne,mas “mui saborosa”. E porim, havia uns menores, os jabutimirim, que se criavam na água,igualmente“saborososemedicinais”.

FernãoCardimtambémobservaqueeramabundantesecontaqueosíndios criavam jabutis (Geochelone carbonaria) , e os engordavam, paraaproveitarseusovos,queconsideravam“maravilhosomantimento”.

Nãosabemoscomoeramcozidosos jabutisnoséculoXVI,masemumlivro de culinária do século XVII, compilado por Domingos Rodrigues,encontramos duas sugestões: podia-se guisá-los como um “frangão” oucozinhá-los como se fossem peixe, recomendando-se para tanto usar a

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receitadeLampréiadeConserva.

JABUTIDECONSERVA

Depoisqueestivero jabutide conservadevinho, vinagre e alhos (mais vinhoquevinagre),ponha-seaassar,edepoisdeassadoaesfriar:sirva-selogoametadedacaldaemqueestevecom outro tanto de azeite, todos os adubos pretos, e umas folhas de louro secas. Quandoestiverservido, tempere-sedoque lhefornecessárioeponha-seaesfriar.Nestaconservasemeteojabutifrio,eéparaseircomendologo.

BaseadonareceitadeLampréiadeConservadaArtedecozinha,

deDomingosRodrigues

•TARTARUGA

Em 1541, durante o descobrimento do rio Amazonas por Francisco deOrellana, um certo Cristóbal Maldonado foi incumbido de reunir toda acomida disponível em um determinado trecho da expedição, quandoestavamentreosíndios.Entreosalimentosrecolhidos,foramcomputadasmaisdemiltartarugas.

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No meio do Atlântico, quatro graus abaixo da linha equinocial, atripulação da nau em que estava o francês Jean de Léry, chegando aoBrasil, apanhou uma tartaruga tão grande que “forneceu copioso jantarparaoitentapessoas”.

AstartarugasvistasecomidaspelosqueescreveramsobreoBrasilnoséculo XVI eramquase todas assim, enormes ou fartas, um substancial eabundante aporte alimentar para homens famintos. Anthony Knivettambém sobreviveu à base de carne de tartaruga em uma viagem pelolitoral da capitania do Rio de Janeiro. O sabor da carne, pelo que dizemessastestemunhas,écomoadevitela,“sobretudolardeadaeassada.”

TARTARUGAASSADAELARDEADA

Ponha-se a assar uma tartaruga no espeto, e quando estiver quase assada, lardeie-se comlardos de toucinho delgados do comprimento de meio dedo. Acabe-se de assar e leve-se àmesasobreasopaquequiserem.

AdaptadodareceitadeCabritoAssadoeLardeadodaArtedecozinha,

deDomingosRodrigues

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Os índios, no entanto, não a comiam. Como explica André Thevet: “Osselvagensdas ÍndiasAmericanasnãoa comemdemodoalgum, imbuídosda absurda idéia de que ela, sendo um alimento pesado, iria torná-losigualmente pesados, o que lhes causaria problemas quando partissemparaaguerra,jáque,faltosdeânimo,nãopoderiamperseguiragilmenteoinimigo,ouentãoescapardesuasmãos.”

Os deliciosos ovos da tartaruga – hoje uma iguaria ecologicamenteincorretíssima– erammuitoapreciadospelos colonos.Contao senhordeengenhoGabrielSoaresdeSousacomo,naBahia,astartarugas“põemnosareaisin inidadedeovos”,dosquaissecomiamsomenteasgemas,poisasclaras,pormaisquesecozinhem,nãoendurecem.

Aos ovos de tartaruga já foi atribuída uma série de propriedades.AndréThevet contaqueum idalgoportuguês, noBrasil, icou curadodalepra ao adotar durante dois anos uma dieta de ovos de tartaruga. Paraespantodocosmógrafo francês, tratava-sedeumapropriedademedicinalnão descrita por Plínio, então a maior autoridade em matéria médica:“Plínio, quando enumera as virtudes alimentícias e medicinais datartaruga,nãofazqualquermençãoaofatodequeelapossaserutilizadacontra a lepra. Diz, todavia, que sua carne é um e icaz antídoto contradiversos venenos, especialmente o da salamandra, devido à antipatiaexistente entre os dois animais, inimigosmortais umdo outro. É por istoque julgo aconselhável que se façam experiências com este tipo detartaruga, ou com as terrestres, quando não for possível dispor dasmarinhas. Penso que seria bem melhor e mais seguro conseguir essastartarugasdoqueasvíborasgeralmente receitadasparaestamoléstia, eque entram na composição da famosa teriaga, visto não ser prudentemanipulartaisanimais,devidoàpeçonhaquepossuem.”

•COBRAS

As míticas cobras brasileiras são protagonistas de espantosos casoscontadosporquase todososqueescreveramsobreoBrasilquinhentista.Gigantescas, ferozes, bestiais, encaravam seus algozes em uma lutaaterrorizanteatéseremabatidasapauladasegolpesdeespada,edepoisesquartejadas, divididas entre os homens e, então, devoradas. Todaexpediçãopelointeriortemoseuepisódiodoencontroentreumhomeme

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umaenormecobra.

Umadasmaisadmiráveisemaiscercadasporlendaseraajibóia.Eramcobras que comiam uma capivara, um índio, uma anta inteira, “semmastigar”,comoobservaGabrielSoaresdeSousa.Umdia,contaosenhorde engenho, “junto do curral de Garcia D’Ávila, na Bahia, andavam duascobras que lhe matavam e comiam as vacas, o qual a irmou quediantedelelhesaíraumdiaumaquearremeteuaumtouroequelholevouparadentrodeumalagoa”.Osíndioscomiamajibóia,“cujacarnetêmemmuitaestima e os mamelucos por a acharem muito saborosa”, e ainda outrasmuitasespécies.

Cobra era uma comida de índio, mas os portugueses tambémapreciavam certas espécies, como as sucuris,muito grandes, de escamaspardasebrancas,etambémaschamadastaraibóias,“muitogordaseboasparacomer”.

Aparentemente, ninguém comia as míticas boiúnas, tão grandes que“engolemumnegro semomatarem”, e das quais se contava que “houveíndios que estas cobras engoliram que, estando dentro da sua barriga,tiveramdeasmatarcomumafacaquelevavamdependuradaaopescoço”.

OfrancêsJeandeLérycontoucomoasíndiasacariciavam“serpentes”como se fossem animais domésticos, e as preparavam, em pedaços,cozidas;mas, ao provar do petisco, ele não gostou: “A carne é insípida eadocicada.” O padre José de Anchieta registra outra receita indígena:“Cortadaacabeça,torramaofogoecomem.”

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•JACARÉ

OcapitãoalemãoUlricoSchmidel,quenadécadade1530fezumalongaeacidentada viagem pelo território do rio da Prata, era um homemmuitomais ligado às armas do que as ciências naturais. Ao descrever o“achkaré”, classi ica-o como um “grande peixe” que faz muito dano “aosdemais peixes”, e observa que são bons para comer. Com certeza, nuncatinha visto, nememgravuras, um crocodilo africano, animal já conhecidopelos europeus cultos. O mesmo não acontecia ao cosmógrafo francêsAndréThevet,quea irmouqueosjacarésbrasileiros“sãomaioresqueoscrocodilosdoNilo”,notandoqueos índioseramgrandesapreciadoresdesuacarne.

Anchieta, ao escrever sobre o espantoso bicho – que para uns tinhacabeça de lebre e para outros focinho de cão –, chama-o de “lagartoluvial”: “De grande corpulência, armado de agudíssimos dentes, podeengolirumhomem,massuascarnessãoboasparacomer.”Quasetodososqueescreveramsobreos jacarésobservamqueerammansose fáceisdeapanhar. O senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa conta como osescravosnegrosjátinhamperdidoomedo,sabiamatraí-los,eospegavamcomasmãos,paramatá-lose comê-los. Segundoele, a carneé “um tantoadocicadaetãogordaquetemnabarrigabanhacomoumporco,aqualéalvaesaborosaecheirabem”.Váriosconcordavamqueogosto,comoodolagarto,lembraodegalinha.

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Anfíbios

•RÃSESAPOS

Algunsviajantes,colonosejesuítasseespantaramcomofatodeosíndioscomeremcobras,lagartosesapos.ComoobservaopadreJosédeAnchieta,em1560,sobreosíndios:“Nempoupamossapos, lagartos,ratoseoutrosdeste jaez.” Pouco mais de quarenta anos depois, pelo depoimento deAmbrósioFernandesBrandão,emseuDiálogodasgrandezasdoBrasil,arãjá estavamais do que introduzida nos hábitos coloniais: “Jia é animal defeição de rã, e tamanho como um cágado, muito bom para se haver decomer, e quem quer que o tiver não carecerá de boa ceia.” A carnedelicadaesaborosadarãtinhapassadodealimentorepulsivodefamintosedeíndiosparasetornarfelizingredientedeumaboaceia.

Gabriel Soares de Sousa tem um capítulo inteiro sobre o tema: “Quetrata da diversidade das rãs e sapos que há no Brasil”. Entre os váriostiposde rãsdescritas, suaspreferidaserama juiponga (ousapomartelo,Hyla faber), de cor parda, “as quais se comem e são muito alvas egostosas”,a jugiá,brancacenta,“alvaegostosa,esecomemesfoladascomas mais”, e umas pequenas e verdes chamadas juiguaraigarai. Mas nãodemonstravamuitoentusiasmopelajuií,rãsgrandesepretas,que“depoisdeesfoladastêmotamanhodeumhonestocoelho”.

Os índios, “mestiços” e línguas (intérpretes) adoravam a seguintereceita, feita com girinos: “Apertam-nos entre os dedos e lançam-lhes astripas fora e embrulham-nos em folhas e assam-nos no borralho, o qual

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manjargabammuito.”Os índios também comiam o sapo-cururu, depois de tirarem suas

vísceras venenosas.E eramessasmesmasvíscerasusadas comoveneno:“Ogentiousaquandoquermataralguém”,contaSoaresdeSousa.

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Insetos

•FORMIGAS

Uma delicatessen indígena muito apreciada por europeus e colonos. Osíndios faziam festa, cantavam e davam “saltos de prazer” quando eraépoca de içás, um tipo de formiga. Era uma temporada aguardada atépelos jesuítas: “Agora esperamos um certo gênero de formigas que,quandoenxameiam,sãoos ilhotesumpoucomaioresetemo-lasaquipormanjar delicado”, conta o padre José de Anchieta, escrevendo da futuracidade de São Paulo, então Piratininga, no mês de agosto de 1554. Asrevoadas de içás, tão aguardadas por índios e colonos, ocorremgeralmenteentresetembroedezembro,quandoas formigasaladassaemem seu vôo nupcial, de breve duração, sendo fácil e abundantementecapturadas.

Alguns anos depois, Anchieta já estaria totalmente rendido aosencantos das arruivadas içás (ou tanajuras), “que esmagadas cheiram alimão”: “Quão saborosa e quão sã seja esta comida sabemo-lo os que oexperimentamos.” Referia-se às formigas torradas, assadas em grandesvasilhasdebarro,queseconservavampormuitosdias.

O senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa, na Bahia,aparentemente não provou. Mas diz que tanto índios como homensbrancos e“mestiços” as tinham “por bom jantar”, gabavam-nas“saborosas”ediziamquesabiam“apassasdealicante”.

Na falta de passas, colonos e portugueses se deliciavam com içástorradas,quesetornaramumpratotípicopaulistanoséculoXIX,vendidonasruasemtabuleiros.Umadelíciabrasileirahojecaídaemdesuso.

As içás são fêmeasaladasdediversasvariedadesde formigas saúvas(da espécie Atta), cujos abdomes, gordos, também são consumidos emformadefarofa.

•BICHO-DE-TAQUARA

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Foi também o padre jesuíta José de Anchieta que, sem preconceitosgastronômicos,provoueaprovouobicho-de-taquara(Myelobiasmerintha).Conta-nosopadre,escrevendodePiratiningaem1560:“Nascementreastaquarascertosbichosroliçosecompridos,todosbrancos,dagrossuradeumdedo,aosquaisos índioschamamrahú,ecostumamcomerassadosetorrados.Há-osemtãograndeporçãoquefazemcomelesumguisadoqueemnadadiferedacarnedeporcoestufada.”

Na primitiva cidade de São Paulo, portanto, antes das primeirascriações de porcos, comiam-se, em lugar destes, bichos-de-taquara emdeliciososensopados.

OespanholCabeçadeVaca,emlongaexpediçãopelosuldoBrasil,em1542, provou da iguaria em condições adversas. Na falta de outra coisapara comer, seus homens se alimentaram de uns “vermes brancos egrandes, da grossura de um dedo, que tiravam do meio das canas efritavam para comer” – refeição que, apesar da ocasião ingrata,considerarammuitoboa.

MesmonoséculoXIX,osviajantes,apesardonojo inicial,acabavamsefartandocomosbichos-de-taquara,comoAugustedeSaint-Hilaire, queosprovou emMinas Gerais e a irmou que tinham um sabormuito suave elembravam“ocrememaisdelicado”.

Obicho-de-taquara, encontradoembambuzais, é a larvadamariposaMyelobia smerintha. Antes de comê-la, os índios retiravam a cabeça e osintestinos.Mas Saint-Hilaire registra que os nativos também ingeriam osbichos-de-taquara secos, com intestinos, empregando-os então comoalucinógenos.

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Outrascomidasebebidas

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•SAL

O viajante francês André Thevet observa que os índios tinham horror àcarnesalgada.Outroscronistasdizemqueelesnãousavamtemperosemsuas comidas, e que assavam peixes e carnes sem adicionar nenhumcondimento.Noentanto,ésabidoqueosnativosempregavampimentasepreparaçõesfeitasapartirdelas.Ealgunspovosindígenastambémfaziamusodosal.

AndréThevetcontaque,“parasuaobtenção[dosal],fervemaáguadomar até que seu volume se reduza à metade, empregando depois umdeterminado processo para separá-lo”. Ele conta, ainda, que o sal eramisturadoaumacertapimentamoídaparaapreparaçãodeumaespéciedepão,queacompanhavaascarnes.

Outro viajante francês, Jean de Léry, fez registros semelhantes: osíndiossabiamfabricarsal “retendoaáguadomaremvalos”,eopilavamcom pimenta, fabricando uma mistura denominada ionquet. Mas Léryobservaqueaformadeempregarotemperodifereemmuitodoempregodecondimentosnaculináriaeuropéia.Emlugardesalgaremdiretamenteas carnes, os índiosmastigavam-na sem temperos e em seguida jogavamnabocaumapitadadamistura.

Hans Staden, o aventureiro alemão, descreve ainda um outrométodoindígenadeobtençãodosal:abatia-seumapalmeiragrossa,picava-se empequenas lascas, que eram torradas sobre o fogo até virarem cinza, emseguida fazia-se um caldo, que era cozido, e então separava-se umasubstânciacomaparênciadesal.“Tinhagostodesaleeradecorcinzenta”,testemunhaStaden.

Entre os colonos, tudo indica que havia abundância de sal. O padreFrancisco Soares descreve uma cena de pescaria de tainhas, quepresenciou no Rio de Janeiro, em que “duas mil pessoas em canoas”matavamospeixeseossalgavamimediatamentecom“salpisado”.

•OVOS

Proporcionalmente à abundância de aves, havia, no Brasil do século XVI,comodizAmbrósioFernandesBrandão, “grandemultidãodeovos”.Além

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dos ovos das galinhas e patos trazidos da Europa, contava-se com ospostos pelas aves locais,muitas criadas em casa. Omacucaguá, para darumexemplo,punhaporvoltade15ovos.

Mesmo nos primórdios da colonização, longe de vilas e povoados, osviajantespodiamsedeliciar,comofezPeroLopesdeSousaem1531,com“muisaborosos”ovosde“pequeninasemas”.

Eramapreciadosnãosóosovosdeaves,mas tambémosdecágadoedetartaruga.Osprimeiroseramdelicatessenindígena,comocontaopadreFernão Cardim: “Nos rios se acham muitos cágados, e são tantos emnúmero que os tapuias os engordam em certos tempos somente para osovos,eandamaelescomoamaravilhosomantimento.”Colonoseviajantespreferiamosdetartaruga,ehouveumportuguêsquesecuroudalepraaocomê-los,todososdias,durantedoisanos.

Osíndios,entretanto,quecriavamgalinhasmasnãoascomiam,tinhamhorror aos seus ovos, tão adorados por portugueses, colonos e viajantes.“Asmulheresdemonstrammesmoumprofundodesagradoquando vêemumcristãocomendoquatrooucincoovosdegalinhanumaúnicarefeição.Équeelasachamquecadaovoequivaleaumagalinha;por conseguinte,um só já seria su iciente para alimentar duas pessoas!” relata ocosmógrafoAndréThevet.

Nadoçariabrasileiraquinhentista,osovosdegalinhaeramingredientebásico dos deliciosos bolos de carimã, dos beilhós, ilhós, dos bolos demilho, e aindadepratosde carne.Faziam-se também,nas ricas fazendasdo Recôncavo baiano, os luxuosos “ovos reais” ( ios d’ovos), dos quaisprovou o padre Fernão Cardim em visita aos senhores da região: “Nosfazem almoçar [merendar] ovos reais e outros mimos que nesta terrafazemmuitobons.”

OVOSMEXIDOS

Façamuma calda rala, comumpoucode água-de- lor, levando-se o tacho ao fogo, para queferva lentamente. Em seguida coloquem nessa calda fatias de pão dormido, e assim queestiverem cozidas, retirem-nas e deitem-nas numa travessa. Batam uma dúzia de ovos ederramem-na na calda. Assim que levantar fervura, comecem a mexer tudo lentamente,sempreparaomesmolado,a imdequeosovosnãosedesfaçam.Depoisdecozidosretiremos ovos comuma escumadeira, colocando-os sobre as fatias de pão. Sirvampolvilhados comaçúcarecanela.

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DoLivrodecozinhadainfantad.Maria

•MEL

DizAmbrósioFernandesBrandão,noseu DiálogodasgrandezasdoBrasil ,que no mítico tempo da Idade de Ouro, como imaginavam os antigospoetas,manavamriosdemelemanteiga.Noseuesforçodepintaranossaterracomasmaiseufóricascores,BrandãonosmostraamelíferaIdadedeOuro brasileira: “Porque pelas muitas árvores, de que abundam oscampos, nas tocas delas criam o seu favo demel inumeráveis abelhas, etambémnaterraporburacosdelaemtantaquantidadequeparasehaverde colher não é necessáriomais que ummachado, com o qual a poucosgolpes se fura a árvore, e um vaso para recolher omel, que de si lança,queéemtantaquantidadequesomentedele,semmaisoutromantimento,sesustentammuitasgentes.”

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Integrantecotidianodadietaindígena,omeleraumdospresentesqueosnativosofereciamaoseuropeus, juntamentecompeixes,carneseaves.OshomensdePeroLopesdeSousaencontraramtalquantidadedemel,ecom tanta facilidade, que se enfadaram: “Na terra hámuitomel emuitobom e achávamos tanto que o não queríamos.” Jesuítas embrenhadospelossertões inexplorados,emepisódiosde fome,valeram-sedomelqueachavam.E,na faltados remédioshabituais, curavamas feridas commelpuro,comonoscontaAnchieta.

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SegundoAndré Thevet, os índios também empregavammel para insmedicinais: “Tomam-noquando estãodoentes,misturando à farinha feitaderaízes.”Melcomfarinhaéumaiguariasaudávelquepermaneceatéosdiasdehoje.Algunspovos tambémcomiam raízes cozidasmisturadas aomel.

Thevet, cujos conhecimentos médicos eram pautados na literaturamédica clássica de sua época, acreditava que os índios recorriam aomel“paracurarsuasvistas,fracaspornatureza”,equeaspicadasdasabelhasfaziam sair o “excessode sanguedo corpo” e do cérebro, o que causava,segundoele,“umgrandealívio”.

Havia os que o comiam puro, e havia aqueles que bebiam “vinho demeldeabelhas”,misturadocomágua,consideradomuito“proveitosoparaasaúdedequemocostumabeber”.

•MINGAU

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Não se trata daquele creme quentinho reconfortante que embalou ainfância de tantas gerações de brasileiros. Mingau, em tupi, signi ica“comida que gruda”. Essa preparação indígena, muito apreciada porcolonos,portugueseseviajantes,eracomposta,geralmente,porfarinhademandiocaealgumcaldo.Dava-se tambémonomedemingauaocaldodacarneoupeixecozidocompimenta.Etambémàpapafeitacomcaroçosdealgodãopiladosedepoiscozidos,alémdeoutrasmisturasgrudentas,feitascomumasériedeingredientes–inclusivecarnehumana.

Índioscomendo

Jean de Léry adorava as papas indígenas de farinha e caldo gordo,“granuladas como o arroz e são de ótimo paladar”. A cozinheiraportuguesacertamenteadaptouasreceitasdaterraedaísurgiuomingaude carimã – a ina e delicada farinha de mandioca – com açúcar,antepassadodonossomingau.Mas tambémaderiu às receitas indígenas,com caldo de galinha e peixe, o que hoje chamaríamos pirão. “São demaravilhoso gosto e de muito nutrimento, e também as aplicam paramantimento de enfermos com muita vitalidade dos tais, e a este

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semelhantemanjar dão por nomemingau”, explica Ambrósio FernandesBrandãoemseuDiálogodasgrandezasdoBrasil.

•FARINHAS

Nãoerasóde farinhademandiocaqueviviam índiosecolonos.Umadasmaispopularestécnicasculinárias indígenaseraa transformaçãodeumasérie de matérias-primas em farinha. Havia farinha de gravatá, umaespéciedebromélia,consideradaumalimento“deboasustentação”.Haviatambémfarinhadaraizdeumcipó,chamadomacuna,cozidaeseca.Fazia-setambémfarinhadomiolodaspalmeiras,istoé,depalmito.

Carnehumananomoquém

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Outra vertente das farinhas são as produzidas a partir de animais.ComonoscontaHansStaden:“Preparamtambémumasortedefarinhadepeixe e carne, do seguinte modo: assam a carne, ou o peixe, na fumaçasobre o fogo, deixam-na secar de todo; des iam-na, torram-na de novodepois, ao fogo, em vasilhas queimadas para tal im e que chamaminhêpoã;esmagam-naapósemumpilãodemadeiraepassandoistonumapeneira,reduzem-naafarinha.Estaseconservapormuitotempo.Comematalfarinhajuntocomademandioca,eistotemmuitobomgosto.”

Várioscronistasescreveramcomentusiasmosobreosabordafarinhade peixe seco que, segundo André Thevet, era “ótima de se comeracompanhada de certa mistura que só eles sabem fazer”. Até hoje, naAmazônia, a farinha de peixe, conhecida como piracuí, é elementoimportantenaalimentaçãodeváriospovosindígenas.

A redução a farinha era uma excelente técnica de conservação dealimentos, visto que os índios conheciam poucos modos de conservarcomida,desconhecendoosusadospeloseuropeus.

Parasecaracarneempregavamomoquém,umaespéciedegrelhadepaus construída sobre o fogo, onde os alimentos erampostos para assaro udefumados até que se tornassem secos. A comida moqueada eraguardada, e quando iam comê-la os índios tornavam a cozê-la. Comonosconta JeandeLéry: “Emsumaessesmoquéns lhesservemdesalgadeira,aparador e guarda-comida; e entrandoemsuas aldeias vemo-los semprecarregados não só de veações ou peixes, mas ainda de coxas, braços,pernasepostasdecarnehumanadosprisioneirosquematamecostumamcomer.”

•BEBIDAS

Aodescreveremasfrutasbrasileiras,colonos,cronistaseviajantessempreobservam que os índios as usavam para fabricarem “seus vinhos”. Oseuropeus chamavam de “vinho” tudo o que fosse bebida fermentada oualcoólica. O famoso cauimdemandioca – feito a partir da raizmastigadapor índias – era “vinho”, assim como bebidas feitas à base de caju,mangaba,abacaxietc.ComoobservaopadreJosédeAnchieta:“[Osíndios]sãomuitodadosaovinho.”Faziam-se“vinhos”compraticamentetodasasfrutasquesecomiam.Os índiosproduziam,portanto,umavastagamade

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bebidas,deváriostiposegostos.

Índiaspreparandocauim

Brandônio, persona-gem doDiálogo das grandezas do Brasil , diz que“pelos matos” se achavam grandes quantidades de vinhos, como os decana-de-açúcar, “que para o gentio da terra e escravos de Guiné émaravilhoso”, umantepassado longínquodacachaça;equeseachavaemabundância um outro “vinho”, feito com cana e especiarias, muitoapreciado pelos homens brancos, “parecido com aloxa” (bebidafermentadademelesucodefrutas).Fazia-setambémumvinhomedicinalcom mel de abelhas, que era bebido misturado com água. As bebidasalcoólicas eram, então, consideradas medicinais, e faziam bem à saúde,segundoaconcepçãodamedicinarenascentista–oquenão impediaqueos jesuítas considerassem excessivo o consumo de “vinhos” pelos índios.NãohátraçosdeproduçãodecachaçanostestemunhosescritosnoséculoXVI;seráapenasnaterceiradécadadoséculoXVIIquesuaproduçãoemalambiquesviráaserregistradaemdocumentos.

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O milho era igualmente empregado na confecção de uma bebidafermentada, tambémobtidaatravésdamastigaçãodasmulheres.ContaofrancêsJeandeLéryqueocauimdemilhoébebida“turvaeespessacomoborra e tem como que o gosto do leite azedo”. O francês, de acordo comsua experiência européia, identi ica dois tipos de cauim demilho: tinto ebranco.Noentanto,Gabriel Soaresde Sousa, o grandegourmet e senhorde engenho português radicado na Bahia, conta que os portugueses e“mestiços” que tinham relações com os índios “não desprezam dele [dovinho de milho] e bebem-no mui valentemente”. Muitos são osdepoimentosdeeuropeusqueaprovarameapreciaramosváriostiposde

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vinhosindígenas.GabrielSoaresdeSousatambémregistraqueovinhodecaju era “de bom cheiro e saboroso”, e que ao vinho de abacaxi eram“muitoafeiçoadosmuitosmestiçoseportugueses”.OpadreFernãoCardimconsiderava o cauim de mandioca “tão fresco e medicinal para o ígadoqueaeleseatribuinãohaverentreeles[índios]doentesdofígado”.

Geralmenteavessosaosanimaiseplantas trazidospelosportugueses,osíndiospassaramausartambémacana-de-açúcarnaprodução deseusvinhos. Segundo Ambrósio Fernandes Brandão, que descreveu o Brasildos primeiros anos do século XVII, os índios iam aos engenhos buscarcana-de-açúcar para preparar a nova bebida, talvez uma das poucasin luênciasalimentaresportuguesasqueassimilaram.Eháumregistrodequeos índios tambémapreciavamovinhoeuropeu.FernãoCardimcontaque,emtrocademantimentos indígenas,os jesuítas lhesofereciamfacas,tesouras,pentese itas, “mas comoquemais folgavamera comumavezdecagui-été,istoé,vinhodePortugal”.

Os índiosnãobebiamcomooseuropeus,diariamente.Reuniam-seemfestas que duravam vários dias – principalmente durante os rituais decanibalismo –, quando bebiam, ininterruptamente, todo o estoque debebidasproduzido.JeandeLérydiztervistomaisde“trintapotesgrandescheios,dispostosem ilaàesperadomomentodecauinar”.Comoexplicaopadre José de Anchieta, “com o vinho das frutas que é muito forte seembebedam muito e perdem o siso”. Ou como descreve AmbrósioFernandes Brandão: “Juntos em roda, muitos homens e mulheres estãonesse canto todoumdia e noite inteira, semdormirem, bebendo sempredeordináriomuitovinhoatécaíremtodosporterrasemacordo,eàsvezessaemtambémdalialgunsnãopoucoescalavrados”.

OcorsárioinglêsRichardHawkinsregistraemseulivrotrêsdiferentesformas de preparar bebidas feitas demandioca, e declara que são todasmuito saborosas e com a mesma cor e sabor doale, a forte e espessacerveja inglesa. Além do cauim fabricado a partir damastigação, ele viumais duas preparações. Na primeira, a mandioca era assada até icarquase queimada, depois pilada até virar pó, e esse pó era misturado àágua; em seguida fervia-se e deixava-se amisturadescansarpor três ouquatro dias. A outra variedade era também à base do pó da mandiocatorrada,misturadoàágua,massemferveroudescansar.Algunscolonoseviajantes demonstraram repugnância pelo cauim, mas alguns gostarammuito,comoéocasodeHawkinsedoalemãoHansStaden.

Paraoseuropeus,acostumadosabebervinhodiariamente,erapreciso

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secontentarcomasbebidaslocais.Ouinventarnovospreparados.JosédeAnchieta, na falta de vinho, bebeu com seus companheiros jesuítas águacozidacommilho,àqualmisturavammel,oquemuitoosconfortou.

Havia, em certas época e lugares, uma escassez desse itemfundamental na alimentação portuguesa: o vinho de uvas. Tentou-se emtodasascapitaniasaplantaçãodeparreiraseaproduçãodevinhos,masos resultados foram pí ios. Gabriel Soares de Sousa diz, na década de1580, que na capitania de São Vicente havia muitas vinhas e que já secolhiamde trêsaquatropipasdevinhoporano.Antesdisso,em1553,ojesuítaLuísdaGrãa irmaraque“vinhofez-senestaBahia,queeuvi”.Masas tentativas sempre falhavam. Ambrósio Fernandes Brandão, em seuDiálogo das grandezas do Brasil , dizia que a culpa era das formigas, quecomiam as plantações de videiras. Se não fosse isso, diz ele, o BrasilproduziriatantovinhoquantoaIlhadaMadeiraouPortugal.

A escassez de vinho era um problema sério para os jesuítas. Nosprimeiros tempos, muitos deixavam de rezar missa pela falta dofundamental ingrediente. Outros guardavam o precioso líquido e oeconomizavam ao máximo, usando, de cada vez, umas poucas gotas. Emlugares longe do litoral, a situação era mais drástica. Embrenhado nosertão da capitania de São Vicente, o padre Leonardo Nunes conta terencontrado uma povoação onde os cristãos estavam há treze anos semreceber vinho, e o pouco que tinham guardado numa botija tinha,“miraculosamente”,duradotodoessetempo,semseestragar.

Mas em vilas em franca expansão econômica, como Salvador, e nascasas dos “principais” e dos senhores de engenho havia vinho de uvas,trazidoda IlhadaMadeiraoudePortugal.ComoobservaopadreFernãoCardim,aofalardadietadospadresdocolégiodeSalvador,nadécadade1580, “nunca falta um copinho de vinho de Portugal, sem o qual não sesustentabemanatureza”.Ovinhoeraconsumido,aoquetudo indica,emgrandesproporções.E talvezmesmopelasmulheres.AindanoséculoXV,em Portugal, no convento de Vila do Conde, o consumo diário de vinhopelas religiosas era de um litro emeio!NoBrasil, havia o luxo de frutasimersas em vinho, como se costumava fazer com o hoje desprezado oiti,tambémconhecidocomoguti.EmPernambuco,haviabanquetesemquesereuniam “dez ou doze senhores de engenho, e de ordinário bebem cadaano50milcruzadosdevinhosdePortugal;ealgunsanosbeberam80milcruzadosdevinhosdePortugal”, contabilizaopadreFernãoCardim,queparticipoudealgunsdessesluxuososbanquetes.

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No que toca às bebidas medicinais, uma alta árvore conhecida pelosíndios como ibiraé (ou buranhém,Pradosia lactescens ) era empregadapara a fabricação de uma bebida cuja virtude, conhecida pelos índios eassimilada e largamente empregada pelos “cristãos”, era a de curar así ilis. O cosmógrafo francês André Thevet dedica um capítulo inteiro deseulivroàárvoreeexplicacomodesuacasca,quesegundoeletinhagostodealcaçuz,seobtinhaapreciosabebida:“ÉassimqueseusanaAmérica:arranca-seumacertaquantidadedestacasca(daqualsaiumleitedurantealgum tempo, logo depois da sua extração). Depois de cortada empedacinhos,acascaédeixadanaáguaferventepeloespaçode3a4horas,até que a decocção adquira a coloração de um vinho clarete. Deve-setomar esta beberagem durante 15 ou 20 dias, fazendo-sesimultaneamenteumalevedieta.Peloqueouvidizer,oresultadoédefatonotável.” Além de usada para combater a sí ilis, a bebida era tambémempregada como um salutar refresco: “Afora isto, trata-se de uma boabebida que pode ser tomada mesmo pelos que estão em gozo de plenasaúde.”

“Surpreendemosumavez”,disseele[umíndio]nasuarudelinguagem,“umacaraveladeperôs(istoé,portugueses,quecomojáreferisãoinimigosmortaisdosnossostupinambás)naqual,demortosecomidos todososhomenserecolhidaamercadoriaexistente,encontramosgrandescaramemos(tonéis e outras vasilhas demadeira) cheias de bebidaque logo tratamosdeprovar.Não sei quequalidadedecauimera,nemseotendesnovossopaís;sóseidizerquedepoisdebebermos icamospor três dias de tal formaprostrados e adormecidos que não podíamos despertar.” É verossímilquefossemtonéisdebomvinhodaEspanha,comosquaisosselvagens,semosaber,festejaramaBaco.Nãoépoisdeadmirarqueonossohomemsetivessesentidotãorepentinamenteatordoado.”

JEANDELÉRY

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Sobreosautores

SHEILA MOURA HUE, doutora em literatura portuguesa pela PUC-Rio,coordenaoNúcleo“ManuscritoseAutógrafos”doRealGabinetePortuguêsde Leitura. É co-autora da edição comentada deA primeira história doBrasil, de Pero de Magalhães de Gândavo, e organizadora dePrimeirascartasdoBrasil eAsincríveisaventuraseestranhos infortúniosdeAnthonyKnivet,todoslançadoscomsucessopelaZahar.

ÂNGELO AUGUSTO DOS SANTOS é biológo pela Universidade Federal deMinasGerais e doutor em ecologia vegetal pela Université des Sciences etTechinique du Languedoc, Montpellier, França. Atualmente trabalha noFundo Brasileiro para a Biodiversidade. São de sua autoria os seguintesverbetes neste livro: inhame e cará, jetica/batata-doce, mandioca,pimentasetaioba.

RONALDOMENEGAZ,doutoremletrasvernáculaseliteraturaportuguesapelaUFRJ, é pesquisador da PUC-Rio e lexicógrafo da Academia Brasileira deLetras.Éautor,comSheilaMouraHue,daediçãocomentadade Aprimeirahistória do Brasil . São de sua autoria os seguintes verbetes neste livro:abacaxi,anta,bijupirá,caju,camupirim,capivara,peixe-boietambuatá.