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DERMEVAL SAVIANI EDUCAÇÃO: DO SENSO COMUM À CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA COLEÇÃO EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA 11ª Edição - 1996 - EDITORA AUTORES ASSOCIADOS Este trabalho reúne estudos redigidos em diferentes oportunidades, obedecendo, porém, a um mesmo propósito: elevar a prática educativa desenvolvida pêlos educadores brasileiros do nível do senso comum ao nível da consciência filosófica. A introdução indica o ponto de convergência do conjunto dos estudos que compõem a obra. Os primeiros textos constituem estudos introdutórios à Filosofia da Educação. Um segundo conjunto de textos refere-se, no geral, a "aspectos organizacionais do trabalho pedagógico na área da educação". Por último, são apresentados, em ordem cronológica, alguns estudos sobre a educação brasileira. O livro constitui um útil instrumento ao ensino das diferentes disciplinas pedagógicas, em especial das cadeiras de Introdução à Educação e Estrutura e Funcionamento do Ensino, podendo também ser incluído na programação do primeiro período letivo da disciplina Filosofia da Educação. DERMEVAL SAVIANI (1944), natural de Santo António de Posse - SR cursou o primário no Grupo Escolar de Vila Invernada, São Paulo - SP (1951 a 1954) e os cursos ginasial e colegial nos Seminários de Cuiabá - MT e Campo Grande - MS ( 955 a 1961). Iniciou os estudos filosóficos no Seminário Central de Aparecida do Norte -SP (|962). Formou-se em Filosofia pela PUC/SP (1966). Em 1971 doutorou-se em Filosofia da Educação pela PUC/SP e em 1986 obteve o título de livre-docente em Historiada Educação na UNICAMP De 1967 a 1970 lecionou Filosofia, História, História da Arte e História e Filosofia da Educação nos cursos colegial e normal. Desde 967 é professor do ensino superior. Atualmente, é professor titular do departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. SUMÁRIO PREFÁCIO

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DERMEVAL SAVIANI

EDUCAÇÃO: DO SENSO COMUM À CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA

COLEÇÃO EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA

11ª Edição- 1996 -

EDITORA AUTORES ASSOCIADOS

Este trabalho reúne estudos redigidos em diferentes oportunidades, obedecendo, porém, a um mesmo propósito: elevar a prática educativa desenvolvida pêlos educadores brasileiros do nível do senso comum ao nível da consciência filosófica.

A introdução indica o ponto de convergência do conjunto dos estudos que compõem a obra. Os primeiros textos constituem estudos introdutórios à Filosofia da Educação. Um segundo conjunto de textos refere-se, no geral, a "aspectos organizacionais do trabalho pedagógico na área da educação". Por último, são apresentados, em ordem cronológica, alguns estudos sobre a educação brasileira.

O livro constitui um útil instrumento ao ensino das diferentes disciplinas pedagógicas, em especial das cadeiras de Introdução à Educação e Estrutura e Funcionamento do Ensino, podendo também ser incluído na programação do primeiro período letivo da disciplina Filosofia da Educação.

DERMEVAL SAVIANI (1944), natural de Santo António de Posse - SR cursou o primário no Grupo Escolar de Vila Invernada, São Paulo - SP (1951 a 1954) e os cursos ginasial e colegial nos Seminários de Cuiabá - MT e Campo Grande - MS ( 955 a 1961). Iniciou os estudos filosóficos no Seminário Central de Aparecida do Norte -SP (|962). Formou-se em Filosofia pela PUC/SP (1966). Em 1971 doutorou-se em Filosofia da Educação pela PUC/SP e em 1986 obteve o título de livre-docente em Historiada Educação na UNICAMP De 1967 a 1970 lecionou Filosofia, História, História da Arte e História e Filosofia da Educação nos cursos colegial e normal. Desde 967 é professor do ensino superior. Atualmente, é professor titular do departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.

SUMÁRIO

PREFÁCIO

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INTRODUÇÃO, 1

CAPÍTULO 1A FILOSOFIA NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR, 9

CAPÍTULO 2FUNÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 25

CAPÍTULO 3VALORES E OBJETIVOS NA EDUCAÇÃO, 35

CAPÍTULO 4VALORES EM SUPERVISÃO PEDAGÓGICA: ABORDAGEM FILOSÓFICA, 41

CAPÍTULO 5PARA UMA PEDAGOGIA COERENTE E EFICAZ, 47

CAPÍTULO 6CONTRIBUIÇÃO A UMA DEFINIÇÃO DO CURSO DE PEDAGOGIA, 53

CAPITULO 7SUBSÍDIOS PARA FUNDAMENTAÇÃO DA ESTRUTURA CURRICULAR DA PUC-SP, 63

CAPÍTULO 8PARTICIPAÇÃO DA UNIVERSIDADE NO DESENVOLVIMENTO NACIONAL:

À UNIVERSIDADE E A PROBLEMÁTICA DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 69

CAPÍTULO 9O PROBLEMA DA PESQUISA NA PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, 87

CAPÍTULO 10UMA CONCEPÇÃO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO, 95

CAPÍTULO 11DOUTORAMENTO EM EDUCAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DA PUC-SP, 101

CAPÍTULO 12SUBSÍDIOS PARA o EQUACIONAMENTO DO PROBLEMA DO LIVRO

DIDÁTICO EM FACE DA LEI Nº 5692/71, 107

CAPÍTULO 13

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ESTRUTURALISMO E EDUCAÇÃO BRASILEIRA, 117

CAPÍTULO 14EDUCAÇÃO BRASILEIRA: PROBLEMAS, 131

CAPÍTULO 15ANÁLISE CRÍTICA DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR BRASILEIRA

ATRAVÉS DAS LEIS N""5.540/68 E 5.692/71, 145

CAPÍTULO 16FUNÇÕES DE PRESERVAÇÃO E DE DEFORMAÇÃO DO CONGRESSO

NACIONAL NA LEGISLAÇÃO DO ENSINO: UM ESTUDO DE POLÍTICA

EDUCACIONAL, 171

CAPÍTULO 17EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:

OBSTÁCULOS,IMPASSES E SUPERAÇÃO, 175

CAPÍTULO 18PAPEL DO DIRETOR DE ESCOLA NUMA SOCIEDADE EM CRISE, 207

CAPÍTULO 19A ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO, 211

BIBLIOGRAFIA CITADA, 243

PREFÁCIO À 11ª EDIÇÃO A primeira edição deste livro foi posta em circulação em 1980. Naquela ocasião redigi um esclarecimento sobre a ordenação dos textos que compõem esta obra nos seguintes termos:

Em primeiro lugar foram reunidos os estudos que tratam da questão educacional em geral, constituindo um conjunto que poderíamos chamar de "ensaios introdutórios à filosofia da educação".

Um segundo conjunto de textos reúne documentos de trabalho elaborados pelo autor como exigência das funções que vem desempenhando em organismos educacionais. Referem-se, no geral, a "aspectos organizacionais do trabalho pedagógico na área de educação". Constitui, de certo modo, exceção a esta regra o estudo denominado "Participação da universidade no desenvolvimento nacional: a universidade e a problemática da educação e cultura", uma vez que, mais do que a preocupação com aspectos organizacionais, procurou-se, aí, levantar uma discussão teórica sobre o problema da universidade. Foi incluído, entretanto, nesse segundo grupo, já que foi escrito como documento de trabalho apresentado e discutido na XXVI11 Reunião Plenária do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras.

Por último, são apresentados, em ordem cronológica, alguns estudos sobre a educação brasileira. O texto denominado "Funções de preservação e de deformação do Congresso Nacional na legislação do ensino" registra, de

forma resumida, observações decorrentes de uma pesquisa mais vasta empreendida pelo autor A decisão de publicá-lo decorreu da consideração de que nele se enunciam, esquematicamente, algumas teses suscetíveis de inspirar interessantes pesquisas no campo da política educacional brasileira.

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Esgotada a primeira edição, registrei as seguintes considerações no prefácio à segunda edição:

Deixando de lado as apreciações positivas, que constituíram a quase totalidade dos comentários que chegaram ao meu conhecimento, aproveito o pequeno espaço deste prefácio para me referir a duas interpretações, a meu ver equivocadas, de dois leitores: a primeira diz respeito a uma suposta leitura de Gramsci; a segunda, ao problema do método ou da lógica. Ambas chegaram ao meu conhecimento informalmente. Se as tomo em consideração, é simplesmente porque elas me oferecem o pretexto para um esclarecimento que eventualmente possa ser de interesse de um número maior de leitores.

No primeiro caso trata-se de uma interpretação que incide sobre o texto introdutório, que recebeu o mesmo título do livro, tomando-o isoladamente e considerando-o como sendo uma leitura de Gramsci. A esse respeito cumpre esclarecer que de forma alguma se pretendeu, naquele texto, apresentar uma leitura de Gramsci. O objetivo do texto era muito simples e despretensioso. Pretendia tão-somente justificar o título dado ao conjunto de ensaios reunidos nesta obra. Se foram feitas diversas citações de Gramsci, isto ocorreu simplesmente porque a temática concernente à relação entre senso comum e filosofia é constante e central no pensamento gramsciano. E, ainda que eu tenha me preocupado com essa problemática, independentemente da influência do vigoroso pensador italiano, não senti necessidade de o proclamar, preferindo, ao contrário, realçar a relevância do tema, pondo em evidencia que tais preocupações já estavam fortemente presentes num autor hoje considerado clássico.

Ademais, os leitores familiarizados com os meus trabalhos sabem que não é a erudição, isto é, a dissecação dos discursos anteriormente produzidos, a sua marca distintiva. Não que eu despreze a erudição; ao contrário, cultivo-a. Subordino-a, porém, ao objetivo de dar conta das questões concretas postas pela prática histórica. Entendo, pois, que a erudição não é o objetivo do discurso filosófico, mas um instrumento que possibilita a esse discurso constituir-se como filosófico. Daí a minha resistência aos chamados estudos monográficos centrados na obra de determinado pensador. No entanto, no caso específico de Gramsci, a partir dos estudos sistemáticos e relativamente exaustivos que fiz sobre a obra do pensador italiano, penso estar em condição de efetuar uma leitura, talvez original, de sua obra, organizando-a em torno da questão da superação do senso comum em direção à elaboração filosófica. Seria, em suma, uma leitura que tomaria como fio condutor o visceral antielitismo que atravessa de ponta a ponta a produção intelectual do autor em referência. Entretanto, não foi isso o que pretendi fazer no texto em pauta. Não se trata, pois, aí, de uma leitura de Gramsci.

Quanto à questão do método e da lógica, observo apenas que, ao afirmar: "não se elabora uma concepção sem método; e não se atinge a coerência sem lógica", eu estava, é óbvio, me referindo à questão da elaboração de uma concepção de mundo adequada aos interesses populares, como já havia deixado claro nas considerações anteriores. Não se tratava, pois, de elaborar, aí, a referida concepção e, sim, de indicar a exigência lógico-metodológica para essa elaboração. Assim como Marx, no texto denominado "Método da economia política", não elaborou o materialismo histórico (a crítica da economia política), mas se preocupou em indicar o caminho (o método) para essa elaboração, assim também, guardadas as devidas proporções, tal foi a minha preocupação no texto que serviu de introdução ao livro. Igualmente é uma leitura ingénua concluir que eu, ao mencionar o exemplo do modo como trabalhei uma questão específica com os alunos em sala de aula, estivesse acreditando que a abordagem dialética da educação pudesse se esgotar no interior da sala de aula e na relação interindividual. Com aquela ilustração eu me propunha ao mesmo tempo a utilizar um recurso didático que facilitasse ao leitor a compreensão da contradição como categoria lógica e, além disso, evidenciar que, se pretendemos assumir a postura dialética, devemos assumi-la permanentemente; logo, também no interior da sala de aula.

A rapidez com que se esgotou a primeira edição manteve-se nas subseqüentes ) que se evidencia pelo fato de que a última edição (a décima) se encontra esgotada p/já há alguns meses. Essa regularidade evidencia que o interesse pela presente obra Continua vivo, mantendo-se, em conseqüência, a atualidade dos estudos nela incluídos neste livro, portanto, continua sendo um instrumento útil ao ensino das diferentes disciplinas pedagógicas, em geral, e, em especial, das cadeiras de Introdução à Educação e Estrutura e Funcionamento do Ensino podendo, também, ser incluído na programação do primeiro período letivo da disciplina Filosofia da Educação.

Hoje, ao ensejo desta 11ª edição, as duas leituras equivocadas às quais me referi no prefacio à 2ª edição já caíram no esquecimento. Em contrapartida, a acolhida dos leitores constitui um estímulo para que eu prossiga na tarefa de esclarecimento de nossa inteligência a fim de tornar mais eficaz a dura luta que travamos para garantir o direito a uma educação de qualidade à população brasileira em seu conjunto.

Campinas, fevereiro de 1994. Dermeval Saviani

INTRODUÇÃO

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Os textos reunidos neste volume foram escritos em diferentes oportunidades, não tendo sido pensados como capítulos de um mesmo livro. A maior parte deles foi escrita com finalidade didática, isto é, foram redigidos para servirem de instrumentos às aulas por mim ministradas ou constituem transcrições de palestras por mim proferidas. É ainda a finalidade didática a principal razão que me levou a ceder às insistentes sugestões para que esses trabalhos fossem reunidos num livro ficando, assim, à disposição dos professores para sua utilização. Relutei durante mais de dois anos a acatar a idéia de tal publicação. Isto porque pensava que o seu uso estava estreitamente vinculado ao autor que os ampliava e lhes dava dimensões muito precisas e concretas na atividade em sala de aula; pensava também que, enquanto instrumento de trabalho, o material produzido dependia diretamente de seu autor e não se tinha garantias de que o mesmo material, utilizado por aqueles que não o produziram, poderia gerar os resultados promissores então obtidos. Isto - é bom esclarecer - não por limitações dos professores que viessem a utilizá-lo, mas por limitações do próprio material que eu julgava não suficientemente elaborado para ser dado a público.

Entretanto, o fato concreto é que tal material já escapou de meu controle, tendo sido amplamente utilizado por ex-alunos e colegas como instrumento de trabalho em sala de aula. Assim, vem sendo reproduzido a cada ano de forma precária através de mimeógrafos (ou outros meios) para uso particular dos professores. Alguns dos textos foram publicados em revistas que, uma vez esgotadas, provocaram também

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o recurso ao mimeógrafo. A precariedade dessa reprodução tem levado os professores a me solicitar a publicação desse material, o que faço, finalmente, editando o presente livro.

Já que os diferentes ensaios aqui incluídos não foram escritos como partes de um mesmo livro, eles guardam certa independência entre si, apresentando, em conseqüência, algumas inevitáveis e compreensíveis reiterações. Tais reiterações, dada a finalidade didática da obra, revestem-se de conotação positiva, uma vez que, como afirma Gramsci, "a repetição é o meio didático mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular".(1)

Apesar da independência referida no parágrafo anterior, os textos não deixam de formar um conjunto unitário, uma vez que foram elaborados com um propósito comum: elevar a prática educativa desenvolvida pêlos educadores brasileiros do nível do senso comum ao nível da consciência filosófica. Eis porque o presente volume recebe o título de "Educação: do senso comum à consciência filosófica".

O título supra exige algumas observações complementares.

Passar do senso comum à consciência filosófica significa passar de uma concepção fragmentária, incoerente, desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passiva e simplista a uma concepção unitária, coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada.(2)

Ora, as notas distintivas do senso comum acima enunciadas são intrínsecas à mentalidade popular; entendido o povo como "o conjunto das classes subalternas e instrumentais de toda forma de sociedade até agora existente".(3) Em contrapartida, as características da consciência filosófica constituem expressão de hegemonia. Com efeito, a concepção de mundo hegemônica é exatamente aquela que, mercê de sua expressão universalizada e seu alto grau de elaboração, logrou obter o consenso das diferentes camadas que integram a sociedade, vale dizer, logrou converter-se em senso comum. É nesta forma, isto é, de modo difuso, que a concepção

1. GRAMSCI, A. O Materialismo Histórico, p. 20.

2. O leitor terá percebido que senso comum e consciência filosófica foram caracterizados por conceitos mutuamente contrapostos, de modo que se podem dispor os seguintes pares antinômicos: fragmentário/unitário, incoerente - coerente, desarticulado/articulado, implícito/ explícito, degradado/original, mecânico/intencional, passivo/ativo, simplista/cultivado. (Ver, a respeito, A.M. Cirese, "Conceptions du monde, philosophie spontanée, folklore", in Dialectiques, n. 4-5, pp. 83-100.)

3. GRAMSCI, A. - Letteratura e V/to Nazionale, p. 268.

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dominante (hegemônica) atua sobre a mentalidade popular articulando-a em torno dos interesses dominantes e impedindo ao mesmo tempo a expressão elaborada dos interesses populares, o que concorre para inviabilizar a organização das camadas subalternas enquanto classe. O senso comum é, pois, contraditório, dado que se constitui, num amálgama integrado por elementos implícitos na prática transformadora do homem de massa e por elementos superficialmente explícitos caracterizados por conceitos herdados da tradição ou veiculados pela concepção hegemônica e acolhidos sem crítica.(4)

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As considerações supra já permitem perceber que as relações entre senso comum e filosofia assumem a forma de uma relação de hegemonia cuja plena significação radica na estrutura da sociedade em que tal relação se trava. E numa formação social como a nossa, marcada pelo antagonismo de classes, as relações entre senso comum e filosofia se travam na forma de luta - a luta hegemônica. Luta hegemônica significa precisamente: processo de desarticulação-rearticulação, isto é, trata-se de desarticular dos interesses dominantes.aqueles elementos que estão articulados em torno deles, mas não são inerentes à ideologia dominante e rearticulá-los em torno dos interesses populares, dando-lhes a consistência, a coesão e a coerência de uma concepção de mundo elaborada, vale dizer, de uma filosofia.

Considerando-se que "toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica",(5) cabe entender a educação como um instrumento de luta. Luta para estabelecer uma nova relação hegemônica que permita constituir um novo bloco histórico sob a direção da classe fundamental dominada da sociedade capitalista – o proletariado. Mas o proletariado não pode se erigir em força hegemônica sem a elevação do nível cultural das massas. Destaca-se aqui a importância fundamental da educação. A forma de inserção da educação na luta hegemônica configura dois momentos simultâneos e organicamente articulados entre si: um momento negativo que consiste na crítica da concepção dominante (a ideologia burguesa); e um momento positivo que significa: trabalhar o senso comum de modo a extrair o seu núcleo válido (o bom senso) e dar-lhe expressão elaborada com vistas à formulação de uma concepção de mundo adequada aos interesses populares.

Como realizar essa tarefa? Ora, não se elabora uma concepção sem método; e não se atinge a coerência sem lógica. Mais do que isso, se se trata de elaborar uma

4. Cf. GRAMSCI, A. - II Materialismo Storico, p. 13,

5. Ibidem, p. 3 l.

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concepção que seja suscetível de se tornar hegemônica, isto é, que seja capaz de superar a concepção atualmente dominante, é necessário dispor de instrumentos lógico-metodológicos cuja força seja superior àqueles que garantem a força e coerência da concepção dominante. Aqui são fundamentais as indicações contidas no texto de Marx denominado "Método da Economia Política",(6) o qual coloca de modo correto a distinção entre o concreto, o abstrato e o empírico. Com efeito, a lógica dialética não é outra coisa senão o processo de construção do concreto de pensamento (ela é uma lógica concreta) ao passo que a lógica formal é o processo de construção da forma de pensamento (ela é, assim, uma lógica abstrata). Por aí, pode-se compreender o que significa dizer que a lógica dialética supera por inclusão/ incorporação a lógica formal (incorporação, isto quer dizer que a lógica formal já não é tal e sim parte integrante da lógica dialética). Com efeito, o acesso ao concreto não se dá sem a mediação do abstrato (mediação da análise como escrevi em outro lugar(7) ou o "détour" de que fala Kosik(8). Assim, aquilo que é chamado de lógica formal ganha um significado novo e deixa de ser a lógica para se converter num momento da lógica dialética. A construção do pensamento se daria, pois, da seguinte forma: parte-se do empírico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao concreto. Diferentemente, pois, da crença que caracteriza o empirismo, o positivismo, etc. (que confundem o concreto com o empírico) o concreto não é o ponto de partida, mas o ponto de chegada do conhecimento. E no entanto, o concreto é também o ponto de partida. Como entender isso? Poder-se-ia dizer que o concreto-ponto de partida é o concreto real e o concreto-ponto de chegada é o concreto pensado, isto é, a apropriação pelo pensamento do real-concreto. Mais precisamente: o pensamento parte do empírico, mas este tem como suporte o real concreto.(9) Assim, o verdadeiro ponto de partida, bem como o verdadeiro ponto de chegada é o concreto real. Desse modo, o empírico e o abstrato são momentos do processo de conhecimento, isto

6. Cf. MARX, K. - Contribuição para a Crítica da Economia Política, pp. 228-237.

7. Cf. SAVIANI, D. - Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, pp. 28-29.

8. Cf. KOSIK. K. - Dialética do Concreto, pp. 9 e 21.

9. O empírico, ao mesmo tempo que revela, oculta o concreto. Na linguagem de Kosik poder-se-ia substituir a dupla empírico-concreto pela dupla fenômeno-essência. Deve-se notar, porém, que esta última dupla guarda ressonâncias metafísicas e idealistas. Marx raramente a usa nas obras de maturidade. Kosik a recupera e articula esses conceitos numa "dialética da totalidade concreta". Tal recuperação se deu, provavelmente, por influência de Husserl e Heidegger cujos cursos Kosik teria assistido em Praga. Talvez seja por esta recuperação que certos críticos tendem a classificar Kosik como idealista.

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é, do processo de apropriação do concreto no pensamento. Por outro lado, o processo de conhecimento em seu conjunto é um momento do processo concreto (o real-concreto). Processo, porque o concreto não é o dado (o empírico) mas uma totalidade articulada, construída e em construção. O concreto é, pois, histórico; ele se dá e se revela na e pela práxis.

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Portanto, a lógica dialética não tem por objeto as leis que governam o pensamento enquanto pensamento. Seu objeto é a expressão, no pensamento, das leis que governam o real. A lógica dialética se caracteriza, pois, pela construção de categorias saturadas de concreto. Pode, pois, ser denominada a lógica dos conteúdos, por oposição à lógica formal que é, como o nome indica, a lógica das formas.

A orientação metodológica acima indicada pode ser ilustrada através do exemplo de uma questão lançada por mim aos alunos em sala de aula. A questão foi a seguinte: "o educador é agente (causa) ou produto (efeito) da educação?". A partir das respostas dos alunos fui desenvolvendo com eles um raciocínio através do qual explorei as possibilidades da lógica formal, mediante o princípio de não-contradição, conduzindo-a até seu limiar, quando o estourar de seus quadros obrigou a recorrerão princípio da contradição. Ora, o que fiz não foi outra coisa senão partir do empírico, analisando diversas situações (a hetero-educação, a auto-educação, a educação da infância e da juventude, a educação de adultos, a educação permanente, a educação dos educandos, a educação dos educadores, a educação dos educandos-educadores e dos educa-dores-educandos, etc.) através de sucessivas abstrações, isto é, guiando-me pelo princípio de não-contradição. Assim, examinei, primeiro, a afirmação:"o educador não pode ser agente e produto da educação"; depois: "o educador não pode ser agente e produto da educação ao mesmo tempo", isto é, ele pode ser agente e produto, não, porém, ao mesmo tempo; em seguida: "o educador não pode ser agente e produto da educação ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto", isto é, ele pode ser agente e produto da educação ao mesmo tempo, não, porém, sob o mesmo aspecto; por último, examinei a afirmação:"o educador é agente e produto da educação ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto". A aceitação dessa afirmação implica o rompimento do princípio de não-contradição, vale dizer, a ultrapassagem dos quadros da lógica formal. Mas o que isto quer dizer senão que, através das mediações do empírico e do abstrato, nós nos apropriamos, no plano do pensamento, do real-concreto, isto é, o processo educativo enquanto síntese de múltiplas determinações, processo este que constitui o suporte de todo o raciocínio, raciocínio esse que, por sua vez, se constituiu num dos momentos do próprio processo concreto da educação?

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Percebe-se com relativa facilidade que a passagem do empírico ao concreto corresponde, em termos de concepção de mundo, à passagem do senso comum à consciência filosófica. Com efeito, o exame da questão "o educador é agente ou produto da educação?" foi feito a partir das respostas verbalizadas pêlos alunos o que tornou possível efetuar simultaneamente a crítica da concepção dominante e elaborar o núcleo válido do senso comum. A crítica da concepção dominante foi feita através da sua expressão em diferentes teorias pedagógicas (diretivismo, não-diretivismo, educação permanente, etc.) cuja presença foi detectada nas respostas dos alunos, as quais foram referidas à sua matriz lógica fundamental: o princípio de não-contradição. A elaboração do bom-senso foi feita fazendo emergir das respostas dos alunos a educação como fenómeno concreto, vale dizer, a prática educativa como totalidade orgânica que sintetiza as múltiplas determinações características da sociedade que historicamente a produz, e cuja elaboração no plano do pensamento se torna possível por referência a um princípio superior capaz de articular forma e conteúdo: o princípio dialético da contradição.

De tudo o que foi dito conclui-se que a passagem do senso comum à consciência filosófica é condição necessária para situar a educação numa perspectiva revolucionária. Com efeito, é esta a única maneira de convertê-la em instrumento que possibilite aos membros das camadas populares a passagem da condição de "classe em si" para a condição de "classe para si". Ora, sem a formação da consciência de classe não existe organização e sem organização não é possível a transformação revolucionária da sociedade.

Cabe frisar, por fim, que o reconhecimento da importância da educação traduz uma posição incompatível com a postura elitista. Com efeito, preocupar-se com a educação significa preocupar-se com a elevação do nível cultural das massas; significa, em consequência, admitir que a defesa de privilégios (essência mesma da postura elitista) é uma atitude insustentável. Isto porque a educação é uma atividade que supõe a heterogeneidade (diferença) no ponto de partida e a homogeneidade (igualdade) no ponto de chegada. Diante disso, a forma pela qual a classe dominante, através de suas elites, impede a elevação do nível de consciência das massas é manifestando uma despreocupação, um descaso e até mesmo um desprezo pela educação. Por isso, Gramsci pôde escrever:

"Nós não podemos afirmarem sã consciência que a burguesia faça uso da escola no sentido de sua dominação de classe; se ela assim o fizesse isso significaria que a classe burguesa tem um programa escolar a ser cumprido com energia e perse-

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verança; a escola seria uma escola viva. Isso não acontece: a burguesia, classe que domina o Estado, desinteressa-se da escola, deixa que os burocratas façam dela o que quiserem, deixa que os ministros da Educação sejam escolhidos ao acaso de interesses políticos, de intrigas, de "conchavos" de partidos e arranjos de gabinetes..."(10)

Compreende-se então que as elites que controlam, seja o aparelho governamental, seja o aparelho escolar, em especial as universidades, releguem a educação a uma questão que diz respeito meramente ao senso comum

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(eufemisticamente chamado de bom-senso). Comportam-se como o jesuitismo cuja preocupação, segundo a crítica gramsciana, era manter as massas ao nível do sincretismo que caracteriza o senso comum. Ao jesuitismo, Gramsci contrapõe o marxismo, ao afirmar:

"’A filosofia da práxis não busca manter os "simplórios" na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simplórios não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade ao nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral, que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais.’”

É este o momento para se fazer ao mesmo tempo um alerta e uma denúncia.

Um alerta àqueles intelectuais que sinceramente buscam articular o melhor de seus esforços com a defesa dos interesses populares, no sentido de que meditem sobre a seguinte questão: até que ponto, o fato de não darem a devida importância para a educação não neutraliza boa parte de seus esforços, levando-os mesmo a assumirem posições que, incoerentemente com os objetivos que perseguem, redundam direta ou indiretamente em mecanismos de discriminação e defesa de privilégios?

Uma denúncia daqueles intelectuais que, a despeito de assumirem posições progressistas nas cátedras universitárias, por devotarem manifesto ou velado desprezo à educação e por lhe negarem o caráter de objeto digno de ser tratado com a seriedade acometida às ciências e à filosofia, participam, reforçam e legitimam a grande mistificação que vem caracterizando o trato das questões educacionais neste país. Nessa postura elitista, ignoram eles que sua própria prática, isto é, a prática que

10. GRAMSCI, A. - LOrdine Nuovo: 1919-1920. pp. 255-256. l I. GRAMSCI, A. - Concepção Dialética da História, p. 20.

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desenvolvem na universidade não é outra senão a prática educativa, enredando-se, com isso, na contradição de desconhecerem sua própria prática ao mesmo tempo que se arvoram em intérpretes autorizados da prática das populações que eles próprios discriminam.

A uns e a outros cabe lembrar a propósito da educação aquilo que Gramsci afirmou a respeito do folclore: A educação "não deve ser concebida como algo bizarro, mas como algo muito sério e que deve ser levado a sério. Somente assim o ensino será mais eficiente e determinará realmente o nascimento de uma nova cultura entre as grandes massas populares, isto é, desaparecerá a separação entre cultura moderna e cultura popular ou folclore".(12)

12. GRAMSCI, A. - Literatura e Vida Nacional, pp. 186-187. N.B.: No texto de Gramsci lê-se: "O folclore não deve ser concebido..."

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CAPÍTULO UM

A FILOSOFIA NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR

A Filosofia da Educação entendida como reflexão sobre os problemas que surgem nas atividades educacionais, seu significado e função.

O objetivo deste texto(1) é explicitar o sentido e a tarefa da filosofia na educação. Em que a filosofia poderá nos ajudar a entender o fenómeno da educação? Ou, melhor dizendo: se pretendemos ser educadores, de que maneira e em que medida a filosofia poderá contribuir para que alcancemos o nosso objetivo? Na verdade, a expressão "filosofia da educação" é conhecida de todos. Qual é, entretanto, o seu significado? Aceita-se correntemente como inquestionável a existência de uma dimensão filosófica na educação. Diz-se que toda educação deve ter uma orientação filosófica. Admite-se também que a filosofia desempenha papel imprescindível na formação do educador. Tanto assim é que a Filosofia da Educação figura como disciplina obrigatória do currículo mínimo dos cursos de Pedagogia. Mas em que se

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baseia essa importância concedida à Filosofia? Teria ela bases reais ou seria mero fruto da tradição? Será que o educador precisa realmente da filosofia? Que é que determina essa necessidade? Em outros termos: que é que leva o educador a filosofar? Ao colocar essa questão, nós estamos nos interrogando sobre o significado e a função da Filosofia em si mesma. Poderíamos, pois, extrapolar o âmbito do educador e perguntar genericamente: que é que leva o homem a filosofar? Com isto estamos em busca do ponto de partida da filosofia, ou seja, procuramos determinar aquilo que provoca o surgimento dessa atitu-

1. Escrito em 1973 como texto didático para os alunos da disciplina Filosofia da Educação l, do curso de Pedagogia - PUC/SP Publicado na Revista D/doto, nº l, janeiro de 1975.

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de não habitual, não espontânea à existência humana. Com efeito, todos e cada um de nós nos descobrimos existindo no mundo (existência que é agir, sentir, pensar). Tal existência transcorre normalmente, espontaneamente, até que algo interrompe o seu curso, interfere no processo alterando a sua seqüência natural. Aí, então, o homem é levado, é obrigado mesmo, a se deter e examinar, procurar descobrir o que é esse algo. E é a partir desse momento que ele começa a filosofar. O ponto de partida da filosofia é, pois, esse algo a que damos o nome de problema. Eis, pois, o objeto da filosofia, aquilo de que trata a filosofia, aquilo que leva o homem a filosofar: são os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existência.

1. NOÇÃO DE PROBLEMA Mas que é que se entende por problema? Tão habituados estamos ao uso dessa palavra que receio já tenhamos perdido de vista o seu significado.

1.1. Os Usos Correntes da Palavra "Problema": Um dos usos mais frequentes da palavra problema é, por exemplo, aquele que a considera como sinónimo de questão. Neste sentido, qualquer pergunta, qualquer indagação é considerada problema. Esta identificação resulta, porém, insuficiente para revelar o verdadeiro caráter, isto é, a especificidade do problema. Com efeito, se eu pergunto a um dos leitores: "quantos anos você tem?", parece claro que eu estou lhe propondo uma questão; e parece igualmente claro que isto não traz qualquer conotação problemática. Na verdade, a resposta será simples e imediata. Não se conclua daí, todavia, que a especificidade do problema consiste no elevado grau de complexidade que uma questão comporta. Neste caso estariam excluídos da noção de problema as questões simples, reservando-se aquele nome apenas para as questões complexas. Não se trata disso. Por mais que elevemos o grau de complexidade, mesmo que alcemos a complexidade de uma questão a um grau infinito, não é isto que irá caracterizá-la como problema. Se eu complico a pergunta feita ao meu suposto leitor e lhe solicito determinar quantos meses, ou mesmo, quantos segundos perfazem a sua existência, ainda assim não estamos diante de algo problemático. A resposta não será simples e imediata mas nem por isso o referido leitor se perturbará. Provavelmente, retrucará com segurança:" dê-me tempo para fazer os cálculos e

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lhe apresentarei a resposta"; ou então: "uma questão como essa é totalmente destituída de interesse; não vale a pena perder tempo com ela". Note-se que o uso da palavra problema para designar os exercícios escolares (de modo especial os de matemática) se enquadra nesta primeira acepção. São, com efeito, questões. E mais, questões cujas respostas são de antemão conhecidas. Isto é evidente em relação ao professor, mas não deixa de ocorrer também no que diz respeito ao aluno. Na verdade, o aluno sabe que o professor sabe a resposta; e sabe também que, se ele aplicar os procedimentos transmitidos na seqüência das aulas, a resposta será obtida com certeza. Se algum problema ele tem, não se trata aí do desconhecimento das respostas às questões propostas mas, eventualmente, da necessidade de saber quais as possíveis conseqüências que poderá acarretar o fato de não aplicar os procedimentos transmitidos nas aulas. Isto, porém, será esclarecido mais adiante. O que gostaria de deixar claro no momento é que uma questão, em si, não é suficiente para caracterizar o significado da palavra problema. Isto porque uma questão pode comportar (e o comporta com freqüência, segundo se explicou acima) resposta já conhecida. E quando a resposta é desconhecida? Estaríamos aí diante de um problema? Aqui, porém, nós já estamos abordando uma segunda forma do uso comum e corrente da palavra. Trata-se do problema como não-saber.

De acordo com esta acepção, problema significa tudo aquilo que se desconhece. Ou, como dizem os dicionários, "coisa inexplicável, incompreensível" (cf. Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, vol. IV verbete problema, Ed. Delta). Levada ao extremo, tal interpretação acaba por identificar o termo problema com mistério, enigma (o que também pode ser comprovado numa consulta aos dicionários). No entanto, ainda aqui, o fato de desconhecermos algo, a circunstância de não sabermos a resposta a determinada questão, não é suficiente para

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caracterizar o problema. Com efeito, se retomo o diálogo com o meu suposto leitor e lhe pergunto agora: "quais os nomes de cada uma das ilhas que compõem o arquipélago das Filipinas?" (cerca de 7.100 ilhas). Ou: "Quais os nomes de cada uma das Ilhas Virgens (cerca de 53), território do Mar das Antilhas incorporado aos EE.UU.?" Com certeza, o referido leitor não saberá responder a estas perguntas e, mesmo, é possível que sequer soubesse da existência das tais ilhas Virgens. É evidente, Contudo, que essa situação não se configura como problemática. E quando o não-saber é levado a um grau extremo, implicando a impossibilidade absoluta do saber, configura-se, como já se disse, o mistério. Mistério, porém, não é sinônimo de problema. É, ao contrário e frequentemente, a solução do problema, e, quiçá, de

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todos os problemas. Dá prova disso a experiência religiosa. A atitude de fé implica a aceitação do mistério. O homem de fé vive da confiança no desconhecido ou, melhor dizendo, no incognoscível. Este é a fonte da qual brota a solução para todos os problemas. Com isto não quero dizer que a atitude de fé não possa revestir-se, em determinadas circunstâncias, de certo caráter problemático. Apenas quero frisar que o problema não está na aceitação do mistério, na confiança no incognoscível. Esta é uma necessidade inerente ao ato de fé. O problema da atitude de fé estará no fato de que essa necessidade não possa ser satisfeita, ou seja, na possibilidade de que a confiança no incognoscível venha a ser abalada.

Em suma, as coisas que nós ignoramos são muitas e nós sabemos disso. Todavia, este fato, como também a consciência deste fato, ou mesmo, a aceitação da existência de fenômenos que ultrapassam irredutivelmente e de modo absoluto a nossa capacidade de conhecimento, nada disso é suficiente para caracterizar o significado essencial que a palavra problema encerra.

O uso comum do termo, cujo constitutivo fundamental estamos buscando, registra outros vocábulos tais como obstáculo, dificuldade, dúvida, etc. Não é preciso, porém, muita argúcia para se perceber a insuficiência dos mesmos em face do objetivo de nossa busca. Existem muitos obstáculos que não constituem problema algum. Quanto ao vocábulo "dificuldade", é interessante notar as seguintes definições de "problema", encontradas nos dicionários: "coisa de difícil explicação" (cf. Caldas Aulete, citado) e "coisa difícil de explicar" (cf. Francisco Fernandes, D/c. Brás. Contemporâneo, p. 867). Julgamos supérfluo comentar semelhantes definições, uma vez que as considerações anteriores já evidenciaram suficientemente que não é o grau de dificuldade (mesmo que seja elevado ao infinito) que permite considerar algo como problemático. Por fim, a dúvida tem, a partir de sua etimologia, o significado de uma dupla possibilidade. Implica, pois, a existência de duas hipóteses em princípio igualmente válidas, embora mutuamente excludentes. Ora, em determinadas circunstâncias é perfeitamente possível manter as duas hipóteses sem que isto represente problema algum. O ceticismo é um exemplo típico. Ávida cotidiana assim como a história da ciência e da filosofia nos oferecem inúmeras ilustrações da "dúvida não problemática". Tomemos apenas um exemplo da experiência cotidiana: imaginemos dois garotos caminhando em direção à escola; a cem metros desta, um deles lança ao outro o seguinte desafio:" duvido que você seja capaz de chegar antes de mim". Nesta frase, ambas as hipóteses, ou seja, "você é capaz" e "você não é capaz" são igualmente admissíveis, embora mutuamente excludentes. Ao dizer "duvido", o

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desafiante estava indicando: "não nego, em princípio, a sua capacidade; mas, até que você me demonstre o contrário, não posso tampouco admiti-la". O desafiado poderá aceitar o desafio e uma das hipóteses será comprovada, dissipando-se conseqüentemente a dúvida. Poderá, contudo, não aceitar e a dúvida persistirá sem que isto implique problema algum.

1.2. Necessidade de se Recuperar a Problematicidade do "Problema" Notamos, pois, que o uso comum e corrente da palavra problema acaba por nos conduzirá seguinte conclusão, aparentemente incongruente: "o problema não é problemático". Isto permitiu a Julián Marías(2) afirmar:

"Os últimos séculos da história européia abusaram levianamente da denominação "problema"; qualificando assim toda pergunta, o homem moderno, e principalmente a partir do último século, habituou-se a viver tranquilamente entre problemas, distraído do dramatismo de uma situação quando esta se torna problemática, isto é, quando não se pode estar nela e por isso exige uma solução."

Se o problema deixou de ser problemático, cumpre, então, recuperar a problematicidade do problema. Estamos aqui diante de uma situação que ilustra com propriedade o processo global no qual se desenrola a existência humana. Examinamos alguns fenômenos, ou seja, algumas formas de manifestação do problema. No entanto, o fenômeno, ao mesmo tempo que revela (manifesta) a essência, a esconde. Trata-se daquilo a que Karel Kosik(3) denominou "o mundo da pseudo-concreticidade". Importa destruir esta "pseudo-concreticidade" a fim de captar a verdadeira concreti-cidade. Esta é a tarefe da ciência e da filosofia. Ora, captar a verdadeira concreticidade não é outra coisa senão captar a essência. Não se trata, porém, de algo subsistente em si e por si que esteja oculto por detrás da cortina dos fenômenos. A essência é um produto do modo pelo qual o homem produz sua própria existência. Quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu, ele

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está vivendo no mundo da "pseudo-concreticidade". Ele toma como essência aquilo que é apenas fenômeno, isto é, aquilo que é apenas manifestação da essência. No caso que estamos

2. MARÍAS, J. - Introdução à Filosofia, p. 22.

3. KOSIK, K. - Dialética do Concreto, especialmente pp. 9-20.

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examinando, ele toma por problema aquilo que é apenas manifestação do problema.

Após essas considerações, cabe perguntar agora: qual é, então, a essência do problema? No processo de produção de sua própria existência o homem se defronta com situações ineludíveis, isto é: enfrenta necessidades de cuja satisfação depende a continuidade mesma da existência (não confundir existência, aqui empregada, com subsistência no estrito sentido econômico do termo). Ora, este conceito de necessidade é fundamental para se entender o significado essencial da palavra problema. Trata-se, pois, de algo muito simples, embora frequentemente ignorado. A essência do problema é a necessidade. Com isto é possível agora destruir a "pseudo-concreticidade" e captar a verdadeira "concreticidade". Com isto, o fenômeno pode revelar a essência e não apenas ocultá-la. Com isto nós podemos, enfim, recuperar os usos correntes do termo "problema", superando as suas insuficiências ao referi-los à nota essencial que lhes impregna de problematicidade: a necessidade. Assim, uma questão, em si, não caracteriza o problema, nem mesmo aquela cuja resposta é desconhecida; mas uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer; eis aí um problema. Algo que eu não sei não é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário transpor, uma dificuldade que precisa ser superada, uma dúvida que não pode deixar de ser dissipada são situações que se configuram como verdadeiramente problemáticas.

A esta altura, é importante evitar uma possível confusão. Se consignamos como nota definitória fundamental do conceito de problema a necessidade, não se creia com isso que estamos subjetivizando o significado do problema. Tal confusão é possível uma vez que o termômetro imediato da noção de necessidade é a experiência individual, o que pode fazer oscilar enormemente o conceito de problema em função da diversidade de indivíduos e da multiplicidade de circunstâncias pelas quais transita diariamente cada indivíduo. Deve-se notar, contudo, que o problema, assim como qualquer outro aspecto da existência humana, apresenta um lado subjetivo e um lado objetivo, intimamente conexionados numa unidade dialética. Com efeito, o homem constrói a sua existência, mas o faz a partir de circunstâncias dadas, objetivamente determinadas. Além disso, é, ele próprio, um ser objetivo sem o que não seria real. A verdadeira compreensão do conceito de problema supõe, como já foi dito, a necessidade. Esta só pode existir se ascender ao plano consciente, ou seja, se for sentida pelo homem como tal (aspecto subjetivo); há, porém, circunstâncias concretas que objetivizam a necessidade sentida, tornando possível, de um lado, avaliar o seu caráter

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real ou suposto (fictício) e, de outro, prover os meios de satisfazê-la. Diríamos, pois, que o conceito de problema implica tanto a. conscientização de uma situação de necessidade (aspecto subjetivo) como uma situação conscientizadora da necessidade (aspecto objetivo).

Essas observações foram necessárias a fim de tornar compreensível o uso de expressões como "pseudo-concreticidade" e, no caso específico, "pseudo-problema". Na verdade, se problema é aquela necessidade que cada indivíduo sente, não teria sentido falar-se em "pseudo-problema". O problema existiria toda vez que cada indivíduo o sentisse como tal, não importando as circunstâncias de manifestação do fenômeno. Sabemos, porém, que uma reflexão sobre as condições objetivas em que os homens produzem a própria existência nos permite detectara ocorrência daquilo que está sendo denominado "pseudo-problema". A estrutura escolar (em geral por reflexo da estrutura . social) é fértil em exemplos dessa natureza. Muitas das questões que integram os currículos escolares são destituídas de conteúdo problemático, podendo-se aplicar a elas aquilo que dissemos a propósito dos exercícios escolares: "se algum problema o aluno tem, não se trata aí do desconhecimento das respostas às questões propostas mas, eventualmente, da necessidade de saber quais as possíveis conseqüências que lhe poderá acarretar o fato de não aplicar os procedimentos transmitidos nas aulas". Toda uma série de mecanismos artificiais é desencadeada como resposta ao caráter artificioso das questões propostas. O referido caráter artificioso configura, evidentemente, o que denominamos "pseudo-problema". Um raciocínio extremado tornará óbvio o que acabamos de dizer: suponhamos que as 7.100 ilhas do arquipélago das Filipinas tenham, cada uma, um nome determinado. Suponhamos, ainda, que um professor de Geografia exija de seus alunos o conhecimento de todos esses nomes. Os alunos estarão, então, diante de um problema: como conseguir a aprovação em face dessa exigência? Uma vez que eles não necessitam saber os nomes das ilhas (isso não é problema), mas precisam ser aprovados, partirão em busca dos artifícios ("pseudo-soluções") que lhes garantam a aprovação. Está aberto o caminho para a fraude, para a impostura. Com este fenómeno estão relacionados os ditos já generalizados, como: "os alunos aprendem apesar dos professores", ou "a única vez que a minha educação foi interrompida foi quando estive na escola" (Bernard Shaw).(4)

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4. Cf. POSTMAN, N. & WEINGARTNER, C. - Contestação; Nora Fórmula de Ensino, p. 77. Recomendamos a leitura de todo o cap. IV - Em busca da relevância, pp. 65-87, onde são encontrados diversos exemplos de "pseudo-problemas".

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O "pseudo-problema", como já se disse, é possível em virtude de que os fenómenos não apenas revelam a essência, mas também a ocultam. A consciência dessa possibilidade torna imprescindível um exame detido das condições objetivas em que se desenvolve a nossa atividade educativa.

Em suma: problema, apesar do desgaste determinado pelo uso excessivo do termo, possui um sentido profundamente vital e altamente dramático para a existência humana, pois indica uma situação de impasse. Trata-se de uma necessidade que se impõe objetivamente e é assumida subjetivamente. O afrontamento, pelo homem, dos problemas que a realidade apresenta, eis aí, o que é a filosofia. Isto significa, então, que a filosofia não se caracteriza por um conteúdo específico, mas ela é, fundamentalmente, uma atitude; uma atitude que o homem toma perante a realidade. Ao desafio da realidade, representado pelo problema, o homem responde com a reflexão.

2. NOÇÃO DE REFLEXÃO E que significa reflexão? A palavra nos vem do verbo latino Yeflectere" que significa "voltar atrás". É, pois, um re-pensar, ou seja, um pensamento em segundo grau. Poderíamos, pois, dizer: se toda reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão. Esta é um pensamento consciente de si mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o grau de adequação que mantém com os dados objetivos, de medir-se com o real. Pode aplicar-se às impressões e opiniões, aos conhecimentos científicos e técnicos, interrogando-se sobre o seu significado. Refletir é o ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca constante de significado. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado. E é isto o filosofar.

Até aqui a atitude filosófica parece bastante simples, pois uma vez que ela é uma reflexão sobre os problemas e uma vez que todos e cada homem têm problemas inevitavelmente, segue-se que cada homem é naturalmente levado a refletir, portanto, a filosofar. Aqui, porém, a coisa começa a se complicar.

3. AS EXIGÊNCIAS DA REFLEXÃO FILOSÓFICA Com efeito, se a filosofia é realmente uma reflexão sobre os problemas que a realidade apresenta, entretanto ela não é qualquer tipo de reflexão. Para que uma reflexão possa ser adjetivada de filosófica, é preciso que se satisfaça uma série de exigências que vou resumir em apenas três requisitos: a radicalidade, o rigor e a

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globalidade. Quero dizer, em suma, que a reflexão filosófica, para ser tal, deve ser radical, rigorosa e de conjunto.

Radical: Em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais, entendida a palavra radical no seu sentido mais próprio e imediato. Quer dizer, é preciso que se vá até às raízes da questão, até seus fundamentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma reflexão em profundidade.

Rigorosa: Em segundo lugar e como que para garantir a primeira exigência, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo métodos determinados, colocando-se em questão as conclusões da sabedoria popular e as generalizações apressadas que a ciência pode ensejar.

De conjunto: Em terceiro lugar, o problema não pode ser examinado de modo pardal, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido. É neste ponto que a filosofia se distingue da dência de um modo mais marcante. Com efeito, ao contrário da ciência, a filosofia não tem objeto determinado; ela dirige-se a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o problema, esteja onde estiver. Melhor dizendo, seu campo de ação é o problema enquanto não se sabe ainda onde ele está; por isso se diz que a filosofia é busca. E é nesse sentido também que se pode dizer que a filosofia abre caminho para a ciência; através da reflexão, ela localiza o problema tornando possível a sua delimitação na área de tal ou qual ciência que pode então analisá-lo e, quiçá, solucioná-lo. Além disso, enquanto a ciência isola o seu aspecto do contexto e o analisa separadamente, a filosofia, embora dirigindo-se às vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em função do conjunto.

A exposição sumária e isolada de cada um dos itens acima descritos não nos deve iludir. Não se trata de categorias auto-suficientes que se justapõem numa somatória suscetível de caracterizar, pelo efeito mágico de sua junção, a reflexão filosófica. A profundidade (radicalidade) é essencial à atitude filosófica do mesmo modo que a visão de conjunto. Ambas se relacionam dialeticamente por virtude da íntima conexão que mantém com o mesmo movimento metodológico, cujo rigor (criticidade) garante ao mesmo tempo a radicalidade, a universalidade e a unidade da

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reflexão filosófica.(5) Deste modo, a concepção amplamente difundida segundo a qual o aprofundamento determina um afastamento da perspectiva de conjunto, e, vice-versa: a ampliação do campo de abrangência acarreta uma inevitável superficialização, é uma ilusão de óptica decorrente do pensar formal, o nosso modo comum de pensar que herdamos da tradição ocidental. A inconsistência dessa concepção vem sendo fartamente ilustrada pêlos avanços da ciência contemporânea, cuja penetração no âmago do processo objetivo faz estourar os quadros do pensamento tradicional. É a isto que se convencionou chamara crise das ciências (em especial da Física e da Matemática).6 Não se trata, porém, de uma crise das ciências (em nenhuma época da História experimentaram progresso tão intenso), mas de uma crise da Lógica Formal.

Com efeito, o aprofundamento na compreensão dos fenômenos se liga a uma concepção geral da realidade, exigindo uma reinterpretação global do modo de pensar essa realidade. Então, a lógica formal, em que os termos contraditórios mutuamente se excluem (princípio de não-contradição), inevitavelmente entra em crise, postulando a sua substituição pela lógica dialética, em que os termos contraditórios mutuamente se incluem (princípio de contradição, ou lei da unidade dos contrários). Por isso, a lógica formal acaba por enredar a atitude filosófica numa gama de contradições frequentemente dissimuladas através de uma postura idealista, seja ela crítica (que se reconhece como tal) ou ingênua (que se autodenomina realista). A visão dialética, ao contrário, nos arma de um instrumento, ou seja, de um método rigoroso (crítico) capaz de nos propiciar a compreensão adequada da radicalidade e da globalidade na unidade da reflexão filosófica.

Afirmamos antes que o problema apresenta um lado objetivo e um lado subjetivo, caracterizando-se este pela tomada de consciência da necessidade. As considerações supra deixaram claro que a reflexão é provocada pelo problema e, ao mesmo tempo, dialeticamente, constitui-se numa resposta ao problema. Ora, assim sendo, a reflexão se caracteriza por um aprofundamento da consciência da situação problemática, acarretando (em especial no caso da reflexão filosófica, por virtude das exigências que lhe são inerentes) um salto qualitativo que leva à superação

5. Mesmo pensadores não afeiçoados ao modo de pensar dialético admitem implícita ou explicitamente o que acabamos de dizer. Cf., por ex., COTTIER, in Revista Nova et Veteras,: "deux traits sont caractéristiques du philosophe: l'universalité de son champ de vision et Ia recherche de raisons profondes".

6. Cf. a respeito, PINTO, A. V - Ciência e Existência, especialmente o cap. IX.

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do problema no seu nível originário. Esta dialética reflexão-problema é necessário ser compreendida para que se evite privilegiar, indevidamente, seja a reflexão (o que levaria a um subjetivismo, acreditando-se que o homem tenha um poder quase absoluto sobre os problemas, podendo manipulá-los a seu bel-prazer), seja o problema (o que implicaria reificá-lo desligando-o de sua estrita vinculação com a existência humana, sem a qual a essência do problema não pode ser apreendida, como já foi explicado).

Por fim, é necessária uma observação sobre a expressão bastante difundida, "problema filosófico". Cabe perguntar: "existem problemas que não são filosóficos?" Na verdade, um problema, em si, não é filosófico, nem científico, artístico ou religioso. A atitude que o homem toma perante os problemas é que é filosófica, científica, artística ou religiosa ou de mero bom-senso. A expressão que estamos analisando é resultante, pois, do uso corrente da palavra problema (já abordado) que a dá como sinônimo de questão, tema, assunto. Aqueles assuntos, que são objeto de estudo dos cientistas, por exemplo, são denominados "problemas científicos". Daí as derivações "problemas sociológicos", "problemas psicológicos", "problemas químicos", etc. Mas como aceitar essa interpretação no caso da filosofia que, como foi dito antes, não tem objeto determinado? Como aceitá-la, se qualquer assunto pode ser objeto de reflexão filosófica? O uso comum e corrente tem se pautado, então, pelo seguinte paralelismo: assim como "problemas científicos" são aquelas questões de que se ocupam os cientistas, "problemas filosóficos" não são outra coisa senão aquelas questões de que se têm ocupado os filósofos. Não se deve esquecer, porém, que não é porque os filósofos se ocuparam com tais assuntos que eles são problemas; mas, ao contrário: é porque eles são (ou foram) problemas que os filósofos se ocuparam e se preocuparam com eles. Resta, então, a seguinte alternativa: a expressão "problemas filosóficos" é uma manifestação corrente da ] linguagem e, como fenômeno, ao mesmo tempo revela e oculta a essência do , filosofar. Oculta, na medida em que compartimentalizando também a atitude filosófica (bem a gosto do modo formalista de pensar) a reduz a uns tantos assuntos já de antemão catalogáveis, empobrecendo um trabalho que deveria ser essencialmente criador. Revela, enquanto pode chamar a atenção para alguns problemas que se revestem de tamanha magnitude, em face das condições concretas em que o homem produz a sua existência, que exigem, em caráter prioritário, uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto. Tratar-se-ia, por

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conseguinte, de problemas que põem em tela, de imediato e de modo inconteste, a necessidade da filosofia. Estaria

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justificado, nessas circunstâncias, o uso da expressão "problema filosófico".

4. NOÇÃO DE FILOSOFIA Esclarecendo o significado essencial de problema; explicitados a noção de reflexão e os requisitos fundamentais para que ela seja adjetivada de filosófica, podemos, finalmente, conceituar a filosofia como uma REFLEXÃO (RADICAL, RIGOROSA E DE CONJUNTO) SOBRE OS PROBLEMAS QUE A REALIDADE APRESENTA.

A partir daí, é fácil concluir a respeito do significado da expressão "Filosofia da Educação". Esta não seria outra coisa senão uma REFLEXÃO (RADICAL, RIGOROSA E DE CONJUNTO) SOBRE OS PROBLEMAS QUE A REALIDADE EDUCACIONAL APRESENTA.

5. NOÇÃO DO "FILOSOFIA DE VIDA" Mas será que isso nos diz alguma coisa? Quando ouvimos falar em filosofia da educação não me parece que ocorra em nosso espírito a idéia acima. Com efeito, ouvimos falar em Filosofia da Educação da Escola Nova, Filosofia da Educação da Escola Tradicional, Filosofia da Educação do Governo de São Paulo, Filosofia da Educação da Igreja Católica, etc.; e sabemos que não se trata aí da reflexão da Igreja Católica, dos educadores da Escola Nova ou do Governo de São Paulo sobre os problemas educacionais; a palavra filosofia refere-se aí à orientação, aos princípios e normas que regem aquelas entidades. Tal orientação pode ou não ser conseqüência da reflexão. Com efeito, a nossa ação segue sempre certa orientação; a todos momentos estamos fazendo escolhas, mas isso não significa que estamos sempre refletindo; a ação não pressupõe necessariamente a reflexão; podemos agir sem refletir (embora não nos seja possível agir sem pensar). Neste caso, nós decidimos, fazemos escolhas espontaneamente, seguindo os padrões, a orientação que o próprio meio nos impõe. É assim que nós escolhemos nossos clubes preferidos, nossas amizades; é assim que os pais escolhem o tipo de escola para os seus filhos, colocando-os em colégio de padres (ou freiras) ou em colégio do Estado; é assim também que certos professores elaboram o programa de suas cadeiras (vendo o que os outros costumam transmitir, transcrevendo os itens do índice de certos livros

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didáticos, etc.); e é assim, ainda, que se fundam certas escolas ou que o Governo toma certas medidas. Nessas situações nós não temos consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não de outro modo. Tudo ocorre normalmente, naturalmente, espontaneamente, sem problemas. Proponho que se chame a esse tipo de orientação "filosofia de vida".(7) Todos e cada um de nós temos a nossa "filosofia de vida". Esta se constitui a partir da família, do ambiente em que somos criados.

6. NOÇÃO DE "IDEOLOGIA" Mas, como já dissemos, quando surge o problema, ou seja, quando não sei que rumo tomar e preciso saber, quando não sei escolher e preciso saber, aí surge a exigência do filosofar, aí eu começo a refletir. Essa reflexão é aberta; pois se eu preciso saber e não sei, isto significa que eu não tenho a resposta; busco uma resposta e, em princípio, ela pode ser encontrada em qualquer ponto (daí, a necessidade de uma reflexão de conjunto). À medida, porém, que a reflexão prossegue, as coisas começam a ficar mais claras e a resposta vai se delineando. Estrutura-se então uma orientação, princípios são estabelecidos, objetivos são definidos e a ação toma rumos novos tornando-se compreensível, fundamentada, mais coerente. Note-se que também aqui se trata de princípios e normas que orientam a nossa ação. Mas aqui nós temos consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não de outro modo. Contrapondo-se à "filosofia de vida", proponho que se chame a esse segundo tipo de orientação, "ideologia".(8) Observe-se, ainda, que a opção ideológica pode também se opor à "filosofia de vida" (pense-se no burguês que se decida por uma ideologia revolucionária): neste caso, o

7. Esta noção de "filosofia de vida" corresponde, na terminologia gramsciana, ao conceito de "senso comum". Cf. GRAMSCI, A. - Quaderni del Cárcere, especialmente o caderno 10. (Na tradução brasileira, ver, Concepção Dialética da Historio, em especial a Parte I.)

8. Para uma discussão dos diversos sentidos da palavra "ideologia", ver, FURTER, R -Educação e Reflexão, Cap. 4; GABEL, J. - ídéologies; DUMONT, R Lês Idéologies; e a coletânea de Lenk, K. - Eí Concepto de Ideóloga que traz, inclusive, uma abordagem histórica do problema. Sobre o trabalho de R Furter, cit., observe-se que ele vale mais pelas indicações bibliográficas que contém do que pelas interpretações do autor. Para uma discussão sobre as relações entre ideologia e falsa consciência, ver, GABEL, j. - La Fausse Consàence e SCHAFF. A. - História e Verdade, pp. l 55-171. Por fim, cabe lembrar que a noção adotada neste texto, ainda que sem pretensões de alçar-se ao plano de uma teoria da

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ideologia, obtém forte apoio em GFIAMSCI, A. - Concepção Dialética da História. (Ver principalmente, pp. 61-63 e 114-119.)

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conflito pode acarretar certas incoerências na ação, determinadas pela superposição ora de uma, ora de outra. Aqui se faz mais necessária ainda a vigilância da reflexão.

7. ESQUEMATIZAÇÃO DA DIALÉÏICA "AÇÃO-PROBLEMA-REFLEXÃO-AÇÃO" Podemos, pois, para facilitar a compreensão, formular o seguinte diagrama:

1. Ação (fundada na filosofia de vida) suscita

2. Problema (exige reflexão: a filosofia) que leva à

3. Ideologia (conseqüência da reflexão) que acarreta

4. Ação (fundada na ideologia).

Não se trata, porém, de uma seqüência lógica ou cronológica; é uma seqüência dialética. Portanto, não se age primeiro, depois se reflete, depois se organiza a ação e por fim age-se novamente. Trata-se de um processo em que esses momentos se interpenetram, desenrolando o fio da existência humana na sua totalidade. E como não existe reflexão total, a ação trará sempre novos problemas que estarão sempre exigindo a reflexão; por isso, a filosofia é sempre necessária e a ideologia será sempre parcial, fragmentária e superável.(9) Assim, poderíamos continuar o diagrama anterior, da seguinte forma:

4. Ação (fundada na ideologia) suscita

5. Novos Problemas (exigem reflexão: a filosofia) que levam à

6. Reformulação da ideologia (organização da ação) que acarreta

7. Reformulação da ação (fundada na ideologia reformulada).

8. NOÇÃO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO Portanto, o que conhecemos normalmente pelo nome de filosofia da educação não o é propriamente, mas identifica-se (de acordo com a terminologia proposta) ora

9. Esta maneira de colocar as relações entre filosofia e ideologia nos permite ao mesmo tempo assinalar a oportunidade da distinção entre saber e ideologia e evitar sua possível limitação. Tal limitação consiste em que o saber é geralmente posto como o outro que exclui (porque, ao revelar suas origens, a dissipa) a ideologia. Com isto, acaba-se por defender o caráter desinteressado do saber. Cabe, pois, lembrar que o saber é sempre interessado, vale dizer, o saber supõe sempre a ideologia da mesma forma que esta supõe sempre o saber. Com efeito, a ideologia só pode ser identificada como tal, ao nível do saber. A ideologia que não supõe o saber, supõe-se saber. Ver, por exemplo, ALTHUSSER, L. - Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado e a apresentação de CHAUÍ, Marilena - Ideologia e Mobilização Popular.

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com a "filosofia de vida", ora com a "ideologia". Acreditamos, porém, que a filosofia da educação só será mesmo indispensável à formação do educador; se ela for encarada, tal como estamos propondo, como uma REFLEXÃO (RADICAL, RIGOROSA E DE CONJUNTO) SOBRE OS PROBLEMAS QUE A REALIDADE EDUCACIONAL APRESENTA.

Podemos, enfim, responder à pergunta colocada no início: que é que leva o educador a filosofar? O que leva o educador a filosofar são os problemas (entendido esse termo com o significado que lhe foi consignado) que ele encontra ao realizar a tarefa educativa. E como a educação visa o homem, é conveniente começar por uma reflexão sobre a realidade humana, procurando descobrir quais os aspectos que ele comporta, quais as suas exigências referindo-as sempre à situação existencial concreta do homem brasileiro, pois é aí (ou pelo menos a partir daí) que se desenvolverá o nosso trabalho. Assim, a tarefa da Filosofia da Educação será oferecer aos educadores um método de reflexão que lhes permita encarar os problemas educacionais, penetrando na sua complexidade e encaminhando a solução de questões tais

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como: o conflito entre "filosofia de vida" e "ideologia" na atividade do educador; a necessidade da opção ideológica e suas implicações; o caráter parcial, fragmentário e superável das ideologias e o conflito entre diferentes ideologias; a possibilidade, legitimidade, valor e limites da educação; a relação entre meios e fins na educação (como usar meios velhos em função de objetivos novos?); a relação entre teoria e prática (como a teoria pode dinamizar ou cristalizar a prática educacional?); é possível redefinir objetivos para a educação brasileira? Quais os condicionamentos da atividade educacional? Em que medida é possível superá-los e em que medida é preciso contar com eles?

O elenco de questões acima mencionado é apenas um exemplo do caráter problemático da atividade educacional, o que explica a importância e a necessidade da reflexão filosófica para o educador. Além desses, citados ao acaso, muitos outros problemas o educador terá que enfrentar. Alguns deles são previsíveis; outros serão decorrência do próprio desenvolvimento da ação. E se o educador não tiver desenvolvido uma capacidade de refletir profundamente, rigorosamente e globalmente, suas possibilidades de êxito estarão bastante diminuídas.

9. CONCLUSÃO Assim encarada, a filosofia da educação não terá como função fixar "a priori" princípios e objetivos para a educação; também não se reduzirá a uma teoria geral da educação

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enquanto sistematização dos seus resultados. Sua função será acompanhar reflexiva e criticamente a atividade educacional de modo a explicitar os seus fundamentos, esclarecer a tarefa e a contribuição das diversas disciplinas pedagógicas e avaliar o significado das soluções escolhidas. Com isso, a ação pedagógica resultará mais coerente, mais lúcida, mais justa;10 mais humana, enfim.

l 0. Cf. FURTER, R - Educação e Reflexão, pp. 6-27.

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CAPÍTULO DOIS

FUNÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

1. Como se pode ver pela programação deste Encontro, o tema central gira em torno do magistério de Filosofia da Educação e de História da Educação. Como profissionais que atuam nessas áreas, reunimo-nos, pois, para debater o próprio sentido daquilo que estamos fazendo.

Por que é importante analisarmos mais profundamente (e em conjunto) o trabalho que estamos desenvolvendo no momento atual?

Se fizermos um levantamento rápido dessas disciplinas do ponto de vista do lugar que ocupam na organização dos cursos, veremos que, em relação ao curso de Pedagogia (onde são obrigatórias, já que figuram no currículo mínimo aprovado pelo CFE), veremos que há três situações básicas com as quais os professores podem se defrontar.

Com efeito, temos alguns cursos em que História e Filosofia da Educação constituem uma única disciplina; há outros, porém, em que ambas são dadas em separado, permitindo-nos detectaras seguintes situações: 1. professores de História e Filosofia da Educação; 2. professores de Filosofia da Educação; e 3. professores de História da Educação. Ora, em cada uma dessas situações a organização programática da (ou das) disciplina(s) vai assumir matizes diferentes.

Se sairmos do curso de Pedagogia iremos verificar que a disciplina Filosofia da

1. Palestra proferida no IX Encontro da Associação de Professores Universitários de Filosofia e História da Educação, realizado de 22 a 24 de julho de 1974, em São Paulo.

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Educação aparece (se bem que não em caráter obrigatório) com uma certa freqüência nos cursos de graduação em Filosofia, assumindo aí uma conotação diferente, pois não é a mesma coisa lecionar essa disciplina para alunos de Filosofia e de Pedagogia.

Além disso, a disciplina Filosofia da Educação tem sido colocada ultimamente (e também aqui não em caráter obrigatório) nos cursos de Licenciatura, assumindo também aí uma conotação diferente. Com efeito, a referida-disciplina será desenvolvida durante um semestre apenas, para alunos de diferentes cursos: Letras, Geografia, História, Matemática, Física, Ciências Sociais, Psicologia, etc.

Quanto à disciplina História da Educação, esta não aparece em outros cursos que não o de Pedagogia, pelo menos com uma freqüência que mereça uma menção especial.

Em face dessas diferentes situações, vamos verificar que há um problema comum. E deste problema que nós partiremos. Há uma tendência a se colocar a ênfase na primeira palavra da locução - uma ênfase seja na filosofia, seja na história - e a segunda palavra - a educação - aparece como um apêndice, como uma mera conseqüência. Constatamos, pois, que o professor de Filosofia da Educação está preocupado com a "filosofia"; ele está preocupado em "dominar" aquilo que se chamaria o campo da Filosofia, da mesma forma que o professor de História da Educação está preocupado em dominar o campo da História e a Educação acaba ficando na penumbra.

Em conseqüência desta ênfase na primeira palavra da locução, pode-se notar que mesmo esta primeira palavra não é suficientemente caracterizada, quer dizer, enquanto se está preocupado com a filosofia (como professor de Filosofia da Educação), enquanto se está preocupado com a história (como professor de História da Educação) não se chega a explicitar suficientemente o que significa Filosofia e o que significa História. Nesses casos, eu, como professor, entendo a Filosofia como alguma coisa já constituída e que é preciso dominar para poder dar conta da minha tarefa; trata-se, pois, de alguma coisa que está fora de mim; qual o seu significado, isto é algo que não surge a mim como problemático. A Filosofia é entendida como tendo, "a priori", um significado próprio e isto não é passível de questionamento. O que se questiona é como posso eu dominar o campo que a Filosofia abrange.

O mesmo se diga em relação à História. Em face desta situação, tanto a Filosofia como a História acabam por ser encaradas segundo a perspectiva tradicional, sem que seja explicitado suficientemente o significado de cada um desses termos. Em conseqüência, o professor acaba se detendo nas abordagens comumente feitas sob

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o nome de Filosofia e sob o nome de História, sem refletir mais profundamente para verificar se aquilo que está recebendo o nome de Filosofia merece precisamente este nome ou não; o mesmo se diga em relação à História - por exemplo: no caso da História da Educação, é possível que o professor desenvolva uma programação partindo dos acontecimentos e se detendo numa história das doutrinas pedagógicas. Nesse caso, o seu problema como professor de História da Educação será como se pode dominar todo o conteúdo das doutrinas pedagógicas que foram desenvolvidas através da História. Cabe, porém, perguntar: o objetivo de um curso de História da Educação se esgota na exposição das doutrinas pedagógicas? Ou, em outros termos: a exposição das doutrinas pedagógicas, a mais ampla possível, é que permite que se atinja o objetivo do ensino de História da Educação? Estamos de tal modo absorvidos pela necessidade de conhecer quais são essas correntes e de transmitir esses conhecimentos para os alunos que nós não nos indagamos se fazer História da Educação e se ensinar História da Educação é isto, ou se não seria outra coisa.

2. A partir da situação detectada no tópico anterior, podemos caracterizar as três linhas básicas que nos parecem assumir os programas destas duas disciplinas: Filosofia da Educação e História da Educação, sejam elas ministradas separada ou conjuntamente. Uma primeira forma de se organizar a programação consiste em se filiar a uma determinada corrente já constituída, a um pensamento já elaborado - neste caso, a Filosofia da Educação será ministrada, por exemplo, na perspectiva do existencialismo, ou do pragmatismo, ou dotomismo, etc.

A segunda forma se caracteriza pela postura eclética. Em vez de se filiar a uma corrente, levam-se em conta todas as correntes; isto pode ocorrer tanto em sentido diacrônico como em sentido sincrônico, ou seja, tanto na sucessão cronológica das correntes através dos tempos, como na coexistência de diversas correntes no mesmo tempo - no caso da Filosofia da Educação constata-se, então, a preocupação de se mostrar o pensamento grego, o pensamento medieval, as correntes do pensamento moderno e do pensamento contemporâneo.

A justaposição das diferentes correntes constitui o que estamos chamando de postura eclética. Por vezes, em face da dificuldade de se abranger todas as correntes, tenta-se, pelo menos, expor as correntes mais próximas de nós, elaborando-se a programação na base da exposição das correntes do pensamento contemporâneo. Neste caso, temos a predominância do plano sincrônico; a postura eclética, todavia, continua prevalecendo.

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No caso da História da Educação, a ênfase na primeira palavra da locução acaba por fazer predominar (talvez pelo fato mesmo de ser História) a diacronia. Quando se concentra a atenção nas instituições educacionais, passa-se, então, em revista essas instituições desde a antiguidade grega até a época contemporânea.

Cabe registrar ainda uma terceira forma que decorre do desejo de se escapar às duas alternativas antes mencionadas. Não querendo se filiar previamente a determinada corrente, e buscando evitar também a postura eclética, alguns professores procuram novas saídas, organizando programas, por exemplo, a partir de temas, na forma de seminários, estimulando os alunos a constituírem grupos de estudo por sua própria iniciativa, etc. Tais tentativas, porém, via de regra, resultam inconsistentes e um tanto frustradoras.

Como superar o problema? Deveríamos optar por uma corrente? E como optar? A opção vai implicar o conhecimento das diversas alternativas para que ela seja consciente; empreender-se-á, então, um exame sério, profundo, de todas as correntes para que se possa optar? Em face dos alunos: coloco-os diretamente dentro da minha opção ou deixo-os livres para fazerem a sua opção? Neste caso, a trajetória que eu empreendi para chegar à minha opção deveria fazer com que os alunos também a percorressem para fazê-los chegar à sua opção? Como, nesse caso, abordar todas as correntes num tempo curto e como escapar à postura eclética?

Estamos diante de uma situação problemática e que justifica a colocação do tema deste encontro, bem como o tema desta palestra.

A reflexão desenvolvida até agora em termos de constatação da situação concreta em que os professores de História e Filosofia da Educação estão, evidenciou que em face das locuções "história da educação" e "filosofia da educação", a ênfase era dada na primeira palavra em detrimento da segunda. Fará efeitos desta palestra, proponho que se coloque a ênfase na segunda palavra e se veja até onde se poderá caminhar com esta reviravolta no enfoque da(s) disciplina(s) que constitui(em) a nossa preocupação e a nossa área de atuação profissional.

3. Centremos, pois, a nossa atenção na educação e a partir daí procuremos abordar a Filosofia e a História. Ao se propor isto, pode ser lançada uma questão: nós não estamos passando de uma hipertrofia a outra? Se se hipertrofiava a primeira palavra, vamos hipertrofiar a segunda e deixar na penumbra a primeira? Não estaríamos, neste caso, sendo tão unilaterais quanto na situação antes analisada sendo, em conseqüência, alvo das mesmas críticas e enredando-nos nos mesmos problemas antes levantados?

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No entanto, se centrarmos nossa atenção na Educação, ou seja, na problemática educacional, possivelmente teremos, a partir daí, condições para esclarecer o significado da Filosofia e da História; em conseqüência, a primeira palavra da locução não ficará na penumbra, mas ao contrário, se desvelará e irromperá com toda a força que lhe é própria. E por que isto? Porque a Filosofia não se exerce no vazio, da mesma forma que a História não se dá em abstraio; quer dizer, a Filosofia é uma atitude que se dirige a algo e a História é uma história concreta, portanto, história de alguma coisa.

Se nós nos preocuparmos com a problemática educacional, tentaremos examinar a partir daí em que a Filosofia pode ajudar a esclarecer os problemas da educação e em que a História pode nos ajudar a entender esta problemática educacional que nos preocupa. Com efeito, se tomamos, por exemplo, a Filosofia, verificamos que o seu objeto são os problemas que surgem na existência humana.

Se estamos preocupados com a Filosofia da Educação, a filosofia só terá sentido na medida em que nos permitir explicitar a problemática educacional. Se ela ocultar a problemática educacional não estará contribuindo para preencher a sua própria função e como tal estará se traindo enquanto filosofia.

Se voltarmos àquela atitude inicial - ênfase na primeira palavra - que acabava por tornar o seu sentido não suficientemente caracterizado, veremos que, partindo de um pensamento já elaborado, não estamos desenvolvendo uma reflexão e, como tal, não estamos filosofando. Os resultados da reflexão filosófica não são a reflexão filosófica, apesar da tendência freqüente de se tomar os resultados pelo próprio processo.

A Filosofia da Educação só poderá prestar um serviço à formação dos educadores na medida em que contribuir para que os educadores adotem esta postura reflexiva para com a problemática educacional. Se, ao contrário, nós, enquanto educadores, nos limitarmos a tomar conhecimento de determinados resultados a que se chegou a partir de determinadas reflexões, então não estaremos desenvolvendo a reflexão filosófica propriamente dita, vale dizer, estaremos abdicando da tarefa própria da filosofia. Logo veremos que considerações semelhantes podem ser feitas em relação à História da Educação.

Parece-me, pois, que a nossa preocupação, enquanto profissionais ligados à Filosofia da Educação e à História da Educação, deverá estar concentrada na problemática educacional. Sem isso, estaremos traindo nossa própria atitude

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filosófica ou histórica. É neste sentido que poderemos superar a hipertrofia tanto do primeiro

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como do segundo termo, porque aí recuperaremos o sentido da locução como tal,

Trata-se, com efeito, de Filosofia da Educação e não simplesmente de Filosofia (porque neste caso a própria Filosofia se esvaziaria); não também da Educação sem a postura reflexiva (porque neste caso a Educação não seria um processo intencionalmente conduzido).

No caso da História da Educação, temos a mesma situação: trata-se de História da Educação e não de História (porque neste caso também o nosso projeto se esvazia) e nem apenas de Educação (porque neste caso ela seria desenraizada). O concreto é histórico e para dar conta da problemática concreta da educação é necessário assumir a postura histórica.

Vê-se, pois, que, a partir da abordagem indicada acima, teremos uma unidade dos dois termos da locução; uma unidade sem ambigüidade. Portanto, não se trata de flutuar ou oscilar entre um projeto filosófico e um projeto pedagógico; um projeto histórico e um projeto pedagógico. As ambigüidades, flutuações e oscilações podem ser superadas se e somente se a nossa atenção se concentrar na problemática educacional concreta.

Tal atitude é o constitutivo essencial da Filosofia, o que pode ser ilustrado através dos exemplos mencionados na história do pensamento humano. Se tomarmos, por exemplo, Aristóteles, Platão, ou outros pensadores reconhecidos como filósofos, veremos que tais pensadores fizeram filosofia exatamente na medida em que pensaram os problemas de sua época. Hoje, quando tomamos contato com os resultados do pensamento aristotélico, tais produtos aparecem como algo acabado, como algo já constituído, parecendo possuir existência autônoma, independentemente do processo que o gerou; no entanto, a filosofia de Aristóteles é o processo de reflexão que ele desenvolveu para chegar a esses resultados.

Se nós assumimos a atitude filosófica, cumpre-nos desenvolver um processo de reflexão sobre os problemas que a nossa época está colocando; e se se trata de filosofia da educação, isso implica assumir a atitude de reflexão sobre os problemas educacionais que a nossa situação concreta está nos colocando. Transmissão pura e simples dos resultados da reflexão de Aristóteles, da reflexão de Kant, da reflexão de Sartre, e assim por diante, não constitui propriamente a tarefa da Filosofia.

Exemplifiquemos o que foi dito acima, com uma referência ao pensamento de Kant.

O problema com que Kant se preocupou era, efetivamente, um problema fundamental na sua época. Formado na tradição racionalista que vinha de Descartes,

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absorvendo os conhecimentos de Leibniz através de seu mestre (Wolff), Kant entrou em contato com o pensamento de Hume que, segundo suas próprias palavras, o despertou do sono dogmático em que vivia, acreditando que a perspectiva racionalista era o perspectiva válida. Na medida em que entra em contato com a obra de Hume, que colocava os problemas numa perspectiva diversa daquela em que Kant havia sido formado, então ele se defronta com um problema capital que pode ser expresso nos seguintes termos: como se explica o conhecimento? Segundo a perspectiva racionalista ou segundo a perspectiva empirista? Ao lado disto, Newton acabara de sistematizar a ciência física e ao mesmo tempo em que ele - Kant - travou conhecimento com os debates dos filósofos, vale dizer, com as conclusões contraditórias a que eram conduzidos os filósofos, ele notava a objetividade da ciência físico-matemática na forma como havia sido exposta por Newton.

Em face da situação acima descrita, Kant se colocou a questão fundamental: como é possível o conhecimento humano? Observe-se que ele não perguntou se era possível o conhecimento humano; isto, com efeito, já não era problema em sua época, uma vez que os êxitos da ciência físico-matemática estavam aí para evidenciar que era possível o conhecimento humano. Como era possível, aí estava o problema - e toda a sua reflexão se desenvolveu no sentido de explicar esse problema.

Hoje, ao expormos o pensamento de Kant, via de regra, aquilo aparece com um grande teor de aridez e na medida em que os alunos não têm sequer esse referencial histórico, mais árido ainda se torna aquele pensamento que, enquanto vivo, estava revestido de todo um dinamismo e de todo um significado; agora, porém, já constituído e acabado e lançado a alunos que não estão preocupados dado que em sua existência não irrompeu o problema kantiano (como é possível o conhecimento humano?), então a exposição do pensamento de Kant além de difícil de ser acompanhada se torna estéril e, ao fim e ao cabo, se torna anti-filosófica; em vez de formar uma atitude filosófica, deforma o sentido da palavra, e por vezes chega até mesmo a criar uma atitude negativa em face da Filosofia. Trata-se, com efeito, de uma situação relativamente familiar a diversos professores, qual seja: ao iniciar um curso de Filosofia da Educação, defrontam-se com alunos que se colocam, "a priori", numa atitude negativa em face da Filosofia; nesses casos, necessita-se de um desgaste razoavelmente grande para quebrar, primeiro, esses preconceitos em face da Filosofia afim

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de poder, posteriormente, desenvolver um trabalho positivo no sentido de desencadear a atitude filosófica nos alunos.

O fundamental, portanto, é que os alunos assumam essa atitude filosófica; que

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eles sejam capazes de refletir sobre os problemas com os quais eles se defrontam e, no caso da Educação, que eles sejam capazes de refletir sobre os problemas educacionais.

No que diz respeito à História da Educação, verifica-se fenômeno semelhante: a História, por obra da hipertrofia da primeira palavra da locução, acaba por não ser compreendida, o seu significado acaba por não ser explicitado claramente; assim, a História acaba sendo absorvida no sentido tradicional de seqüência de fatos ou seqüência de idéias, resumindo-se a uma mera cronologia.

Ao se reduzir a História a uma seqüência de fatos ou de idéias, ocorre aí um agravante maior: tais fatos (ou idéias) acabam por se resumir naquilo que eu chamaria de "fatos de supra-estrutura", isto é, aqueles fatos que se evidenciam mas que não explicam o processo histórico concreto, sendo, ao contrário, explicados pelo processo histórico concreto. Em conseqüência, o ensino da História, em lugar de explicitar o mencionado processo, apenas expõe os fatos de supra-estrutura, resultando, daí, o caráter insípido de que se reveste esse tipo de ensino. E a História, à semelhança da Filosofia, acaba por se tornar, também ela, uma disciplina "chata", uma vez que será necessário reter uma série grande de fatos (ou de idéias) geralmente desprovidos de sentido; assim, a memorização acaba sendo o recurso de que o aluno (e por vezes o professor) lança mão para se situar em face do problema da História.

Usando de uma imagem, poderíamos descrever o processo histórico por analogia com o teatro.

No cenário da História temos os atores e os autores da História, do mesmo modo que numa peça teatral temos os atores e o autor da peça. O autor não aparece; no entanto, a obra é sua e os atores representam aquele papel que lhes foi designado na trama da peça, trama essa que é obra do autor da peça. Rara os expectadores, os atores estão em evidência e são por vezes cultuados, surgindo como ídolos. Em contrapartida, os autores estão ocultos nos bastidores, ficando, geralmente, na penumbra, quando não são totalmente esquecidos.

Na Historiografia temos, pois, o seguinte fenômeno: os fatos de bastidores que são os fundamentais, dado que nos permitiriam compreender o que está acontecendo, tais fatos não são explorados suficientemente, enquanto que os fatos de supra-estrutura (ligados à imagem dos atores) são mencionados numa seqüência cronológica sem que se entenda bem porque em determinado momento quem esteve em evidência foi este ator e não outro e que papel representava este ator;

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quer dizer, que forças ele estava representando, forças essas que nos permitiriam compreender qual a matriz básica daquele momento histórico. Dessa forma, a Historiografia tende a se resumir na apresentação de uma série de nomes, fatos e datas e o recurso para se reter esses dados terá que ser a memorização mecânica, uma vez que a compreensão da trama da História se perde.

Ora, a compreensão da trama da História só será garantida se forem levados em conta os "dados de bastidores", vale dizer, se se examina a base material da sociedade cuja história está sendo reconstituída. Tal procedimento supõe um processo de investigação que não se limita àquilo que convencionalmente é chamado de História da Educação, mas implica investigações de ordem econômica, política e social do país em cujo seio se desenvolve o fenômeno educativo que se quer compreender, uma vez que é esse processo de investigação que fará emergir a problemática educacional concreta.

Na medida em que nós, professores de História da Educação, assumimos essa atitude de investigação; na medida em que nós, em face dos alunos, estimulamos esta mesma atitude, eis como estaremos contribuindo efetivamente para o avanço do campo de conhecimento que constitui a História da Educação e, no nosso caso específico, para o desenvolvimento da História da Educação Brasileira.

4. Em conclusão, cabe observar que um curso de Filosofia da Educação ou de História da Educação assumirá características marcadamente diversas das tradicionais, se nós, enquanto professores, nos colocarmos na perspectiva apresentada neste texto. Tal mudança de perspectiva só será possível, obviamente, se estivermos empenhados em assumir até às últimas conseqüências o papel que nos cabe na área de Filosofia da Educação e/ou História da Educação.

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CAPÍTULO TRÊS

VALORES E OBJETIVOS NA EDUCAÇÃO

A reflexão(1) sobre os problemas educacionais inevitavelmente nos levará à questão dos valores. Com efeito, se esses problemas trazem a necessidade de uma reformulação da ação, torna-se necessário saber o que se visa com essa ação, ou seja, quais são os seus objetivos. E determinar objetivos implica definir prioridades, decidir sobre o que é válido e o que não é válido. Além disso - todos concordam - a educação visa o homem; na verdade, que sentido terá a educação se ela não estiver voltada para a promoção do homem? Uma visão histórica da educação mostra como esta esteve sempre preocupada em formar determinado tipo de homem. Os tipos variam de acordo com as diferentes exigências das diferentes épocas. Mas a preocupação com o homem, esta é uma constante. E a palavra homem significa exatamente aquele que avalia.(2) Se o problema dos valores é considerado como uma das questões mais complexas da filosofia atual, no entanto, todos sabem quão trivial é a experiência da valoração: a todo momento nós somos sujeitos ou testemunhas dessa experiência. Uma vez que a experiência axiológica é uma experiência tipicamente humana, é a partir do conhecimento da realidade hu-

1. Escrito em 1971 para a cadeira de Introdução à Educação do Ciclo Básico da PUC/ SP Publicado na Revista Didato, n. 6, 1977.

2. Cf. Nietzsche: "A palavra homem significa aquele que avalia: ele quis denominar-se pelo seu maior descobrimento". (O Viajante e a Sua Sombra), apud SERRÂO, Joel - Iniciação ao Filosofar, p. 101.

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mana que podemos entender o problema dos valores. E como a educação se destina (senão de fato, pelo menos de direito) à promoção do homem, percebe-se já a condição básica para alguém ser educador: ser um profundo conhecedor do homem. Mas... que é o homem? Evidentemente, a complexidade da questão não nos permite tratá-la exaustivamente dentro dos limites desse texto. Aqui tentaremos apenas uma aproximação ao tema a fim de estabelecer um ponto de partida necessário à colocação do problema dos valores e objetivos na educação.

Observando o dado-homem, notamos desde logo que ele se nos apresenta como um corpo, e por isso, existindo num meio que se define pelas coordenadas de espaço e tempo. Este meio condiciona-o, determina-o em todas as suas manifestações. Este caráter de dependência do homem se verifica inicialmente em relação à natureza (entendemos por natureza tudo aquilo que existe independentemente da ação do homem). Sabemos como o homem depende do espaço físico, clima, vegetação, fauna, solo e subsolo. Mas não é só o meio puramente natural que condiciona o homem. Também o meio cultural se impõe a ele inevitavelmente. Já ao nascer, além de uma localização geográfica mais ou menos favorável, o homem se defronta com uma época de contornos históricos precisos, marcada pelo peso de uma tradição mais ou menos longa, com uma linguaja estruturada, costumes e crenças definidos, uma sociedade com instituições próprias, uma vida econômica peculiar e uma forma de governo ciosa de seus poderes. Este é o quadro da existência humana. E neste quadro, o homem é encaixado - é enquadrado. O homem é, pois, um ser situado. Situação é, com efeito, o termo que sintetiza tudo quanto foi dito. E esta é uma condição necessária de possibilidade da existência humana. A vida humana só pode se sustentar e desenvolver a partir de um contexto determinado; é daí que o homem tira os meios de sua sobrevivência. Por isso ele é levado a valorizar os elementos do meio-ambiente: a água, a terra, a fauna, a flora, etc. (no domínio da natureza) e as instituições, as ciências, as técnicas, etc. (no domínio da cultura). Antes mesmo de se dar conta disso, o homem está exercendo a atitude axiológica perante tudo que o cerca. Na verdade, valorizar é não ser indiferente.(3) Assim, a situação compõe-se de uma multiplicidade de elementos que em si mesmos não valem nem deixam de valer; simplesmente são; estão aí. Ao se relacionarem com o homem, entretanto, eles passam a ter significado, passam a valer. Isto nos permite entender o valor como uma relação de não indiferença entre o homem e os

3. Cf. MORENTE, M. Garcia - Fundamentos de Filosofia, p. 206.

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elementos com que se defronta. A situação abre, pois, ao homem um campo imenso de valores; é o domínio do prático-utilitário. O homem tem necessidades que precisam ser satisfeitas e este fato leva à valorização e aos valores.

Mas se o homem não fica indiferente às coisas, isso significa que ele não é um ser passivo. Ele reage perante a situação, intervém pessoalmente para aceitar, rejeitar ou transformar. A cultura não é outra coisa senão, por um lado, a

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transformação que o homem opera sobre o meio e, por outro, os resultados dessa transformação. O homem é então capaz de superar os condicionamentos da situação; ele não é totalmente determinado; é um ser autônomo, um ser livre. E a liberdade abre ao homem um novo campo amplo para a valorização e os valores. Sendo a liberdade pessoal e intransferível, impõe-se aqui o respeito à pessoa humana; como eu sou um sujeito capaz de tomar posições, de avaliar, fazer opções e engajar-me por elas, assim também aquele que vive ao meu lado, perto ou longe, é igualmente um sujeito e jamais um objeto. Como a liberdade é sempre uma liberdade situada, este segundo campo conjuga-se com o primeiro. Trata-se de sujeitos concretos que não são indiferentes diante de uma situação também concreta. Daí exercer o homem um domínio sobre as coisas, subordinando-as aos seus desígnios. Esta relação vertical de dominação jamais poderá, contudo, ser estendida em sentido horizontal, ou seja, nas relações de homem a homem. O domínio do prático-utilitário tem seus limites no domínio humano, do mesmo modo que este tem seus limites naquele. E, dialeticamente, o domínio prático-utilitário se amplia com a ampliação da liberdade humana, do mesmo modo que o domínio humano se amplia a partir da ampliação das potencialidades da situação.

O caráter pessoal e intransferível da liberdade não significa, entretanto, que não seja possível a relação horizontal de homem a homem; ao contrário. O fato de não ser indiferente à pessoa dos outros, o fato de reconhecer o valor do outro, a sua liberdade, indica que o homem é capaz de transcender a sua situação e as opções pessoais para se colocar no ponto de vista do outro, para se comunicar com o outro, para agir em comum com ele, para ver as coisas objetivamente. E aqui se abre ao homem outro campo amplo para a valoração e os valores. Ver as coisas objetivamente significa aceitar o valor da verdade. E esta transcende as pessoas como tais tornando-se fonte de comunicação e entendimento entre os homens. Assim, se a relação vertical do homem para com as coisas é uma relação de dominação, a relação horizontal do homem para com os outros será uma relação de colaboração. E nessa colaboração dos homens atuando sobre a situação e se comunicando entre si, descobre-se que o domínio do

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prático-utilitário não satisfaz: "o homem é aquele animal para o qual o supérfluo é necessário".(4) E outro campo se abre ao homem para a valoração e os valores: são as formas estéticas, a apreciação das coisas e das pessoas pelo que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de relacionar-se com elas.

Do ponto de vista da educação o que significa, então, promover o homem? Significa tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens. Trata-se, pois, de uma tarefa que deve ser realizada. Isto nos permite perceber a função da valoração e dos valores na vida humana. Os valores indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si mesmo e à sua situação histórica; como tal, marcam aquilo que deve serem contraposição àquilo que é. A valoração é o próprio esforço do homem em transformarei que é naquilo que deve ser. Essa distância entre o que é e o que deve ser constitui o próprio espaço vital da existência humana; com efeito, a coincidência total entre o ser e o dever ser, bem como a impossibilidade total dessa coincidência seriam igualmente fatais para o homem. Valores e valoração estão intimamente relacionados; sem os valores, a valoração seria destituída de sentido; mas, em contrapartida, sem a valoração os valores não existiriam. Desvincular os valores da valoração equivalerá a transformá-los em arquétipos de caráter estático e abstrato, dispostos numa hierarquia estabelecida "a priori". O caráter concreto da experiência axiológica nos permite substituir o concerto de hierarquia, tradicionalmente ligado a uma concepção rígida e estática, pois, "a sociedade sempre teve interesse em reificar certas hierarquias que correspondem mais aos interesses dos seus grupos privilegiados",(5) pelo conceito de prioridade, mais dinâmico e flexível. Com efeito, a prioridade é ditada pelas condições da situação existencial concreta em que vive o homem. Exemplifiquemos.

De acordo com a noção de hierarquia, os valores intelectuais seriam, por si mesmos, superiores aos valores econômicos (veja-se a hierarquia proposta por M. Scheler,(6) a mais generalizada e aceita correntemente). Assim, se vou educar; seja num bairro de elite, seja numa favela, sempre irei dar mais ênfase aos valores intelectuais do que aos

4. Cf. ORTEGA Y CASSEI J. - Meditação da Técnica, pp. 21-22.

5. FURTER, R - Educação e Vida, p. 118.

6. Scheler classificou os valores de acordo com a seguinte hierarquia, em ordem ascendente: a) valores úteis (ou econômicos); b) valores vitais (ou afetivos); c) valores lógicos (ou intelectuais); d) valores estéticos; e) valores éticos (ou morais); e f) valores religiosos. (Cf. MORËNTE, M.G. - Obra c/t., p. 300.)

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econômicos. No entanto, a nossa experiência da valoração nos mostra que na favela os valores econômicos tornam-se prioritários, dadas as necessidades de sobrevivência, ao passo que num bairro de elite assumem prioridade os valores morais, dada a necessidade de se enfatizar a responsabilidade perante a sociedade como um todo, a importância da pessoa humana e o direito de todos de participar igualmente dos progressos da humanidade.

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Indicando-nos aquilo que deve ser, os valores nos colocam diante do problema dos objetivos. Com efeito, um objetivo é exatamente aquilo que ainda não foi alcançado, mas que deve ser alcançado. A partir da valoração é possível definir objetivos para a educação. Considerando-se que a educação visa a promoção do homem, são as necessidades humanas que irão determinar os objetivos educacionais. E essas necessidades devem ser consideradas em concreto, pois a ação educativa será sempre desenvolvida num contexto existencial concreto.

Os objetivos indicam os alvos da ação. Constituem, como lembra o nome, a objetivação da valoração e dos valores. Poderíamos, pois, dizer que se a valoração é o próprio esforço do homem em transformar o que é naquilo que deve ser, os objetivos sintetizam o esforço do homem em transformar o que deve ser naquilo que é. O esquema seguinte facilita a compreensão do que foi dito:

Como a definição de objetivos educacionais depende das prioridades ditadas pela situação em que se desenvolve o processo educativo, compreende-se que tal definição pressupõe uma análise da situação em questão.

7. No esquema, Realidade, representa a situação original e Realidade2 essa mesma situação, porém transformada. Temos, pois que: realidade1 = realidade, transformada.

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É preciso, então, encarar o problema do ponto de vista da realidade existencial concreta do homem brasileiro. Qual a situação do homem brasileiro? Como ele valoriza os seus elementos? Como ele se utiliza deles? Uma análise mais detida revelará que o homem brasileiro, no geral, não sabe tirar proveito das possibilidades da situação e, por não sabê-lo, frequentemente acaba por destruí-las. Isto nos revela a necessidade de uma educação para a subsistência: é preciso que o homem brasileiro aprenda a tirar da situação adversa os meios de sobreviver

Mas como pode o homem utilizar os elementos da situação se ele não é capaz de intervir nela, decidir, engajar-se e assumir pessoalmente a responsabilidade de suas escolhas? Sabemos quão precárias são as condições de liberdade do homem brasileiro, marcado por uma tradição de inexperiência democrática, marginalização econômica, política, cultural. Daí, a necessidade de uma educação para a libertação: é preciso saber escolher e ampliar as possibilidades de opção.

Como, porém, intervir na situação sem uma consciência das suas possibilidades e dos seus limites? E esta consciência só se adquire através da comunicação. Daí, o terceiro objetivo: educação para a comunicação: é preciso que se adquiram os instrumentos aptos para a comunicação intersubjetiva.

Tais objetivos, contudo, só serão atingidos com uma mudança sensível do panorama nacional atual, quer geral, quer educacional. Daí, o quarto objetivo: educação para a transformação.

Em resumo: a consideração do problema dos valores em face da realidade existencial concreta do homem brasileiro nos permite definir os seguintes objetivos gerais para a educação brasileira.(8)

1. Educação para a subsistência;

2. Educação para a libertação;

3. Educação para a comunicação;

4. Educação para a transformação.

Como, porém, realizar esses objetivos? Com que instrumentos podemos contar? É preciso buscar nas ciências elementos que nos permitam estruturar técnicas adequadas para se atingir os objetivos propostos.

8. Esses objetivos são discutidos mais amplamente em um texto inédito denominado "Esboço de formulação de uma

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ideologia educacional para o Brasil,"

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CAPITULO QUATRO

VALORES EM SUPERVISÃO PEDAGÓGICA: ABORDAGEM FILOSÓFICA

Inicialmente, gostaríamos de esclarecer que o texto que enviei a este Seminário' não trata especificamente da relação entre os valores e a Supervisão Pedagógica. O título "Valores e Objetivos em Educação" indica a intenção de estabelecer uma correlação entre o problema dos valores e o problema dos objetivos, tomando-se os valores como base para se compreender e especificar os objetivos da educação em geral e da educação brasileira em particular.

A finalidade desse texto é fornecer um referencial teórico suscetível de maior especificação, através de debates e de estudos complementares.

Para começar, gostaria de dizer que a expressão “Valores Filosóficos" decorre de uma distinção meramente formal, uma vez que, na verdade, todos os valores são sócio-culturais. Neste caso, o adjetivo "filosófico" indica o enfoque, isto é, indica a atitude segundo a qual os valores são tomados explicitamente como objetos de reflexão filosófica. E isto ocorre na medida em que eles se tornam problemas para o homem, para a cultura humana.

Se fôssemos fazer um retrospecto da história da filosofia, veríamos que desde as primeiras preocupações filosóficas os valores estavam presentes. No entanto, a filosofia dos valores como uma disciplina específica surgiu a partir do início do século

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passado, quando houve a necessidade de uma reflexão explícita sobre o problema dos valores, dando origem a diferentes correntes. Essas correntes poderiam ser sintetizadas basicamente em quatro:

1. Objetivismo axiológico, que considera os valores como coisas, como objetos existentes independentemente do sujeito.

2. Psicologismo axiológico, que considera os valores como algo subjetivo, ligados, portanto, aos desejos individuais.

3. Poderíamos identificar uma outra corrente, que chamaríamos de logicismo axiológico porque considera os valores como idéias, quer dizer, o valor não é algo existente, em si e por si, independentemente do sujeito e nem algo subjetivo, isto é, dependente do desejo psicológico de cada um; existe na mente do homem, mente esta que transcende os indivíduos empíricos.

4. A última corrente, é a que chamaríamos de ontologismo axiológico, que tem esse nome porque considera os valores como entidades à parte; segundo essa corrente, os valores pertenceriam a um mundo à parte (o mundo do que deve ser), semelhante ao mundo platônico, que seria distinto do mundo dos objetos, do mundo das coisas (o mundo do ser). Nessa esfera, nesse mundo à parte, é que estariam localizados os valores.

Essas seriam basicamente as quatro correntes em que poderemos encaixar as concepções sobre o problema dos valores, que é um problema bastante intrincado na Filosofia.

O valor é alguma coisa que está presente em nossa vida quotidiana. Caracterizando os valores a partir da realidade humana, quis dizer que os valores não existem independentemente do homem, só que o homem deverá ser considerado como uma realidade concreta e, enquanto realidade concreta, ele é uma totalidade que não pode ser reduzida ao seu aspecto subjetivo, individual (que deu origem à corrente do psicologismo axiológico), nem pode ser reduzido ao aspecto intelectual, como o racionalismo o fez, dando origem à corrente do logicismo axiológico.

Também não poderíamos considerar, nessa nossa maneira de encarar o problema, os valores como algo que

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forma uma entidade à parte, porque os valores são detectados realmente a partir da experiência humana ou da existência humana.

Isso não implica considerar o problema dos valores de maneira subjetiva, não implica descartar a objetividade dos valores e não implica, também, considerarmos os valores como coisas.

É comum dizer-se que os valores têm existência objetiva; de tal modo que a

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descoberta do valor de uma coisa pelo homem não cria o valor; ele é, independentemente de o homem o ter, ou não, descoberto.

Ilustremos a objeção e sua auto-anulação com o seguinte exemplo: imaginemos que no interior da Amazônia, onde nenhum homem tenha ido, exista algo que, pelo fato de ninguém conhecer, não foi ainda aproveitado pelo homem; no entanto, segundo o objetivismo axiológico, isso tem valor. O fato de que isso seja descoberto, digamos no caso, no ano de 2005, e então passe a ser valorizado, não retiraria o caráter de valor que ele já possui objetivamente. Quando nos preocupamos com isso, conseguimos entender e aceitar que aquilo que está lá, desconhecido de todos, tem valor, embora não conhecido.

Notem, no entanto que, quando damos este exemplo, num certo sentido não se trata mais de algo desconhecido - ele já está se referindo ao homem. O que eu gostaria de caracterizar é que o valor é uma relação de não indiferença que o homem estabelece com os elementos com que ele se defronta. Na medida em que o homem não é indiferente às coisas, é que essas coisas possuem valor.

No caso do exemplo citado, o valor está justamente nessa relação de não-indiferença que nós estabelecemos com o elemento desconhecido enquanto realidade objetiva, mas já formulado como expectativa. Sem essa relação, não existe valor.

Uma outra objeção que podemos levantar a essa idéia é a das chamadas "realidades absolutas". Se se admite a existência de um Ser Absoluto, ele teria um valor independentemente do homem. Poderia dizer que não, porque o valor implica justamente alguma coisa que deve ser e não é ainda; haja vista que ele está ligado a essa relação de não-diferença estabelecida pelo homem.

Para desenvolver essas idéias, teria que ampliar bastante o raio de reflexão e conceituar o valor, em face do ser e das modalidades do ser.

Assim, dada a importância que tem a liberdade para nós enquanto homens, somos levados a dizer que o Ser Absoluto é absolutamente livre. No entanto, vejam que a liberdade absoluta seria uma contradição porque o ser livre é aquele que deve aderir, ou que deve optar entre diferentes alternativas.

Se nós imaginamos um ser que é tudo, ele não tem que optar. O problema da opção, para ele, não se coloca. Conseqüentemente, admitida a existência de um Ser Absoluto, cabe concluir que ele é indiferente à liberdade. Logo, não se coloca, aí, o problema do valor. Os valores implicam fenômenos com os quais nós estabelecemos relação de não-indiferença, na medida em que nós somos, enquanto homens,

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relativos, e nos encontramos em um processo de realização da nossa própria existência. Com isso acabamos por estabelecer uma passagem indevida do relativo para o absoluto, atribuindo ao absoluto aquilo que, no domínio da relatividade, se revela alvo de não-indiferença. Cabe, pois, dizer que o homem é o lugar único da valorização.

Feitos esses esclarecimentos, acredito que a postura apresentada no texto deve se tornar um pouco mais clara, na medida em que procurei partir da realidade humana; do homem como um ser situado no meio natural e cultural. Vejam bem que o meio cultural também já é um dado da realidade humana e o homem não existe sem cultura. Se, por um lado, o homem é o produtor da cultura, por outro, a cultura produz o homem. Segue-se daí que o homem não existe sem cultura e nem a cultura sem o homem. É justamente no momento em que ele é capaz de fazer cultura que ele se define como homem. À medida que ele transforma a natureza, antecipa idealmente os resultados reais; esta antecipação é condição para ele transformar a natureza.

Esse primeiro grande domínio, isto é, o domínio dos valores prático-utilitários, indica que o homem para existir necessita transformar a natureza. Ele necessita dos elementos da natureza seja para utilizá-los diretamente, seja para transformá-los. Portanto, não lhes é indiferente. Daí, o seu valor.

O homem valoriza os elementos naturais, como objetos de transformação, de criação do mundo da cultura. Para transformar a realidade, ele tem que intervir na situação; isto já indica a possibilidade do homem de, para transformar a realidade, destacar-se da própria realidade. Então, ele é um ser natural que é capaz de intervir na natureza, modificando-a.

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Esse aspecto vai colocar o problema da liberdade, isto é, a capacidade do homem de engajar-se, de aderir, de optar entre alternativas. Essa capacidade vai se exercer, tanto sobre a natureza em estado bruto, quanto sobre a própria cultura, ou seja, a natureza transformada, e pode também exercê-la sobre os homens.

Surge aqui um problema, que é o da relação entre os homens. A capacidade do homem intervir em sua situação para transformá-la, na medida em que o homem existe socialmente, indica que os diferentes indivíduos têm essa capacidade e, conseqüentemente, a relação vertical de dominação do homem sobre a natureza pode se estabelecer também no plano horizontal.

A relação horizontal, de homem para homem, não seria do mesmo tipo da relação vertical do homem para com as coisas.

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Esta relação, na medida em que implica o reconhecimento da liberdade dos outros, seria de colaboração e não de dominação.

Sabemos que a relação de não-indiferença que o homem estabelece para com as coisas cria expectativas; quer dizer, as coisas são vistas como possibilidades para algo além do que elas são. Do ponto de vista concreto, esta mesma atitude pode ser exercida com relação aos outros homens. É necessário, então, examinar as condições históricas que deram origem a uma estrutura social em que vigora a dominação de classe. Isto nos levaria a compreendera constituição do modo de produção capitalista e, a partir daí, impregnar de historicidade a consideração da problemática dos valores.

Nessa relação entre os homens podemos detectar um outro domínio que ultrapassa esses dois primeiros: um domínio que transcende os outros.

Isso vem colocar em tela o problema da verdade, que seria o terceiro domínio de valor.

Os homens acreditam que ao fazer afirmações estas valem, não somente para si próprios, como também para os outros, transcendem o domínio da concepção subjetiva. Estas afirmações são verdadeiras no sentido em que expressam uma realidade objetiva, que é comum aos elementos participantes.

Acontece, porém, que a comunicação dos homens entre si e com as coisas estabelece relações que se bastam a si mesmas. Não se trata, pois, de se utilizar um elemento para se chegar a determinado objetivo, nem do reconhecimento da liberdade, ou da apreensão da realidade objetiva do ponto de vista da veracidade. Trata-se de um significado intrínseco à própria relação (domínio estético).

Quanto aos objetivos indicados, cabe observar que, quando falo em educação para a subsistência quero me referir ao problema do domínio do prático-utilitário. Existem necessidades práticas nas quais a educação está envolvida e espera-se que ela ajude a satisfazê-las.

No caso brasileiro, chamo isto de Educação para a subsistência. Poderíamos substituir subsistência por Desenvolvimento. Entretanto, quando falamos em Educação para o Desenvolvimento, aparece a pergunta: de que desenvolvimento se trata?

Dizia um grande pedagogo, Dewey, que a finalidade da Educação é o desenvolvimento e a finalidade do desenvolvimento é maior desenvolvimento. Daí então, considerar que a Educação não tem propriamente fim em si mesma, mas objetivos que são transformados em meios; o fio condutor é a ideia do desenvolvimento. Agora, de que desenvolvimento se trata? Muitos representantes da Escola Nova falam em desenvolvimento, mas em desenvolvimento das potencialidades da criança. Então,

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quando se fala em Psicologia do Desenvolvimento, pensa-se nas etapas de evolução do ser humano, da infância para a adolescência, e daí para a idade adulta. Uma outra forma de se encarar esse desenvolvimento seria no sentido econômico. Educação para o desenvolvimento significaria, nesse caso, colocar a Educação a serviço do desenvolvimento econômico.

Quando questiono a idéia de hierarquia isto ocorre pelo fato dela se colocar acima, fora, além das situações concretas. A minha proposta de substituí-la por prioridade decorre da consideração segundo a qual as prioridades são ditadas pelas situações concretas e as situações concretas vão determinar sistemas de valores diferentes; o que não ocorre com a noção de hierarquia, em que a escala de valores já está predeterminada.

O segundo objetivo, Educação para a Libertação, se liga àquele segundo domínio, o domínio da liberdade; o terceiro, Educação para a Comunicação, decorre do terceiro domínio da verdade e da comunicação. Isso implica uma série de problemas que, conseqüentemente, como educadores, temos que dar conta deles. As vezes, partimos com toda a boa vontade para educar num determinado local e já estamos marcados por um esquema de expectativas e valores que se chocam com as expectativas e com os valores daquelas pessoas com as quais iremos lidar. E a comunicação se torna aí

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praticamente inviável. Nota-se, então, que a comunicação implica esse esforço de transcendência, capacidade de sair da minha situação e de me colocar na situação do outro, na perspectiva do outro. Implica, então, uma espécie de inserção cultural em relação ao meio no qual estou trabalhando. Isso coloca uma série de problemas bastante complexos no âmbito sócio-cultural, que estão ligados, por exemplo, às divisões de classes. Na medida em que pertencemos a uma classe, já estamos marcados pelas perspectivas, pela visão, pela maneira de encarar a realidade que essa classe tem, o que interfere no modo como lidamos com outras classes. Tendo em vista essas dificuldades, todas ligadas ao âmbito sócio-cultural, e considerando a necessidade de se efetuar mudanças no contexto específico do Brasil, é que se enfatizou um quarto objetivo: Educação para a transformação.

A partir desses objetivos definidos em nível amplo, acreditamos ser mais fácil analisar objetivos específicos e tentar indagar o que significa educar para a subsistência, para a libertação, para a comunicação, e para a transformação no contexto específico em que se desenrola a ação do supervisor pedagógico.

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CAPÍTULO CINCO

PARA UMA PEDAGOGIA COERENTE E EFICAZ

O objetivo deste texto(1) é proporcionar uma visão de conjunto da problemática educacional. A educação, enquanto fenómeno, se apresenta como uma comunicação entre pessoas livres em graus diferentes de maturação humana, numa situação histórica determinada. Por isso se define como papel das instituições educacionais: "Ordenar e sistematizar as relações homem-meio para criar as condições ótimas de desenvolvimento das novas gerações, cuja ação e participação permita a continuidade e a sobrevivência da cultura e, em última instância, do próprio homem".(2) Portanto, o sentido da educação, a sua finalidade, é o próprio homem, quer dizer, a sua promoção.

O estudo das raízes históricas da educação contemporânea(3) mostra a estreita relação entre educação e a consciência que o homem tem de si mesmo, consciência essa que vem evoluindo progressivamente de época para época. Defrontamo-nos, então, nós também com o problema da compreensão do homem; que tipo de homem pretendemos nós atingir através da educação?

1. Escrito em 1971 para uma aula-síntese da cadeira de Introdução à Educação do Ciclo Básico da PUC/SR

2. GONÇALVES, Carlos Luís, M.S. - Transmissão da Cultura (mimeografado, PUC/SR 1971).

3. Cf. REIS FILHO, C. - Raízes Históricas da Educação Contemporânea mimeografado, PUC/SR 1971).

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Na tentativa de se responder a essa questão, é preciso solicitar a intervenção da Filosofia.(4) Esta é definida como uma reflexão que pensa de modo radical e rigoroso os problemas surgidos na educação, a partir de uma perspectiva de conjunto. Com efeito, a educação tal como foi considerada encontra-se em todas as sociedades: de maneira simples e homogênea, nas comunidades primitivas; de modo complexo e diversificado, nas sociedades atuais. Aparece de forma difusa e indiferenciada em todos os setores da sociedade: as pessoas se comunicam tendo em vista objetivos que não o de educar e, no entanto, educam e se educam. Trata-se, aí, da educação assistemática (fundada na "filosofia de vida"); ocorre uma atividade educacional, mas ao nível da consciência irrefletida, portanto, não-intencional, ou seja, concomitantemente a uma outra atividade, esta sim, desenvolvida de modo intencional. Quando educar passa a ser objeto explicito da atenção, desenvolvendo-se uma ação educativa intencional, então tem-se a educação sistematizada. O que determina a passagem da primeira para a segunda forma é o fato da educação aparecer ao homem como problemática; ou seja: quando educar se apresenta ao homem como algo que ele precisa fazer e não sabe como fazê-lo. É isto o que faz com que a educação ocupe o primeiro plano na sua consciência, que ele, se preocupe com ela e reflita sobre ela. Quanto a nós, se pretendemos ser educadores (especialistas em educação) é porque não nos contentamos com a educação assistemática. Nós queremos educar de modo intencional e por isso nos preocupamos com a educação.

Ora, agir de modo intencional significa agir em função de objetivos previamente definidos. Por isso, a reflexão sobre os problemas educacionais nos leva à questão dos valores e objetivos na educação.(5) Partindo de uma

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compreensão do homem no contexto situação-liberdade-consciência, referindo-o à realidade existencial concreta no homem brasileiro, pôde-se enunciar esquematicamente objetivos gerais para a educação brasileira: educação para a subsistência, para a libertação, para a comunicação e para a transformação. Esta é a forma através da qual traduzimos, em termos de Brasil, b significado da educação como promoção do homem.

Como, porém, realizar aqueles objetivos? Aqui nós nos defrontamos com o problema dos meios. Mas nós não estamos interessados em quaisquer meios e

4. Cf. SAVIANI, D. - Dimensão Filosófica da Educação. Este estudo foi posteriormente reformulado dando origem ao texto "A Filosofia na Formação do Educador", publicado neste volume, à pp. 9-24.

5. Cf. SAVIANI, D. - "Valores e Objetivos em Educação", neste volume, à pp. 35-40.

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sim nos meios adequados à realização dos objetivos propostos. A posse de tais meios está na razão direta do conhecimento que temos da realidade. Ou seja: quanto mais adequado for o nosso conhecimento da realidade, tanto mais adequados serão os meios de que dispomos para agir sobre ela. Com efeito, já dissemos que promover o homem significa torná-lo cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação a fim de poder intervir nela transformando-a no sentido da ampliação da liberdade, comunicação e colaboração entre os homens. E para o conhecimento da situação, nós contamos hoje com um instrumento valioso: a Ciência. O educador não pode dispensar-se desse instrumento, sob risco de se tornar impotente diante da situação com que se defronta. Por isso, a partir do problema dos objetivos é preciso passar ao estudo das bases científicas da educação.(6) Pode-se abordar apenas as manifestações científicas mais diretamente ligadas à atividade educacional e que constituem o objeto de tratamento específico no curso de Pedagogia. Há, porém, outros setores da ciência que também se relacionam com a educação. Na verdade, as diversas ciências tais como a Física, a Química, a Geografia, a Geologia, a Agronomia, a Biologia, a Psicologia, a Antropologia, a Historiografia, a Sociologia, a Economia, a Política, etc, são maneiras de abordar facetas determinadas que a Ciência recorta na situação em que se insere o homem. Assim, pelo fato de ser um corpo, o homem está situado nurn meio físico que o condiciona e o influencia sem cessar. Ora a Geografia, a Geologia, a Agronomia fornecem informações que interferem na eficácia da educação em relação ao meio físico. O mesmo se diga da Biologia em relação ao organismo humano e das demais ciências em relação às respectivas facetas. Isto nos permite concluir que de três maneiras as ciências interessam ao educador.

Em primeiro lugar, na medida em que lhe proporcione um conhecimento mais preciso da realidade em que atua.

Em segundo lugar, na medida em que o próprio conteúdo das ciências pode se constituir num instrumento direto da promoção do homem (educação). É nesse sentido que as ciências, como tais, passam a figurar no currículo pedagógico. Assim, a Geografia faz parte do currículo da escola primária, onde não figura a Psicologia. Mas o professor primário se interessa pela Psicologia, enquanto esta lhe permite compreender de forma mais adequada a etapa de desenvolvimento por que passa a criança. A Geografia, porém, lhe interessa não apenas enquanto lhe permite compreender mais adequadamente o meio físico em que ele e a criança estão inseridos.

6. Cf. GARCIA, W.E. - Bases Científicas da Educação.

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mas também enquanto conteúdo de aprendizagem. Aqui faz-se necessário distinguir a ciência quando encarada do ponto de vista do educador e quando encarada do ponto de vista do cientista. Do ponto de vista do cientista a ciência assume caráter de fim, ao passo que o educador a encara como meio. Exemplificando: um geógrafo, uma vez que tem por objetivo o esclarecimento do fenômeno geográfico, encara a Geografia como fim. Fará um professor de Geografia, entretanto, o objetivo é outro: é a promoção do homem, no caso, o aluno. A Geografia é apenas um meio para chegar àquele objetivo. Dessa forma, o conteúdo será selecionado e organizado de modo a se atingir o resultado pretendido. Isto explica porque nem sempre o melhor professor de Geografia é o geógrafo, o que pode ser generalizado nos termos seguintes: nem sempre o melhor professor de determinada ciência é o cientista respectivo.

A terceira maneira pela qual a ciência interessa ao educador é no que diz respeito à própria formação de cientistas. Com efeito, o cientista é formado através da organização educacional. Este papel, na organização atual, é desempenhado principalmente pelas Universidades.

A partir do conhecimento adequado da realidade é possível agir sobre ela adequadamente. Aqui é que entra o aspecto técnico.(7) Com efeito, a técnica pode ser definida, de modo simples, como a maneira julgada correta de se executar uma tarefa. E quando a técnica é derivada do conhecimento científico, ou seja, quando ela se fundamenta em princípios cientificamente estabelecidos, ela se denomina tecnologia. Assim, a Engenharia é uma tecnologia derivada das ciências físico-matemáticas, do mesmo modo que a Medicina é uma tecnologia derivada das ciências biológicas. Portanto, quando a ação educativa se fundamenta em princípios científicos, pode-se falar também em tecnologia.

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Técnicas educativas tais como a dinâmica de grupo (fundada na Psicologia Social), recursos audio-visuais (fundados na Semiótica), etc, pertencem ao complexo da Tecnologia Educacional.

Por fim, como o conhecimento da realidade revela que há casos especiais para os quais as técnicas comuns são ineficazes, surge a necessidade de se organizar técnicas específicas para esses casos. Daí, a importância da área de Educação Especial, destacando-se nesse caso os estudos dos distúrbios de comunicação oral.(8)

No que diz respeito às relações entre fins e meios no processo educacional, é preciso observar ainda, o seguinte: se geralmente está a nosso alcance definir novos

7. Cf. GARCIA, W.E. - Bases Tecno/óg/cos da Educação.

8. Cf. SPINELLI, M. - Educação e Distúrbios de Comunicação Humana Verbal.

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objetivos para a nossa ação no campo da educação, frequentemente não está a nosso alcance a escolha dos meios adequados aos novos objetivos. Defrontamo-nos, pois, com o problema de usar meios velhos em função de objetivos novos. Com efeito, educar tendo em vista os objetivos propostos (subsistência, libertação, comunicação e transformação) exigiria instituições educacionais diferentes daquelas que possuímos, com uma organização curricular também diferente. No entanto, não nos é dado criar as novas instituições, independentemente das atuais. Nós temos que atuar nas instituições existentes, impulsionando-as dialeticamente na direção dos novos objetivos. Do contrário, ficaremos inutilmente sonhando com instituições ideais. Problemas desse tipo fazem com que, a par de uma sólida fundamentação científica, o educador necessite também aprofundar-se na linha da reflexão filosófica. É isto que justifica a existência de cursos de educação em nível superior. Com efeito, a passagem de uma educação assistemática (guiada pelo senso comum) para uma educação sistematizada (alçada ao nível da consciência filosófica) é condição indispensável para se desenvolver uma ação pedagógica coerente e eficaz.

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CAPÍTULO SEIS

CONTRIBUIÇÃO A UMA DEFINIÇÃO DO CURSO DE PEDAGOGIA

A expansão pela qual passou o ensino superior brasileiro(1) nos últimos anos, atingiu marcantemente o setor da Pedagogia. Tal curso multiplicou-se desordenadamente. Como costuma acontecer toda vez que as alterações quantitativas atingem níveis expressivos, também neste caso, o aspecto qualitativo foi grandemente afetado. E atai ponto que o curso de Pedagogia chegou à iminência de ver suas funções totalmente redefinidas.

Do ponto de vista legal, as redefinições se iniciaram com a Indicação Básica 67/ 75 do C.FE., imediatamente seguida das Indicações Específicas 68/75, 70/76 e 71 / 76. A análise dessas Indicações revela que, embora possibilitem algumas aberturas, elas permitem também que a situação atual se mantenha e, mesmo, se agrave. Com efeito, ao legalizar o "status" de especialização conferidos aos cursos de formação de educadores, acabou-se por reduzir a duração desses cursos para dois anos, em média. Com isto, a formação do educador se toma ainda mais precária, consagrando-se um estado de deterioração que já vinha se processando em marcha acelerada. E não se diga que a experiência prévia obrigatória de dois anos de magistério compensa a redução proposta. Nos últimos anos, temos assistido a grande número de professores habilitados nas chamadas "licenciaturas de conteúdo", acorrendo aos

1. Este texto se originou de um documento elaborado como subsídio a uma reunião de planejamento do Centro de Educação da PUC/SP em 1972. Publicado na Revista D/doto, n.5, 1976.

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cursos de Pedagogia para obter um título adicional. E, apesar de possuírem experiência de magistério, nem por isso se revelam educadores mais competentes. O que poderia contornar parcialmente o problema é a ampliação, também prevista, da formação pedagógica nas licenciaturas. Dado, porém, o peso da tradição na forma em que estão organizadas as licenciaturas, não cremos que tal medida venha a produzir frutos a curto ou médio prazos. Assim, esta possível abertura resulta bastante frágil. Restam, no entanto, duas aberturas representadas, a primeira, pela possibilidade de

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organização de habilitações polivalentes, e a segunda, pela "formação do pedagogo em geral". Esta foi apenas mencionada e em seguida esquecida, quando se tratou de organizar a estrutura e funcionamento dos cursos. Todavia, por mais estranho que isto possa parecer, esta é, a nosso ver, a abertura mais significativa.

As linhas abaixo buscam oferecer uma contribuição no sentido de se precisar melhor o significado da formação do pedagogo enquanto educador dotado de fundamentação teórica consistente. A partir dessa base, e só a partir daí, acreditamos que se possa cogitar das habilitações polivalentes.

1. Sempre que o assunto é educação, uma palavra parece inevitável: complexidade. Educação é um tema complexo, todos reconhecem. Contudo, a complexidade não deve ser considerada como um obstáculo intransponível, mas como um desafio que nos cumpre enfrentar. Como educadores - se o quisermos ser, em sentido autêntico - não nos cabe capitular perante o caráter complexo da educação, justificando, a partir daí, todas as dificuldades. Ao decidirmos nos dedicar à educação, assumimos - por este ato e com ele - a complexidade que lhe é inerente. O fato de estarmos conscientes disso é condição necessária para desenvolvimento das atividades decorrentes de nossa escolha. Mas não é, em si, suficiente para nos permitir enfrentar adequadamente o problema. Com efeito, se a não percepção da complexidade pode levar a soluções simplistas, o seu reconhecimento poderá se converter numa explicação para a ausência ou insuficiência de soluções. Cumpre, pois, efetuar uma reflexão sobre o problema para se verificar até onde vai o simplismo, o pretexto e a complexidade real.

2. Uma sólida fundamentação teórica talvez tornasse possível responder ao desafio da complexidade. No entanto, ela própria (a complexidade) parece tornar inviável essa fundamentação. Com efeito, uma vez que interferem na educação diversos fatores, compreendê-la implica levar em conta diversas perspectivas, empreender abordagens várias. Isto acarreta, contudo, uma dis-

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persão que se traduz ou num enciclopedismo vacilante, ou nas chamadas "flutuações da consciência pedagógica".(2)

Passa-se do Psicologismo pedagógico para o Sociologismo, e deste para o Economidsmo, etc.

3. Dir-se-ia que uma forma de se superar o caráter flutuante e/ou enciclopédico seria através do chamado enfoque pedagógico. A Pedagogia seria, pois, o recurso que nos permitiria unificar as perspectivas e eliminar a diversidade de abordagens; haveria, para lá e acima da diversidade, uma e mesma abordagem: a abordagem pedagógica. Tal esperança, no entanto, parece se frustrar quando procuramos compreender em que consiste a abordagem pedagógica. E, ao invés de avançarmos, temos então a sensação de que estamos retrocedendo. Com efeito, aos problemas anteriores se acrescenta mais este: o que devemos entender por Pedagogia?

4. Se, para responder à questão supra, recorremos aos livros que tratam do assunto, é possível que nossa perplexidade aumente ainda mais. As conceituações se multiplicam, o pedagógico se desdobra em múltiplos enfoques e a esperada unificação das perspectivas se desfaz. Há os que definem a Pedagogia como sendo a ciência da educação. Outros, porém, lhe negam caráter científico, considerando-a predominantemente como arte de educar. Para alguns ela é antes técnica do que arte, enquanto outros a assimilam à Filosofia da Educação. Há, mesmo, quem a considere também teologia da educação.(3)

5. Podemos sumariar as principais caracterizações do termo, encontradas nos livros e no entendimento comum, da seguinte forma:

- ciência da educação;

- arte de educar;

- técnica de educar:

- filosofia da educação;

- história da educação;

- teologia da educação;

- teoria da educação.

2. Cf. ORLANDI, L.B.L. - "O Problema da Pesquisa em Educação e Algumas de suas Implicações", Educação, Hoje, mar./abr., 1969.

3. Cf. SANCHEZ BUCHÓN, Consuelo - Pedagogia e HENZ, Hubert - Manual de Pedagogia Sistemática.

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6. Sobre as conceituações supra há muita controvérsia não apenas em relação ao problema de se decidir sobre qual delas melhor se aplica ao termo Pedagogia, mas também no que diz respeito ao significado de cada uma delas. O que se entende por ciência da educação? Qual o significado de expressões como "Filosofia da Educação", "Historiada Educação", "Arte de Educar", etc? Diante dessas dificuldades, a tendência dominante parece ser a de agrupar sincreticamente todas aquelas conceituações sob o nome de Pedagogia. Voltamos, assim, ao enciclopedismo.

Como decidir em função dessa variedade? Como proceder para tentar ultrapassar esse nível?

Um exame superficial das caracterizações do termo Pedagogia enunciadas no item 5 nos permite perceber que para lá das diversidades há um ponto comum: todas elas trazem uma referência explícita à educação.

7. Tomando-se a educação como ponto de partida, talvez nos seja possível projetar alguma luz sobre o significado da Pedagogia. Aqui, porém, nós corremos o risco de regredirmos novamente à estaca zero. Na verdade, se nos dermos ao trabalho de esclarecer a noção de educação, é bem possível que esbarremos com tantas dificuldades quanto aquelas suscitadas pela noção de Pedagogia. Guardemo-nos, pois (ao menos por enquanto) de enveredar por este caminho. Consideremos a educação como um dado de realidade: algo que acontece (fenômeno). Quanto a isso, parece não haver discordância. Ninguém ousaria negar - é o que se presume - o caráter real da educação. Não nos preocupemos, por enquanto, com a questão: "em que consiste essa realidade"? Aceitemos o dado. Pois bem: a respeito deste dado, dessa realidade, diversas atitudes podem ser tomadas: a atitude científica, artística, filosófica, etc. Encontramos aqui o fundamento das caracterizações comumente dadas ao termo pedagogia. Os limites desse artigo não nos permitem examinar cada uma dessas atitudes. Daremos, pois, apenas uma indicação de seus significados, mantendo a mesma sequência apresentada no item 5.

8. Ciência da Educação: conhecimento metódico e sistematizado da realidade educacional, obtido através da investigação e confirmado pela observação, raciocínio e experimentação intensiva. Tal conceituação, contudo, traduz um projeto ainda não realizado. Daí porque ao invés de se falar em ciência da educação será mais correto dizer ciências da educação (sociologia da educação, psicologia da educação, etc.)

9. Arte de educar: realização original e criativa do ato educativo.

10. Técnica de educar, realização do ato educativo através da aplicação correta e eficiente de regras predeterminadas. Vê-se, pois, que enquanto a nota distintiva da

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arte é a originalidade, a técnica se caracteriza predominantemente pela repetitividade. Deve-se notar ainda que tanto a arte como a técnica dizem respeito ao fazer, ao passo que a ciência diz respeito ao conhecer.

11. Filosofia da educação: reflexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional apresenta. Como tal não lhe cabe como tarefa específica definir "a priori" a educação nem sistematizá-la "a posteriori" numa teoria geral, como fazem crer as abordagens convencionais, mas acompanhar reflexiva e criticamente a ação pedagógica.

12. História da educação: estudo da realidade educacional na sua evolução através do tempo.

13. Teologia da educação: estudo da realidade educacional a partir do conhecimento revelado.

A indicação sumária apresentada acima é suficiente para evidenciar a impossibilidade de se identificar uma ou mais dessas conceituações com a Pedagogia. Resta-nos, contudo, examinar o último dos tópicos enunciados no item 5. Trata-se da expressão "teoria da educação".

14. O termo teoria (do grego: teoria = ato de ver, de olhar, de contemplar) liga-se a um sentido desvinculado dos interesses da ação. Tal fato levou Durkheim(4) a definir a Pedagogia como "teoria prática da educação". Com isso pretendia ele indicar que a Pedagogia é uma teoria que se estrutura em função da ação, ou seja, é elaborada em função de exigências práticas, interessada na execução da ação e nos seus resultados. Tal expressão, contudo, resulta estranha, uma vez que pressupõe a oposição entre teoria e prática, o que a torna visivelmente paradoxal: além disso, para evitar confusões, acaba por nos obrigar a introduzir a expressão "teoria teórica", visivelmente redundante. Para manter a idéia evitando os conflitos terminológicos mencionados, poderíamos lançar mão da noção de "ideologia educacional", entendida a palavra ideologia como "uma leitura que fazemos de uma situação histórica num conjunto de eventos, leitura orientada pelas exigências da ação a ser realizada".(5)

15. As considerações supra nos permitem compreender que a realidade educacional não nos interessa apenas como produto, ou seja, como algo acabado que nos cumpre descrever, explicar, interpretar, mas também como processo, ou seja, como algo que nos cumpre produzir, fazer, realizar. Daí a tentação de identifi-

4. Cf. DURKHEIM, E. - Educação e Sociologia.

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5. Cf. FURTER, R - Educação e Reflexão, p.50.

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carmos Pedagogia com Ideologia Educacional, dado que a palavra ideologia traduz uma interpretação que se vincula diretamente aos interesses da ação. Contudo, ideologia é uma palavra carregada de conotações variadas e bastante discutíveis, além de trazer consigo um matiz depreciativo. Em conseqüência disso, melhor será manter o termo teoria desde que não se perca de vista o seu significado abrangente que inclui tanto o aspecto cognoscitivo como o aspecto teleológico. Assim sendo, a teoria, embora distinta da prática, é condição necessária (ainda que não suficiente) para que a prática atinja sua finalidade. Marquemos esse caráter abrangente da teoria através do adjetivo "geral". Esclarecemos, desde logo, que não se deve confundir geral com genérico. O oposto de genérico (vago) é específico (preciso); o oposto de geral (abrangente) é particular (regional).

Podemos, pois, considerar a Pedagogia como teoria geral da educação, isto é, como sistematização "a posteriori" da educação. Isto significa que não se trata de uma teoria derivada da Psicologia, da Sociologia, da "Filosofia", da Economia, etc. Enquanto sistematização "a posteriori" da educação, a Pedagogia é uma teoria construída a partir e em função das exigências da realidade educacional (realidade-processo e realidade-produto).

16. Nesse contexto pode-se perceber a função do curso de Pedagogia. Destina-se ele à formação do educador. Ora, educador é precisamente aquele que educa, portanto, aquele que realiza, que desenvolve a ação educativa. Para uma ação coerente e eficaz, ele necessita de fundamentação teórica. Para lhe permitir essa fundamentação é que se criou o curso de Pedagogia (Teoria Geral da Educação).

17. Tal curso forma educadores para uma situação precisa (a realidade brasileira atual - séc. XX). Essa situação não se explica por si mesma. É resultado do processo histórico. Daí, a necessidade de uma fundamentação histórica para a Pedagogia. A realidade educacional, porém, nos coloca continuamente problemas que exigem a nossa reflexão (filosofia). A partir da consciência histórica e da reflexão filosófica, podemos perceber as necessidades da realidade, o que nos possibilita estabelecer objetivos para a nossa ação educativa. Mas como realizar os objetivos? "Aqui nós nos defrontamos com o problema dos meios. Mas nós não estamos interessados em quaisquer meios e sim nos meios adequados à realização dos objetivos propostos. A posse de tais meios está na razão direta do conhecimento que temos da realidade, ou seja: quanto mais adequado foro nosso conhecimento da realidade, tanto mais adequados serão os meios de que dispomos para agir sobre ela... E, para o conhecimento da situação, nós contamos hoje com um instrumento valioso: a Ciência. O educador não pode

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dispensar-se desse instrumento, sob risco de se tornar impotente diante da situação com que se defronta... A partir do conhecimento adequado da realidade é possível agir sobre ela adequadamente. Aqui é que entra o aspecto técnico. Com efeito, a técnica pode ser definida, de modo simples, como a maneira julgada correta de se executar uma tarefa. E quando a técnica é derivada do conhecimento científico, ou seja, quando ela se fundamenta em princípios cientificamente estabelecidos, ela se denomina tecnologia. Portanto, quando a ação educativa se fundamenta em princípios científicos, pode-se falar também em tecnologia".(6)

Daí se conclui que a sistematização da educação implica bases histórica, filosófica, científica e tecnológica. É importante relembrar que esses fundamentos se articulam dialeticamente a partir das exigências da realidade educacional. Não se trata - dissemos antes - de uma teoria derivada da Psicologia, Sociologia, etc. Tais elementos entram apenas e tão somente na medida em que nos permitem compreender de modo sistematizado, portanto, coerente, a educação.

18. A referida sistematização ocorre em diferentes níveis:

a) ao nível do professor: evidentemente que o professor, uma vez que trabalha no curso de Pedagogia, deverá ter uma compreensão sistematizada do fenômeno educacional;

b) ao nível do curso: do diálogo instaurado a partir da sistematização ao nível dos professores poder-se-á chegar à organização do curso;

c) ao nível do aluno: a sistematização ao nível do curso é condição necessária para que o aluno chegue à desejada fundamentação teórica, ultrapassando, assim, as flutuações e o enciclopedismo.

19. Tendo em vista a função do curso (formação do educador) e considerando-se o que significa ser educador podem ser estabelecidos os seguintes fins para o curso:

a) desenvolver nos alunos uma aguda consciência da realidade em que vão atuar;

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b) proporcionar-lhes uma adequada fundamentação teórica que lhes permita uma ação coerente;

c) propiciar-lhes uma satisfatória instrumentalização técnica que lhes possibilite uma ação eficaz.(7)

6. Cf. nosso texto "Para uma Pedagogia Coerente e Eficaz", pp. 2 e 4 (mimeografado), 1971. Neste volume, pp. 47-52.

7. Tais objetivos coincidem com os objetivos básicos da Universidade (trata-se, afinal, de uma instituição educativa). Cf. a respeito, o nosso texto "Subsídios para Fundamentação do Currículo da PUC" (mimeografado), S. Paulo, 1972. Neste volume, pp. 63-68.

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20. É necessário que cada disciplina traduza os objetivos supra, em termos de objetivos específicos para a sua área. Ou seja: é necessário que se pergunte quais as metas que é preciso estabelecer para si mesma em relação aos alunos, de modo a colaborar para que eles cheguem à teoria geral da educação. Tais objetivos específicos poderiam ser definidos (à guisa de sugestão) nos seguintes níveis:

a) no nível atitudinal ("O que o educador precisa viver");b) no nível crítico-contextual ("o que o educador precisa compreender");c) no nível cognitivo ("o que o educador precisa saber");d) no nível instrumental ("o que o educador precisa fazer"). A definição dos objetivos específicos

orientará a seleção dos conteúdos e a escolha das formas de trabalho que garantam a sua realização.

21. Uma vez determinados:

a) objetivos gerais;b) objetivos específicos;c) conteúdos;d) formas de trabalho (metodologia), é possível estabelecer a carga horária necessária, dentro e fora da

classe (sala de aula). Com isso poder-se-á fugir aos dois extremos: a tentativa de alguns alunos de reduzir o curso a menos do que o tempo reservado para as aulas e as reclamações de outros que dizem exigir o curso, tempo integral de estudos.

CONCLUSÃO

Uma das manifestações decorrentes da expansão do curso de Pedagogia é a chamada "falta de mercado". Não há mercado de trabalho para os formados em Pedagogia; eis a reclamação constante. Entretanto, se o curso de Pedagogia tem como objetivo a formação do educador, como foi enfatizado nas considerações anteriores, cabe perguntar: o Brasil não precisa de educadores? A resposta é óbvia e eloquentemente confirmada pêlos dados, qualquer que seja a fonte utilizada. Estamos, pois, diante desse fenômeno paradoxal: ao mesmo tempo que se admite a carência de educadores, admite-se também a falta de mercado para os educadores. Como se explica isso? E preciso distinguir: há mercado de fato; não há mercado de direito. Isto significa que embora a necessidade seja real, os canais legais para suprir essas necessidades estão, via de regra, obstruídos. Exemplifiquemos tal problema com a criação das habilitações profissionais para o curso de Pedagogia. Habilitações como

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Orientação Educacional, Administração Escolar, Supervisão, etc. têm "despejado" no mercado grande número de "diretores", "orientadores", "supervisores", etc. Tais profissionais, entretanto, têm sido preteridos pela Organização Escolar Brasileira em favor de licenciados já no exercício do magistério, como reconhece a Indicação 67/75. Não se deve pensar, porém, que a explicação desse fenômeno estaria numa presumível maior competência dos referidos professores para o exercício das tarefas inerentes às habilitações mencionadas. A explicação deve ser buscada, antes, na maior familiaridade dos professores já em exercício com a rotina escolar e na falta de especificidade das referidas habilitações. Isto põe em evidência que, ao invés de "especialistas" em determinada habilitação restrita, aquilo de que realmente estamos necessitando é de educadores com uma sólida fundamentação teórica desenvolvida a partir e em função das exigências da ação educativa nas condições brasileiras. Este será o profissional com habilitação polivalente capaz de enfrentar os desafios da nossa realidade educacional. A formação desse tipo de profissional é a tarefa urgente acometida aos cursos superiores de Educação, sejam eles denominados de Pedagogia ou não.

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CAPÍTLO SETE

SUBSÍDIOS PARA FUNDAMENTAÇÃO DA ESTRUTURA CURRICULAR DA PUC-SP

1.INTRODUÇÃO

No atual momento(1) por que passa o processo de Reestruturação da Universidade Católica, a Comissão Geral de Currículos reveste-se da maior importância. Com efeito, consolidado o Ciclo Básico, cuja composição curricular em virtude mesmo de suas funções, é relativamente simples, defrontamo-nos agora com o problema da implantação do Ciclo Profissional. Este, tendo em vista a variedade e complexidade das habilitações de nível superior exigida s pela situação brasileira atual, apresenta dificuldades de montagem curricular consideráveis. Diante desse quadro, não é possível procedermos "empiricamente". Faz-se necessário refletir seriamente e buscar uma fundamentação teórica, de modo que possamos chegar também a soluções adequadas. Cabe, pois, à Comissão Geral de Currículos proceder a estudos no nível da magnitude dos problemas para os quais lhe compete encontrar respostas. O presente texto pretende fornecer alguns subsídios na linha da referida fundamentação.

2. RGLAÇÃO DIALÉTICA OBJETIVOS-MEIOS A educação se destina à promoção do homem. A Universidade, como instituição educativa, também deverá estar voltada para essa promoção. Portanto, cabe-

1. Documento elaborado pêlos professores Dermeval Saviani e Casemiro dos Reis a pedido da Comissão Geral de Coordenação de Currículo e por ela discutido e aprovado em reunião de 03.05.1972.

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lhe, para cumprir adequadamente suas funções, aprofundar-se na compreensão da realidade humana.(2) O homem é um ser situado. Possui, no entanto, a capacidade de intervir na situação para aceitar, rejeitar ou transformar (liberdade). Contudo, sua capacidade de intervir na situação está na dependência do grau de consciência que possui da situação. O trinômio situação-liberdade-consciência caracteriza, pois, a existência humana. Compreender sua existência é, então, compreender o homem atuando dialeticamente no mundo num processo de transformação. Com efeito, na medida em que tomamos consciência das necessidades que precisam ser atendidas, vem-nos a exigência da ação. (note-se que a nossa Universidade existe para atender às necessidades da nossa realidade.) A ação busca, pois, um resultado. Isto quer dizer que para agir e ao fazê-lo, nós precisamos saber poro que agimos. Do contrário, corremos o risco de atuar num sentido que não é aquele exigido pela situação que nos solicita. Defrontamo-nos, pois, com o problema dos objetivos da ação. A definição dos objetivos acarreta, por sua vez, a necessidade do levantamento dos me/os necessários à sua consecução. Não se deve, porém, opor objetivos e meios em termos lógicos, como se faz comumente. Trata-se de uma relação dialética.(3) Com efeito, se a definição de objetivos resulta da tomada de consciência das necessidades que precisam ser satisfeitas numa determinada situação, também os meios derivarão dessa mesma tomada de consciência da situação. Se os objetivos traduzem o "poro que" da ação, os meios traduzem o "com que". Ambos, porém, estão referidos à mesma condição existencial do homem. Na verdade, é da própria realidade carente que iremos retirar os meios de superação dessas carências. A situação, ao mesmo tempo que indica o que nos falta (portanto, os objetivos, ou seja, aquilo que ainda não foi alcançado mas que deve ser alcançado), indica o que temos (portanto, os meios que nos permitem realizar os objetivos propostos); ao mesmo tempo que nos indica as carências, fornece-nos os critérios para a definição das prioridades no planejamento. Em outros termos: a análise da situação, ao mesmo tempo que nos revela orneio sobre o qual devemos

2. A reestruturação da Universidade deveria começar por tornar explícita a sua concepção do fenômeno-homem. Não nos é possível, contudo, incluir a análise da problemática humana nestes "subsídios". Em vista disso e, para melhor compreensão de nosso posicionamento, veja nosso texto Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, pp. 30-65.

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3. Para melhor compreensão da distinção entre relação lógica e relação dialética, remetemos o leitor ao nosso texto "Esboço de Formulação de uma Ideologia Educacional para o Brasil". 1969 (mimeografado).

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agir, fornece-nos os me/os através dos quais iremos agir. Vemos, pois, que as implicações objetivos-meios são recíprocas. Se é verdade que a escolha dos meios depende da definição dos objetivos, também é verdade que a consecução dos objetivos depende da escolha e, mais do que isso, do uso dos meios. Em outras palavras: se eu defino este objetivo, eu devo usar este ou estes meios; em contrapartida, se eu uso aquele ou aqueles meios, eu vou chegar àquele objetivo. Portanto, de nada adianta definir corretamente os objetivos se usarmos meios que não levam a eles. Por outro lado, sem a definição de objetivos será impossível a escolha dos meios adequados.

3. OBJEÏIVOS BÁSICOS DA UNIVERSIDADE Encarado o homem no contexto situação-liberdade-consciência; encarada a Universidade como uma instituição educativa; encarada essa instituição com as funções específicas de conservação, criação, transformação e transmissão da cultura, vê-se que ela deverá ser, por excelência, um órgão de pesquisa e ensino. Para que, entretanto, desenvolverá a Universidade, a pesquisa e o ensino? Se educação é promoção do homem; se o homem realiza as suas potencialidades na e a partir da situação; se a sua capacidade de intervir na situação depende do grau de consciência que possui em relação à situação, a Universidade estará em condições de desempenhar suas funções se e somente se for capaz de formar profissionais:

a) com uma aguda consciência da realidade em que vão atuar;

b) com uma adequada fundamentação teórica que lhes permita uma ação coerente;

c) com uma satisfatória instrumentalização técnica que lhes possibilite uma ação eficaz.

Tais objetivos(4) deverão orientar a escolha dos meios.

4. O PROBLEMA DOS MEIOS O currículo se situa, evidentemente, na esfera dos meios. Não a esgota, porém. O seguinte diagrama poderá dar uma ideia da posição do currículo na esfera dos meios:

4. Para uma relação entre os objetivos fundamentais da Universidade e os objetivos gerais da educação brasileira, hoje, sugerimos o nosso texto "Esboço de Formulação de uma Ideologia Educacional para o Brasil", citado, Parte I.

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5. NOÇÃO DE CURRÍCULO Currículo é um conceito bastante discutido hoje em dia. Tradicionalmente ele pode ser entendido como a relação das disciplinas que compõem um curso ou a relação dos assuntos que constituem uma disciplina, no que ele coincide com o termo programa. Entretanto, existe atualmente uma tendência a se considerar o currículo como sendo o conjunto das atividades (incluindo o material físico e humano a elas destinado) que se cumprem com vistas a um determinado fim. Este é um conceito muito mais amplo, pois abrange todos os elementos relacionados com a escola. Poderíamos dizer que, assim como o método procura responder à pergunta: como se deve fazer para atingir determinado objetivo, o currículo procura responder à pergunta: o que se deve fazer para se atingir determinado objetivo. Trata-se, portanto, do conteúdo da educação e de sua distribuição no tempo que lhe é destinado (entenda-se o termo conteúdo num sentido bem amplo).

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6. CRITÉRIOS PARA ORGANIZAÇÃO CURRICULAR

6.1. Objetivos A organização do currículo estará condicionada em primeiro lugar aos objetivos básicos da Universidade (consciência da realidade, fundamentação teórica e instrumentalização técnica). Assim, a estrutura curricular deve estar de tal modo vinculada a esses três objetivos que se possa discriminar entre seus elementos quais e em que medida desenvolvem especificamente cada um dos três aspectos da formação universitária.

Além desses objetivos gerais, cumpre definir os objetivos específicos. Neste sentido, os objetivos são parte integrante do currículo. Constituem a primeira fase

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do "o que fazer"; trata-se de definir em termos operacionais para quê se pretende a formação de tal ou qual profissional (por exemplo, médico, educador, etc).

6.2. Composição Rara preencher aquelas funções, o currículo será composto de um núcleo disciplinar e de serviços auxiliares. Por núcleo disciplinar entende-se o conjunto das disciplinas consideradas indispensáveis para a consecução dos objetivos gerais (da Universidade) e específicos (de cada habilitação profissional). Por serviços auxiliares, entende-se o conjunto de recursos materiais e humanos, bem como as atividades necessárias ao desenvolvimento do núcleo curricular.

6.3. Núcleo Disciplinar Na organização do núcleo disciplinar de cada habilitação profissional impõe-se:

a) daro conhecimento do conteúdo de cada disciplina, em cada um dos períodos escolares;b) pré-requisitos necessários para que aquele conteúdo seja estímulo eficiente para transformar-se em

comportamento operacional do profissional que visa formar;c) co-requisitos que reforcem, completem ou suplementem a ação daquele conteúdo;d) importância e intensidade da disciplina em relação às outras disciplinas no mesmo período.

6.4. Métodos Definida a organização curricular, impõe-se cuidadosa escolha dos métodos. Com efeito, enquanto o currículo constitui-se, por assim dizer, no aspecto estático do capítulo dos meios, os métodos representam o seu aspecto dinâmico. É o uso de métodos adequados que irá impulsionar os conteúdos curriculares na direção dos objetivos propostos. A relação dialética objetivos-meios pode, pois, ser desdobrada, aqui, na relação dialética objetivos-cumculo-métodos. Cada um desses elementos é a um tempo condição e conseqüência do outro, o que quer dizer que eles se contrapõem e se compõem num todo único que constitui (no nosso caso) o processo educativo.

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7. O PROCESSO CURRICULAR Podemos considerar um currículo em pleno processo de funcionamento , quando:

a) temos controle sobre todas as atividades programadas para atingir os objetivos propostos (gerais e específicos);

b) adotamos uma metodologia que nos permita esperar a concretização dos objetivos propostos;c) avaliamos continuamente, através do aluno, a nossa programação, seja para modificá-la, seja para

selecionar os alunos que necessitem de recursos auxiliares para seu pleno desenvolvimento.

8. CONCLUSÃO De tudo que foi dito, conclui-se que a organização curricular, para se constituir num instrumento de promoção

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humana, precisa ser continuamente confrontada com os objetivos da nossa ação educativa, de acordo com as características próprias da atividade sistematizadora.(5) Do contrário, pelo seu caráter estático, tenderá a cristalizar-se no formalismo que consiste exatamente no fato de que a um novo processo se aplicam mecanicamente formas extraídas de'um processo anterior (burocratismo). Nas nossas tentativas de Reforma, este risco nos ameaça a cada instante. Cabe à Comissão Geral de Currículos velar para que isto não ocorra. Para isso, a primeira medida deve ser definir com precisão as funções do Ciclo Profissional em relação ao Ciclo Básico, comunicando-as amplamente ao pessoal engajado no Ciclo Profissional, de modo a garantir a necessária continuidade de um para outro.

5. A respeito da atividade sistematizadora, ver nosso trabalho Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, pp. 72-85.

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CAPÍTULO OITO

PARTICIPAÇÃO DA UNIVERSIDADE NO DESENVOLVIMENTO NACIONAL: A UNIVERSIDADE E A PROBLEMÁTICA DA

EDUCAÇÃO E CULTURA

I. UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO NACIONAL

1.INTRODUÇÃO A solicitação do Conselho de Reitores diz respeito a um documento // em duas partes. Quanto à segunda parte, o documento elaborado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo deverá versar sobre o tema enunciado no subtítulo deste texto: A Universidade e a Problemática da Educação e Cultura. Quanto à primeira parte, a programação do Conselho de Reitores propunha o seguinte conteúdo: "uma explicitação do papel da Universidade no Desenvolvimento Nacional, a partir de argumentos filosóficos, históricos, sociológicos, políticos e econômicos, tendo por base uma concepção do Homem, da Instituição, da Sociedade Nacional e do próprio tipo de desenvolvimento pretendido".

A leitura da proposta acima transcrita não pode deixar de suscitar a indagação: trata-se de uma proposta exeqüível? É viável contemplar de modo satisfatório em apenas um documento todos aqueles aspectos? Não se corre o risco de uma abordagem superficial e, conseqüentemente, irrelevante? Por outro lado, também não se pode deixar de admitir que abordar o tema proposto sob um aspecto isolado dos demais seria incorrer no risco de uma abordagem parcial e/ou unilateral e, conseqüentemente, não só irrelevante como incorreta. Estaríamos, então, diante de um dilema? Quer-nos parecer que o dilema resulta da própria concepção que orienta a colocação do problema. Na concepção comum e corrente, aquela que predomina na tradição do pensamento ocidental, os fenômenos são vistos de modo abstraio, isto é, como entidades autônomas,

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existentes em si e por si. Concebida assim a "realidade",(1) cabe às ciências descrever e explicar de modo fiel (objetivo?) os fenômenos que caem sob sua jurisdição.(2) E a filosofia? Bem... à filosofia cabe ocupar-se daquelas entidades que ou não são objeto de ciência alguma, como, por exemplo, os valores (liberdade, verdade, religiosidade, beleza etc.), ou dizem respeito a todas as ciências, como, por exemplo, conhecimento, lógica, razão etc. Em outras palavras, essa concepção revela-se incapaz de captar o concreto. Este é confundido com o empírico. Entende-se agora porque, nesse quadro, as ciências são consideradas concretas por oposição à filosofia que recebe o epíteto de abstrata. Entretanto, se as ciências se ocupam do empírico, nem por isso elas deixam de ser abstratas, uma vez que o empírico é, efetivamente, uma abstração. Segue-se, pois, que a concepção comum e corrente só pode produzir análises abstraías.(3) Em conseqüência, o dilema aparecerá exatamente no momento em que, movendo-se ainda no âmbito da referida concepção, pretende-se efetuar uma análise concreta de determinado fenômeno. Nesse caso haverá apenas duas maneiras de se evitar o dilema. A primeira consiste em renunciar à análise concreta e, mantendo a mesma concepção,

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resignar-se a produzir apenas análises abstratas. A segunda consiste em questionar a

1. Colocamos a palavra "realidade" entre aspas porque a concepção de que estamos falando jamais se coloca a questão fundamental: "que é a realidade?" Pressupõe sempre a "realidade" como algo já conhecido, como algo evidente. Tal concepção bem merece o epíteto de metafísica, já que encara a realidade como algo estabelecido "a priori". Em última instância, incorre na "inversão idealista", vale dizer, postula como "real" algo que, à luz de uma análise concreta irá revelar-se "irreal". Está aí o fundamento que torna significativo o conceito de "reificação". Com efeito, o processo de reificação pode ser reduzido, basicamente a duas formas: a) atribuir realidade e algo que não a possui; b) atribuir certo tipo de realidade a algo que se caracteriza por outro tipo.2. Segundo essa concepção, a cada região do "real" corresponderia, biunivocamente, uma região do saber (já desenvolvida, em desenvolvimento ou por se desenvolver). Seria uma transposição do "direito de propriedade" do domínio da economia ao domínio da epistemologia?

3. Isso não significa que se trata de análises inúteis. As análises abstratas correspondem a um determinado nível de compreensão da realidade e nesse sentido são condição necessária de conhecimento, ainda que, a partir de certo nível de radicalidade, não sejam suficientes. As insuficiências, bem como o âmbito de validade das análises abstratas só podem ser detectadas à luz da análise concreta, vale dizer: a partir do concreto pode-se compreender o abstrato; o inverso não é possível. Cremos não ser outro o sentido da afirmação segundo a qual o conhecimento pode ser definido como "ascensão do abstrato ao concreto".

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concepção comum e corrente e superá-la (no duplo sentido de negar e conservar, isto é, superar por incorporação) na direção de uma nova concepção que viabilize a análise concreta.

Em resumo, a proposta de se efetuar "uma explicitação do papel da Universidade no Desenvolvimento Nacional, a partir de argumentos filosóficos, históricos, sociológicos, políticos e econômicos, tendo por base uma concepção do Homem, da Instituição, da Sociedade Nacional e do próprio tipo de desenvolvimento pretendido", pêlos termos em que é formulada ainda que contenha, subjacente ao texto, a concepção tradicional, oferece o pretexto para se tentar uma análise concreta, já que dá ensejo à consideração do caráter complexo inerente à problemática da Universidade. Com efeito, o concreto, por mais particularizado que seja, é sempre complexo.

2. UNIVERSIDADE E REALIDADE Nas discussões sobre o tema da Universidade são freqüentes afirmações como estas: "a universidade não leva em conta a realidade"; "a universidade está dissociada da realidade"; "há um divórcio entre a universidade e a realidade dos seus alunos"; "a universidade ignora a realidade brasileira; não leva em conta a realidade das escolas de 1º e 2º graus, a realidade econômica, o mercado de trabalho etc.". Travam-se longos debates que se interrompem e recomeçam a cada instante sobre a postura de professores e pesquisadores diante da realidade, qual a forma de conhecimento considerada mais adequada para captar de modo correio a realidade; e sempre se pressupõe tacitamente que aquilo que há de mais cristalino e que menos exige investigações é exatamente a realidade. Ora, que é a realidade? Trata-se aqui da pergunta fundamental da filosofia. Na verdade, todo o esforço filosófico pode ser traduzido, em última instância, na tentativa de passar da ilusão à realidade, de cavar sob a superfície dos fenômenos a via de acesso à verdadeira realidade, de destruir a pseudoconcreticidade (os esquemas abstratos da realidade) para captar a concreticidade.(4) Esta problemática, posta de diferentes maneiras,

4. Cf. KOSIK, K. - Dialética do Concreto, p. 16.

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ocupa lugar central nas diferentes correntes da filosofia contemporânea.(5) Cada questão por mais específica, remete, em última instância, à questão fundamental: que é a realidade?(6) Assim ocorre com a pergunta diretamente relacionada com o assunto de que estamos nos ocupando: que é a universidade? As respostas comuns poderiam ser ilustradas da seguinte maneira: "é o lugar da alta cultura"; "reunião de escolas da ordem mais elevada, cujo ensino abrange todos os ramos da instrução superior"; "organização destinada ao ensino superior, composta de número variável de escolas ou faculdades"; "instituição destinada à conservação, criação, transformação e transmissão da cultura". Respostas desse teor poderiam ser multiplicadas ao infinito. O que importa notar; porém, é que elas guardam uma característica comum: captam a universidade de modo abstraio, isto é, tomam-na como algo já constituído, existente em si e por si; em outras palavras, detém-se na sua manifestação empírica, na imediatez do observável e constatável, escapando-lhes, em conseqüência, o caráter concreto da universidade; ou, por outra: acreditam atingir o concreto quando dão conta das características empíricas, vale dizer permanecem no nível da pseudoconcreticidade.(7) Para se ultrapassar esse nível fez-se necessário converter

5. No vitalismo (Bergson), passagem da conceituação à intuição; no historicismo (Dithey), passagem da explicação à

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compreensão; na fenomenologia (Husserl), passagem da aparência à essência; em Heidegger, passagem do ôntico ao ontológico; no existencialismo em geral, passagem da essência à existência; no personalismo cristão, passagem da imanência à transcendência; no marxismo, passagem "da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado às relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra" (na expressão de A. de Walhens). "Iodas essas fórmulas convergem no esforço comum de ascender do abstraio ao concreto.

Cabe observar que o neo-positivismo fica fora do "esforço comum" às diferentes correntes da filosofia contemporânea já que parece renunciar à captação do concreto, como testemunha Popper: "Todo conhecimento, seja intuitivo, seja discursivo, é necessariamente conhecimento de aspecto abstraias e não poderemos jamais compreender a estrutura concreta da realidade social em si mesma".

6. "No que toca à realidade social, é possível responder a tal pergunta se ela é reduzida a uma outra pergunta: como se cria a realidade social? Nessa problemática que indaga o que é a realidade social mediante a verificação de como é criada esta mesma realidade social está contida uma concepção revolucionária da sociedade e do homem". (KOSIK, K. - Dialética do Concreto, p. 44 -grifos do autor.)

7. Bergson diria: tais respostas conceituam a universidade mas não intuem o seu movimento real; Dilthey diria: explicam mas não compreendem; para a fenomenologia: detém-se nas aparências sem captar a essência; Heidegger, por sua vez, diria: limitam-se ao plano ôntico sem desvelar o ser da universidade (plano ontológico). Tais correntes, apesar de colocarem o problema da necessidade de se superar o abstraio em direção ao concreto, não lograram exilo por não terem rompido com a concepção metafísica. Com efeito, o que é ó "éian vital" de Bergson senão uma hipótese metafísica? O mesmo se diga das demais tendências.

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a pergunta "o que é a universidade?" nesta outra: como é produzida a universidade? Tal mudança é fundamental para se detectar o caráter "naturalizado", "reificado" das respostas anteriormente dadas, e, com isso, compreender porque são elas abstratas. Com efeito, nelas o produto aparece separado do produtor, o resultado é visto abstração feita do processo que o gerou. Em outros termos, a conversão da pergunta é o "détour" necessário para se historicizar o fenômeno, para se recuperar o caráter humano do produto que se apresentava, na sua existência empírica, com aparência natural, vale dizer, "des-humanizada".

Como é produzida a universidade? A resposta radical a essa pergunta coincide com a resposta à questão fundamental: como é produzida a realidade humana em seu conjunto?(8) Isto nos coloca de chofre no âmbito da radical historicidade da existência humana onde ocupa lugar central o conceito de "modo de produção da existência". Com efeito, o homem é aquele ser que para existir necessita estar continuamente produzindo sua própria existência. Portanto, a forma concreta da existência humana, isto é, a maneira como se configura a realidade humana é definida pelo modo como é produzida a existência humana numa etapa histórica determinada. No processo de produção de sua existência os homens produzem, simultaneamente e em ação recíproca, as condições materiais (agricultura, indústria, trabalho produtivo em geral) e as formas espirituais (ideias e instituições) que se estruturam organicamente de modo a constituir a sociedade concreta. Considerando-se os seus aspectos isoladamente, portanto, de modo abstraio, a sociedade aparece configurada em quatro planos estruturais: "o econômico (geração e distribuição de utilidades), o cultural (geração e distribuição de símbolos), o social "stricto sensu" (geração e distribuição de atores e papéis) e o político (geração e distribuição de poder)".(9) Quando se considera cada um desses elementos ou o conjunto deles sob o ponto de vista de seu desenvolvimento, configura-se o aspecto histórico. Todavia, se analisamos de modo concreto um desses elementos, qualquer que seja, tomado globalmente ou numa forma particularizada,

8. Percebe-se que o queslionamenlo e consequente superação (por incorporação) da concepção tradicional (metafísica) se dá através da concepção dialética que viabiliza, finalmente, a análise concrela dos fenómenos. Nessa concepção, a categoria de totalidade ocupa lugar central. Com efeito, o pensamento dialético "parte de ideia da tolalidade e afirma que as partes não podem ser compreendidas nelas próprias, fora de sua relação com o todo, do mesmo modo que o todo fora das partes que o constituem".(GOLDMANN, L. - Dialética e Cultura, P- 44.)

9. JAGUARIBE, H. - "Brasil: Estabilidade Social pelo Colonial Fascismo?", em Brasil: Tempos Modernos, p. 26.

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veremos que ele se apresentará como "síntese de múltiplas determinações". Isto significa dizer: cada aspecto mantém íntima relação com os demais, melhor dizendo, contém em si os demais, sintetiza-os, sintetizando a sociedade em seu conjunto.

Voltemos, então, à pergunta: como é produzida a universidade? A Universidade, enquanto instituição, é produzida simultaneamente e em ação recíproca com a produção das condições materiais e das demais formas espirituais. É, pois, produzida como expressão do grau de desenvolvimento da sociedade em seu conjunto. Segue-se, pois, que a universidade concreta (a universidade enquanto "síntese de múltiplas determinações"), sintetiza o histórico, o

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sociológico, o político, o econômico, o cultural, numa palavra, a realidade humana em seu conjunto.

Nos itens seguintes tentaremos, a partir da concepção acima exposta, aplicar a metodologia que lhe é inerente à análise da universidade brasileira nas suas relações com o desenvolvimento nacional, a cultura e a educação.

3. UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO Que é o desenvolvimento? Neste caso, talvez mais do que em qualquer outro, salta aos olhos o caráter abstraio e reificado das respostas correntes, uma vez que a própria colocação da pergunta supõe, necessariamente, uma concepção abstraía. Com efeito, vimos antes que o aspecto histórico se configura quando os fenômenos são considerados sob o ponto de vista de seu desenvolvimento. Segue-se, pois, que em relação ao desenvolvimento, mesmo quando se procede a uma abstração justificada, isto é, mesmo quando por alguma razão metodológica se opera uma distinção formal e se toma o desenvolvimento em si mesmo como objeto de análise, é impossível deixar de considerar o aspecto histórico. Em outros termos: a pergunta "que é o desenvolvimento?" só pode ser respondida, mesmo numa análise abstraía, se se reporta ao modo como é produzido, de vez que desenvolvimento é a própria designação desse processo.

Vejamos, no entanto, como o assunto é abordado correntemente. Tomemos o caso brasileiro e consideremos a "teoria dos quatro brasis". Segundo essa "teoria", haveria no Brasil: a) o Brasil desenvolvido (Centro-Sul); b) o Brasil em vias de desenvolvimento (Sul); c) o Brasil sub desenvolvido (Nordeste); d) o Brasil não desenvolvido (Amazônia). Quais os critérios para uma classificação como essa e outras semelhantes? Via de regra, os critérios provêm dos chamados "indicadores de desenvolvimento" manipulados com frequência pêlos economistas. Esses

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indicadores, entretanto, são não só relativos como contraditórios. Assim, se se toma, por exemplo, o item "qualificação de mão-de-obra" a Argentina será classificada como país desenvolvido e o Brasil como subdesenvolvido;(10) tomando-se, porém, o "produto interno bruto", a situação se inverte. O que fazem, então, os economistas? Tiram a média dos diferentes indicadores; o resultado acaba geralmente por confirmar uma característica comum: o maior grau de desenvolvimento é associado ao maior grau de urbanização-industrialização atingido por um país ou região.(11) Assim, o Brasil desenvolvido é aquele já industrializado, com recursos plenamente explorados; O Brasil em-vias-de-desenvolvimento caracteriza-se pela industrialização e urbanização crescentes; o Brasil subdesenvolvido é aquele ainda não industrializado e com recursos sub-explorados; e o não-desenvolvido, aquele cujos recursos permanecem em estado natural, vale dizer, não explorados. A expectativa que essa classificação alimenta é a da chamada "homogeneização por cima". Acredita-se que as regiões passarão sucessivamente de uma etapa à outra até atingirem o estágio do "Brasil desenvolvido" que caracteriza a região mais avançada. Esse esquema, apesar de amplamente difundido (veja-se a versão "esperar o bolo crescer para depois distribuir"), não resiste ao mais superficial raciocínio lógico. Em verdade, não passa de um esquema abstraio, incapaz de dar conta do processo objetivo. Com efeito, do ponto de vista lógico só poderíamos falar aí em duas categorias: não desenvolvido e em desenvolvimento. No primeiro caso, situa-se o estado puramente natural, isto é, a natureza considerada independentemente do homem, sem a sua presença; ao segundo caso, pertence toda e qualquer sociedade. Se o homem é aquele ser que para existir necessita estar continuamente produzindo sua própria existência, então não se pode falar em realidade humana não-desenvolvida ou já desenvolvida; ela está sempre em desenvolvimento. Além disso, o esquema em referência pressupõe que o nível superior (a região mais avançada) seja estático ou, pelo menos, se desenvolva em ritmo mais lento que as demais regiões. Só assim as demais poderiam se nivelar a ela, ocorrendo a "homogeneização por cima". Ora, percebe-se facilmente que as regiões desenvolvidas são exatamente as mais dinâmicas. Isso nos autoriza a pensar que, mesmo considerando-se as regiões (ou países) independentes entre si,

10. Cf. CIRIGLIANO, G.FJ. - Educación y Política, p.83.

11. Reedita-se aqui a conceituação tradicional encontrada nos manuais de geografia: país desenvolvido é aquele que importa matérias-primas e exporta manufaturados; subdesenvolvido é o que exporta matérias-primas e importa manufaturados.

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a distância entre as menos desenvolvidas e as mais desenvolvidas só tende a aumentar, frustrando assim as esperanças de "homogeneização por cima" e adiando-as, em conseqüência, ao infinito. A questão se complica ainda mais se considerarmos que as regiões (ou países) mantém relações entre si e que dessas relações as regiões mais desenvolvidas extraem para si um dinamismo ainda maior, reduzindo como contrapartida o dinamismo das regiões menos desenvolvidas. Isto nos leva a questionar a própria terminologia utilizada. Com efeito, o esquema contido na "teoria dos quatro brasis" apresenta cada nível como uma etapa a ser superada em direção à imediatamente superior. Neste sentido, o subdesenvolvimento é compreendido como uma fase preliminar ao desenvolvimento. Neste caso, entretanto, teríamos que falar em pré-desenvolvimento e não em subdesenvolvimento. Ora, o prefixo "sub" significa exatamente

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"subordinado a" e não "anterior a". Subdesenvolvimento significa, pois, um desenvolvimento subordinado a outro, não importa em que fase esteja. O fenômeno do sub-desenvolvimento surgiu à partir da Revolução Industrial. Os países onde se deu a revolução industrial modernizaram concomitantemente a produção e o consumo. Aqueles países que modernizaram o consumo sem concomitantemente modernizar a produção passaram a depender do fornecimento externo para o suprimento de suas necessidades de bens de consumo moderno. Em contrapartida, tornaram-se fornecedores de matérias-primas.(12)

Que é, entretanto, o desenvolvimento? Desenvolvimento é uma palavra composta (des-envolvimento). Significa, pois, literalmente, negação do envolvimento.(13) Designa originalmente a relação do homem com a natureza em que ele nega o seu envolvimento natural, transformando a natureza, extraindo o potencial nela envolvido, realizando as possibilidades que ela contém. Trata-se, pois, de uma negação dialética, isto é, a natureza é ao mesmo tempo negada e conservada, superada e incorporada. Dado que o homem é, ele próprio, um ser natural, o desenvolvimento se apresenta como um processo contraditório através do qual o homem transforma-se a si mesmo transformando a natureza. Etimologicamente, o desenvolvimento coincide com o processo de humanização da natureza e do próprio homem. Não é este, entretanto, o sentido sugerido pela interpretação corrente, como pudemos

12. Ver, a respeito. FURTADO, C. - Análise do "modelo" brasileiro, pp. 8, 9 e 10.

13. Este sentido pode ser detectado nas diferentes línguas modernas: espanhol = "des-arrollo"; francês = développment (enveloppement = envolvimento); italiano = "s-viluppo" (viluppo = envolvimento, emaranhado); inglês = development (envelopment = envolvimento).

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ilustrar através da "teoria dos quatro brasis". Como foi então, que o desenvolvimento, de humanização da natureza e do homem, acabou por se metamorfosear na "desnaturação" da natureza e na "des-humanização" do homem? A resposta a essa pergunta exige que se faça, também aqui, a conversão da questão "que é o desenvolvimento?", nesta outra: como é produzido o desenvolvimento?

Denunciamos anteriormente a falácia lógica em que incorrem as análises correntes do fenômeno do desenvolvimento, falácia essa que tornava ilusória a "homogeneização por cima". Como explicar, então, a generalizada credibilidade de que gozam essas análises? Não resta dúvida de que cumprem uma função ideológica.(14) Seria, porém, ingenuidade supor que as ideologias se impõem ao arrepio de toda objetividade.(15) Qual seria, então, o fundamento objetivo em que se assenta a credibilidade das referidas análises? Em verdade, se é ilusória a "homogeneização por cima" entendida como um processo de desenvolvimento contínuo e cada vez mais intenso dos níveis (países ou regiões) inferiores, não cabe considerar da mesma forma ilusória a "homogeneização por cima" decorrente do intenso crescimento das regiões mais desenvolvidas. Como compreender isso? Retomemos aqui a questão fundamental: como é produzido o desenvolvimento?

O modo como é produzido o desenvolvimento coincide com o próprio processo de produção de sua existência pelo homem. Em conseqüência, compreender o modo como se dá o desenvolvimento numa etapa histórica determinada significa captar a forma específica assumida pelo modo de produção da existência humana na etapa histórica considerada. Ora, no momento histórico em que vivemos, o modo de produção da existência humana assume a forma capitalista. E a lógica do capital segue um duplo e contraditório movimento: de um lado, é concentrador; de outro, por exigência mesma da acumulação, tende à expansão. Segue-se que a única forma de "homogeneização por cima" que o capitalismo viabiliza é aquela em que o processo de acumulação do capital acaba por determinar a incorporação incessante de novas áreas subordinando-as ao processo de exploração da mão-de-obra através da qual,

14. Entendida a ideologia como uma explicação falseada da realidade destinada a garantir determinados interesses.

15. A falsidade da ideologia reside em apresentar a parte pelo todo; a força da ideologia dominante consiste em que a classe dominante controla, de fato, o conjunto da sociedade, subordinando aos seus interesses os interesses das demais classes. Nessa medida, seus interesses são, de fato, gerais, de vez que abarcam os demais, ainda que de modo contraditório e conflituoso.

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por sua vez, se efetua a exploração dos recursos de que são dotadas essas novas áreas incorporadas. Assim, o capitalismo é ao mesmo tempo homogeneizador e diferenciador. Homogeneíza o processo e diversifica o produto; unifica as fontes e a propriedade do capital e diversifica as áreas de atuação e os funcionários do capital. (16)

Cremos ser possível agora compreender a insuficiência das análises abstraías do desenvolvimento. Nelas, o desenvolvimento aparece como um produto separado do produtor. Nelas, os homens se apresentam como marionetes ligadas por um cordão invisível ao capital que, dos bastidores dirige-os habilmente com suas mãos ágeis e igualmente invisíveis, para uma e outra direção. À maneira da guerra (TroAçuos) de Heráclito, de uns faz deuses, de outros, heróis;

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de uns, homens livres, de outros, escravos.(17) As análises abstraías são tais, porque tomam os homens já organizados em função do capital e acabam por supor que as leis de desenvolvimento do capital são as leis de desenvolvimento dos próprios homens. Contudo, numa análise concreta, é forçoso indagar: donde provém o capital?'(como é produzido o capital?). Obviamente, do trabalho. São os homens que, através do trabalho, produzem o capital. Desvenda-se, enfim, o segredo das análises absíraías do desenvolvimento. Nelas, os termos do processo aparecem invertidos: o produtor é visto como produto e o produto, como produtor.(18) Sob o signo do capital a humanidade aparece cindida: de um lado os proprietários do capiíal; de ouíro, os seus produtores e reprodutores. Os primeiros têm os seus interesses identificados com a acumulação do capital; os segundos são forcados pêlos primeiros a servi-los, como condição de sobrevivência. Assim, a sociedade em seu conjunto é submetida ao império do capital.

Cumpre "des-inverter" esse processo, submetendo o capital ao império dos homens.

Nesse quadro, como se colocam as relações entre universidade e desenvolvimento? Se a universidade, enquanto instituição, é produzida como expressão do

16. As fusões de empresas, os conglomerados bem como o fenômeno das multinacionais ilustram eloquentemente esse processo.

17. (a guerra é o pai, bem como o rei de todas as coisas: de uns faz deuses, de outros, heróis; de uns faz homens livres, de outros, escravos. (Fragmento de Heráclito de Éfeso.)

18. Assistimos diariamente a diferentes manifestações dessa inversão. Podemos, mesmo, acompanhá-las através dos jornais. Assim, quando lemos as notícias referentes a investimentos que criam empregos, curvamo-nos ao fato empírico do capital gerando trabalho. Não é outro também o sentido da denominação "classes produtoras" atribuída aos empresários, isto é, aos proprietários do capital.

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grau de desenvolvimento da sociedade em seu conjunto, então, nas condições em que vigora o modo capitalista de produção da existência humana, a universidade concreta sintetiza as múltiplas determinações características do desenvolvimento que aí se processa. E dado que a realidade humana, nessas condições, aparece cindida, a universidade exprime também, à sua maneira, a referida cisão.

4. UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO NACIONAL As considerações anteriores nos permitem compreender o caráter "reificado", vale dizer, "des-humanizado" tanto da universidade como do desenvolvimento. Ora, no contexto brasileiro dos últimos dez anos, a forma específica da "reificação" da universidade e do desenvolvimento pode ser expressa nos seguintes termos: universidade tecnocrática e modernização acelerada.

A modernização acelerada traduz o processo de desenvolvimento nacional sob o império do capital. Para ajustar o ensino superior a esse tipo de desenvolvimento foi concebido e implantado aquilo que se convencionou chamar de "modelo tecnocrático de universidade". Não vamos, neste texto, deter-nos na caracterização desse modelo. Tal tarefa já foi realizada de diversas maneiras, por diversos estudiosos, em diversas ocasiões. O próprio Conselho de Reitores, no Seminário sobre "O Sistema Universitário e a Sociedade Brasileira" realizado em João Pessoa em outubro/78, teve oportunidade de debaler esse tema.(19) O que importa assinalar aqui é que a universidade tem participado estreitamente do processo de desenvolvimento nacional. E, ao encarnar o modelo tecnocrático, engajou-se no processo de modernização acelerada. Com isso ressentiu-se e contribuiu para agravara "des-naturação da natureza" e a "des-humanização do homem" em que se converteu o desenvolvimento brasileiro.

Nesse quadro, a questão crucial que não pode deixar de ser formulada é a seguinte: quais as chances que temos de caminhar rumo a uma universidade e desenvolvimento humanizados? E, na hipótese afirmativa, qual seria a participação da universidade na humanização do desenvolvimento nacional?

Afirmamos anteriormente que o desenvolvimento capitalista é um processo contraditório. Afirmamos que nesse processo a sociedade aparece cindida. E

19. Ver, especialmente, o texto "A Universidade e a Sociedade Brasileira Atual: Participação e Alienação", de José Henrique Santos, apresentado naquele Seminário.

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afirmamos, também que a universidade exprime, à sua maneira, essa cisão. Ora, no atual momento brasileiro, detectamos diversos sinais de contradições e cisôes. Parece, mesmo, que a sociedade brasileira não se contém mais na "camisa de força" representada pela modernização acelerada. E a universidade, por sua vez, dá mostras de que é necessário ultrapassar os limites do modelo tecnocrático. É no próprio bojo desse processo contraditório que é preciso

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identificar as pistas e tendências que apontam na direção da "des-inversão" através da qual se viabiliza a humanização da universidade e do desenvolvimento nacional.

Tentaremos encaminhar a discussão das questões acima apresentadas na abordagem do tema específico atribuído à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

II. UNIVERSIDADE, CULTURA E EDUCAÇÃO

1. A CULTURA BRASILEIRA Que é a cultura brasileira? Neste caso, se nosso ponto de partida são as interpretações correntes, seremos obrigados a colocar uma questão anterior: existe cultura brasileira?(20) Tal questão tem recebido resposta negativa. As justificativas para a resposta negativa podem ser reduzidas, fundamentalmente, a duas ordens de razão:

1) ênfase na falta de autonomia de nossa cultura;

2) a fragmentação cultural.

No primeiro caso encontramos a distinção típica entre cultura no Brasil e cultura do Brasil (cultura brasileira), segundo a qual a cultura existente no Brasil não seria uma cultura brasileira. É evidente aí o fenômeno da "reificação". A cultura é encarada como uma coisa, existente em si e por si, que pode estar aqui ou ali, que pode estar num país sem ser dele e que pode ser dum país sem estar nele. Ora, tal argumentação é destituída de sentido, tanto mais que não é possível abordar o problema cultural a partir da divisão política caracterizada pêlos Estados Nacionais atuais. Com efeito, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado a qualquer outro país. Tomando como referência o critério da autonomia cultural e levando em conta o sentido antropológico do termo cultura, em que a cultura francesa, por exemplo, se distingue da italiana, da

20. As considerações desenvolvidas deste ponto em diante baseiam-se em SAVIANI, D. - "Educação Brasileira: Problemas", in Educação e Sociedade, n. l. set./78, pp. 51-54. Neste volume, pp. 13 1-144.

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alemã etc? Admitamos, entretanto, que se trate realmente de culturas diferentes. Neste caso, cabe perguntar: o que se deve entender, então, por cultura ocidental?

No segundo caso, estamos diante de uma situação semelhante àquela da "teoria dos quatro brasis". Nega-se a existência de uma cultura brasileira não propriamente porque ela ainda não exista, mas porque já existem várias. Essa idéia é traduzida na noção de "arquipélago cultural". Sua conseqüência é a fragmentação cultural: cultura gaúcha, caiçara, nordestina, caipira, mestiça etc. Novamente percebe-se tratar-se de uma visão abstraía que se detém nas aparências, sem captar o fundamental.

Em verdade, a cultura se identifica com o próprio modo como é produzida a existência humana. Daí ser impossível a cultura sem o homem da mesma forma que é impossível o homem sem a cultura. No processo de autoproduzir-se o homem produz cultura, isto é, se objetiviza em instrumentos e idéias, mediatizados pela técnica. Na medida em que esses elementos fundamentais se multiplicam e assumem as mais variadas formas, acabam por ofuscar a visão do estudioso que tende a se fixar na complexidade das manifestações culturais, perdendo de vista a essência dessas manifestações.(21) A essência da cultura consiste no processo de produção, conservação e reprodução de instrumentos, idéias e técnicas. A ocorrência desses elementos essenciais é que permite que um mesmo termo seja aplicado a diferentes manifestações. Daí, as expressões "cultura chinesa", "cultura asteca", "cultura ocidental". Em quaisquer casos trata-se de instrumentos, idéias e técnicas. Em contrapartida, a diferenciação de uma a outra cultura se dá pela direção do processo, pelo tipo, pelas características de que se revestem aqueles elementos fundamentais. Assim, entre os índios, por exemplo, encontraremos também instrumentos, idéias e técnicas, entretanto, com características distintas daquelas quê detectamos entre nós.

No caso do Brasil, o que se constata é que, à exceção dos indígenas, os diferentes grupos respiram a mesma atmosfera ideológica, isto é, regem-se pêlos mesmos valores. No entanto, existem grandes diferenças de participação nos produtos culturais, embora as conquistas culturais resultem do esforço conjunto de toda a sociedade. Isso significa

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que grande parte da população participa da produção da cultura mas não participa de sua fruição. Isto, porém, só pode ser compreendido a partir da unidade cultural e não de uma suposta fragmentação sugerida pela noção corrente de "arquipélago cultural". Sem essa unidade não se poderia entendera razão

21. Cf. PINTO, A.V - Ciência e Existência, p. l 25.

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pela qual a grande maioria aspira às mesmas conquistas que estão asseguradas a grupos minoritários. A diferença real consiste no seguinte: enquanto pequenos grupos têm as suas aspirações realizadas, a grande maioria as tem frustradas. Daí decorre o fato bastante difundido quanto falacioso, segundo o qual é denominado "culto" apenas o grupo minoritário, ao passo que as massas são consideradas "incultas".(22)

Pelas rápidas considerações feitas acima já podemos verificar como, predominando a concepção comum e corrente, a abordagem da cultura brasileira, do mesmo modo que nos casos anteriores, resulta em análises abstraías. Para passarmos à análise concreta teríamos que formular, também aqui, a questão: como é produzida a cultura brasileira? Entretanto, já vimos que o processo de produção da cultura coincide com o próprio modo de produção da existência humana; E nesse caso, já vimos, ao analisarmos o processo de desenvolvimento na etapa histórica em que vigora o modo capitalista de produção da existência humana que, nessas condições, à sociedade se apresenta cindida. A expressão dessa cisão no plano cultural propriamente dito, nós a podemos encontrar na diferenciação entre "cultura erudita" e "cultura popular". Numa caracterização a largos traços, teremos: a primeira é letrada, escolarizada, intelectualizada, integrada pela elite que comporta dentistas, artistas, literatos, tecnólogos, dirigentes em geral; a segunda se caracteriza, na expressão de Alfredo Bosi, por um "materialismo animista". Materialismo, porque é dotada de um senso de realismo, de praticidade, retirado do trato diário com os instrumentos de trabalho, da necessidade de vencer as forças da matéria para garantir, a cada instante e através de um trabalho frequentemente penoso, a sobrevivência. Animista porque o jugo da força bruta é impregnado de um sistema simbólico composto de entidades (santos, espíritos etc), de objetos sagrados (imagens, figas, amuletos etc.), rituais, festas, encantamentos, através dos quais se exprime no desespero de cada dia a esperança, nas derrotas do dia a dia a confiança na vitória; se a "cultura erudita" é, basicamente, individual, a "cultura popular" é sobretudo grupai. Entre elas se interpõe a "cultura de massa". Esta é caracterizada por todo o complexo da "indústria cultural" que retira a sua matéria-prima principalmente da "cultura erudita", cujos elementos ela simplifica e difunde. Busca, também, na "cultura popular" elementos que ela desfigura e transforma em "objeto de turismo" conferindo-lhes um matiz de curiosidade e extravagância. Numa relação "reificada" da universidade com a cultura, a universidade irá aparecer como o lugar por excelênda da "cultura erudita". Nesse sentido, sua tendência será voltar as costas para a "cultura popular" e manter uma distância

22. Cf. PINTO, A.V - Op. c/t., p. 131.

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asséptica da "cultura de massa". Tanto assim que seus envolvimentos com a "cultura de massa" têm ocorrido por iniciativa desta. É esta que vai à universidade em busca de assuntos e que propõe tarefas aos professores e pesquisadores (redigir verbetes numa enciclopédia de ampla divulgação, em fascículos; conceder entrevistas; expor seu último trabalho; escrever para uma revista consumida pelas camadas A e B etc.).

Numa relação humanizada, a universidade irá atentar para as complexas relações que essas "culturas" mantêm entre si; irá examinar como, num processo contraditório, elas se entrelaçam constituindo o todo social e apontando para um fundo comum onde se pode captar a essência do processo cultural enquanto modo historicamente determinado de produção da existência concreta dos homens. Irá, sobretudo, perceber que a própria oposição entre "cultura erudita" e "cultura popular" é já expressão da "reificação" da cultura, "reificação" esta que impede ver por detrás da "cultura" as relações inter-humanas que a construíram e a estão construindo a cada instante; em conseqüência, impede distinguir entre a forma e o conteúdo da cultura (em princípio, um conteúdo erudito pode ser expresso de forma popular, e vice-versa). Em suma, a universidade irá se colocar no âmago da cisão que caracteriza a sociedade capitalista, obrigando-se a optar entre conservar e reforçar a situação dominante ou se engajar no esforço tendente a impedir que as aspirações populares continuem sendo sistematicamente frustradas. E nesse engajamento descobrirá que, para ser um instrumento de realização das aspirações populares, a "cultura popular" terá que ser expressa em termos eruditos. Nessa descoberta descobrirá também a importância da educação e da escola.

2. A EDUCAÇÃO BRASILEIRA Que é a educação brasileira? Se abordarmos a educação de maneira simétrica ao modo como foi analisada a cultura, distinguiremos também três tipos de educação: "educação escolar", "educação difusa" e "educação popular". A educação escolar corresponde à cultura erudita. Rege-se pêlos padrões eruditos, sua finalidade é formar o homem "culto" no sentido erudito da palavra, seu conteúdo e sua forma são eruditos; é, enfim, o principal meio de difusão da "cultura erudita". Aquilo que estamos

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chamando, na falta de uma expressão mais adequada, de "educação difusa", corresponde à "cultura de massa". Participa praticamente de todas as características da referida "cultura" de tal modo que se pode mesmo dizer que se identifica com ela. Seu principal instrumento de difusão são os meios de

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comunicação de massa. Enfim, a educação popular corresponde à "cultura popular". Advirta-se, porém, que não cabe levar muito longe o paralelismo. Com efeito, ele só seria plenamente válido ao nível da educação assistemática; mas aí educação e cultura se identificam. No plano da educação sistematizada (a educação propriamente dita, já que é aí que a educação adquire especificidade), a situação é mais complexa, as mediações se multiplicam, as diferentes "culturas" se cruzam. Com efeito, a educação sistematizada, via de regra, é uma atividade que se dirige ao outro: à outra geração, à outra classe social, à outra cultura. Supõe, portanto, uma heterogeneidade real e uma homogeneidade possível; uma desigualdade no ponto de partida e uma igualdade no ponto de chegada. É aqui, entretanto, que, permanecendo numa análise abstraía da educação, a sua real função poderá nos escapar definitivamente. Faz-se necessário, então, operar o "détour" e perguntar: como é produzida a educação brasileira?

Ao perguntar pelo modo como é produzida a educação, obrigamo-nos a historicizá-la e, nesse sentido, captá-la nas múltiplas determinações que ela sintetiza. Sem isso ela incorrerá na inversão idealista. Em vez de instrumento de superação da desigualdade, a educação, por desconhecer os determinantes inerentes à sociedade que a engendra, acabará por cumprir a função de legitimadora da desigualdade. Com efeito, ao suporá desigualdade no ponto de partida e a igualdade no ponto de chegada, estava se pressupondo uma sociedade igualitária na essência e só acidentalmente desigual. Este não é, porém, o tipo de sociedade vigente nas condições brasileiras, como já foi evidendado anteriormente.

Na forma "reificada" da relação entre universidade e educação a universidade manter-se-á alheia à educação popular; permanecerá pretenciosamente indiferente à "educação difusa"; e, quanto à educação escolar, tenderá a se fechar em si mesma, abandonando à própria sorte os graus inferiores, à exceção da tarefa rotineira de preparar o quadro de pessoal das escolas, tarefa essa desempenhada de modo displicente e com ar de superior concessão.

Já na forma humanizada, a educação ocupará lugar central no âmbito da universidade. A formulação da pergunta: como é produzida a educação? se constituiria num vasto programa de tarefas que a universidade passaria a cumprir com toda a seriedade, começando por desvendar o modo concreto pelo qual a educação se vincula à sociedade. Descobrindo que a "cultura popular" só poderá se constituir num instrumento de realização das aspirações populares se for formulada em termos eruditos e constatando que a escola é o veículo principal de acesso às formas eruditas de cultura, a universidade se voltará para a educação escolar; cuidando com esmero da competência

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em todos os níveis, ramos e disciplinas e lutando para que a democratização da escola passe do plano proclamado para o plano da realização efetiva.

Atendo-nos à pergunta "como é produzida a educação escolar no Brasil?", apresentaremos em seguida um elenco de questões que podem se constituir num roteiro para estudos e tarefas a serem empreendidos pelas universidades.

Qual a universidade que estaria em condições:

- de efetuar uma avaliação crítica da política educacional no Estado em que se situa?- de efetuar um diagnóstico razoavelmente preciso das condições de funcionamento da rede escolar

do Estado?- de caracterizar a capacidade de atendimento à população em idade escolar do Estado?- de avaliar criticamente os conteúdos, métodos e materiais didáticos predominantes nas escolas do

Estado?- de tomar medidas capazes de aumentar o índice de alfabetização na primeira série do l º grau e

reduzir os índices de evasão e repetência na mesma série?

Qual a universidade:

- que mantém programas sistemáticos de qualificação de pessoal para o magistério das quatro primeiras séries do 1º grau?

- que mantém equipes permanentes de pesquisa sobre as relações entre conteúdos da "cultura popular" e formas eruditas veiculadas pela escola?

- que está preocupada em pesquisar os efeitos da modernização acelerada sobre a educação escolar de

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1º grau?

3. CONCLUSÃO Nossa intenção com o arrolamento das questões acima formuladas foi apenas enfatizar o muito que existe por fazer nos limites mesmos da educação escolar à qual pertence a universidade. Com isso queremos frisar que, se não há mais razão para trabalharmos em educação, animados de um entusiasmo ingênuo, também não há razão para nos paralisarmos num pessimismo igualmente ingênuo. Há muita coisa

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que não apenas pode como deve ser feita. É hora, pois, de nos lançarmos ao trabalho com entusiasmo; entusiasmo crítico, porém.

Com as pistas sugeridas através da abordagem da forma humanizada das relações entre universidade e cultura e entre universidade e educação, acreditamos ter indicado o caminho da participação da universidade rumo à humanização do desenvolvimento nacional.

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CAPÍTULO NOVE

O PROBLEMA DA PESQUISA NA PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Dovero(1) distinguem três níveis de investigação pedagógica:

1º A investigação fundamental, investigação de ponta que lembra a inves-tigação pura dos cientistas. Dedica-se a novos campos de investigação.

2º A investigação aplicada, que tem como finalidade a utilidade e ambiciona fazer progredir a tecnologia pedagógica... A este nível, o trabalho do investigador, solidamente inserido no real, faz lembrar mais o trabalho do engenheiro do que o do sábio (Cf. Louchet).

3º A investigação de desenvolvimento técnico, que tem como fim a produção e a utilização de novos materiais, aparelhos e processos pedagógicos. É evidente que pertence à investigação operacional.

Sobre a classificação supra, é preciso notar:

a) O segundo e o terceiro níveis de investigação não se distinguem de modo suficientemente claro; dir-se-ia que ambos podem ser incluídos na rubrica "investigação aplicada".

1. JUIF, R e DOVERO, f. - Guia do Estudante de Ciências Pedagógicas, 1974, pp. 138-139. Este texto surgiu de dois documentos redigidos pelo autor. O primeiro integrou o Plano Curricular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos. O segundo documento fez parte do artigo denominado "UFSCar: Mais um programa de Pós-Graduação em Educação?", publicado em co-autoria com M.A.A. Goldberg nos Cadernos de Pesquisa, n. 16, mar./76, da Fundação Carlos Chagas.

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b) O segundo nível sugere uma aplicação direta dos resultados da pesquisa fundamental na prática pedagógica; trata-se, pois, de uma prática cientificamente controlada (a analogia com o engenheiro é, a propósito, bem expressiva). O terceiro nível, em contrapartida, sugere uma aplicação indireta dos resultados da pesquisa fundamental; trata-se de uma atividade paralela, uma espécie de fábrica destinada a produzir os aparelhos e equipamentos em geral, necessários ao incremento da prática pedagógica. O gráfico abaixo ilustra o que foi dito.

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O gráfico evidencia também que a classificação dos autores atados não exprime satisfatoriamente as relações entre os três níveis de investigação. Não se pode esquecer que a autonomia da Investigação Fundamental é apenas relativa. Ela não determina unidirecionalmente os demais tipos de investigação como sugerem as setas. Os problemas objetos da Investigação Fundamental são postos pela prática educacional (l .A.); e são esses mesmos problemas que exigem a produção de novos meios (I.D.T). Propomos, pois, a seguinte reformulação:

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Através do gráfico acima, procuramos expressar as relações recíprocas entre os diversos níveis de investigação que se inscrevem no seio da prática educacional. Por outro lado, assinalamos também as relações recíprocas entre prática educacional e prática social global, impulsionando-se reciprocamente num processo em que as partes não podem ser compreendidas isoladamente e sem referência ao todo, da mesma forma que o todo não pode ser compreendido senão nas suas relações com as partes que o constituem.

Insistimos na importância de se compreender a pesquisa básica em relação recíproca com a prática educacional, pois do contrário corremos o risco de desvirtuá-la retirando-lhe o caráter de fundamental e transformando-a em reflexa. Com efeito, acreditando-se que a Investigação Fundamental determina unidirecionalmente a Investigação Aplicada, acaba-se por voltar as costas à Prática Educacional, versando os projetos de pesquisa básica sobre os mesmos temas (com pequenas variações) que constituem o objeto da pesquisa básica nos países mais desenvolvidos. Esse mesmo caráter reflexo atinge, por extensão, a chamada "investigação de desenvolvimento técnico". A importação de aparelhos sofisticados ou a sua produção mediante a aplicação de "know-how" importado, confrontada com a constatação da inviabilidade de sua absorção pela prática educacional brasileira é um feto que justifica as apreensões quanto ao risco apontado.

Isto posto, sem perder de vista a autonomia relativa da Investigação Fundamental, cumpre examinar em que medida a Pós-Graduação em Educação pode se constituir num instrumento adequado à implementação da pesquisa educacional básica. Dir-se-ia ser esta uma questão ociosa. Com efeito, admitida a íntima vinculação ensino-pesquisa nos estudos universitários, não deve a pesquisa ser a preocupação central da educação de 3º grau e, "a fortiori", da Pós-Graduação?

Em outros termos: se a pesquisa é inerente a toda e qualquer forma de Pós-Graduação, então a Pós-Graduação em Educação necessariamente estará desenvolvendo pesquisa educacional. Eis aí a objeção. Qual a sua consistência? Em que ela se funda? À primeira vista parece irrespondível. Um exame mais profundo revela, porém, que tal objeção decorre de uma generalização determinada por uma visão padronizada do conhecimento científico. Esta padronização se dá - e isto é compreensível - a partir do nível atingido pelas ciências mais avançadas. Utilizando-se aqui a expressão de Kuhn, é só no quadro da "ciência normal" (que se define pela existência de um "paradigma" compartilhado por todos os membros da comunidade científica), que a pesquisa pode ser considerada como inerente, sem necessidade de uma preocupação

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explícita com o seu significado e com os procedimentos necessários para levá-la a cabo com êxito. Contudo, os padrões de uma determinada área de conhecimento não podem ser estendidos a todo o domínio científico, uma vez que os diversos setores evoluem irregularmente através da História. Kuhn, após mencionar diversos exemplos dessa irregularidade, afirma:

"Em certas partes da Biologia - por exemplo, o estudo da hereditariedade - os primeiros paradigmas universalmente aceitos são ainda mais recentes; e fica ainda de pé a pergunta sobre que partes das ciências sociais adquiriram já tais paradigmas. A história mostra que o caminho para um consenso firme de investigação é muito árduo".(2)

No campo das ciências sociais, se há um setor que não dispõe de paradigmas (no sentido empregado por Kohn) esse é, sem dúvida, o da Educação. Isto repercute na organização dos cursos de Pós-Graduação, vale dizer, na definição de suas áreas de concentração, o que pode ser facilmente detectado na experiência brasileira. Com efeito, os cursos existentes propõem como áreas de concentração: Ensino, Formação de Recursos Humanos, Ciências Sociais aplicadas à Educação, Aconselhamento Psicopedagógico, Currículo e Avaliação Curricular, Educação Brasileira, Meios Instrucionais e Comunicação, etc. (MEC/CAPES, 1975(3). Como se vê, encarada rigorosamente a definição de área de concentração ("campo específico de conhecimento que constitui o objeto de estudo escolhido pelo candidato") dada pelo Conselho Federal de Educação (MEC/CFE, 1969,(4) art. 13, VII) dificilmente alguma delas escaparia a objeções. Tome-se, por exemplo, "Educação Brasileira". Qual a sua especificidade? Além disso, retomando a objeção inicial, toda pós-graduação em Educação no Brasil não trata (ou pelo menos deveria tratar) da Educação Brasileira? É, no entanto, o confronto com "Ensino" que tornará mais fácil a elucidação do problema.

Admitindo-se que pesquisa e ensino são indissociáveis, isto significa que é tão inerente aos cursos de Pós-Graduação o ensino quanto a pesquisa. Isto poderia levar à conclusão de que não se justificaria uma área de concentração em "Ensino". Tal conclusão seria, no entanto, refutada a partir da constatação de que existem várias formas, níveis e graus de ensino. Deve-se notar, porém, que a coerência com a

2. KUHN, Th. S. - La Estructura de Ias Revoluciones Científicas, p. 40.

3. Cf. MEC/CAPES - Plano Operacional para Programas de Pós-Graduação em Educação.

4. MEC/CFE - Parecer 77/69, art. 13, VII.

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definição de área de concentração exigiria neste caso a'especificação de ensino. Poder-se-ia então propor como áreas de concentração: ensino de Io grau, ensino programado, avaliação de ensino, ensino de ciências, etc. A conveniência dessas especificações é, contudo, duvidosa. Dada a imprecisão de algumas dessas denominações e o caráter incipiente de outras, talvez seja mesmo mais conveniente manter a denominação abrangente de "Ensino" a partir da qual se possa atingir maior nível de precisão e de desenvolvimento dos aspectos aí abrangidos. A evolução dos estudos no interior dessa área ampla conduzirá ulteriormente às especificações, justificando-se o seu desdobramento em várias áreas de concentração.

Apliquemos, agora, raciocínio semelhante ao caso da pesquisa.

Se é verdade que a pesquisa é inerente a toda e qualquer forma de Pós-Graduação, o mesmo não ocorre com a pesquisa educacional. Nem mesmo é verdade que pesquisa educacional seja inerente a toda e qualquer forma de Pós-Graduação em Educação. Aqui se patenteia com nitidez a diferença entre a Educação e as áreas científicas, cujo campo de conhecimento encontra-se bem delimitado. Assim, em se tratando de um curso de Pós-Graduação em Biologia, não faz sentido propor-se uma área de concentração em pesquisa biológica. Com efeito, qualquer que seja a modalidade de estudos pós-graduados em Biologia, tratar-se-á sempre, de modo explícito, de pesquisa biológica. O mesmo ocorre com a Medicina - para citar um exemplo retirado do domínio das ciências aplicadas (tecnologia). Em Educação, porém, a situação é bem outra. Um curso de Pós-Graduação em Psicologia Educacional, por exemplo, envolverá certamente pesquisa. Já não é tão certo, porém, que envolverá pesquisa educacional. É bem provável, como ocorre mais frequentemente, que se trate aí de pesquisa psicológica. Esse problema pode ser traduzido com propriedade através da seguinte citação, referente aos estudos de sociologia da educação:

"É certo que eles iluminam uma séria e fecunda perspectiva aberta aos especialistas de uma dada disciplina sociológica, a sociologia da educação. Todavia, esses textos são apresentados não raramente como guias e modelos de pesquisa em educação. Não discuto - torno à precaução tomada anteriormente em relação à colaboração dos psicólogos - a validade desses trabalhos e nem relego a segundo plano as elaborações que, filiadas a eles, passaram a equacionar novas pesquisas ligadas à educação. Saliento, isto sim, que a

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interiorização de certos textos sociológicos - transformados em guias e modelos de pesquisa em educação - denota uma flutuação sociológica da consciência pedagógica, isto é, essa consciência não se

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dá conta de um circuito muito simples, qual seja: o ponto de partida e o ponto de chegada desses textos são a sociologia da educação e não a educação. O que neles se destaca são os admiráveis cortes que circunscrevem o objeto de pesquisa de uma dada disciplina sociológica. Ora, essa situação não traria maiores problemas se a estrutura desse objeto coincidisse plenamente com a estrutura do objeto de pesquisa educacional. E basta lembrar as possíveis conexões da educação com a conjuntura econômica, por exemplo, para se ter uma idéia da não identidade dessas estruturas" (Orlandi, I969).(5)

Passando-se para as áreas técnico-profissionais, nota-se que a pesquisa vai se diluindo até quase ao desaparecimento ou descaracterização. Em se tratando, por exemplo, de "Administração Escolar", "Orientação Educacional", "Meios Instrucionais", etc., que tipo de pesquisa pode ser aí detectado?

Diante desse quadro, é nossa convicção que a pesquisa educacional só poderá ter lugar e se desenvolver, operando-se a inversão do circuito ao qual se referiu Orlandi. Quer dizer, transformando-se a Educação em ponto de partida e ponto de chegada das nossas investigações. O gráfico abaixo ilustra as duas situações:

Nesse gráfico, "A" representa a situação original do circuito. Aia educação é ponto de passagem: ela está descentrada. O ponto de partida e o ponto de chegada estão alhures. Isto significa que as pesquisas no âmbito da sociologia da educação (e isto vale também para as demais áreas) circunscrevem a educação como seu objeto, encarando-a como fato sociológico que é visto, conseqüentemente, à luz das teorizações sociológicas a partir

5. ORLANDI, L.B.L. - "O Problema da Pesquisa em Educação e Algumas de suas Implicações".

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de cuja estrutura conceptual são mobilizadas as hipóteses explicativas do aludido fato. O processo educativo é encarado, pois, como campo de teste das hipóteses que, uma vez verificadas, redundarão no enriquecimento do acervo teórico da disciplina sociológica referida.

A situação "B" representa a inversão do circuito. A educação, enquanto ponto de partida e ponto de chegada, toma-se o centro das preocupações. Note-se que ocorre agora uma profunda mudança de projeto. Ao invés de se considerar a educação a partir de critérios psicológicos, sociológicos, econômicos, etc., são as contribuições das diferentes áreas que serão avaliadas a partir da problemática educacional. O processo educativo erige-se, assim, em critério, o que significa dizer que a incorporação desse ou daquele aspecto do acervo teórico que compõe o conhecimento científico em geral dependerá da natureza dos problemas enfrentados pêlos educadores. Evidentemente, tal atitude supõe um aguçamento do espírito crítico dos educadores.

É óbvio que essa profunda mudança de projeto não se efetivará caso se continue a considerar a pesquisa educacional como algo inerente a toda e qualquer forma de Pós-Graduação em Educação. E preciso perseguir esse objetivo explícita e intencionalmente. Tal é a tarefa da área de concentração em pesquisa educacional que, pois, justifica-se plenamente. Sua meta é formar o educador-pesquisador e não simplesmente o educador-orientador, educador-professor etc. Enquanto formação do educador ela se identifica com as demais formas de Pós-Graduação em Educação. Ela se especifica enquanto visa explícita e intencionalmente à formação do educador-pesquisador. (Não, note-se, do pesquisador pura e simplesmente, pois nisto ele se confunde com toda e qualquer forma de Pós-Graduação.) Sem isto, a educação, e obviamente o que for denominado de pesquisa educacional, continuará assumindo uma feição reflexa.

Ao nos referirmos às relações entre pesquisa fundamental e aplicada foi mencionado o caráter reflexo que tende a assumir a pesquisa básica nos países subdesenvolvidos, o que põe em tela o tema do "colonialismo cultural". Aproveitando a expressão, diríamos que as considerações desenvolvidas acima sobre a feição reflexa da pesquisa educacional põem em foco o problema do "colonialismo epistemológico". Os programas de pós-graduação em educação poderão contribuir decisivamente para superar esse tipo de "colonialismo", desde que coloquem de modo correto a questão da pesquisa educacional, mantendo permanentemente a problemática educacional como ponto de partida e ponto de chegada de suas preocupações. Dessa forma será possível conduzir a educação rumo à maturidade epistemológica compatível com sua inegável importância social.

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CAPÍTULO 10UMA CONCEPÇÃO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO

1. INTRODUÇÃO A Formação de "especialistas em educação"(1) tem esbarrado em uma série de dificuldades que vão desde a complexidade e amplitude da problemática educacional até a imprecisão e inconsistência das habilitações que buscam traduzir diferentes modalidades de especializações profissionais no campo educacional.

Visto que a educação é uma atividade mediadora no seio da prática social global, consideramos que a categoria de mediação é o conceito chave a partir do qual cabe explicitar a natureza seja da educação, seja, por conseqüência, do "especialista em educação". A não consideração dessa categoria acaba por situar os chamados "especialistas em educação", grosso modo, em dois extremos. Num extremo estão aqueles que dominam com relativa segurança determinada área do conhecimento (sociologia, psicologia, filosofia, história, economia...) e a partir dela, à luz de sua estrutura conceptual, abordam a educação. No outro extremo, estão aqueles que, situando-se no interior de determinadas práticas pedagógicas, intentam apropriar-se de técnicas específicas com vistas a garantir procedimentos sistemáticos e reiterativos que teriam o condão de assegurar a eficácia e eficiência da atividade educativa desenvolvida por agentes que não dispõem da densidade teórica reclamada pela natureza

1. Trabalho apresentado na l Reunião Científica da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação), realizada em Fortaleza, de 21 a 23 de agosto de 1978.

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complexa do fenômeno educativo. Dir-se-ia que os primeiros situam-se no pólo teórico. Tendem a ver a educação de modo reducionista, acreditando que a educação no seu todo consiste naquela faceta que pode ser apreendida e explicada pelo referencial teórico por eles assumido. Os segundos situam-se no pólo prático-técnico. Tendem a ver a educação como algo já constituído e em pleno funcionamento, distribuindo-se os seus agentes de acordo com tarefas específicas que exigem uma formação também específica como condição de eficiência. Trata-se, aqui, das habilitações técnicas. No primeiro caso, o "especialista em educação" será definido como sendo aquele que domina determinada área do conhecimento (sociologia, psicologia, filosofia, economia, história...) e a aplica à educação. No segundo caso, o "especialista em educação" será aquele que domina determinada habilitação técnica (orientação, supervisão, inspeção, direção...) Se os primeiros possuem certa consistência teórica ao preço de dissolver a especificidade das questões pedagógicas, os segundos guardam maior sensibilidade para com o especificamente pedagógico; a falta de consistência teórica, entretanto, não lhes permite ir muito além do nível do senso comum no trato das referidas questões pedagógicas. Entre ambos abre-se um fosso. Em nosso entendimento, a educação, enquanto atividade mediadora, situa-se exatamente nesse fosso. O espaço próprio da educação encontra-se na intersecção do individual e do social, do particular e do geral, do teórico e do prático, da reflexão e da ação.

Os dois extremos mencionados relacionam-se também com duas concepções opostas de educação amplamente difundidas. No primeiro pólo encontramos a tendência a se acentuar o caráter dependente da educação em relação ao contexto em termos unidirecionais, seja no plano sociológico (dependência do contexto sócio-econômico-político) seja no plano epistemológico (dependência das diferentes áreas do conhecimento), o que acaba por anular toda e qualquer margem de autonomia da educação. No segundo pólo encontramos a tendência a se ignorar os condicionantes contextuais, acreditando-se que a educação goza de plena autonomia, seja no plano sociológico (julgando-se ingenuamente que a educação possui poderes próprios sendo mesmo capaz de operar transformações sociais profundas) seja no plano epistemológico (admitindo-se implicitamente o pressuposto de que a educação possui estatuto teórico próprio). Num caso, predomina a posição do determinismo mecanicista. No outro, está subjacente a posição do idealismo romântico.

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Os Programas de Pós-Graduação em Educação, na proposição de suas áreas de concentração, têm refletido com maior ou menor fidelidade a situação acima descrita. Temos, assim, áreas de concentração do primeiro tipo, isto é, centradas em determinadas áreas do conhecimento; e áreas de concentração do segundo tipo, isto é, centradas em determinadas habilitações profissionais.

Para corrigir essas distorções, estamos propondo uma nova concepção de Mestrado em Educação que implica também uma nova concepção de "especialista em educação". Para nós, o verdadeiro especialista em educação será aquele que, tomando como centro e ponto de referência básico a educação enquanto fenómeno concreto (isto é, a

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educação considerada no modo próprio como ela se estabelece mediatizando as relações características de uma sociedade historicamente determinada), seja capaz de transitar com desenvoltura do plano teórico (avaliando, reelaborando e assimilando criticamente as contribuições das diferentes áreas do conhecimento) ao plano prático (elaborando, reformulando e criticando as técnicas de intervenção pedagógica) e vice-versa.

2. PRINCÍPIOS Um Programa de Pós-Graduação em Educação que tenha por objetivo a formação do especialista acima mencionado deverá, a nosso ver, ser construído com base nos seguintes princípios.

1. Concreticidade: Sendo o concreto "síntese de múltiplas determinações", considerar a educação de modo concreto significa apreendê-la no âmago do movimento histórico onde ela aparece como síntese das relações sociais características de uma sociedade determinada; no nosso caso, a sociedade brasileira.

2. Critícidade: Partindo da educação enquanto fenómeno concreto, impõe-se empreender a crítica sistemática do senso comum (forma sincrética e cristalizada de conceber a realidade) de modo a extrair o seu núcleo válido (o bom senso) e elevá-lo, pela

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mediação da análise, a uma concepção sintética elaborada. Em outros termos, trata-se de passar do nível do senso comum ao plano teórico, onde o problema educacional é formulado de modo sistematizado, coerente e orgânico.

3. Objetividade: A postura crítica exigirá a explicitação dos fundamentos do modo científico de encarar os fenómenos como condição para a assimilação/elaboração dos procedimentos adequados à abordagem objetiva da problemática educacional.

4. Especificidade: Garantidos os princípios acima enunciados, o especialista em formação deverá dominar em profundidade uma área significativa do campo educacional, de modo a estar em condições de contribuir especificamente para o desenvolvimento da educação em seu conjunto.

5. Flexibilidade: O domínio aprofundado de uma área específica poderá exigir estudos complementares, seja para penetrar mais decididamente na área em questão, seja para, através de estudos em áreas conexas, delimitar com maior precisão o âmbito de especificidade da área escolhida. Impõe-se, pois, uma margem de flexibilidade na estruturação do Programa.

3. ESTRUTURA CURRICULAR Os princípios acima enunciados enformam globalmente a estrutura curricular; entretanto, como se verá adiante, as diferentes partes bem como as diferentes disciplinas que compõem o currículo derivam diretamente de determinados princípios.

Propomos uma estrutura curricular em três blocos. No primeiro bloco devem figurar aquelas disciplinas que desenvolvem os elementos considerados imprescindíveis a todo e qualquer especialista em educação. Este bloco constitui, pois, o núcleo básico e abrange três disciplinas derivadas diretamente dos princípios 1, 2 e 3, como segue:

- O princípio de concretíddade impõe a programação de uma disciplina que tome98 ▲

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como objeto de estudo a educação brasileira no movimento histórico de suas múltiplas determinações. Tal disciplina poderá ter a seguinte denominação: História da Educação Brasileira.

- O princípio de critiàdade exige a presença da reflexão filosófica entendida, porém, não em termos da Filosofia da Educação enquanto área específica, mas como uma reflexão que permita elevares problemas educacionais do nível do senso comum ao plano da elaboração teórica. Essa tarefa poderá ser desempenhada pela disciplina denominada Problemas da Educação.

- O princípio de objetívidade nos leva a propor a disciplina Fundamentos de Metodologia da Pesquisa Educacional. Trata-se de uma disciplina que, tomando como ponto de referência concreto a educação, estrutura-se como mediação entre os problemas colocados pela Filosofia da Ciência e os procedimentos que caracterizam a Metodologia da Pesquisa.

O segundo bloco se funda no princípio de especificidade e constituirá a área de concentração, desdobrada em duas ou três disciplinas de acordo com as exigências próprias de cada área que o Programa venha a oferecer.

O terceiro bloco, fundado no princípio de flexibilidade será constituído pelas disciplinas optativas.

4. DURAÇÃO E CRÉDITOS O currículo pleno será constituído por oito disciplinas de três créditos cada uma, às quais se acrescenta Estudo de Problemas Brasileiros conferindo um crédito. Atribuindo-se à dissertação de mestrado o valor de seis créditos, a integralização dos estudos abrangerá um total de trinta e um créditos. O tempo ideal para se completar esse conjunto de estudos que culminam com o grau de mestre em educação será de três anos, nos quais serão cursadas duas disciplinas por semestre, reservando-se o último ano exdusivamente aos trabalhos relativos à elaboração da dissertação. O aluno bolsista em tempo integral que necessitar concluir em dois anos deverá imprimir um ritmo intensivo aos estudos, cursando três disciplinas por semestre e reservando o último semestre para ultimar os trabalhos relativos à elaboração da dissertação.

5. CONCLUSÃO Com essa proposta de um curso centrado num núcleo básico comum sobre

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o qual se constrói uma formação específica diversificada por áreas de concentração, abrindo-se num leque de possibilidades ao nível das disciplinas optativas, acreditamos seja possível criar as condições estruturais necessárias à formação do especialista capaz de, sem perder de vista o terreno concreto da educação, transitar com desenvoltura do plano teórico ao plano prático e vice-versa. Assim sendo, o referido especialista não estará apenas conceituando a educação como mediação, mas estará, ele próprio, realizando a mediação que caracteriza a educação. O conceito aparece, pois, saturado de realidade.

É óbvio, contudo, que as condições estruturais, embora necessárias, não são suficientes para se atingir o objetivo pretendido. É necessário pessoal docente senão já devidamente qualificado, pelo menos desperto para as exigências implicadas pelo novo tipo de especialista em educação que se pretende formar. Só assim será possível a adequada seleção dos conteúdos formativos e a vigilância indispensável para se evitar os riscos decorrentes do viés de nossa formação pregressa e a rotina, porventura desfavorável, instalada no âmbito institucional.

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CAPÍTULO ONZE

DOUTORAMENTO EM EDUCAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DA PUC-SP

Procurar ser breve para que a discussão,(1) propriamente, seja feita a partir dos problemas que forem levantados; porque, efetivamente, para se expor com mais detalhes a estrutura e o espírito do programa de doutoramento da PUC de São Paulo seria necessário um tempo maior do que aquele determinado pela mesa; mas talvez não seja o caso de

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fazermos isso "a priori" e sim em função dos problemas que forem surgindo no próprio âmbito dos debates.

Sendo sintético, cabe dizer, em termos de estrutura, que o programa exige como pré-requisito o mestrado. Uma vez matriculado, o aluno tem que cumprir um total de trinta e três créditos, sendo que desses trinta e três, nove são em disciplinas de três créditos cada uma. Quinze créditos correspondem a atividades programadas e nove créditos correspondem à própria tese de doutoramento.

Como se pode notar; há aí a presença do espírito que se procurou imprimir ao doutorado. Assim, diferentemente do mestrado, onde a carga maior é em disciplinas, no doutorado procurou-se reduzir o número de créditos em disciplinas e ampliá-los no que nós chamamos de atividades programadas; isto porque essas atividades programadas são organizadas já em função da pesquisa que está sendo desenvolvida pelo candidato, portanto, da tese que ele pretende elaborar.

1. Apresentada na II Reunião Científica da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação), realizada de 12a 14 de março de 1979, em São Paulo.

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A vantagem também dessas atividades programadas é que permitem um grau bem maior de flexibilidade na montagem tanto da forma de organização como do tipo de conteúdo que é trabalhado no interior das mesmas.

A esse respeito, no entanto, cabe salientar que essas atividades programadas são, efetivamente, atividades programadas, isto é, trata-se de um programa de atividades cuidadosamente elaborado e intencionalmente proposto, cuja execução é posta em prática com a máxima seriedade. Isso me parece importante de ser salientado, para justamente se evitar a idéia de um espontaneísmo em que a tese é feita pelo candidato de uma forma solta e sem uma estruturação mais sólida que permita desenvolvê-la com a necessária densidade de fundamentação. Conseqüentemente, o sentido das atividades programadas é justamente o de garantir que a elaboração da tese se desenvolva num ambiente de intenso e exigente estímulo intelectual.

Ainda quanto ao espírito do programa, cabe lembrar que se trata de um programa de doutorado em educação. Nesse sentido, pretende-se fugir ao esquema um tanto rígido do mestrado, onde os programas são organizados por áreas de concentração restritas. Assim, no doutorado em educação, se procurou atender à exigência reconhecida academicamente e consagrada no plano legal (cf. Parecer 77/69 do CFE) segundo a qual o doutoramento implica estudos amplos e aprofundados. Em conseqüência, uma visão ampla da realidade educacional se torna fundamental para o desenvolvimento do doutorado; daí porque se imprimiu ao programa uma orientação que busca juntamente atender a essa ênfase na problemática educacional.

No entanto, o modo como as disciplinas foram estruturadas pode sugerir uma concentração mais restrita, tendo em vista que esse programa surgiu a partir de uma inspiração mais direta da filosofia da educação. Com efeito, nós temos duas disciplinas que são consideradas obrigatórias, quais sejam: Filosofia da Educação l e Filosofia da Educação II. Depois existe a disciplina optativa, através da qual se completam os créditos em disciplinas, e as atividades programadas, que, como já disse, constituem o número maior de créditos a serem cumpridos.

Caberia, pois, uma observação sobre o sentido desta filosofia da educação, incluída no plano programático das disciplinas do curso. Aqui, nós já entraríamos mais diretamente na experiência concreta do programa. Quando o programa se iniciou no segundo semestre de 1977, a disciplina de Filosofia da Educação l foi montada à base das dissertações de mestrado dos próprios alunos. Dessa forma, o papel dessa disciplina era fazer uma crítica dos trabalhos já realizados pêlos doutorandos, tendo

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em vista o encaminhamento do projeto da tese de cada aluno. O problema-chave era justamente o seguinte: o projeto da tese de doutorado dará continuidade àquilo que já se fez no mestrado, ou o estágio de desenvolvimento do candidato implica uma ruptura? Quer dizer, ele pretende romper com o que ele fez até o momento em nível de mestrado e partir para um tipo de projeto totalmente novo?

Assim entendida, a disciplina foi toda ela centrada nos projetos, partindo da dissertação de mestrado em direção à tese de doutorado.

já a cadeira denominada Filosofia da Educação II foi montada à base de temas. Foi selecionado um conjunto de temas considerados significativos para a educação brasileira e organizados seminários em torno desses temas. Depois, a disciplina optativa surgiu da própria proposta do grupo de alunos que tinha interesse específico de aprofundar a teoria da educação e a disciplina foi montada nesse contexto.

Numa segunda experiência, nós consideramos que essas duas disciplinas, Filosofia da Educação l e Filosofia da Educação II, deveriam garantir uma discussão teórica sistematizada da área educacional. Como atingir esse objetivo?

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Considerando-se que, após estudos que venho desenvolvendo já há alguns anos, adquiri condições de estabelecer uma classificação razoavelmente sistematizada das concepções básicas de filosofia da educação, tomamos essa classificação como ponto de referência. Tais concepções(2) são trabalhadas, parte delas no curso de Filosofia da Educação l e parte no curso de Filosofia da Educação II. A idéia central que está presente aí é justamente a seguinte: todas as teorias formuladas numa tentativa de explicar e de dar conta da problemática educacional seguem, se orientam, por determinada concepção filosófica. Conseqüentemente, a classificação das concepções básicas de filosofia da educação nos permite situar as diferentes teorias.

Com isto, nós pretendemos superar um nível que no mestrado tem que ser admitido como satisfatório, pelo menos na atual conjuntura, isto é, o fato de que o

2. A referida classificação englobou quatro grandes tendências de filosofia da educação: I. Concepção "humanista" tradicional; 2. Concepção "humanista" moderna; 3. Concepção analítica; e 4. Concepção dialética. Tais concepções, por sua vez, subsumem diferentes correntes, a partir das quais se torna possível a abordagem sistematizada das teorias educacionais. A disciplina Filosofia da Educação l desenvolveu as concepções "humanista" tradicional e "humanista" moderna, reservando-se a disciplina Filosofia da Educação II para o estudo das concepções analítica e dialética de filosofia da educação. (Para um melhor entendimento da referida classificação, ver, D. Saviani, "A Filosofia da Educação e o Problema da Inovação em Educação", in GARCIA, W.E. (Org.) - Inovação Educacional: Problemas e Perspectivas.)

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aluno parte de um referencial teórico e o aplica na análise de um problema. Quanto à questão de se examinar de onde surgiu esse referencial teórico e como esse referencial teórico pode ser criticado (porque a crítica dele supõe justamente o colocar-se numa outra perspectiva) em nível de mestrado, esse tipo de abordagem não tem sido possível de se fazer. Aliás, eu acabo de fazer uma pesquisa sobre o tema "correntes e tendências da Educação Brasileira",(3) pesquisa essa que me permitiu testar já em outro nível o esquema de classificação das concepções básicas de filosofia da educação que eu havia elaborado anteriormente e que havia testado, primeiro, num curso de mestrado, e depois, na análise de um problema específico, qual seja, o da inovação em educação. Finalmente, testei esse mesmo esquema no projeto de pesquisa acima referido.

Para levantar as tendências e correntes da Educação Brasileira, naturalmente eu tive que fazer o levantamento da literatura a respeito do assunto; e uma literatura já razoavelmente vasta são as teses de mestrado, doutorado e livre-docência que surgiram na área de educação nos últimos anos. Com a ajuda de uma auxiliar de pesquisa(4) foram levantadas seiscentas e quarenta e seis teses. Obviamente, não me era possível (e nem era necessário para os objetivos que me propus) analisá-las todas em detalhes; por essa razão, tive que estabelecer critérios de seleção e de análise. Mas o que importa salientar, para efeitos dessa exposição, é que um exame dessas teses do ponto de vista do referencial teórico nelas presente revelará que a grande maioria é pobre teoricamente. E me parece que esta é uma situação que nós não podemos reeditar no doutorado: desenvolver programas de doutoramento, com teses de doutorado com uma marcante pobreza teórica.

Cabe lembrar que a capacidade crítica de utilizar determinada teoria supõe justamente a capacidade de se detectar os pressupostos dessa teoria e também de se verificar quais as objeções mais sérias de que é passível a teoria em questão. Por isso, no esquema que estamos desenvolvendo no doutorado da PUC de São Paulo, estamos muito atentos para esse tipo de problema, vale dizer, estamos procurando extrair dos cursos o máximo que eles possam dar em termos de uma solidez de abordagem da problemática educacional. É com esse espírito que procuramos evitar

3. Cf. SAVIANI, D. - "Tendências e Correntes da Educação Brasileira", in TRIGUEIRO MENDES, D. (coordenador) - Filosofia da Educação Brasileira.

4. Trata-se da professora Célia Pezzolo de Carvalho a quem consigno, aqui, os meus sinceros agradecimentos.

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a sobrecarga de disciplinas, reduzindo-as a apenas três; essas três, porém, são fundamentais, e têm que ser desenvolvidas com o máximo de aproveitamento possível.

As atividades programadas, por sua vez, são organizadas justamente para que os problemas que as disciplinas levantam possam ser aprofundados já diretamente voltados para a pesquisa de tese que o aluno está desenvolvendo.

Nessa linha de considerações, vale a pena ressaltar que temos experiências práticas e concretas muito interessantes sobre a organização das atividades programadas como, por exemplo, a do segundo semestre de 1978, quando os próprios candidatos exigiram atividades programadas montadas em termos constantes e semanais, à semelhança dos cursos, isto é, do modo de funcionamento das disciplinas; só que, é claro, com uma temática que foi levantada previamente e considerada como relevante por todos os membros do grupo, envolvidos nesse processo de

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pesquisa.

Um outro detalhe estrutural é que a atividade programada está articulada mais diretamente com o orientador, porque ela se liga à complementação da orientação dos trabalhos do candidato. Eu disse "mais diretamente" porque existem casos em que essa atividade programada pode ser coordenada por outro professor que não o orientador. Eu, por exemplo, que tenho um grande número de orientandos, venho organizando regularmente atividades programadas. Nesse contexto, candidatos que são orientados por outros professores vêm participando também dessas atividades por mim organizadas; isto ocorre quando o candidato manifesta interesse em função da sua tese e, naturalmente, discutindo preliminarmente com o seu orientador, se considera que a participação é recomendável. Existe, pois, essa possibilidade de se montaras atividades programadas de diferentes formas permitindo, inclusive, um intercâmbio entre alunos de diferentes orientadores.

Dentro dos limites de tempo estabelecidos pela mesa que preside a esta reunião, creio ter deixado claro, ainda que resumidamente, qual é o espírito que enforma a experiência, por sinal bastante promissora, de doutoramento em educação que estamos desenvolvendo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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CAPITULO DOZE

SUBSÍDIOS PARA O EQUACIONAMENTO DO PROBLEMA DO LIVRO DIDÁTICO EM FACE DA LEI Nº 5692/71

A educação se destina à promoção do homem,(1) caracterizando-se como uma comunicação entre pessoas livres em graus diferentes de maturação humana, numa situação histórica determinada. Dentro desse contexto, o processo ensino-aprendizagem é organizado intencionalmente de modo a se atingir adequada, eficaz e eficientemente o objetivo fundamental da educação: a promoção do homem.

1. O LIVRO NO CONJUNTO DOS RECURSOS PARA o DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM Considerando-se que a comunicação se desenvolve através de meios múltiplos e cada vez mais diversificados, a educação, sendo fundamentalmente comunicação não pode ficar alheia a estes meios. Numa ordem crescente de abstração, os instrumentos de comunicação variam desde as experiências diretas (espontâneas e imediatas), passando por experiências simuladas, dramatizações, excursões, exposições, televisão, gravações, fotografia, cinema, rádio, chegando até aos símbolos visuais e verbais. Os meios, o nome o diz, são aquilo que medeia, que se interpõe

1. Documento de trabalho elaborado em 1972, quando o autor integrava a Equipe Técnica do Livro e Material Didático da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.

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entre os pólos da comunicação: o transmissor e o receptor; são, pois, os instrumentos que tornam possível a relação comunicativa. Esses três elementos (transmissor-meio-receptor) não são, porém, suficientes. Para que uma comunicação se realize é necessário que haja algo a ser comunicado; é preciso, em suma, que haja uma mensagem. São quatro, portanto, os elementos fundamentais do processo comunicativo: alguém (transmissor) que tenha algo (mensagem) a transmitir a alguém (receptor) que capta a mensagem através de um veículo (o meio). "As crianças não procuram, por exemplo, a televisão pela televisão: só a procuram quando a 'mensagem' lhes interessa (no que McLuhan talvez esteja redondamente equivocado se tomarmos 'o meio é a mensagem' ao pé da letra)."(2) Por outro lado, constata-se também, que a mensagem, para ser captada, necessita estar ao alcance do receptor. Isto ocorre na medida em que ela é elaborada, arranjada, assimilada ao próprio meio, ao veículo da comunicação; ou seja, na medida em que ela é veiculada (transformada em veículo). E aqui poder-se-ia, então, dar razão a McLuhan: 'o meio é a mensagem'. É a mensagem pronta para consumo. (Não resta dúvida de que as idéias de McLuhan estão impregnadas das motivações próprias da chamada "sociedade de consumo".) Não se pode, contudo, deixar de reconhecer que o meio não tem sentido se não

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estiver impregnado de mensagem, do mesmo modo que esta não tem sentido se não se corporificar no meio. O diagrama a seguir, ilustra o que foi dito:

O gráfico acima indica também que a mensagem se liga imediatamente ao transmissor e mediatamente ao receptor, ao passo que o meio se liga imediatamente ao receptor e mediatamente ao transmissor. Portanto, se a mensagem é determinada primordialmente pelas condições do transmissor, o meio o é pelas condições do

2. LIMA, Lauro de O. Mutações em Educação Segundo McLuhan, p. 36.

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receptor. Pode-se ainda inferir daí que, quanto mais concretos os instrumentos de comunicação, tanto maior o predomínio do meio sobre a mensagem (portanto, maior simplificação e particularização da mensagem); e, reciprocamente, quanto mais abstratos os instrumentos, maior o predomínio da mensagem sobre o meio (portanto, maior extensão e generalização da mensagem). Tais conhecimentos são necessários ao educador, pois este terá que descobrir os instrumentos capazes de tornar a mensagem educativa assimilável pelo educando. Uma vez que o meio é determinado basicamente pelas condições do receptor, conclui-se que a escolha dos veículos da mensagem educativa será determinada pelo conhecimento que o educador tem do educando. Os dados da Psicologia, por seu turno, revelam que do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, o ser humano evolui das operações mais concretas para as mais abstraías; por isso, os teóricos da educação têm insistido ultimamente na necessidade de que o ensino se organize a partir das experiências diretas, na direção progressiva dos símbolos visuais e verbais. A Lei 5.692 incorporou essa exigência, determinando que o ensino, nas primeiras séries do primeiro grau, seja ministrado predominantemente sob a forma de atividades. Não obstante, constata-se que têm predominado nas escolas, indiscriminadamente, o uso dos símbolos visuais (linguagem escrita: livros) e símbolos verbais (linguagem falada). Cumpre, pois, ampliar a esfera dos meios e tirar proveito, também no processo educativo, da variedade de recursos que a situação histórica atual oferece. Isto significaria que o livro didático, enquanto recurso educativo, está em vias de ser ultrapassado e fadado a desaparecer? Ao contrário, significa que sua faixa de referência se amplia (já que como instrumento mais abstraio ele propicia maior campo de abrangência) para se articular e, em certos casos, abarcar outros recursos pedagógicos. Em outros termos, caberá ao livro didático servir como elemento estimulador a professores e alunos no sentido de aguçar-lhes a capacidade criadora levando-os à descoberta e uso de novos recursos, através de sugestões múltiplas e ricas.

2. O LIVRO DIDÁTICO Do que foi dito acima, conclui-se que o livro didático é um instrumento no qual a mensagem educativa está convenientemente arranjada de modo a ser adequadamente captada pelo receptor (educando). Essa situação acabou por dotar o livro didático de um caráter estático; constituía-se ele num conjunto de enunciados fechados, conclusivos, com os quais o educando deveria se identificar. Supunha, portan-

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to, a existência de um saber já elaborado (mensagem) e que por isso poderia (e deveria) ser transmitido. Essa dicotomia (elaboração do saber-transmissão do saber) exprime-se de modo claro na oposição constatada e contestada nos meios universitários entre pesquisa (ciência) e ensino (didática). Com efeito, o discurso científico distingue-se do discurso didático enquanto "o enunciado científico não procura, como o enunciado didático, que o interlocutor se identifique à matéria que enuncia e da qual está assim destruída a originalidade. Ao contrário, o discurso científico assegura a personalidade do pesquisador, pois que se situa no ponto em que se opõe a outras análises, ou que se confirma uma análise anterior, o que dá no mesmo, visto que é um corpo de propostas definidas por uma contestação".(3) De qualquer forma, a transmissão do saber está condicionada à elaboração do saber. Por isso, as ciências não podem deixar de interessar ao educador. Esse interesse se manifesta basicamente de três diferentes maneiras.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à própria formação de cientistas. Com efeito, o cientista é formado através da organização educacional. Este papel, na organização atual, é desempenhado principalmente pelas Universidades.

Em segundo lugar, na medida em que as ciências lhe proporcionam um conhecimento mais preciso da realidade em que atua.

Em terceiro lugar, "na medida em que o próprio conteúdo das ciências pode se constituir num instrumento direto da promoção do homem (educação). É nesse sentido que as ciências, como tais, passam a figurar no currículo pedagógico. Assim, a Geografia (Estudos Sociais), faz parte do ensino de primeiro grau, onde não figura a Psicologia.

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Mas o professor de l º grau se interessa pela Psicologia, enquanto esta lhe permite compreender de forma mais adequada a etapa de desenvolvimento por que passa a criança. A Geografia, porém, lhe interessa não apenas enquanto lhe permite compreender mais adequadamente o meio em que ele e a criança estão inseridos, mas também enquanto conteúdo de aprendizagem. Aqui faz-se necessário distinguir a ciência quando encarada do ponto de vista do educador e quando encarada do ponto de vista do cientista. Do ponto de vista do cientista a ciência assume caráter de fim, ao passo que o educador a encara como meio. Exemplificando: um geógrafo, uma vez que tem por objetivo o esclarecimento do fenômeno geográfico, encara a Geografia como fim. Rara um professor de Geografia, entretanto,

3. DUBOIS, j. e SUMPF j. - "Lingüística e Revolução", in Semiologia e Lingüístico, p. 156.

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o objetivo é outro: é a promoção do homem, no caso, o aluno. A Geografia é apenas um meio para chegar àquele objetivo. Dessa forma, o conteúdo será selecionado e organizado de modo a se atingir o resultado pretendido. Isto explica porque nem sempre o melhor professor de Geografia é o geógrafo, o que pode ser generalizado nos termos seguintes: nem sempre o melhor professor de determinada ciência é o cientista respectivo."(4)

Percebe-se facilmente que, em relação ao ensino de 1º e 2º graus, é essa terceira forma que irá representar o interesse fundamental das ciências na tarefa educativa. E os livros didáticos serão o instrumento adequado para a transformação da mensagem científica em mensagem educativa. Nota-se, ainda, que nesse caso, o livro didático é não somente o instrumento adequado mas insubstituível, uma vez que os demais recursos não se prestam para a transmissão de um corpo de conhecimentos sistematizados como o é aquele que constitui a Ciência-produto.

No entanto, é a partir daí que o livro didático pode deixar de ser didático, ou seja, de preencher a função educativa que lhe é própria. Na verdade, um autor de livro didático deve ter em mente que o seu objetivo não é a ciência como tal. Portanto, não lhe cabe, propriamente, expor as conclusões científicas (essa é a função dos livros especializados) mas selecioná-las e ordená-las de modo a atingir o objetivo educacional: a promoção do homem, isto é, do educando. Por outro lado, se o livro didático, hoje, deve ser um elemento estimulador da capacidade criadora de professores e alunos, segue-se que ele não deverá se caracterizar como um conjunto de enunciados fechados, conclusivos, como ocorre tradicionalmente. Isto significa, em suma, que o discurso didático deverá incorporar dialeticamente, numa certa medida, o discurso científico.

3. O LIVRO DIDÁTICO E A LEI Nº 5.692 Sem a compreensão dialética referida acima, será impossível traduzir para a práxis educacional, através do livro didático, as medidas preconizadas na Lei 5.692 que fixa diretrizes e bases para o ensino de l º e 2º graus. Uma confrontação das características, ou seja, dos princípios fundamentais da Lei com a problemática do livro didático, permitirá avaliar o alcance da proposição acima enunciada.

4. SAVIANI, Dermeval - "Para uma Pedagogia Coerente e Eficaz", neste volume, à pp. 70-71.

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1. Integração Vertical: Por este princípio, as séries e graus bem como as atividades, áreas de estudo e disciplinas se articulam diacronicamente sem solução de continuidade. Evidentemente que não se pode perder de vista esse princípio ao se elaborar o livro didático. Qual a melhor forma de propiciara seqüência harmoniosa das séries e graus de ensino? Como incrementar a evolução progressiva das atividades passando pelas áreas de estudo de modo a se chegar às abordagens sistematizadas e específicas dos enfoques disciplinares?

2. Integração Horizontal: Segundo essa característica, desaparece a divisão do ensino em ramos (secundário, técnico, normal) unificando-se o conteúdo da aprendizagem (matérias) em termos de atividades, áreas de estudo e disciplinas em sentido sincrônico. De acordo com a estrutura anterior à Lei (que na prática ainda perdura) além da divisão em ramos, dentro destes as diversas séries se organizavam em disciplinas mais ou menos autónomas. Por isso, os livros didáticos eram elaborados, também, seguindo o critério da divisão disciplinar. Como se deverá proceder agora para incorporar ao livro didático a integração dos conteúdos de cada série ao nível de atividades e áreas de estudo? Ou deverá o livro didático se limitar ao nível das disciplinas, quando muito, das áreas de estudo? Parece claro (a experiência mostra), que tal procedimento poderia pôr a perder o aspecto positivo que, independentemente da intenção do legislador, se pode extrair do princípio da integração horizontal. Os livros iriam estimular o desenvolvimento de áreas mais ao menos estanques.

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3. Continuidade (ensino geral) — Terminalidade (ensino especial): A combinação do binômio continuidade-terminalidade visa a propiciar um duplo estímulo que pode coexistir num mesmo aluno ou se bifurcar de um aluno para outro: o prosseguimento nos estudos e a habilitação profissional. Que tipo de livro didático estaria apto a provocar mais e mais nos alunos e gosto pela pesquisa, por estudos continuados (na linha de uma educação permanente) aliado à busca de uma qualificação profissional?

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4. Racionalização-Concentração: Tal princípio implica a economia de recursos (materiais e humanos), concentração de esforços e não-duplicação de meios para fins idênticos. É possível pensar-se na elaboração de livros didáticos que incentivem nos alunos e professores atitudes mais racionais que levem a uma ação organizada inteligentemente?

5. Flexibilidade: Manifesta-se nos seguintes aspectos, de modo especial:

a) variedade de currículos;

b) utilização de métodos apropriados a cada tipo e nível de ensino;

c) aproveitamento dos estudos realizados;

d) combinação do binômio continuidade-terminalidade, de acordo com:

- idade dos alunos;

- interesse dos alunos;

- aptidões dos alunos;

- Capacidade do estabelecimento de ensino;

- condições de cada sistema de ensino;

- nível sócio-econômico da região.

As formas de combinação acima referidas (item d) põem em foco a noção de terminalidade real.

Como se pôde notar, a flexibilidade é a característica mais importante da Lei e a mais complexa, incidindo, inclusive, sobre as demais, o que pode gerar incoerências e, mesmo, contradições. Com efeito, a ênfase na racionalização pode acabar por anular a flexibilidade e vice-versa. Acresce-se ainda que a flexibilidade, em termos concretos, pode se transformar numa faca de dois gumes; ou seja: pode-se, em nome da flexibilidade, negar a própria flexibilidade, caindo-se na rigidez ou no espontaneísmo. Como elaborar o livro didático que possibilite a vigilância necessária para se evitar os riscos apontados acima, atendendo, além disso, à variedade de currículos e de métodos? Como encarar através do livro didático o problema da terminalidade real?

6. Valorização ao Professorado: Esse princípio se corporifica nas seguintes medidas:

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a) estudos para a formação, aperfeiçoamento, treinamento e retreinamento de professores e especialistas;b) profissionalização do professor pelo Estatuto do Magistério;c) critérios para fixação dos padrões de vencimentos à base de capacitação do professor, e não pelo nível

de ensino que esteja ministrando;d) tratamento especial para os professores não titulados;e) aproveitamento de graduados do ensino superior como professores das disciplinas de formação

profissional; f) capacitação do magistério para as suas responsabilidades polivalentes na escola;g) co-responsabilidade dos professores na ministração do ensino e verificação da eficiência de

aprendizagem dos alunos.

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Na elaboração do livro didático é preciso não esquecer as condições objetivas que determinam o professor que o vai utilizar. Sabe-se que o livro depende do professor, uma vez que não o pode substituir. Por outro lado, sabe-se também que o professor depende do livro, pois este se lhe apresenta como um recurso indispensável. Portanto, a questão toda está em se produzir o livro didático que seja um estímulo constante para a atividade criadora do professor e lhe mantenha vivo o gosto pelo ensino. Tradicionalmente, o livro didático tem sido, frequentemente, um fator de cristalização da rotina. Para se transformar o livro num instrumento de valorização do professorado, essa situação terá de ser alterada.

7. Sentido Próprio para o Ensino Supletivo: O ensino supletivo mereceu um tratamento especial na Lei 5.692, cabendo-lhe um Capítulo inteiro (o IV). Aí foram definidas as suas funções de suprimento e de suplência, ao mesmo tempo que se consagrou a possibilidade de sua articulação com o ensino regular. Surge, então, o problema de se pensar na elaboração de livros didáticos para o ensino supletivo. Quanto à articulação com o ensino regular, seria possível a produção de livros que atendessem a essa integração?

4. CONCLUSÃO A Lei 5.692 é passível de críticas sob muitos aspectos. Nós próprios, já tive-

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mos oportunidade de criticá-la mais de uma vez.(5) O fato concreto, porém, é que a lei está em vigor. Dessa forma, inevitavelmente, os professores e educadores em geral, estarão às voltas com os dispositivos por ela preconizados. Levando em conta esse dado, as notas apresentadas acima foram redigidas segundo uma diretriz que pode ser traduzida na seguinte questão: como usar meios velhos em função de objetivos novos? Em outros termos, trata-se de explorar as possíveis aberturas da lei no sentido de dotar as atividades de maior consistência, enriquecendo, através do livro didático, os conteúdos da aprendizagem. Com isto se estaria, dialeticamente, contrariando a partir da própria lei a tendência geral nela contida, isto é, a tendência a uma rarefação da educação e a um empobrecimento dos conteúdos de aprendizagem.

É esse o espírito que presidiu a decisão de divulgar; neste momento, as anotações deste documento de trabalho. Esperamos, com isso, ao levantar a questão do livro didático no quadro da organização escolar brasileira atual, provocar a reflexão de professores, autores e editores sobre a necessidade e urgência da produção de bons livros didáticos. Com efeito, o bom livro didático será, em suma, aquele que, reconhecendo-se um dentre os diversos recursos que concorrem para o êxito do ensino, for capaz de reunir o maior número de estímulos que permitam a professores e alunos dinamizar o dia a dia do processo ensino-aprendizagem na direção do objetivo fundamental da educação: a promoção do homem. Esse tipo de livro não surgirá, porém, espontaneamente. Estas notas são, pois, apenas um convite para se examinar de modo mais profundo o problema concernente ao livro didático.

5. Ver, por exemplo, nosso texto, "Análise Crítica da Organização Escolar Brasileira Através das Leis 5540/68 e 5692/71", neste volume, às páginas 145-170.

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CAPÍTULO TREZE

ESTRUTURALISMO E EDUCAÇÃO BRASILEIRA

1. INTRODUÇÃO:(1)

A difusão do estruturalismo atingiu tais proporções que dificilmente algum representante da cultura contemporânea não seria classificado como estruturalista. Com efeito, Viet(2) ao tratar das "diferentes tendências do método estruturalista" se refere a diversos tipos de estruturalismo, tais como : estruturalismo dos modelos, estruturalismo da realidade concreta, estruturalismo fenomenológico e estruturalismo dialético. É comum também a

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expressão "estruturalismo genético"(3) para denominar a teoria de Piaget.(4) A teoria de Parsons, por sua vez, é denominada "estruturalismo funcionalista".(5)

É evidente que em cada um desses contextos a palavra "estrutura" recebe conotações bastante diferenciadas, o que projeta grande confusão ao significado do termo. Dir-se-ia que o uso da palavra não passa de uma concessão à moda como já acontecera com o existencialismo, segundo palavras de Sartre(6), nas páginas iniciais de "O Existencialismo é um Humanismo". Também no caso presente, não faltam citações que apóiem a conclusão supra. O próprio Lévi-

1. Publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, MEC/INEP Rio de Janeiro, abr./jun., 1974, n. 134, vol.60, pp. 208-217.

2. Cf. VIET J. - Métodos Estruturalistas nos Ciências Sociais.

3. Cf. CAPALBO, C. - "Estruturalismo e Educação", in Revisto de Cuftura Vozes, 68(2), 1974.

4. Cf. PIAGET, j. - O Estruturalismo.

5. Cf. LEPARGNEUR, H. - Introdução aos Estruturalismos.

6. Cf. SARTRE, j.P - O Existencialismo é um Humanismo, p. 238.

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Strauss(7) refere-se à afirmação de Kroeber, segundo a qual "a noção de 'estrutura' não é provavelmente senão uma concessão à moda... Assim, parece que o termo 'estrutura' não acrescenta absolutamente nada ao que temos no espírito quando o empregamos, senão que nos deixa agradavelmente intrigados".

Deve-se frisar, ainda, que as confusões referentes ao sentido do termo "estrutura" não se devem apenas aos diferentes significados que lhe atribuem os diferentes autores que o utilizam. Frequentemente, um mesmo autor emprega a palavra com um sentido vago, impreciso, até mesmo equívoco e como correlato de termos ou expressões cuja significação também permanece obscura, tais como "sistema", "totalidade", "conjunto", "elementos em relação", "disposição das partes no todo", etc. Isto foi posto em evidência por Boudon(8) ao se referir à "polissemia do termo estrutura", e pode ser fartamente ilustrado através dos debates que marcaram o colóquio sobre o tema: "Usos e sentidos do termo estrutura", realizado em Paris em 1959.

Escapa, evidentemente aos propósitos deste artigo fazer um inventário dos diversos autores ligados às várias formas de estruturalismo e dos diferentes significados atribuídos ao termo "estrutura". Tais estudos já vêm sendo feitos há mais de quinze anos (o primeiro colóquio internacional data de 1957) e o leitor brasileiro, certamente em decorrência da já referida difusão do estruturalismo, conta com um bom número de obras relacionadas com o assunto. Trata-se, aqui, de responder às seguintes questões: Qual o significado da noção de estrutura? Esta noção pode ser empregada em educação da mesma forma que é empregada em outros contextos? Pode-se falar em influência do estruturalismo na educação brasileira?

2. A NOÇÃO DO ESTRUTURA

2.1. Os Dois Sentidos Básicos ao Termo A multiplicidade de significados atribuídos ao termo "estrutura" pode, em última instância, ser reduzida a dois sentidos básicos, como assinala Bastide(9): "Podemos distinguir, grosso modo, dois sentidos gerais...são eles: l) o que faz da estrutura uma definição do objeto; e 2) o que faz dela uma construção conformadora do ob-

7. Cf. LÉVI-STRAUSS, C. - Antropologia Estrutural, p. 300.

8. BOUDON, R. - Para que Serve a Noção de Estrutura? , p. 4.

9. BASTIDE, R. - Usos e Sentidos do Termo "Estrutura", p. 8.

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jeto". Trata-se da oposição entre estrutura como modelo e estrutura como realidade objetiva. Para elucidar as duas noções Bastide(10) confronta, de um lado, Lévi-Strauss e os estruturalistas, e, de outro, Gurvitch acrescentando que "em muitos campos, psicologia, direito, política, economia política, as estruturas são consideradas de modo concreto". E conclui: "Sobra, contudo, uma oposição irredutível: a de modelo e concreto, de relações latentes e relações reais, e esta oposição encontra-se em todas as disciplinas..."

Conhecidos os dois significados básicos do termo "estrutura" é necessário esclarecer o fundamento dessa duplicidade e verificar se é possível superá-la em direção a uma compreensão mais precisa da noção em pauta.

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2.2. Revisão do Significado Etimológico da Palavra "Estrutura" O termo "estrutura" originou-se do verbo latino "struere". A este verbo é atribuído correntemente o significado de construir. Este sentido é aceito sem objeções tanto entre os leigos como nos círculos especializados. Tal fato dispensa os estudiosos de um exame mais detido do significado etimológico do termo. Pode-se ilustrar o que foi dito através da seguinte frase com a qual Bastide(11) introduz o exame dos diferentes itinerários percorridos pela palavra "estrutura" no vocabulário científico: "Sabemos que a palavra estrutura vem do latim 'structura', derivada do verbo 'struere', construir".

Vê-se por aí que "estrutura" significaria "construção", o que já abre margem para a duplicidade de sentido referida no item anterior. Com efeito, "construção" pode indicar tanto o modo como algo é construído (o que sugere a idéia de paradigma ou modelo) como a própria coisa construída (e a estrutura se confunde, então, com a realidade mesma). Um exame mais detido da origem etimológica revela, contudo, que a interpretação supra é suscetível de certos reparos. Com efeito, além de "struo" encontra-se em latim os verbos "construo", "destruo", "instruo". Isto indica que "struo" é a raiz a partir da qual se pode compor outros vocábulos de significados diferentes e até antinômicos, na medida em que se acrescenta este ou aquele prefixo. Indica, ainda, que a construção deriva diretamente de "construo" e não de "struo", o que

10. BASTIDE, R. Op. c/t., p. 11.

11. BASTIDE, R. Op. c/t., p. 2.

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lança dúvidas em relação à identificação entre estrutura e construção sugerindo a ideia de que essa interpretação é um tanto apressada e superficial, hipótese que talvez permita explicar boa parte das confusões relativas ao termo em questão. Sendo um termo-raiz, "struo" (assim como "structura") não possui um sentido preciso e suscetível de ser caracterizado de imediato e "a priori". Seu uso na língua latina, como se pode inferir do manuseio de Dicionários e Enciclopédias, sugere um significado cuja precisão se instaura em função dos contextos em que é utilizado. Variando os contextos, variará, conseqüentemente, o sentido do termo. Com efeito, se é possível dizer de imediato e "a priori" que "construo" se opõe a "destruo", o mesmo não ocorre com "struo";(12) este não se opõe nem se identifica aos termos anteriores a não ser quando considerado em função de determinado contexto. Isto permite compreender ao mesmo tempo a polissemia e respectiva difusão do termo "estrutura" bem como suas imprecisões e confusões. Entretanto, se a compreensão das imprecisões e confusões é suficiente em termos de vocabulário comum, o mesmo não ocorre ao nível do vocabulário técnico, ou seja, no que diz respeito ao uso científico da palavra. Aqui, é preciso não apenas compreender, mas também superar as referidas confusões e imprecisões.

2.3. Explicitação da Noção de "Estrutura" As distinções anteriores permitem concluir que "estrutura" é a matriz fundamental a partir da qual ou em função da qual são construídos os modelos. Em outros termos: é possível construir modelos cuja função é permitir conhecer da maneira mais precisa possível as estruturas, pondo em evidência os respectivos elementos e o modo como estes se relacionam entre si; e é possível, também, a partir do conhecimento das estruturas, construir modelos que permitam tanto a modificação das estruturas existentes como a formação de novas estruturas. A noção de estrutura não coincide, pois, com a de modelo (não importando, no caso, se se trata de modelos de conhecimento ou de modelos de ação).

A afirmação supra pode parecer estranha, dado o significado amplo atribuído ao termo "estrutura". Com efeito, considerando-se que "estrutura" origina-se de

12. FORCELLINI, A. - Lexicon Totfus Latinitatis, Patavii, Typis Seminarii, MCMXL. Confira especialmente verbetes "structura" e "struo", vol. IV p. 509. Obs.: São indicados, dentre outros, os seguintes sinónimos de "Struo": exstruo, construo, instruo, obstruo e moveo.

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"struo", o substantivo correspondente derivado de "construo" seria "construtura". Como tal palavra não é utilizada, o conteúdo que lhe corresponde acaba, por extensão, sendo designado também pelo termo "estrutura".

É interessante notar, porém, que a ciência atual acabou por cunhar o termo "constructo" este, sim, diretamente derivado do supino do verbo "construo". Ora, os "constructos" são modelos cuja função é permitir conhecer as estruturas e ou agir sobre elas.

A distinção entre "constructo" ou modelo e "estrutura" confere a esta uma concretude que normalmente não lhe é reconhecida pêlos representantes da corrente denominada "estruturalismo". Tais pensadores assumem uma postura teórica que tende a identificar estrutura com modelo; na atividade prática de pesquisadores, porém, eles acabam por

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evidenciar o caráter irredutivelmente concreto das estruturas. Com efeito, Lévi-Strauss,(13) ao estudar os elementos básicos do parentesco, pretende revelar relações concretas; Foucault,(14) ao fazer a "arqueologia das ciências humanas" acredita estar pondo anua situação concreta da cultura ocidental nos últimos cinco séculos (tanto assim é que pretende desfazer ilusões). Outros exemplos poderiam ser mencionados, passando por Lacan,(15) Saussure(16) e outros. Por que esta confusão? Ao que parece os estruturalistas não se aperceberam, ou melhor, não se preocuparam em caracterizar a "análise estrutural" como uma atitude que utiliza constructos com a finalidade de explicitar as estruturas (entenda-se concretas). Isto decorre, provavelmente, da influência da Lingüística, o que acabou por privilegiar no seio do estruturalismo o signo em detrimento do objeto.(17)

As afirmações do parágrafo anterior podem ser confirmadas através do seguinte trecho de Lévi-Strauss:(18) "Os modelos podem ser conscientes ou inconscientes, segundo o nível onde funcionam. Boas, a quem cabe o mérito desta distinção, mostrou que um grupo de fenómenos se presta tanto mais à análise estrutural quanto a sociedade não dispõe de um modelo consciente para interpretá-lo ou justificá-lo". O texto sugere um privilégio concedido aos modelos inconscientes na análise

13. Cf. LÉVI-STRAUSS, C. - Lês Structures Êlémemaires de h Parente.

14. Cf. FOUCAULT M. - Lês Mots et Lês Choses.

15. Cf. LACAN, J. - Écrits.

l 6. Cf. SAUSSURE, f. - Curso de Linguística Geral.

17. Cf. PEIRCE, C. S. - Semiótica e Filosofia, pp. 94 e 133.

18. LÉVI-STRAUSS, C. - Antropologia Estrutural, p. 303.

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estrutural. Estes modelos inconscientes referem-se, contudo, ao grupo de fenômenos cuja estrutura concreta se quer captar e explicitar. Sua explicitação, no entanto, é feita através da análise estrutural que utiliza "constructos", isto é, modelos conscientes. Visto deste ângulo, invertem-se os termos do problema: o privilégio conferido à análise estrutural redunda em privilégio dos modelos conscientes em detrimento dos modelos inconscientes, contrariamente ao que pretendia o texto sugerir. A confusão entre "estrutura" e "constructo" (modelo) corre, pois, o risco da "inversão idealista", isto é: de indicadores do real, os signos passam a constituintes da própria realidade, reduzindo-se o real-concreto a manifestações acidentais dos signos.

Conclui-se, então, que a palavra "estrutura" designa primária e originariamente totalidades concretas em interação com seus elementos que se contrapõem e se compõem entre si dinamicamente. Neste sentido, "estrutura" opõe-se a "constructo" ou modelo. Este decorre do modo de existir do homem, ser concreto, que, por necessidade de compreender a realidade da qual faz parte, constrói esquemas explicativos dessa mesma realidade. Vê-se, pois, que a oposição entre "estrutura" e "constructo" não é uma oposição à moda da Lógica Formal (cujos termos contraditórios mutuamente se excluem); trata-se de uma oposição dialética (cujos termos contraditórios mutuamente se incluem).

3. À NOÇÃO DE ESTRUTURA NA EDUCAÇÃO

3.1. Contusão Entre "Estrutura" e "Sistema"; o Uso Corrente dessas Palavras na Educação No início deste artigo já se fez menção à confusão de significados atribuídos ao termo estrutura e foi apresentada como uma das razões dessa confusão o uso de determinadas palavras ou expressões como correlato de estrutura. Dentre elas, destaca-se "sistema". Com efeito, "estrutura educacional" e "sistema educacional", assim como outras expressões congêneres são empregadas no vocabulário comum com significados mais ou menos equivalentes. Repete-se aqui o mesmo fenômeno que se constata em outros setores do conhecimento onde, por exemplo, "estrutura social" e "sistema social", "estrutura econômica" e "sistema econômico", etc. assumem sentidos intercambiáveis. Isto se evidencia através do próprio Lévi-Strauss que denomina "estruturas de paren-

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tesco" ao mesmo fenômeno que recebera de Morgan a denominação "sistemas de parentesco".(19)

Os vocábulos "estrutura" e sistema são pois, empregados mais ou menos como sinônimos. Contudo, enquanto nos demais contextos predomina a palavra "estrutura", no contexto educacional a preferência é conferida ao termo "sistema". Fará dar-se conta disso, basta constatar o emprego indiscriminado de expressões tais como: "sistema educacional", "sistema de ensino", "sistema de ensino profissional", "sistema de ensino público", "sistema pedagógico", etc. O sentido dessas expressões permanece, contudo, obscuro, vago, impreciso, equívoco, em suma, indefinido.(20) É

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preciso, ainda, não esquecer de mencionar o uso do termo "estrutura" na denominação da disciplina "Estrutura e Funcionamento do Ensino", que integra o currículo mínimo dos cursos de Pedagogia. Neste caso também não se explicita de modo claro o significado de "estrutura". Todavia, a contraposição com "funcionamento" permite inferir com relativa facilidade a analogia com a Biologia. "Estrutura" indicaria a anatomia do ensino (os órgãos que o constituem, suas características básicas); "funcionamento", a fisiologia do ensino (o modo como funcionam os diversos órgãos que constituem o ensino). Passa-se, então, a falar também em "estrutura do sistema educacional" (ou de ensino), o que acaba por aumentar as confusões. Com efeito, as expressões "estrutura do ensino superior" e "sistema de ensino superior" se equivalem? Uma vez que se fala em "estrutura do ensino superior" e em "estrutura do sistema de ensino superior", o que é que a palavra "sistema" acrescenta que não está contido no significado da expressão anterior? Poder-se-ia multiplicar as questões propostas pondo em evidência exaustivamente a confusão existente entre "estrutura" e "sistema" no emprego corrente dessas palavras no contexto educacional.

3.2. Superação da Confusão: Caráter não Ortodoxo da Solução Proposta: suas vantagens O assunto objeto deste item foi desenvolvido pelo autor do presente texto no livro "Educação Brasileira-Estrutura e Sistema".(21) A esta obra deverá remeter-se o leitor interessado em examinar os fundamentos da distinção que será proposta a seguir, uma vez que os limites deste artigo não permitem um estudo exaustivo do

19. BASTIDE, R. Op. c/t., p. 4.

20. Cf. SAVIANI, D. Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, pp. 23-24.

21. Cf. SAVIANI, D. Op. c/t.

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assunto. Aqui, a tarefa ficará circunscrita a um confronto sucinto entre as noções de "estrutura" e "sistema" no contexto educacional, examinando-se em seguida algumas de suas conseqüências.

O termo "estrutura" tal como foi caracterizado anteriormente implica "a própria textura da realidade... O sistema implica uma ordem que o homem impõe à realidade. Entenda-se, porém: não se trata de criara realidade. O homem sofre a ação das estruturas, mas, na medida em que toma consciência dessa ação, ele é capaz de manipular a sua força, agindo sobre a estrutura de modo a lhe atribuir um sentido".(22) Parafraseando um dito de Sartre(23) numa de suas famosas polemica com o "Estruturalismo", dir-se-ia: "O que foi feito do homem são as estruturas; o que ele faz (daquilo que fizeram dele) é o sistema".(24)

De acordo com o que foi dito acima, pode-se distinguir na estrutura dois níveis; de um lado, o que se poderia chamar de "infra-estrutura"; de outro lado, a "supra-estrutura"(25). A "infra-estrutura" traduz a realidade concreta no seu sentido mais próprio e imediato; a "supra-estrutura" refere-se aos esquemas construídos pêlos homens por exigência do processo de produção de sua existência. É preciso frisar, contudo, que tais esquemas são produtos objetivos, caracterizando-se como componentes da Cultura. Corresponde, pois, àquilo que Lévi-Strauss(26) chama "modelos inconscientes". Vê-se pois, que enquanto a "estrutura" implica inintencionalidade (ao nível da práxis comum), o "sistema" implica intencionalidade . Não se deve, porém, inferir, daí, que "sistema" se identifica com modelo (ou "constructo") situando-o num plano exclusivamente teórico. "Sistema" é uma organização objetiva resultante da atividade sistematizadora que se dirige à realização de objetivos comuns. É, pois, um produto da práxis intencional comum. Práxis(27) é entendida aqui como uma atividade humana prática fundamentada teoricamente. Tal conceito implica, então, uma unidade dialética entre teoria e prática, o que significa que se trata de uma atividade cujos objetivos não se realizam apenas subjetivamente; ao contrário, trata-se de resultados que se manifestam concretamente.

Este produto intencional e concreto de uma

22. Cf. SAVIANI, D. - Op. c/t., p. 76

23. Cf. SARTRE, J. R - Sartre Hoje, p. 117.

24. Cf. SAVIANI, D. - Op. c/t., p. 77.

25. Cf. MARX, K. - Contribuição poro a Crítica da Economia Político, pp. 28-29.

26. LÉVI-STRAUSS, C. - Antropologia Estrutural, p. 303

27. Cf. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, A. - Filosofia da Práxis, especialmente caps, l, II e III 1 parte.

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práxis intencional comum, eis o que está sendo denominado, aqui, "sistema". Vê-se, pois que "a teoria não faz o sistema; ela é apenas uma condição necessária para que ele seja feito. Quem faz o sistema são os homens quando assumem a

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teoria na sua práxis. E quem faz o sistema educacional são os educadores quando assumem a teoria na sua práxis educativa,(28) isto é, quando a sua prática educativa é orientada teoricamente de modo explícito.

A partir dos esclarecimentos acima apresentados é possível, agora, compreender o significado da expressão "estrutura do sistema educacional". Uma vez que este é uma organização objetiva, concreta, ele possui uma estrutura. Lançando mão de um jogo de palavras, dir-se-ia, pois, que, enquanto a estrutura se apresenta como um "sistema" que o homem não fez (ou fez sem o saber), o sistema pode ser comparado a uma "estrutura" que o homem faz e sabe que o faz. Note-se que no segundo caso o verbo foi utilizado no presente e não foi por acaso; é preciso atuar de modo sistematizado no sistema educacional; caso contrário, ele tenderá a se distanciar dos objetivos humanos, caracterizando-se, agora sim, especificamente como estrutura (resultado comum inintencional de práxis intencionais individuais). Este risco é particularmente evidente através do fenômeno que vem sendo chamado de "burocratismo".(29)

É notório que as distinções feitas no presente artigo fogem ao significado corrente dos vocábulos "estrutura" e "sistema", tanto em termos de vocabulário comum como ao nível do vocabulário científico, embora também se possa perceber com relativa facilidade não existir antagonismo entre o uso corrente das referidas palavras e a interpretação aqui proposta. Contudo, a solução apresentada para superar as confusões entre "estrutura" e "sistema" no contexto educacional, pode ser caracterizada como "não-ortodoxa", uma vez que procura deslindar o significado desses termos numa direção ainda insuspeitada. Com efeito, "sistema educacional" tem sido usado (e tudo indica que continuará sendo empregado assim) para designar a organização da educação (ou do ensino) ao nível do que se poderia chamar de "macro-educação".

Empregada assim a palavra "sistema" sugere uma oposição entre educação sistemática (ou institucionalizada) e educação assistemática. Identifica-se, por conseguinte, educação sistematizada (cujo significado não se procura distinguir claramente

28. Cf. SAVIANI. D. - Op. cit., p. III.

29. Cf. SAVIANI, D. - Op. cit., pp. 84-85.

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de "educação sistemática") com educação institucionalizada; daí, o "sistema educacional" acaba por indicar o conjunto das instituições educativas. Ficam, porém, as seguintes questões: educação sistematizada se identifica com educação institucionalizada? Não poderá haver educação assistemática nas instituições (nas escolas, por exemplo)? Ou, inversamente, não poderá haver educação sistematizada fora das instituições?

Mais recentemente os círculos educacionais têm sido atingidos por uma interpretação da noção em pauta, derivada do chamado "enfoque sistêmico",(30) que se inspira na Cibernética.(31) Esse enfoque tende a considerar o "sistema" como algo mecânico, automático; instaura-se, então, um processo em que os homens, ao invés de sujeitos passam à condição de meros objetos do "sistema", cujos pontos de referência básicos são os "input" e "output". Um exemplo, referido por Churchman é particularmente ilustrativo. Refere-se ele a um "sistema de saúde" que pretende eliminar o sarampo. O sucesso do sistema "resultará na redução da mortalidade infantil, e conseqüentemente produzirá um 'intolerável' aumento da população nas áreas subdesenvolvidas. Aqui ainda uma vez o caráter do pensador de 'sistemas totais' torna-se evidente: talvez seja 'melhor' deixar o sarampo fazer sua feia obra do que permitir a fome resultante da explosão populacional".(32) É muito difícil de se aceitar a afirmação contida na citação supra, quando se constata que a mesma ocorre num "mundo capaz de produzir alimentos para cinco e meio bilhões de homens, segundo os cálculos de East, oito bilhões segundo os de Penk, e onze bilhões, segundo os de Kucszinski; portanto, pelo menos para o dobro da população atual".(33) Por que, então, o hipotético "pensador de sistemas totais" permite o aumento da mortalidade infantil? Que "sistemas totais" são esses? Por que as referidas populações se tornam objetos do processo que se inscreve no âmbito do "enfoque sistêmico"? Tais problemas se tornam particularmente agudos quando se trata do contexto educacional, uma vez que a ideia segundo a qual atarefa primordial da educação é a promoção do homem é aceita de modo geral não estando sujeita a algum questionamento que mereça atenção especial. Ora, a solução proposta neste artigo, tendo caracteri-

30. Cf. CHURCHMAN, C.W. - Introdução ò Teoria dos Sistemas.

31. Cf. WIENER, N. - Cibernética e Sociedade.

32. Cf. CHURCHMAN, C.W. - Op. c/t., p. 56.

33. Cf. CASTRO, j. - Geografia da Fome, p. 13.

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zado o "sistema educacional" como produto da práxis intencional comum que tem o homem como sujeito do processo de sistematização, vincula a noção de sistema educacional à promoção do homem. Fora daí, a ausência de

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intencionalidade, coerência, etc,(34) acaba por situar o problema ao nível das estruturas.

4. O ESTRUÏURALISMO E A EDUCAÇÃO BRASILEIRA

4.1. Escassa (ou Nula) Influência do Estruturalismo na Educação Brasileira O Estruturalismo, encarado em sentido restrito, em que pese sua ampla difusão no pensamento contemporâneo, não tem exercido influência sobre a educação brasileira, entendida esta como organização geral. Pode-se mesmo dizer que os chamados especialistas em educação não só não têm absorvido em sua prática as idéias estruturalistas, como têm se mantido à margem do movimento desencadeado pêlos representantes da referida corrente. Uma possível explicação para esse fenômeno estaria, talvez, naquilo que se poderia chamar o "vazio teórico" da educação brasileira. As questões educacionais continuam a ser tratadas ainda, na maioria dos casos, ao nível do "senso comum"; esta carência de fundamentação teórica mais consistente aliada à relativa complexidade da temática estruturalista terá, possivelmente, mantido a educação brasileira impenetrável à influência do estruturalismo.

4.2. Penetração do Estruturalismo em Certos Setores do Ensino Brasileiro Entretanto, se em termos da organização geral da educação não é possível falar-se em influência do estruturalismo na educação brasileira, o mesmo não ocorre com determinados setores do ensino. Nas Comunicações, especialmente em Lingüística e, ainda, no ensino da Filosofia, verifica-se marcante penetração do estruturalismo. Tal penetração - é o que parece - apresenta aspectos positivos e negativos. Esses aspectos serão examinados, a seguir, nas conclusões.

34. Cf. SAVIANI, D. - Op. c/t., especialmente pp. 72-77.

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5. CONCLUSÕES

5.1. Fecundidade do Estruturalismo corno Método Científico: sua Possível Contribuição à Educação Brasileira

Não há como negar o mérito científico do estruturalismo através dos admiráveis cortes sincrônicos que a análise estrutural permite. Isto foi posto em evidência pêlos diversos pesquisadores, desde a Lingüística aos mais variados domínios da Antropologia. A educação muito ganharia com a aplicação da análise estrutural que tornaria possível pôr em evidência os seus elementos básicos, concorrendo, assim, de modo eficaz para atarefa da construção do sistema educacional. Este, por sua vez, como organização objetiva (de acordo com o que se explicitou acima) tem também uma estrutura que precisa ser compreendida da maneira a mais precisa possível, a fim de que possa ser garantido ininterruptamente o caráter sistematizador do processo. Assim entendido, parece evidente que os educadores brasileiros deveriam encarar seriamente as contribuições provenientes da abordagem estruturalista, o que iria, inegavelmente, concorrer para preencher o antes mencionado Vazio teórico" com que se debate a educação brasileira.

5.2. Insuficiência do Estruturalismo como Concepção Filosófica: suas Conseqüências Negativas no Ensino Brasileiro

Quando, porém, o estruturalismo se erige em concepção filosófica, então exige maiores reparos, uma vez que acaba por amortecer o ímpeto do movimento filosófico. A criação ou elaboração de idéias assim como a reflexão sobre problemas concretos são substituídas pela exegese de textos. A partir da definição da filosofia como discurso, aplica-se a análise estrutural ao exame das obras dos filósofos, deixando-se à margem ou colocando-se em segundo plano a dimensão crítica e criticizadora da atividade filosófica. François Wahl(35) põe em evidência esse fenômeno ao mesmo tempo que chama atenção para a necessidade de sua superação: "Pa-

35. Cf. WAHL, f. - Estruturalismo e Filosofia, p. 10.

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rece que durante alguns anos a filosofia, medusada, não fez mais que repetir e assimilar o que ela lia em Lévi-Strauss e em Saussure, e pôr-se a serviço da reviravolta epistemológica em curso em um terreno que havia pouco ainda ela reputava seu. Mas hoje (e nós o sentimos em primeiro lugar), há nos filósofos uma lassitude ante a saturação dos

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conhecimentos positivos e até mesmo em face de sua metodologia, e uma vontade de recomeçar o trabalho em torno dos conceitos fundantes".

No que diz respeito à educação brasileira, a generalização do estruturalismo como concepção filosófica acabaria - é o que se presume - por aguçar a crise de criatividade que se abate sobre ela. Quanto ao ensino da Filosofia, pode-se constatar que a influência do estruturalismo tem provocado um duplo risco: de um lado, a redução da atividade filosófica à aplicação da análise estrutural (que por vezes atinge níveis bastante requintados) a obras já acabadas; de outro lado, incidindo a referida análise sobre obras de autores estrangeiros, acaba-se por desviar ainda mais a Filosofia da tarefa de refletir sobre os problemas que a realidade brasileira está colocando a cada instante.

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CAPÍTULO QUATORZE

EDUCAÇÃO BRASILEIRA: PROBLEMAS

1. INTRODUÇÃO:(1)

É preciso deixar claro, desde logo, que os problemas educacionais não podem ser compreendidos a não ser na medida em que são referidos ao contexto em que se situam. Educação será entendida, aqui, como um processo que se caracteriza por uma atividade mediadora no seio da prática social global. Têm-se, pois, como premissa básica que a educação está sempre referida a uma sociedade concreta, historicamente situada. Isto não significa adotar a posição do determinismo mecanicista "para o qual as formas e os destinos da educação são comandados de maneira direta, e mais ou menos sincrônica, pelo jogo dos fatores ambientais".(2) Como atividade mediadora, a educação se situa em face das demais manifestações sociais em termos de ação recíproca. A fim de determinar o tipo de ação exercida pela educação sobre diferentes setores da sociedade, bem como o tipo de ação que sofre das demais forças sociais é preciso, para cada sociedade, examinar as manifestações fundamentais e derivadas, as contradições principais e secundárias. Não é possível, neste artigo, desenvolver todas as implicações do que foi enunciado no parágrafo anterior Abordar os problemas educacionais é tarefa bastante complexa, pois pode envolver tanto o questionamento global da Cultura,(3) podendo

1. Publicado na Revista Educação e Sociedade, n. l, set., 1978.

2. FAURE, Edgar et alii - Apprendre à Étre, p, 65.

3. Cf. LÉVI-STRAUSS, C. - Tristes Tropiques. Ver, especialmente, Cap. VI da 2a Parte (Cahier de Voyage), pp. 42 e 55.

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a educação aparecer aí como a inculcação de um modo de pensar que dispensa o pensar,(4) como a política de formação de pessoal docente(5) e mesmo, o "complexo problema das construções escolares".(6) Evidentemente que a formação de pessoal docente assim como as construções escolares são manifestações derivadas. Já o questionamento global da Cultura incide no fator fundamental. Com efeito, o modo como serão encaminhadas as soluções para os dois problemas antes mencionados, assim como o próprio fato deles aparecerem como problemas depende da organização social que, por sua vez, se explica em função do processo cultural. É óbvio que num tipo de sociedade em que a escola não seja considerada necessária, não surgirá o problema das construções escolares. Establet, por exemplo, considera que a escola é um fenômeno típico da sociedade capitalista: "o aparelho escolar, enquanto produto histórico, é inseparável do modo de produção capitalista. Não se deve pois procurar 'outros aparelhos escolares', transpostos em sociedades dominadas por outros modos de produção, mesmo para fazer funcionar por analogia com o mecanismo que estudamos 'de outras' contradições de classe. A contradição entre feudalidade e campesinato, por exemplo, se manifesta no interior de um processo de reprodução das relações sociais e, principalmente, de aparelhos ideológicos de Estado de um tipo totalmente diferente. A igreja medieval em essência não é uma instituição de ensino. De seu lado, a contradição histórica entre a burguesia e a feudalidade, que desempenha inegavelmente um grande papel político na história do aparelho escolar, no decorrer do período de transição para o capitalismo, não é, no entanto, nunca a contradição de nenhum modo de

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produção e permanece uma contradição secundária entre classes dominantes".(7) Aceita esta hipótese, deve-se admitir necessariamente

4. "A cultura não é apenas um código comum nem mesmo um repertório comum de respostas a problemas recorrentes. Ela constitui um conjunto comum de esquemas fundamentais, previamente assimilados, e a partir dos quais se articula, segundo uma 'arte da invenção' análoga à da escrita musical, uma infinidade de esquemas particulares diretamente aplicados a situações particulares. (...) Tais esquemas de invenção também podem ter a função de remediar a falta de invenção, no sentido comum do termo. (...) Os automatismos verbais e os hábitos de pensamento têm por -função sustentar o pensamento, mas também podem, nos momentos de 'baixa tensão' intelectual, dispensar de pensar. Embora devam auxiliar a dominar o real com poucos gastos, podem também encorajar aos que a eles recorrem para fazer economia da referência ao real". BOURDIEU, P -A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974, pp. 208-209,

5. CASSANI, J.E. - Fundamentos y Alcances de Ia Política Educacional, pp. 280-293.

6. DITTEL, E.T - Educación y Desarrollo en América Latina, pp. 166-171.

7. ESTABLET R. - "A Escola", in As Instituições e os Discursos, Tempo Brasileiro, n. 35, p. l 25 (grifo do autor).

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que, fora da sociedade capitalista, não aparece o problema das construções escolares. Não se trata, pois, de examinar aqui, a infinidade de problemas derivados com que se debate a educação em geral e a educação brasileira em especial, uma vez que tal exame resulta estéril, acentuando ainda mais o mal-estar, a decepção e as frustrações que vêm tomando conta de professores, estudantes e de todos quantos, de uma forma ou de outra, voltam as suas preocupações para a situação e perspectivas da educação brasileira. Este estudo buscará situara educação no quadro da desintegração cultural brasileira visando a identificar o papel que lhe cabe desempenhar na nossa sociedade.

2. PAPEL DA EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA Falamos, acima, em "desintegração cultural brasileira". É preciso, agora, esclarecer o significado dessa expressão. Não estamos, com essa afirmação, aderindo à noção de "arquipélago cultural", já se discutiu muito (embora sempre superficialmente) sobre a existência ou não de uma cultura brasileira. Tal questão tem recebido, de modo geral, resposta negativa. A multiplicidade de razões invocadas para justificar a resposta negativa pode ser reduzida, em última instância, a dois grupos: I) aquele que põe a ênfase na falta de autonomia de nossa cultura e 2) aquele que salienta a fragmentação cultural.

Típica do primeiro grupo é a distinção entre cultura no Brasil e cultura brasileira (ou do Brasil). Tal distinção é completamente irrelevante, uma vez que toda a argumentação que a sustenta e envolve está viciada pela base. Com efeito, não é possível abordar o problema cultural tendo como ponto de partida a divisão política do Globo tal como se manifesta nos Estados Nacionais atuais. Isto salta aos olhos na medida em que transportamos o mesmo argumento para qualquer outro país. Poderíamos, por exemplo, raciocinando em termos de autonomia cultural, falar numa cultura francesa, cultura alemã, italiana, etc? Em que a cultura francesa (no sentido antropológico do termo) se distingue da italiana, da alemã, etc? E mesmo admitindo-se que se trata de diferentes culturas, restaria a seguinte questão: o que se entende, então, por cultura ocidental?

O segundo grupo nega a cultura brasileira não porque ela ainda não existe, mas porque já existem várias. Daí, o "arquipélago cultural". Fala-se, então, em cultura gaúcha, nordestina, caiçara, mestiça, caipira, etc. Essa fragmentação, detendo-se nas aparências, desvia do fundamental.

Cultura é, com efeito, o processo pelo qual o homem transforma a natureza, bem como os resultados dessa transformação. No processo de autoproduzir-se, o homem produz, simultaneamente e em ação recíproca, a cultura. Isto significa que não existe

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cultura sem homem, da mesma forma que não existe homem sem cultura. A cultura se objetiviza em instrumentos e idéias, mediatizados pela técnica.(8) Esses elementos fundamentais multiplicam-se indefinidamente, assumindo as mais variadas formas, o que geralmente acaba por ofuscar a visão do estudioso que tende a fixar-se na complexidade das manifestações culturais, perdendo de vista a essência dessas manifestações. A.V Pinto(9) captou com propriedade o fenômeno em pauta, ao afirmar: A dupla realidade da cultura, de ser por uma de suas faces materializada em instrumentos, objetos manufaturados e produtos de uso corrente, e por outra, de estar constituída por idéias abstratas, concepções da realidade, conhecimentos dos fenômenos e criações da imaginação artística, correlacionadas uma e outra face pelas respectivas técnicas, leva o pensador ingênuo a desorientar-se ao conceituá-la, pois tem dificuldade em

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utilizar o método necessário para chegar à formulação racional do plano cultural em totalidade. (...) A cultura aparece-lhe, no estado atual, como um infinito complexo de conhecimentos científicos, de criações artísticas, de operações técnicas, de fabricação de objetos, máquinas, artefatos e mil outros produtos da inteligência humana, e não sabe como unificar todo esse mundo de entidades, subjetivas umas e objetivas outras, de modo a dar a explicação coerente que una num ponto de vista esdarecedortoda esta extrema e diversificada multiplicidade".(10)

8. "Desde os primórdios a cultura tem esses dois componentes: os instrumentos artificiais, fabricados para prolongar e reforçar a ação dos instrumentos orgânicos de que o corpo é dotado a fim de opor-se à hostilidade do meio; e as ideias, que correspondem à preparação intencional, sempre social, e à antevisão dos resultados de tal ação. Aparece igualmente, como expressão da ligação entre os dois componentes, a técnica, enquanto correta preparação intencional do instrumento e a codificação do seu uso eficiente". PINTO, A.V - Ciência e Existência'. Problemas Filosóficos da Pesquisa Científica (Cap. VI, Teoria da Cultura), p. 123 (grifos do autor).

9. PINTO, A.V - Op. c/t., p. 125 (grifos do autor).

10. Um exemplo que ilustra de modo contundente a citação supra pode ser tirado do livro de Marvin Harris, A natureza das Coisas Culturais, Cap. 10, A natureza da cultura, pp. 171 -172: "Enquanto a definição de cultura for concebida em termos de essência, arquétipos, causas finais e outros miasmas que emergem dos pântanos intelectuais legados por Aristóteles e Platão, persistirá a vetusta vagueza conceptual. Mas, se adotarmos para a cultura um modelo acticular operacional, muitas das mais veneráveis questões receberão, sem demora, seu bem merecido repouso.

QUE É CULTURA?

Cultura é: actículos, episódios, nodos, cadeias nodais, cenas, senados, nomoclones, permaclones, para-grupos, tipos nomoclônicos, tipos permaclônicos, sistemas permaclônicos e supersistemas permaclônicos. Cultura é também: fonemas, morfemas, palavras, falas semanticamente equivalentes, planos de comportamento e muitas outras coisas "êmicas". Cultura é: toda e qualquer unidade nomotética da linguagem de dados verbal e não-verbal, previamente definida". Ver também: KNELLER, G.F - Introducción a Ia Antropologia Educacional, especialmente pp. 32-60 (Cap. 2, Teorias sobre Ia cultura).

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A essência da cultura consiste, pois, no processo de produção, conservação e reprodução de instrumentos, idéias e técnicas. É isto que permite que o mesmo termo seja aplicado a diferentes manifestações como ocorre, por exemplo, nas expressões: "cultura chinesa", "cultura indígena", "cultura ocidental". Em quaisquer dos casos pode-se detectar a existência de instrumentos, idéias e técnicas. Em contrapartida, o que diferencia uma cultura de outra é a direção seguida pelo processo cultural; é, em suma, o tipo, as características de que se revestem os instrumentos, idéias e técnicas. Como produtos do existir do homem, esses elementos fundamentais se entrelaçam constituindo uma rede de relações, de significações, de valores que determinam ao mesmo tempo que são determinados pêlos modos de agir e pensar dos homens. Vê-se, pois, que entre os índios, para citar apenas um exemplo, nós encontraremos instrumentos, idéias e técnicas. Todavia, as características de que se revestem esses elementos entre eles não são as mesmas que detectamos entre nós. Em outros termos: eles não valorizam as mesmas coisas que nós valorizamos; e quando as valorizam, não o fazem da mesma maneira.

Qual é a situação do Brasil? É fácil de se perceber (e nós o pudemos constatar pessoalmente através de contatos com caiçaras, nordestinos, gaúchos, mestiços do Norte e Centro-Oeste, índios bororó e chavante) que, excluídos os indígenas, todos os demais grupos se regem pêlos mesmos valores, respiram a mesma atmosfera ideológica. A diferença consiste no grau de participação, no uso fruto dos bens culturais. As conquistas culturais resultam de toda a sociedade, mas grande parte não participa dessas conquistas, o que significa dizer: grande parte participa da produção da cultura, mas não participa de sua fruição. É este o verdadeiro sentido da "desintegração cultural brasileira", que a idéia de "arquipélago cultural" só faz mascarar. Com efeito, a desintegração não se explica por uma suposta multiplicidade, mas, ao contrário, pela unidade cultural. É porque se regem pêlos mesmos valores que a grande maioria aspira às mesmas conquistas que estão asseguradas a grupos minoritários. Só que, enquanto para estes as aspirações se realizam, para aquela, elas permanecem, no geral, esperanças frustradas. "Essa tendência a que podemos mesmo chamar de marginalização cultural só pode dever-se, portanto, à extrema tenuidade da comunicação entre os grupos marginalizados e os demais grupos que formam o contexto cultural mais amplo, justamente aqueles que, embora minoritários, detêm as formas mais elaboradas de cultura".(11) Radica-se aio fato bastante difundido quanto falacioso de se denominar "culto" apenas ao grupo minoritário enquanto as massas são consi-

11. ALBUQUERQUE, J.A.G. - Cultura, Educação e Desenvolvimento, p. 22.

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deradas a parte "inculta" da sociedade: "A classe superior, em sua consciência essencialmente ingénua, não se julga ociosa; muito ao contrário, acredita que se entrega à mais elevada e valiosa de todas as formas de produção, a mental, a

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das idéias. Este seria seu papel distintivo e por isso a produção ideológica assume, de seu ponto de vista, o valor de qualidade mais nobre do homem, ficando os trabalhadores manuais na condição de absorventes dos artefatos ideais que lhe são distribuídos pela parte alta. Esta não lhes reconhece o direito de criar por si mesmos as idéias que consideram adequadas para exprimir sua percepção de si, da natureza e de sua situação social. Com isso, as classes efetivamente trabalhadoras ficam privadas, não do direito de pensar, que esse, o exercem constantemente e em natural sentido reivindicatório, mas do direito de ver reconhecidas como expressão da cultura as idéias que elaboram. Seus produtos artísticos são classificados apenas como pitorescos, artesanato, folclore, e somente despertam transitória e divertida curiosidade, enquanto os grupos dirigentes revestem suas obras da qualidade de sérias e eruditas".(12)

A situação acima descrita nos permite compreender os desequilíbrios da sociedade brasileira, a fraqueza dos vínculos que unem os diversos grupos e os conflitos e tensões latentes daí decorrentes. É nesse quadro que chamamos de "desintegração cultural brasileira" que queremos situar a educação como instrumento de fortalecimento dos laços da sociedade.

Tendo em vista que a organização social tende predominantemente à conservação da situação dominante, os desequilíbrios e tensões referidos tenderão também a permanecer e agravar-se. Nesta circunstância, o processo educativo só poderá desempenhar o papel de fortalecimento dos laços da sociedade na medida em que se revelar capaz de sistematizar a tendência à inovação solicitando deliberadamente o poder criador do homem. É aqui que a educação no Brasil surge como um verdadeiro e crucial problema. E isto porque, enquanto atividade inscrita no seio da organização social, ela estará marcada também pela tendência à conservação. Esse problema se agrava ainda mais, uma vez que os educadores, de um modo geral, não estão instrumentalizados para abordar o fenômeno educativo em termos do contexto que o configura, transitando com desenvoltura do processo cultural em totalidade para as atividades específicas, e vice-versa.

Cabe, pois, enfrentar agora esse problema analisando mais de perto o processo escolar. Afastemos desde logo a polemica "escolarização versus desescolarização",

12. PINTO, A. V - Op. c/t., p. 131.

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dado que ela se limita aos já escolarizados e estes já estão, de certo modo, desescolarizados. A verdade é que esse debate não atinge os ainda não escolarizados e parece que os debatedores não estão sequer interessados em ouvi-los. Por outro lado, constatada a precariedade dos instrumentos de participação cultural, será sensato nos darmos ao luxo de dispensar a escola que, bem ou mal, é um desses instrumentos?

3. IMPORTÂNCIA DO ENSINO PRIMÁRIO Desde que estamos preocupados com a nossa desintegração cultural a qual foi caracterizada pela constatação de que grande parte da população está marginalizada das conquistas culturais, compreende-se que se dê maior destaque ao ensino primário de vez que esse nível de ensino é definido como obrigatório para todos. Estranhamente, porém, o ensino primário não tem recebido dos analistas da educação maior atenção. Establet,(13) a partir da análise da escola francesa, afirmou: "Fomos levados a constatar que o que ocorre na escola primária é absolutamente essencial para o aparelho escolar inteiro. O que ocorre, aliás, no aparelho escolar não pode ser corretamente descrito e explicado se os efeitos das contradições de classe no interior da escola primária não forem corretamente descritos e explicados. Notar-se-á, de passagem, o silêncio quase total daqueles que, mesmo críticos e progressistas, têm por missão relacionar a estrutura social e o sistema escolar, sobre a escola primária".

No Brasil, a situação não é diferente. A julgar pelo silêncio reinante em torno dela, a escola primária parece uma ilha de paz e tranquilidade. Sobram professores. Em 1972 tínhamos 14.082.098 alunos matriculados e 525.628 professores.(14) Se todos esses elementos fossem aproveitados, nós teríamos uma média de 27 alunos por professor. No entanto, grande parte das professoras habilitadas não encontram oportunidade de exercer a profissão ao mesmo tempo que muitas classes são confiadas a leigos. Em relação ao aparelho escolar como um todo, para o período 1960-1973, "nota-se que o crescimento das matrículas foi tanto maior quanto mais

13. ESTABLET, R. - "A Escola", in As Instituições e os Discursos, Tempo Brasileiro, n. 35, p. 106 (grifo do autor).

14. MINISTÉRIO do Planejamento e Coordenação Geral, IBGE - Anuário Estatístico do Brasil, 1973, v. 34, pp. 760 e 758.

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elevado o grau de ensino: o primário cresceu 107,3%, o ginasial 391,7%, o colegial 455,3% e o superior 797,5%. Esses dados evidenciam a menor preocupação com o ensino primário num país onde a escolaridade mediana da população

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economicamente ativa é de 1,7 anos e, em contrapartida, uma preocupação maior com os graus mais elevados".(15) É verdade que esses números mostram também que, "ao lado da preocupação global do aumento da oferta de ensino, destacou-se a da melhoria do formato da pirâmide educacional".(16) O quadro quantitativo se completa ao se constatar que, de acordo com o último senso demográfico, era de 68% a taxa de escolarização da população de 7 a 11 anos em 1970. A comparação deste dado com a melhoria do formato da pirâmide já nos fornece uma pista para uma possível explicação do esquecimento a que é geralmente relegada a escola primária. É que a análise da escola primária é essencial para se entender o papel do aparelho escolar no seu todo em relação à sociedade global. Encarando-se, porém, o conjunto do aparelho escolar como um fragmento autônomo em relação à sociedade como um todo, então o ensino primário é relegado a último plano. Com efeito, os graus escolares são escalonados numa direção ascencional (no sentido social da palavra, isto é, seletivo e, até certo ponto, discriminatório). E como os analistas educacionais se limitam, geralmente, ao processo escolar, fazendo abstração de suas vinculações com o todo social, talvez esteja aí a razão do silêncio em torno do ensino primário.

Acrescente-se ainda que essa abordagem isolada do processo escolar tende a enfatizar o papel conservador da educação em detrimento de seu papel inovador. E as análises quantitativas dificilmente escapam a essa dificuldade. Isto pode ser evidenciado através da "Operação-Escola". Baseada num exame quantitativo da produtividade da escola primária nas capitais dos Estados, a "Operação" se propunha a seguinte meto gero/, também quantitativa: "Elevação do nível de atendimento do ensino primário brasileiro, com a expansão quantitativa dos sistemas escolares e o aumento de produtividade do ensino primário".(17)

15. CUNHA, L.A.R. - "A expansão do ensino superior: Causas e consequências", in Debate e crítica, n. 5, p. 28.

16. SIMONSEN. M.H. - "O esforço educacional", in SIMONSEN, M.H. & CAMPOS, R.O. - A Novo Economia Brasileira, p. 160.

17. INEP - "Operação-Escola: subsídios para reformulação do ensino primário brasileiro". RBEP, v. 50, n. 112, p. 270.

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No item denominado "Objetivos Gerais e Justificativas", podemos ler: "Há, ainda, a considerar o impacto psicossocial que esta medida trará, pois a idéia já firmada de incapacidade para solucionar esse angustiante problema será substituída pela expectativa de que, dentro de pouco tempo, o problema poderá ser resolvido em todo o território nacional, a exemplo do que já terá sido conseguido nas Capitais e outros grandes centros urbanos".(18) A referência às Capitais e grandes centros urbanos se explica peio fato de que "as Capitais e as Cidades de maior desenvolvimento são as áreas consideradas viáveis para o desenvolvimento da 'Operação Escola', no período de 1968 a 1970"." Qual o resultado quantitativo desse esforço? Partindo dos dados fornecidos pelo Serviço de Estatística da Educação e Cultura do MEC,(20) comparemos o período abrangido pela Operação com períodos cronologicamente equivalentes, seguindo a evolução quantitativa do ensino primário de 1960 a 1972. Temos o seguinte resultado: no período 1960-62, o ensino primário cresceu 14,5%; em 62-64, 22,5%; em 64-66, 6,4%; em 66-68, 16,7%; em 68-70, 16,7% e em 70-72, 17,9%. Como se vê, mesmo limitando-se ao aspecto quantitativo, a "Operação Escola" não conseguiu resultado significativo. Isso parece confirmar "a idéia já firmada de incapacidade para solucionar esse angustiante problema". E a esperança de que tal idéia "será substituída pela expectativa de que, dentro de pouco tempo, o problema poderá ser resolvido", resulta frustrada.

Voltamos, assim, ao problema que constitui a preocupação central deste estudo: em face de nossa desintegração cultural, como poderemos, através da educação, sistematizar a tendência à inovação solicitando deliberadamente o poder criador do homem? Dadas as dificuldades encontradas ao nível da análise quantitativa, passemos agora a algumas considerações de ordem qualitativa.

O fracasso da abordagem quantitativa, resulta, como se mostrou, de uma perspectiva conservadora, isto é, da atitude segundo a qual a sociedade no seu todo é considerada satisfatória, não carecendo senão de retoques superficiais; nesse contexto, o papel da escola será preservar o tipo de sociedade prevalecente (os padrões dominantes) e garantir-lhe cada vez maior eficiência e produtividade. Aqueles que se situam nessa perspectiva acreditam ingenuamente (no sentido epistemológico da palavra) que seja possível operar mudanças quantitativas sem mudanças qualitativas.

18. INEP - "Operação ..., p. 279.

19. INEP - "Operação ..., p. 279.

20. Cf. CUNHA, L.A.R. - Op. c/t., p. 28.

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Essa crença leva, pois, não apenas à hipertrofia da quantidade em detrimento da qualidade (como se pensa correntemente) mas à própria frustração das metas quantitativas. Com efeito, as mudanças quantitativas, na medida em que se tornam significativas, acarretam, inevitavelmente, mudanças qualitativas.

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A partir das considerações supra, podemos perceber claramente como a polemica "quantidade versus qualidade" se detém nas aparências sem atingir o fundo do problema. Na verdade, se nos referimos ao caráter conservador da abordagem quantitativa, não se deve inferir daí que estejamos considerando que a abordagem qualitativa enfatiza o papel inovador da educação. Ao contrário. Foi preciso frisar o caráter conservador no primeiro caso, uma vez que tal caráter é geralmente mascarado pêlos argumentos em defesa da quantidade, os quais costumam aparecer envolvidos por idéias tais como o "mito do progresso", "modernização", a "educação de massas", as "tecnologias avançadas", o "desenvolvimento", a "democratização", "educação para todos", etc. No que diz respeito aos'"defensores da qualidade", sua terminologia já evidencia, de per si, o caráter conservador. Aqui, as expressões mais freqüentes são: "manter o nível", "assegurar os padrões", "preservar a qualidade", "aprimorar", "garantir a excelência do ensino", "atingir níveis de excelência",(21) etc.

Conseqüentemente, se não é possível modificar significativamente a quantidade sem modificações qualitativas, a recíproca também é verdadeira.

Não se deve pensar, porém, que o problema será resolvido pela conciliação de ambos os aspectos, pela sua soma ou justaposição. Esta maneira de encarar a contradição quantidade-qualidade reflete uma atitude formalista. É preciso não apenas "pensar a contradição", mas "pensar por contradição",(22) isto é, ser capaz de pensar num só ato tanto a qualidade como a quantidade que nada mais são do que dois pólos contraditórios mutuamente inclusivos de um mesmo processo (o processo educativo) que deve ser revisto no seu todo. A atitude formalista, encarando quantidade e qualidade como dois pólos mutuamente exclusivos acarreta as flutuações que caracterizam o ensino brasileiro; busca-se, a partir da idéia da justaposição dos pólos

21. "Os princípios inconscientes da definição social da excelência escolar - definição que não é menos arbitrária (embora sócio-logicamente necessária) quando recebe os nomes de "inteligência", "brilhantismo" ou "talento" - têm muito mais possibilidades de se expressarem ou de se revelarem através das operações de cooptação pelas quais o corpo de professores seleciona aqueles que considera dignos de perpetuá-lo ...". BOURDIEU, R - "A excelência e os valores do sistema de ensino francês, in A Economia das Trocas Simbólicas, cit., p. 232.

22. PINTO, A. V - Op. c/t., p. 21 I.

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mutuamente excludentes, contrabalançar ora os excessos da qualidade, ora os excessos da quantidade num eterno ir e vir, sem que o núcleo do problema (a desintegração cultural brasileira) seja atingido (a não ser aleatoriamente e, até mesmo, apesar do aparelho escolar).

Também em relação ao que acabamos de dizer, a análise do ensino primário é particularmente eloqüente.

Uma vez que a nossa desintegração cultural foi caracterizada a partir da noção de unidade cultural, ou seja, a partir da constatação de que a grande maioria não participa das conquistas culturais, poder-se-ia crer que o problema estaria resolvido simplesmente com a extensão da escola primária (tal como a temos atualmente) a todos ampliando em seguida a sua duração (em termos de anos de escolaridade). Surge, aí, o que poderíamos chamar "a ilusão da escola única obrigatória". Tal ilusão consiste na pretensão de se superar o dualismo elite versus massa (a um tempo, agente e produto da desintegração cultural) através de "reformas institucionais (principalmente o prolongamento correlativo da escolaridade obrigatória e do período de 'tronco comum')... Nada disso ocorre porque a orientação apenas registra um fato acabado desde o começo. (...) A maior parte das crianças e dos pais das classes populares estão aliás, em graus diferentes, totalmente conscientes disto".(23) Essa consciência, ainda que não tematizada, se manifesta no Brasil através dos altos índices de evasão e repetência registrados pelo nosso ensino primário. O Informe sobre a "Operação-Escola" descreveu a "produtividade do ensino primário brasileiro", da seguinte maneira: "O nosso ensino primário apresenta condições baixíssimas de produtividade. Assim: cerca de 1/3 das crianças em idade escolar não frequenta a escola; o índice de evasão é de, no mínimo 34%; cerca de 50% dos alunos de nível primário estão na primeira série escolar; o custo do aluno aprovado corresponde a duas vezes e meia, em média, ao custo do aluno-ano".(24) Em novembro de 1974, após minuciosa análise dos dados publicados pela Fundação IBGE nos volumes de 1972 e 1973 do "Anuário Estatístico do Brasil", o professor Casemiro dos Reis Filho resumiu em doze pontos suas conclusões, das quais destacamos:

"Entre 1969 e 1972, a repetência e a evasão escolar acarretaram a perda de 67% da matrícula inicial. Respectivamente: 5.719.518 alunos no l º semestre de 1969 e l .904.303 alunos na 4a série, em 1972.

23. ESTABLET, R. - Op. c/t., pp. 95-96.

24. INEP - "Operação-Escola, cit, p. 270.

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Somando-se os não matriculados, os repetentes e a evasão escolar, temos dois terços da população em idade escolar obrigatória, excluídos da escola elementar.

A alta evasão escolar indica que a escola primária não consegue fazer-se necessária à população brasileira. Seus padrões seletivos não correspondem às necessidades e aspirações dos brasileiros".(25)

Tudo isso mostra que a escola, tal como está constituída, é um reflexo da organização social, ficando intacta esta, não será possível, através da educação escolar, sistematizar a tendência à inovação. Daí que, reformas institucionais que pretendam ampliar quantitativamente ou preservar as conquistas qualitativas do aparelho escolar resultam ineficazes em face do problema da nossa desintegração cultural. Essa constatação permite explicar - parece - boa parte das dificuldades encontradas na implantação da Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus (Lei 5692/71).

É preciso, pois, encarar a educação para além de suas fronteiras, situando-a no seio da prática social global e procurando compreendê-la ali onde aparece como categoria mediadora.

4. ESCOLA E CONTROLE SOCIAL Apontamos para o fato de que a sociedade brasileira se caracteriza por laços fracos e nos referimos à educação cujo papel seria, nesse caso, o fortalecimento dos laços da sociedade. Pois bem. O Estado brasileiro parece estar pretendendo operar esse fortalecimento através do controle social escolar. Luiz Pereira,(26) após referir-se à tendência generalizada para "conceber-se quase exclusivamente o controle social como o conjunto de forças sustentadoras ou mantenedoras de qualquer estrutura social", distingue duas formas de controle social: controle social conservador e controle social inovador. Portanto, a tendência à inovação não é incompatível com o controle social. E poderíamos mesmo afirmar que a sistematização da tendência à inovação não poderá ser feita sem controle social.

Cumpre, no entanto, aprofundar a análise, desfazendo, aqui, um possível equívoco. No Brasil, talvez exatamente por causa da fraqueza dos laços sociais e em

25. REIS FILHO, C. - A Revolução Brasileira e o Ensino, pp. 10-11 (mimeografado).

26. PEREIRA, L, - "História e Planificação", in Ensaios de Sociologia do Desenvolvimento, 1970, p. 13.

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virtude já de uma herança histórica, o Estado tende a assumir o papel de representante (não apenas formal, mas concreto) de toda a sociedade. Surge, então, uma questão da qual não se pode esquivar: no quadro da nossa desintegração cultural, o grupo que empolga o poder estatal não pertence ele à elite? Logo, o Estado não poderá representar todos os grupos sociais, em especial a maioria marginalizada das conquistas culturais, por mais boa-vontade, esforço e perspicácia de que seja dotado. Assim, acabará por projetar em toda a comunidade a maneira como vê o país, bem como os problemas que o afetam mais de perto; quando muito - e isso também não fará senão agravar o problema - desenvolverá atitudes assistencialistas. Tal circunstância levará o Estado a utilizar a escola como forma de controle social conservador. No caso brasileiro, para que o Estado possa desempenhar em relação ao aparelho escolar um papel decisivo em face do problema central deste estudo, ele deverá se constituir numa agência de controle social inovador.

No item anterior, verificamos que os padrões seletivos da escola primária não correspondem às necessidades e aspirações dos brasileiros. Ora, não se faz um país marginalizando a maioria dos seus cidadãos. Além disso, não podem os membros da elite arvorar-se em representantes e intérpretes das aspirações de todo o povo. Como podemos, então, saber quais são as necessidades e aspirações dos brasileiros? Parece-me que só há uma resposta: ouvindo-os, aprendendo com eles, confiando na sua capacidade de decidir a respeito do que é ou não melhor para eles, debatendo, discutindo criticamente as diversas alternativas. Nota-se, porém, relutância e uma certa desconfiança das elites a respeito da capacidade do povo de autodirigír-se. A experiência mostra, porém, que não há razões sérias para essa desconfiança, de modo especial no tocante à educação. Durmeval Trigueiro(27) em estimulante artigo reforça o que acabamos de dizer: "Dessa lentidão das elites confrontada com a rapidez do próprio fenómeno, resulta curioso paradoxo: a consciência educacional se desenvolve mais expeditamente no povo que nas suas camadas dirigentes. Porque estas representam o elitismo conservador, ao qual certo estilo de educação assegura a perpetuação de antigos privilégios, enquanto aquele retira a consciência do valor da educação de sua própria práxis. Ele tem a consciência natural, desestudada, eu diria vegetativa, da importância da educação". Já fizemos notar que essa atitude das elites

27. TRIGUEIRO MENDES, D. - "Para um balanço da educação brasileira", Revisto de Cultura Vozes, n. 2, 1975, p. 6.

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resulta do fato de se considerarem a parte culta, reduzindo as massas à parte inculta da sociedade. E já apontamos também o equívoco dessa concepção.

A verdade é que esse fenômeno nos tem privado até agora de compreender seriamente as autênticas

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manifestações culturais do nosso povo, sua capacidade de organização, criação e reprodução da cultura.

Em conclusão: em face do quadro da desintegração cultural brasileira, a educação desempenhará o papel de reforçamento dos laços sociais na medida em que for capaz de sistematizar a tendência à inovação, solicitando deliberadamente o poder criador do homem. E ela só poderá fazer isso voltando-se para as formas de convivência que se desenvolvem no seio dos diversos grupos sociais estimulando-os na sua originalidade e promovendo o intercâmbio entre eles a partir dos elos que, embora tênues, os unem entre si num mesmo todo social.

Evidentemente que esse objetivo ultrapassa o âmbito do processo educativo como tal e, "a fortiori", o da educação escolarizada. Contudo, se o estudo de problemas da educação brasileira não levar em conta o quadro cultural mais amplo, ele terá sido estéril. E os recursos empregados serão desperdiçados. Neste caso, os defensores da desescolarização terão razão pelo menos num ponto: o argumento referente ao desperdício de recursos. E bastará esse argumento para fazer desabar em ruínas todo o arcabouço do aparelho escolar.

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CAPÍTULO QUINZE

ANÁLISE CRÍTICA DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR BRASILEIRA ATRAVÉS DAS LEIS Nº. 5.540/68 E 5.692/71

1.INTRODUÇÃO:(1)

Assim como ocorreu com outros setores, também a educação a partir de 1964 tem sido alvo de uma inflação legiferante sem precedentes. Em meio à multiplicidade de leis, decretos, pareceres, indicações, resoluções, portarias, etc, merecem, todavia, destaque as Leis 5.540/68 e 5.692/71 que, juntas, se complementam na ambição de haver reformado toda a organização escolar brasileira. A Lei 5.540 cuida do ensino de 3º grau, sendo por isso chamada de lei da reforma universitária, enquanto que a 5.692 estatui a reforma do ensino de Io e 2º graus. Suas virtudes são, via de regra, ostentadas por contraposição à Lei 4.024/61 que fixou as diretrizes e bases da educação nacional, e que passa, então, a ser a lei reformada. Nota-se que, embora isso seja frequentemente esquecido, é inquestionável que as Leis 5.540 e 5.692 tenham reformado a Lei 4.024. Em contrapartida, aquilo que é insistentemente lembrado e dado como inquestionável, deve ser posto em questão: teriam as Leis 5.540 e 5.692 reformado a organização escolar brasileira? É curioso notar que, enquanto em torno da Lei- 5.540 reina um silêncio quase geral, a Lei 5.692 vinha sendo objeto de grande alarido. Talvez a explicação esteja no fato de que a lei de reforma universitária tenha surgido num momento de crise nacional

1. Publicado in GARCIA, W. E. (organizador) - Educação Brasileira Contemporânea: Organização e Funcionamento, São Paulo, Ed. McGraw-Hill do Brasil, 1976. Agradecemos à Editora McGraw-Hill a autorização para incluir este texto no presente volume.

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e após manifestações veementes de protestos dos estudantes em geral, e de grande parte do corpo docente, enquanto que a reforma do 1º e 2º graus ocorreu em meio à euforia do governo Mediei e do "milagre brasileiro". Atualmente, as manifestações, se não desapareceram, são bem mais moderadas. Afinal, o momento não é de euforias. Entretanto, o contraste não deixa de chamar atenção. Com efeito, boa parte dos professores que em 1972 foram mobilizados para a cruzada da reforma, acorrendo entusiasticamente, quatro anos antes haviam participado dos protestos, atendendo com igual presteza à mobilização contra a reforma universitária. Isto faz pensar nos móveis de sua ação e na consistência das razões invocadas numa e noutra situação.

Esses comentários nos ajudam a situar a posição da Legislação no quadro geral do ensino. Na organização escolar brasileira atual, o estudo da legislação do ensino é feito, via de regra, nas cadeiras de Estrutura e Funcionamento do Ensino. Tendo em vista a atitude formalista e acrílica que predomina no desenvolvimento das programações dessa disciplina, a legislação acaba por se transformar numa matéria árida, insípida, aversiva. Isto porque, limitando-se à apresentação e análise dos textos legais, tais programações acabam por enfatizar o ideal em detrimento do real, tomando

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o dever-ser pelo ser; a norma pelo fato. Contrariamente à tendência dominante, pretendemos mostrar, neste estudo, que a legislação do ensino constitui um referencial privilegiado para a análise crítica da organização escolar.

Fará isso defendemos a tese segundo a qual para se compreender o real significado da legislação não basta ater-se à letra da lei; é preciso captar o seu espírito. Não é suficiente analisar o texto; é preciso examinar o contexto. Não basta ler nas linhas; é necessário ler nas entrelinhas. Na explicação dessa tese tomaremos as Leis 5.540 e 5.692 em contraposição à Lei 4.024, examinando sucessivamente cada um dos três pontos acima mencionados. Evidentemente que esses aspectos se relacionam intimamente de tal modo que a análise de um repercute diretamente no outro. Contudo, por razões didáticas, eles serão examinados separadamente. Os limites (de espaço) desse trabalho não nos permitem explorar profundamente o tema proposto. Trataremos, contudo, de esboçar um roteiro daquilo que, a nosso ver, poderá se constituir num modelo suscetível de ser desenvolvido mais amplamente em situações ulteriores.

2. A LETRA E O ESPÍRITO Quando se indaga a respeito do espírito de uma lei, o que se pretende saber é qual a sua fonte inspiradora, qual a sua doutrina, quais os princípios que a enformam;

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enfim, como se diz correntemente, qual a sua "filosofia". A maneira imediata de se responder a essa pergunta é verificar o que é que a própria lei indica, literalmente, a respeito. Acredita-se que é principalmente através da explicitação dos seus objetivos que se revela o espírito de uma lei. Testemos essa crença, no caso da Lei 5.692/71, comparando os seus objetivos com aqueles definidos pela Lei 4.024/61. Observemos o Quadro l, na página seguinte.

O Quadro l mostra que, no tocante à letra, as duas leis coincidem em termos de objetivos. Assim, quanto aos objetivos gerais da educação a Lei 5692 incorpora o artigo l º da 4024, sintetizando-o em termos do ensino de 1º e 2º graus. No item B, a referência ao "pré-adolescente" se deve ao fato de que a Lei 5.692 estendeu o ensino de 1º grau para oito anos, abrangendo, por conseguinte, também a faixa dos l l aos 14 anos. Do ponto de vista da formulação, na Lei 5.692, optou-se por uma fórmula condensada ao invés da redação descritiva da Lei 4.024, deixando-se as especificações para o Conselho Federal de Educação através do disposto no art. 4º § 1º, item l ("O Conselho Federal de Educação fixará para cada grau as matérias relativas ao núcleo comum, definindo-lhes os objetivos e a amplitude"). De fato, já a 1º de dezembro de 1971, o C.FE. fixou, através da Resolução nº 8, as matérias do Núcleo Comum: Comunicação e Expressão, Estudos Sociais e Ciências (inclusive Matemática). E determinou, como objetivo da área de Ciências, o desenvolvimento do pensamento lógico e que essas matérias deveriam ser ministradas nas primeiras quatro séries, predominantemente sob a forma de atividade. Vê-se, assim, que a formulação analítica da Lei 4024 ("desenvolvimento do raciocínio e das atividades de expressão da criança e a sua integração no meio físico e social") é reconstituída integralmente. Finalmente, no item C ambas as formulações coincidem. O adjetivo "integral" não constava do anteprojeto; seu acrésdmo deveu-se à emenda do senador João Calmon que a justificou da seguinte forma: "a inclusão da palavra "integral" se impõe para que se dê perfeito entrosamento com o que dispõe a Lei nº 4.024, em seu art. l º, afirmando que a educação nacional deve visarão desenvolvimento integral da personalidade humana".(2)

Pode-se perceber, por esse simples exemplo, que a análise da letra das duas leis no tocante aos objetivos nos conduz à conclusão de que ambas estão impregnadas do mesmo espírito. Ressalta daí uma contradição das abordagens convencionais da legislação do ensino. Com efeito, tais abordagens, de um lado, admitem uma dupla

2. Cf. Diário do Congresso Nacional (Seção II), 13 de julho de 1971, p. 3.061 (emenda nº 124).

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QUADRO l - Comparação entre os objetivos das Leis 4.024 e 5.692

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crença: a) os objetivos exprimem o espírito das leis; b) a lei mais recente (no caso a 5692), inova substancialmente em relação à anterior (no caso, a 4024); e de outro lado, limitam-se à letra da lei. Ora, o caso examinado revela que, se nos limitamos à letra, devemos rejeitar corno falsa pelo menos uma daquelas crenças, isto é: ou os objetivos não exprimem o espírito das leis, ou a Lei 5692 não representa uma efetiva inovação em relação à Lei 4024. Como resolver esse dilema?

3. O TEXTO E o CONTEXTO O aprofundamento da questão supra nos permitiria estabelecer uma distinção, embora sutil, entre a letra e o texto. Na verdade, o exame do problema dos objetivos no texto da lei não se esgota na análise da letra, isto é, a definição explícita de objetivos. Estes, ao contrário, se insinuam em diferentes partes do texto, emergindo, com freqüência, da estrutura didático-pedagógica ou administrativa. Exemplificando: A Lei 5692 define como objetivo do ensino de 2º grau a "formação integral do adolescente" (art. 20). Entretanto, propõe uma estrutura didático-pedagógica segundo a qual "o currículo pleno terá uma parte de educação geral e outra de formação especial, sendo organizada de modo que no ensino de 2º grau predomine a parte de formação especial" (art. 5º, § 1º, alínea b). E determina em seguida que "a parte de formação especial do currículo terá o objetivo de habilitação profissional no ensino de 2º grau" (art. 5º, § 2º, alínea a). Portanto, no ensino de 2º grau deve predominar a formação especial que tem como objetivo a habilitação profissional. Diante disso, é lícito indagar se essa ênfase na habilitação profissional é compatível com a formação integral do

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adolescente. Conclui-se, pois, que a análise do próprio texto da lei nos põe de sobreaviso quanto aos riscos de se tomar as definições de objetivos ao pé da letra. Entretanto, a solução do dilema resultante das considerações efetuadas no item anterior extrapola o âmbito do texto, obrigando-nos a examinar o contexto em que surgiu cada uma das leis mencionadas.

Examinar o contexto significa, neste caso, analisar a sociedade brasileira nos períodos pré e pós 1964. A Revolução de 1964 aparece como um divisor de águas. Revolução traz a idéia de ruptura. E possivelmente está aí uma das fontes da crença relativa à inovação substancial das leis 5540 e 5692 em face da Lei 4024. Cabe, no entanto, perguntar: houve, de fato, ruptura? E se houve, em que consistiu e em que níveis ela ocorreu? Evidentemente que tais questões só podem ser respondidas à luz do contexto. Por mais que dissecássemos o texto, jamais poderíamos extrair dele as respostas que buscamos.

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A Lei 4.024/61 resultou de uma longa gestação que teve início em 1946 em decorrência da promulgação da Constituição de 18 de setembro daquele ano. A esta época estávamos em plena vigência do modelo que os economistas convencionaram chamar de "substituição de importações". Esse modelo se configurou após a Revolução de 1930 e seu êxito deveu-se à conjugação de uma série de fatores favoráveis. A crise do café, como conseqüência da crise mundial da economia capitalista nos colocou diante da necessidade de produziras manufaturas até então importadas. E essa mesma crise do café torna obsoleta a ideologia do "agriculturalismo" que se baseava na crença na "natural vocação agrícola do Brasil". A industrialização surge, então, como uma bandeira em torno da qual se unem as diferentes forças sociais. Industrialização e afirmação nacional se confundem. Industrialismo se torna, praticamente, sinônimo de nacionalismo. Até 1945, por força do clima internacional favorável, o nacionalismo assume colorações fascistas. A partir dessa data, renascem as idéias liberais, que passam a constituir o pano de fundo do nacionalismo que evolui num crescendo. E, apesar do aumento dos interesses externos no processo de industrialização do país, tais interesses não chegam ainda a se contrapor de modo antagônico aos interesses nacionais. Nessas condições, o liberalismo se revela uma ideologia suficientemente elástica para aglutinar as diferentes forcas empenhadas na industrialização através do modelo de substituição de importações. O antagonismo, porém, vai se acentuando, de modo a fazer emergir já na fase final do processo de substituição de importações (governo de juscelino) uma contradição que irá se constituir no centro da crise dos inícios dos anos 60. Trata-se da contradição entre o modelo econômico e a ideologia política vigentes. É necessário, pois, explicitar essa contradição, dado que aí está a chave para se compreender o contexto que, por sua vez, nos permitirá compreender o problema das leis de reforma da organização escolar.

Para facilitar a explicação da contradição acima indicada, vamos referir as principais forças envolvidas no processo a um esquema de representação partidária. Tendo em vista a descaracterização ideológica dos partidos políticos no Brasil, o esquema em questão resultará, inevitavelmente, numa simplificação.(3) Simplificação útil,

3. Apesar de aceita tranquilamente, não se deve, entretanto, exagerar a referida descaracterização ideológica. Os estudos de caráter científico tendem a dissipar essa crença. Ver, a respeito, LAMOUNIER, B. et alii - Os Partidos e as Eleições no Brasil, especialmente, pp. 17-44, passim; SOUZA, M. C. Campello - Estado e Sistema Partidário no Brasil (tese de doutoramento); SOARES, G.A.D. - Sociedade e Política no Brasil, Cap. VI (A Formação dos Partidos Políticos Nacionais).

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porém, como recurso didático de explicação, tanto mais que, no caso, não está em jogo afiei caracterização dos partidos políticos, mas a captação da contradição antes referida.

Feitas essas ressalvas, podemos identificar a UDN (União Democrática Nacional) com os interesses externos, vale dizer, americanos, no processo de industrialização. A UDN surgira do Partido Democrático que fora fundado em 1926 por um grupo dissidente do PRP (Partido Republicano Paulista), que, então, dominava soberano a política brasileira, apoiado pêlos Partidos-Republicanos Estaduais. O referido grupo dissidente ligava-se, principalmente, aos interesses das firmas exportadoras de café. Quando, em fins de 1944 e inícios de 1945, ficara evidente a iminente derrocada da ditadura do Estado Novo, os diferentes grupos começam a se movimentar com o objetivo de se organizar em partidos políticos. Então os remanescentes do Partido Democrático Paulista fundaram a UDN. Suas bases estavam agora ampliadas em virtude do avanço da industrialização que trouxe no seu bojo o processo de urbanização e a progressiva penetração de investimentos externos. Configurou-se, assim, como um partido predominantemente urbano acolhendo em seu seio os círculos ligados às altas finanças, banqueiros, diretores, advogados e "public relations" das Empresas Internacionais, com ressonâncias também nas chamadas classes médias urbanas. Em seguida foram articulados os outros dois grandes partidos nacionais, o PSD e o PTB, estes sob direta inspiração de Getúlio. Esses três partidos dominaram o cenário político brasileiro até sua extinção através do Ato Institucional nº 2 de 27 de outubro de 1965. O PSD (Partido Social Democrático) herdou diretamente a máquina política montada e cultivada por Getúlio Vargas durante os quinze anos contínuos de poder. Foi organizado a partir dos interventores estaduais, o que lhe

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permitiu contar com ampla base em todo o país, aglutinando os proprietários de terras (e com eles, em face da persistência do "coronelismo" no campo, praticamente todo o eleitorado rural), os empresários industriais menos comprometidos com os interesses externos e, principalmente, os integrantes e beneficiários da burocracia governamental que se ampliara consideravelmente no período 1930-45. Se nos arriscássemos a classificar UDN e PSD como partidos burgueses, poderíamos afirmar, "grosso modo" que o primeiro representaria os interesses da burguesia internacional, enquanto que o segundo seria o partido da burguesia nacional. O PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) foi criado por Getúlio Vargas com o objetivo de captar o apoio e os votos do operariado que já se constituía numa força política respeitável, dada a aceleração do processo de industrialização. O ponto

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de partida para a sua organização estava na infra-estrutura sindical, de caráter corporativista, que Vargas soubera montar e cultivar através de uma liderança dócil. O próprio Getúlio, posteriormente, assim explicou a criação do PTB: "como a mentalidade dos trabalhadores não se adaptasse bem à dos antigos políticos, criou-se uma nova organização partidária, que se denominaria Partido Trabalhista Brasileiro".(4) Os demais partidos, ou eram inexpressivos, ou sua expressão tinha caráter apenas regional. O PCB (Partido Comunista Brasileiro) vinha crescendo rapidamente com a retomada do processo democrático tendo sido, porém, declarado ilegal em 1947. O PSP (Partido Social Progressista) de Ademar de Barros, dado o seu forte apelo populista e graças a uma máquina eleitoral dotada de enorme capacidade de arrebanhar votos, tornou-se bastante forte no Estado de São Paulo. Não logrou, entretanto, extravasar os limites paulistas e projetar-se como partido nacional. Dos três grandes partidos, a situação se consubstanciou na aliança PTB-PSD, representando a UDN a oposição. Eis porque já se disse que a história política do Brasil a partir de 1945 se confunde com a história da luta da UDN pelo poder.(5) Dada a origem tanto do PSD como do PTB, compreende-se que a figura central da política brasileira de 1930 a 1964 seja Getúlio Vargas. Daí que a motivação básica da UDN, antes de qualquer formulação ideológica mais clara, era o antigetulismo.

De posse desse esquema de representação partidária, tentemos agora explicitar a contradição em que desembocou o processo de industrialização.

Dissemos antes que o êxito da industrialização através do modelo de substituição de importações deveu-se à conjugação de uma série de fatores favoráveis. De fato, a crise do café combinada com a crise geral da economia capitalista permitiu que as diferentes forcas se unissem em tomo da bandeira da industrialização. Os empresários nacionais (burguesia nacional), com exceção das oligarquias rurais mais aferradas ao tradicionalismo mas que haviam perdido a hegemonia com a Revolução de 1930, evidentemente estavam interessados na industrialização, uma vez que seriam os seus beneficiários diretos e imediatos dado que lhes caberia a condução do processo. Os empresários internacionais (burguesia internacional) também estavam interessados pelas seguintes razões: 1) tendo em vista as medidas protecionistas do governo em relação à indústria nacional, a competição tomava-se difícil. Em face do risco de perder o promissor mercado brasileiro, era preferível negociar com o governo brasileiro a

4. SKIDMORE, Th. - Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 82.

5. Cf. BASBAUN, L. - História Sincera da República, vol. 3, p. 230 e vol. 4, p. 75.

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instalação de indústrias no país. Tais negociações revelavam-se altamente vantajosas dados os incentivos fiscais e a doação das áreas necessárias à instalação das referidas indústrias; 2) a produção de bens junto às fontes de matérias-primas e aos locais de consumo propiciava grande economia de fretes, evitando-se o transporte das matérias-primas para a matriz, bem como o transporte dos bens manufaturados para o mercado consumidor; 3) a possibilidade de se contar com uma mão-de-obra barata, porque abundante, reduzia enormemente os custos de produção nas filiais em relação à matriz, onde a mão-de-obra, sendo escassa, era bem mais cara. Esses fatores faziam da inserção no processo de industrialização do Brasil uma atividade bastante lucrativa para os empresários internacionais. As classes médias se interessavam pela industrialização, pois viam nela a ampliação das possibilidades de concretização de suas aspirações de ascensão social. O operariado, as lideranças operárias e as incipientes forças de esquerda apoiavam a industrialização, pois a consideravam uma condição necessária à libertação nacional. Em 1945, quando se reabre o processo democrático, essas diferentes forças vão lutar não pró ou contra a industrialização, mas pelo controle do processo de industrialização. A coligação PTB-PSD representa, embora palidamente, a aliança do operariado (das forças de esquerda?) com a burguesia nacional. Nas suas origens o PTB, como se viu, não podia ser considerado um partido de esquerda, embora capitalizasse o potencial político do operariado. A UDN representa a burguesia internacional, capitalizando as simpatias de consideráveis setores das classes médias. Ela tenta assumi r o controle político com Eduardo Gomes, em 1945, mas perde para Dutra, do PSD, apoiado pelo PTB e Getúlio. Tenta novamente em 1950 perdendo, desta vez, para Getúlio do PTB, aliado ao PSP e com o apoio tácito do PSD (o candidato do PSD, Cristiano Machado, indicado por exigência do Presidente Dutra acabou sendo preterido em favor de Getúlio pêlos políticos pessedistas que controlavam a máquina governamental). Em 1955, com Juarez Távora, faz nova tentativa perdendo, então, para Juscelino Kubitschek do PSD,

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novamente com o apoio do PTB. Sua última tentativa eleitoral se deu em 1960, com Jânio Quadros, quando saiu vitoriosa. Sua conquista, entretanto, revelar-se-ia, logo a seguir, ilusória. A cada tentativa fracassada, a UDN conspirava. Conspirou em 1950, levantando a questão da maioria absoluta e tentando impedir a posse de Getúlio. Conspirou em 1954, provocando o suicídio de Getúlio. Conspirou em 1955, levantando novamente a questão fictícia da maioria absoluta e tentando, de várias formas, impedir a posse de Kubitschek. Conspirou em 1961, levando à renúncia de Jânio e tentando impedir a posse de João Goulart. Finalmente, conspirou em

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1963 e 1964, provocando a deposição de Jango. Em todo esse período o pano de fundo ideológico foi o liberalismo. Todos faziam profissão de fé liberal-democrática, assumindo o liberalismo os mais variados matizes. E o denominador comum da industrialização permitiu que os conflitos fossem absorvidos pelo jogo democrático. Quando, porém, ao ser transposto o limiar dos anos 60, esgotou-se o modelo de substituição de importações e a bandeira da industrialização perdeu sentido, as contradições vieram à tona, rompendo anteriores alianças e forçando redefinições. Então, a verdadeira, ou melhor, as verdadeiras faces do liberalismo ficaram expostas. A história brasileira pós-45 documenta bem a condição histórica do liberalismo como ideóloga típica de classes dominantes; enquanto estas não estão ameaçadas, ele tem vigência. Quando, porém, paira sobre elas alguma ameaça mais séria, o liberalismo se esboroa. Retenhamos essa observação, pois ela será de capital importância para entendermos o problema da legislação escolar. Antes, porém, devemos esclarecer como se deu o esgotamento do modelo de substituição de importações e qual a contradição que daí emergiu.

O governo de Juscelino Kubitschek logrou relativa calmaria política dando livre curso às franquias democráticas, graças a um equilíbrio que repousava na seguinte contradição: ao mesmo tempo que estimulava uma ideologia política nacionalista dando sinal verde para a formulação e expressão do nacionalismo desenvolvimentista, no plano econômico levava a cabo a industrialização do país através de uma progressiva desnacionalização da economia. Recorde-se que, por ocasião do l º e 2º governos de transição entre a morte de Getúlio e a posse de Kubitschek, a UDN estava no poder. Café Filho, embora pertencesse ao PSP, tendo em vista que a UDN havia liderado a conspiração, constituíra um ministério predominantemente udenista. Foi então que Eugênio Gudin, Ministro da Fazenda, fez baixar a Portaria l 13 da SUMOC que concedia grandes vantagens ao capital estrangeiro. Juscelino, tendo assumido o governo, não revogou essa portaria. Ao contrário, utilizou-a como instrumento para completar o processo de substituição de importações, atraindo as empresas estrangeiras para implantar; desta vez, as indústrias de consumo durável, principalmente as automobilísticas. Essas indústrias, sendo do tipo capital-intensivo, exigiam grandes somas de investimentos. Conseqüentemente, sua implantação imediata só foi possível a parti r das poderosas empresas internacionais. Estas tenderiam, em seguida, a dominar o panorama econômico, absorvendo ou colocando em sua órbita boa parte das empresas nacionais. Tal tendência, entretanto, era incompatível com a ideologia política do nacionalismo desenvolvimentista. O país se viu, então, diante da

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seguinte opção: ou compatibilizar o modelo econômico com a ideologia política nacionalizando a economia, ou renunciar ao nacionalismo desenvolvimentalista ajustando a ideologia política à tendência que se manifestava no plano econômico. Como se comportaram as principais forças sócío-políticas em face dessa alternativa? À medida que se consolidava o processo de industrialização, assistia-se a uma progressiva recomposição dos grupos envolvidos. A burguesia nacional fora sendo levada a enfatizares seus caracteres burgueses em detrimento de suas características nacionais, fazendo causa comum com os interesses internacionais.(6) Com isto, rompia-se a aliança PTB-PSD, uma vez que o PSD se aproximava cada vez mais da UDN, identificados os interesses de ambos. Por seu lado, o PTB era progressivamente empurrado para a esquerda, já anotamos antes que o PTB, originariamente, não podia ser caracterizado como um partido de esquerda. A alternativa concreta, entretanto, o forçava nessa direção, o que não constituía surpresa alguma, dada a sua base operária. Esse fenômeno pode ser detectado com relativa clareza na campanha pela sucessão presidencial de 1960. Embora o PSD fosse o governo e tivesse um candidato próprio, tacitamente apoiou o candidato da UDN, Jânio Quadros, contra Lott, o militar de tendência nacionalista, descompromissado com a burguesia, que frustrara os anseios golpistas da UDN em 1955 e que, agora, significativamente encabeçava uma chapa que tinha como candidato à vice-presidência precisamente João Goulart, a figura nº l do PTB. A UDN, finalmente, venceu através das urnas. Mas, como já foi lembrado, sua vitória resultou numa conquista ilusória. E isto porque Jânio, sem compromissos com partidos, não se dispôs a efetuar o ajustamento da ideologia política às tendências do modelo econômico, opção que a UDN já havia feito por antecipação. Ao contrário, dava certas demonstrações de que pretendia prosseguir e até acentuar a orientação nacionalista(7) o que se evidenciava de modo especial em relação à política externa. A UDN sentiu-se enganada e passou a fazer coro com os demais partidos fustigando severamente o Presidente, principalmente através de seu irrequieto líder Carlos Lacerda. Não tendo cultivado o apoio dos militares e não contando também com o apoio dos partidos, Jânio, isolado, viu-

6. Cf. JAGUARIBE, H. - "Brasil: Estabilidade Social pelo Colonial-Fascismo?", in Brasil -Tempos Modernos, pp. 30-

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7. Deve-se observar que nesse momento e no contexto dos interesses em jogo, nacionalismo se tornara sinônimo de esquerdismo sendo, mesmo, em certos setores mais intransigentes da direita, identificado com comunismo.

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se diante de uma única saída: renunciar. O povo talvez o apoiasse, mas não estava organizado para se manifestar e sequer cogitou-se de seu apoio. A conturbada posse de Jango estava diretamente ligada à contradição referida entre modelo econômico e ideologia política. E o novo presidente, enquanto membro das classes dominantes cuja ascensão, no entanto, se devia aos compromissos assumidos com as massas operárias e com a ideologia nacionalista, se convertera na própria personificação da contradição que agitava o país. Suas hesitações entre a pressão dos grupos econômicos dominantes e a fidelidade aos compromissos decorrentes de sua carreira política lhe permitiram equilibrar-se no poder durante algum tempo, ao mesmo tempo que prepararam a sua queda. Quando, em março de 1964, por insistência de seus conselheiros imediatos, ele procurava dar mostras que havia superado as hesitações, seu destino já estava traçado. As chamadas forças de esquerda em que presumivelmente se apoiaria estavam irremediavelmente desorganizadas e divididas. Aos primeiros sinais do movimento militar, desapareceram como cortinas de fumaça.

Estamos agora em condições de esclarecer o significado da contradição entre modelo econômico e ideologia política. Tal contradição se encontrava latente em todo o processo. Ela vai se tipificando à medida que a industrialização avança, até emergir como contradição principal, quando se esgota o modelo de substituição de importações. Com efeito, em 1960 já não dependíamos da importação de manufaturas. A meta da industrialização havia sido atingida. Desse modo não fazia mais sentido lutar por ela. Com isso, aquilo que estava oculto sob o objetivo comum da industrialização, desempenhando no decorrer do processo papel secundário, assume caráter principal emergindo na crista dos acontecimentos quando o objetivo é atingido. De fato, se os empresariados nacional e internacional, as classes médias, o operariado e as forças de esquerda se uniram em tomo da bandeira da industrialização, as razões que os levaram a isso eram divergentes. Assim, enquanto para a burguesia e para as classes médias a industrialização era um fim em si mesma, para o operariado e as forças de esquerda ela era apenas uma etapa. Por isso, atingida a meta, enquanto a burguesia busca consolidar seu poder, as forcas de esquerda levantam nova bandeira: trata-se da nacionalização das empresas estrangeiras, controle de remessas de lucros, de dividendos e as reformas de base (reformas tributária, financeira, agrária, educacional, etc). Tais objetivos eram uma decorrência da ideologia política do nacionalismo desenvolvimentista que, entretanto, entram em conflito com o modelo econômico vigente. Daí a alternativa: ajustara ideologia política ao modelo econômico ou vice-versa. A revolução de 1964 resolveu o conflito em termos da primeira

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opção.(8) Em conseqüência, a ideologia do nacionalismo desenvolvimentista foi substituída pela doutrina da interdependência, elaborada no seio da Escola Superior de Guerra.

Finalmente, podemos responder às perguntas formuladas no início deste item. A Revolução de 1964 representou algum tipo de ruptura? Em que níveis teria ocorrido a ruptura? A ruptura ocorreu no nível político; não, porém, no nível sócio-econômico. Ao contrário; a ruptura política foi necessária para preservar a ordem sócio-econômica, uma vez que a persistência dos grupos que então controlavam o poder político formal tendia a uma ruptura no plano sócio-econômico. Tal fenômeno tem sido constantemente proclamado através dos discursos políticos proferidos por ocasião das comemorações cívico-militares de 1964 para cá. Nesses discursos é uma constante a seguinte temática: as forcas armadas se levantaram para salvaguardar as tradições, restaurar a autoridade, manter a ordem, preservar as instituições... No plano político, porém, é inegável que houve "mudança radical", quando mais não fosse, pelo simples fato da permanência dos militares no poder, caso inédito na história da política brasileira.(9)

Ora, se no plano sócio-econômico houve continuidade, compreende-se que se constate uma continuidade também no plano educacional. E essa continuidade está refletida na legislação, como se pode facilmente visualizar no Quadro da página seguinte.

O Quadro II mostra que os cinco primeiros títulos da Lei 4024/61 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) permanecem em vigor. E são justamente esses títulos que consubstanciam as diretrizes, isto é, a orientação fundamental da organização escolar brasileira. Recorde-se que a Lei 4024/61 embora pretendesse, como registra em sua ementa, tratar da "Educação Nacional", limitou-se à organização escolar; e, quanto a esta, cingiu-se a regular o funcionamento e controle do que já estava implantado. Não admira, pois, que as discussões no decorrer de sua tramitação tenham se concentrado inicialmente no conflito centralização-descentra-iização(10) que dizia respeito à maior ou menor extensão das atribuições da União e

8. Cf. PEREIRA, L. - Ensaios de Sociologia do Desenvolvimento, Cap. 4 (Brasil: Etapa Contemporânea).

9. Com essa conclusão (ausência de "revolução social" de um lado, e "mudança radical" de outro), concordam os analistas das mais variadas tendências. Ver, por exemplo, STEPAN, Alfred - Os Militares na Política, especialmente, pp.

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10 e 138-154.

10. Ver, a respeito, SAVIANI. D. - Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, Cap. II.

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QUADRO II - Artigos mantidos e revogados da Lei 4,024/61

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(*) O decreto-Lei 464 de l 1/2/69 estabeleceu as normas complementares à Lei 5.540 de 28/1 1/68.

dos Estados na organização e controle das escolas, deslocando-se, depois, para o conflito escola particular-escola pública que envolveu os grupos interessados no controle das verbas públicas destinadas à instrução. Apesar da intensa repercussão resultante de ampla divulgação através da imprensa e de campanhas encetadas, a verdade é que esse segundo conflito também não passou de uma disputa secundária entre setores do grupo dominante.(11) Os verdadeiros problemas educacionais permaneceram intocados e a educação popular sequer foi considerada. A organização escolar manteve, assim, a sua característica de aparelho reprodutor das relações

11. Ver a respeito, BUFFA, E. - Ideologias em Conflito: Escola Pública e Escola Privada.

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sociais vigentes.(12) Foi depois de 1961, quando aflora a contradição antes referida entre modelo econômico e ideologia política que a educação nacional começou a se abrir na direção das aspirações populares através de medidas como o Movimento de Educação de Base (MEB), as campanhas de alfabetização de adultos, os centros de cultura popular, etc. Tais aberturas, entretanto, foram sendo feitas à margem da organização escolar regular, constituindo uma espécie de "sistema paralelo" para onde os estudantes universitários canalizavam seus anseios de reforma, compensando, assim, o não atendimento de suas reivindicações pela reforma da própria Universidade. Após 1964, cortadas aquelas alternativas e agravados os problemas em decorrência da adaptação do modelo econômico que, com o esgotamento do processo de substituição de importações, assume progressivamente as características de capitalismo de mercado associado-dependente,(13) toma-se a própria Universidade o palco e o alvo das reivindicações reformistas. Com efeito, a tendência já esboçada pela economia nos anos 50, principalmente a partir do último qüinqüênio, ao mesmo tempo que exigia relativa ampliação e fortalecimento dos setores médios para compatibilizar a demanda com a expansão da produção de bens duráveis de consumo, por um mecanismo interno estreitava cada vez mais os canais de ascensão social que são o meio através do qual se ampliam os setores médios. Em outras palavras, a modernização da economia fazia da escolarização, senão a única, pelo menos a principal via de ascensão social. Daí a forte pressão das classes médias no sentido da "democratização" do ensino superior. O impasse da Universidade vem, pois, numa linha de continuidade com o processo sócio-econômico. Mas as manifestações dos estudantes tinham por base uma continuidade também no plano político, razão pela qual se orientavam, ainda, pela ideologia nacional-desenvolvimentista. Entretanto, do mesmo modo que em termos gerais, também no plano educacional era necessária uma ruptura política para manterá continuidade social. Nesse sentido, foram tomadas várias medidas, tais como a Lei 4464/65 que regulamentava a organização e

12. Sobre a noção de educação como aparelho reprodutor das relações sociais, ver BOURDIEU & PASSERON - A Reprodução.

13. A literatura sobre o "modelo econômico brasileiro" pós-64 é abundante e, apesar das diferentes tendências, os diversos autores concordam, implícita ou explicitamente em caracterizá-lo como "capitalismo de mercado associado-dependente". Ver, por exemplo, FURTADO, C. - Análise do Modelo Brasileiro: SIMONSEN & CAMPOS - A Nova Economia Brasileira; TAVARES, M.C. - Do Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro; FERNANDES, F - Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina; entre outros.

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funcionamento dos órgãos de representação estudantil e as gestões em torno dos chamados "acordos MEC-USAID". Medidas como essas, contudo, entravam em conflito com a orientação seguida pelas reivindicações estudantis, transformando as Universidades no único foco de resistência manifesta(14) ao regime, desembocando na crise de 1968. Nesse momento, os estudantes levando ao extremo as suas pretensões, decidiram fazer a Reforma pelas próprias mãos. Ocuparam as Universidades e instalaram cursos pilotos. Em conseqüência disso, o governo, como que raciocinando em termos de "façamos a reforma antes que outros a façam", apressou-se a desencadear o processo que culminou na Lei 5.540/68 de 28 de novembro de 1968. Estava consumada a ruptura política. O Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 68 seguido dos Decretos-Leis 464 e 477 de fevereiro de 1969 deu o golpe de misericórdia na ideologia do nacionalismo desenvolvimentista que deixou o cenário político brasileiro passando a fazer parte da sua história.

Tendo compreendido o contexto, podemos desentranhar agora o espírito que presidiu à formulação das Leis 5540/68 e 5692/71. Estamos, finalmente, em condições de superar as contradições em que se enredam as abordagens convencionais da legislação do ensino. No final do item II, detectamos a existência dessas contradições ao constatar que as abordagens convencionais admitem implicitamente duas proposições incompatíveis entre si, caracterizadas no seguinte dilema: Proposição l: As abordagens convencionais admitem uma dupla crença:

a) os objetivos exprimem o espírito das leis;

b) a lei mais recente inova substancialmente em relação à lei anterior.

Proposição 2: As abordagens convencionais limitam-se à letra da lei. O dilema consiste justamente no fato (o exemplo da Lei 5692 o pôs em evidência) de que a aceitação da segunda proposição nos obriga a rejeitar como falsa uma das duas crenças contidas na proposição l. Em contrapartida, a aceitação da proposição l acarreta a rejeição da proposição 2.

Atrajetória seguida por nós consistiu em abandonar a proposição 2, extrapolando a letra da lei. Cabe agora fazer um balanço dos resultados, examinando a possibilidade

14. Dissemos "resistência manifesta" porque não se ignora a existência de outros grupos descontentes. Foi, porém, entre os universitários que o descontentamento se manifestou abertamente assumindo a forma de verdadeira agitação que ocupou as ruas das principais cidades do país.

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de aceitação da proposição l e, em caso afirmativo, as condições de aceitabilidade.

As considerações de contexto admitem a aceitabilidade da proposição l, mas, ao mesmo tempo, estabelecem rigorosamente as condições, isto é, os limites de sua aceitação. Assim, podemos admitir que as Leis 5.540 e 5.692 representam, efetivamente, uma inovação em relação à Lei 4024, E sabemos agora que se trata de uma inovação de ordem política. Podemos admitir também que os objetivos de uma lei traduzam o seu espírito. Precisamos distinguir, porém, entre objetivos proclamados e objetivos reais. Os objetivos proclamados indicam as finalidades gerais e amplas, as intenções últimas. Estabelecem, pois, um horizonte de possibilidades, situando-se num plano ideal onde o consenso, a identidade de aspirações e interesses é sempre possível. Os objetivos reais, em contrapartida, indicam os alvos concretos da ação, aqueles aspectos dos objetivos proclamados em que efetivamente está empenhada a sociedade, enfim, a definição daquilo que se está buscando preservar e/ou mudar. Diferentemente dos objetivos proclamados, os objetivos reais situam-se num plano onde se defrontam interesses divergentes e, por vezes, antagônicos, determinando o curso da ação as forças que controlam o processo. Nesse quadro, os objetivos reais podem se configurar como concretizações parciais dos objetivos proclamados mas podem também se opor a eles, o que ocorre com bastante freqüência. Neste caso, os objetivos proclamados tendem a mascarar os reais. Compreende-se então que, enquanto os objetivos proclamados coincidem exata-mente com aquilo que se explicita em termos de objetivos na letra da lei, os objetivos reais se revelam antes na forma de funcionamento da organização escolar prevista em lei e, dialeticamente, nos meios preconizados.

Entendemos agora porque os objetivos proclamados na Lei 4024 não foram revogados pelas Leis 5540 e 5692. Não se deve, porém, inferir daí que essas leis estejam impregnadas do mesmo espírito. Uma vez que a continuidade sócio-econômico só pôde ser garantida através da ruptura política, inevitavelmente o espírito acabou sendo alterado. A inspiração liberalista que caracterizava a Lei 4024 cede lugar a uma tendência tecnicista nas Leis 5540 e 5692. Enquanto o liberalismo põe a ênfase na qualidade ao invés da quantidade; nos fins (ideais) em detrimento dos métodos (técnicas); na autonomia versus adaptação; nas aspirações individuais ao invés das necessidades sociais; e na cultura geral em detrimento da formação profissional, com o tecnicismo ocorre o inverso. Ora, enquanto os princípios da Lei 4024

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acentuavam o primeiro elemento dos pares de conceitos acima enunciados, os princípios das Leis 5540 e 5692 inegavelmente fazem a balança pender para o segundo.

161 ▲

Assim, o princípio da não duplicação de meios para fins idênticos com seus corolários tais como a integração (vertical e horizontal), a racionalização-concentração, a intercomplementariedade; o princípio da flexibilidade; da continuidade-terminalidade; do aproveitamento de estudos, etc, bem como medidas como a departamentalização, a matrícula por disciplina, o "sistema de créditos", a profissionalização do 2º grau, o detalhamento curricular, e tantas outras indicam uma preocupação com o aprimora-mento técnico, com a eficiência e produtividade. Note-se que isto está em consonância com as características do grupo que ascendeu ao poder a partir de 1964, dado que este é composto de militares e tecnocratas.

Da orientação acima descrita resultaram textos relativamente sóbrios, como se pode visualizar através do Quadro II, na página seguinte.

O Quadro II evidência duas lacunas que, no conjunto, se revelam perfeitamente explicáveis, dada a orientação seguida. A Lei 5692 não foi contemplada com um Capítulo dedicado ao corpo discente o que, com certeza, deve ser tributado ao fato de que ela regulamenta o ensino destinado às crianças e adolescentes. Por outro lado, a Lei 5540 não dispõe de um capítulo dedicado exclusivamente ao Financiamento. Tal fenômeno provavelmente se explica pela não obrigatoriedade legal da gratuidade no ensino superior e pela tendência de se incentivar as Universidades a se organizarem com base no regime de Fundações. Tal não foi o caso do ensino de l º e 2º graus que, por ser gratuito e obrigatório, constitui-se num dever inequívoco do Estado. Talvez por isso a Lei 5692 tenha dedicado ao Financiamento o mais extenso de seus capítulos (nada menos do que 23 artigos), o que não deixa de ser também um indicador da tendência dominante.

162 ▲

Apesar de todo o esforço empreendido na busca de funcionalidade, uma leitura atenta dos textos de ambas as leis nos conduz à conclusão de que o objetivo em boa parte acabou por se frustrar. Com efeito, até hoje a maioria das Universidades não logrou implantar a Reforma. Da mesma forma, as medidas preconizadas pela Lei 5692 encontram grandes dificuldades para penetrar nas redes escolares dos Estados. E mais uma vez a força do contexto se impõe. A grande mudança operada pelas leis de reforma foi de ordem política, isto é, sua função foi criar um clima favorável, removendo os óbices com o fim de garantir a continuidade do processo sócio-econômico. E a organização escolar brasileira vem refletindo com relativa fidelidade as tendências dominantes no plano sócio-econômico. Isto é válido inclusive para a elaboração da própria legislação de ensino, o que nos leva ao último item do nosso roteiro.

4. AS LINHAS E AS ENTRELINHAS Quando passamos os olhos nas linhas de um texto legal, sabemos que nem tudo o que está dito ali nos é revelado pelas proposições que se encadeiam sobre a folha de papel à nossa frente. Com efeito, estamos nesse momento diante de um produto acabado. Para entendermos todo o seu significado, precisamos passar ao processo, isto é, ao modo como se produziu o produto. Em outros termos, é necessário examinar a génese da lei em questão. Esta modalidade de análise é importante porque, ao reconstituir a sistemática de elaboração das leis, nos fornece dados importantes (os chamados "dados de bastidor") para a compreensão das fórmulas que, ao cabo, se transformaram em dispositivos legais. No caso das Leis 5540 e 5692 a sistemática adotada incluiu as seguintes etapas:

1. Decreto presidencial instituindo junto ao Ministério da Educação e Cultura Grupo de Trabalho encarregado de elaborar o anteprojeto; (com prazo de 60 dias);

2. Designação dos membros e instalação do Grupo de Trabalho pelo Ministério da Educação e Cultura;3. Desenvolvimento das atividades do Grupo de Trabalho que culminam na apresentação do anteprojeto

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precedido de Relatório Geral;4. Exposição de Motivos do Ministro da Educação e Cultura encaminhando ao Presidente da República o

anteprojeto e respectivo Relatório Geral;5. Mensagem do Presidente da República encaminhando ao Congresso Nacional o anteprojeto e documentos

complementares para discussões conjuntas163 ▲

(Senado e Câmara dos Deputados) em regime de urgência (prazo de 40 dias);6. Leitura da Mensagem em Plenário e designação de comissão mista (com representantes do Senado e da

Câmara) para estudar o conteúdo da Mensagem, bem como as emendas apresentadas pêlos parlamentares;7. Discussão e votação em Plenário do resultado dos trabalhos da comissão mista;8. O documento resultante dos trabalhos do Congresso Nacional é encaminhado ao Presidente da República

para apreciação e eventual aposição de vetos;9. O documento retorna ao Congresso para exame e votação dos vetos presidenciais;10. A lei é editada e publicada no Diário Oficial da União.

A interpretação do texto legal, isto é, a tarefa de ultrapassar o que está explícito e manifesto (as linhas) para pôr em evidência o que está implícito e oculto (as entrelinhas) não poderá - se pretende ser correta - prescindir do exame da sistemática sumariada acima. Com efeito, o processo em referência, ao mesmo tempo que se explica em função do contexto, constitui o próprio contexto específico da lei e, como tal, explica o texto e nos permite compreender a forma concreta através da qual a orientação (o espírito) que se traduz na letra da lei prevaleceu sobre outras tendências possíveis. No caso, por exemplo, da Lei 4024, que seguiu uma sistemática diversa e bem mais complexa do que a adotada nas Leis 5540 e 5692, embora tenha prevalecido o espírito liberal, as marchas e contramarchas das discussões, emendas e substitutivos, bem como os conflitos que marcaram a longa tramitação acabaram por distanciar bastante o texto de 20.12.61 do anteprojeto original elaborado por uma comissão de educadores em 1947-48.

Não é possível num simples roteiro como esse reconstituir todas as etapas antes referidas. Tentaremos, pois, documentar a validade das idéias que estamos defendendo através da participação do Congresso Nacional, de vez que o material disponível a respeito é pouco acessível aos educadores, subestimando-se, em conseqüência, a sua relativa importância. Note-se que, enquanto em relação à Lei 4024 a ação do Congresso acabou por desfigurar o anteprojeto original, no caso das Leis 5540 e 5692 o papel do Congresso foi o de preservar, reforçar e, em certo sentido, aperfeiçoar a orientação impressa ao anteprojeto do Grupo de Trabalho. Tomaremos, para ilustração, a forma como o Congresso recebeu e reagiu à apresentação da Mensagem que deu origem à Lei 5540 e as emendas apostas pêlos congressistas ao anteprojeto que resultou na Lei nº 5692.

164 ▲

O anteprojeto da reforma universitária foi enviado ao Congresso pelo Presidente da República, juntamente com outras 6 mensagens. O senador Josaphat Marinho reagiu da seguinte forma: "São sete as mensagens constantes da Ordem do Dia desta sessão... Lidas que seja, como constam da Ordem do Dia, as 7 mensagens a que acabo de fazer menção, todas remetidas para deliberação no prazo do § 3º do Art. 54 da Constituição, o Congresso deverá decidir a respeito no prazo de 40 dias... O Governo levou ano e meio a estudar a matéria, a criar grupos de trabalhos, a fazer investigações e pesquisas de toda a espécie e, depois de ano e meio de estudo, de pesquisa, de levantamento de dados e de construção de projetos, remete-os todos de uma vez e para que o Congresso delibere em regime de urgência... Isto não é legislar. Isto será apenas, dolorosamente para o Congresso, homologar o arbítrio do Poder Executivo".(15)

Contrariando a questão de ordem de Josaphat Marinho, o deputado Geraldo Freire, líder da maioria, defende a leitura das sete mensagens numa única sessão afirmando que seis delas se referem ao mesmo assunto e argumentando a favor do regime de urgência: "Trata-se de matéria educacional, da reforma universitária, tão reclamada pela juventude e pêlos homens maduros deste país. De há muito se fala neste assunto, que, assim, assumiu o máximo relevo. Cumpria ao Governo, depois dos estudos necessários, enviá-lo ao Congresso, ainda em tempo útil, para que fosse solucionado no final deste ano de 1968.(16) O deputado Mário Covas volta à carga, travando um debate bizantino com o Presidente do Congresso, Pedro Aleixo, a propósito de calendário, para insistir, ainda, no inconveniente da discussão conjunta das sete mensagens: "Pois o Governo nos manda sete projetos sobre problemas como a reforma universitária; sete projetos interligados em seis mensagens. E os envia ao Congresso, e não às duas Casas em separado, criando esse problema de uma Comissão Mista que, em geral, se organiza política e não tecnicamente, desvalorizando o trabalho parlamentar das Comissões Técnicas...(17) E conclui taxativo: "A ninguém de bom senso passa despercebido que essas mensagens estão sendo encaminhadas, neste instante, desta forma, com um único objetivo: ver esses projetos aprovados por decurso de prazo". (18)

15. Diário do Congresso Nacional, 9.10.68, p. 950.

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16. ídem, p. 950.

17. ídem, p. 951.

18. ídem, p. 952.

165 ▲

Geraldo Freire responde, insistindo novamente na premência do tempo: "Afinal de contas, as mensagens deveriam ser enviadas agora mesmo, porque, se não o fossem, não o seriam mais no ano em curso, e seriam atrasadas cada vez mais. E, com isto quem perderia seria a Nação mesmo, porque de há muito se fala em reforma universitária".(19)

As mensagens foram lidas, as comissões foram designadas, e os trabalhos se processaram dentro dos prazos previstos, transformando-se o anteprojeto do Grupo de Trabalho na Lei 5540 de 28 de novembro de 1968. Conseqüentemente, "ainda em tempo útil, para que (o assunto) fosse solucionado no final deste ano de 1968" como queria o governo através de seu líder no Congresso.

Essa simples amostra permite detectar como repercutiu no Congresso a crise de 1968 que obrigou o Governo a apressar as medidas de reforma universitária. A preferência pelas comissões políticas e o conseqüente "desprestígio das comissões técnicas" referido por Mário Covas indica, por outro lado, como a exigência de continuidade sócio-econômica se refletiu na elaboração da legislação, conferindo-lhe um caráter predominantemente político. Vemos assim que, a orientação tecnicista, apresentando-se com roupagens de neutralidade política, traduz, entretanto, a ruptura política exigida pela continuidade sócio-econômica.

Dissemos antes que o papel do Congresso em relação às duas leis mais recentes de reforma geral da organização escolar brasileira foi o de preservar e, mesmo, aperfeiçoar a orientação adoiada pelo Grupo de Trabalho. Isto será ilustrado a partir das emendas ao anteprojeto que resultou na Lei 5692. Neste caso, 68 parlamentares, isoladamente ou em grupos, apresentaram um total de 357 emendas às quais devem ser acrescentadas mais 5, de autoria do relator da Comissão Mista, perfazendo, pois, 3 62 emendas. O exame das emendas revela que, com poucas exceções, elas reforçam a perspectiva do Grupo de Trabalho. Acresce ainda que, na sistemática centrada na Comissão Mista, assume papel relevante o Relator no caso, o deputado Aderbal Jurema, que havia sido membro do Grupo de Trabalho. A ele coube emitir parecer sobre as emendas, aceitando umas e rejeitando outras. De todo esse trabalho, resultou o substitutivo do relator que se transformou, com alterações acidentais, na Lei 5692/71, que fixou as "diretrizes e bases do ensino de l º e 2º graus".(20)

19. Idem, p. 953.

20. Sobre os textos das emendas e respectivas justificações, ver Diário do Congresso Nacional (Seção II), 13.07.71, pp. 3037-31 OS. Sobre o Parecer do Relator e seu substitutivo e respectivas discussão e votação na Comissão Mista, ver Diário do Congresso Nacional (Seção l), l 1.08.71, pp. 1-64 (Suplemento ao nº 88).

166 ▲

O papel de preservação e aperfeiçoamento desempenhado pelo Congresso Nacional pode ser evidenciado através de um único exemplo. Trata-se do artigo 5º da Lei. Sabemos que o espírito do anteprojeto se orientava na direção da profissionalização do 2º grau. Sabemos também que isto estava em consonância com o espírito da reforma universitária. À época já se havia mencionado explicitamente que, sem a profissionalização do 2º grau, o problema da Universidade não poderia ser resolvido. Ora, é através do art. 5º que a orientação profissionalizante se explicita inequivocamente. Este artigo recebeu nada menos que treze emendas. No anteprojeto se prescrevia, através do artigo 5º, § 2º, alínea a: "A parte de formação especial do currículo terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de l º grau, e de habilitação profissional ou aprofundamento em determinadas ordens de estudos gerais, no ensino de 2º grau". Os parlamentares advertiram que a fórmula "ou aprofundamento em determinadas ordens de estudos gerais", no plural e como forma alternativa à profissionalização, poderia frustrar o objetivo básico. Em conseqüência das emendas e discussões, o art. 5º, § 2º, alínea a), ficou assim redigido: "A parte de formação especial do currículo terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de l º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau"; e acrescentou-se um § 3º, nos seguintes termos: "Excepcionalmente, a parte especial do currículo poderá assumir, no ensino de 2º grau, o caráter de aprofundamento em determinada ordem de estudos gerais, para atender a aptidão específica do estudante, por indicação de professores e orientadores". Note-se que, agora, "aprofundamento em determinada ordem..." aparece no singular e nitidamente como exceção. É de se frisar que essa atitude do Congresso Nacional teve o evidente sentido de preservar o espírito do anteprojeto que estava ameaçado com a redação original. Com efeito, podemos ler no Relatório Geral do Grupo de Trabalho: "A verdadeira terminalidade, ao longo de toda a escolarização dos 7 aos 18 anos, encontra-se de fato no ensino de 2º grau, ministrado como é no período etário em que as aptidões efetivamente existem e tendem a estiolar-se quando não são cultivadas com oportunidade". E, mais adiante, após referir-se à situação então existente na qual a profissionalização constitui exceção, afirma-se: "O caminho a trilhar

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não é outro senão o de converter a exceção em regra, fazendo que o 2º grau sempre se conclua por uma formação específica". É notável a fidelidade com que o Congresso buscou atender a essa orientação. Em outras palavras, aperfeiçoando o texto (a letra), os congressistas preservaram o espírito.

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5. CONCLUSÃO O esforço empreendido neste estudo visava a mostrar que a legislação do ensino constitui um referencial privilegiado para a análise crítica da organização escolar. Em função disso, desenvolvemos um roteiro cuja tese central, enfatizando o espírito, o contexto e as entrelinhas, se contrapunha às análises convencionais que, correlativamente, enfatizam a letra, o texto, as linhas. Em verdade, estudar criticamente determinado fenômeno significa buscar os seus condicionantes, os seus fatores determinantes. Com efeito, a consciência crítica é precisamente aquela que se sabe condicionada e, mais do que isso, sabe o que e porque a condiciona. Diferentemente, a consciência ingênua não se sabe condicionada. Em conseqüência, procede como se pairasse acima das condições concretas e como se pudesse manipular a seu bel-prazer os fatores objetivos. Ora, as abordagens convencionais, atendo-se ao texto da lei, tomam-na como fator condicionante. Daí à crença segundo a qual a legislação é dotada da virtude intrínseca de operar positiva ou negativamente sobre a organização escolar é um passo. Dissemos positiva ou negativamente porque, dependendo das condições imediatas ou dos pressupostos a partir dos quais se aborda a legislação, ela pode ser considerada seja como uma panacéia, alimentando uma visão ufanista, seja como o "bode expiatório" sobre o qual recaem todas as culpas pelas deficiências da organização escolar. Compreende-se, então, porque o estudo crítico, sendo aquele que busca detectar os determinantes da legislação, necessita ultrapassar o texto e examinar o contexto, pois é aí que se encontram os condicionantes. Nessa perspectiva resulta perfeitamente compreensível que determinadas proclamações devam integrar os textos legais, e ao mesmo tempo, não sejam incorporadas na estrutura escolar. A organização escolar não é obra da legislação. Ambas interagem no seio da sociedade que produz uma e outra. O exame do contexto nos permite inferir, por exemplo, que a expansão quantitativa do ensino brasileiro, após 1964, com todas as conseqüências daí advindas, teria ocorrido com ou sem a reforma da legislação; seu fator determinante está na forma como vinha evoluindo a sociedade brasileira. A legislação constitui o instrumento através do qual o Estado regula, acentuando ou amenizando as tendências em marcha. Assim, à luz do contexto, revelam-se ao mesmo tempo a falácia e a eficácia da legislação. A falácia diz respeito às esperanças nela depositadas e que ela não pode realizar. A eficácia consiste nas conseqüências esperadas ou não,

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que ela acarreta. No caso do Brasil, a esperança de que as reformas operariam mudanças profundas resultou falaz. Como poderia ser de outra maneira se não houve mudanças sociais profundas? Em contrapartida, elas se revelaram eficazes para ajustar a estrutura escolar à ruptura política levada a cabo pela Revolução de 1964. A tendência tecnicista à luz da qual se buscou efetuar o ajustamento acima mencionado teve que proclamaras virtudes da eficiência e produtividade mas, ao mesmo tempo, não pôde se furtar às proclamações ainda que amplas do "humanismo tradicional" de orientação liberal. Essa contradição exprime a contradição objetiva vivida no seio da organização escolar. E, enquanto expressão, ao mesmo tempo que é reflexo dela, age sobre ela, acentuando-a.

Em suma: o estudo da legislação se revela um instrumento privilegiado para a análise crítica da organização escolar porque, enquanto mediação entre a situação real e aquela que é proclamada como desejável, reflete as contradições objetivas que, uma vez captadas, nos permitem detectar os fatores condicionantes da nossa ação educativa. A partir daí torna-se possível romper com a visão ingênua do processo educativo.

Tendo em vista que no início desse texto nos referimos à atitude formalista e a crítica predominante nos cursos de Estrutura e Funcionamento do Ensino a respeito da legislação, gostaríamos de concluir com algumas sugestões que possibilitem o desenvolvimento de uma programação que encare a legislação numa linha crítica:

1. A primeira etapa será, inevitavelmente, o contato com a própria lei. Trata-se de fazer uma análise textual, de captar a estrutura do texto, ordenando os assuntos de que ela trata e as medidas que preconiza.

2. Em seguida é necessário examinar as razões manifestas. Aqui será indispensável a leitura do Relatório Geral, da Exposição de Motivos, etc.

3. Finalmente, impõe-se a buscadas razões reais. Isto implica:

3. 1. O exame do contexto. Trata-se, aqui, de reconstituir o processo histórico no seio do qual engendrou-se a lei objeto de estudo, identificando os seus condicionantes em termos das forças sociais básicas que a tornaram possível;

3.2. O exame da génese da lei. Nessa etapa reconstitui-se o processo de elaboração da lei pondo em evidência a forma como os diferentes atores desempenharam os respectivos papéis.

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Percebe-se claramente que, neste texto, a ênfase foi posta na terceira etapa, deixando-se na penumbra as duas primeiras. Tal opção baseou-se na pré-

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missa de que as abordagens convencionais detêm-se nas duas primeiras, deixando implícita a terceira etapa. Conseqüentemente, a compreensão adequada das ideias que acabamos de expor, pressupõe o manuseio dos textos das Leis 4024/6 1 , 5540/68 e 5692/7 1 acrescidos dos documentos correlates.

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CAPÍTULO DEZESEIS

FUNÇÕES DE PRESERVAÇÃO E DE DEFORMAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL NA LEGISLAÇÃO DO ENSINO:

UM ESTUDO DE POLÍTICA EDUCACIONAL

O problema-objeto deste título(1) originou-se das pesquisas feitas pelo autor a respeito das Leis 4024/61 (Lei de Diretrizes ë Bases da Educação Nacional), 5540/68 (Lei da Reforma Universitária) e 5692/71 (Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus). A análise da gênese dessas leis, efetuada através de exaustivas investigações,(2) chamou a atenção do autor para um aspecto sistematicamente ignorado pêlos estudiosos da legislação do ensino. Trata-se das emendas apostas pêlos parlamentares aos projetos de lei de ensino; ou, formulado em outros termos, trata-se da função do Congresso Nacional na Legislação do Ensino. Descobriu-se que, representando as emendas a contribuição específica do Poder Legislativo aos projetos de lei oriundos do Poder Executivo, constituíam a chave para a compreensão da função do Congresso Nacional na legislação do ensino.

Estudos preliminares indicaram que a referida função era, fundamentalmente de duas ordens: de preservação e de deformação. Buscou-se, então, precisar o significado dessas funções, utilizando-se para isso o critério da coerência. Em outros termos: o Congresso Nacional, através das emendas, pode deformar (enfraquecendo) ou preservar (reforçando) a coerência dos projetos oriundos do Poder Exe-

1. Comunicação apresentada à XXIX Reunião Anual da SBPC, S. Paulo, 1977.

2. Cf. SAVIANI, D. - Educação Brasileira: Estrutura e Sistema e SAVIANI, D. - Análise Crítica da Organização Escolar Brasileira através das Leis 5540/68 e 5692/7/, in GARCIA, W. (org.) - Educação Brasileira Contemporânea: Organização e Funcionamento.

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cutivo. A partir desse referencial passou-se a um estudo cuidadoso das emendas apresentadas quando da discussão dos projetos que resultaram nas três leis referidas.

A conclusão a que se chegou indica claramente que, em relação à Lei 4024/61 a função desempenhada pelo Congresso Nacional foi de deformação da coerência do projeto original elaborado por uma comissão de educadores designada pelo então Ministro da Educação, Clemente Mariani. Já em relação às Leis 5540/68 e 5692/ 71, a função desempenhada foi a de preservação da coerência dos projetos originais. Este caso é eloquentemente ilustrado através das 362 emendas apresentadas quando da discussão do projeto que resultou na Lei 5692/71.

Porque essa diferenciação de funções? Quais as suas causas? A resposta a essas perguntas deve ser buscada numa análise do modo de funcionamento do regime político brasileiro. Uma vez que tal regime é oficialmente denominado democrático, buscou-se compreender o significado dessa expressão, momento esse em que ganhou importância central as noções de "democracia restrita" e "democracia excludente".

A atitude metodológica assumida(3) no decorrer de toda a pesquisa garantiu que, a partir de um fenômeno restrito como o das emendas se pudesse fazer extrapolações de amplo alcance teórico, à luz das quais se pode compreender com maior precisão o modo de funcionamento do regime político e da estrutura educacional brasileira.

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As principais conclusões podem ser resumidas como segue:

1. As emendas, apesar de não merecerem a atenção dos estudiosos da educação brasileira, constituem peça importante para a compreensão da legislação do ensino e, conseqüentemente, da política educacional. Isto porque, "a única maneira eficaz de se esclarecer o significado do produto"(4) é examinar o modo como foi produzido.

2. As emendas, por representarem a contribuição específica do Congresso Nacional aos projetos oriundos do Poder Executivo, constituem a chave para se compreender a função do Congresso na legislação do ensino.

3. A compreensão da função do Congresso Nacional na legislação do ensino abre uma perspectiva inédita para os estudos da Política Educacional.

4. Na Política Educacional Brasileira do após-guerra (últimos 30 anos) podem

3. Cf. SAVIANI, D. - Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, pp. 25-30.

4. SAVIANI, D. - Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, p. 28.

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se distinguir duas fases nitidamente diferenciadas no que diz respeito à função do Congresso Nacional na legislação do ensino:

a) A primeira fase corresponde à gênese da Lei 4024/61 (L. D. B.), quando a função desempenhada foi de "deformação", desfigurando o projeto original;

b) A segunda fase é marcada pela gênese das Leis 5540/68 e 5692/71 com a função de "preservação" garantindo e aperfeiçoando a orientação impressa ao projeto original.

5. As duas fases mencionadas correspondem respectivamente aos períodos pré e pós 1964, ilustrando eloquentemente a ruptura política levada a efeito pela revolução de 1964.

6. A primeira fase se desenrolou no quadro da "democracia restrita". Embora circunscrito às elites, o jogo democrático se deu de modo aberto, possibilitando uma crescente participação da sociedade civil no processo político.

7. A segunda fase se desenrolou no quadro da "democracia excludente", quando amplos setores da sociedade civil são deliberada, e sistematicamente excluídos do processo político.

8. O papel desempenhado pelo Congresso Nacional refletiu com fidelidade, nos dois casos, o processo político. Com efeito:

a) A função de "deformação" decorreu da representação no Congresso Nacional de diferentes grupos da sociedade civil com interesses conflitantes;

b) A função de "preservação" decorreu da cooptação exercida pelo Executivo em relação aos membros do Poder Legislativo.

9. Encarando-se o Estado como um conjunto constituído pela sociedade política e pela sociedade civil,(5) conclui-se que:

a) Na primeira fase, a sociedade civil ganhava crescente representatividade perante a sociedade política;

b) Na segunda fase ocorreu uma hipertrofia da sociedade política em detrimento da sociedade civil. A primeira sufocou a segunda, no âmbito da organização e funcionamento do Estado.

10. O aparelho escolar foi reorganizado (Leis 5540/68 e 5692/71 e legislação complementar) no sentido de garantir, prolongar e perpetuar a hegemonia da sociedade política. Entretanto, a sociedade política, numa manifestação determinada,

5. Cf. GRAMSCI, A. - Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 149.

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não pode subsistir por muito tempo senão na medida em que retira a sua força da representatividade que exerce em relação à sociedade civil.

11. A atual crise política e, por conseqüência, educacional, deriva da falta de representatividade da sociedade política. A sociedade civil, através de diferentes grupos que a compõem, reivindica uma mudança política necessária para garantir o lugar que lhe pertence no seio do Estado.

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CAPÍTULO DEZESETE

EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: OBSTÁCULOS, IMPASSES E SUPERAÇÃO

Confesso que abrir este Ciclo de Debates(1) não é tarefa fácil para mim; porque se trata de um tema que traz expectativas bastante altas: "Educação Brasileira Contemporânea: Obstáculos, Impasses, Superação".

Podemos observar que as expectativas que este tema suscita, apesar de altas, são bastante vagas. De qualquer forma, a platéia tem expectativas em relação à minha exposição. De minha parte, também tenho expectativas em poder atender às expectativas da platéia.

E quais são as minhas expectativas? Não posso afirmar nada sobre isso, porque não conheço as preocupações e os problemas básicos daqueles que estão me ouvindo.

Eu poderia levar em conta algumas informações que tenho a respeito da Universidade Federal da Paraíba. Mas essas informações são bastante superficiais. Sei, por exemplo, que existe um curso de Mestrado em Educação Permanente e que deve existir, por outro lado, um curso de Pedagogia. Porém, não sei se a maioria dos presentes é desses dois pólos de atividades da Universidade. É bem possível que haja um grande conjunto de elementos vindos de outras áreas, o que torna difícil fazer uma exposição que vá ao encontro das expectativas dos presentes em seu

1. Palestra proferida no Ciclo de Debates sobre Educação Brasileira Contemporânea na Universidade Federal da Paraíba em janeiro de 1979.

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todo. Quais as perspectivas que eu teria de obter êxito nesta minha exposição?

Indagando a este respeito, resolvi começar a falar, hoje, sobre as perspectivas da educação brasileira contemporânea.

Podemos entendera palavra perspectivo em dois sentidos, a partir das duas raízes latinas: perspido e perspecto.(2) De um lado, o termo significa expectativa. Quando a gente indaga: "quais as perspectivas de trabalho de um determinado curso?", "quais as perspectivas profissionais que você tem ao fazer esse curso?" é o mesmo que perguntar que expectativas se tem ao fazer determinado curso em relação ao que ele pode oferecer para o futuro.

Mas perspectiva também tem outro sentido: pode significar enfoque, ponto de vista. Daí nós falarmos em perspectiva sociológica, perspectiva econômica, perspectiva filosófica... e assim por diante. Ao colocar a questão: "quais as perspectivas da educação brasileira?" -estamos, de um lado, indagando: "a educação brasileira tem perspectivas?"; "existem saídas para os obstáculos e impasses enunciados no tema da palestra de hoje?"; "os obstáculos e impasses são superáveis, estão em vias de superação?" Mas podemos, de outro lado, estar indagando: "quais as vias através das quais se está pretendendo superar os impasses, superaras dificuldades, superares problemas?" e poderíamos dar a esta questão uma resposta basicamente pessimista: "a educação brasileira contemporânea não tem perspectiva, não tem saída, não se vê nenhuma luz no fim do túnel". Ou poderíamos dizer o oposto, numa resposta otimista: "as perspectivas da educação brasileira contemporânea são excelentes, ótimas, tudo é claro". Entretanto, ambas as abordagens seriam apressadas e ingênuas.

Como, então, abordar a educação brasileira contemporânea de modo a superar esses dois extremos e captar alternativas que sejam viáveis, exeqüíveis e que conduzam à superação dos problemas com os quais se defronta?

Convém salientar que o sentido de perspectiva enquanto enfoque, enquanto abordagem, aponta para a necessidade de uma fundamentação teórica. Quando falamos em enfoque, em perspectiva, nesse sentido de ponto de visto, queremos dizer que a nossa ação tende a superar determinados obstáculos, orienta-se por uma determinada teoria. No entanto, sabemos que existem teorias e teorias. Como entender, então, aqui, o problema da teoria para colocarmos a questão das perspectivas de se equacionar os problemas existentes?

2. Perspicio = ver através de; perspecto = esperar por.

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Diríamos, em relação à teoria, que será necessário distinguir as teorias não-críticas de uma teoria crítica. E será necessário, então, superar teorias não-críticas e ingênuas e assumir uma perspectiva crítica da educação brasileira.

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Portanto, será necessário fundar uma teoria da educação brasileira.

Sabemos que o problema da crítica é uma questão bastante difundida, hoje em dia, nos meios educacionais. Salienta-se que a atividade crítica é fundamental nos objetivos básicos da educação e na formação da consciência crítica. Mas, o que significa consciência crítica? O que significa abordar de modo crítico a realidade educacional? Será que nós, muito frequentemente, não abordamos o problema crítico de modo acrítico? Ou de modo pré-crítico? Ou, para utilizar uma outra expressão, será que não abordamos o problema da crítica de modo ingênuo, e, neste sentido, a palavra crítica não passa de uma palavra vazia, sem conteúdo?

Ao falar em teoria, estou entendendo-a em dois sentidos básicos: a teoria abarcando a explicação e também a expressão.

Abarcando a explicação da realidade, seria aquilo que os positivistas e neo-positivistas chamam de ciência. Quer dizer, o objetivo da ciência é explicar e, tanto quanto possível, no ponto de vista dos positivistas, a ciência evitaria formular juízos de valor; ela se limitaria apenas a formular juízos de realidade. Sua pergunta fundamental é: O que é e como é? E não: O que deve ser e como deve ser?

Mas a teoria, tal como a estou enunciando aqui, abrange não apenas esse aspecto explicativo, mas também o expressivo. Portanto, a teoria exprime interesses, exprime objetivos, exprime finalidades; ela se posiciona a respeito de como deve ser - no caso a educação - que rumo a educação deve tomar e, neste sentido, a teoria é, não apenas retratadora da realidade, não apenas explicitadora, não apenas constatadora do existente, mas é também orientadora de uma ação que permita mudar o existente.

Esses dois sentidos de teoria estão intimamente ligados. Não existe explicação neutra e aí se situa a crítica básica da perspectiva positivista e neo-positivista da ciência. Na verdade, não existe visão neutra. A ciência se desenvolve a partir de condições sociais concretas e neste sentido ela está vinculada a determinados interesses. E ela expressa, mesmo que seja por ocultação, determinados interesses.

Feitas essas colocações preliminares, voltaríamos, então, à pergunta: "quais as perspectivas da educação brasileira?", "que alternativas existiriam para se tratar dos problemas da educação brasileira?"

Existem algumas alternativas que estão aí no ar, estão sendo difundidas amplamente e influenciando os educadores das diferentes regiões e das diferentes espe-

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cialidades. Eu vou enunciar algumas dessas alternativas, tendo em vista uma preocupação de alcançar algumas expectativas dos leitores.

Hoje em dia existem alguns temas que são frequentemente debatidos nas áreas de educação. Um deles é o problema da desescolarização, o qual, por estranho que isso possa parecer, é posto como uma via, uma possível saída para o equacionamento da problemática educacional. Essa desescolarização está associada a uma outra forma de se colocar a questão, que é a dos chamados meios de comunicação de massa. Os meios de comunicação de massa seriam uma outra alternativa para se resolver os problemas educacionais, na medida em que a escola se revela incapaz de dar conta dos mesmos. Então, os mais radicais advogam a desescolarização, enquanto outros admitem ainda que a escola tem alguma função, mas não mais a principal em termos educacionais. Consideram seu papel apenas subalterno e transferem o papel principal na atividade educacional para os meios de comunicação de massa. A eles associadas, aparecem, ainda, as tecnologias do ensino que tanto podem ser exploradas através do meio principal (o de comunicação de massa) - e aí vêm alternativas como, por exemplo, educação via-satélite - como podem ser introduzidas no interior da própria escola, com o objetivo de maximizar a capacidade qualitativa do trabalho efetuado nas escolas.

Uma outra alternativa que, num certo sentido, abarca todas as outras, é a da chamada Educação Permanente, a qual sugere que o homem, sendo um ser inacabado, é sempre objeto da educação. A educação não acaba com a idade adulta, como acredita a concepção tradicional de educação. O homem é sempre educável e essa educabilidade inacabada do homem se cumpre das mais diferentes formas. E é nesse sentido que eu afirmei que a Educação Permanente abarca todas aquelas outras alternativas. Os meios de comunicação de massa estariam educando ininterruptamente e pela vida afora. A própria escola não seria mais uma instituição destinada apenas à infância e à adolescência. A ação da escola também se estenderia aos adultos e aí vem, então, a sociabilização permanente. A idéia de educação de adultos, no entanto, aqui assume uma conotação diferente da noção de educação de adultos tal como parece na história da educação brasileira.

Em períodos anteriores, a educação de adultos era tratada na educação brasileira fundamentalmente com um objetivo bastante preciso, que era a alfabetização dos adultos. Então, não se tratava de se admitir propriamente a educação de adultos ao nível da essência, ao nível estrutural, mas apenas a um nível conjuntural. Educar os

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adultos significava o seguinte: existem adultos que perderam a oportunidade no tempo próprio, quer dizer; quando crianças, enquanto jovens, não tiveram a chance de ir à escola e chegaram à idade adulta analfabetos. Cabe à educação de adultos o papel de suprir essa deficiência e com isso concederão homem adulto aquilo que ele deveria ter tido na infância ou na juventude, e não teve.

Hoje em dia, associada à Educação Permanente, a educação de adultos já não tem essa característica. Ela significa que o adulto deve continuar sendo objeto da educação. Não se trata somente do adulto analfabeto, mas do adulto, qualquer que seja o seu nível cultural. Qualquer que seja o seu "posto" na sociedade, o homem é susceptível de ser submetido a um processo educativo.

O que significam, então, essas alternativas? Voltando àquela idéia de teoria, em que medida essas alternativas traduzem ou se embasam numa teoria crítica, numa teoria consciente? Ou será que elas são sugeridas por abordagens apressadas, por abordagens ingênuas da realidade educacional e são abraçadas pêlos educadores, talvez, por efeito do modismo?

Esse também é um fenômeno interessante que merece ser abordado (embora eu não possa aprofundá-lo aqui), que é a questão dos modismos em educação, ou seja: a consciência pedagógica é bastante vulnerável às influências e flutua de uma influência a outra, sem criar raízes, sem situar-se de modo profundo no centro de preocupação dos educadores. E o centro de preocupação dos educadores deveria ser a própria realidade educacional. Parece-me que o fenômeno das flutuações da consciência pedagógica se caracteriza exatamente por isto: as influências vêm de fora, de outras áreas que não propriamente a educação, e os educadores aderem como leigos a essas influências. Assim, a educação fica descentrada, é abordada apenas perifericamente e não se vai à raiz da problemática educacional.

O que significa dizer: ir à raiz da problemática educacional? Para se compreender o significado dessas alternativas que eu mencionei e saber quais as chances que elas teriam de contribuir para o equacionamento dos problemas enfrentados pela educação brasileira atual, seria preciso verificar em que se assentam essas propostas e que tendências elas traduzem do ponto de vista histórico, do ponto de vista da sociedade que engendra essas diferentes modalidades. Para abordar esse problema, vou apresentar a largos traços, muito resumidamente, as etapas que a escola e, por conseqüência, a educação no seu todo, atravessou na sociedade em que nós vivemos, ou seja, na sociedade capitalista.

Na medida em que no século passado se consolidou o poder burguês, ou seja, a burguesia assumiu as características de classe dominante, ela foi tendendo a se

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tomar classe não só dominante, mas também hegemônica, isto é, aquela que dirige a sociedade em seu conjunto e pretende exprimir os interesses da sociedade global, não apenas os interesses dela própria. É nesse quadro que o problema da escola é colocado com uma ênfase bastante grande. Os liberais do século passado situavam a escola como sendo um instrumento de efetivação da democracia, um instrumento de participação política, através do qual se consolidaria a hegemonia da classe burguesa na medida em que, por meio da escolarização, as massas teriam condições de escolher os seus dirigentes, de participar politicamente. Nesse sentido, a democracia aparecia como um regime que atendia aos interesses do povo, quer dizer, todos são iguais perante a lei. E, conseqüentemente, a escola seria um instrumento através do qual todos teriam essa participação e a direção da sociedade seria legitimada pelo conjunto da sociedade.

Um autor argentino, Zanotti,(3) num livro seu chamado "Etapas Históricas da Política Educativa", chama essa fase de "a fase da escola redentora da humanidade". Segundo palavras dele, a escola é concebida com essa característica de redimir a humanidade do seu duplo pecado histórico - a ignorância (miséria moral) e a opressão (miséria política). Então a escola seria esse grande instrumento. É a partir daí que vão se constituir os sistemas educacionais e que se vai deflagrar uma campanha pela escola universal, obrigatória e gratuita. Acreditava-se que através da educação o povo iria se instruir e, instruindo-se, escolheria bem os seus governantes e com isso a democracia se consolidaria. Ocorre que essa fase, na medida em que foi evoluindo em termos concretos, acabou por não corresponder às expectativas dos dirigentes que haviam desencadeado esse processo de escolarização para todos. Constatava-se que, embora se instruindo, o povo não votava bem (segundo os critérios da classe dominante). No texto de Zanotti isso aparece de modo claro. Referindo-se à situação da Argentina, ele menciona uma série de exemplos. Vou ilustrar apenas com um, que diz respeito ao peronismo: ele afirma que as populações instruídas não obstante votaram em Perón e, segundo ele, isso era uma indicação de que o caudilhismo, a demagogia, não era extirpada com a alfabetização e, mais do que isso, a União Democrática teve maior votação exatamente na Província de Comentes, que era a província de menor índice de alfabetização, ou com o maior índice de analfabetismo. Logo, diz o autor, não ficou confirmada a correlação entre a ignorância e o peronismo.

3. ZANOTTI, L. J. - Etapas Históricas de Ia Política Educativa.

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O que é que isso traduz? Traduz que a proposta de escola para todos era uma proposta que tinha um potencial de servir à hegemonia da classe dominante (no caso a burguesia, porque ela traduzia os interesses comuns de toda a sociedade). Ora, se por um lado, a classe dominante estava interessada na participação política das massas, por outro lado as massas também estavam interessadas em participar do processo político, em participar das decisões. Nesse sentido, ambos os interesses coincidiam; daí o caráter de hegemonia que isso representava para a classe dominante. Porém, na medida em que o processo concreto ia se desenvolvendo e as massas começavam, através da alfabetização, a participar do processo político, vinham à tona interesses específicos antagônicos (porque, no modo de produção capitalista, as classes se fundam numa estrutura antagônica, que separa os proprietários do capital e os funcionários do capital de um lado e, de outro lado, os produtores e reprodutores do capital). Então, na medida em que essa participação se efetivava e que os interesses antagônicos vinham à tona, naturalmente o povo não votava, não decidia segundo as expectativas das camadas dominantes. Nesta medida, a escola redentora da humanidade perde força, concluindo-se que não bastava a escola para todos (quantidade). Era preciso cuidar da qualidade, a quantidade só não era suficiente. Era preciso dar um determinado tipo de escola, aquele tipo de escola que leva as pessoas a decidirem conforme os interesses da classe dominante. É nesse quadro que vai surgir a Escola Nova, que é a segunda etapa, a segunda fase da política educacional. Qual o significado da Escola Nova? Seu papel vai ser o de enfatizar agora já não mais aspectos políticos como apareceram de modo bem claro na fase da Escola Redentora da Humanidade (quer dizer, a escola como um instrumento de participação política), mas enfatizar o aspecto psicopedagógico, o aspecto técnico-pedagógico. A Escola Nova se volta para o interior da escola. Trata-se da melhoria dos procedimentos desenvolvidos no seio da escola. A tendência dominante, a tendência mais difundida a respeito da Escola Nova é no sentido de que ela representou um avanço em relação à escola tradicional. A escola tradicional não era adequada às necessidades da população, era uma escola que não estava de acordo com os interesses dos educandos e assim por diante. E a Escola Nova vai ser concebida como uma escola centrada nos interesses do aluno, como uma escola que privilegia o psicológico sobre o lógico, enquanto a tradicional fazia o inverso: privilegiava o lógico sobre o psicológico.

É preciso examinar; no entanto, até que ponto essas razões amplamente difundidas têm um fundamento objetivo que permita que elas se sustentem. Isso eu vou

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abordar mais diante. Por ora, gostaria de salientar essa mudança de ênfase nessa segunda fase, em que através da Escola Nova as preocupações se centram no interior da própria escola. No entanto, a própria Escola Nova acabou por se revelar inadequada aos objetivos da educação, aos objetivos que se pretendia alcançar através da educação.

A partir da segunda guerra, surge, então, uma terceira fase: a dos meios de comunicação de massa. É justamente aí que vai se enfatizar toda uma série de recursos que não dizem respeito propriamente à escola, mas que ultrapassam a sua esfera. Aqui caberia observar o seguinte: por que a Escola Nova se revelou também insuficiente para se conseguir os objetivos pretendidos em termos educacionais? Vejam que, voltando-se para o interior da escola, o movimento da Escola Nova revelou-se, no entanto, restrito a determinados tipos de escola, revelou-se um movimento incapaz de ser generalizado e implantado nas amplas redes oficiais de ensino que continuavam, predominantemente, a seguir o esquema tradicional. Os meios de comunicação de massa aparecem como uma forma de se atingir a população em seu conjunto, de atingir amplas camadas da população, e, nesse sentido, superar tanto o anacronismo da escola tradicional, como as limitações da Escola Nova. A educação permanente, no meu modo de ver, vai se situar como uma projeção dos postulados da Escola Nova para essa terceira fase.

Pierre Furter(4) refere-se a duas ideologias orientadoras do processo escolar: a Ideologia da Imaturidade e a Ideologia da Pré-Maturidade. A primeira orientaria a educação tradicional, a educação convencional. Concebe-se, então, que o homem nasce imaturo, mas atinge a maturidade na idade adulta. A educação seria o processo através do qual a criança se tornaria adulto, o imaturo se tornaria maturo. A Ideologia da Pré-Maturidade já indicaria o seguinte: o homem nasce pré-maturo e não imaturo, quer dizer; nasce pré-maturo e inacabado, mas completo. Então, não se trata de completar o homem, como no caso da ideologia da imaturidade segundo a qual o homem nasceria incompleto e a educação viria completá-lo. Para a ideologia da prematuridade o homem nasce completo, mas inacabado e a maturação é um processo que demanda a vida toda. Essa concepção tem pontos em comum com a concepção que orientou a Escola Nova. Também na Escola Nova se concebia que o homem é sempre susceptível de mais educação, e, fundamentalmente, essa educa-

4. FFURTER, R - Educação e Reflexão.

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cão se dá a partir dele próprio. Daí porque a Escola Nova tende a centrar a educação no educando e não no educador (como ocorria na escola tradicional, em que o centro do processo educacional era o educador, o professor). No entanto, a idéia de educação permanente extrapola a Escola Nova, justamente porque permite que seja subsumida sob uma gama

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bastante ampla de modalidades da atividade educacional que não estão adstritas à atividade escolar.

Qual o papel, então, que desempenha a educação permanente em termos de evolução histórica, a partir dessas fases esboçadas? Vejam: essas fases incorrem, no meu modo de ver, numa falácia, porque elas alimentam o suposto de que a uma fase sucede-se uma segunda, a esta uma terceira... sendo que as fases anteriores são sepultadas na história, história aí entendida como um passado que morreu. Neste sentido, a Escola Redentora da Humanidade teria sido substituída pela Escola Nova e vejam que esta é a idéia que, num certo sentido, se difunde. Acredita-se, então, que a escola tradicional, a escola convencional, está superada. De outro lado, quando começam a ser discutidas essas outras modalidades - a educação via satélite, tecnologias sofisticadas, educação permanente, comunicação de massa - então a isso (e não é por acaso que a desescolarização ganha força nesse momento) se associa a idéia de que a escola está superada, seja ela velha ou nova: a Escola Nova está superada e precisa-se partir para novas modalidades de desenvolver a atividade educacional.

O que ocorre, na prática, não é isso. O que a gente pode constatar é que o papel principal na atividade educacional continua a ser desempenhado ainda pela escola, e pela escola estruturada nos termos convencionais, nos termos tradicionais; quer dizer, o método dos cinco passos formais de Herbart continua ainda predominando no modo como se desenvolve o ensino nas escolas. E as reformulações da Escola Nova apenas se configuram em exceções, isto é, algumas escolas experimentais em que o método da Escola Nova foi adotado com maior abrangência; mas se trata, inclusive, de escolas de alto custo, daí a dificuldade de absorção pela rede comum de ensino. E, no plano das idéias, ela influenciou apenas superficialmente.

Aí caberia (eu vou, depois, associar isto à função concreta que a Escola Nova desempenhou na evolução da sociedade) inverter a tendência dominante nas interpretações que aparecem dessas diferentes modalidades de escolas. Enquanto, nessas interpretações, a Escola Nova aparece como uma forma de aprimoramento qualitativo, eu ousaria dizer o inverso: que a Escola Nova desempenhou um papel de degradação da qualidade do ensino escolar, influenciando apenas superficialmente as atividades dos professores.

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Entre parênteses, isso foi algo sentido profundamente nos Estados Unidos, onde, a partir do lançamento do "Sputnik" em 1957, brotou toda aquela reação contra o movimento da Escola Nova: os educadores passaram a criticá-la como responsável pelo afrouxamento do ensino, e, conseqüentemente, sua baixa qualidade, o'que teria permitido à União Soviética ultrapassar ou superar os Estados Unidos na carreira tecnológica, na carreira científica, que supõe formação educacional de base. Nesses parênteses eu gostaria, também, de fazer uma observação: estou falando em linhas gerais e visando mais a situação brasileira; mas ao pensar nos diferentes países a gente deve lembrar que existem características próprias, específicas, que caberiam ser examinadas. Por exemplo, o sistema de ensino dos Estados Unidos é diferente do da França, do da Alemanha, e algumas colocações que estou fazendo se aplicam diretamente aos modelos francês e alemão, e não se aplicam, talvez, de forma tão característica ao modelo americano, porque este absorveu, de modo mais amplo, as contribuições da Escola Nova, mesmo na rede convencional, conseguindo unificar, numa certa medida, o processo de escolarização - o que não ocorreu na Europa, onde a dualidade do sistema de ensino ainda permanece. O Brasil está a meio caminho entre esses dois extremos. A esse respeito, aproveito para citar, aqui, o depoimento de um professor alemão que esteve lá na PUC para acertar um esquema de doutoramento integrado: ele disse que, examinando-se o sistema educacional brasileiro, é possível prever o que iria ocorrer na Alemanha. Aí ele acrescentou: "Não, certamente, porque a Alemanha esteja imitando o Brasil, mas porque ambos estão imitando os Estados Unidos. E neste processo de imitação, o Brasil está além da Alemanha". O chamado sistema educacional brasileiro está mais próximo do modelo americano do que o está o sistema alemão. Evidentemente, isso só se explica por todo um processo histórico em que, é claro, eu não vou me deter aqui. Luís António Cunha,(5) no texto "O modelo alemão e o ensino brasileiro", publicado na coleção Educação Brasileira Contemporânea, também faz algumas considerações nessa direção.

Voltando ao problema que eu estava abordando - a Escola Nova, contrariamente à idéia difundida de aprimoramento qualitativo, ela teria desempenhado um papel de deterioração da qualidade do ensino convencional. É claro que isso não se

5. CUNHA, L.A. - "O 'Modelo Alemão' e o Ensino Brasileiro", in GARCIA, W.E. (org.) - Educação Brasileira Contemporânea.

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deu por acaso. Retornando àquela linha do processo de escolarização na sociedade capitalista, caberia colocar o seguinte problema: por que a chamada Escola Redentora da Humanidade não foi suficiente e em que medida a Escola Nova contribuiu, realmente, para equacionar algumas dificuldades encontradas a partir da primeira fase?

Aqui, caberia uma observação: ao introduzir esta minha exposição, fiz referência à teoria, a teoria abrangendo

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aqueles dois aspectos: explicação e expressão, referindo-me, então, à teor/a crítico. Uma vez que a teoria está sempre expressando determinados interesses, a criticidade de uma teoria supõe a consciência dos condicionantes da própria teoria; supõe, portanto, a vinculação da teoria com suas raízes sociais; supõe, portanto, a explicitação dos interesses que a teoria expressa.

Nessa evolução, apresentada aqui a largos traços, dá para se constatar que, na sociedade capitalista, tanto a fase da Escola Redentora da Humanidade, como a Escola Nova, como os meios de comunicação de massa, traduzem a versão dominante, expressam os interesses dominantes, e as mudanças são feitas em relação à sua menor ou maior capacidade de atender aos interesses dominantes. Na medida em que a evolução concreta traz à tona o conflito de interesses antagônicos, então a tendência da classe dominante é, justamente, recompor os mecanismos de hegemonia. Quer dizer, no caso da Escola Redentora da Humanidade, na medida em que se abria a oportunidade de participação política para as massas e essa participação levava as massas a buscar exprimir seus interesses através de opções que se ajustassem melhor, embora precariamente, a esses interesses, entravam em rota de colisão com os interesses dominantes pondo em risco a hegemonia da classe dominante. Em conseqüência, a classe dominante se impunha a tarefa de recompor os mecanismos de hegemonia e utilizar esquemas que evitassem uma crise de hegemonia e prolongassem, ao contrário, esse processo hegemônico. A Escola Nova, no meu modo de ver aparece cumprindo essa função: recomposição dos mecanismos de hegemonia da classe dominante e, nesse sentido é que, voltando as atenções para o interior da escola e para o aspecto qualitativo, ela, ao mesmo tempo, reduziu a expansão quantitativa a níveis compatíveis com os interesses dominantes; e, de outro lado, cuidando da qualidade, ela se preocupou justamente em ajustar o tipo de escolarização aos interesses dominantes.

Vejam que essas colocações trazem pistas para a gente entender um pouco a polemica quantidade versus qualidade, e, também, como (aliás em outro artigo(6) tive oportu-

6. SAVIANI, D. - "Educação Brasileira: Problemas", neste volume, pp. 131-144.

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nidade de abordar isso) a posição de defesa da qualidade, via de regra, tem características mais reacionárias, mais conservadoras do que a posição em defesa da quantidade. A posição que defende a qualidade parte de critérios qualitativos dominantes e a própria terminologia que ela usa é conservadora. Sua insistência é manter o nível, preservar a qualidade, atingir níveis de excelência... Então, são pontos que denotam uma preservação, uma conservação, uma contenção em relação à abordagem quantitativa que busca uma expansão e, nesse sentido, uma ampliação das oportunidades escolares para uma gama maior dos elementos que compõem a sociedade.

Passando à terceira fase, a dos meios de comunicação de massa, veremos que se trata, novamente, de recomposição dos mecanismos de hegemonia. E é nesse sentido que aparece, por exemplo, o fenômeno da desescolarização. Desescolarização é algo que não tem muito a ver com as aspirações da população. Basicamente, a defesa da desescolarização é feita pêlos já escolarizados, portanto, desescolarizados. São aqueles que já passaram pela escola e dela já saíram que defendem a desescolarização, a qual não é defendida pêlos não escolarizados. Os ainda não escolarizados aspiram à escolarização e suas aspirações não são levadas em conta nos debates que se travam sobre a desescolarização. Ao contrário, acredito que a maioria dessa polemica ignora essas expectativas e sequer se preocupa em saber se a população está interessada na escolarização ou não. Há aqui outros detalhes nos quais não vou ter tempo de entrar; é que o problema da desescolarização é colocado de formas diferentes, em situações diferentes, em países diferentes. A desescolarização é uma moda que vem dos Estados Unidos, onde é possível que ela tenha um certo sentido, sentido esse que desaparece totalmente no quadro brasileiro.

Entrando nesse tipo de discussão, a gente poderia, talvez, aclarar um pouco o próprio problema anterior que eu mencionei a respeito de diferenças de redes de ensino em diferentes países. É possível, por exemplo, que a incorporação da Escola Nova de uma forma mais ampla na rede escolar americana, se deva ao fato de que a escolarização nos Estados Unidos passe a cumprir, talvez, mais uma função ideológica do que uma função técnica. A função técnica, de preparação, acaba sendo cumprida à parte da escola e daí porque uma função técnica que a escola desempenha no Brasil, que é a alfabetização, talvez não seja função tão fundamental nos Estados Unidos, assim como aqui a alfabetização não é a função fundamental desempenhada pela escola das camadas mais privilegiadas: em geral, as crianças dessas camadas tendem a ser alfabetizadas na própria família e quando vão para a escola, vão justamente burilar, aperfeiçoar aqueles mecanismos de participação numa cultu-

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ra diferenciada; vão justamente receber aqueles refinamentos necessários para integrar a elite, as camadas dominantes da sociedade, camadas dominantes a que já estão destinadas previamente, pelo fato de sócio-economicamente pertencerem à elite.

Aí é que me parece haver uma pista para a gente entender porque a Escola Nova, se não teve grande penetração

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nas escolas convencionais oficiais de 1° grau, em nível de 2° grau ela já influenciou um pouco mais, e em nível superior influenciou mais ainda. De outro lado, essa modalidade de escola, no entanto, é predominante nas escolas de elite, desde a pré-escola. Aqui, então, entra aquela questão que eu havia colocado: da Escola Nova e dos meios de comunicação de massa cumprirem uma função ideológica de recomposição dos mecanismos de hegemonia; e, ao cumprirem essa função, essas modalidades de ensino - segundo eu havia afirmado -terão contribuído para a queda da qualidade no ensino convencional. Vejam, por exemplo, no caso das escolas já desde o início destinadas à elite: a eficácia da escola está mais nos atributos necessários à participação numa cultura erudita do que em dotar os alunos daqueles instrumentos básicos de participação na sociedade. Na medida em que esses instrumentos básicos já são adquiridos a partir da própria família, então a escola pode se encarregar da outra função.

No caso, no entanto, da escola convencional de 1° grau que recebe as camadas desfavorecidas, sua função básica é justamente dotá-las dos instrumentos fundamentais de participação numa sociedade urbano-industrial. No meu modo de ver, a escola tende a cumprir essa função apenas nos limites necessários da formação da força de trabalho imprescindível ao desenvolvimento do processo produtivo. É a partir daí que a gente vai entender o caráter seletivo e discriminatório da escola de l ° grau; a partir daí é que a gente vai entender porque uma grande percentagem das crianças em idade escolar não têm acesso à escola e, daquelas que o têm, uma grande percentagem é reprovada ou se evade já no primeiro ano, portanto, sem adquirir aqueles instrumentos básicos. (Essa grande percentagem, em termos arredondados, está em torno de 60 por cento.)

Bem, então como ficam aquelas alternativas que eu havia enunciado no início? É a educação permanente a saída para a educação brasileira? É a educação de adultos, entendida nesse sentido amplo de submeter todo mundo continuamente ao processo educativo? São as tecnologias sofisticadas de ensino? É a educação via satélite? É a comunicação de massa?

À luz da análise que tentei desenvolver, parece, então, ficar evidenciado que essas alternativas se revelam como pseudo-alternativas, do ponto de vista de uma

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teoria crítica, do ponto de vista de uma teoria que pretende levar em conta os interesses da população, portanto, os interesses das camadas desfavorecidas da sociedade.

Do ponto de vista dos interesses dominantes, essas alternativas cumprem uma função, mas se nós quisermos situar o problema da educação em termos daquilo que, realmente, é prioritário, nós teríamos que concentrar nossos esforços naqueles pontos fundamentais que são apregoados, inclusive, pela própria ideologia liberal desde a fase da Escola Redentora da Humanidade - a escola para todos.

Então, a luta, por exemplo, pela difusão de oportunidades, pela extensão da escolaridade a toda a população, é uma luta que é válida ainda hoje e que cabe ser defendida. Do ponto de vista qualitativo, tratar-se-ia, então, de que as escolas assumissem a função que lhes cabe de dotar a população daqueles instrumentos básicos de participação na sociedade. Então, a questão da eficiência no trabalho escolar é alguma coisa que tem de ser encarada seriamente por todos aqueles que estão preocupados com a educação - e em termos de uma responsabilidade dos educadores, dos professores.

Parece-me que essas alternativas enunciadas têm gerado uma série de conseqüências, entre as quais destaco a seguinte: a de possibilitar aos educadores se omitirem em relação à tarefa que lhes cumpre desempenhar na atividade educacional. Temos, pois, hoje, já bastante difundida a seguinte situação: professores que não ensinam, educadores que não educam. Essa situação é muitas vezes justificada a partir da idéia de que educação é auto-educação; é o educando que se educa, o professor é um facilitador da educação - ele está aí, e o que o educando pedir ele faz. Ora, essa é uma posição que considero omissa e que só serve aos interesses dominantes. Porque, se se trata de tomar uma posição clara em relação a utilizar a escola como um instrumento de participação efetiva das massas, então o professor não pode se omitir da tarefa de ensinar, de instruir.

Bem, eram esses os pontos que eu quis colocar na abertura deste Ciclo de Debates sobre Educação Brasileira Contemporânea. Cabe, no entanto, complementar ainda essas colocações com o seguinte: diante das afirmações que fiz, é possível que muitos dos presentes estejam se colocando a seguinte questão: Como desenvolver uma atividade que permita proporcionar; impulsionar, implementar aquelas alternativas que possam encaminhar soluções efetivas e não pseudo-soluções? Como efetivar isso, se o dominante enfatiza as pseudo-soluções? Como, por exemplo, posso desenvolver uma modalidade de educação que atente para o fundamen-

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tal, se eu trabalho, digamos, com Tecnologia do Ensino, se eu trabalho com Educação via Satélite, ou se eu trabalho com Educação Permanente? Eu teria que riscar essa modalidade de educação e desenvolver outro tipo, outra modalidade de ensino? Em que medida isso seria possível, isso seria viável?

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Aqui, então, acho importante complementar na seguinte díreção: Existe uma série de modalidades de educação que, à luz de uma análise crítica, cumpre uma função que, na linguagem do professor Maurício Tragtenberg seria a técnica da desconversa. É uma forma de desviar do fundamental e de ocupar, às vezes, até mentes capazes em questões secundárias, e que passam a cuidar e dedicar o melhor de seus esforços a problemas que, no fundo, são pseudo-problemas. Existem outras áreas que talvez desempenhassem alguma função, mas que, de fato, por alguma inconsistência teórica, por falta de correspondência dessas áreas com a realidade, elas acabam também cumprindo essa função de pseudo-soluções. Neste quadro, por exemplo, eu colocaria as chamadas Habilitações de Pedagogia: Orientação Educacional, Supervisão, Treinamento de Pessoal, Administração; quer dizer, são áreas que se caracterizam por uma inconsistência teórica e daí a dificuldade em constituírem um campo de conhecimento; e se caracterizam também por uma inconsistência "empírica", quer dizer, por uma não correspondência com as necessidades objetivas.

Como resolver esse problema? Via de regra, também aqui nós encontramos pseudo-soluções. Tenho constatado, por exemplo, nos programas de mestrado, que, quando, nessas áreas chamadas mais técnicas, desponta um aluno que tem uma maior consistência, uma perspectiva crítica mais sólida e que está interessado em desenvolver um trabalho mais rigoroso, há uma tendência desse aluno a não se identificar mais com essas áreas (Orientação, Supervisão, etc). Então, ele tenderá a se situar numa das áreas chamadas básicas. Ora, na medida em que isso ocorre, as áreas chamadas técnicas tendem a perpetuar a inconsistência e a reproduzi-la. O que vamos constatar é que começam a surgir Mestrado em Orientação, Mestrado em Supervisão, com pessoas que trabalham nessas áreas, de cuja inconsistência teórica se ressentem, e que passarão, a nível de mestrado, a formar mestres nessas áreas, em seguida doutores nessas áreas, caracterizando, com isso, aquilo que a gente poderia chamar de "reprodução da mediocridade".

Só seria possível alterar essa situação se os elementos que trabalham nessas áreas, na medida em que assumam uma perspectiva mais crítica, se imponham a tarefa de trabalhar de modo crítico, sem passar para outras áreas. É só nessa medida

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que eles poderiam dar um reforço teórico para essas áreas e, mesmo cumprindo aquela função específica que é definida pela habilitação, eles fossem ao essencial. Se, por exemplo, o essencial é o professor e não propriamente o orientador; que sem um educador consistente é impossível um orientador então, o orientador deveria definir-se, primordialmente, como um educador, buscando a fundamentação necessária para adquirir consistência em educação, vale dizer; buscando compreender a problemática educacional a partir de seus determinantes sociais, econômicos e políticos; numa palavra, a partir de seus determinantes históricos. E a atividade de orientação viria por acréscimo, por conseqüência.

Eu estou falando isso para vocês com bastante lealdade, pois acho que todos sabem que há elementos que, embora não tendo habilitação numa dessas áreas, mas tendo uma formação consistente em educação, revelam-se com melhores condições e mais segurança para cumprir as funções específicas dessas áreas, do que aquele que tem habilitação - está apostilado no seu diploma - mas que, por falta de uma percepção mais ampla da realidade, de uma compreensão das conexões que a problemática educacional mantém com o conjunto da sociedade, ele acaba não tendo condições de desenvolver essa atividade de modo coerente e consistente.

Agora, não é solução, no meu modo de ver, abolir-se, com um decreto (as coisas aqui se costumam fazer muito na base do decreto...). Então, pelo decreto n° 62 mil não sei quanto, artigo l °: ficam abolidas, a partir desta data, as Habilitações de Orientação, Supervisão, etc; artigo 2°: as funções que antes eram desenvolvidas por profissionais dessas habilitações passarão a sê-lo por sociólogos da educação, historiadores da educação, filósofos da educação, etc. Não é isso que vai resolver o problema. O problema está justamente em desenvolver essas áreas, a partir do que é fundamental.

Parece-me que é só nessa medida que poderemos ultrapassar a perspectiva ingênua e idealista de se acreditar que, uma vez arrumadas as coisas na cabeça, essas idéias terão força para mudar o real. Não terão. Por mais que se tenham as coisas arrumadas na cabeça, é preciso levar-se em conta que só se transforma alguma coisa a partir das condições existentes. E as condições existentes são essas, ou seja, existem habilitações no Curso de Pedagogia, existem áreas que são valorizadas como alternativas para a educação brasileira atual. E é justamente penetrando nessas áreas, desenvolvendo essas áreas de modo a voltá-las para o que é relevante e depurá-las daquilo que é irrelevante que será possível desenvolver um trabalho consistente e caminhar na direção de uma teoria crítica da educação brasileira.

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Nesse sentido eu colocaria também a Educação Permanente, e aqui eu talvez quisesse visar mais diretamente a situação da Universidade Federal da Paraíba, que tem um mestrado em Educação Permanente. Agora, do modo como descrevi, se a gente fica nesse quadro superficial, a educação permanente tenderá a reforçar os mecanismos dominantes e afastar a Universidade das necessidades básicas de educação que a região, aqui, enfrenta, o Nordeste enfrenta e, em última instância, o próprio Brasil enfrenta. No entanto, Educação Permanente é um termo amplo. Seria preciso, então, que, no âmbito da educação permanente, fossem desenvolvidos esses pontos críticos e fossem detectados pontos relevantes que é preciso desenvolver e, a partir dos quais, se poderiam formar mestres em educação que possam,

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efetivamente, atender às necessidades reais e concretas que são detectadas na região e no país.

Bem, o meu tempo já se esgotou. Vou parar por aqui, sabendo que minhas colocações ficaram um tanto soltas, mas meu objetivo foi enunciar alguns problemas de modo bem amplo, na expectativa de que serão aprofundados depois por vocês, durante os debates, e pêlos demais apresentadores, na medida em que eles abordarão problemas mais específicos da educação brasileira.

DEBATE(Resposta do Prof. Saviani a uma pergunta inaudível na gravação.)

SAWANI - Bem, eu teria de esclarecer, primeiramente, que não defendi aqui a baixa da qualidade. Ao contrário, simplesmente coloquei em questão os critérios de qualidade vigentes, dominantes, e mostrei como a defesa da qualidade no caso da Escola Nova acabou, contraditoriamente, por contribuir para a baixa da qualidade da própria escola convencional. Qualidade essa que eu queria ver levantada e foi nesse sentido que, no final, frisei, insisti naquele aspecto da competência do professor e do educador de não se omitir de suas funções. Então, se compete ao professor ensinar, ele tem de ensinar (nada dessa história de "to aí, o que vocês quiserem, peçam, que estou à disposição"...). Ele tem de ensinar, tem de planejar o ensino e desenvolver, de tal modo que aqueles objetivos de instrumentação do aluno, a respeito dos elementos básicos de participação na sociedade, sejam obtidos. E vejam que não é outra coisa que os pais esperam da escola. Eles mandam o filho para a escola para aprender. Acham que o professor está lá para ensinar. Acho que esta é

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uma verdade muito simples, que a gente estava esquecendo, quer dizer; passa-se a acreditar que o professor está na escola não para ensinar; que o aluno está para aprender, mas o professor não está para ensinar. No entanto, o aluno não aprende se o professor não ensina. Foi isso que procurei enfatizar.

Agora, quanto à sociedade capitalista com tecnologia e "know-how" avançados, parece-me que ao tomar uma posição como essa, estou justamente denunciando o papel que essa tecnologia sofisticada desempenha no ensino, e, se vocês tomarem os exemplos concretos, vão ver que basicamente nenhuma tentativa de sofisticação tecnológica melhorou a qualidade do ensino, em lugar nenhum. Está aí o Projeto "Saci" do INPE para demonstrar; inclusive, fracassou e agora está sendo incorporado pela Universidade do Rio Grande do Norte, com um Mestrado em Tecnologia do Ensino (mas não sei em que medida isto vai resolver o problema do ensino no Rio Grande do Norte). Em São Paulo, temos o Canal 2, a TV Cultura, com toda sua sofisticação, com os equipamentos mais modernos, e que não consegue senão ser uma TV de elite, produzindo programas relativamente chatos, que acabam sendo assistidos apenas por um número de pessoas que se identificam com esse elitismo. O que de melhor tem a TV Cultura é esporte. Isso dá para enfatizar o problema, de acordo com a minha abordagem, a qual tende a identificar essa tecnologia como quinquilharia, inclusive material superado que as empresas multinacionais têm interesse em vender aos países subdesenvolvidos. E a difusão da tecnologia do ensino cumpre, em boa parte, essa função. Aliás, isto está denunciado, também, no livro de A. Mattelart sobre as multinacionais da cultura.

PERGUNTA - Prof. Saviani, se o Parecer 252 é o vigente, como as Faculdades de Educação e os Departamentos de Educação poderão partir para a formação do educador: questionar o Conselho Federal de Educação? Transgredir o que ele determina de cima para baixo (sempre sem ouvir as bases)? Elaborar novos currículos, com o risco de não apostilamento dos respectivos diplomas? Como professores, assumir empiricamente e consistentemente as necessidades empíricas das nossas comunidades, levando em consideração os conhecimentos básicos e o contexto sócio-econômico político em que nossas universidades estão inseridas?

SAVIANI - Sobre essa questão da Pedagogia, recentemente eu fui convidado para uma reunião com os professores da Universidade Federal de Curitiba. Eles estão preocupados em reformular o curso de Pedagogia. Chegando lá, a primeira coisa

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que perguntei foi a seguinte: "vocês estão querendo reformular o curso de Pedagogia, mas por quê? Não está bom assim?" Por que eu comecei com esta pergunta? Porque, via de regra, há uma crença de que a estrutura curricular resolve o problema, quando não é aí que está o problema fundamental. Leis vêm e vão, pareceres vêm e vão, modificam-se estruturas, excluem-se disciplinas, incluem-se outras, criam-se habilitações, aumenta-se a carga horária de uma,

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diminui-se de outra... e o problema fundamental continua intocável. Enquanto'as mudanças forem feitas apenas através de leis, não se farão mudanças realmente efetivas e nós estaremos laborando em equívoco, segundo eu penso.

O problema do Parecer 252 não me parece ser o principal. O principal, a meu ver, é: o que as pessoas que trabalham com educação numa universidade pretendem, o que é preciso desenvolver? Veja, por exemplo, no caso das habilitações, a cadeira Teoria e Prática de Supervisão. Essa cadeira pode ser dada de diferentes modos. Se se tem a consciência de que é necessária uma fundamentação teórica maior, pode-se organizar o curso de Pedagogia de tal modo que cadeiras como essa complementem uma formação séria, uma formação consistente, ao invés de se ficar num inventário de técnicas, num inventário de receitas que são um tanto impalpáveis ou inaplicáveis. Agora, não é a mudança de um parecer que vai provocar esse tipo de alteração. Parece-me que o fundamental, aí, é a universidade se voltar para as exigências concretas do processo de escolarização, buscar compreender isso em termos amplos, em termos, por exemplo, de uma fundamentação teórica séria; é só a partir daí que será possível fazer alguma coisa que tenha alguma consequência. Do contrário, estaremos protelando a solução do problema, através de ajustes curriculares que não mexem com o fundamental.

Sobre isso, gostaria de aproveitar a oportunidade para fazer um comentário sobre a Comunicação feita por Luiz Dias Rodrigues. Não se trata propriamente de um comentário, gostaria apenas de dizer o seguinte: já que a comunicação abordou o problema do vestibular e as conseqüências geradas pela reprovação dos alunos que se candidatam à universidade, eu queria enfatizar que a universidade não é prioritária do ponto de vista da escolarização. Na medida em que a universidade é posta como prioritária, isso ocorre já por um viés, já porque a perspectiva de tratamento das questões educacionais é a perspectiva dominante, a perspectiva de classe dominante. Então, o aparelho escolar é entendido como uma pirâmide, em que a base está a serviço da cúpula. Tudo é feito em função do ensino superior e daí a preocupação que o cerca. E o ensino superior, por sua vez, se descuida do ensino

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dos outros graus. No estudo que estou realizando agora (e que devo apresentar amanhã em Belo Horizonte), enfatizo esse tipo de problema, o da escola como um instrumento da cultura erudita. Mas a cultura popular só vai ser instrumento de libertação do povo, se for formulada em termos eruditos. A valorização da escola, então, teria de estar associada à aquisição dos instrumentos capazes de elaborar e dar uma forma erudita à cultura popular, forma esta que lhe permitiria disputar a hegemonia com a cultura dominante. Agora, o que ocorre com a universidade, é que ela volta as costas para a cultura popular, para a educação de 1° e 2° graus, limitando-se apenas a preparar, displicentemente, as pessoas que operam e garantem a rotina dessas escolas, e o faz, inclusive, como ato de superior concessão. Em certo sentido, quase que existe uma mentalidade de que a universidade, quando prepara professores de 1° e 2° graus, está fazendo uma concessão, do alto de sua sapiência. Quer dizer, a universidade é uma instituição de alta cultura, e é para essa alta cultura que ela se volta.

As perguntas que levanto são as seguintes: Qual a Universidade que estaria em condições de efetuar uma avaliação crítica da política educacional do Estado em que se situa? Se a gente analisar as universidades, hoje, no Brasil, dificilmente se encontrará uma em condições de fazer uma avaliação crítica da política educacional de sua região: não dispõe de dados, não dispõe de elementos, porque, na verdade, ela se volta para si mesma. Qual a Universidade que estaria em condições de efetuar um diagnóstico razoavelmente preciso das condições de funcionamento da rede escolar de seu Estado? Está aí outra coisa que, via de regra, não constitui preocupação da universidade. Qual a Universidade que estaria em condições de avaliar criticamente os conteúdos, métodos e materiais didáticos predominantes nas escolas do Estado? Que estaria em condições de propor medidas capazes de aumentar o índice de alfabetização na primeira série do 1° grau e reduzir os índices de evasão e repetência nessa mesma série? São problemas que, em geral, ficam alheios à universidade, ao próprio curso de Pedagogia que estaria, inclusive, formando elementos para trabalharem na rede escolar Qual a Universidade que mantém programa sistemático para qualificação de pessoal para o magistério das quatro primeiras séries do 1° grau? Que mantém equipes permanentes de pesquisa sobre as relações entre conteúdos da cultura popular e formas eruditas veiculadas pela escola? Que está preocupada em estudar os efeitos da modernização acelerada sobre a educação escolar de 1° grau? Modernização acelerada quer dizer esse processo de desenvolvimento predatório que tem caracterizado o Bra-

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sil nos últimos anos. Os efeitos dessa modernização na escola de l ° grau também têm permanecido alheios à universidade.

Como essas, eu poderia ainda arrolar uma série de outras questões, isso limitando-me apenas ao aparelho escolar. Parece-me que o Centro de Educação de uma Universidade, quando constitui um Curso de Pedagogia a fim de formar especialistas para trabalharem nas escolas de 1° e 2° graus (e mesmo fora das escolas -nas empresas), quando constitui um curso de mestrado para formar especialistas em educação para trabalharem nas próprias universidades e em outros setores, teria que tomar a educação como objeto primordial de suas reflexões, de seus estudos, e aprofundara análise das

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condições concretas em que é produzida a educação brasileira. Sem isso, estaremos perdendo nosso tempo com discussões burocráticas, com montagem de currículo - quantas horas eu gasto com isto, quantas horas com aquilo?... - e o essencial fica à margem. É importante não invertermos a situação, não entrarmos na jogada tecnocrata de colocar os meios como fins e os fins como meios. É importante que a gente dê, justamente, ao secundário a importância secundária e, ao fundamental, a importância fundamental. Para isto, é possível ganhar espaço no interior da universidade, na medida em que a gente assume essa atitude, porque os entraves que a universidade cria, acabam sendo, em boa parte, referendados por nós. Quer dizer, a força que nós teríamos de remover esses entraves, nós deixamos de utilizar. Ao contrário, tendemos a usar os entraves como justificativas para uma certa incapacidade ou uma certa falta de disposição de assumir efetivamente a tarefa que nos cabe de enfrentar os problemas fundamentais.

Bem, não sei se respondi a pergunta, se fui muito agressivo nessas colocações, mas tive de ser incisivo para chamar a atenção para os aspectos de interesse fundamental.

PERGUNTA - Como reestruturar de forma geral o currículo dos cursos de Pedagogia que formam técnicos para oferecer ao pessoal da área de educação melhores condições de fundamentação, para se formar mentes críticas e capazes em educação?

SAVIANI - Bom, em parte, essa pergunta eu acho que já respondi. Talvez só coubesse acrescentar que, com o Parecer 252, o Curso de Pedagogia ficou dividido em dois extremos, entre os quais se abre um fosso enorme. O primeiro, é a parte básica e comum que ficou, inclusive, atrofiada e precária. E o segundo, é a parte das

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habilitações técnicas. O que me parece necessário é, justamente, romper com essa cisão ou preencher esse fosso, e estabelecer uma conexão entre a parte básica e a parte das habilitações de tal modo que estas se voltem para a problemática concreta da educação brasileira. Isso não será feito com reformulações de currículo. Será feito apenas na medida em que os professores que trabalham nessas áreas percebam a necessidade de uma fundamentação teórica maior e busquem as formas de desenvolver isso. Aí parece fundamental que o curso seja desenvolvido sem perder de vista a situação concreta da educação e da própria rede escolar, de tal modo que as exigências de compreensão dessa realidade, as exigências de ordem teórica, possam ser evidenciadas de modo a se buscar os meios de suprir essas necessidades.

PERGUNTA -A educação de adultos, hoje, não significaria no nosso contexto, uma falácia, uma forma de esconder a grande quantidade de analfabetos e não-alfabetizados? Acredito que a Filosofia da Educação de ontem rião é diferente da de hoje, uma vez que os pontos de vista dos dominadores são os mesmos.

SAVIANI - Bom, eu não sei exatamente a que... Se a pessoa que fez a pergunta quiser explicitar, eu gostaria, porque não sei se está se referindo a uma menção que fiz de educação de adultos antes sendo entendida mais como um processo de alfabetização e, hoje, sendo dissolvida na educação permanente, enquanto qualquer modalidade de educação que se desenvolva para adultos. Nesse sentido, os cursos de pós-graduação seriam educação de adultos, assim como o seriam os cursos de especialização, de treinamento de pessoal nas empresas, etc. Se foi a isso que a pergunta se referiu, eu não sei o que lhe responda. Poder-se-ia dizer que não é diferente da de ontem. E, quanto à explicação "uma vez que os pontos de vista dos dominadores são os mesmos": a gente poderia dizer que a manutenção da educação a partir das perspectivas dos dominadores, isto é, se a educação de adultos proposta antes era feita a partir das perspectivas dos dominadores e agora também, então nesse sentido elas não se distinguem; mas, parece-me necessário evidenciar aí que o fato de os pontos de vista permanecerem não significa que as medidas também se mantenham, que o teor delas não se altere. Mesmo porque - eu não pude detalhar isso na minha exposição - quando a gente fala de ponto de vista dos dominadores é uma maneira de captar as diferenciações estruturais da sociedade, mas os dominadores também não são monolíticos: aquilo a que chamamos classe

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dominante compõe-se de frações que disputam, entre si, a hegemonia, e, no processo objetivo em que se trava a luta no seio da sociedade, é importante distinguir qual a fração principal da classe dominante que, portanto, exerce o domínio e que se revela hegemônica, e quais são as frações que não integram diretamente os mecanismos de dominação, mas disputam essa hegemonia. Porque vai ocorrer, a partir disso, todo um processo de alianças: alianças, por exemplo, da classe dominada com frações não dominantes da classe dominante, no sentido de abalara hegemonia da fração dominante e abrir brechas ou fissuras no bloco do poder. É nesse sentido que faço os comentários, sem ter entendido bem o que o perguntador quis dizer com a não diferença entre a educação de adultos antes e a de agora.

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PERGUNTA - Existe possibilidade de usar "moss média" contra os mecanismos hegemônicos? Haveria uma fatalidade apocalíptica de ver ou ler em tudo uma recomposição desses mecanismos? Como furar esse bloqueio?

SAVIANI - Essa pergunta eu acho muito interessante, porque, inclusive, me permite complementar minha exposição que, para não me alongar, tive de interromper. Em verdade, comecei minha exposição com uma pergunta: Quais as perspectivas da educação brasileira atual? Ela não teria perspectivas? Polarizei duas respostas: a puramente pessimista (tudo é negro, não há perspectivas); e, de outro lado, a resposta otimista (tudo é claro, são ótimas as perspectivas, estamos na crista da onda, nunca as coisas estiveram tão boas) - e frisei que estas duas posições eram igualmente ingênuas. A partir daí, as considerações feitas tenderam a vincular as propostas educacionais a interesses no âmbito da sociedade. Então, o que tentei enfatizar foi que aquelas frases geralmente são analisadas, vistas da perspectiva dominante e, nesse sentido, sugerem uma certa fatalidade: na medida em que a classe dominante, no interesse de preservar a dominação e a hegemonia, vai recompondo os mecanismos, efetivamente, a recomposição dos mecanismos serve à perpetuação, dessa maneira, da classe dominante. Ocorre que isso se dá quando a história é lida na perspectiva da classe dominante. O problema que se coloca é, justamente, o de se ler a história a partir da perspectiva da classe dominada.

Essa releitura é que vai constituir aquilo que chamei de teoria crítica. Por quê? Porque só nessa releitura é que essas manifestações são desvendadas como mecanismos de recomposição de hegemonia. Na primeira leitura, não. Na primeira leitura, essas mudanças são apresentadas como alternativas de solução dos problemas

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de toda a sociedade, como alternativas de se aperfeiçoar o processo de escolarização, no sentido de que ele venha a atender os interesses de toda a sociedade. Essa chave INTERESSES DE TODA A SOCIEDADE é que traduz, justamente, a pretensão e a busca de hegemonia pela classe dominante, ou seja, a obtenção do consenso: quer dizer, proposição de metas que sejam vistas não apenas por ela como desejáveis, mas pela sociedade em seu conjunto; portanto, proposição de metas que sejam consideradas desejáveis também pelas outras classes e frações de classes. Agora, numa releitura crítica, assim como indiquei a vocês que as fases não se sucedem de tal modo que a seguinte anula a anterior, mas que elas se superpõem (e daí eu poder utilizar essa idéia de mecanismos de recomposição de hegemonia), assim também os interesses dos dominados estão presentes desde o início e buscam formas de se articular, de se manifestar em termos de uma teoria que expresse, que traduza esses interesses. Isso, nós podemos ver em termos universais, em termos internacionais, na evolução da sociedade capitalista, nas diferentes teorias que vieram no sentido de traduzir esses interesses, teorias essas que buscavam orientar uma ação orgânica da classe dominada no sentido de fazer vigorar, prevalecer e efetivar os seus interesses; teorias essas que, naturalmente, provocavam uma reação da classe dominante no sentido de reformular sua própria concepção através daquilo que chamei de recomposição dos mecanismos.

No caso do Brasil, que eu gostaria de ter abordado mais detidamente mas não tive tempo, na década de 20, no início deste século, já se desenvolvem movimentos que tendem a articular o processo escolar em função dos interesses das camadas desfavorecidas, da classe dominada. Jorge Nagle, quando analisa a Educação na Primeira República, faz referência ao anarquismo, ao socialismo e àquilo que ele chama de "maximalismo", que eram movimentos que visavam traduzir os interesses da dasse dominada e que também tinham propostas em relação à função da escola. A década de 20 se caracteriza por lutas bastante fortes, por lutas sociais, greves, uma série de movimentos e organizações (o próprio Partido Comunista é fundado em 1922...). Há uma série de levantes. A Revolução de 30 vem ocorrer em função de toda uma crise que se desencadeava desde o início do século e, no quadro da escolarização, vamos assistir, no início da década de 30, o conflito entre a ideologia católica e a ideologia dos Pioneiros da Escola Nova. Esse conflito é arbitrado pelo Estado, que utiliza uma e outra para garantir um predomínio sobre a sociedade. Basta lembrar que na Constituição de 34, por exemplo, as teses da LEC (Liga Eleitoral Católica) são todas incorporadas à Constituição; a maioria, quase totalidade, das teses dos

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Pioneiros, também o são. Agora, os Pioneiros já estavam na burocracia estatal, já dirigiam o aparelho escolar do Estado; e os católicos se opunham à ideologia dos Pioneiros. Mas Francisco Campos endossava a concepção dos católicos - e o governo desempenha um papel de conciliação. É justamente através da conciliação dos interesses das facções dominantes que a hegemonia é mantida. Agora, na medida em que os Pioneiros da Escola Nova desenvolvem sua concepção, num certo sentido o poder contestatório da classe dominada é atenuado, porque a teoria dos Pioneiros se apresenta como avançada e como a tradutora dos interesses dos dominados. Porém, na verdade, ela representa nada mais que a tradução dos interesses de uma das facções da própria classe dominante. E, com isso, num certo sentido, foram submergidos os movimentos de reação e tentativas de organização da classe dominada. Esses movimentos voltam, mas

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com outra modalidade, a partir da década de 50, agora já enfraquecidos em relação ao ímpeto que tinham na década de 20. No entanto, vão crescendo e assumem na periferia do sistema oficial de ensino uma força bastante grande no fim da década de 50 e início da de 60, através daqueles movimentos de cultura popular e do MEB - Movimento de Educação de Base - que vão surgindo. Enfim, são todos depois sufocados a partir de 64, quando, ao que parece, a classe dominante chegou à conclusão de que é muito difícil obter a hegemonia, obter esse consenso; concluiu que a única forma de garantir o domínio seria através da dominação mesmo, ou seja, da força: recuando os mecanismos de persuasão, em benefício dos mecanismos de repressão. Este é o processo que a gente assiste após 64, em que a repressão se tornou dominante, sendo, em seguida, associada a toda uma série de mecanismos de persuasão que são acionados através dos meios de comunicação de massa, com, inclusive, esquemas bastante bem elaborados, com assessorias bastante eficientes (de psicólogos, sociólogos, economistas e outros), através da chamada Assessoria de Relações Públicas, que organiza programas e mecanismos de propaganda destinados a criar a persuasão em relação à necessidade da Revolução, e a Revolução como sendo tradutora dos interesses de toda a sociedade.

Esse processo está associado ao movimento de modernização acelerada que, por outro lado, vai complexificar a sociedade, criando grupos cada vez mais compactos, e que permite entender, agora, toda essa situação difícil que estamos vivenciando, com o aparecimento de reações, inclusive nos meios operários. Tais reações, às vezes, perante os analistas menos avisados, soam estranhas; eles começam a pensar: como, num país que viveu sob censura e sob repressão durante

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tantos anos, de repente, começam a espocar, aqui e ali, movimentos de reivindicação, greves, etc? Essa população toda, bombardeada por mecanismos de propaganda que visavam a persuasão no sentido de vetar todo tipo de contestação, como, de repente, passa a contestar? Entretanto, esse tipo de análise esquece que através da modernização acelerada a sociedade se complexificou e, com isso, o proletariado, quer dizer, a classe dos trabalhadores urbanos se tornou mais densa, mais forte e, conseqüentemente, em condições de passar a exigir que ela seja considerada, que seja levada em conta - e daí esses movimentos todos. Aí está associado outro problema - no qual não poderei entrar - que diz respeito à própria direção que o Estado tomou, fortalecendo-se, e, nesse sentido, o papel que passou a desempenhar no começo do período revolucionário, logo a partir de 64: justamente o de, através de uma burocracia técnico-militar, cuidar do controle político de tal modo que os empresários ficassem livres para cuidar da prosperidade de seus negócios. Na medida em que isso levou a uma participação cada vez mais crescente do Estado na economia, no processo produtivo, através das empresas estatais, isto acabou se chocando com os interesses dos próprios empresários, que passaram ater um papel secundário em relação ao aparelho estatal. Hoje eles reivindicam para si o papel principal e pretendem que o Estado fique num papel secundário, sempre servindo aos interesses empresariais, tanto os nacionais quanto os internacionais. Então, a crise que se vive hoje está, em boa parte, marcada pêlos grupos empresariais que vêm se formando. Quando a gente vê empresários defendendo as negociações diretas, defendendo o direito de greve, isso está associado, justamente, ao objetivo de fazer recuar o poder do Estado, à defesa da privatização da economia que está toda nessa direção. Então, há, aí, toda uma complexidade de aspectos: o processo social é contraditório e essas contradições é que precisam ser consideradas, para fazermos, realmente, uma análise crítica, uma análise objetiva que dê conta do processo efetivo.

A escolarização vai entrar nesse quadro: Se a escola é um instrumento para elaborar de modo erudito uma concepção do mundo, então, se a concepção de mundo das classes dominadas (aquela concepção que traduz os interesses dos dominados) quer ter pretensões a uma hegemonia essa concepção que está difusa aí no senso comum, ou melhor, no bom senso, e misturada com o senso comum que está impregnado de elementos constitutivos da ideologia dominante, essa concepção tem que ser elaborada, sistematizada, trabalhada. E a escola é um dos instrumentos de se trabalhar isso. Daí porque a gente vê que todos esses instrumentos

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reivindicatórios, todos os movimentos que procuram se situar a serviço dos interesses dominados, valorizam a escola, a escolarização -justamente a que trabalha conteúdos culturais - de modo a atingir um nível de erudição que permita a disputa pela hegemonia. Isso, podemos constatar na década de 20, no Brasil, e talvez possa, inclusive, constituir-se numa pista para se fazer a "crítica da crítica" da educação brasileira hoje, quer dizer, aquela crítica que tende a considerara escola como sendo um instrumento que só pode servir aos interesses dominantes.

Quanto à pergunta "como furar esse bloqueio?", se seria uma fatalidade apocalíptica, onde em tudo se vê a recomposição dos mecanismos da classe dominante - eu responderia que não se trata dessa fatalidade. É preciso ver que a classe dominante vai, é claro, estar presente em tudo, buscando garanti r a hegemonia. Ao se ler isso (portanto, ao se fazer essa constatação), é necessário, também, levar-se em conta que aqueles mesmos instrumentos que servem à hegemonia da classe dominante são instrumentos que devem ser utilizados para estabelecer a hegemonia oposta. Então, noutros termos, se a escola é um instrumento de hegemonia, nós não podemos descurar; se queremos estabelecer um

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novo bloco de poder, não podemos descurar desse instrumento. Porque descurar dele seria deixá-lo ao uso exclusivo da classe dominante. Cuidar dele, vejam bem, não significa simplesmente anular a influência da classe dominante. Temos a tendência a ver as coisas sempre por um lado só. Mas ocorre que, se o processo é contraditório, isto significa que os dois lados estão contidos no mesmo fenômeno. Então, cuidar dele, significa, ao mesmo tempo, retirá-lo do domínio exclusivo da classe dominante e utilizá-lo como instrumento de hegemonia da classe dominada. É no mesmo ato que esses dois aspectos se cumprem. É na medida em que eu retiro, que cuidando dele busco retirá-lo da influência exclusiva da classe dominante, que eu o utilizo como instrumento de hegemonia da classe dominada; e é na medida em que o utilizo como instrumento da classe dominada que estou retirando-o do controle exclusivo da classe dominante.

PERGUNTA - Gostaria que você discutisse um pouco mais o termo qualidade de ensino, que me pareceu ter ficado situado independente das ideologias contidas nas correntes educacionais, como se a qualidade fosse um dado neutro, científico, não variando segundo épocas e grupos. E, na mesma linha, qual seria a conceituação de bom ensino, por parte do professor, ao assumir funções de instruir e dirigir?

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SAV/ANI - É normal que apareçam perguntas que, num certo sentido, revelam expectativas de que, numa exposição, a gente resolva - para usar uma expressão do Manifesto dos Pioneiros - os "magnos problemas nacionais", entre os quais o principal seria o da educação. Na verdade, eu não utilizei o termo qualidade de ensino com uma característica neutra. Ao contrário, a crítica à qualidade como uma atitude conservadora se funda, justamente, na não-neutralidade da qualidade do ensino e na não existência de critérios permanentes de qualidade. Porque aqueles que defendem a qualidade do ensino tendem a raciocinar assim, quer dizer, com critérios permanentes, como se a qualidade do ensino não variasse. Então a quebra da qualidade significa a quebra daqueles padrões que deveriam ter persistido. Mas, se a sociedade se alterou, como manter aqueles padrões? Na verdade, ela varia de época para época, de lugar para lugar. Costumo dizer, por exemplo, que na Grécia o ensino qualitativamente bom não era o mesmo que o de hoje. E na própria Grécia antiga, o ensino qualitativamente bom em Esparta era uma coisa e em Atenas era outra. A questão da qualidade de ensino, do modo como procurei abordar, não é neutra. E quando se defende a qualidade a partir de padrões prefixados, a neutralidade não está existindo: trata-se, no caso, justamente da vinculação da qualidade a determinados interesses nos quais se encaixam aqueles padrões e pêlos quais deveriam ser mantidos. Quando critiquei a Escola Nova, era justamente a isso que estava me referindo. Ao enfatizar a qualidade, a Escola Nova estava defendendo um determinado tipo de qualidade - e a análise histórica nos fornece elementos para esta afirmação. Na medida em que a difusão da escola se deu de tal modo que os resultados não correspondiam ao esperado, concluiu-se que não bastava difundir a escola, era preciso difundir determinado tipo de escola. Então, a qualidade teria de ser cuidada: se não se cuida da escola, os interesses dominados podem acabar se manifestando, chegando até a abalar a hegemonia. Por qualidade de ensino, não entendo algo neutro, mas algo que se vincula aos interesses de determinadas camadas da sociedade. Por isso é que me parece fundamental, quando trabalho na educação, o posicionamento: é preciso saber de que lado eu estou, porque os critérios de qualidade vão ser definidos a partir daí. O ensino qualitativamente bom vai ser qual? É claro que do ponto de vista d.e uma participação maior do povo no poder vai ser, justamente, aquele ensino que dê instrumentos que efetivem essa participação. O ensino que não dê esses instrumentos, por mais sofisticado que seja, é qualitativamente ruim, tem uma qualidade inadequada.

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Bom, a partir daí seria possível lidar com outra parte da pergunta: "o que seria um bom ensino, e como o professor, nas funções de instruir e dirigir, poderia caracterizar o que seria um bom ensino?" Eu acho que o bom ensino vai depender, justamente, dessa posição, desse posicionamento. É claro que aqui haveria uma série de outras coisas a se especificar - e que, infelizmente, o tempo não me permite entrar em detalhes - sobre a natureza do que seria um bom ensino, porque isso implicaria análise não só de estrutura, mas de conjuntura. Quando a gente defende, por exemplo, a escolarização - e eu afirmei que, num certo sentido, a Escola Nova exerceu uma função de freio e de baixa da qualidade - é claro que estou aí entendendo a baixa da qualidade do ponto de vista dos interesses dos dominados. A qualidade do ensino que abrange as camadas desfavorecidas tendeu a baixar, ou seja, aqueles instrumentos fundamentais a que me referi não são absorvidos por essas camadas. Eu teria exemplos específicos para ilustrar isso, como o caso de uma professora ensinando numa escola experimental, em que a orientação nova não se revelava eficaz em alguns aspectos da aprendizagem dos alunos em aritmética. Assim, por exemplo, o papel da tabuada. Como é que se explica isto: ninguém aprendia, porque se desaconselhava que a tabuada fosse decorada. Então, o que ela fez? Expôs os mecanismos e, na medida em que os alunos entenderam os mecanismos, ela disse: "bem, vocês entenderam como é que se faz para descobrir os resultados. Agora, para não predsarem ficar consultando toda hora a tabela, vocês vão estudá-la e decorá-la. Então, quando forem fazer as contas, já estarão sabendo" - e aplicou a tabuada. A classe dela começou a subir de posição, quer dizer, seus alunos aprendiam e os das outras classes, não. Aí todas as outras professoras queriam saber qual era seu segredo, e ela, depois de algumas discussões, "abriu o jogo". Naturalmente, a orientadora ficou frustrada,

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achando que aquilo não se deveria fazer, que a matemática moderna é incompatível com esses métodos que obrigam o aluno a decorar. Ela disse: "Não, eu expliquei os mecanismos e reforcei bem quais as formas de se resolver os fatos fundamentais das operações. Só depois é que recomendei aos alunos que decorassem a tabela - feita por eles mesmos - e passei a cobrar isso deles. Mas expliquei as razões pelas quais era necessário decorar, e, com isso, evitei aquele problema anterior da decoração mecânica, do decorar por decorar". Esse é um exemplo - e eu poderia dar uma série de outros - que mostra como o problema do ensino não é resolvido abstratamente, não é resolvido à luz de uma concepção que pinta aí, que diz "não, agora o bom ensino, o ensino moderno, é aquele que evita que os alunos decorem, decorar não é necessário, decorar não é aprender..."

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Esse é um problema que eu examinei, também, na Pedagogia, sobre o conceito de Geografia, quando discutimos uma definição que dizia o seguinte: "Geografia é a descrição e interpretação de paisagens e não memorização de nomes" (por sinal, até, de um autor daqui do Nordeste). Então, apresentei essa afirmação para os alunos discutirem. À medida que a discussão se aprofundava, foi-se evidenciando que essa frase representava uma polarização sem maiores consequências, sem maior significado. Vejam bem, como é que se pode interpretar e descrever paisagens, sem memorizar nomes? Se eu não retenho os nomes das coisas, como é que posso descrever o que vi? Então, na verdade, a oposição não estava aí.

PERGUNTA - Com a constatação da reprodução das classes dominantes pela escola, em todos os níveis, é falar, até certo ponto, sobre o óbvio, sobre o que as classes dominantes procuram lapidar, atualizar. Porém, com saída ou saídas frente ao eterno dilema do povo brasileiro - condições de vegetação, apenas -: l) Fazer da escola mola propulsora dos instrumentos básicos da participação na sociedade, na comunidade e, se assim acontecendo (estou entendendo), fazer concretamente o quê? 2) Fazer da educação algo para o fundamental? Se isso acontecer, qual o fundamental? Quem o diria ser?

SAVIANI - Não se trata de fazer da educação mola propulsora da sociedade. Eu gostaria que a insistência que fiz na valorização da escola não fosse entendida nesse sentido, porque isso corresponde a uma concepção ingênua e idealista que supõe que a partir da educação se possa mudar a sociedade. Não, não se trata disso. Parece-me que o fundamental é articular a escola com as forças efetivas da sociedade. Parece-me que está aí o grande estrangulamento: como articular a escola com os movimentos sociais que caminham na direção da transformação da sociedade. Quando insisto, aqui, na valorização da escola, é partindo daquilo que eu já mencionei antes: se a escola é um instrumento de hegemonia, é preciso utilizá-lo, e, nesse sentido é que ela cumpriria uma parte do papel educacional - na estrutura atual acredito que essa é a parte principal - que é a de fazer com que se passe da classe em si para a classe porá si, ou seja, desenvolvimento da consciência de classe. A escola só poderá desenvolver um papel que contribua - vejam bem, não que transforme, mas que contribua - para a transformação da sociedade, na medida em que ela discuta as condições essenciais em que os indivíduos vivem. Então, nesse sentido, ela permitiria-a par de uma função técnica, que é a função daqueles instrumentos fundamen-

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tais de acesso à cultura erudita, - ela facilitaria aos indivíduos a percepção da divisão de classes e de seu pertencimento a uma dessas classes. A escola, nesse caso, só poderia cumprir essa função, na medida em que seu papel político estivesse explícito e não implícito. Papel político quer dizer mostrar como se dão as relações de poder e quais as bases de poder. Isso levaria, então, à descoberta do lugar que se ocupa no processo produtivo. Descobrindo-se o lugar que se ocupa no processo produtivo é que, então, seria possível a organização para reivindicações de acordo com os reais interesses das camadas dominadas e, dessa forma, caminhar para a superação dos problemas enfrentados por essas camadas.

Quanto a isto, também não posso, infelizmente, me estender, mas trata-se de um tema que requer muitos estudos e que está em discussão hoje, envolvendo a necessidade de uma elaboração mais clara de uma teoria da educação na sociedade capitalista. As teorias de que dispomos revelam uma série de insuficiências e, hoje, um dos mais importantes trabalhos a serem feitos - e que estamos tentando realizar - é o de avançar em direção a uma teoria da educação que dê conta do mecanismo contraditório em que funcionam a educação e a escola na sociedade capitalista. Captando essas contradições é que será possível ver quais as possibilidades de articular a escola com os movimentos concretos tendentes a transformar a sociedade.

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CAPITULO DEZOITO

PAPEL DO DIRETOR DE ESCOLA NUMA SOCIEDADE EM CRISE

Considerado(1) o seu caráter de instituição, a escola possui uma organização que diferencia um conjunto de funções hierarquizadas, desempenhadas por diferentes atores que, através de objetivos específicos concorrem para a realização do objetivo central que é a razão de ser da instituição. O diretor apresenta-se, então, como o responsável máximo no âmbito da unidade escolar e seu papel poderia ser definido genericamente nos seguintes termos: garantir o bom funcionamento da escola. Obviamente esse "bom funcionamento" supõe a articulação das diferentes funções bem como a harmonização dos interesses dos diferentes atores no interior da escola; de outro lado, considerando-se que a unidade escolar integra uma rede, o papel do diretor extrapola o âmbito da unidade articulando-a com as exigências do complexo escolar configurado no chamado "sistema de ensino".

Evidentemente a caracterização do papel do diretor supõe o entendimento do que significa "bom funcionamento" da escola; ou, noutros termos, supõe a resposta à pergunta: qual é o objetivo central que é a razão de ser da instituição

1. Escrito em abril de 1979 por ocasião da greve do magistério do Estado de São Paulo e conseqüente punição de diretores de escola pelo Secretário da Educação. Publicado em "Diretor", jornal oficial da UDEMO (União dos Diretores de Escola do Magistério Oficial do Estado de São Paulo) no número de maio de 1979.

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escolar? Com efeito, garantir o "bom funcionamento" da escola implica garantir as condições que viabilizem a consecução de seu objetivo central.

Ora, só se compreende o significado da expressão "bom funcionamento" de uma instituição quando se compreende a natureza dessa mesma instituição. Assim, por exemplo, é próprio de uma empresa automobilística produzir automóveis; neste caso, a direção da empresa estará cumprindo o seu papel de garantir o "bom funcionamento" da empresa, quando garante as condições que viabilizem em toda a sua plenitude o cumprimento do objetivo centrai que é a razão de ser da empresa: produzir automóveis.

Pois bem: a partir dessa analogia (que não pode ser levada muito longe sob pena de se dissolver a especificidade dos diferentes tipos de instituição) percebe-se que a escola é uma instituição de natureza educativa. Ao diretor cabe, então, o papel de garantir o cumprimento da função educativa que é a razão de ser da escola. Nesse sentido, é preciso dizer que o diretor de escola é antes de tudo, um educador; antes de ser um administrador ele é um educador. Mais do que isso: em termos típico-ideais, ele deveria ser o educador por excelência dado que, no âmbito da unidade escolar, lhe compete a responsabilidade máxima em relação à preservação do caráter educativo da instituição escolar. Esta é, em verdade, a condição precípua para que ele administre a escola mediante formas (atividades-meios) saturadas de conteúdo (atividades-fins).

Em termos concretos, entretanto, essa unidade de forma e conteúdo é uma unidade contraditória, estando o diretor continuamente sujeito ao risco de atrofiar o conteúdo educativo da escola (atividades-fins), hipertrofiando, em contrapartida, a forma (atividades-meios) chegando mesmo a operar uma inversão que tende a subordinar o fim aos meios. Diríamos, pois, que o diretor se vê concretamente diante de focos de pressão do "sistema" que privilegia a forma sobre o conteúdo impondo um conjunto de exigências burocrático-administrativas; de outro lado (de baixo e de dentro), a pressão do conteúdo educativo que necessita ser desenvolvido no interior da escola sem o que ela se descaracteriza, se rotiniza e perde a razão de ser. Em termos ideais caberia ao diretor efetuar a mediação entre os dois focos de pressão, saturando de conteúdo as formas que decorrem das exigências da chamada "instância superior" (o sistema); sua ação se dirigiria, então, no sentido de subordinar e adequar as prescrições administrativas à finalidade educativa colimada no interior da escola. Na prática, poderíamos mesmo dizer que um diretor será tanto mais educador quanto maior o grau de

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autonomia que mantém em relação às exigências do "sistema", subordinando suas formas aos conteúdos educativos; e será tanto mais administrador quanto menor o grau de autonomia referido, o que o levará, em conseqüência, a se ater à rigidez das "normas superiores" mantendo-as esvaziadas do conteúdo que lhes daria sentido.

Em condições sociais normais, a própria dinâmica da instituição gera mecanismos que garantem um mínimo de equilíbrio; delineiam-se, então, diferentes perfis de diretor segundo sua maior ou menor proximidade de um dos dois pólos de pressão.

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Entretanto, em condições de crise, como aquela pela qual passa a sociedade brasileira no momento atual, a contradição necessita ser resolvida e não apenas mantida.

A atual crise da sociedade brasileira é, fundamentalmente, uma crise de legitimidade. O poder legítimo é aquele que se funda no consentimento dos dirigidos, isto é, daqueles em relação aos quais o poder é exercido. No Brasil pós-64 assistiu-se à crescente hipertrofia da sociedade política (setor governamental) em relação à sociedade civil (conjunto das formas de organização dos diferentes setores da população da qual emana a legitimidade do poder exercido). Em conseqüência, a sociedade política que detém o monopólio do uso da força (mecanismos repressivos) perdeu o apoio da sociedade civil que opera na base do consenso (mecanismos persuasivos). Decorre daí, o caráter ilegítimo do poder exercido pelo setor governamental.

No âmbito da organização educacional, essa situação de crise consubstanciada na contradição entre sociedade política e sociedade civil se manifesta através da contradição entre a "administração superior" e a atividade educativa que se desenvolve no interior das escolas. A crise decorre do fato de que as exigências da "administração superior" emergem como incompatíveis com a atividade educativa e vice-versa. Com isso rompe-se o equilíbrio e a contradição precisa ser resolvida. O "sistema" acredita resolvera contradição impondo pela força as suas exigências e com isso só faz aguçar a contradição de vez que projeta sobre a escola, típico organismo da sociedade civil cujo modo de operar é a persuasão, formas típicas da sociedade política, lançando mão da repressão. A escola, por sua vez, busca resolver a contradição extraindo das exigências da atividade educativa novas formas de organização administrativa; com isto torna-se evidente e se desmascara a ilegitimidade das formas até então vigentes.

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A situação acima descrita manifestou-se com meridiana clareza na recente greve dos professores da rede escolar oficial do Estado de São Paulo. A Secretaria da Educação, com base em normas de caráter administrativo, na prática, exigiu dos diretores que se metamorfoseassem em delatores, função essa diametralmente oposta à função educativa inerente ao papel do diretor de escola. À recusa, incontestavelmente legítima, de se prestar, ele próprio, ao desvirtuamento do papel educativo que lhe cabe enquanto diretor, a Secretaria da Educação respondeu com a repressão. Trata-se, obviamente, de uma flagrante injustiça com a qual não pode pactuar a sociedade civil à qual cabe manifestar-se e pressionar com todos os meios a seu alcance a fim de que sejam anuladas as penalidades arbitrariamente impostas àqueles diretores que souberam preservar a dignidade da função educativa.

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CAPÍTULO DEZENOVE

A ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO

1.INTRODUÇÃO

Quando aceitei o convite para falar aos meus colegas orientadores, minha idéia era a de desenvolver um debate, um diálogo e dar a minha contribuição. Vejam que me referi "aos meus colegas orientadores". Ao falar assim, eu quero, justamente, já colocar um ponto de partida para a minha exposição, que é o seguinte:

No meu entender, o orientador é antes de tudo um educador e, na medida em que minhas atividades têm se desenvolvido em torno da educação, considero os orientadores meus colegas enquanto nós temos uma atividade em comum, que é a atividade educativa, a atividade educacional.

Os orientadores têm uma especificidade na qual eu não me incluiria, porque não sou orientador de formação. Se pensamos na profissão regulamentada de Orientador Educacional, então eu não me situo dentro deste quadro. No entanto, essa especificidade da Orientação, eu a entendo como uma divisão de tarefas no plano da educação: uma especialidade no campo educacional e, como toda especialidade, ela só faz sentido na medida em que a área básica não seja perdida de vista. Então se o orientador é antes de tudo um educador, isto significa que a finalidade que ele cumpre

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através da sua ação é uma finalidade educativa. Conseqüentemente, para que ele cumpra adequadamente sua função, é necessário que tenha constantemente presente a sua característica de educador.

A partir daí, segue-se uma outra premissa que eu queria colocar para a minha exposição, que é a seguinte: a educação é sempre um ato político, a atividade edu-

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cacional é sempre um ato político. Se o orientador é antes de tudo um educador, se a educação é sempre uma atuação política, então segue-se que a atividade do orientador é uma atividade política. É a partir dessa premissa que eu me propus a discutir; hoje, a atual realidade brasileira.

Parece-me que, para se colocar a questão crítica da educação brasileira e para situar a atividade do orientador no âmbito dessa perspectiva crítica, faz-se necessário analisar o contexto da situação brasileira de hoje, portanto aqueles elementos que ultrapassam a educação e que, ao mesmo tempo, são a arena, aquele terreno no qual se exerce a atividade educativa. Ao colocar a questão nesses termos e, ainda, sem perder de vista o tema proposto para debater - "analise crítica da educação brasileira atual" - eu também tive em mente a seguinte constatação: tenho percebido a categoria dos Orientadores Educacionais como uma categoria bastante dedicada, extremamente interessada em levar a bom termo a sua tarefa, extremamente empenhada em se colocar do lado dos educandos, buscando fazer com que seus objetivos, seus interesses, suas perspectivas sejam obtidas.

Ocorre-me, então, que, nesse quadro geral, há o risco - se nós não aprofundarmos a análise, não chegarmos a uma perspectiva crítica da própria profissão de orientação - há o risco de que todo esse idealismo, toda essa dedicação possa produzir resultados inversos a todos aqueles que os próprios orientadores estão buscando. É nesse sentido que me parece fundamental que os orientadores assumam essa perspectiva crítica, para que lhes seja mais fácil adequar as intenções às ações, adequar a ação que desenvolvem aos objetivos que querem atingir

É partindo disto que, paradoxalmente, vou falar hoje quase nada de Orientação, e, talvez, muito pouco de Educação. Vou falar mais do contexto brasileiro atual. Em seguida tentarei extrair algumas conclusões que apontam para a direção de como vocês poderiam elaborar a análise, por mim desenvolvida, em termos de sua ação específica de orientação.

Quando afirmo que a educação é sempre um ato político, quero com isso frisar que a educação cumpre sempre uma função política. Mas é preciso não identificar essa função política com outra função que a educação cumpre, que é a função técnica. Essas funções não se identificam, elas se distinguem. Mas, embora distinguíveis, são inseparáveis, ou seja: a função técnica é sempre subsumida por uma função política.

Vou, talvez, colocar mais ênfase na função política e menos na função técnica, o que se compreende perfeitamente: parece-me que em termos de função técnica

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vocês estão muito mais habilitados do que eu para tratar das questões do orientador educacional, de tal modo que as minhas colocações provavelmente seriam reiterativas em relação àquilo que vocês já sabem e, talvez, ficassem até mesmo aquém daquilo que vocês já têm condições de desenvolver.

Então, imaginei que a contribuição que eu poderia dar seria mais significativa na medida em que eu situasse a questão da função política e apontasse para a direção da articulação entre ambas, de tal modo que vocês pudessem subsumir a função que exercem, no âmbito de uma função política que também exercem - mas resta saber se exercem exatamente aquela que gostariam de estar exercendo, ou uma outra, que é, justamente, aquela que gostariam de estar combatendo.

2. O ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO Após este preâmbulo, passo a entrar no tema: a análise do contexto brasileiro atual. Vou abordar este contexto em 3 planos: o contexto econômico, o contexto social e o contexto político. E, cada plano vou abordar em 2 níveis: o nível estrutural e o nível conjuntural. Este esquema que acabo de indicar é apenas um esquema que tenta situar a minha exposição numa perspectiva didática. É claro que esses níveis e esses planos não são separáveis: eles se articulam. No entanto, vou abordá-los de modo distinto para que seja mais fácil entender a especificidade de cada um e, a seguir, sua articulação.

2.1. O Contexto Econômico

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2.1.1. A Radicalização do processo de desenvolvimento capitalista no Brasil. Comecemos então pelo contexto econômico. Eu diria que a nível estrutural, o contexto econômico atual se caracteriza por aquilo que eu chamaria "a radicalização do processo de desenvolvimento capitalista no Brasil". Em verdade o projeto de desenvolvimento capitalista no Brasil toma formas mais nítidas depois de 30 e vai se aprofundando, progressivamente, até assumir formas mais radicais no período posterior a 64.0 que nós tivemos então, neste período, é justamente o aprofundamento do desenvolvimento capitalista que tende a se expandir para todo território nacional e abarcar todo o conjunto da sociedade. O que é característico do desenvolvimento

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capitalista? O característico do desenvolvimento capitalista é justamente se tornar cada vez mais predominantemente industrial e urbano. Isto significa que, no processo de desenvolvimento capitalista, a própria agricultura tende a assumir a forma da indústria diferentemente, por exemplo, do que se constata no quadro de desenvolvimento feudal, no modo de produção feudal, em que, dado que a agricultura predomina nas formas próprias deste modo de produção, ocorre aí o inverso: a indústria é que tende a assumir a forma da agricultura. Nesse sentido é que a forma industrial das sociedades agrícolas é o artesanato, (ou se quiserem, para ficarmos com a expressão literal precisa - é a manufatura: a transformação da matéria-prima efetuada manualmente), enquanto que a forma do desenvolvimento industrial na sociedade capitalista é a maquinofatura. Ora, se a indústria própria da sociedade agrícola é o artesanato (ou a manufatura, no sentido literal da palavra) isto significa que as relações agrárias são predominantes na sociedade em seu conjunto. Daí que, mesmo as atividades artesanais são caracterizadas pelas relações do tipo rural, ao passo que na medida em que se aprofunda o desenvolvimento capitalista, a tendência é justamente a agricultura assumir a forma da indústria: então vamos ter justamente uma crescente maquinização da agricultura, uma crescente mecanização da agricultura. Em conseqüência, a agricultura tende a dispensar cada vez mais mão-de-obra que, por sua vez, é absorvida pelas indústrias propriamente ditas que se instalam nas cidades do interior. Neste sentido, as relações sociais cada vez mais vão assumindo a forma urbano-industrial. O que nós vemos no Brasil dos últimos anos é justamente o aprofundamento desse processo. Configura-se, assim, aquilo que os economistas chamam "a expansão das relações capitalistas no campo". O processo de produção no campo tende a assumir a forma capitalista, a forma da indústria, ou seja, o agricultor, de arrendatário, de meeiro e assim por diante, isto é, aquele que está radicado à terra, passa a ser um trabalhador livre, portanto, laqueie que vende sua força de trabalho; os bóias-frias não são outra coisa senão a expressão disto que acabo de indicar. Cito o exemplo dos EEUU, que nos ajuda a entender melhor isto. Há 100 anos, portanto, no século passado, os EEUU tomaram a decisão de espalhar por todas as regiões do país as faculdades rurais. Qual era o objetivo dessas faculdades rurais? Era justamente o de desenvolvera produção, o armazenamento e a distribuição de alimentos. Essas faculdades rurais foram fatores importantes na consolidação da potência económica e especificamente da potência agrícola em que se transformaram os EEUU,

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através da policultura crescentemente maquinizada. Ora, a instalação dessas faculdades rurais foi um dos fatores que, ao mesmo tempo, implementaram o desenvolvimento da agricultura, mas também estimularam o êxodo rural: a fixação da população rural nas cidades. Esse fenômeno não é outra coisa senão a expressão do aprofundamento do processo de desenvolvimento capitalista que ao assumir a forma urbano-industrial tende a introduzir também na agricultura esse tipo de relação social.

Se pensarmos no caso brasileiro, vamos ver que essa situação já é razoavelmente configurada no Estado de São Paulo, onde o interior é constituído de cidades de médio porte, com cerca de 100 mil habitantes (80, 100, 120 mil hab), cidades essas que se fundam numa exploração agrícola mais sofisticada e que tornam, então, possível que se constituam também indústrias fundadas na transformação da matéria-prima que essas regiões produzem.

Portanto, o caso do Estado de São Paulo indica a predominância da relação urbano-industrial na sociedade brasileira, já se nota uma situação diferente quando passamos a examinar o caso de outros Estados e vamos nos distanciando até a região CO, a região NE, a região N: ali, as relações sociais agrícolas ainda têm vigência, embora situadas no âmbito da tendência dominante do desenvolvimento capitalista que estruturalmente caracteriza o Brasil.

Bem, já poderíamos retirar uma conseqüência de caráter educacional das considerações feitas: a escola própria da sociedade capitalista expressa as relações características desse tipo de sociedade; daí porque ela se organiza segundo os padrões urbano-industriais. E a escola será tanto mais necessária quanto mais se radicaliza o processo capitalista, isto é, quanto mais avança o processo de industrialização e de urbanização. É nesse sentido que, mesmo a implantação de escolas no campo, tende a se efetivar de acordo com os padrões urbanos. Quando ela se implanta no campo ela assume o caráter de força modernizadora concorrendo para que as relações sociais do tipo rural-agrário cedam lugar àquelas do tipo urbano-industrial. Assim, a escolarização do campo se revela um fenômeno decorrente da expansão das relações capitalistas no campo. Quando eu digo que do ponto de vista estrutural o contexto econômico se caracteriza pela radicalização do processo de desenvolvimento capitalista eu quero com isto dizer que a tendência do desenvolvimento

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econômico brasileiro aponta para a permanência, ainda por um certo tempo, dessa característica; ou seja, a curto prazo, o desenvolvimento brasileiro não deixará de ser capitalista: ao contrário, tenderá a aprofundar essas características capitalistas.

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2.1.2. Crise no bloco dominante (arranhões na aliança entre a tecno-burocracia (militar e civil) e o empresariado industrial (burguesia).

No plano conjuntural como é que se manifesta o contexto econômico?

Eu diria que no plano conjuntural, o contexto econômico se caracteriza por uma crise no bloco dominante; essa crise pode ser expressa nos seguintes termos: a aliança entre a tecnoburocracia militar e civil e o empresariado, ou seja, a burguesia industrial, sofreu abalos. Esta crise se explica da seguinte forma: após o movimento de 64, estabeleceu-se um pacto entre o empresariado e os militares. A estes caberia o controle político com a finalidade de estabelecer as estratégias do desenvolvimento e garantir a ordem social, isto é, a segurança necessária ao processo de acumulação do capital. Com isto, os empresários ficavam livres para fazer prosperar os seus negócios. Ao organizar a máquina administrativa, vale dizer, ao reordenar o aparelho governamental, os militares foram chamando para assessorá-los os "técnicos de alto nível" do "staf civil (administradores, planejadores, basicamente economistas). Configurou-se assim, aquilo que está sendo denominado tecnoburocracia militar e civil. Então toda atarefa política toma a direção desta ordenação da sociedade, deste controle da sociedade, desta planificação da sociedade de modo a visar uma nacionalidade do projeto de desenvolvimento.

Isto significava basicamente o seguinte: do ponto de vista econômico, o empresariado desempenhava o papel principal - a ele cabiam as iniciativas básicas do desenvolvimento econômico. Ao aparelho governamental cabia secundá-lo, garantindo as condições ótimas para que o desenvolvimento capitalista prosseguisse sem percalços. Esse fenômeno é o que veio a ser chamado de processo de acumulação capitalista no Brasil. O processo de concentração de rendas se situa dentro desse quadro. Acontece, porém, que, na medida em que o aparelho governamental assumiu a tarefa de planejar a economia, o que ele fez foi, em parte, organizar, racionalizar as empresas estatais ainda existentes e, ao planificar a economia, ele passou a criar novas empresas estatais, que exerciam funções econômicas diretas. Neste sentido, o Estado passou a desenvolver funções econômicas diretas, a intervir diretamente no processo econômico. Assim os empresários, que desempenhavam o papel principal no processo econômico, tenderam a ficar num plano secundário, passando o aparelho governamental a exercer as tarefas principais no próprio plano do desenvolvimento econômico - o que acabou por se chocar com os interesses

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empresariais. É a isto, então, que estou chamando de crise no bloco dominante, ou, arranhões na aliança entre a tecnoburocracia militar e civil e o empresariado em geral, e mais especificamente, a burguesia industrial.

Quais os sintomas dessa crise? Ela se manifestou por diferentes meios, tendo sido registrada, por exemplo, pêlos jornais. Vou mencionar exemplos dessa manifestação, para concretizar melhor.

Uma das manifestações foi justamente a crítica que se desencadeou a partir de 74 à estatização. Os jornais vinham com frequência veiculando notícias da estatização da indústria brasileira, e advogavam uma desestatização. Paralelamente a isto, os empresários também faziam pronunciamentos no sentido de advogarem uma maior participação política. Ora, o que é a exigência de maior participação política por parte dos empresários senão a exigência de virem a desempenhar o papel principal no controle do processo económico? De 64 até 74, 75, os empresários não reivindicavam participação política; por que? Porque estava em vigência justamente um quadro que garantia, através da ação política da tecnoburocracia militar e civil, o desempenho do papel principal dos empresários.

No momento em que eles correm o risco de passar para um papel secundário, aí então, surgem reivindicações de uma participação política para a defesa de sua posição e é nesse quadro que cabe situar os outros elementos que vou mencionar em seguida: a movimentação da sociedade civil, a defesa pêlos empresários das negociações diretas, do direito de greve, etc.

Essa crítica à estatização está associada ao movimento de desburocratização. Dir-se-ia, mesmo, que atarefa principal do ministro extraordinário Hélio Beltrão não é propriamente a desburocratização, mas sim, planejar e coordenar a privatização das empresas estatais. Com efeito, a questão da privatização das empresas estatais é algo que interfere no jogo político e diz respeito, por exemplo, aos interesses de parcelas importantes dos próprios militares, que visam participar nesse processo de intervenção na economia através, inclusive, da criação de empresas estatais (ver, por exemplo, o caso da EMBRAER). Com isso, acabam transferindo para o próprio campo da economia uma certa visão nacionalista característica de parcelas consideráveis das forcas armadas. Ora, tal visão nacionalista vem gerar conseqüências em relação à tendência dominante da indústria brasileira nos últimos anos que foi justamente a articulação da burguesia nacional com a burguesia internacional, sob a direção, sob a predominância da burguesia

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internacional, ou seja, das empresas multinacionais. É nesse quadro também que a crise do bloco dominante tem reflexos internacionais

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relacionando-se, inclusive, com a política de direitos humanos do governo Cárter, bem como com a política de desestabilização dos regimes militares. Esta política está ajustada aos interesses das empresas multinacionais, que vêem na estatização da economia um risco de conflito com os pólos militares que poderiam se articular com a própria classe dominada, através da exacerbação da posição nacionalista, o que se chocaria com os interesses das multinacionais.

Quando situo essa problemática dentro da crise de conjuntura, isto significa que essa crise não altera necessariamente a estrutura. É preciso, então, compreender as relações com a estrutura, isto é, é necessário levar em conta a correlação de forças, seja no que diz respeito aos interesses que se defendem seja em referência aos condicionamentos que servem de base à tendência do desenvolvimento da sociedade em seu conjunto.

2.2. O Contexto Social

2.2.1. Configuração mais nítida das duas classes fundamentais da sociedade capitalista: burguesia e proletariado.

Passemos, então, ao contexto social, que pretendo caracterizar rapidamente aqui: no nível estrutural, o que identifico no contexto brasileiro atual é a configuração mais nítida das duas classes fundamentais da sociedade capitalista, ou seja: o empresariado industrial (burguesia) e o operariado urbano (o proletariado). O aprofundamento do processo de desenvolvimento capitalista, em termos sociais, implica exatamente nessa configuração mais nítida dessas duas classes fundamentais. Então, o que nós distinguimos no Brasil dos últimos anos foi justamente o fortalecimento da burguesia industrial de um lado e, de outro lado, a ampliação do proletariado. É justamente essa ampliação do proletariado que nos permite compreendera sua movimentação nos dias de hoje e, um certo poder de pressão que ele acaba por exercer. Com efeito, a radicalização do projeto de desenvolvimento econômico capitalista, na medida em que levou à concentração do capital, provocou também o surgimento de grandes concentrações operárias. Essas grandes concentrações operárias num certo sentido ajudam a explicar uma maior facilidade de organização da própria classe operária. Dada, então, essa ampliação do proletariado, na medida em que no nível conjuntural, no plano econômico, se caracteriza a crise (uma certa fissura na aliança entre a tecnoburocracia e o empresariado), a tendência do empresariado para ga-

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rantir o desempenho do papel dominante é, justamente, buscar a aliança do próprio proletariado. Então é nesse quadro que se compreende a defesa, pêlos empresários, do direito de greve e das negociações diretas. Agora, este fenômeno se dá a nível conjuntural e basta nos reportarmos aos acontecimentos da última semana, dos últimos 10 dias para verificarmos o quanto é conjuntural e episódica essa crise, uma vez que a despeito da defesa do direito de greve, da defesa das negociações diretas, nós vimos os jornais anunciando os empresários lamentando a não intervenção da polícia na atuação de piquetes.

Então, como é que fica a defesa do direito de greve diante disso? Quer dizer, a única forma do direito de greve se exercer seria através da persuasão pêlos colegas que assumem a greve no sentido de que os demais operários também participem do processo. Tanto que os piquetes são justamente o instrumento dessa persuasão, tendo em vista que é através dos piquetes que as informações podem ser levadas, os folhetos podem ser distribuídos, uma vez que a grande imprensa não tem dado cobertura ao movimento, chegando, mesmo, a distorcer informações com vistas ao esvaziamento da greve.

2.2.2. A movimentação da sociedade civil e as manifestações das camadas populares. Ao colocar a questão nesses termos, eu já introduzi a análise do plano social em nível conjuntural.

No plano social, do ponto de vista conjuntural identifica-se a movimentação da sociedade civil e as manifestações das camadas populares.

Por sociedade civil aqui a gente estaria entendendo os diferentes organismos não diretamente ligados ao aparelho governamental; a imprensa, a igreja, as associações profissionais (a associação dos Orientadores Educacionais, por exemplo) -são associações da sociedade civil. Então, o que nós assistimos nesses últimos anos, é justamente, à movimentação mais intensa da sociedade civil. Quer dizer, estão surgindo, brotando a todo momento, novas associações, novas organizações e as anteriores ganhando nova força, antigas associações ressurgem (como é o caso da UNE) e essa

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intensa movimentação se dá tanto ao nível daquelas associações, daqueles organismos que contribuem para que se consolidem os interesses dominantes quanto ao nível de organizações das camadas populares que buscam as formas, os canais mais adequados de se manifestarem nas mais diferentes ordens.

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Bem, vocês estão percebendo como os diferentes aspectos do contexto estão articulados: o processo econômico está ligado ao processo social, tanto ao nível estrutural quanto ao conjuntural. Na verdade, essas manifestações das camadas populares ganham importância na medida em que constituem expressão do processo de organização da própria classe fundamental dominada na sociedade capitalista, que é o operariado urbano.

2.3. O Contexto Político:

Regime autoritário e "Abertura" Política. Passando ao contexto político, eu situaria como tendência estrutural o regime autoritário e, ao nível conjuntural, a "abertura política". For que eu situo no plano estrutural o regime autoritário? Vejam, assim como a tendência estrutural, no plano econômico é a radicalização do projeto do desenvolvimento capitalista; no plano social é a caracterização das classes fundamentais da sociedade capitalista, assim, no plano político também é muito difícil, a curto prazo, uma transformação que sepulte a idéia do regime autoritário. Nesse sentido, então, é que eu vejo a abertura política como uma manifestação conjuntural.

Quais são os indicadores disto? Um dos indicadores é o fato de que a abertura é colocada como lenta, gradual e segura. Essa abertura lenta, gradual e segura é limitada, articulada não apenas com a manutenção, mas mesmo com o aprimoramento dos órgãos da segurança, os organismos de repressão. Ora, é fácil de se perceber que os organismos de repressão contribuem para a manutenção do regime autoritário, aprimorando, inclusive, o serviço de informações. Quando nós analisamos, por exemplo, o projeto de reformulação partidária apresentado pelo governo, vai se destacar claramente nos termos deste projeto a permanência do regime autoritário: quer dizer; a abertura é uma abertura que redefine a composição do poder, garantindo ao regime autoritário um maior suporte, uma maior consistência, uma maior legitimação. Enquanto comandada pelo governo, a abertura insere-se, pois, na tendência de se afirmar o caráter autoritário do regime.

3. CONCLUSÃO Eram esses pontos que eu queria colocar para a análise do contexto brasileiro.

Agora, como ficaria a educação e a orientação educacional nesse quadro?

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Retomemos as premissas colocadas no início: o orientador é antes de tudo um educador; a educação é um ato político; a função técnica é sempre subsumida por uma função política.

Dadas as características estruturais e conjunturais de nosso contexto, a sociedade brasileira é uma sociedade do tipo capitalista. E a sociedade capitalista é uma sociedade caracterizada por classes antagônicas, cujos interesses são, pois, inconciliáveis. Isto quer dizer que, quanto mais se aprofunda o processo de desenvolvimento capitalista, tanto mais se distanciam esses interesses e esse caráter contraditório tende a se aprofundar.

Dizer-se então, que a educação é um ato político, significa, no quadro social, dizer-se que a educação não está divorciada das características da sociedade: ao contrário, ela é determinada pelas características básicas da sociedade na qual está inserida. E, quando a sociedade é dividida em classes cujos interesses são antagônicos, a educação serve a interesses de uma ou de outra das classes fundamentais.

As considerações supra são essenciais para se compreender a forma como a educação se articula com o contexto brasileiro atual, contexto esse que é caracterizado por uma crise de conjuntura. Com efeito, pela análise feita, percebe-se que a crise se manifesta a nível dos elementos conjunturais. Assim, a crise que a universidade brasileira vive, a crise que a educação vive, caracteriza-se dentro da crise de conjuntura. Sabe-se, por exemplo, que, nos últimos anos, dado o controle político da tecnoburocracia militar que assumiu atarefa de planejar o processo econômico, a educação foi chamada a integrar esse processo. E nesse sentido toda a ênfase posta na tarefa educacional foi uma ênfase técnica, uma ênfase de racionalidade técnica. É isto que vem sendo chamado de crise da universidade, a universidade tecnocrática. Esta crise vem sendo identificada e uma série de organizações da sociedade civil (como as Associações de Docentes) vêm pleiteando providências e tentando encontrar novas saídas. Essa situação de crise conjuntural é geral, tanto é que o

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próprio Conselho de Reitores vem discutindo essa problemática e vem buscando alternativas para pensar um novo modelo de universidade. O próprio aparelho governamental se insere nesse quadro. O projeto de transformação das Universidades Federais em autarquias especiais se insere na tendência que vai mais longe, que é a tendência da transformação das entidades educacionais oficiais em Fundações. Ora, o que é a proposta de Fundações, senão, num plano mais profundo, a tentativa de articular a universidade com o processo de privatização? Nesse quadro, o que cabe dizer é o seguinte: do ponto de vista da perspectiva dos interesses dominantes,

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a crise de conjuntura é vista como um desvio que cabe ser contornado. Do ponto de vista dos interessados dominados, a crise de conjuntura é vista como uma manifestação das contradições da estrutura. Então, vejam como é que se configura a correlação de forças nesse contexto. Configura-se da seguinte maneira: dado que os interesses dominantes apontam na direção da conservação dessa estrutura, da perpetuação dessa estrutura dominante, todo o interesse caminha no sentido de evitar que as contradições da estrutura venham à tona. Assim, poderíamos dizer que os interesses da classe dominante caminham contra a história, quer dizer, coincidem com a tendência de frear o processo histórico, processo esse que se configura pelas transformações a nível conjuntural que na medida em que vão se aprofundando, se transformam em fatores geradores da nova estrutura.

Ora, na perspectiva dos interesses dominados, nós vemos justamente o inverso: esses interesses apontam no sentido de aceleração do processo histórico, de se "empurrar" o processo histórico. Porque isto? Porque não interessa às camadas dominadas a manutenção da estrutura, mas interessa a transformação dessa estrutura; interessa, justamente, construir um tipo de sociedade que os liberte da situação de dominação. Assim sendo, na perspectiva da classe dominada, a crise de conjuntura é vista como manifestação das contradições da estrutura e, portanto, sua ação não vai na direção de interpretar a referida crise como acidente que não só pode como deve ser contornado, mas vai na direção de explorar os elementos de conjuntura no sentido de que eles possam vir a alterar a própria estrutura. Conseqüentemente, os elementos de conjuntura são vistos como instrumentos para se trazer à tona, para pôr em evidência as contradições de estrutura e, nesse sentido, mudar a correlação de forças para transformação da própria sociedade.

É nesse quadro que o Orientador Educacional se situa. E a Orientação Educacional tanto pode desempenhar o papel de contornar acidentes da estrutura, de impedir que as contradições estruturais venham à tona, de segurar a marcha da História, de consolidar o status quo, quanto pode desempenhar o papel inverso de, a partir dos elementos de conjuntura, explicitar as contradições da estrutura, acelerar a marcha da História, contribuindo, assim, para a transformação estrutural da sociedade.

Em outros termos, era isto o que eu queria dizer quando afirmei que a educação é sempre um ato político, ou seja, ela está sempre posicionada no âmbito da correlação de forças da sociedade em que se insere e, portanto, está sempre servindo às forças que lutam para perpetuar ou transformar a sociedade.

Quando afirmei que a função técnica é sempre subsumida pela função política,

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eu quis dizer que a educação, ainda que seja interpretada como uma tarefa meramente técnica, nem por isso ela deixa de cumprir uma função política. Aliás, limitá-la à função técnica é uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos interesses dominantes. Assim, é só por ingenuidade que se poderia acreditar no caráter apolítico da educação. A superação dessa ingenuidade se dá através da tomada de consciência dos limites que a situação objetiva impõe às tarefas que são desempenhadas. E o processo de desenvolvimento da consciência crítica passa, inicialmente, pela destruição da ilusão de poder. Tal processo, via de regra, é acompanhado de um sentimento de frustração, de uma espécie de desespero. Mas essa frustração não faz muito sentido. Ela só faria sentido se se estivesse perdendo um poder de foto. E o que se está perdendo é a/7usõo de poder. Então, não há perda alguma. Mais do que isso: ao perder a ilusão de poder é que se ganha condições de se ter um poder efetivo. Um poder limitado, é certo, mas um poder real; não um poder ilimitado, porém ilusório. Ora, a história do pensamento humano, a história do conhecimento, a história da humanidade não é outra coisa senão isto. Para que a humanidade ascenda ao nível da ciência, o que faz? Ela supera a visão mágica do mundo. Ora, na visão mágica, o homem acredita dominar os fatos por um poder intrínseco, por um poder pessoal; mais do que isso, a medida em que essa visão mágica comporta o controle da realidade por forças superiores, a visão mágica pressupõe uma aliança dos homens com os poderes superiores. Daí porque a visão mágica do mundo supõe sempre um culto às forças superiores, às forças da natureza. Assim, por exemplo, o modo dos povos agricultores, que não dominavam ainda as leis do desenvolvimento da natureza, se protegerem das intempéries do tempo era cultuar como deuses as forças da natureza: o trovão, a chuva, etc.; e este culto era a forma através da qual se procurava atrair o beneplácito dessas forças e, com isso, ter a garantia de que as colheitas não seriam prejudicadas pela ação negativa dessas forças.

Ora, a partir do momento em que se começa a descobrir as leis que regem a natureza, o que ocorre? Desfazem-se esses poderes e se ganha consciência dos limites. Com efeito, as leis da natureza vigoram sobre a natureza em seu conjunto, portanto, sobre o homem também. Quando o homem descobre, por exemplo, a lei da gravitação universal

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("matéria atrai matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias"), essa é uma lei que vale para toda a natureza, logo, para o homem também. E isto é um limite (por exemplo, sob o jugo desta lei que lhe é impossível derrogar, o homem não pode voar). Entretanto, é sobre esse limite que se funda um poder real. Com efeito, foi justamente a partir do conhecimento dessa

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lei que o homem descobriu também as leis da aerodinâmica e construiu o aeroplano, o qual não derroga a lei da gravitação universal. Simplesmente é uma forma de controlá-la e submetê-la aos desígnios humanos. Conseqüentemente, a questão da frustração quando associada ao processo de assunção da consciência crítica, eu a interpreto da seguinte maneira: trata-se da consciência dos limites, a consciência dos limites objetivos. Mas essa consciência dos limites objetivos é condição necessária para se agir sobre o objeto, sobre a realidade concreta.

Em conclusão: para que o orientador educacional ascenda de uma postura ingênua a uma postura crítica é necessário que ele tome consciência dos condicionantes objetivos de sua ação. Ora, a compreensão dos condicionantes objetivos da Orientação Educacional passa, necessariamente, pelo exame do contexto em que ela se insere. Conseqüentemente, uma análise crítica da Orientação Educacional no quadro da educação brasileira atual só pode ser feita através do exame do contexto brasileiro atual. Tendo exposto, nesta palestra, as características estruturais e conjunturais que configuram o contexto sócio-econômico-político brasileiro atual, espero ter apresentado os elementos necessários para encaminhar adequadamente uma discussão crítica da problemática da orientação educacional.

QUESTÕES

PERGUNTA - Como seria o papel da Educação e da Orientação Educacional dentro de uma escola de classe alta? Ali a conscientização de classes deveria ter que sentido?

SAVIANI - Entendo que nas relações de classe trava-se uma luta pela hegemonia. Essa luta supõe - se eu me posiciono do lado dos interesses populares - a difusão de uma concepção de mundo adequada aos interesses populares. Ora, isto supõe que essa difusão também se estenda aos elementos das camadas privilegiadas. No meu modo de ver, aí, praticamente o trabalho educativo teria a função de fazer recuar os preconceitos (o que eu costumo chamar de "substituir o preconceito pelo conceito"). Muitas das resistências que as camadas médias a põem às forças populares derivam de preconceitos. Quer dizer, toda organização das camadas populares tende a ser caracterizada em termos de alguns clichês, como, por exemplo, comunismo, sem nunca se pensar o que significa realmente a movimentação das camadas populares e, mesmo, o que significa o próprio comunismo. Isto significa que já há uma atitude preconceituosa. Nesse contexto, a difusão de uma perspectiva, de uma

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concepção de mundo adequada às classes populares - também para as camadas médias - no meu modo de ver, teria esse papel de fazer recuar preconceitos e, com isso, dirimir resistências à elaboração e à circulação de uma concepção de mundo adequada aos interesses populares. Isto, em grandes linhas. O assunto é bem mais complexo e exigiria maiores comentários que, no entanto, não é possível fazer agora.

PERGUNTA - Até que ponto o orientador educacional, como parte de um plano de ação educativo já definido pelo sistema político, pode, individualmente, assumir o papel de modificador da situação existente ou de manutenção da mesma?

SAVIANI - Individualmente, ele pode muito pouco. O que ele pode é redefinir suas funções no interior da área educacional (da escola, de outros setores). E enfatizar o essencial, preocupando-se, por exemplo, com o conteúdo, centrando-se mais na difusão das informações, na qualidade dessas informações do que na questão técnica. É claro que, a partir da consciência de que não são os indivíduos que fazem a História (são os homens que fazem a História mas eles não a fazem como indivíduos e sim na atuação conjunta com os demais); que, na sociedade de classes, o homem faz a História na medida em que se articula com a classe fundamental, cujos interesses estão ajustados às tendências históricas de desenvolvimento da sociedade existente, conclui-se que a organização dos orientadores é importante, embora não seja suficiente. É necessário que essa associação explore aqueles fatores conjunturais que eu indiquei: explore a movimentação da sociedade civil, explore as manifestações das camadas populares e tente encontrar mecanismos de se articular com outras organizações que estão mais diretamente ligadas a essas manifestações populares.

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PERGUNTA - Quais os regimes políticos que minimizariam as diferenças de classe?

SAVIANI - Aqui, é claro que se a gente fosse pensar em termos da tendência da evolução histórica, nós diríamos que o regime socialista é menos diferenciador de classes que o regime capitalista, para falar em termos da base econômica. Agora, com isto, eu gostaria de frisar o seguinte: quando enfatizei que, em termos do aspecto político o que temos estruturalmente é o regime autoritário e a abertura política como dado de conjuntura, eu queria sugerir que, mesmo no quadro da socie-

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dade capitalista, a superação de um regime autoritário por um regime democrático -ainda que democrático burguês - é um passo mais avançado que o regime autoritário. Então, é nesse sentido que cabe, por exemplo, utilizar o elemento conjuntural -a abertura política - como um instrumento de transformação estrutural, porque a superação do regime autoritário, o desmantelamento dos órgãos repressivos, dos órgãos de segurança, dos órgãos de informações, permitiria uma mobilidade maior da sociedade civil, uma circulação maior de contra-ideologias, e não apenas da ideologia dominante. Trata-se, então, de um regime que possibilita maior participação e, no âmbito dessa participação, no bojo dessa participação, é possível abrir espaço também para que as camadas dominadas se organizem e busquem expressar seus interesses. Eu gostaria de colocar esse tipo de questão, para evitar que se fique com a ideia maniqueísta, formalista, anti-histórica, inviável, que é a de que o regime vigente é todo ele mau e o regime bom é todo ele outro. Mas, na medida em que o novo regime é antitético (é outra coisa que o atual) ele vai surgir donde? Aqui, só fazendo intervir uma visão mágica: ele vai surgir por um golpe de mágica, num certo momento, não sei por qual poder de prestidigitação (o existente se desmorona e no lugar dele se coloca o novo). Ora, não é isto o que ocorre. O novo surge do velho. A sociedade nova é forjada a partir desta que está aí. Acontece que, sendo contraditória, a sociedade existente traz em seu bojo as forças do novo e as forças do velho em choque. Na caracterização que fiz, as forças dominantes são as forças do velho. Por quê? Sendo dominantes, o interesse delas é perpetuar a dominação. Agora, as forças dominadas são as forças do novo, porque não têm nenhum interesse em perpetuar a dominação, elas têm interesse de se libertar da dominação. E a libertação da dominação aponta para a construção de um novo tipo de sociedade. Mas esse novo tipo de sociedade vai surgir dessa correlação de forças, vai surgir dos germes desta que está aí. Esta é que me parece ser a concepção dialética, a concepção adequadamente revolucionária, a concepção histórica conseqüente.

PERGUNTA - Como você situaria, no contexto exposto, a ênfase que está impregnando a prática da Orientação Educacional na informação profissional? (Relacionar um pouco com a corrente analítica, se for o caso.)

SAVIANI - Acho que o contexto exposto poderia oferecer subsídios para a interpretação desta problemática, se pensarmos que a Orientação Profissional tem sido definida como questão meramente técnica. Ora, na verdade, dado que a informação

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profissional é uma das funções proeminentes do Orientador Educacional (seria, então, o Orientador Vocacional), vejam que temos aí uma fragmentação bastante ampla da atividade educativa. Quando parti da afirmação de que o orientador é antes de tudo um educador, eu já situei a própria Orientação como fragmentação da atividade educativa. No entanto, no âmbito da Orientação surgem subfragmentações: a orientação vocacional, a informação profissional já seriam uma especificação maior.

Não sei se seria o caso de responder a esta questão em termos mais amplos. Eu poderia responder de modo mais direto: simplesmente dizer que a ênfase na prática da informação profissional é manifestação da hipertrofia da função técnica em detrimento da função política do Orientador Educacional. Mas como escapar disto? Seria possível desenvolver uma orientação profissional que estivesse articulada com uma função política explícita, que não hipertrofiasse a tarefa técnica? Para responder a esta pergunta, como está proposta aqui, eu teria que situar a questão da Orientação em termos mais amplos. E aí, então, o que tenho a dizer é o seguinte: a Orientação Educacional, como as demais habilitações no campo da Pedagogia, se revela problemática. Em que consiste essa problematicidade? Eu teria que a ver em dupla ordem. A primeira ordem eu chamaria de teórica ou epistemológica, quer dizer, a Orientação Educacional, como as demais habilitações (Supervisão, Administração, etc), não tem uma especificidade teórica, uma especificidade epistemológica própria. Então, nesse sentido, ela acaba por não configurar uma habilitação no sentido teórico. Se passarmos para o plano prático, veremos que também nesse sentido ela é destituída de especificidade. Quando falo em "plano prático", quero me referir ao que ocorre nas escolas. Pelo que eu tenho notado nos contatos com

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os orientadores, existem queixas mais ou menos freqüentes de que o Orientador; nas escolas, faz de tudo menos a Orientação propriamente dita. Então, na prática, ele não teria especificidade, porque é sempre chamado - alguns dizem que o Orientador Educacional é "quebra-galho" - a fazer de tudo. O que significa isto? Significa, basicamente, que a própria estrutura da escola não tem um teor que comporte uma divisão mais sofisticada de tarefas (que implicaria uma função própria, específica, exclusiva do Orientador Educacional). Nesse quadro, se a gente fosse radicalizar essas considerações, ou seja: se não há uma especificidade teórica ou epistemológica, se não se configura como uma área de saber autônomo, uma vez que depende de fundamentações que não são propriamente da Orientação (dependem, por exemplo, da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia, da Política, da História...); se, de outro lado, ela não se configura também como uma especificidade a nível prático - então, o que

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resta concluir; se a gente radicaliza o raciocínio? Talvez seria melhor extinguir não só a Orientação Educacional, mas todas as habilitações. Mas acho que, antes de levar a questão a esse tipo de consequência, caberia perguntar: por que existem, então? se não têm especificidade teórica nem especificidade prática, por que foram criadas? por mero acaso? por um erro dos planejadores? por uma distorção? Não. Se essas habilitações foram criadas, elas devem desempenhar algum papel, e isto deve atender a determinados tipos de exigências. Quais seriam essas exigências? Para situar esta questão, eu gostaria de continuar naquela linha de raciocínio, que é a de sempre entender a Orientação Educacional como uma modalidade da atividade educativa. Então, eu me permitiria ser mais longo no comentário à questão proposta e fazer primeiro algumas considerações sobre educação em geral e depois aplicá-las à Orientação Educacional especificamente.

Em termos da educação em geral e especialmente da educação escolar, nós sabemos que esta, enquanto sistema de ensino, enquanto sistema organizado e administrado pelo Estado, surgiu em meados do século passado, quando se configuraram, então, os sistemas nacionais de ensino. O que pretendiam esses sistemas nacionais de ensino? Na verdade, o que se esperava deles era que desempenhassem a função de redimir (eu tirei essa expressão de um autor argentino - Cf. Zanotti, Etapas Históricas de Ia Política Educativa) - a humanidade de seu duplo pecado histórico: a ignorância (miséria moral) e a opressão (miséria política). Então, surgiu aquilo que se chamaria "Escola Redentora da Humanidade". Esperava-se que estendendo a escola para todos poder-se-ia alcançar a democracia, ou seja, a escolarização seria a base para a democracia burguesa. Na medida em que a burguesia se tornou classe dominante, ela elaborou seu projeto, organizando um sistema de ensino em nível nacional, visando com isto que, através da alfabetização, através da instrução, o povo fosse esclarecido e, tendo sido esclarecido, pudesse tomar decisões mais correias e soubesse escolher melhor os seus governantes, contribuindo para a formação de uma democracia consistente: a democracia enquanto "governo do povo, pelo povo e para o povo".

O que ocorreu, com a evolução histórica, foi que esse projeto - um projeto da própria classe dominante, que organizou a educação enquanto sistema escolar a partir da concepção de que a escola é direito de todos, devendo, portanto, ser estendida a todos - o que se constatou foi a não obtenção do resultado esperado. Quer dizer, apesar de alfabetizados, apesar de instruídos, os elementos do povo não escolhiam bem os seus governantes. Esse autor argentino que eu mencionei, referindo-se à

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situação de seu país, disse que, apesar de alfabetizados, os elementos do povo continuavam elegendo Rosas, quer dizer, os ditadores contavam com o apoio popular. E acrescenta, ainda que, quando surgiu Perón, o povo votou nele. Em contrapartida, a União Democrática conseguiu maior índice de votos justamente na Província de Comentes, que era a Província de menor grau de alfabetização. Achei muito interessante quando li isto, porque me lembrei da nossa União Democrática no Brasil (a UDN). Estou colocando essas questões porque elas me parecem importantes exatamente para situar o papel político da educação e da escolarização. Também no Brasil, hoje em dia, onde é que o governo (o regime autoritário, já citado aqui) consegue apoio? Não é nos centros urbanos, entre o povo escolarizado. Nessas regiões, a oposição é que tende a obter maior apoio. Bem, essa constatação (a de que alfabetizar e instruir o povo não surtiu efeito) levou, então, ao seguinte: que a escola não estava cumprindo a função que se esperava dela. Mas o raciocínio foi o de que ela não estava cumprindo não porque não fosse capaz, mas sim porque o tipo de escola não era adequado. Daí, então, a conclusão de que se tornava necessário reformar a escola, para obter aquela que efetivamente cumprisse aquela função política. É importante observar o seguinte: quando se conduta que, apesar de instruído, o povo não escolhia bem os seus governantes, esse escolher bem significava o bem escolher do ponto de vista dominante, não necessariamente do ponto de vista do povo. O que ocorria era que o povo escolhia o menos pior: escolhia, entre as opções que as diferentes facções da classe dominante ofereciam. Vocês sabem que, embora definida como o "governo do povo, pelo povo e para o povo", a democracia burguesa apresenta sérias restrições ao direito de ser votado (não obstante a idéia - proclamada - de que todo cidadão tem direito de votar e ser votado). Na verdade, a apresentação de candidatos depende da organização partidária e nós sabemos que os partidos populares são sempre obstaculizados na sua ação: ou são impedidos de serem criados, ou, se são criados, só são mantidos enquanto se articulam com os interesses dominantes.

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Bem, a verdade é que o povo escolhia o menos pior do ponto de vista dele. Mas, o menos pior do ponto de vista das camadas dominadas é o pior do ponto de vista dos interesses dominantes e, nesse sentido -vejam que aqui estou historicizando a noção de qualidade, a noção do bom e do ruim - quando se propõe a reforma da escola, a primeira fase (a da Escola Redentora da Humanidade) é substituída pela Escola Nova.

A Escola Nova significa a tentativa de formular aquele tipo de escola que permita levar o povo a escolher bem. Eu fiz recentemente uma pesquisa sobre esse pró-

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blema no caso brasileiro ("As tendências e correntes da Educação Brasileira") e a conclusão a que cheguei foi justamente a inversa da predominante. Porque a idéia mais difundida é a de que a Escola Nova representa uma proposta progressista, avançada. No entanto, a partir dessa pesquisa percebi que a função que ela desempenha é bem outra: é uma função a que eu chamei de recomposição dos mecanismos de hegemonia da classe dominante. Por que isto? Na medida em que o povo instruído não escolhia bem - e isto era atribuído à intervenção da escola - então foi necessário um novo tipo de escola; daí, a Escola Nova, que enfatiza a qualidade sobre a quantidade; enfatiza os métodos, os meios, o processo, sobre o conteúdo; enfatiza o aluno sobre o professor. Essa ênfase na qualidade permitiu que a expansão da escolaridade fosse mantida nos limites suportáveis pêlos interesses dominantes. Quer dizer, é importante manter a escola, sim; mas não qualquer tipo de escola. É preciso expandira escola boa. Como o critério de qualidade é definido pela classe dominante, a boa escola o é do ponto de vista da classe dominante. Isto permitiu, então, que a expansão da escola para toda a população não se executasse, uma vez que essa expansão poria em risco o próprio projeto dominante. E a Escola Nova veio a desempenhar essa função: de um lado, manteve a expansão da escolaridade nos limites suportáveis pêlos interesses da classe dominante e, de outro, aprimorou a qualidade do ensino destinado às elites enquanto que forçou para baixo a qualidade do ensino destinado às camadas populares. O que quer dizer isso? Na medida em que enfatiza os processos, os métodos e não os conteúdos; enfatiza os meios e não as finalidades; enfatiza o interior da escola e não a sua inserção no conjunto da sociedade; enfatiza as questões técnicas e não as questões políticas - vejam, então, a mudança de ênfase: a Escola Redentora da Humanidade tinha uma função política e era proposta como tal pela classe dominante. Ela era condição de consolidação da democracia, visava a levar o povo a escolher bem seus governantes a fim de que se consolidasse o regime democrático autêntico. Na medida, no entanto, em que esse projeto se revelou contraditório e ameaçou trazer à tona as contradições de interesses entre as camadas dominantes e as dominadas, então há um deslocamento de ênfase. E a Escola Nova aparece, pondo ênfase na qualidade, nos processos, no interior da escola, no aspecto técnico e metodológico, antes que no aspecto das finalidades, no aspecto político.

Com isto, o que ocorre? O que ela aprimorou na qualidade do ensino brasileiro? Os filhos das elites iam para a escola dispondo já do conteúdo absorvido no meio em que viviam; conteúdo este que integrava sua própria vivência. Esse conteú-

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do, casando-se na escola com métodos sofisticados, permitia o aprimoramento da educação desses elementos da elite. Em relação à educação das camadas populares, na medida em que seus elementos com freqüência dispõem da escola como um dos únicos instrumentos de acesso a conteúdos mais elaborados e não dispõem, em seu próprio meio, de conteúdo cultural mais desenvolvido, o que se tinha era, justamente, uma ênfase nos métodos e na relação professor-aluno que não se articulavam com conteúdos mais consistentes. E com isso, as camadas populares deixavam de aprender na escola, de se instruir - uma vez que a Escola Nova, ao colocar ênfase nos métodos e na relação professor-aluno, deslocou o objetivo da educação da instrução para a "formação", da transmissão de conteúdos para as atitudes, o comportamento, a auto-educação. Nesse sentido, essas propostas tornaram também possível a afirmação de que o próprio' professor acabou por perder sua função, a de ensinar.

Neste quadro, a qualidade de ensino das camadas populares foi diminuída, foi reduzida. Acresce, aí, inclusive, o aspecto da disciplina. A influência da Escola Nova na rede de ensino determinou o afrouxamento da disciplina, o que contribuiu também para a diminuição do rigor dos conteúdos assimilados.

Bem, essas colocações visam justamente mostrar como essas propostas, num certo sentido, deslocaram o eixo da função política para a função técnica. No caso brasileiro, essa questão me parece bastante típica. Na medida em que a Escola Nova ganha força - e ela ganha força principalmente a partir de 1924 com a criação da ABE (Associação Brasileira de Educação), que vai ser justamente o organismo da sociedade civil a se configurar como um instrumento de veiculação das idéias da Escola Nova, a qual vai se tornar hegemônica no pensamento pedagógico brasileiro - na medida em que os educadores dessa tendência assumem o controle da burocracia escolar, o que se constata é que, a partir de 30, ser progressista em educação correspondia a ser escolanovista e, com isso, todos aqueles movimentos que tentavam articular a educação com os interesses das camadas populares, vão recuando. O Brasil viveu no período de l O a 20 uma crise de hegemonia. A década de 20 foi uma década bastante agitada: diversos movimentos surgiram, partidos e blocos políticos, revoluções, movimentos culturais, greves operárias. A partir de 30 é que se tem a recomposição da hegemonia,

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no âmbito de um sistema de alianças e, no plano educacional, nós temos também essa redefinição que a Escola Nova tornou possível e à qual me referi.

Ocorre, no entanto, que, no desenvolvimento do processo histórico, na me-

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dida em que a Escola Nova se configura como uma proposta concreta, não cabia simplesmente ignorá-la. Então, o que as forcas articuladas com os interesses dominados tentam fazer, progressivamente, é articular a Escola Nova com as necessidades populares, surgindo a tentativa de se criar uma "Escola Nova Popular". Nesse sentido eu citaria, por exemplo, o movimento Freinet na França e, paralelamente, no caso brasileiro, considero o movimento Paulo Freire de educação como situado nesse quadro, uma vez que toda a inspiração desse movimento é a Educação Nova, quer dizer, é um humanismo moderno, aquilo que eu chamo concepção "humanista" moderna de Filosofia da Educação, que se baseia justamente na valorização da relação professor-aluno, na importância da auto-educação, na importância de que a educação deve partir do educando principalmente.

Só que, neste momento, quando as dificuldades da Escola Nova também começam a se patentear, em termos de atender àquele projeto inicial, aí o desenvolvimento do capitalismo monopolista já permite acionar novos mecanismos na recomposição da hegemonia. Então, notem que o que se tem hoje já não é a Escola Nova. Ela já ficou velha e, hoje, o que assistimos são as tecnologias educacionais: a educação como meio de comunicação de massa, a educação permanente, a desescolarização. Quer dizer, afirma-se que a Escola Redentora da Humanidade não cumpriu a tarefa social, não porque aquela escola fosse inadequada, mas porque a escola, todo tipo de escola, é incapaz, mesmo, de cumprir essa função. Então, a escola é limitada, temos que aceitar que é limitada e devemos criar novos meios, apelar para os meios de comunicação de massa; temos que'utilizar as técnicas, o avanço tecnológico como meios educacionais, tanto introduzindo-os nas escolas, como utilizando-os fora da escola; temos que pensar na Educação Permanente (isto é, a educação não deve se circunscrever à etapa em que os alunos estão submetidos ao processo escolar); e, até, há os adeptos da desescolarização. De modo que esses movimentos estão articulados: no fundo, a Educação Permanente é uma forma de desescolarização, é uma forma de se mostrar que a educação não se dá principalmente através da escola, ela se dá principalmente fora da escola, através dos meios de comunicação de massa, através da própria empresa, através de um conjunto amplo de organismos.

Ora, esta proposta toda (e tomo aqui os parênteses da pergunta), inspira-se na concepção analítica da Filosofia da Educação - que é uma concepção inspirada no positivismo, que defende a objetividade, a neutralidade, a racionalidade, e assim por diante.

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Bem, com essas considerações, o que eu gostaria de dizer é justamente o seguinte: que a ênfase na informação profissional, a ênfase na Orientação Educacional como tarefa técnica se insere nesse quadro mais amplo que vê a educação como função técnica. Então, nesse sentido, não só a educação é fragmentada no conjunto das tarefas técnicas no interior da escola, como também essas habilitações são transpostas para fora da escola. Então, o Orientador Educacional não é um profissional que atua apenas no seio da escola, mas um profissional que atua nos mais diferentes organismos, como nas empresas, nas associações da sociedade civil. O que isto significa em termos do desenvolvimento da educação dentro das atividades educativas? Significa, basicamente, o deslocamento do que é essencial no processo educativo, ou seja, a formação dos alunos enquanto apropriação, por eles, dos instrumentos da cultura humana, uma apropriação de tal modo que essa cultura seja difundida a eles e por eles assimilada.

Ora, a escola é exatamente o instrumento através do qual se torna possível uma assimilação mais consistente desses instrumentos da cultura erudita. Por quê? Porque esses instrumentos só podem ser assimilados através de um processo sistemático e duradouro, isto é, que dure no tempo. Não é através de formas assistemáticas como os meios de comunicação de massa, dispersos e ocasionais, que a assimilação desses instrumentos pode se dar. Na medida em que isto é transferido para os meios de comunicação de massa, esses elementos ficam diluídos, sem que cheguem a ser realmente assimilados, ordenados de forma coerente e com isso se transformem em instrumento de expressão dos interesses dos dominados.

Bem, a fragmentação da escola em atividades as mais variadas vai determinar a inserção da escola nesse projeto inspirado na concepção analítica em que a racionalidade dos meios se sobrepõe às finalidades da própria educação.

Então, o que nós temos na prática? Eu interpreto essa queixa dos orientadores da seguinte forma: a ênfase vem sendo posta no acidental em detrimento do essencial. O que é o essencial? É o próprio desenvolvimento da tarefa educativa. Mas não só o Orientador Educacional dependeria de muitas coisas, como também ele (e os outros das outras habilitações - os supervisores, o diretor, etc.) sobrecarrega os professores com um conjunto de tarefas burocráticas que fazem com que os próprios professores também se desliguem da sua função fundamental que é a função de ensinar, de instruir, de educar. Neste sentido, nós temos uma diminuição da qualidade da educação, uma rarefação do significado da

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educação que é desenvolvida nas escolas. Pode-se, então, propor uma questão: do ponto de vista tático e estra-

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tégico, seria o caso de extinguir as habilitações? Não me parece que seja este o caso. Assim como não concordo que a questão da Escola Nova seja proposta simplesmente em termos da sua extinção e da defesa da escola tradicional, mas que seja proposta em termos de articular a Escola Nova, os métodos renovados, com os interesses populares, parece-me que em relação as habilitações também seja o caso de mudar o teor da sua ação. Nesse sentido, a função política da educação não significa necessariamente uma função entendida de modo direto, restrito e imediato, porque a consciência, pelo orientador, de que ele cumpre uma função política, pode determinar que ele mude o seu modo de atuação. O que não quer dizer que ele vai deixar de ser um orientador para ser um político militante, que ele vai abandonar a ação educativa que desenvolve na escola e simplesmente se engajar num partido -embora, é claro, ele possa se engajar num partido, mas esse próprio engajamento não deve prescindir da sua contribuição específica enquanto educador, enquanto orientador. Quando enfatizo a função política, estou com isso querendo dizer que ele provavelmente desempenhará sua função de modo mais eficaz mudando a ênfase da sua atuação como orientador e deixando de se perder nas "parafernálias" principalmente burocráticas, para cuidar do essencial, cuidar dos conteúdos, da solidez dos conteúdos, elaborando-os e tentando garantir que os alunos os assimilem da forma mais consistente, mais duradoura possível. É desta maneira, então, que ele estará cumprindo uma função política, antitética àquela que vem cumprindo normalmente, que é a que, talvez por falta de uma perspectiva crítica mais aprofundada, contra as suas próprias preocupações, suas próprias responsabilidades, ele acaba por se ocupar de tarefas secundárias, perdendo de vista aquilo que é essencial. Parece-me que isto mudaria qualitativamente a ação do orientador Ele passaria a ser alguém preocupado com a qualidade efetiva do ensino, alguém que discutisse os conteúdos, que não os considerasse indiferentes (porque não existem conteúdos indiferentes); alguém que fosse um organizador do processo de ensino; alguém que realmente fosse o conscientizador.

Vejam que tudo isto está ligado ao próprio aprimoramento da atividade escolar, porque eu acredito que os elementos da classe dominada não se libertarão se não vierem a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, notem bem que o problema não é profissionalizar, como foi feito na proposta tecnicista da tarefa do orientador- profissionalizar eliminando os conteúdos culturais básicos. Porque, o que significa essa profissionalização senão a rarefação da educação das camadas trabalhadoras?

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O que cabe defender é uma educação a mais avançada possível, a melhor possível para os trabalhadores, para os elementos da classe dominada. E vejam que é isso, no fundo, o que os pais reivindicam. Os pais têm consciência disto, têm uma percepção clara da função que a Escola Nova acaba por desempenhar. Quando um pai diz "eu mando o meu filho à escola para aprender e ele não aprende, a professora está lá para ensinar e não ensina", e vai mais longe, dizendo: "se o meu filho não quer aprender a professora tem que fazer querer" - ele está defendendo a disciplina, porque tem a consciência de que o aprendizado não se dá espontaneamente, que o aprendizado é uma tarefa árdua e, sem disciplina, não se aprende; os conteúdos não são assimilados pela própria interação espontânea, assistemática. É essa a reivindicação que os pais das camadas dominadas fazem. No fundo,, isto contém toda uma crítica a professores, diretores, supervisores, orientadores... No fundo, é a cobrança de que eles cumpram a sua função de ensinar e ensinar bem, ensinar da melhor forma possível. Então, defender que as camadas trabalhadoras assimilem o máximo de cultura que a sociedade conseguiu atingir é uma atuação política muito mais revolucionária do que o ativismo político, do que o esquerdismo.

Nessa linha de considerações, parece-me que não caberia simplesmente defender a extinção das habilitações. Isto significaria, no fundo, até certo ponto, oferecer argumentos seja para a crítica a esta posição como uma crítica que não quer o aperfeiçoamento do ensino, seja fornecer argumentos também para deteriorar ainda mais as condições do trabalho nas escolas. Porque, vejam bem, se a criação dessas funções cumpriu esse papel de achatar a qualidade do ensino, ela foi, no entanto, justificada em nome de que o aprendizado só se dá em condições ótimas as quais supõem especialistas de diferentes áreas trabalhando de modo conjugado.

Mas o que sabemos é que, na prática, há poucas escolas que dispõem desses especialistas e, via de regra, são as escolas mais privilegiadas, as escolas destinadas às camadas mais favorecidas. De modo que aí se percebe, também, o efeito das reformas educacionais, da Escola Nova, do aprimoramento da qualidade, que beneficia sempre os já beneficiados. Trata-se, porém, de defender a qualidade de ensino das camadas trabalhadoras e criar condições adequadas de ensino para essas camadas. Então, se tivermos orientadores, supervisores, diretores preocupados exatamente com a qualidade de ensino, que ponham a função educativa como proeminente, predominante em relação à função técnica

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da habilitação específica, então teremos esses diferentes especialistas somando forças no sentido de que a atividade escolar seja aperfeiçoada e que as escolas destinadas às camadas trabalhadoras sejam do melhor nível possível.

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Quando, por exemplo, o governo passa a argumentar em tomo da prioridade do ensino fundamental, acho que é preciso verificar qual é o sentido dessa argumentação. Na verdade, ela deriva de uma crise econômico-financeira, em que se está diante da necessidade de cortar gastos. Em termos de educação, o corte não pode ser feito no ensino fundamental, porque já não há o que se cortar, o que existe já é o mínimo. Então, é preciso cortar no ensino superior, na pós-graduação, que foram os mais aquinhoados com as verbas oficiais nos últimos tempos. Para cortar no ensino superior e na pós-graduação, argumenta-se com a prioridade do ensino fundamental. No entanto, cabe indagar se realmente o corte lá em cima irá beneficiar a base e cabe indagar também se o corte lá em cima não se choca com a prioridade no ensino fundamental; se não é preferível canalizar o potencial do ensino superior para a discussão dos problemas básicos do ensino fundamental (porque o que nós vimos até agora foi que a pós-graduação e o ensino superior estiveram divorciados do ensino fundamental). Não seria mais adequado articular todo o aparato do ensino superior e da pós-graduação com as necessidades do ensino fundamental, colocá-lo a serviço do aprimoramento desse ensino?

Se pensarmos em termos do orçamento federal, dá para nos tornar mais realistas em relação a essas propostas, porque, se o orçamento para a educação neste ano foi da ordem de 4,5% (não estou bem certo), a previsão de verbas para a educação para o próximo ano será de 2,8%. Ora, onde está a prioridade do ensino fundamental? Fica claro, aí, que essa prioridade é apenas um argumento para os cortes a nível do ensino superior e da pós-graduação.

No ensino fundamental, um grande problema é, por exemplo, o do tempo de permanência na escola. A criança das classes trabalhadoras permanece na escola 2:30-3:00h. por dia. Tenho uma colega que está fazendo uma pesquisa junto aos professores e comenta que estes, nas entrevistas, têm reiterado com freqüência que, se dispusessem de mais tempo, eles conseguiriam desenvolver os elementos básicos que permitiriam a aprovação das crianças das camadas dominadas. Ora, sabemos que a taxa de reprovação na passagem da primeira para a segunda série do l ° grau permanece estável, há 30 anos, na faixa de 60%. Está estagnada. O ensino não se aprimorou, apesar de todas as reformas. E os próprios professores constatam isto: as crianças das camadas médias atingem um ponto de arranque já por volta

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do mês de abril, enquanto que as crianças das camadas trabalhadoras só vão atingir este ponto por volta de outubro, quando já não há mais tempo de conseguir o aprendizado básico para serem aprovadas. E os professores não têm outra alternativa senão reprovar.

Quando se defende de maneira concreta a necessidade de duplicação do tempo de permanência da criança na escola, num certo sentido se força a discussão da questão das verbas para a educação, porque esta não é uma questão técnica, não é uma questão de qualidade do ensino, mas é uma questão estritamente financeira, porque se hoje nós resolvêssemos duplicar o tempo de permanência da criança na escola, isso duplicaria os gastos com professores: seria necessário contratar um contingente de professores primários aproximadamente igual ao que existe em atuação. Mas os professores primários estão aí. Quando há concurso de ingresso para 2.000 vagas, inscrevem-se 50.000. Esses professores existem. A duplicação do tempo de permanência da criança na escola implicaria basicamente a disponibilidade de recursos para isso. Aí, então, a prioridade do ensino fundamental é de fato levada em conta e se força a discussão do ponto fundamental que vem sendo camuflado em relação às verbas destinadas à educação.

Bem, é nessa linha que eu responderia à questão da prática do Orientador Educacional e do ensino profissionalizante, enfatizando justamente o problema dos conteúdos de uma aprendizagem mais significativa.

PERGUNTA - Concordando com suas colocações a respeito da análise da sociedade brasileira atual, e concordando também com a análise a respeito da educação, gostaria de conhecer sua opinião a respeito do tema:

1) se a escola é um subsistema de um sistema sócio-econômico mais geral, e se é controlada direta ou indiretamente pelo governo, mantenedor da dominação, como você vê a possibilidade de existirem escolas voltadas para o interesse dos dominados? Como fariam os Orientadores Educacionais voltados para os interesses de uma escola da dominação?

2) a responsabilidade dos professores formadores de Orientadores Educacionais, com filosofia semelhante à sua a respeito da educação, quando trabalham com alunos que deverão entrar no minguado mercado de trabalho controlado pelo poder dominante, agiriam como? Seriam geradores de frustrações e angústias em seus alunos, frente a essa realidade "imutável" a curto prazo?

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SAVIANI - Antes de responder à questão acima formulada gostaria de lembrar que existe sobre a mesa uma quantidade grande de perguntas. Passo, então, à leitura dessas perguntas a fim de que as pessoas presentes tomem conhecimento de seu conteúdo. Em seguida, considerando tratar-se de questões que se referem a assuntos correlatos, passarei a respondê-las em bloco.

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Bem, vocês perceberam que há um grupo grande de questões que, na verdade, indagam o seguinte: como o Orientador poderia, numa situação em que a educação em geral é controlada pêlos interesses dominantes, desenvolver um tipo de atuação que favorecesse aos interesses dominados?

Acho que dei os elementos para a resposta, numa explanação longa sobre a questão anterior. Na verdade, o fato de a educação estar sob o controle das camadas dominantes é um truísmo. Se elas são dominantes, elas dominam. Dominam a sociedade em seu conjunto e, por conseguinte, dominam a educação. Agora, isto não elimina, no entanto, o caráter contraditório da sociedade, que se manifesta também no plano educacional. Nesse sentido, a educação está marcada por essas contradições. Vimos, por exemplo, que um projeto como o da Escola Redentora da Humanidade, formulado pela própria classe dominante, se levado às últimas conseqüências culminaria com a negação do próprio projeto da classe dominante. A Escola Nova, em seguida, contorna o problema. Porém, também ela, se levada às últimas conseqüências, acaba por se voltar contra o projeto da classe dominante.

Então, ao responder que a atuação do Orientador Educacional deve enfatizar os conteúdos, preocupando-se com uma educação do melhor nível para a classe dominada, para as camadas trabalhadoras, eu quis frisar que, mesmo trabalhando nesta escola que está aí, nessa nova perspectiva crítica ele estará atuando justamente no sentido de que os educandos assimilem os instrumentos de expressão dos seus interesses. Parece-me que é por esta via que ele estará contribuindo para que os interesses dos dominados possam se expressar de forma mais organizada, mais coerente.

Por tabela, esse conjunto de questões leva a outra, a do teórico: quer dizer, se o teórico da educação, que é tido frequentemente como parte da classe dominante, como elite intelectual, usa o processo de teorização apenas, não chegando à operacionalização da ação (que seria um passo específico da ação do professor), ele não estaria também favorecendo o processo que impede o aceleramento da evolução histórica?

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Acho que na resposta que dei à questão anterior eu mencionei traços específicos da atuação do orientador, da sobrecarga burocrática, da prioridade do ensino fundamental, da pequena extensão da escolaridade, da luta pela ampliação da escolaridade, pela expansão do ensino a todos de foto e não apenas de "direito". São questões de fato, questões específicas que situam a luta dos orientadores no plano do político.

Quanto à segunda parte daquela questão ("a responsabilidade dos professores formadores de Orientadores Educacionais..."), caberia, aqui, observar que eu considero muito relativa essa questão do mercado de trabalho. No meu modo de ver, ela se baseia em pressupostos um tanto falsos. Ela parte da idéia de que, a cada habilitação técnica que a escola proporciona, deveria haver uma função específica e um emprego no mercado de trabalho. Mas isso não é possível existir nesse tipo de sociedade, mesmo porque, para que isso ocorresse, quando a universidade lançasse no mercado de trabalho, por exemplo, 300 professores, seria necessário que, ou se criassem mais 300 vagas, ou que os 300 profissionais que anteriormente ocupavam as vagas saíssem de seu cargo (alguns desistissem, outros se aposentassem ou morressem) para que os novos ocupassem seus lugares. Ocorre, porém, que, se as coisas fossem assim, a sociedade não poderia funcionar, porque se existissem vagas para quem está nas escolas, então como é que a sociedade caminharia se aquele profissional tivesse que estar existindo lá? Ele não está lá; está sendo formado na escola, e, no entanto, a sociedade está funcionando. Isto significa, então, que esse profissional não é necessário lá? Ele não é absolutamente necessário, ele é apenas relativamente necessário. Aí entra o problema das leis que regem o sistema capitalista. A própria expressão mercado de trabalho vem nessa direção: é um mercado - depende da lei da oferta e da procura. Quando existem funções que a sociedade está reclamando, as escolas passam a formar maciçamente esses elementos. Na medida em que o mercado começa a suprir as necessidades, os excedentes vão desempenhar justamente o papel de reserva de força de trabalho e fazer pressionar os salários para baixo, acarretando a diminuição do valor da profissão. Quando eu via, por exemplo, na PUC, os alunos de Pedagogia se queixando durante o curso inteiro da falta de mercado de trabalho, a mim me parecia uma posição um tanto estranha. Porque eles resolvem fazer o curso de Pedagogia e ficam reclamando que não adianta estudar, não adianta se esforçar, já que não há mercado de trabalho. No entan-

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to, o problema da conquista de uma profissão é um problema de todas as modalidades profissionais. O engenheiro, o médico, também, quando se formam não encontram - salvo algumas exceções - um emprego de imediato. Acredito que em outras faculdades o problema possa ser mais grave, mas no caso da PUC, o que a gente tem constatado (há, inclusive, uma pesquisa a esse respeito) é que depois de 6 meses - l ano de formados, todos os alunos se encaixam: o mercado de trabalho acaba tendo lugar para eles. No entanto, dificilmente eles vão ocupar uma função ligada àquilo para o qual se formaram em termos específicos (e volto, aqui, ao que eu falei sobre a não especificidade das habilitações). Muito frequentemente ocorre o seguinte: um pedagogo que fez a habilitação Orientador Educacional trabalhando em Supervisão; um que fez Supervisão trabalhando como Diretor; um que fez Administração, lecionando, e assim por diante. Mas, o interessante é que a maior parte dos alunos pesquisados estava trabalhando em educação - nas escolas ou nas empresas, mas trabalhando em educação. Isto indica que o ponto fundamental é justamente a educação: a função

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básica que ele desempenha é a educativa. As habilitações são decorrentes dessa função maior.

Quanto a esse aspecto de gerar frustrações e angústias nos alunos frente a essa realidade "imutável" a curto prazo - eu já tenho comentado muito com os meus alunos sobre isto. Geralmente, quando se desenvolvem cursos na linha dessa palestra de hoje, isso vai causando uma certa tensão. Quase sempre, no final do curso, a pessoa vai ficando assim: "e agora, como é que a gente faz, não há meios, estou com as mãos atadas" - e assim por diante. O que eu costumo dizer é que, na verdade, esse é um processo através do qual se desfazem as ilusões. Essa sensação de impotência corresponde exatamente ao esfacelamento da ilusão de poder. Ora, na posição anterior, na posição ingênua, idealista, o educador se acreditava com certos poderes, acreditava que ia transformar a sociedade, julgava possuir o condão de mudar a realidade pela força de sua ação subjetiva. Na medida em que descobre que a educação é um fenômeno condicionado, determinado pelo modo de produção, pela estrutura da sociedade, pela correlação de forças, pelo controle político exercido através da dominação e hegemonia, esboroa-se toda aquela ilusão de poder. Aqui, admito, há o risco de se passar de um otimismo ingênuo para um pessimismo, no meu modo de ver, igualmente ingênuo, acreditando-se, agora, que a determinação da sociedade (leia-se classe dominante) é tal que retira da educação

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toda e qualquer chance de contribuir positivamente para a transformação da sociedade. Retomando-se as considerações que fiz no final da palestra (a consciência dos condicionantes objetivos ao mesmo tempo que destrói o poder fictício, constrói um poder efetivo) creio ser possível superar seja o otimismo ingénuo, seja o pessimismo ingênuo, em direção àquilo que eu chamaria, na falta de uma expressão melhor, entusiasmo crítico.

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