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Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora Mauro Luis Iasi 1 “O Nada de qualquer coisa é uma nada determinado” Hegel (Grande Lógica) O capital cumpriu sua tarefa, mundializouse, monopolizouse, estendeu suas garras dissolvendo as mais ternas ilusões românticas no frio calculo egoísta, subordinou ou campo à cidade, a ciência à indústria, a estética ao mercado, mercantilizou todas as esferas da vida. Na sua forma madura e parasitária, bem diversa daquela pela qual os ideólogos liberais projetavam seus mitos futuros, o capital assume a forma de sua negação tornandose um enorme entrave à vida humana. Bom, então... “o invólucro rompese, soa a hora da propriedade capitalista” e... Nada! Os expropriadores continuam expropriando e ideologicamente se produz uma inversão fantástica: é o projeto socialista e revolucionário que parece perder a atualidade sendo apresentado como pura anacronia. O capital em sua forma madura, parasitária, exige que seu domínio implique em um grau cada vez maior de cooptação e apassivamento do proletariado. Nas palavras de Gramsci, um “transformismo”, ou seja, uma “absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam irreconciliáveis inimigos” (Gramsci, 2011: 318). É certo que pelo centro do sistema, nos EUA e Europa, os trabalhadores andam agitados e indignados, saindo as ruas e protestando, mas a ordem parece resistir à seus sinais de agonia e a esquerda declama Saramago numa profética sentença: “a juventude não sabe o que pode e os velhos não podemfazer o que sabem”. 1 Mauro Luis Iasi é professor Adjunto da ESS da UFRJ, coordenador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do Núcleo de Educação popular 13 de Maio e do CC do PCB. Autor de O Dilema de Hamlet, o ser e o não ser da consciência (Boitempo/Viramundo, 2002), Ensaios sobre consciência e emancipação (Expressão Popular, 2007), M etamorfososes da Consciência de Classe (Expressão Popular, 2006), entre outros.

Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

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Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora

Mauro Luis Iasi1

“O Nada de qualquer coisa é uma nada determinado”

Hegel (Grande Lógica)

O capital cumpriu sua tarefa, mundializou­se, monopolizou­se, estendeu suas garras

dissolvendo as mais ternas ilusões românticas no frio calculo egoísta, subordinou ou campo à

cidade, a ciência à indústria, a estética ao mercado, mercantilizou todas as esferas da vida. Na

sua forma madura e parasitária, bemdiversa daquela pela qual os ideólogos liberais projetavam

seus mitos futuros, o capital assume a forma de sua negação tornando­se um enorme entrave à

vida humana.

Bom, então... “o invólucro rompe­se, soa a hora da propriedade capitalista” e... Nada!

Os expropriadores continuam expropriando e ideologicamente se produz uma inversão

fantástica: é o projeto socialista e revolucionário que parece perder a atualidade sendo

apresentado como pura anacronia.

O capital em sua forma madura, parasitária, exige que seu domínio implique emumgrau

cada vez maior de cooptação e apassivamento do proletariado. Nas palavras de Gramsci, um

“transformismo”, ou seja, uma “absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de

variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e

que pareciam irreconciliáveis inimigos” (Gramsci, 2011: 318).

É certo que pelo centro do sistema, nos EUA e Europa, os trabalhadores andam

agitados e indignados, saindo as ruas e protestando, mas a ordem parece resistir à seus sinais

de agonia e a esquerda declama Saramago numa profética sentença: “a juventude não sabe o

que pode e os velhos não podem fazer o que sabem”.

1 Mauro Luis Iasi é professor Adjunto da ESS da UFRJ, coordenador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do Núcleo de Educação popular 13 de Maio e do CC do PCB. Autor de O Dilema de Hamlet, o ser e o não ser da consciência (Boitempo/Viramundo, 2002), Ensaios sobre consciência e emancipação (Expressão Popular, 2007), Metamorfososes da Consciência de Classe (Expressão Popular, 2006), entre outros.

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Por aqui as coisas são mais prosaicas. O capital alcança taxas de acumulação

inimagináveis (a Petrobrás lucrou R$ 35.189 bilhões em 2010, com elevação de 17% ante o

ano anterior; o Bradesco obteve um lucro líquido de R$ 10 bilhões em2010, resultado 25, 1%

maior que o registrado em 2009, a Vale triplicou seu lucro chegando a 30,1 bilhões no mesmo

ano) que refletem uma intensificação brutal da taxa de exploração acompanhada dos ajustes

necessários à boa saúde das relações capitalistas, flexibilizando direitos e impondo perdas

históricas aos trabalhadores. No entanto, diante de talmassacre, estamos no ponto mais agudo

de uma defensiva da classe trabalhadora que parece respaldar os rumos da ordem capitalista,

anestesiada, apassivada. Nada!

A mesma classe trabalhadora que entre o final da década de 1970 e boa parte dos

anos 1990 equilibrou a correlação de forças e impôs patamares de resistência à acumulação de

capitais, garantiu direitos e os inscreveu na ordem constitucional consagrada em 1988, parece

assistir passiva ao desmonte destas garantias e direitos, emprestando, ainda que de forma não

ativa, seu respaldo à atual forma de acumulação que se implantou no início do século XXI. A

mesma classe que resistiu ao desmonte do Estado e das Políticas Públicas, alia­se aos seus

antigos adversários para desarmar a classe trabalhadora diante da disputa do fundo público

agora colocado a serviço da acumulação privada, em nome de um mito revivido: o

desenvolvimento.

O principal trunfo do setor político que se mantêm no poder é o controle e o

apassivamento da classe trabalhadora. O senhor Michel Temer, então candidato à vice

presidente na chapa de Dilma Rousseff, acalmando uma platéia de investidores estrangeiros,

declarou que o pais estava pronto para receber investimentos, uma vez se trata de um pais

“internamente pacificado”, no qual se “os movimentos sociais não estivesses pacificados, se os

setores políticos não estivessem pacificados (...) se aqueles mais pobres não estivessem

pacificados (...) isto geraria uma insegurança” (Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2010,

caderno A, p. 8).

Evidente que esse juízo geral não pode esconder a saudável e honrada resistência de

vários setores da classe que se negam ao amoldamento, assim como as formas não explícitas

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de resistência, como por exemplo a apatia e a forma pouco séria com que os trabalhadores,

com razão e prudência, tratam as coisas da pequena política. No entanto, devemos analisar

aqui o sentido geral que marca o período e esse parece ser o do apassivamento.

Como já nos dizia Hegel em sua Grande Lógica, “todo Nada é umnada determinado”,

portanto, o que se nos impõe neste momento é perguntar sobre as determinações deste “nada”.

A critica à estratégia Democrática Nacional: o imperialismo e a luta de classes

Quando estudamos o comportamento político da classe trabalhadora precisamos de

partida evitar duas armadilhas: compreendê­lo como mera intencionalidade subjetiva, ou,

inversamente, como simples determinação de uma objetividade dada. No primeiro registro o

amoldamento da classe trabalhadora à ordem que queria enfrentar se explica por umdesvio de

direção que leva os trabalhadores ao pântano do pacto social; no segundo as determinações

objetivas da crise, dos desenrolar dos fatos históricos dramáticos (a reestruturação produtiva

do capital, a crise nos países em transição socialista, etc.), os momentos de crescimento

econômico e as migalhas jogadas aos trabalhadores, explicariam a apatia e o amoldamento.

Acreditamos que as coisas não são tão simples, trata­se de uma síntese de fatores

subjetivos e objetivos, mas é preciso refletir sobre a objetividade contida nos ditos fatores

subjetivos, da mesma forma que a maneira como a ação política da classe e suas direções

incide concretamente no desenho final da objetividade que determinou esta ação. Por isso,

quando falamos de um determinado comportamento da classe trabalhadora, devemos

relacioná­lo à uma estratégia determinante em um certo período histórico, não como uma

escolha arbitrária de uma certa direção ou vanguarda, mas como uma síntese que expressa a

maneira como uma classe buscou compreender sua formação social e agir sobre ela na

perspectiva de sua transformação.

É assim que no ciclo histórico que marca a luta da classe trabalhadora brasileira entre

os meados da década de 1940 até o golpe empresarial militar de 1964, a estratégia

determinante foi a chamada Revolução Democrática Nacional e sua principal expressão política

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foi o PCB (Mazzeo, 1999; Koval, 1982). Isso não significa que apenas o PCB estava preso a

esta formulação, ela consiste um universo programático fundado naquilo que Caio Prado Jr

(1978) denominou de uma forma consagrada de compreender a revolução brasileira, “prejuízos

herdados do passado que se consolidaram em concepções rígidas, verdadeiros dogmas, que

contando como contam com tão longa tradição, se tornam por isso mesmo altamente

respeitáveis” (idem: 30). Tal concepção acaba por se impor a todos, mesmo àqueles que

empreendem o árduo caminho de criticar a visão “consagrada”.

Em sua essência, esta maneira consagrada, reside na certeza que a formação social

brasileira, pela sua história colonial e sua inserção no moderno sistema capitalista mundial,

assumia uma contradição principal entre a prevalência de uma estrutura agrária tradicional e o

imperialismo, por um lado, e os vetores que apontavam para o desenvolvimento de uma

capitalismo nacional, por outro. Nessa leitura, tanto o imperialismo como o latifúndio

(expressão mais nítida da estrutura agrária arcaica), impediam o desenvolvimento do

capitalismo brasileiro. Assim, as demandas de uma suposta burguesia nacional por um

desenvolvimento autônomo do capitalismo brasileiro a faria se chocar com os interesses do

imperialismo e de seus aliados internos, as oligarquias tradicionais, abrindo espaço para a

aliança com o proletariado.

Conclui, então, Caio Prado Jr.: “A sua etapa revolucionária seria, portanto, sempre

dentro do mesmo esquema consagrado, o da revolução “demorático­burguesa”, segundo o

modelo leninista relativo à Rússia tzarista” (idem: 36). No caso particular da formação social

brasileira esta “etapa” assumiria a forma de uma luta “agrária”, “antifeudal” e “anti­imperialista”.

Ainda nas palavras de Caio Prado Jr., agrária por se contrapor os supostos “restos feudais”

que se apresentavam no corpo da estrutura agrária tradicional, anti­imperialista “porque oposta

à dominação das grandes potencias ‘capitalistas’ (idem: 37).

Aqui cabe um parêntesis que nos parece importante. Alemda conhecida critica sobre a

impropriedade de se falar em feudalismo no Brasil, há um aspecto que fica obscurecido pela

quase evidência desta primeira incorreção: a forma como se define imperialismo. Este

obscurecimento pode levar a compreensão, ao meu ver equivocada, que a formulação da

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revolução democrática nacional é contraditório porque, por um lado erra ao identificar a

estrutura agrária conservadora como feudal, ainda que acerte na luta anti­imperialista. Nos

parece que há um erro também aqui. Como acontece em outros casos, a posição

autoproclamada como “leninista” é pouco leniniana.

Lênin, em seu famoso trabalho de divulgação sobre o tema do imperialismo, combate

uma postura que considera teoricamente insustentável e com conseqüências práticas

extremamente nocivas. Resume, citando o autor da formulação equivocada, da seguinte forma:

O imperialismo é um produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido.

Consiste na tendência de toda nação capitalista industrial a submeter ou anexar,

cada vez mais, regiões agrárias mais extensas, qualquer que seja a origem étnica

de seus habitantes (Kautsky apud Lênin, 1976: 461).

Ora, esta não é em absoluto a posição de Lênin sobre o imperialismo, mas a de

Kautsky. Seguindo o raciocínio kautskiano a formulação da “etapa democrático burguesa” faz

sentido. O interesse do imperialismo, que aqui se transforma emuma “tendência”, emumopção

política, é de anexar áreas agrárias em busca de suas matérias primas e de mercado para seus

produtos. Nesse ponto coincide com os interesses dos setores oligárquicos ligados à produção

de produtos primários e daí a aliança sugerida que garantiria o poder oligárquico, mas impediria

o desenvolvimento de relações propriamente capitalistas nestas formações sociais e, assim,

ferindo os interesses de uma burguesia nacional.

No entanto, a definição de Lênin é outra. Para ele “o imperialismo é o capitalismo em

sua fase de desenvolvimento na qual toma corpo a dominação dos monopólios e do capital

financeiro, na qual adquire especial importância a exportação de capitais” (Lênin, 1976: 460).

Diante da precisão do conceito de Lênin, a definição de Kautsky, nas palavras do líder

bolchevique, “não serve absolutamente para nada”.

O ponto mais problemático não é exatamente a ênfase à tendência a anexação, de fato

uma tendência verificável, quando mais se considerarmos o início do século XX, momento em

que Kautsky escreve. O ponto que Lênin destaca, curiosamente é outro. Diz Lênin: “a

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particularidade do imperialismo não é o capital industrial, mas sim o financeiro”(idem: 462).

Esta abordagempermite ao marxista russo relacionar o rápido crescimento do capital financeiro

com uma intensificação da política anexacionista no final do século XIX. Lembremos que para

Lênin, seguindo a definição de Hilferding, capital finaceiro não é o mesmo que capital bancário,

mas a fusão do capital industrial com o capital bancário, formando o traço essencial da etapa

imperialista: o capital financeiro.

Como sabemos o imperialismo, assim entendido, é a expressão do capitalismo

monopolista plenamente desenvolvido. O auge da livre concorrência, por volta das décadas de

1860 e 1870, coincide com a formação, ainda embrionária dos monopólios, na crise 1873 e

seus desdobramantos posteriores eles se tornammais sólidos, mas é apenas no inicio do século

XX com a crise de 1900 a 1903 que os monopólios se consolidam e se tornam “a base de

toda a vida econômica” e o “capitalismo se transforma em imperialismo” (idem: 389).

O que nos chama a atenção é que, partindo da definição de Kautsky, o imperialismo se

apresenta como um fator de entrave ao desenvolvimento das relações capitalistas nas áreas em

que se impõe; ao passo que compreendendo o fenômeno a partir da definição de Lênin, o

imperialismo se torna um fator de generalização das relações capitalistas. Por este ângulo

altera­se substancialmente o caráter da revolução. Para Kautsky trata­se da revolução

nacional, para Lênin da ante­sala da revolução socialista.

O que caracterizava o “velho capitalismo”, continua Lênin, o capitalismo própria da

livre concorrência, era a exportação de mercadorias, enquanto o que “caracteriza o capitalismo

moderno, no qual impera os monopólios, é a exportação de capitais. Talvez nemmesmo Lênin

tenha tirado todas as conclusões possíveis desta afirmação. A exportações de capitais revela

uma determinação mais profunda que é aquilo que Marx denominou de “queda tendencial da

taxa de lucro” (Marx, s/d, livro III, vol. 4: 242) e, mais precisamente, uma das contratendências

para enfrentá­la. Em poucas palavras os fatores que atuamno sentido de frear a queda na taxa

de lucro, causada em última instância pela alteração contínua da composição orgânica do

capital em favor do capital constante, são a) o aumento da exploração do trabalho; b) a

redução dos salários; c) o barateamento dos elementos do capital constante; d) a formação de

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uma “superpopulação relativa”; e) ampliação do mercado externo; f) e aquilo que Marx

denominou do aumento do capital em ações e que aprofundou no livro seguinte como formação

do capital portador de juros.

Aqui nos interessa dois aspectos: primeiro que comos elementos que Marx dispunha a

ampliação dos mercados era vista pelo ângulo do controle de fontes de matérias primas e

espaço de realização dos produtos, ao passo que Lênin pode ver agora este movimento como

a partilha de áreas de influência para onde exportar capitais (ou seja, não apenas dinheiro, mas

inclusive processos produtivos inteiros); segundo que a base das contratendências à queda da

taxa de lucro se fundamentam na intensificação da exploração, no rebaixamento dos salários e

na superpopulação relativa. Esse segundo aspecto nos leva diretamente à nossa questão: a

intensificação da exploração não levaria ao acirramento da luta de classes?

Essa questão temque ser respondida levando emconta os dois aspectos indicados, isto

é, a exportação de capitais e a conseqüente partilha do mundo, e a intensificação da exploração

dos trabalhadores. O primeiro aspecto permite ao capitalismo monopolista e imperialista

intensificar a exploração nas áreas de expansão, ao mesmo tempo que negocia os termos de

convivência com o proletariado no centro do sistema levando àquilo que Lênin denominou de

uma “aristocracia operária”. Diz o revolucionário russo no prólogo à edição francesa de sua

obra sobre o tema:

É evidente que os gigantescos superlucros (já que se obtêm sobre os

lucros que os capitalistas extraem de seus operários em seu próprio país)

permite corromper os dirigentes operários e a camada superior da

aristocracia operária. Os capitalistas dos países “adiantados” os

corrompem, e o fazem de mil maneiras, diretas e indiretas, abertas e

ocultas (Lênin, 1976: 379).

Uma leitura desatenta nos levaria a acreditar que se trata de um problema moral, ou

seja, de uma corrupção direta pela compra das lideranças ou o oferecimento de benesses, mas

logo adiante o autor oferece outros elementos que nos parecem pistas importantes. Na

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seqüência Lênin caracteriza este setor como formado por “operários aburguesados”,

inteiramente “pequenos burgueses por seu gênero de vida, por seus vencimentos e por toda sua

concepção de mundo” (Lênin, idem, ibidem) de maneira que na luta de classes acabampor se

colocar ao lado da burguesia através de toda manifestação de reformismo e chovinismo.

Por esse ângulo a estratégia Democrática Nacional pode e deve ser criticada por um

aspecto por vezes secundarizado. Tal estratégica se fundamento numa falácia: o crescimento do

capitalista que rompe com seus entraves não capitalistas (sejam ou não identificados com

resquícios feudais, formas oligárquicas ou imposição “imperialista”) levaria ao desenvolvimento

de um “capitalismo autônomo” que interessaria tanto à burguesia “nacional” como ao

proletariado. No que cabe ao proletariado parece indicar que o desenvolvimento das relações

capitalistas levaria ao crescimento do proletariado que diante das contradições do sistema se

colocaria em luta por seus objetivos históricos socialistas. Aí se encontra a falácia, o

crescimento das relações capitalistas vem acompanhado dos meios políticos próprios do

capitalismo desenvolvido, seja na sofisticação de seu Estado seja através dos meios, diretos e

indiretos, de amoldamento da classe trabalhadora à ordem do capital, levando ao

“aburguesamento” descrito por Lênin ou ao “transformismo” nas palavras de Gramsci.

A estratégia democrática nacional encontrará seu ponto crítico na própria dinâmica da

luta de classes, no golpe de 1964. As classes e setores de classe não se posicionaram como

imaginavam as formulações idealmente impostas emdetrimento da análise dor real. A burguesia

brasileira se aliou ao latifúndio e ao imperialismo contra o proletariado, naquilo que Florestan

Fernandes chamou de uma “contra­revolução preventiva”.

Os germes da concepção democrático popular

Brecht dizia que a nova carne é comida comos velhos garfos. Isto significa que a crítica

a uma concepção só pode ser feita com as ferramentas que de uma forma ou de outra compõe

o universo cultural e teórico da formulação que é criticada. A lua nova carrega uma noite inteira

a lua velha nos braços, dizia o mesmo poeta. Quando se realiza a critica à concepção

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democrática nacional se aponta para uma síntese que será hegemônica no período que se

abriria.

Destacaremos aqui duas formulações que por sua importância e pertinência acabam

sendo representativas deste duplo movimento, ou seja, ao mesmo tempo que criticam a

concepção vigente apontam, germinalmente, para os elementos que constituirão a formulação

que se tornará determinante. Trabalharemos aqui as contribuições de Caio Prado Jr. ( 1978) e

Florestan Fernandes ( 1976).

Caio Prado Jr., após criticar os elementos daquilo que chamou de “verdades

consagradas” e ponderar sobre pressupostos metodológicos que partiam de a priores

abstratos, afirma em sua obra que a teoria e o programa de revolução brasileira deve vir da

correta análise da conjuntura presente e do processo histórico que resulta, pois é nisso que

consiste o fundamento do método dialético, em suas palavras, um “método de interpretação, e

não receituário de fatos, dogmas, enquadramento da revolução histórica dentro de esquemas

abstratos preestabelecidos” (Prado Jr., 1978: 19).

Os esquemas abstratos aos quais se refere Caio Prado dizem respeito às formulações

do VI Congresso da Internacional Comunista, em 1928, que afirmava que a passagem para a

ditadura do proletariado não seria Possível em países classificados como “como coloniais e

semini­coloniais”, sem que fosse necessário transitar por uma série de “etapas preparatórias”,

em outros termos, “por todo um período de desenvolvimento da revolução

democrático­burguesa” (VI Congresso da IC, apud Prado Jr.: 65).

Lembrando que não há uma mera imposição de tais formulações, mas umprocesso de

absorção que leva em conta os interesses e o próprio desenvolvimento das organizações

políticas no Brasil, é fato que o PCB (IV Congresso, 1954, apud Prado Jr, op. cit. : 67) iria

sustentar sua estratégia levando em conta esta “verdade estabelecida”. O capitalismo no Brasil

estaria entravado pela permanência de relações “pré­capitalistas” ou “semi­feudais”,

materializadas em uma estrutura agrária tradicional fundada no latifúndio e na monocultura e,

por outro lado, pela presença do imperialismo, com a ressalva anteriormente apresentada.

Como sabemos, o autor criticará a pertinência de identificar as relações próprias da

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estrutura agrária brasileira como “feudais” ou “semi­feudais”, apontando para aquilo que

denomina de “sentido da colonização” de maneira que, por meios variados, as relações aqui

vigentes deveriam ser vistas não como “o latifundiário ou proprietário senhor feudal ou

semifeudal de um lado, e o camponês do outro; e sim respectivamente o empresário capitalista

e o trabalhador empregado, assalariado ou assimilável econômica e socialmente ao assalariado

(Prado Jr, 1978: 105).

Em resumo, o autor afirma que, considerando as relações de produção determinantes,

ainda que existam formas diferenciadas e eventuais que se subordinar as determinantes, as

formas de propriedade e o sentido da produção agropecuária, só poderíamos concluir pela sua

caracterização como “em essência e fundamentalmente, capitalista” (idem: 107).

Caio Prado criticará da mesma forma a relações que se estabelece entre a permanência

desta estrutura agrária tradicional e o atraso da industrialização. A produção industrial

brasileira, até por sua relação com o capitalismo imperialista, apresentou um desenvolvimento

de seu nível tecnológico e de sua capacidade produtiva, ainda que um ou outro setor se

apresente limitado em seu crescimento por “interesses estranhos ao país” (idem: 121). Ainda

que isso ocorra e eventualmente uma iniciativa “nacional” tenha sido prejudicada “pela

concorrência de empreendimentos ligados ao imperialismo”, isso não teria gerado uma

“oposição política de classe entre a burguesia brasileira e o imperialismo” (idem: 120), isto pelo

fato de que os eventuais problemas ou atritos entre a burguesia brasileira e os setores

imperialistas “podem perfeitamente (se) ajustar dentro do sistema do imperialismo” (idem: 121).

Por tudo isso o autor afirma que:

Em suma, embora a burguesia brasileira, ou antes, alguns de seus

representantes possam individualmente entrar em conflito com a poderosa

concorrência de empreendimentos estrangeiros, e esse conflito se traduza

eventualmente em ressentimentos contra o capital estrangeiro, não se

verificam na situação brasileira circunstâncias capazes de darem a tais

conflitos um conteúdo de oposição radical e bem caracterizada, e muito

menos de natureza política. A “burguesia nacional”, tal como é

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ordinariamente conceituada, isto é, como força essencialmente

antiimperialista e por isso progressista, não tem realidade no Brasil, e não

passa de mais um destes mitos criados para justificar teorias

preconcebidas; quando não pior, ou seja, para trazer, com fins políticos

imediatistas, a um correlato e igualmente mítico “capitalismo

progressista”, o apoio das forças políticas populares e de esquerda (idem,

ibidem).

Além da correção da análise e da antecipação dos equívocos hoje em voga daqueles

setores que ainda se abraçam ao mito de um “capitalismo progressista” ou um

“desenvolvimento de caráter social”, o fundamento da elaboração alerta para o desdobramento

político de tal concepção, ou seja, a aliança de classes com a suposta “burguesia nacional”.

Neste ponto, coerente com os pressupostos que assume, o autor sente­se obrigado a

definir um desenho do programa da revolução brasileira que se contraponha à formulação

democrática­nacional. Não se trata apenas de afirmá­la como socialista, ainda que, destaca o

autor, “é claro que, para um marxista, é no socialismo que irá desembocar afinal a revolução

brasileira”, mas isso seria uma “previsão histórica sem data marcada nem ritmo de realização

prefixado” e, acrescenta, “sem programa predeterminado” (idem: 16). Essa prudência se

explica por dois motivos, um de natureza metodológica, ou seja, não impor modelos

preconcebidos aos fatos e à dinâmica real e histórica da luta de classes em uma determinada

formação social dada, outro um pouco mais complexo e problemático.

Caio Prado Jr. acreditava que a implantação do socialismo no Brasil na situação

histórica em que se encontrava era algo “irrealizável” por faltarem “condições mínimas de

consistência e estruturação econômica, social, política e mesmo simplesmente administrativa,

suficientes para a transformação daquele vulto e alcance” (idem: 165).

Vejam, após desconstruir a lógica etapista e a transposição de modelos como a

priores abstratos a serem impostos à realidade, depois de criticar impiedosamente a alternativa

democrática nacional e sua aliança comuma suposta burguesia nacional que levasse ao mito de

um “capitalismo progressista”, o autor cai em um aparente paradoxo: a revolução democrática

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nacional tal como apresentada pelo PCB leva à conciliação de classes e a conseqüência derrota

dos trabalhadores (confirmada em 1964), mas a revolução socialista, entendida classicamente

como socialização dos meios de produção e formação de um Estado do Proletariado e seus

aliados, é irrealizável pelos motivos apontados. Isso o leva a uma solução que nos interessa

diretamente aqui.

Para o autor o mito do desenvolvimento capitalista como forma de enfrentar as

demandas reais que emergem das classes trabalhadoras se explica por uma associação entre

“desenvolvimento”, geração de lucros e daí recursos para enfrentar estas demandas. É esta

associação que será criticada. Segundo Caio Prado, se o lucro foi um fator extremamente

fecundo do desenvolvimento nos países centrais, ou seja, o lucro leva ao incremento do

mercado que faz crescer a demanda e daí um nova dinâmica de desenvolvimento, a inserção

real do Brasil no sistema imperialista e seus “vícios orgânicos” quebra esta relação. Os

monopólios alcançam sua lucratividade sem que precisem responder às demandas dos bens

que constituem o fundo de consumo do trabalho e suas demandas por condições de vida e

trabalho, pelo contrario, é o constante delapidar de tais condições que constituem as chamadas

“vantagens competitivas” para reproduzir a acumulação de capitais aqui nas condições do

capitalismo monopolista e imperialista mundial. Por isso conclui:

No Brasil e nas condições atuais, a questão se propõe de forma diferente,

porque falta aqui, por efeito precisamente dos vícios orgânicos de nossa

estrutura econômica e social que apontamos (...), uma demanda suficiente

em consonância com as necessidades fundamentais e gerais, e capaz por

isso de permanentemente incentivar uma atividade produtiva que, em

ação de retorno, viesse ampliá­la ainda mais (Prado Jr., idem: 164).

Qual, então, a solução? É o autor que nos responde:

Há de essencialmente se atacar a reforma do sistema a fim de

impulsionar o seu funcionamento no sentido de um desenvolvimento geral

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e sustentado. É do aumento da demanda solvável, e sua articulação com

as necessidades gerais e fundamentais do país e de sua população, que se

há de partir para o incentivo às atividades produtivas que em seguida

incentivarão a demanda. Não é possível, repetindo o ocorrido no

desenvolvimento capitalista originário, ir no sentido contrário, isto é, da

produção para o consumo e a demanda (idem: 164) (grifos meus).

Na conclusão do autor deveríamos constatar que “a iniciativa privada, que temno lucro

e somente nele a sua razão de ser, não é suficiente assim para assegurar o desenvolvimento

adequado” (idem, ibidem). Lembremos que segundo o juízo do autor uma transformação

socialista é irrealizável, portanto, ele é levado a concluir que nas condições da formação social

brasileira as atividades econômicas devem ser “controladas por fatores além e acima da

iniciativa privada” (idem, ibidem). Isso implica que:

Não se pretende com isso eliminar a iniciativa privada, e sim unicamente

a livre iniciativa privada que, esta sim, não se harmoniza com os

interesses gerais e fundamentais do país e da grande maioria de sua

população, por não lhe assegurar suficiente perspectiva de progresso e

melhoria de condições de vida (idem: 165).

Eis que surgem os germes de uma formulação que seria determinante no ciclo que se

abriria com a crise da Ditadura Militar e empresarial inaugurada em1964. Uma transformação

social que tenha que se contrapor a um bloco conservador formado pelo latifúndio, pela

burguesia imperialista/monopolista e pela burguesia brasileira que a ela se associa

subordinadamente, que se sustente numa ampla aliança dos trabalhadores assalariados da

cidade e do campo (lembremos que para ele a luta pela terra não se propunha de forma

generalizada e “menos ainda em termos revolucionários” (idem: 139)), junto aos aliados

formados pelas massas urbanas que lutam por suas condições de vida, ou seja, um chamado

campo “popular”.

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Para que se complete a formulação é necessário responder a uma questão essencial.

Como este bloco popular irá impor suas demandas que dirigiram o desenvolvimento em um

sentido “alem e acima da iniciativa privada”? A resposta é simples: através de uma correlação

de forças que lhes permita chegar e controlar o Estado. Os elementos essenciais estão assim

delineados: a negação da estratégia nacional democrática e sua aliança com a burguesia leva a

afirmação de um desenvolvimento que se sustente nas demandas da maioria da população,

ainda não socialista, mas não mais acreditando no mero desenvolvimento de um capitalismo

nacional e a lógica do lucro e da iniciativa privada como vetores de um desenvolvimento que

enfrente as demandas populares.

Há uma ausência importante na formulação de Caio Prado e se trata exatamente da

caracterização deste elemento essencial para o desfecho de uma estratégia popular: o Estado.

Será Florestan Fernandes que nos dará as pistas sobre este aspecto fundamental.

As reflexões que constituem o livro A Revolução Burguesa no Brasil foramproduzidos

em momentos diferentes (entre 1966 e 1973) e copilados para a publicação, mas são, de certa

forma, contemporâneos aos estudos de Caio Prado, não no sentido de ter havido uma

profunda troca intelectual entre ambos, mas que partilham do mesmo momento e enfrentamos

mesmos dilemas, chegando, por caminhos distintos, a conclusões semelhantes.

Começando por questionar a propriedade de se falar de burguesia e revolução

burguesa no Brasil, Florestan afirma que se pode afirmar a existência de uma burguesia no

Brasil e de uma Revolução Burguesa desde que não façamos uma análise mecânica que

transporte estas categorias sem as mediações necessárias para nossa formação social e sua

história. Dito de outra forma:

A questão estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse que a história

do Brasil teria de ser uma repetição deformada e anacrônica da história

daqueles povos (EUA e Europa). Mas não se trata disso. Trata­se, ao

contrário, de determinar como se processou a absorção de um padrão

estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da

cultura. Sem a universalização do trabalho assalariado e a expansão da

Page 15: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

ordem social competitiva, como iríamos organizar uma economia de

mercado de bases monetárias e capitalistas? (Fernandes, 1976:20)

Desta maneira, em grande parte partindo de pressupostos weberianos, o autor afirmará

que o que se dá no Brasil é que um setor da aristocracia somado a outros setores diversos,

formam uma congiérie social (literalmente um aglomerado de setores diferentes) que acabam

por assumir um padrão de civilização burguesa baseados no lucro, na empresa racional e no

mercado, assim como a valorização do urbano sobre o rural. Um “tipo de atitude” voltada ao

lucro e a acumulação de riqueza, ligado à inovação, ao talento empresarial, organização de

grandes empreendimentos econômicos, entre outros aspectos.

Evidente que o setor da aristocracia rural que iria cumprir este papel seria aquele que

por sua natureza estabelecia nexos com as ferrovias, os portos, as empresas de comércio

exterior, os bancos e daí com a realidade urbana e o padrão civilizatório burguês. O autor

destacará o setor dos cafeicultores e setores da imigração, evidente não aquele que constituirá

parte do proletariado, mas aquele ligado aos primeiros momentos da industrialização.

Esta origem e desenvolvimento da burguesia brasileira marcará as formas pelas quais se

implementam aqui a Revolução Burguesa. Desde já salta aos olhos, no mesmo sentido já

apontado por Caio Prado, que a inserção do Brasil na moderna era do imperialismo não foi

fator de atraso, mas a forma pela qual se produziu um tipo de desenvolvimento do capitalismo.

Diz Florestan:

Sob esse prisma, o neocolonialismo eregiu­se em fator de modernização

econômica real, engendrando várias transformações simultâneas da ordem

econômica interna e suas articulações aos centros econômicos hegemônicos do

exterior. O principal aspecto da modernização econômica prendia­se,

naturalmente, ao aparelhamento do país para montar e expandir uma economia

capitalista dependente, sob os quadros de um Estado nacional controlado,

administrativa e politicamente, por ‘elites nativas’”(idem: 93).

Page 16: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

Naquilo que aqui nos interessa, este setor ou setores de classe que assumemo padrão

burguês, encontrará nas velhas oligarquias e no Estado oligárquico umpólo não de contradição,

mas uma aliança essencial ao seu desenvolvimento. A unidade deste bloco, segundo o autor, se

dará não apenas pela intersecção de seus interesses (oligarquias tradicionais, setores burgueses

e imperialismo), como sua unidade política fundamental se encontra na confrontação dos de

baixo. Desta maneira a revolução burguesa no Brasil não pode ser vista nas formas clássicas,

ou seja, uma aliança da burguesia revolucionária com o proletariado visando a luta contra uma

nobreza feudal.

O que é característico do estado que desta forma particular de dominação deriva é que

o conjunto das classes e setores de classe que se beneficiam desta dominação e que precisam

fazer valer seus interesses constituem um segmento pequeno no conjunto da população e que

encontra sua legitimação internamente no interior deste pequeno circulo de interesses, levando

àquilo que o autor denomina de uma “autocracia”. O domínio burguês não precisou se enfrentar

com a velha ordem oligárquica, pelo contrario, encontrou nesta forma os meios de manter e

legitimar o domínio burguês. Os saltos e qualidade deste processo, no sentido de consolidação

do poder burguês, como no período getulista (1930­1954), chega ao seu ponto culminante

com o golpe e a consolidação da autocracia burguesa.

Assim a Revolução Burguesa no Brasil assume a forma de uma “contra­revolução

preventiva” (Fernandes, 1976: 217). A conseqüência direta desta forma concreta de

desenvolvimento da revolução burguesa brasileira é que dois elementos de sua constituição

aparecem aqui divorciados. Classicamente, pelos motivos indicados, a revolução burguesa

assume a forma simultânea de uma revolução nacional e democrática, mas aqui, emuma forma

não clássica, ela se dá pela aliança da burguesia, na verdade um setor oligárquico aburguesado,

com a própria ordem arcaica, ou seja, realiza a revolução burguesa, mas não seus aspectos

nacionais e democráticos. Nos termos de Florestan trata­se de uma revolução dentro da ordem

e não fora da ordem, ou se preferirem, de cima e não de baixo.

Não basta contrapor um modelo clássico à chamada via prussiana, nos termos de

Lênin, uma vez que parece que estamos falando de uma via não clássica da via não clássica.

Page 17: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

Mais do que uma revolução que implementa a ordem burguesa e cria as condições de

desenvolvimento das relações capitalistas de produção a partir do Estado, trata­se de uma

revolução que cumpre este objetivo inserida no quadro geral da dominação imperialista e,

portanto, não para desenvolver qualquer tipo de capitalismo autônomo, mas para inserir a

formação social como área de influência da dominação imperialista, isto é, como área de

exportação de capitais.

Isso implicará que o desenvolvimento da ordemburguesa não ocorra pressionada pelas

demandas dos de baixo, pelo contrario, a condição exigida pelo padrão de acumulação é o

sufocar destas demandas diante das necessidades dos monopólios e seus aliados internos e

externos. O resultado é que:

a massa dos que se classificam dentro da ordem é pequena demais para fazer da

condição burguesa um elemento de estabilidade econômica, social e política,

enquanto que o volume dos que não se classificam ou que só se classificam

marginalmente e parcialmente é muito grande”(idem: 330).

Assim é que a forma do Estado só pode ser a de uma autocracia, nos termos que

define o autor:

Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a quaisquer

meios para prevalecer, erigindo­se a si mesmo em fonte de sua própria

legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em

instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva (idem: 297).

Abre­se desta maneira um importante paradoxo para o nosso tema ligado ao problema

da legitimação. A ordem burguesa, nestes termos apresentada, tem enormes dificuldades de

legitimar­se perante os setores não burgueses, fundamente, àqueles ligados à classe

trabalhadora, o que leva ao aspecto repressivo como fundamental e que de fato se confirma

com a própria ditadura e o insubstituível papel dos setores militares na política brasileira. Isso

Page 18: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

não significa, no entanto, que o Estado se restrinja aos aspectos repressivos e que não opere

elementos de formação de “consenso”, mesmo considerando a forma da ditadura aberta do

capital como no período militar. Aspectos de cooptação, de forte poder ideológico e mesmo

de envolvimento através de elementos de hegemonia, nunca deixaram de ser praticados e

tiveram papel importante na sustentação da autocracia burguesa. Isso fica evidente na forma

getulista (nas leis trabalhistas, no DIP, na organização ideológica da cultura, entre outros

exemplos), mas também na Ditadura empresarial­militar inaugurada em 1964, não apenas pela

intensa ação ideológica, mas pelos meios de consentimento criados pelo crescimento

econômico acelerado que marcou o período.

No entanto, é evidente que o aspecto repressivo se impõe levando os autores que

analisam a formação do estado no Brasil a considerar este aspecto como “estrutural”. Não é

diferente emFlorestan. Ele considera que o fato da formação social brasileira, inserida de forma

dependente na ordem do capitalismo tardio, manifestar a contradição essencial entre um ciclo

restrito à ordemburguesa que se auto legitima nas formas da autocracia e uma maioria daqueles

que se localizam fora desta ordem ou apenas parcialmente incluídos, dá umcaráter estrutural à

autocracia como forma do Estado burguês no Brasil.

O grande problema de legitimação encontrado no caminho da consolidação da ordem

burguesa em nosso país é que uma ordem autocrática, por sua natureza, é sempre uma saída

temporária, mas as características estruturais de nossa formação social acabam por impor à

autocracia burguesa uma longevidade muito além do que uma forma transitória. Diz o autor:

Os recursos de opressão e de repressão de que dispõe a dominação burguesa no

Brasil, mesmo nas condições especialíssimas seguidas ao seu enrijecimento

político e à militarização do Estado, não são suficientes para ‘eternizar’ algo que

é, por sua essência (em termos de estratégia da própria burguesia nacional e

internacional) intrinsecamente transitório” (idem: 321)

Ao mesmo tempo o desafio da ordem burguesa na busca de sua estabilidade, cedo ou

tarde acabaria por exigir o esforço na direção de uma consolidação de sua hegemonia o que

Page 19: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

implica superar os limites de uma “autonomia de classe para dentro”, no sentido de

autoreferenciada no restrito campo dos interesses burgueses, por uma “autonomia de classe

para fora”, ou seja, envolvendo seus aliados (Fernandes considera que nos termos da

autocracia a burguesia se apresenta intolerante mesmo às manifestações do radicalismo

burguês), assim como seus oponentes na luta de classe como elemento essencial da chamada

“revolução passiva” (Gramsci, 2011: 317­319).

Devemos considerar que o problema da legitimação não se resume a um problema

político ou ético. Como nos lembra José Paulo Netto (2006) é na passagem para a forma

monopólica que a ordem do capital passa a exigir do Estado um conjunto de ações, diretas e

indiretas, através das quais a acumulação pode encontrar as condições de sua continuidade,

alertando para o fato que:

O que se quer destacar, nessa linha argumentativa, é que o capitalismo

monopolista, pelas suas dinâmicas e contradições, cria condições tais que

o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação política através do jogo

democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que

podem incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatos. E que

este processo é todo tensionado, não apenas pelas exigências da ordem

monopólica, mas pelos conflitos que faz dinamar em toda a escala

societária (Netto, 2011: 29).

De certa forma, Fernandes afirma que ao garantir as condições da acumulação

capitalista, a autocracia, ao mesmo tempo, dinamiza suas contradições e tende a reapresentar a

questão da legitimação do poder burguês perante outros setores e classes que compõe a

sociedade brasileira. Neste ponto o autor abre duas possibilidades para aquilo que chama de

crise da autocracia burguesa, lembrando que escreve já nos momentos que antecedem a

chamada abertura política e o início da transição democrática. Um primeiro cenário seria uma

espécie de autoreforma da autocracia na direção de incorporar aqueles setores naquele

momento não diretamente envolvidos no restrito círculo do poder burguês; um segundo cenário,

Page 20: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

dado o caráter estrutural das determinações que se encontramna base da autocracia burguesa,

seria a continuidade e o fortalecimento da autocracia burguesa no Brasil.

Antes de mais nada é preciso considerar que Fernandes não guarda nenhuma ilusão

quanto a possibilidade daquilo que chama de uma “revolução dentro da ordem”, neste caso

indicando uma autoreforma da autocracia. Para ele a burguesia havia perdido todo seu caráter

revolucionário. Estaríamos em suas palavras, entre duas revoluções, uma que vinha do passado

e chega neste momento sem maiores perspectivas (a revolução burguesa) e outra que “lança

raízes sobre a construção do futuro” (Fernandes, 1976: 295).

Torna­se, assim, muito difícil deslocá­las politicamente através de

pressões e conflitos mantidos ‘dentro da ordem’; e é quase impraticável

usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir

as contradições de classe”(idem : 296).

O fundamento desta descrença se encontra no fato já citado que para ele as

determinações estruturais criam um impasse. A massa daqueles que são colocados fora do

círculo do poder burguês apresentam demandas que se chocam com os interesses da

continuidade da acumulação de capitais, não por que sua natureza em si coloque estas

demandas fora da ordem do capital, não é o caso, mas pelo fato que o poder burguês aqui se

articula com a totalidade da acumulação do capital mundial e seu papel na lógica das

contratendências à queda da taxa de lucro é operar como áreas de superexploração que

sustentam o centro do sistema, assim como as classes dominantes locais, tornando tais

demandas uma ameaça a ordem.

Desta maneira Florestan Fernandes chega a uma categoria que nos parece

importantíssima para compreender o momento atual. Considerando que o possível de ser

ofertado como caminho que aplainasse o apassivamento dos trabalhadores em uma ordem

burguesa desta natureza, seria muito, muito pouco, Fernandes denomina este caminho de uma

“democracia de cooptação” (idem: 363). No contexto da crise da autocracia burguesa

reapareceria o velho dilema da revolução burguesa no Brasil e de como equacionar o problema

Page 21: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

político da hegemonia burguesa, agora sob a necessidade de “entrelaçar os mecanismos de uma

democracia de cooptação coma organização e o funcionamento do Estado autocrático”(idem,

ibidem).

Para o autor, naquele momento de sua análise, este caminho seria pouco provável, uma

vez que “parece fora de dúvida que as classes burguesas mais conservadoras e reacionárias

considerarão exagerado o preço que terão que pagar à sobrevivência do capitalismo

dependente, através da democracia de cooptação”(idem: 365), concluindo que:

Até onde pudemos chegar, por via analítica e interpretativa, não padece

dúvida de que as contradições entre a aceleração do desenvolvimento

econômico e a contra­revolução preventiva só podem ser resolvidas,

“dentro da ordem”, não pela atenuação, mas pelo recrudecimento do

despostismo burguês” (idem, ibidem).

De fato, se considerarmos o desenvolvimento imediato dos fatos que seguiram à

publicação do livro A revolução burguesa no Brasil, a história parece ter dado razão à

Fernandes. Vivemos uma democratização tutelada, uma abertura sob controle na qual os

conteúdos mais próximos às demandas populares foram sempre adiados, assim como a

permanência indisfarçável de todo o aparato político e jurídico da ditadura como sustentáculo

do poder político burguês que se perpetuou. No entanto, a história guardaria, como veremos,

uma surpresa.

Sinteticamente podemos afirmar que a posição de Fernandes é que a Revolução

Burguesa se realizou no Brasil, não em sua forma clássica, portanto divorciada de seu caráter

nacional e de seus elementos democráticos, o que leva a determinação da forma do Estado

burguês como autocrático e sua revolução como, de fato, uma contra­revolução preventiva

permanente. Ora esta será a base sobre a qual se erguerá outra dimensão fundamental da

chamada estratégia democrática popular.

Uma vez que a ordem burguesa é impermeável às pressões dos setores radicalizados

da burguesia e às demandas das camadas populares e, assim como para Caio Prado ainda que

Page 22: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

por outros motivos , Florestan também acredita que uma revolução socialista seria naquele 2

momento impossível, a apresentação das demandas democráticas não realizadas pela burguesia

e que coincidissem com os interesses dos trabalhadores, levaria a um impasse cuja solução

apontaria para a ruptura socialista.

É nesta equação que nascerá a famosa formulação de Fernandes sobre a necessária

combinação de uma “revolução dentro da ordem” com uma “revolução fora da ordem” . Ora 3

esta é, por assim dizer, a alma da formulação democrática popular.

O PT e a estratégia democrática popular

É bom dizer logo de início que o PT enquanto experiência histórica não nasceu da

adesão a uma leitura teórica, muito menos atribuir a responsabilidade pelos desvios presentes a

este ou aquele formulador ou intelectual. Como bons analistas que eram, tanto Caio Prado

como Florestan captaram elementos do devir, estavam inseridos emuma conjuntura histórica e

ao dar respostas às questões de seu tempo acabaram por indicar elementos que o

desenvolvimento histórico confirmaria como sendo determinantes no período que se abriu. O

PT como partido político e como parte integrante do movimento que a classe trabalhadora

empreendeu no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, expressa este mesmo cenário e se

tornará o protagonista da estratégia democrático popular e seu ocaso, assim como o PCB em

relação à estratégia democrática nacional.

A identidade do PT em seu início passava por uma clara diferenciação em relação ao

PCB, não apenas pela disputa própria do movimento sindical, mas pela necessidade de

2 Fernandes, que parte da afirmação do fim do ciclo histórico da revolução burguesa e que estamos na

era da revolução socialista, destaca a correlação de forças e o fato de que a superação da autocracia burguesa

exigia a constituição do proletariado enquanto um sujeito político, primeiro como protagonista de um amplo

movimento de caráter socialista e para tanto capaz de mobilizar os trabalhadores e demais setores por

demandas imediatas. Ver, por exemplo, Movimento Socialista e Partidos Políticos (Fernandes, F. , Editora Hucitec:

São Paulo, 1980)3 É necessário notar aqui que, neste momento, o autor já se refere a dois momentos de uma revolução proletária e não mais à característica própria da revolução burguesa discutida na obra que analisamos e o faz não na intenção de reapresentar o etapismo, mas de uma revolução permanente.

Page 23: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

afirmação que inaugurava um período diferente na história brasileira. É assim que em seu V

Encontro (1987) afirmara explicitamente que:

O PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática que o PCB

defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque

o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia

nessa aliança de classes – burguesia que uma classe que não tem nada a

oferecer ao nosso povo (Resoluções do V Encontro Nacional – 1987, in Almeida,

J. ; Vieira, M.A.; Canceli, V., 1997:322).

Já nos documentos de fundação do PT estão expressas as intenções de independência

de classe que aqui se reapresentam. É, entretanto, no V Encontro que a estratégia democrático

popular ganha sua forma mais acabada e que pode ser vista nesta formulação:

Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e

populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista – tarefas

não efetivadas pela burguesia –, tem duplo significado: em primeiro lugar, é um

governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa,

portanto um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá

viabilizar­se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das

tarefas a que se propõe exige a adoção concomitantemente de medidas de

caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfraquecimento da

resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não

representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa

democrático­popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores,

na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática popular

(V Encontro... op. cit: 322).

Como se vê, neste momento, a estratégia democrático popular é mais uma afirmação

de independência do que caminho para a conciliação de classe. No mesmo encontro, a

Page 24: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

estratégia propriamente dita se delineia de forma ainda mais clara.

Para extinguir o capitalismo e iniciar a construção da sociedade socialista, é

necessária, em primeiro lugar, uma mudança política radical; os trabalhadores

precisam transformar­se em classe hegemônica e dominante no poder de Estado,

acabando com o domínio político exercido pela burguesia. Não há qualquer

exemplo histórico de uma classe que tenha transformado a sociedade sem colocar

o poder político – Estado – a seu serviço (idem: 312).

A radicalidade com se apresentava tal proposição vinha combinada comumesforço de

introduzir esta “ruptura” em um longo processo de acúmulo de forças, diferenciando as

atividades destinadas à tomada do poder, propriamente dito, daquelas que preparam as

condições para isso, diferença na qual se insere a distinção de reforma e revolução, entendidas

pelos formuladores não como antagônicas. A luta por reformas só seria um erro quando

“acabam em si mesma”, ressaltando que “quando ela serve para demonstrar às grandes massas

do povo que a consolidação, mesmo das reformas conquistadas, só é possível quando os

trabalhadores estabelecem seu próprio poder”, então a luta por reformas se combinaria comos

processos de transformação social (idem: 313).

O que parece ficar evidente é que este momento inicial da formulação democrática

popular parte de uma pressuposto semelhante ao que foi expresso por Florestan, isto é, a

suposta impermeabilidade da burguesia brasileira e de seu Estado diante das demandas

populares (matéria prima da luta por reformas), ou como as formulações e o próprio sociólogo

brasileiro afirmarão, as chamadas “tarefas democráticas em atraso”, ou “tarefas não efetivadas

pela burguesia”. Desta maneira podemos supor que o essencial à formulação emquestão é que

a apresentação de tais demandas pelos trabalhadores e a resistência do poder burguês em

incorporá­las, seriam o momento dentro da ordem que prepararia a possibilidade da ruptura,

na verdade a legitimaria perante a maioria da população.

Ainda que esta formulação tenha cumprido umpapel importante na dinâmica da luta de

classes e tenha significado um poderoso instrumento de mobilização, luta e organização dos

Page 25: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

trabalhadores que refletiu em patamares significativos na constituição de uma consciência de

classe (aliás, o mesmo pode ser dito da estratégia democrático­nacional); seu desfecho

produziu algo muito distinto daquilo que se esperava.

Não é o caso de apontar todo o processo pelo qual esta metamorfose se processou , 4

mas apenas indicar o fato de que nesta transformação a principal vitima foi a independência de

classe. Pensada inicialmente como um longo processo de acúmulo de forças que combinaria um

braço de ação junto aos movimentos sociais e sindicais, ligados às lutas da classe trabalhadora

e outro que refletiria este crescimento de lutas através de patamares institucionais (sindicatos,

organizações da sociedade civil e espaços institucionais conquistados via eleitoral nas

administrações e parlamentos), processo este que deveria culminar na conquista do governo

federal para que se desencadeasse reformas de caráter “antiimperialista, antilatifundiário e

antimonopolista”; esta propsta sofreria uma inflexão significativa entre o VI e VII Encontros

Nacionais do PT.

De forma sucinta podemos afirmar que três processos se combinaram nesta inflexão.

Primeiro que a dinâmica da luta de classes se acentuou no governo Sarney levando à

possibilidade concreta de que uma vitória eleitoral ocorrer mais cedo do que se previa (de fato

já um ano depois, em 1988, esta proposta se colocou). No entanto, paradoxalmente,

exatamente neste momento outros dois fatores interviriam para minar as bases daquele amplo

movimento de caráter socialista que deveria ser a sustentação de um suposto governo

democrático e popular que realizaria as reformas propostas.

A reestruturação produtiva implantada entre o final dos anos 1980 e durante a década

de 1990, quebraria a força do movimento operário independente em sua própria base, ao

mesmo tempo em que a crise nas experiências de transição socialista em curso, notadamente a

URSS, entravam em rápido colapso. Estes vetores se combinam para gerar um resultado

inesperado: a possibilidade de chegar ao governo federal, mas sem a correlação de forças que

permitiria a implantação das reformas democráticas e populares.

A solução encontrada, ainda dentro do campo de uma estratégia democrática e

4 Para tanto ver As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento (Iasi, Expressão Popular: São Paulo, 2006)

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popular, é que seria possível e desejável seguir o acúmulo de forças agora dentro deste espaço

institucional estratégico, assim como já se supunha se realiza nos espaços institucionais menores

conquistados nesse processo (administrações municipais, mandatos parlamentares, máquinas

sindicais, etc.).

Vejam que há um raciocino estranho aqui. Não se poderia pensar em uma ruptura

socialista por conta de uma certa correlação de forças insuficiente acompanhada de uma

consciência de classe igualmente insuficiente. Por isso as reformas democráticas e populares.

Agora se trata de uma correlação de forças ainda mais precária que impede até mesmo estas

reformas, fazendo com que o programa tenda a um horizonte apenas “democrático”.

No entanto, não se trata aqui de pura intencionalidade que se joga no vazio, mas de

uma luta de classes. Lembremos que isso tudo se dá no momento emque a burguesia sofre seu

próprio paradoxo expresso no dilema entre uma autoreforma nos termos de uma democracia

de cooptação ou um aprofundamento da autocracia, alternativa que neste momento se aplica e

que parece alimentar o processo de luta de classes e fortalece seu adversário.

A metamorfose, ou o transformismo se preferem, se dá no processo pelo qual acabam

por se chocar dois interesses que até então formavam uma unidade: os interesses da classe

trabalhadora retomando seu processo de luta com a crise da autocracia, e os interesses de uma

camada burocrática que se especializou na gestão dos espaços institucionais ocupados (partido,

sindicatos, espaços governativos ou parlamentares). Tal contradição se materializa na questão

das eleições presidenciais e nas sucessivas derrotas de Lula (em 1989, 1994 e 1998) o que

leva a um setor do PT a defender a tese segundo a qual seria necessário ampliar as alianças, o

que implicaria em uma moderação programática, para que fosse possível ganhar as eleições .5

A vitória eleitoral de 2002 que leva Lula à presidência consagra esta inflexão. O

encontro nacional que a antecede é esclarecedor do caminho inverso percorrido no sentido do

desmonte da independência de classe, em suas resoluções podemos ler:

5 Esta tese foi defendida já no VIII Encontro Nacional, mas foi suspensa com a vitória de uma coligação de esquerda que dirigiria o PT neste período e retomada no X Encontro (1995) com a vitória de José Dirceu para a presidência do partido.

Page 27: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

Um novo contrato social, em defesa das mudanças estruturais para o país, exige o

apoio de amplas forças sociais que dêem suporte ao Estado­nação. As mudanças

estruturais estão todas dirigidas a promover uma ampla inclusão social – portanto

distribuir renda, riqueza, poder e cultura. Os grandes rentistas e especuladores

serão atingidos diretamente pelas políticas distributivistas e, nestas condições, não

se beneficiarão do novo contrato social. Já os empresários produtivos de

qualquer porte estarão contemplados com a ampliação do mercado de consumo

de massas e com a desarticulação da lógica financeira e especulativa que

caracteriza o atual modelo econômico. Crescer a partir do mercado interno

significa dar previsibilidade para o capital produtivo (XII Encontro Nacional, 2001)

.6

Eis que uma força política própria da classe trabalhadora passa ao campo moderado,

primeiro rumo ao centro do espectro político e depois com o desenvolvimento dos

compromissos de governabilidade, para uma aliança de centro direita. Este “transformismo de

grupos radicais inteiros, que passam para o campo moderado” (Gramsci, 2011: 317) não

restringe seu impacto ao próprio grupo ou à direção destes grupos, mas produz umefeito sobre

a classe de onde emergiram inicialmente. Como diz Gramsci:

Neste sentido (a absorção gradual mas contínua de adversários que pareciam

irreconciliáveis inimigos), a direção política se tornou um aspecto da função de

domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à

decapitação destes e a sua aniquilação por um período frequentemente muito

longo (idem: 318).

Intencionalidades e luta de classe

Este é um processo político complexo que passa por questões éticas mas não se

6 Resoluções do 12.º Encontro Nacional (2001). Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, São Paulo, 2001, p. 38.

Page 28: Democracia de Cooptacao - Mauro Iasi

restringe a elas. Ainda que possam ter havido pequenas e grandes traições, e de fato houveram,

os protagonistas deste processo não necessariamente agem como “terratenentes da burguesia

no movimento operário”, na expressão de Lênin, de forma consciente. Eles podem seguir

acreditando que estão executando ummomento tático de sua estratégia, acumulando forças até

que um dia retomem as condições para a mítica ruptura socialista, transformada em horizonte

que sempre se afasta quanto mais dele nos aproximamos. Não se trata de meras intenções, mas

de interesses de classe. A burguesia precisava resolver seus problemas de hegemonia e para

isso tinha que enfrentar uma contradição: dado o caráter estrutural da exploração na forma

como a acumulação de capitais poderia chegar no máximo a uma democracia de cooptação

diante da qual os trabalhadores se negariam a receber tão pouco e a burguesia se recusaria a

pagar um preço que consideraria muito alto.

O cenário se agrava na medida em que a burguesia precisa realizar isso no bojo de

ajustes que apontavam para o desmonte do Estado e das políticas públicas, a intensificação da

mercantização e das privatizações, uma interação mundial de mercados e fluxos financeiros que

solapam qualquer esforço de autonomia nacional, ou seja, era necessário retomar as bases de

um consentimento da classe trabalhadora, mas sem o retorno do Estado do Bem­estar Social,

que na verdade aqui nunca existiu, mas que no contexto europeu foi o principal instrumento do

amoldamento do movimento operário e socialista.

O interesse expresso na trajetória recente do PT e de sua experiência no governo

federal em umgoverno de coalizão de classes, numa composição de centro direita, rende­se ao

pragmatismo político: vencer, governar e se reeleger. O ex­presidente do PT, José Genoino,

parece indicar o campo deste pacto social e seu impacto sobre a questão do programa:

O programa de governo que a candidatura Lula levou às ruas em 2002 contém

eixos estratégicos para o Brasil. Um projeto estratégico, qualquer que seja, é

sempre a projeção ideal que um agente político – no caso o PT – formula em

relação à sua visão de futuro. Projeto político não pode ser entendido como

algo que necessariamente se realizará. Trata­se apenas de um dever­ser, de

uma das possibilidades em relação ao futuro. Na medida em que existem vários

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projetos interagindo e que a ação de execução de um projeto interage com a ação

de outros sujeitos, o resultado final da ação implementadora de um projeto nunca

será igual à intenção inicial do agente. O mesmo ocorre com programas de

governo. O que importa, na ação dos partidos, é que suas ações correspondam a

programas e projetos. Resultará daí algo mais ou menos aproximado da

formulação inicial, dependendo sempre da capacidade de execução, das

condicionantes da realidade, das circunstâncias e dos agentes interativos

(Genoino, 2003).

Notem que a resultante expressa no governo é produzida pelo concurso de “vários

projetos interagindo”, mas seria interessante perguntar quais. O PT apresentou às eleições

“seu” projeto, mas já vimos que ele já estava devidamente desfigurado por uma inflexão que o

retira de um campo fora da ordem para um campo que a aceita como limite que não pode ser

superado. Mas, vamos supor apenas para fins de exposição, que este representa os interesses

táticos dos trabalhadores. Com que outros projetos terá que interagir? Certamente não são

aqueles motivados pela intensa participação popular e da classe trabalhadora, uma vez que os

mecanismos de participação direta foram devidamente travados, quando não criminalizados.

Em se tratando de uma sociedade de classe, trata­se dos interesses muito bem organizados

através dos loobies dos diferentes setores da burguesia monopolista e estes não precisam

moderar suas demandas para parecer aceitáveis ou serem compreendidos pela consciência

comum da maioria da população. A ingenuidade genuinamente apresentada pelo ex­presidente

do PT, ex­deputado e ex­socialista, chega ao ponto de considerar, na perspectiva dita

republicana que ele hoje assume, que a interação entre estes “projetos” é neutra,

desconsiderando, por exemplo, que parte destes projetos são acompanhados de vultuosas

contribuições de campanha ou bancadas inteiras que podem viabilizar ou inviabilizar a

sustentação de um governo.

Por fim, o pacto nos termos apresentados de uma democracia de cooptação, permite

disciplinar a luta de classes. Os pontos de “acordo”, o que resulta desta paciente e

habbermasiana ampliação das esferas de consenso, são “acidentalmente” os interesses

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essenciais da acumulação de capital: garantir o crescimento econômico, realizar as reformas e o

ajuste do Estado, garantir a “sustentabilidade” e evitar as políticas “irresponsáveis” e

“demagógicas”, e finalmente, oferecer o fundo publico como alvo da valorização do capital

estrangulado por sua crise.

A condição política para que este “ajuste estrutural” ocorra é o desarmar da classe

trabalhadora, mas isso não pode ser conseguido pelos meios clássicos da social democracia,

pelo contrario, será a camada melhor remunerada do proletariado que terá que pagar pelo

ajuste. A forma encontrada é a viabilizada pelo pacto com a pequena burguesia política,

formada com base naquela burocracia descrita, que negocia em nome da classe para

implementar uma política contra seus verdadeiros interesses.

A base da democracia de cooptação é a focalização das ações sociais visando

amenizar a pobreza absoluta ao mesmo tempo que oferece condições para o crescimento

econômico e, portanto da acumulação privada, aumentando a pobreza relativa.

A democracia de cooptação, genialmente antecipada por Florestan, mas por ele

descartada como possibilidade, não veio da autoreforma da autocracia, mas, inesperadamente,

do desenvolvimento da estratégia democrática popular madura que desloca para o governo um

setor que emerge da classe trabalhadora e dela se afasta para negociar em seu nome o pacto

que acaba por resolver os problemas de hegemonia que faltava à consolidação do poder

burguês no Brasil. Querendo evitar os equívocos de um socialismo sem democracia, o PT

acaba por implementar o pesadelo de uma burocracia sem socialismo.

Assim como na social democracia européia (Przeworski, 1989), a estratégia

democrática popular que havia sido pensado como uma caminho alternativo para se chegar ao

socialismo, torna­se mais um eficiente meio de evitá­lo.

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