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109 Meritum – Belo Horizonte – v. 2 – n. 1 – p. 109-130 – jan./jun. 2007 5 Democracia e Direitos Humanos Novas tendências constitucionais e internacionais Alexandre Coutinho Pagliarini * As ruas são do povo; as cidades têm ruas; os países têm cidades; tudo e todos estão no mundo; e o mundo não tem paredes! São estas as premissas de um universalismo jurídico que se quer ver aplicado também ao princípio democrático e a uma prática de participação popular direta em todos os campos da polis e da cosmópolis. Fica anunciada nossa intenção neste texto, no qual se analisam as intercorrências entre Democracia e Direitos Humanos sob uma perspectiva que crê na fusão das noções de nação e mundo, na tentativa de cumprir o papel de questionar o estágio infame atual da Democracia e dos Direitos Humanos, tanto no quadrante do Estado soberano quanto no cenário internacional. * Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP; Professor, Coordenador de Pós- Graduação Lato Sensu e Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da UniBrasil; Professor do Centro de Extensão Universitária/SP (CEU), da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst.) e da Facinter; Colaborador do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais (IBEC), Advogado. Revista diagramada final.pmd 4/7/2007, 09:32 109

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Democracia e Direitos Humanos

Novas tendências constitucionais

e internacionais

Alexandre Coutinho Pagliarini*

As ruas são do povo; as cidades têm ruas; os países

têm cidades; tudo e todos estão no mundo; e o mundo não

tem paredes! São estas as premissas de um universalismo jurídico

que se quer ver aplicado também ao princípio democrático e a

uma prática de participação popular direta em todos os campos

da polis e da cosmópolis. Fica anunciada nossa intenção neste

texto, no qual se analisam as intercorrências entre Democracia e

Direitos Humanos sob uma perspectiva que crê na fusão das

noções de nação e mundo, na tentativa de cumprir o papel de

questionar o estágio infame atual da Democracia e dos Direitos

Humanos, tanto no quadrante do Estado soberano quanto no

cenário internacional.

* Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP; Professor, Coordenador de Pós-Graduação Lato Sensu e Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da UniBrasil;Professor do Centro de Extensão Universitária/SP (CEU), da Academia Brasileirade Direito Constitucional (ABDConst.) e da Facinter; Colaborador do InstitutoBrasileiro de Estudos Constitucionais (IBEC), Advogado.

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1 DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS E ESTADOCONSTITUCIONAL

E nasceu a Constituição moderna. Veio ela ao mundo paracumprir dois papéis históricos: (i) o de limitar o exercício doPoder, estruturando a comunidade política chamada Estado; (ii)o de proclamar e garantir direitos básicos do indivíduo.

Os governos de regime absolutista eram marcadosjustamente por aquelas características que foram atacadas pelo“espírito de constituição” ou “sentimento constitucional comomodo de integração política”. Então, quais foram ascaracterísticas fundamentais do Absolutismo? Elas eram duas:a) poder ilimitado do rei; b) falta de previsão legal de direitosbásicos que salvaguardassem os indivíduos.

Multiplicaram-se Constituições, primeiramente nos paísesde tradição ocidental, a partir de um modelo de Carta que, todasas vezes, cumpria as funções de – enfatize-se – estruturar acomunidade política, limitando o exercício do Poder, proclamare garantir Direitos Fundamentais.

O “espírito de Constituição” tem em si abrigado, comoelemento fundamental – intrínseco –, a Democracia, isto porque:(i) o Poder não deveria ser exercido por uma só pessoa; (ii) aregra da hereditariedade, que garantia o Poder ao primeiro filhodo rei, não se coadunava com a complexidade da debutantesociedade industrial, nem com o racionalismo centrado no jepense, donc je suis – penso, logo existo -–, de René Descartes.

Relacionam-se diretamente Constituição e Democracia.Desse modo, considerando que as Constituições dos EstadosUnidos, da França e todas as outras têm trazido consigo um rolde Direitos Fundamentais, também se estabelecem,inexoravelmente, correlações e interdependências entreDemocracia e Direitos Fundamentais (ou Humanos).

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Assim como se pode afirmar que não há Constituiçãosem Direitos Fundamentais, então também é verdadeira aassertiva de que não há Constituição sem Democracia.

Os conceitos e as práticas de Constituição, Democracia eDireitos Fundamentais imbricam-se pelas seguintes razões:

• É verdade que a Constituição nasceu para garantir maiorliberdade (mobilidade) política – quebrando, com isso, a regrada hereditariedade do Ancien Régime -–, então não é falsa aafirmativa de que o “espírito de Constituição” é necessariamenteum “espírito democrático”.

• A Democracia, ela própria e por si só, além de participarintrinsecamente do próprio conceito de Constituição, tambémpode ser incluída no rol de Direitos Fundamentais de primeirageração, aqueles individuais. Explica-se: as Constituiçõesproclamam e garantem Direitos Fundamentais, desde a primeirageração histórica destes, fase em que os direitos tiveram umafeição extremamente liberal e individualista – liberdade deexpressão, liberdade de locomoção, liberdade de religião,liberdade econômica e liberdade política, sendo esta última umsinônimo para Democracia.

• A participação popular na construção de uma comunidadepolítica não só por meio do voto, mas, sobretudo, pelacapacidade diuturna de exercício da cidadania, faz com que asatividades democráticas diretas se tornem verdadeiros DireitosFundamentais de quarta geração. A Constituição dos temposatuais deve contemplar o maior número de instrumentos político-jurídicos para o crescente exercício da Democracia direta.

A prática constitucional exercida desde fins do século XVIIIaté os dias atuais tem apresentado conflitos e aporias que, aofinal e ao cabo, desconstituem o “espírito constitucional” e, por

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isso, fazem com que o próprio conceito de Constituição sejavilipendiado. As aporias transformam as Constituições Totais emmeras Constituições Parciais – ou “Não-Constituições”.

Constituição Total é a Carta que, ao observar o seu papelhistórico de eleger o povo como centro principal do poder –liberdade política –, cumpre as funções de:

a) estruturar a comunidade política;

b) proclamar e garantir Direitos Fundamentais – com aDemocracia incluída no rol destes, tanto na primeira geraçãoquanto numa quarta.

Haverá Constituição Parcial – ou “não-Constituição” – emduas situações:

1ª) quando a Carta só cuidar expressamente da estruturaçãoda comunidade política, sem ter em seu corpus formal umaDeclaração de Direitos;

(2ª) quando a práxis Constitucional num país de aparenteCarta Completa (ou Constituição Total) permitir governos nãodemocráticos, ou quando os direitos e garantias previstosformalmente não sejam fruídos pelo povo, nem garantidos pelasautoridades constituídas – hipótese em que se dá a transformaçãoda Constituição num inútil “pedaço de papel”.

Os neologismos Constituição Total e Constituição Parcialaqui servem para dar conta do conteúdo formal da Carta e daprópria prática constitucional fiel à história e às funções essenciaisda Carta. É certo, porém, que: (i) não há “Constituição viva” emregime político que não seja o democrático; (ii) não háConstituição sem que num documento político-jurídico sejaestruturada a comunidade política e proclamados os DireitosFundamentais, com os respectivos instrumentos de garantia.

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A fruição dos Direitos Humanos proclamados formalmentenuma Constituição – ou num Tratado Internacional – não ocorre –factualmente – em espaços políticos que não sejam democráticos.E de nada serve uma Constituição que não seja sentida, vivida epraticada pela população e pelas autoridades constituídas. Logo,o pleno gozo dos Direitos Humanos depende, no dia-a-dia, dacapacidade de participação política – cidadania – da população.Constituição e Democracia, nesse sentido, aproximam-se e sefundem em conceitos complementares um ao outro.

Para exemplificar a inafastável correlação entre Democraciae Direitos Humanos, consideremos o modelo constitucionalbrasileiro que vigeu durante os anos de Ditadura Militar, iniciadosem 1964. Sob a égide da Constituição de 1967-69 havia um rolde Direitos Fundamentais formalmente proclamados. Contudo,o povo acabava por não exercer tais direitos já por conta denão poder escolher os seus comandados – representantes – pelavia da eleição direta; só isso bastaria para se concluir que aDemocracia, ao mesmo tempo em que a sua previsãoconstitucional é material que essencialmente deva constar numaCarta, constitui-se também num Direito Fundamental de primeirae de quarta gerações. Até para aqueles eventuais – maus –“pensadores políticos” que não consideram a garantia daDemocracia como assunto materialmente constitucional, aprática política antidemocrática demonstrou que, em regimes deexceção, não são exercidos nem outros Direitos Fundamentaisconstitucionalmente previstos, como a liberdade de opinião, aliberdade de religião e a mais básica liberdade: de ir-e-vir. NoBrasil dos “anos de chumbo” da Caserna, vivenciaram tal realidade“na carne” personalidades como Lamarca, Prestes, Zuzu Angel,Rubens Paiva, Brizola e Herzog, dentre milhares de outros.

Se a Constituição nasceu para a garantia de um espaço departicipação democrática – liberdade política – que superaria aMonarquia Absoluta, então uma Constituição deve ser

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necessariamente democrática. E se é verdadeiro que aConstituição tem servido para a previsão de instrumentos degarantia de Direitos Humanos, então é também verdadeiro quenão há Constituição sem Direitos Fundamentais.

Há momentos em que Estados se vêem regrados por“Constituições”; apesar disso, tais Estados ficam afastados do“espírito de Constituição Total – ou Plena, ou Real” pela faltada Democracia, ou pela indiferença em relação aos DireitosHumanos. Exemplos assim se encontram na Alemanha, de Hitler;na Itália, de Mussolini; na União Soviética, de Stalin; no Chile, dePinochet; no Brasil, de 1964 a 1985; nas “Cubas”, tanto naquelade Batista quanto na de Fidel; e nos Estados Unidos, de GeorgeW. Bush e do “Campo de Concentração” de Guantánamo. NessesEstados soberanos, durante os períodos políticos frisados,desvinculou-se o constitucionalismo formal do constitucionalismoreal – aquele de José Roberto Dromi – e a Constituição tornou-se, conseqüentemente, mero – e inútil – pedaço de papel.

Portanto, a primeira conclusão desse Manifesto, aplicávelao contexto do Estado nacional, é a seguinte: Democracia eDireitos Humanos se fundem, tanto conceitualmente quanto naprática, pois não existe aquela sem estes, nem estes sem aquela,não havendo, conseqüentemente, verdadeira Constituição emespaços políticos de não-Democracia ou de não-DireitosHumanos. Levar Constituição a sério é assim; ou, do contrário,não se estará levando Constituição a sério.

2 DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NODIREITO INTERNACIONAL E NO CONTEXTOAPRÈS L’ÉTAT-NATION – PÓS-NACIONAL

Na primeira parte deste texto, pretendeu-se correlacionaros conceitos e as práticas de Constituição, Democracia e Direitos

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Humanos nos quadrantes do Estado nacional – moderno –advindo da Revolução Francesa e da independência dos EstadosUnidos da América.

A Democracia tem estado restrita à possibilidade de seuexercício no Estado soberano. Dá-se isso porque cidadão é onacional de um país. Amarram-se, portanto, Democracia ecidadania, sendo esta última precedida pelo vínculo danacionalidade.

As concepções tradicionais classificam nacionalidade comoo vínculo que liga alguém a um Estado, e cidadania comoum status do nacional. Fecha-se, assim, o círculo departicipantes na feitura da vontade da Comunidade Política. Talconcepção não pode ser aceita nem para a construção da polis,muito menos para a da cosmópolis.

1. Na construção da polis nacional, ao se afastar o estrangeiroresidente num dado Estado soberano da feitura da vontade políticaneste mesmo Estado, comete-se segregação injusta: estrangeirosresidentes, tanto quanto os nacionais, pagam impostos e sesubmetem ao sistema jurídico local, bem como aos buracos nasruas e aos criminosos; portanto, deveriam poder votar e servotados, bem como ocupar o pólo ativo numa Ação Popular.

Ao se considerar a cidadania como um status do nacional– e só dele –, aceita-se que cidadão no (e do) país X só possaser o nacional desse país X. Em esquema assim, no mínimo trêsproblemas são criados:

(i) continua-se a crer que a dação de um vínculo e de umaidentidade – nacionalidade – é atribuição exclusiva do Estado;

(ii) os casos de apatridia – falta de nacionalidade –continuarão a promover a exclusão e a perseguição depopulações inteiras – vejam-se os exemplos históricos doscurdos, ciganos, hebreus (antes de 1948) e palestinos (até hoje);

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(iii) não se promove uma quebra de paradigma político-jurídico-organizacional deixando de fora as Nações Unidas dasquestões sobre a nacionalidade. Este terceiro problema, com aquebra da rigidez relacional-implicativa residente no trinômioEstado-nacionalidade-cidadania, poderia muito bem ser resolvidopela interferência da ONU que, em casos de apatridia, concederiaà vítima desse mal uma alternativa que não fosse aquela danacionalidade, mas a dação, pela própria ONU, de umacapacidade jurídica internacionalmente reconhecida de poderexercer no Estado em que fixasse residência, em toda a suaplenitude, todos os direitos políticos inerentes ao regimedemocrático.

2. Na construção da cosmópolis – ComunidadeInternacional – pelo Direito Internacional Público, a Democracianão tem lugar bem definido. Isso se deve ao fato de ser aSociedade Internacional um “ente esparso e descentralizado”,desprovido de uma identidade política calcada na nacionalidadede um povo e na soberania de um Estado independente.

No Direito Internacional Público, participam da construçãodo acervo normativo os Estados soberanos – em relaçãobilateral e/ou multilateral – e as Organizações Internacionais;é pela manifestação de consentimentos que se criam normasadvindas de tratados, costumes, princípios e decisões (art. 38,ECIJ). Da formação dessas partículas normativas elencadas noEstatuto da Corte da Haia não participa diretamente um povotransnacional, uma vez que a noção de povo tem se ligado àrealidade jurídica da dação da nacionalidade pelo Estado. Háduas soluções para tal déficit democrático:

• Solução centralizante: mudar a Carta da ONU paraestabelecer que as suas normas de Direito Internacional Públicotêm força superior às dos Estados nacionais membros das NaçõesUnidas. Assim, estabelecida definitivamente a superioridade

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hierárquica do Direito Internacional Público em relação aosordenamentos parciais dos Estados, se tornaria possível oestabelecimento da seguinte regra: antes de alguém ser cidadãode um país pelo vínculo divisor da nacionalidade, este alguémseria um potencial cidadão do mundo, com garantias jurídicaspara que isso fosse respeitado. Nessa perspectiva transnacionalde correção de déficit democrático, é evidente que a ONU –como centro mundial de produção de normas gerais e abstratas– necessitaria de um órgão deliberativo equiparado aosparlamentos nacionais, cujos membros seriam escolhidos peloseleitores dos Estados-Membros da ONU, e também por aquelesapátridas reconhecidos como cidadãos pela própria ONU. Paraque tal situação encontrasse apoio na lógica da matemática e daprópria democracia representativa internacional, as decisõesteriam de ser tomadas por maioria, e sem poder de vetoreservado aos representantes dos Estados mais poderosos.

• Solução não centralizante: aos que entendem utópica asolução anterior, há outra. O déficit democrático do DireitoInternacional Público seria resolvido por uma simbiose maisfortalecida entre esse direito e o Direito Constitucional nacional,em que os parlamentos nacionais promoveriam obrigatoriamentea participação indireta das populações dos Estados-Membros.Nessa hipótese, os apátridas continuariam sem representação.Apesar desse defeito, as Casas Legislativas nacionais serviriamtambém para a legitimação democrática num contextoassemelhado ao que ocorre numa federação. Mesmo nessasolução alternativa, a reformulação da ONU seria inevitável, coma necessidade de inserção de todos os Estados-membros nosórgãos decisórios, devidamente representados pelos chefes deEstado ou governo, mas sempre respaldados em seusparlamentos na oportunidade da aprovação de Tratados e nacriação do Direito Internacional Geral.

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Identifica-se a primeira solução (centralizante) com adoutrina monista radical; a segunda (não centralizante), como monismo moderado – aquele que dá prevalência à realidade-parcial-estatal construtora da realidade-total-internacional.Por essa razão, a primeira solução é a mais indicada. Num casoou noutro, o embrião de uma sociedade internacional mais coesae democrática transparece nos Direitos Humanos e naconsideração destes como os verdadeiros e primeiros juscogens, nos quais se denota a superioridade da ComunidadeInternacional e do DIP.

Para que se estabeleça uma Democracia Internacionalou Transnacional, os dogmas que influenciaram o Estadomoderno devem ser superados. Os conceitos de povo e decidadania devem ser desvinculados do de nacionalidade. Casocontrário, não se encontrará fórmula capaz de promoverinserções que superem as barreiras do Estado nacional e dopróprio Direito Internacional Público em sua feição – até agora– pouco democrática.

2.2 Na construção da cosmópolis pelo DireitoConstitucional Supranacional – caso específico da UniãoEuropéia, e do Direito Comunitário europeu –, o déficitdemocrático tem sido melhor superado que no DireitoInternacional Público clássico. Os dogmas que influenciaram oEstado moderno foram, de certo modo, superados. Os conceitosde povo e de cidadania foram parcialmente desvinculados dosconceitos de nacionalidade. Há instituições comunitárias –supranacionais – que decidem por maioria, bem como umaespécie de governo tripartido que se evidencia na existênciade órgãos comunitários, como o Tribunal de Justiça Europeu, aComissão Européia, o Parlamento Europeu e o Banco CentralEuropeu. Por isso, não causam estranheza as idéias de poderconstituinte supranacional e de Constituição Européia.

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Reformulam-se conceitos e minimizam-se os impactos do Estadonacional e da nacionalidade sobre o exercício da cidadania, tudoem concordância com os tempos atuais que não desprezam arealidade de o Direito Internacional e o Direito Nacionalimbricarem-se mutuamente, dando-se preferência ao primeiro,sem que isso represente o corte do nexo comunicacional entreEstado e Comunidade Internacional e o esquecimento das ricasexperiências aferidas a partir da constitucionalização nacional.

Pois bem, haverá, linhas adiante, espaço específico para adiscussão sobre a problemática anunciada, no qual dissertaremossobre povo nacional e sobre povo europeu. Todavia, nadaimpede que façamos digressões prévias, dando conta de que épossível a um francês, por exemplo, participar das eleições parao Parlamento Europeu votando em Portugal, numa hipótese emque estivesse residindo lá, num candidato à quota lusitana aoParlamento Europeu, podendo o mesmo francês, nessa hipótese,até candidatar-se ele próprio – neste exemplo, o mesmo francêspode até se candidatar ao cargo de prefeito de Lisboa. Comesse singelo exemplo, podemos concluir que a Europa superoua exclusividade da participação política no território do Estadonacional, ao nacional deste. Assim, não é errado dizer que já sedetecta na Europa uma espécie de cidadania européia –supranacional, comunitária e/ou pós-nacional.

No constitucionalismo moderno, que defendemos estarsuperado no caso da construção européia, tem-se o Estado-Nação. Este tem sido construído por aquilo que o poderconstituinte originário delineou no Texto Constitucional local. EssaCarta Magna moderna se refere às suas normas e faz com queelas incidam sobre o sistema territorial de um-só povo, num-sóterritório, povo este que será o detentor da titularidade deuma-só soberania, qualidade de um poder consentido ereferente a uma-só realidade nacional. Isso tudo está certo

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porque diz respeito ao tempo e ao espaço do constitucionalismomoderno. Mas nada disso pode impedir que se faça possível oexercício de um poder constituinte europeu, poente de umarealidade sistemática que organizará, de modo unionista, váriascomunidades políticas, e não só uma, vários territórios, e não sóum, vários povos, e não só o nacional.

Não prestam atenção os críticos de um poder constituinteeuropeu no seguinte fato: sempre aceitaram como poderconstituinte originário a latência sociopolítica poente de umaConstituição e de um Estado, mesmo que tal poder constituinteoriginário seja o responsável pela positivação, via outorgaautoritária, de uma Constituição e, conseqüentemente, de umEstado, caso em que não se verifica a Democracia como pano defundo. Os constitucionalistas tradicionais acabam por aceitar até oexercício secundário do poder reformador, modificando, em várioscasos, aquilo que foi posto como imodificável pelo próprio poderconstituinte originário do Estado nacional.

Tudo bem, está certo, realmente o poder constituinteoriginário, no âmbito do Estado nacional, pode ser exercido porum grupo revolucionário que venha a representar os “fatoresreais de poder”, de Ferdinand Lassalle. Mas o que se esperadesse grupo revolucionário é que convoque, pelo menos, algumaespécie de assembléia nacional que elaborará uma Carta. Isso,porém, não ocorre com freqüência, sendo exemplo a própriaConstituição brasileira de 1824, que teve trabalhos prévioselaborados por um grupo constituinte, que na realidade paranada serviram, uma vez que o imperador D. Pedro outorgou aCarta. O paradoxal nesse relato é o seguinte: não é verdade quea Constituição moderna nasceu para racionalizar o exercício dopoder e estruturar o Estado? Não é verdade que a Carta damodernidade nasceu para, além disso, garantir o acesso de

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outros, que não o filho do rei, ao Poder, instituindo, por isso,o Estado Democrático de Direito? Não é verdade que oconstitucionalismo moderno tem como pano de fundo oprincípio democrático? E, mesmo assim, não é verdadeira aassertiva de que a Constituição tem servido a regimesautoritários de esquerda e de direita?

Com os questionamentos constantes no final do parágrafoanterior, percebemos que a Constituição, um instrumento inicialde liberdade e de Democracia, tem servido, algumas vezes, paraque os déspotas possam justificar a “legalidade” de seus governos.A Carta Política tornou-se, por isso, uma fórmula desvinculadade sua natureza inicial, que é a da participação popular. Istoprovocou nas “psiques coletivas” dos eleitorados uma verdadeiraaversão à política formal e um sentimento de impotência,porquanto as autoridades fazem o que querem porque tudo equalquer coisa são postos sob o abrigo de uma “Constituição”.“Mas está tudo bem, pois existe Constituição”, diriam tambémos interessados diretos na manutenção da doutrina clássica sobreo poder constituinte e sobre a própria Constituição.

Dizemos nós: Nada está bem se não há Democracia!Nada está bem se não há um espírito humanitário! Nadaestá bem se não há Direitos Fundamentais garantidos! Issojá foi dito, mas nada impede que seja repetido: a Constituiçãomoderna nasceu para cumprir dois papéis: o de racionalizar oexercício do Poder e, concomitantemente, estruturar o Estado(como comunidade política) moderno; e o de proclamar egarantir os Direitos Fundamentais. No constitucionalismomoderno, em decorrência do papel a ser cumprido pelaConstituição, passou-se a poder identificar o que osdoutrinadores chamam de Constituição material. Qual é, então,o material substancialmente constitucional? São aqueles dois.

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Os governos de 25 Estados europeus, ao longo de quasesessenta anos, vêm comunitarizando o espaço do VelhoContinente: isto é verdadeiro. Os povos dos Estados europeus,nesse período, vêm aderindo a tais mudanças e se submetendoàs regras européias: isto é fato. Com essas duas verdades, écerto dizer que temos notado na Europa, durante todo esteespaço de tempo, a estruturação pacífica de uma comunidadepolítica hoje chamada União Européia (EU), cujos poderes sãoracionalizados numa existente – confusa, mas ainda existente –estrutura orgânica: Parlamento Europeu, Tribunal de JustiçaEuropeu, etc. Do mesmo modo, os governos europeus, emmomentos e âmbitos de abrangência distintos, positivaramdocumentos proclamadores de Direitos Fundamentais, havendodois espaços jurisdicionais para julgamento de condutas ofensivasaos Direitos Humanos; um específico em Estrasburgo, e outrotambém responsável pelo julgamento de casos assim, sendoeste a Corte de Luxemburgo.

Eureka! Está identificado um substrato constitucional, nãoreferente a um Estado nacional, mas partido de uma realidadecomunitária e supranacional. É correto afirmar, então, que já hámaterial constitucional que vem sendo produzido na Europadesde o final da Segunda Grande Guerra. Havendo materialconstitucional europeu, detectamos, conseqüentemente, o vigorde uma espécie de Direito Constitucional ConsuetudinárioEuropeu. Por isso, afirmamos que a Europa já tem uma Cartacostumeira, a exemplo da inglesa. Logo, perguntamos: O quepoderia impedir a formalização de uma ConstituiçãoEuropéia? A mesma pergunta serve para o Reino Unido, mas oque importa é a questão continental européia.

Até as críticas mais ácidas contra uma Constituição para aEuropa se submetem à verdade de que o Direito ComunitárioEuropeu se sobrepõe aos Direitos nacionais dos Estados-

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Membros. Eles também concordam que a comunitarização daEuropa é, de certo modo, um fragmento de Direito ConstitucionalEuropeu. Não aceitam, todavia, a positivação de uma Carta paraa Europa por estarem apegados à leitura constitucional damodernidade – ou seja, dos tempos passados. Mas nãocontestam a existência desse fragmento constitucional comunitário.Logo, se quiser, até poderá a doutrina constitucionalista pós-moderna – a nossa – achar brecha na fala dos constitucionalistasclássicos para nela identificar uma passagem rumo ao poderconstituinte europeu e à Constituição Européia. Essa brecha seriao entendimento unânime de que os povos da Europa têm sesubmetido, sem grandes conflitos existenciais, a um DireitoComunitário, além de não terem tais povos ateado fogo nosprédios europeus com sede em Bruxelas, Estrasburgo ouLuxemburgo. Com isso, questionamos: o que pode impedir oexercício de um poder constituinte europeu se o próprio cotidianoda vida dos povos daquele continente representa um dia-a-diada vida comunitária? Traduzamos a construção da UniãoEuropéia como tendo se dado, não numa DemocraciaSupranacional Formal – e isto é um defeito –, mas numaDemocracia implícita na prática das ruas e do cotidiano dosindivíduos e das famílias, numa espécie de Democracia Material.

Se existe um material constitucional europeu, é porqueexiste uma latência sociopolítica que, no mínimo, aceita tal materialconstitucional europeu que vem sido levado adiante pelosgovernos e aceito pelas populações: ou será que os europeussão todos descompensados mentalmente? De fato, a maioriados cidadãos dos países-membros da UE não é desprovida defaculdades mentais e de quocientes de inteligência mínimos. Foraas vezes em que se necessitou de referendos explícitos e formaisaos Tratados Internacionais constitutivos da realidade européia,tem havido uma constante, serena e implícita adesão dos cidadãosà comunitarização formal, isso porque lhes é comum um

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substrato materialmente constitucional. Seguindo raciocínioassim, chegaremos à seguinte conclusão: o poder constituinteeuropeu é formado pela soma dos tratados internacionaisratificados pelos governos e pela vontade comunitária, quepode ser considerada como característica dos povos dosEstados-membros da União Européia. A partir desse ponto,podemos até nos dar ao luxo de não mais usar a expressão “ospovos dos Estados-membros da União Européia”; podemosdizer, sem medo, o povo europeu. Por isso, qual é o problemade identificar um novo poder constituinte continental para o casodo povo europeu? Nenhum; essa é a resposta.

Com tais dizeres, estamos fazendo trabalho axiológico quecria a possibilidade de identificar um povo europeu desvinculadodos conceitos prévios de nacionalidade e de Estado nacional; umacidadania européia e um poder constituinte europeu, razão porque, se tais institutos podem ser identificados cientificamente pelotrabalho descritivo do investigador, então também é identificávela possibilidade de se positivar uma Constituição Européia.

Outra análise que pode ser feita a respeito de um poderconstituinte europeu é esta: um poder constituinte é uma latênciasociopolítica que insere no ordenamento jurídico uma Constituição.Assim, poder constituinte implica Constituição, e esta só podeser fruto daquele, produzindo-se conseqüentemente, na CartaMagna, a estrutura estatal que o poder constituinte desejou dar àcomunidade política. Por isso, o Estado moderno é produto daConstituição moderna, e esta é produto do exercício de uma latênciasociopolítica chamada poder constituinte. No caso europeu, nãoé perceptível um poder constituinte nesses moldes, que são osmodernos (ou clássicos). Mas ninguém pode negar: os TratadosInternacionais estruturaram uma comunidade políticasupranacional, e esta implicou a criação de um Direito Comunitárioque, por sua vez, alcançou moldagem tão sólida, uniforme e regularque, sem formalismos ulteriores, criou-se um substrato

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constitucional na estruturação cada vez mais apertada e coesa deuma UE como órgão supranacional e quase que totalmenteindependente de seus entes parciais. Isso se parece com aformação do Direito Constitucional britânico, que até hoje nãoinseriu naquele ordenamento uma Carta formalizada e solenementeaprovada no dia tal. Apesar de que, se quisesse, o Reino Unidopoderia formalizar uma Constituição solene, nos moldes de umtrâmite legislativo qualquer. Nessa esteira, pode haver umaaproximação da formação unionista européia com odesenvolvimento do Direito Consuetudinário britânico.

3. Se, por um lado, no Estado nacional, os conceitos deDemocracia e Direitos Humanos chegam a se confundir e a seamparar mutuamente na construção da realidade da polis, háintercorrências também detectáveis entre Democracia e DireitosHumanos no Direito Internacional Público e no DireitoComunitário na construção da cosmópolis.

Graças à identificação do Estado nacional, em seusquadrantes foi possível um exercício mais eficaz da Democracia.Por outro lado, graças à descentralização da ComunidadeInternacional, em sua fragmentação foi possível uma previsãomais eficaz de Direitos Humanos que fez renascer o próprioconceito de jus cogens e de efetividade – e inafastabilidade –do Direito Internacional Público. Nos dias atuais, são reclamadascom igual intensidade a concretização da Democracia e a dosDireitos Humanos no Estado e na Comunidade Internacional.

3 O ALARGAMENTO DA DEMOCRACIA PARA ASOCIEDADE CIVIL

De nada adiantaria restringir o alcance da Democracia edos Direitos Humanos aos órgãos e instituições oficiais e/ou aosDireitos do Estado e da Comunidade Internacional. Os maiores

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interessados têm que se inserir neste universo de forma efetiva: opovo da polis e da cosmópolis não pode ficar de fora. Asinserções populares – democráticas – não respeitam muros oufronteiras. Isso significa levar a Democracia – e,conseqüentemente, os Direitos Humanos – às suas últimasconseqüências nas relações interpessoais atinentes – por exemplo– ao seguinte:

• Supremo Tribunal Federal (STF): não pode persistir oatual sistema de nomeação de ministros. O Judiciário brasileiro– assim como outros – é marcado pela falta de participaçãopopular na escolha de seus membros. A sistemática constitucionalvigente criou uma verdadeira anomalia corporativa: a de um dospoderes da República – o Judiciário – só poder ser ocupadopor inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, capacidadeque só pode ser alcançada por bacharéis em Direito. Isso ocorrena jurisdição, enquanto nos outros poderes a sistemática permiteque os agentes políticos possam ser provenientes de qualquerclasse ou formação profissional. Não creio que no Brasil hajacultura político-eleitoral suficiente para a eleição de magistradosde primeiro grau. Todavia, para o STF há uma abertura:considerando que ele se ocupa precipuamente da guarda daConstituição e sendo a Carta um documento político-jurídico,então nada impediria eleições para o preenchimento de vagasde ministros do STF. Há quem dirá que já há alguma Democraciano atual sistema de escolha dos ministros, uma vez que deleparticipa o Senado da República, que sabatina o candidato eaprova a nomeação. Mas a prática tem demonstrado que aparticipação do Senado cumpre mera formalidade e nadaincrementa a Democracia.

• Parlamentarismo: estou convencido de que os governosparlamentares possuem uma abertura muito maior que propiciauma sensibilidade especial para a voz vinda das ruas. Isso pelo

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fato de nos parlamentarismos não haver mandato para o exercícioda função administrativa; as eleições são gerais e forma o governoa facção vencedora do pleito geral – que é parlamentar.

• Solidariedade: enquanto não se der conta de que a inclusãode todos – Democracia em seu sentido lato – deve ser o objetivomaior da Democracia e dos Direitos Humanos, a própriasociedade civil da polis e da cosmópolis continuará a promoveros mais infames abusos contra a dignidade humana e os direitosfundamentais. Isso inclui uma mudança radical de mentalidadepara que os cidadãos do país e do mundo aceitem a igualdadee a liberdade que vêm sendo proclamadas nas Constituições enos Tratados Internacionais. Isso inclui a luta pacífica pela pazmundial e contra o unilateralismo da(s) grande(s) potência(s).

4 CONCLUSÃO

A conclusão geral deste texto marca-se pela repetição dosversos que o inauguraram: As ruas são do povo; as cidadestêm ruas; os países têm cidades; tudo e todos estão nomundo; mas o mundo não tem paredes!

Democracia e Direitos HumanosNovas tendências constitucionais e internacionais

Resumo: Neste artigo, analisamos as relações possíveis entreDemocracia e Constituição, bem como entre Democracia eDireitos Humanos, no contexto do Estado Nacional e no daComunidade Internacional. Estudos de Direito Constitucional,de Direito Internacional e de Direito Comunitário foramnecessários. Os aspectos históricos e ontológicos da

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Democracia, da Constituição e dos Direitos Humanos foramconsiderados para que chegássemos à conclusão de que nãohá Constituição sem Democracia, nem há Direitos Humanossem Democracia.

Palavras-chave: Democracia – Direitos Humanos –Tendências – Constitucional – Comunidade Internacional

Democracy and Human RightsNew constitutional and international tendencies

Abstract: In this article we analysed the possible relationsbetween Democracy and Constitution, as well as betweenDemocracy and Human Rights, inserted in the context ofNational State, and International Community. Studies ofConstitucional Law, International Law and Communitary Lawwere necessary. The historical e ontological aspects ofDemocracy, Constitution and Human Rights were consideredin order to achieve the conclusion that there is no Constitutionwithout Democracy, neither Human Rights withoutDemocracy.

Keywords: Democracy – Human Rights – Tendencies –Constitutional – International Community

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