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DEMOCRACIA VIVA 40 SETEMBRO 2008

DEMOCRACIA VIVA 40 - ibase.br · ENTREVISTA 30 DEMOCRACIA VIVA Nº 40 isso era muito importante, era uma libertação dos constrangimentos através da voz. A forma-ção pela música

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Bete MendesQuem é Elizabete Mendes de Oliveira? Pergunta difícil de responder,mas pensar em coragem, resistência e contradição podem serboas pistas. Muito cedo, a aprendiz de ativista percebeu a

cultura como valioso instrumento para fortalecer sua açãopolítica e expressar sua emoção, evidente ao primeiro

olhar. E foi o que ela fez pela vida afora.

Queria ser promotora pública, filósofa, socióloga,bailarina e pianista. Poderia ter sido escritora.Mas foi como atriz que a jovem, com cerca de20 anos, filha de um militar, reuniu forças para lutarcontra a ditadura e, paralelamente, trilhar umacarreira de sucesso.

Deputada federal por dois mandatos, Bete participouda Assembléia Constituinte que criaria, há 20 anos,

nossa Constituição mais festejada. No fim da décadade 1980, denunciou para a Presidência da República

e para a mídia seu torturador da época derevolucionária. O episódio trouxe à tona o debate

que hoje esquenta o Congresso e a sociedadesobre uma possível revisão da Lei da Anistia.

“Seria interessante um debate sobre umapossível revisão constitucional, e não só para

essa matéria. Deveria haverum movimento buscando maisparticipação da sociedade.Acho interessante que haja umdesejo da sociedade de discutira Constituição”, defende.Conheça mais as várias faces deBete Mendes nesta entrevista queela concedeu ao Ibase, duranteduas tardes, deixando a todos(as)os(as) participantes surpresos(as)e emocionados(as), como ela.1

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Democracia Viva (DV) – Fale umpouco sobre sua infância e família.Bete Mendes – – – – – Nasci em Santos, uma ci-

dade da qual me orgulho muito, porque foiuma cidade de resistência pela sua organiza-ção sindical. Foi uma das últimas cidades a tereleições diretas, era considerada área de segu-rança nacional no período da nossa redemo-cratização. Nasci em 11 de maio de 1949, voucompletar 60 anos em 2009. Nasci ElizabeteMendes de Oliveira, era gêmea. Meus paisbatizaram minha irmã de Izabel, ela faleceucom 1 mês de idade porque tinha insuficiên-cia cardíaca. O interessante é que Elizabete eIzabel significam o mesmo.

DV – Seu pai trabalhava em quê?Você tem irmãos?Bete Mendes – Meu pai era suboficial

da Aeronáutica, ele servia na Base Aérea deSantos, e depois foi transferido para a BaseAérea do Galeão, no Rio, de onde foi trans-ferido para a Base Aérea de São Paulo, noCampo dos Afonsos. Moramos também umperíodo em São Vicente, cidade limítrofe deSantos. Tenho um irmão, Marcos Mendes, 13anos mais novo, e uma irmã do segundo casa-mento da minha mãe.

Minha irmã tem um nome muito especial:Ptsiqui, por minha responsabilidade. Quandominha mãe e seu marido quiseram batizá-la,pediram que eu escolhesse o nome. E eu – jáentrando um pouco no meu ativismo –, abso-lutamente anárquica e espontaneísta, estavamuito ligada à causa indígena e era amiga dosirmãos Villas Bôas. Fui à casa deles em SãoPaulo e pedi uma lista de nomes indígenas.Ptsiqui é masculino e significa fada da florestana língua da nação Gê. Hoje, ela é médica,cirurgiã plástica, e todos a chamam de Pit.

DV – Seu pai era um militarde esquerda ou de direita?Qual a origem de sua família?Bete Mendes – Ele não tomava partido,

vem de uma família tradicional de São Paulo,e minha mãe é filha de índia. Cheguei a co-nhecer minha avó, tenho verdadeira paixãopor ela, que era guarani, linda. Meu pai nuncafoi uma pessoa repressora, autoritária. Ele seespantava muito com minhas reações, eu ti-nha um galope muito pessoal. Desde muitopequena, o amor pela arte e pela política ca-minharam juntos.

DV – Quando isso começa?Bete Mendes – Com 5 anos de idade,

quando morávamos em São Vicente, meu paiera muito fã dos musicais e da música norte-

americana, e eu escutava e gostava muito.Aprendi a ler com 3 anos, com a ajuda de umasenhora que tomava conta de mim.

De São Vicente, fomos morar na Base Aéreade Santos, na Ilha do Guarujá. Eu moravaperto da escola pública Marcílio Dias, estavano primário. O estudo era excelente e fazía-mos também muitas festas. Eu participava detodas elas, criando e produzindo. Aí, já apare-cia essa veia artística.

DV – E a política?Bete Mendes – Acho que veio dessa vivên-

cia na escola pública. Estudei nos melhorescolégios do Brasil, todos públicos. Estudei emSantos em escola pública, vim para o Rio parao colégio Mendes de Moraes, voltei para Santospara a escola pública e depois ingressei numauniversidade pública. Eram professores mara-vilhosos, o ensino era maravilhoso. Lá, tínhamosuma vivência mais próxima com as pessoas,era muito grupal. Fui representante de turmavárias vezes.

Fiz prova para cursar o ginasial no ColégioCanadá, em Santos, e passei. Cursei, lá, o pri-meiro e o segundo ano do ginásio. Depois, meupai foi transferido para Ilha do Governador,Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, e fuipara o colégio Mendes de Moraes. Repeti oterceiro ano e isso, pra mim, foi mortal porqueeu era traquina, mas estudiosa e concentrada.

DV – Mudar várias vezes de cidadea incomodava?Bete Mendes – Bastante. Entre Santos e

São Vicente, não foi sentida essa perda porqueas duas cidades são tão próximas que não per-cebemos a diferença. De Santos para o Rio,fiquei apavorada. Mas quando cheguei ao Rio,me apaixonei pela cidade de maneira surpre-endente, tanto que, quando meu pai teve quevoltar para São Paulo, eu chorava desespera-damente, não queria voltar. Claro, estava com12, 13 anos, começando a namorar, essa mu-dança foi traumática. Mas para uma pessoacom vida militar, meu pai até que mudoupouco, serviu em poucas praças.

No colégio Mendes de Moraes, no Rio, tínha-mos aula de Canto Orfeônico, uma matériamuito importante. O ensino de música nasescolas é um assunto em pauta hoje – atémandei um e-mail para o presidente da Repú-blica porque o projeto de lei foi aprovado noCongresso e espero que seja sancionado.2

Quando fui parlamentar e secretária de Cultu-ra do Estado de São Paulo, batalhei bastantepara isso e não tive sucesso. Agora, tive essanotícia boa. Principalmente para os homens,

1 Assista também ao vídeocom os principais trechosda entrevista, disponívelno Portal do Ibase:<www.ibase.br>.

2 Nota da edição: algunsdias após esta entrevista,realizada nos dias 6 e 8de agosto, o presidenteLula sancionou o projetode ensino de música nasescolas públicas.

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isso era muito importante, era uma libertaçãodos constrangimentos através da voz. A forma-ção pela música abre campos inimagináveis.

Nessa escola, montamos um grupo de tea-tro espontaneamente, estimulados e apoiadospela professora Regina Carvalhal. Desse grupo,fizeram parte, além de mim, Bemvindo Sequeirae Ângela Leal. Encenávamos tragédias gregas,tínhamos atividades nos fins de semana, tínha-mos uma liberdade de ação incrível. Eu era umaestudante aplicada, esportista esforçada e par-ticipava do grêmio estudantil. Aí, já começavaa juntar ação política (de forma quase rudi-mentar) e cultura.

DV – Participou do movimentode cultura popular da época?Bete Mendes – Quando morava na Vila

Militar, no Rio, fiquei amiga de uma família devizinhos cujo sargento era comunista. Ele fale-ceu, e sou apaixonada até hoje por ele. Minhaprimeira informação político-cultural foi nessacasa. Com a filha dele, que era um pouco maisvelha que eu, e uma outra, comecei a freqüen-tar a UNE [União Nacional dos Estudantes].Estava com apenas 13 anos.

DV – De novo, estava unindo artee política, não?Bete Mendes – Sim, e a partir daí, isso

se fortaleceu. Na minha volúpia de leitura,comecei a ler sobre todos os trágicos gregos,passando pelos grandes teatrólogos mundiais,e enveredei pela leitura de livros políticos.Na minha casa, comprávamos poucos livros.Mas tinha uma família de outro sargento quecomprava muitos livros. Então, li a obra inteirado Dostoievisk.

Foi assim que comecei a escrever peças deteatro. Numa das idas à UNE, levei, numapastinha, peças manuscritas para OduvaldoViana Filho. Ele, tão generoso, respondeu paramim. Em uma das minhas peças, o povo iapara o Palácio de Governo, na época o gover-nador era Carlos Lacerda, e a polícia metra-lhava todo mundo. O Vianinha respondeu quea peça era quase impossível de encenar, masele observou que havia um personagem, umaprofessora, que tinha uma história bonita e quepoderia ser aproveitada.

Esse personagem foi inspirado em umaamiga do colégio. O Vianinha me deu umasugestão bacana, que não segui: ele achavaque eu escrevia bem e que deveria tentar tra-duzir alguns livros para a linguagem cênica.De fato, sempre me dei bem nas aulas de re-dação. Mas, na época, eu queria fazer Direitopara ser promotora pública, queria julgartodo mundo.

DV – Como seu pai, sendo militar,reagiu diante de suas incursõesna política?Bete Mendes – Meu pai ficava nervoso,

preocupado e, ao mesmo tempo, tínhamos umarelação afetiva tão forte que, apesar de ele dizerpara eu não me meter naquilo porque pode-ria ser perigoso, a gente debatia os assuntos.Ele dizia que eu estava errada e eu, sendomuito abusada, o questionava. A gente tinhatodo esse debate, mas ele não era do tipo agres-sivo nem punitivo, era só discussão mesmo.

DV – Você já falou algumas vezessobre o seu pai. Como era arelação com a sua mãe?Bete Mendes – Era uma relação de idola-

tria e desejo de chegar a ela. Minha mãe era umfuracão de beleza, meu pai não era bonito.Minha mãe, ainda hoje, é bonita. Ela era de pa-rar o trânsito na rua, era um violão, eu ficavaalucinada com a beleza dela e me achando feia.Mas me identificava mais com a forma de pen-sar da mulher do vizinho comunista. Ela nãoera comunista, só o marido, mas me identifi-cava com ela. Com a mãe, era mais a questãoafetiva, ela era muito afetuosa.

DV – Você estava com 15 anosquando foi dado o golpe militarde 1964. Como foi esse impactona sua vida?Bete Mendes – Nessa época, estudava no

Mendes de Moraes e a diretora fez a ordemunida, mandou os alunos entrarem em formae cantarem o Hino Nacional. Eu saí e não cantei.Ela me chamou, e eu disse: ‘Não vou cantar oCom o amigo Bemvindo Sequeira em 1979

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Hino Nacional porque aconteceu um golpede Estado!’. Ela me suspendeu por três diase chamou meu pai na escola. Eu tinha essaousadia da inconsciência jovem. Na época,estava como área de influência do PartidoComunista Brasileiro (PC), meu contato era oBemvindo Sequeira. Já estava lendo Marx,Engels, Lenin, estava com a cabeça a mil.

A mulher jovem, atraente, não existia. Eutinha um namorado, mas era muito severa,muito preocupada com a moral e tinha umarejeição à mulher-objeto. Isso é algo que meseguiu durante a vida, me fazendo ter postu-ras avessas a isso, mesmo artisticamente.

Quando aconteceu o golpe, meu pai che-gou em casa apavorado. Ele era especialistaem hélices, era um técnico e foi chamado paraplantão. Todo mundo estava assustado, e fuime instruir, buscar informações, na casa do meuvizinho, que foi preso imediatamente. Eu es-tava assustadíssima.

DV – Você participou do Comícioda Central em favor do Jango?Bete Mendes – Não, esse foi um momen-

to de sofrimento. Queria ir, minha vizinha ia,mas meu pai me proibiu. Ele ficou de plantãopor vários dias, e fui sentindo a mudança pelomedo das pessoas, apesar de não participardiretamente. Conversava muito com minha vizi-nha, e meu pai visitava o marido dela na baseonde ele estava preso. Ao mesmo tempo, tevea minha resistência no colégio, meu pai brigou

comigo, mas eu era a melhor aluna da classe,então isso facilitava um pouco. Aconteceu ogolpe, mas alguma coisa resistia. Em 1966, as-sisti à peça “Liberdade, liberdade” e também auma montagem maravilhosa do Agildo Ribeiro,“As aventuras de Ripió Lacraia”.

DV – Foi a primeira vez quefoi ao teatro?Bete Mendes – Não, tinha tomado conhe-

cimento do teatro em Santos, ainda pequena.A primeira peça teatral profissional a que assistifoi com meu pai. No palco, estava a extraordi-nária Dercy Gonçalves. Mas, no geral, fui poucoao teatro, ia mais ao cinema. Não ouvia novelade rádio, que era comum na época, nem assistiaàs novelas de televisão. Foi também em Santosque participei da minha primeira peça de teatroinfantil, de um autor comunista, também san-tista, Oscar Von Full, “A árvore que andava”.Eu fazia a coelhinha Naná.

DV – Depois do golpe, vocês semudaram novamente, não foi?Bete Mendes – Meu pai voltou para São

Paulo, e eu e minha mãe fomos para Santos,eles já estavam se separando. Fui para o Colé-gio Canadá. Nessa época, conheci Ney Lator-raca, que estudava comigo, e Nuno Leal Maia,que estudava em um colégio particular, oSantista. Entrei para o grupo de teatro doColégio Canadá, para o grêmio, para o grupode esportes do Nuno Leal Maia na praia, parti-cipava do Cineclube de Santos e de um grupo

O irmão Marcos e a irmã caçula, Ptsiqui Bete aos 4 anos

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do Clube de Xadrez de Santos, todos eram maisvelhos, a única estudante era eu. Enfim, estavanuma volúpia de fazer muitas coisas ao mes-mo tempo, sempre na correria. Ney Latorracadefinia bem essa situação: dizia que enquantoele queria soltar plumas e paetês no teatro, euestava lá reivindicando melhor horário para osalunos, questionava o colégio, que estava sefechando para a participação. Eu era uma ati-vista e ele era um ator.

DV – Quando começou a trabalhar?Bete Mendes – Foi em Santos. Eu queria

ganhar dinheiro, fiz um curso de datilografia,no qual não me saí muito bem. Primeiro, traba-lhei como secretária de um advogado, foi ótimoporque ele ficava com os clientes e eu lia o diatodo. Depois, fui para o Sindicato de Motoris-tas em Guindaste do Porto de Santos. E adorei.Eram brutamontes, homens das docas, car-regadores de peso, e me tratavam com umagentileza, com uma consideração, mesmoquando eu errava.

DV – Mas você ainda não estavatotalmente engajada?Bete Mendes – Não, eu era área de influên-

cia do PC no Rio e quando fui para Santos, nãohouve transferência. Mas acabei me aproxi-mando dos comunistas de Santos. Não tinhaainda uma convivência organizada com eles,mas já era amiga de todos. Eu fazia parte dogrupo dos fedelhos que estavam chegando.

DV – E quando começou seuativismo realmente?Bete Mendes – Quando fui para São

Paulo procurar emprego. Estava com 17 anos,no terceiro clássico, e consegui a única vaga

disponível no Colégio de Aplicação. Eu erauma argumentadora de marca maior, foi aíque comecei o ativismo estudantil. O diretordo colégio, que era maravilhoso, foi depostopor motivos políticos. Assumiu uma nova di-retora, e fizemos algumas manifestações con-trárias. Ela tentou nos punir, e participei domovimento de greve. Ficamos na porta do co-légio fazendo piquete para não deixar alunonenhum entrar.

Estava hospedada na casa de uns amigos eestudava à tarde. Um colega da peça infantilque fiz em Santos, Carlinhos Silveira, estavaencenando uma peça dirigida por AdemarGuerra, o espetáculo “Marat-Sade”, e eu assis-tia toda noite, nessa época já era rata de teatro.Armando Bogus interpretava Marat e RubensCorrea, Sade. Era sobre a revolução francesa,eu ficava babando. Mas era muito tímida, eraum problema.

DV – Pelo que relatou, vocêtambém era atirada. Como conciliarousadia com timidez?Bete Mendes – Não sei. Para você ter uma

idéia, durante a aula, só sentava na frente,arrumadíssima, os lápis bem-apontados, faziatudo com primor. Mas era amiga da turmabagunceira que ficava lá atrás, não suportavaas coleguinhas iguais a mim, era amiga datropa que matava aula, que falava sacanagem.Essa é uma confusão que nunca consegui en-tender. Se chegasse para uma conversa, pediapara entrar, ficava quieta num canto, até alguémfalar uma besteira, aí eu entrava.

DV – Por que você deixou de morarcom sua mãe?Bete Mendes – Minha mãe ficou em San-

tos, ela estava com um novo casamento, e eunão quis morar com eles. Meu pai foi morarsozinho e eu fui para São Paulo, mas me davabem com os dois. Eu resolvi ir à luta mesmo.

DV – E como começou a trabalharprofissionalmente em teatro?Bete Mendes – Pedi ao Carlinhos Silveira

para me apresentar ao diretor da próxima peçaque ele fosse fazer. O diretor era o AntunesFilho, fiz o teste e passei. Era “Cozinha”, peçade Arnold Wesker, com tradução do MillôrFernandes. Ele tinha como assistentes, StênioGarcia e Eva Wilma, e no elenco estavam Jucade Oliveira, Irene Ravache. Eu tinha o últimopapel da peça, sem fala, só desfilava com umabandeja. A menina que ficou com o penúltimopapel teve hepatite, fiquei com o papel dela.Estávamos ensaiando, a Eva Wilma pega mi-nha mão e diz: ‘Nasceu uma atriz’.

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DV – E a vontade de serpromotora, onde ficou?Bete Mendes – Até aquele momento, eu

não tinha idéia de que era uma atriz. Fui tra-balhar porque precisava e conseguia conciliaro horário do teatro com o do colégio. Nessaépoca, eu não queria mais ser promotora pú-blica, queria ser filósofa. Tentei conciliar ocursinho pré-vestibular com o Colégio deAplicação, mas não deu. Então, esperei termi-nar o clássico e fiz teste para conseguir bolsano cursinho Equipe. Ganhei bolsa integral.A peça foi um sucesso de público e eu brigueicom Antunes.

DV – Por que vocês brigaram?Bete Mendes – Porque eu ganhava menos

de um salário mínimo, e pelos ensaios, ganhavaa metade. A peça era um sucesso e eu queriaganhar o salário mínimo. Depois do espetá-culo, houve uma reunião de elenco. A peçatinha estreado há um mês e o Antunes per-guntou se alguém queria falar. Eu disse: ‘Nãofalo em nome de ninguém, falo por mim, que-ro aumento de salário’. Começamos a discutire ele me despediu, mas disse para eu ir embo-ra só no dia seguinte, depois do espetáculo.Nessa época, eu morava numa pensão, passeiaquela noite em claro: como iria fazer semaquele dinheiro? Meu primeiro registro em car-teira de trabalho foi fazendo essa peça.

No dia seguinte, Antunes, com Juca de Oli-veira, que na época era presidente do Sindicatodos Artistas, veio falar comigo. Na verdade, oJuca falou pelo Antunes: ‘Daqui a três meses,pagamos 10% de aumento, mais os 10% pen-dentes do mês atual; no 4º mês, damos os 10%do mês mais os pendentes do 2º mês; e, a partirdo 5º mês, está incorporado o aumento, estálegal pra você?’. Eu disse: ‘Não! Vocês estãoganhando milhões e estão se recusando a medar um aumento para que eu possa comerdignamente?’. Fiz todo um discurso, os doissaíram e ficou aquele mal-estar, as atrizes todasfalando que eu não deveria ter feito aquilo.Dali a meia hora, antes do espetáculo come-çar, entra o diretor de cena no camarim e diz:‘Bete, você venceu, seu aumento será dado’.E todo mundo ganhou aumento.

DV – Mesmo com o sucessoda peça, você continuouno cursinho?Bete Mendes – Eu estava conciliando as

duas atividades e a peça tinha que vir para oRio. Isso foi próximo do fim do ano, e se euviesse para o Rio, perderia o vestibular. Aí, jáhavia mudado de novo: não queria mais ser

filósofa, queria ser socióloga. Ia prestar vesti-bular só para a USP, porque o dinheiro não dariapara fazer inscrição para provas em outras uni-versidades. Por isso, pedi substituição na peça.

DV – Mas você não podia ficar semtrabalho. Como resolveu isso?Bete Mendes – Pedi a Irene Ravache para

me apresentar a alguém da TV, que tinha horá-rios mais flexíveis (hoje, já não é mais assim).Poderia continuar trabalhando como atriz,tendo um salário. Para minha sorte, no dia dadiscussão com o Antunes, Cassiano Gabus Men-des, diretor da TV Tupi, que estava na platéia,ouviu e a Irene falou com ele para me levarpara a TV. Assinei contrato de um ano, com odobro do salário que ganhava no teatro, quepara mim era muito, e, no ano seguinte, tiveum aumento de quase o dobro.

DV – E como conciliava o ativismocom a vida de atriz?Bete Mendes – Foi complicado. Enquanto

estava no cursinho, já participava de uma orga-nização revolucionária, Vanguarda ArmadaRevolucionária Palmares, a Var-Palmares. No cur-sinho, o Joel Rufino dos Santos era meu pro-fessor de História e usava o nome de guerra,Pedro Ivo, porque ele estava foragido (só tiveessas informações mais tarde). Depois de teremmatado o Edson Luis aqui no Rio, lá em SãoPaulo, presenciei a tomada da Maria Antônia3

pelos militares e paramilitares, no qual se in-cluíam alguns estudantes da Faculdade Ma-ckensie, que ficava quase em frente aos cursosde filosofia, ciências e letras da USP. Eu já fre-qüentava os barzinhos ao lado da universidadee tomava caipirinha e debatia até de madrugadacom os universitários e os pré-universitários.

A tropa que invadiu a Maria Antônia pegoutodos os livros e fez uma grande fogueira.Àquela altura, a situação já estava bem pe-sada. Eu estava na porta do Instituto de Filo-sofia da USP quando um estudante secunda-rista subiu pelo telhado da Mackensie. Algunsestudantes de lá, que participavam do Co-mando de Caça aos Comunistas (CCC), atira-ram nele. Eu vi o corpo cair e ser carregado.Fomos para o centro da cidade berrando ‘Ma-taram um estudante, podia ser seu filho!’, e atropa veio atrás da gente. Fui salva por umtriz, entrei em uma padaria e o dono baixou aporta. Foi assim que escapei.

DV – Qual foi o desfecho dessasituação?Bete Mendes ––––– Fizemos uma loucura.

Resolvemos seqüestrar um cara do CCC. Eu ti-nha que voltar para a USP e fiquei esperando

3 Nota da edição: em 1968,integrantes do CCC, do qualfaziam parte algunsestudantes da FaculdadeMackensie, atacaramestudantes secundaristase universitários quefizeram um pedágio naRua Maria Antônia paraarrecadar fundos para arealização do 30º Congressoda União Nacional dosEstudantes (UNE).

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escondida, porque os policiais estavam compastores alemães perseguindo todo mundo,colocando em caminhões.

Fui para a cidade universitária tarde danoite, fizemos outra assembléia e decidimosque não tínhamos como manter aquele cara,não tínhamos estrutura para isso. Nossa idéiaera trocá-lo por pessoas que estavam presas,mas acabou não dando certo e tivemos queliberá-lo. De lá, fomos acompanhar o corpodo estudante, que foi levado para o InstitutoMédico Legal. Fomos juntando pessoas paraum cerco em volta do IML, mas eles fizeram oenterro na madrugada, pressionando a famíliaque era muito simples, para liberar o corpo,evitando manifestações.

DV – Isso foi de 1968 para 1969?Bete Mendes – Isso, eu fiz o vestibular e

passei. Com meu salário de atriz, pude alugarum apartamento e, nessa época, já estava naorganização clandestina. Entrei para a USPem 1969. Fernando Henrique Cardoso, profes-sor maravilhoso, estava saindo para o exílio.Tive uma professora, Gioconda Mussolini, quevi morrer do coração por causa da repressão.Ela era uma professora de antropologia extraor-dinária. Foi velada na capela da USP. TambémEder e Emir Sader estavam se exilando. Enfim,percebíamos que o cerco estava se fechandono ambiente universitário.

DV – Como você entrou paraa Var-Palmares?Bete Mendes – Na USP, que era conside-

rada uma das grandes universidades da Amé-rica Latina, praticamente só entrava gente rica.O pessoal da classe média ou pobre estudavamuito para ter condição de entrar. Tinha muitagente rica na organização e eu fiquei amigadesse povo. Foi dessa amizade que surgiu aconversa para eu entrar na organização. E, aomesmo tempo, entrava na TV. O movimentoestudantil me chamava, mas eu recuei, nãofazia mais nada porque já estava em outro póloe não queria me mostrar participando.

DV – Era uma vida clandestinae pública ao mesmo tempo?Bete Mendes – Sim, o meu ativismo era

clandestino, mas eu ainda não era perseguida,era considerada uma pessoa legal. Eu acreditonos deuses, nos orixás e em todos os santos, sóassim para entender essa história. Estava fazen-do a novela “Beto Rockfeller” na Tupi, que es-tourou no país inteiro. O público adorava o per-sonagem Renata, que eu interpretava. Dividiauma quitinete com uma companheira da organi-zação e fazia novela. Eu não assistia, mas fazia.

DV – Foi fácil se adaptar à vidana TV?Bete Mendes – Eu não estava preparada

para a TV, mas precisava trabalhar. Foi um co-meço muito difícil, estava assustada. A sortefoi monstruosa, o Lima Duarte, que era o dire-tor, me chamou para conhecer o autor, BráulioPedroso, na casa dele. E o autor pegou todasas minhas inseguranças e transformou na linhada minha personagem. Eu era quieta, discre-ta, cheia de olhares, e a personagem explodiu.Estudava na USP, participava da organizaçãorevolucionária e estava trabalhando em televi-são. Foi uma confusão geral.

DV – Qual era o seu papel naVar-Palmares?Bete Mendes – Era mais apoio. Estava em

um núcleo pequeno; desse núcleo, passei àdireção estadual, me reunia com os dirigen-tes estaduais e federais. Certa vez, nos reuni-mos na casa de um amigo que era da orga-nização, daquelas famílias ricas, no Guarujá.E para que ninguém soubesse quem eu era,colocaram um guarda-sol na minha frente, eeu ficava sentada lá, só falando, mas nin-guém me via. Tínhamos essas infantilidades.Eu analisava os documentos, redigia e cuidavada estrutura da organização, inclusive finan-ceira. Era uma espécie de coordenadora e nãopodia ir para a ação direta.

Tive uma divergência com a companheirade apartamento e saí de lá. Tinha um namora-do que também era da organização e fomospara um apartamento em uma região melhorde São Paulo. Eu já estava ganhando mais.Ele é de família muito rica, mas não aceitei queo pai dele pagasse o apartamento. Eu mesmaaluguei, ele foi meu fiador.

Essa característica de ser auto-suficientesempre foi forte. Isso me ensinou muito a nãodepender e a não me acostumar com as be-nesses, que podem ser perigosas. Elas nos en-volvem, nos aconchegam e depois a situaçãomuda. A minha dureza me ajudou muito achegar até aqui. Recebi a notícia de que aque-la companheira havia sido presa e que todomundo estava caindo. Comecei a preparar mi-nha fuga. A novela “Beto Rockfeller” começouem 1968 e terminou em 1969. Nessa época,já participava de uma segunda novela doBráulio, “Super Plá”, uma novela linda.

DV – Foi difícil conciliar umavida assim tão pública com umavida clandestina?Bete Mendes – Isso é muito interessante.

Claro que naquela época não havia transmissão

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via satélite, era videotape, a TV não tinha aabrangência de hoje. Mas a novela explodiuno Brasil todo. Na época, já morava nesseapartamento melhor e e lá recebia os compa-nheiros da organização com boa comida e boamúsica. Ao mesmo tempo, saía na rua e meassustava. Entrava numa loja para comprar umsapato e começava a tocar a música-tema domeu personagem. Ficava paralisada, com medo,não só pela clandestinidade, mas me assus-tava com o que estava acontecendo comigoperante a sociedade.

Para proteger minha identidade – e emgeral, dentro das organizações, nós não sa-bíamos os verdadeiros nomes dos compa-nheiros –, saí de um núcleo de simpatizantepara ativista e depois para um núcleo da dire-ção regional, no qual só os dirigentes regio-nais e o dirigente nacional sabiam quem euera. Não podia ter contato com mais ninguém.Mas sempre fui discreta, ninguém sabia nadada minha vida.

DV – Você disse que tinha problemascom sua aparência na adolescência.Nessa época da TV, você seconsiderava uma mulher bonita?Bete Mendes – Não me achava, e quando

começaram a me achar, a barra pesou demais.Era o horror da mulher-objeto, instrumentosexual. Briguei muito contra isso, queria quegostassem de mim pelo meu talento e pela mi-nha inteligência. Não me sentia bem com essacoisa de ser objeto de desejo. Irene Ravachefoi minha madrinha de profissão, ela me defen-deu muito. Era uma coisa braba e eu me sen-tia insegura, me achava frágil para enfrentar.Ao mesmo tempo, repelia tudo isso porqueminha parada era revolução.

DV – Em que situação você foipresa pelos militares?Bete Mendes – Da primeira vez, aconte-

ceu uma coincidência. A Irene Ravache haviasido casada com o tenente Maurício, de quemtinha um filho. Ele a procurou e a convenceu ame apresentar a ele. Ela me consultou, e con-cordei com o encontro, achando que seria omelhor a fazer no momento. Ele se encontroucomigo e me convenceu que eu só iria dar umdepoimento, para ficar livre de suspeita e melevou a então Operação Bandeirantes, ondeme seqüestraram e onde fiquei incomunicávelpor quatro dias.

Nesses quatro dias, neguei tudo. Não houvetortura física, só psicológica. Nesse período,só bebi água, não conseguia comer, emagreciquatro quilos em quatro dias. Aí, me acarearam

com minha companheira de moradia, que es-tava presa. Disse que a gente tinha se sepa-rado porque eu tinha outros projetos na vida,que eu estava namorando. Inventamos aquelahistória e ela não abriu nada, nem sob tortura,e eu escapei. Aí, percebi que a situação estavaficando perigosa e decidi fugir.

DV – E conseguiu?Bete Mendes – Estava participando da

novela “Simplesmente Maria”. Fui na casa doWálter Avancini, que era o diretor da novela.Não sabia que ele era comunista, mas abri overbo. ‘Estou sendo perseguida, sou de umaorganização revolucionária, tenho que sair danovela, tenho que fugir e preciso de dinheiro’.O Avancini resolveu tudo para mim.

Marquei com ele e pedi ajuda a minha mãee a meu irmão. Nessa época, eles já estavamcontrolando tudo, conta de banco. Pedi di-nheiro ao Avancini porque queria sair do paíspor terra. Já estavam anunciando que as foto-grafias dos “terroristas” seriam divulgadas nosaeroportos e em todos os lugares. E como eujá tinha estado lá, eles sabiam quem eu era.

Marquei com meus companheiros, fui parauma casa, para onde éramos levados venda-dos para, em caso de tortura, não sabermos alocalização, e fiquei lá trancada. O pessoal tinhamarcado às cinco da tarde e eu entendi que

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era às quatro, esperei até quinze para as cincoe fugi. Fui levada também vendada para VilaMaria. Ali, eu iria sair por terra para o Chile, oAllende ainda estava no poder, e de lá iria paraCuba ou talvez para a França.

O Avancini, além de me dar dinheiro eapoio, me deu perspectivas de trabalhar foracomo atriz. Mas o cerco estava mesmo pesado.Eles detiveram a minha mãe por um dia. Meuirmão era seguido com freqüência durante odia, cercaram a minha madrinha. E eu estavanessa segunda casa esperando contato, há trêsdias não comia, só bebia água.

Nesse dia, pedi para trazerem alguma co-mida porque estava com fome. Combinamosàs seis horas e, dessa vez, esperei um poucomais, ao contrário da primeira vez quandoantecipei minha saída. Estava num lugar quetinha quartos para alugar, no fim do corredor,havia um banheiro. Eu só fazia o movimentodo quarto para o banheiro, nada mais. Fizeramo sinal combinado de companheiro, quandoabri a porta, eles [os militares] me levaram,soltando tiros. E eu rezava e pedia: ‘Por quenão desmaio, por que não desmaio?’. Queriaapagar, mas não conseguia.

DV – E o que aconteceu lá?Bete Mendes – Uma festa, no pior sentido

possível. Entrei na tortura braba. Eles, os tor-turadores, disseram, enquanto me torturavam,que haviam dado choques elétricos em minhamãe, que meu irmão tinha sido perseguido,enfim, soube que minha vida estava arreben-tada. O coronel Brilhante Ustra era major naépoca e dirigia o DOI-CODI [Destacamento de

Operações de Informações – Centro de Opera-ções de Defesa Interna]. Tinha também o capi-tão Beroni de Arruda Albernaz, um facínora; otenente Maurício,que era da equipe de busca,e o “bombeiro”.

Eles trabalhavam 24 horas e descansavam48 horas, e a gente ficava dia e noite sem tera menor noção da hora, porque eles pegavama gente na cela, levavam para a tortura, devol-viam para a cela. A gente perdia a noção detudo. O “bombeiro” vinha para enrolar, fingirque era compreensivo, que queria dialogar, eo Albernaz dava muita porrada, ferrava coma alma da gente.

DV – Você falou de militares ebombeiro. Quais forças faziamparte do DOI-CODI?Bete Mendes – O DOI-CODI juntava tudo:

Exército, Marinha, Aeronáutica, bombeiros,polícias. Foi uma criação dos serviços de inte-ligência da ditadura militar. O governadorAbreu Sodré, para colaborar com o governocentral, criou a Operação Bandeirantes, Oban,que passou em 1970 a DOI-CODI. Fui presa daprimeira vez na Oban, foram só alguns mesesde diferença. Na segunda vez, já era DOI-CODI.O governador criou a Oban e o Ministério daGuerra unificou as ações de busca e captura efizeram os “DOIS”, então cada Exército tinhao seu DOI-CODI.

DV – Você teve contato com odelegado Sérgio Paranhos Fleury,famoso torturador deSão Paulo?Bete Mendes – Não, o Fleury era do Dops

[Departamento de Ordem Política e Social], asduas organizações, na verdade, concorriampara ver quem matava mais, quem machucavamais. Na época, se dizia uma coisa horrorosa:que o DOI era mais científico; no Dops, elesdavam porrada agressivamente, com violência,paixão, e matavam por acaso; no DOI, a torturaera estudada. Quer dizer, mais ou menos, nãoé? Porque o Vladimir Herzog foi preso e mortono DOI, Manoel Fiel Filho também. Eles e inú-meros outros.

DV – As Forças Militares sempretrocaram informações. Nessesentido, era possível quehouvesse um estudo científicoa respeito, não?Bete Mendes – Os Dops, em geral, tinham

isso, mas o Fleury tinha uma ação absoluta-mente dele. Quando falei do capitão Albernaz,esse cara era muito pior que o Fleury, se é quese pode dizer pior. Fleury era o bandido que

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tinha prazer nas coisas que fazia, que gostavade retalhar. O Albernaz era igual. Ele era tãoarrogante que andava com roupa civil, sapatosbrancos e saía sozinho, sem guarda nenhuma,ia para onde queria.

Tinha uma ciência, tinha uma técnica, claro,mas quando falo do Fleury e do Albernaz, falodos brutamontes que estavam a larga, nãohavia ciência, eles eram bandidos. Não digo“cana” porque se falamos assim parece quetodo policial é ruim, e isso não é verdade. Fleuryera bandido mesmo. Ele fazia parte do tráfico, iapara a Colômbia buscar traficantes, ele morreurico. O Albernaz era a mesma coisa. E eu falodeles, mas podemos falar de muitos. Esse tipode comportamento era estimulado.

DV – Então, eles não eramobrigados a fazer aquilo,como dizem?Bete Mendes – Eles eram escolhidos, fa-

ziam uma opção, eram de uma tropa de elite.Era um pessoal que ganhava mais, ganhavapontos e ascendia na carreira militar fazendoparte dessa elite de repressão e tortura. Não dápara vir com esta conversa: ‘Não podia fazernada, só cumpria ordens!’. Muitos se recusa-ram a participar e perderam as patentes, foramexpulsos ou perseguidos. Eram grupos esco-lhidos que optavam por essa ação.

DV – Mas, antes de tudo,tratava-se de uma política deEstado, não acha?Bete Mendes – Sim, era uma política de

Estado nacional, não era apenas um grupode malucos que torturava pessoas. Mas achoimportante falar do Abreu Sodré que, quandoera governador do estado de São Paulo, criouessa ação de repressão espontaneamente. E tam-bém como muitos da sociedade civil se encan-taram com essa ação repressora e foram aliadosdo Estado e fomentadores, mesmo financei-ramente, desses atos de exceção.

Ainda hoje, existe um movimento do qualeles todos participam e acham que deveríamosser punidos. A questão é que há uma sociedadeque apóia, subvenciona e quer que eles conti-nuem. Aí é que está o perigo.

DV – Quanto tempo vocêficou presa?Bete Mendes – Um mês. Já era o final da

organização. O DOI-CODI ficava atrás de umadelegacia, que funcionava normalmente. Daprimeira vez que fui presa, o Walter Foster, oCassiano Gabus Mendes e o Wálter Avanciniforam me procurar. Eu conseguia vê-los daminha cela, mas disseram a eles que eu não

estava lá. A prática do seqüestro era tambéma negação de prisões, e foi o que eles respon-deram aos diretores. Da segunda vez, minhaprisão também não teve nenhuma divulgação,nem nacional, nem internacional, eu simples-mente desapareci, foi um desespero.

DV – Como a sua família reagiu?Bete Mendes – Minha irmã ainda não era

nascida, meu irmão e minha mãe perceberamlogo porque, até então, eles seguiam o meuirmão. Todos os dias, eles o buscavam pela ma-nhã em casa e voltavam à noite. De repente,eles pararam de fazer isso. E eles não foramatrás do meu pai porque, sendo militar, foimais fácil ainda para eles acompanharem avida pacata dele, que nem estava mais na ati-va, já estava na reserva.

DV – Como ficou sua vida depoisque foi solta?Bete Mendes – Fiquei em liberdade con-

dicional. Saí arrebentada, física e psicologi-camente. Estava com 20 anos. Não voltei paraa faculdade por causa da Lei de SegurançaNacional na qual estava inscrita. Eu era o “cão”para eles, bandida, terrorista, perigosa. Os ami-gos, a família e a classe artística, aos poucos,me ajudaram a levantar.

Nessa época, a organização já estava nofim, muita gente morreu. Era amiga da IaraIavelberg, esposa do Carlos Lamarca. Ela haviasido minha professora de francês no cursinhoEquipe. Um dia, encontrei com Iara, que es-tava foragida, na casa de uns amigos, nosdespedimos, ela ia para a Bahia. Ela acaboumorrendo. Adorava a Iara, conhecia a famíliainteira. Em outra ocasião, o filho de CarlosMarighella veio me procurar porque precisavade apoio para fugir. E, muito depois, a mulherdele, Clara. Ou seja, eu continuava com algu-ma ação, mas não era mais organizada. Tinhaconsciência do que acontecia em volta e haviao medo de encontrar com os caras da repres-são em qualquer lugar. E eu ainda estava emprocesso no tribunal militar.

DV – Você ficou em São Paulo?Bete Mendes – Não, fui para a casa da

minha mãe, em Santos. Precisava voltar a tra-balhar. Os policiais que foram me pegar emcasa roubaram tudo o que eu tinha, dinheiro,as coisas que guardei em um depósito, tudo.Por exemplo, aquelas peças que escrevi para oVianinha se tornaram peças-crime contra mim.Não sei se ainda existem ou se foram destruídas.Roubaram perfumes, roupas. Eles cercarama família, o guarda-móveis onde deixei minhascoisas, os lugares para onde eu poderia ir.

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Eles faziam esse cerco com todas as pessoasque lutavam contra a ditadura. Fiquei muitomal. Depois de um tempo, voltei para SãoPaulo, para a casa de uma amiga, para tentararrumar trabalho.

DV – E conseguiu?Bete Mendes – Quem me ajudou foi

Carlos Zara, na época casado com Eva Wilma,que também tinha um parente foragido, Ri-cardo Zaratini. Ele brigou com a direção da TVTupi, com representantes do Estado-Maior dasForças Armadas, para conseguir me recon-tratar. Só soube disso tempos depois. Ele foimeu grande defensor. Estava em processo dejulgamento e toda semana tinha que ir aoDops. Várias vezes, era cercada nos lugaresonde ia, encontrava um torturador, um carce-reiro, um cara da equipe de busca, a persegui-ção continuava igual. E, se antes de entrar naprisão, tinha conseguido um bom salário e umcontrato de trabalho anual, quando voltei, tiveque aceitar um salário pela metade e con-trato por obra.

DV – Como se deu o processojudicial?Bete Mendes – O primeiro julgamento foi

realizado no II Exército, em São Paulo. O pro-cesso era a posteriori. Eles pegavam a pessoa,acabavam com ela, a machucavam, e depoisabriam um processo para dizer que se tratavade uma pessoa criminosa. Então, tinha quemostrar, depois de tudo o que eles fizeramcomigo, que era uma pessoa legal, que nãoestava fazendo nada errado, que não era ter-rorista. Pedi a Eva Wilma para ser minha teste-munha de defesa.

Foi um dos momentos mais difíceis da mi-nha vida e de dívida com a Eva. Éramos todosmuito jovens, 90% estudantes da USP, e está-vamos em um julgamento conjunto. O pro-motor da Justiça Militar chamou a Eva parame defender, e começou a dizer: ‘Essa classeartística que só tem homossexuais, drogados,imorais, pessoas que denigrem a família brasi-leira, que aquela prostituta...’, ele se referiaassim a Eva que estava ali para me defender.Enfim, ele acabou com a alma da Eva antesmesmo de ela abrir a boca. Fiquei desesperada,comecei a chorar de vergonha e não deram aela o direito de dizer uma palavra para medefender. Foi atacada e pediram para ela sair.Mas o advogado de São Paulo, Paulo Rui deGodoy, conseguiu recorrer e teve outro julga-mento, dessa vez no Ministério da Guerra aquino Rio, só com generais. O advogado era oLino Machado, maravilhoso. Ele me defendeu,os generais me passaram um sabão, e ganheia absolvição. Isso foi em 1971.

DV – Nesse período todo, aimprensa não noticiou nada?Bete Mendes – Saiu uma notinha nos

grandes jornais, Folha de São Paulo, O Globo,O Estado de São Paulo, no pé de uma páginano meio do jornal, letra minúscula: ‘A atriz BeteMendes respondeu processo na justiça mili-tar...’. Só. Não saía nada. A maioria das pessoasnão sabia de nada disso. E nada era noticiadojustamente porque, assim, poderíamos sumire ninguém ficar sabendo.

Mas, oficialmente, eles utilizaram a mídiacontra nós. Ainda quando estava presa noDOI-CODI, pouco antes de ser solta, fui chama-da em uma sala, e lá, eles me convidaram parair à televisão, para participar de um progra-ma de entrevistas e dizer o que eles queriam.Dizer que estávamos sendo desencaminhadospelos professores da USP e que éramos pessoasde família decente. Eles me perguntaram se eutopava e disse: ‘Topo com algumas condições’.Queria que o programa fosse ao vivo, quandorelataria o que estava acontecendo com todosnós. Levei tanta porrada nesse dia. Fiquei commedo do que poderia acontecer com meuscompanheiros.

Na sala, éramos levados um por vez e nin-guém aceitou falar. Só um aceitou ir à televi-são e, posteriormente, se suicidou. Então, re-solveram chamar nossos pais para fazer o quenão fizemos, inclusive minha mãe. E os paisfalaram: ‘A gente não sabe o que está aconte-cendo, meu filho é tão bom, não sei porquefoi preso’. O que os militares queriam era

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fazer um programa para manchar a imagemda universidade brasileira, queriam desacre-ditar o trabalho dos professores e intelectuaisjunto à população. Foi uma vitória nossa, está-vamos desestruturados, arrebentados, machu-cados e ninguém teve o pensamento, a dúvidado porquê estava ali. Achei incrível, porqueéramos todos muito novos.

DV – Como foi a sua volta à vida,a partir de 1972, 1973?Bete Mendes – Acho que foi uma vida de

teimosia, de resistência e de vamos em frente.Depois que o Zara e a Eva me acolheram navolta à vida artística, pensei: ‘Agora, vou sersó atriz, vou trabalhar só com cultura’. Eviden-temente, tive apoio psicológico para curar asferidas, também passei por tratamento mé-dico e fui me readaptando à vida normal.Comecei a fazer aula de canto e de dança, quejá havia feito antes, fui fazer teatro também.

Em 1974, fui chamada pelo Antônio Pedropara fazer uma peça substituindo a MarietaSevero em São Paulo, “Desgraças de uma crian-ça”, de Martins Penna, direção dele, comEduardo Dusek, Camila Amado, Marcos Nanini.A peça foi um sucesso absoluto e resolvemosviajar para encená-la no interior de São Paulo.Era abril, Semana Santa. Estava dirigindo ocarro do Nanini, um fusca, o pneu dianteiroestourou, a gente capotou. Eduardo Dusek nãosofreu nada e Marcos Nanini teve torção no pes-coço. Tive traumatismo craniano, quase morri.

DV – Como você ficou depois disso?Bete Mendes – A audição do ouvido es-

querdo, que já havia sido prejudicada pelos“telefones” dados pelos torturadores no DOI-CODI, ficou bem pior. A classe artística foi mara-vilhosa, fizeram revezamento para cuidar de mim.Viver era o principal. Fui para um hospital emBauru que não tinha o equipamento necessáriopara detectar a gravidade do trauma. Os ami-gos conseguiram um neurologista muito bome o levaram para Bauru. Ele conseguiu, de formaética, convencer o pessoal do hospital que eupodia ser transportada para São Paulo. Lá, deter-minaram que eu teria de ser operada. Quandovieram raspar minha cabeça, fiquei furiosa, egritava: ‘Seus filhos da puta, querem me tor-turar. Vocês podem fazer o que quiserem, eunão direi nada!’. Tiveram que me sedar.

Quando saí do hospital, aconteceu algointeressante. A Tupi estava renovando meucontrato e a Globo me procurou e me ofere-ceu muito mais. Tentei renegociar com a Tupi,mas eles não aceitaram. Então, fui para aGlobo. Entrei em uma novela do Bráulio

Pedroso, “O Rebu”, que questionava os valoresda época, foi maravilhoso. A partir daí, minhaacomodação acabou. Não estava satisfeita sema minha vida de ativista. Comecei a procuraros movimentos. Anistia, movimento feminista,solidariedade ao povo uruguaio, argentino, chi-leno, em defesa da população negra, emanci-pação dos índios do Brasil etc. Onde tinha ummovimento, eu estava lá, me metendo emtudo. Voltei para a agitação nessas atividadesda sociedade civil.

DV – Poderia destacar algumasdessas atividades?Bete Mendes – Comecei a ter uma ativi-

dade sindicalista da melhor qualidade, meenvolvi na luta pela regulamentação da pro-fissão dos artistas, que só foi acontecer emmaio de 1978. Ainda nesse ano, fui para oABC participar de greve. Estava na coordena-ção do show dos artistas pela greve. A mesmacoisa em 1979, 1980. Participei dos três movi-mentos de greve. Em 1979/1980, já estava emSão Paulo. Saí da Globo, que não renovou meucontrato, e fui para a Bandeirantes. Estavafazendo o filme “Eles não usam black-tie”,envolvida com a estruturação do PT e no apoioà greve dos metalúrgicos. Estava tão íntimaque ficava em São Bernardo. Ia para a casa doLula e da Marisa.

No especial de fim de ano da TV Tupi, em 1973

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Saía do movimento de greve e ia gravar naBand. Chegava com camisetas, botons etc.,fazia reunião com os funcionários e contavacomo estava o movimento etc. Nesse período,comecei a ter problemas no emprego porqueestava muito envolvida na questão sindical.

DV – Como foi seu envolvimentona fundação do PT?Bete Mendes – Isso foi em 1981. Partici-

pava de um núcleo de artistas e jornalistas.Éramos José Dirceu, Vladimir Palmeira, Luís Tra-vassos, Lélia Abramo, entre outros. Tivemos umareunião para a estruturação do organograma dopartido. Queríamos que fosse um partido abertoque se mesclasse com os movimentos sociais,o que, de certa forma, aconteceu. Naquele dia,pedi apoio à Lélia Abramo para sugerir a cria-ção de uma secretaria de cultura ligada direta-mente à estrutura geral do partido.

Essa idéia surgiu de uma conversa com oHenfil. Dessa troca de idéias, saiu o que imagi-návamos que seria uma ação cultural em umpartido político. A idéia era ir para um bairro,uma escola etc. e criar um grupo para discutiro problema principal do lugar. Isso seria tra-balhado teatralmente e, assim, seria reveladoo talento para música, pintura.

Sempre fui palanqueira, o próprio presi-dente Lula fala isso de mim. Então, fui para atribuna da assembléia falar sobre isso. Fiz minhadefesa da secretaria de cultura e a idéia foi apro-vada por unanimidade. Foi um dos dias maisfelizes da minha vida. Começamos um núcleo

na casa da Lélia, que se reunia toda semana.Ficávamos discutindo que tipo de corpo daría-mos para essa secretaria de cultura.

DV – O que a levou a se candidatara deputada federal?Bete Mendes – Em 1982, estava em San-

tos, na casa da minha mãe, durante o carnaval.Aí, morreu o grande companheiro Travassosem um acidente de carro, e voltei a São Paulona quarta-feira de cinzas para o enterro dele.No cemitério Israelita, estavam todos os com-panheiros. O Lula chegou para mim e disse:‘Companheira, você quer ser deputada federal?’.Sempre gostei de participar dos movimentos,mas nunca havia pensado nisso. A mãe e aesposa de Travassos me abraçaram e disseram:‘Continua a luta por ele’. Fui louca e disse parao Lula: ‘Topei!’. Foi de emoção.

DV – E deu para conciliar essa novaatividade com a carreira de atriz?Bete Mendes – Nessa época, fazia traba-

lhos esporádicos em televisão. Fazia debatesnas faculdades e no fim dizia: ‘Sou do Partidodos Trabalhadores, sou uma atriz desempre-gada. Quem quiser colaborar participando dacampanha, deixa o telefone...’. Apareceramquase 30 jovens, dos quais 10 ou 12 ficaramcomigo. Era o “Exército de Brancaleone”. Eramjovens maravilhosos que vestiram a camisa, efazíamos tudo junto.

Nessa época, viajava pelo estado com com-panheiros proporcionais, como EduardoSuplicy, ou com os candidatos a cargos majo-ritários, e o Lula era candidato a governador.Uma vez, estava em Presidente Prudente, e oLula estava atrasado. Segurei o povo por umahora e vinte minutos. Por causa disso, o Lula mecriou um problema sério. Estávamos em umareunião da organização e ele disse: ‘Compa-nheiros, vocês têm que fazer como a Bete, queé palanqueira’. Conclusão: na capital de SãoPaulo, não tive condições de falar mais em ne-nhum comício. Cada região da cidade era redu-to de um candidato, e eu não tinha um reduto,mas tinha o beneplácito de ser famosa. Então,não me deixavam falar. Eu me virei, sou tei-mosa e resistente. Ia para as portas das fábri-cas etc. Fui nessa batida para valer e fui eleita.

DV – Nessa eleição, a votaçãogeral do PT foi baixa, mas vocêconseguiu uma votação enorme.Como foi isso?Bete Mendes – Fiquei muito orgulhosa.

O mais votado do partido foi Djalma de SousaBom, metalúrgico, companheiro de Lula, queteve mais de 170 mil votos. Foi o único queBete palanqueira

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passou do coeficiente eleitoral. O segundo foiEduardo Suplicy e a terceira fui eu. O Suplicyteve apenas 33 votos a mais do que eu.

DV – Em 1979, quando o PT surgiu,houve um grande debatena esquerda. Alguns achavamum absurdo o PT ser legalizadonesse momento. Achavam que aesquerda toda deveria ficar unidano PMDB. Como foi isso para você?Bete Mendes – Um dos meus sofrimentos

foi por aí. Em 1982, quando Franco Montorofoi eleito governador de São Paulo pelo PMDB,havia um convite para o PT aceitar três secre-tarias: a Secretaria de Educação, com o PauloFreire; a Secretaria de Assistência Social, comum deputado estadual por São Paulo; e a Secre-taria de Justiça, com o Hélio Bicudo. Eram trêssecretarias da área social da maior importância.Os companheiros que vieram com a notíciadiziam que o PMDB propunha portas abertas,tudo divulgado, ou seja, o PT entrava no governodo Montoro com tudo esclarecido. Não aceita-mos, e achei isso muito ruim.

DV – Como foi sua participaçãono processo da campanha pelas“Diretas Já”, que culminou, maistarde, com as eleições indiretaspara a Presidência da Repúblicae com sua saída do PT?Bete Mendes – Nessa época, foi uma lou-

cura. Em um curto período de tempo, viajei portrinta e poucas cidades, participando de vários

comícios: Rio, Minas, São Paulo, Porto Alegre,era só multidão, era maravilhoso. E a genteperdeu por uma votação ínfima, iníqua, foi ummovimento lindo no Brasil. Mas perdemos.4

O PT decidiu fazer uma consulta às basesporque não queria ir ao Colégio Eleitoral paraparticipar das eleições indiretas para presidenteda República. Achei o resultado errado e fizuma outra consulta. Meu resultado deu dife-rente. Coloquei meus companheiros, jovensestudantes, no Morumbi, em porta de restau-rante, na porta de show no Ibirapuera, emporta de fábrica, foi uma consulta massiva.Houve um debate muito acirrado durante aconvenção da Executiva Nacional do partidopor causa disso.

Decidiu-se que ninguém do partido iriaao Colégio Eleitoral votar para presidente daRepública, e quem participasse do processoeleitoral seria obrigado a sair do PT. Por isso,eu, José Eudes e Airtons Soares, que participa-mos, fomos convidados a sair do partido.Sofri muito. Foi desesperador porque o par-tido era a minha paixão, mas eu não abria mãodessa divergência. Na época, achei mais corretaa posição do PDT, que era contra o Colégio Elei-toral, mas deixou a decisão para cada parla-mentar. Fiquei magoada porque alguns com-panheiros verbalizaram dúvida quanto à minhacorreção ideológica.

DV – Essa mágoa já foi superada?Bete Mendes – Superadíssima. Continuo

eleitora, fazendo campanha, fazendo tudo

Em 1987, na Secretaria de Cultura do Estadode São Paulo

Em campanha, com Lula e o jornalista Tarso de Castro

4 Nota da edição: a emendaconstitucional Dante deOliveira, propondo instaurareleições diretas parapresidente da República, foivotada no dia 25 de abril de1984. Dos deputados, 298votaram a favor, 65 contra,três abstiveram-se e 113parlamentares nãocomparecem ao plenário.Para aprovar a emenda,seriam necessários mais 22votos, que somariam doisterços do total. Por isso,a emenda foi rejeitada.Diante desse quadro, setoresda oposição lançaram acandidatura de TancredoNeves para disputarindiretamente. No ColégioEleitoral, as eleiçõespresidenciais foram marcadaspara janeiro de 1985.

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pelo PT. A mágoa é porque era o meu parti-do, trabalhei para a sua fundação. Podia atéestar errada, mas minha posição tinha deser respeitada.

DV – E, depois dessa divergência,teve outra, mais tarde, envolvendoa Luiza Erundina,5 não é?Bete Mendes – Dei uma entrevista por

telefone quando ela foi suspensa, declarandoa minha solidariedade e que considerava equi-vocada a decisão do partido de suspendê-la.Para mim, ela era o maior quadro do partido.Ela ganhou de Maluf em São Paulo sem estru-tura nenhuma. Existem três eleitorados noBrasil em termos de quantidade: o país, o es-tado de São Paulo e a cidade, que é o terceiroeleitorado massivo quantitativo. E essa mulherconseguiu derrubar essa estrutura. No momen-to da entrevista, o jornalista lembrou que elatinha votado pela minha expulsão do partido.Eu falei: ‘Não tem problema, continuo solidá-ria e admiradora dela’. Acho que a suspensãoda Erundina foi um desastre.

DV – E você foi para outropartido?Bete Mendes – Fiquei nove meses sem par-

tido nenhum. Não pude ter filhos, mas, ironi-camente, fiquei nove meses sendo “namorada”pelo PSB, PDT, PMDB. Na época, o PCB e oPCdoB ainda não estavam legalizados.

DV – Você conheceu o ladomais duro da ditadura. Como foipara você vivenciar o Movimentopela Anistia?Bete Mendes – Tive um período muito

sério de perseguição depois da liberdade con-dicional e da absolvição pelo Superior Tribu-nal Militar. Eram ameaças por telefone muitopesadas, isso até há pouco tempo. Há poucosanos, cheguei com a minha mãe de Santos eàs onze e meia da noite, tocou o telefone, euatendi e ouvi ameaças terríveis. Mas nunca tiveo desespero, até porque se tivessem que matarmesmo, já teriam matado.

Quando começou o Movimento pela Anis-tia, eu participava do Movimento dos Artistaspela Anistia. Tive o orgulho e a honra de redigircom um grande amigo, Mário Lago, o docu-mento pela anistia. Foi um momento histórico.No movimento, a gente lutava pela anistiaampla, geral e irrestrita, mas só conseguimosa parcial. Era a única anistia possível na época.

DV – Por que você acha quea anistia foi parcial?Bete Mendes – Essa anistia não só não

identificou os dois lados da moeda, como

foi feito na Argentina e no Uruguai, comotambém não resolveu a situação de muitagente até hoje.

DV – Como você reencontrouo coronel Brilhante Ustra,que a torturou no DOI-CODI?Bete Mendes – Isso foi brabo. Saí do PT e

fui reeleita deputada federal pelo PMDB em1986. Logo depois que fui ao Colégio Eleitoral,em 1985, o presidente do Uruguai foi eleitodemocraticamente. Foi a primeira eleição demo-crática depois de anos. Como na Argentina,no Chile e no Brasil.

Sarney, presidente da República, foi convi-dado a ir à posse e convidou alguns parlamen-tares para acompanhá-lo, e eu topei. Quandochegamos ao Uruguai e descemos no aero-porto, havia toda uma cerimônia de recepção,todo um ritual. E eu dei de cara com meutorturador vestido com roupa de gala, eleme apertou a mão e sorriu. Ali, veio um deses-pero e parei para pensar: ‘E agora. O que euvou fazer?’.

Ele havia sido diretor do DOI-CODI do IIExército quando fui presa, era agora adido mi-litar do Brasil no Uruguai. Fiquei apavorada.Ficamos lá durante quatro dias, eu não agüen-tava dormir, tomava banho frio e estavam 10graus, estava em pânico. Fiquei pensando quetinha de denunciar.

Fomos a uma festa de confraternizaçãodo povo uruguaio e do povo brasileiro, ondeestavam Miguel Arraes, Bocaiúva Cunha, en-fim uma equipe muito linda de parlamentares.E chega ele novamente para conversar comi-go, me apresentar a sua esposa. Ela faz umsinal para ele se afastar e fica sozinha comigo.Diz que gostou do meu gesto de perdão, deeu ter apertado a mão do marido dela, que elasempre apoiou tudo o que ele fez e estava aolado dele. Pirei de tal maneira que pedi a doisou três parlamentares amigos meus pra metirarem dali, fomos pra outro restaurante etomei um porre de vinho.

DV – Você contou a alguém?Bete Mendes – Não até aquele momento,

pedi segredo absoluto. Fiquei preocupada como tipo de conseqüência que poderia haver comuma denúncia como aquela em uma viagem deum presidente visitando o país vizinho, ambossaindo de período cruel e entrando em proces-so democrático. Decidi que faria a denúnciaquando voltasse. Na despedida, voltando parao Brasil, o pessoal da comitiva brasileira já es-tava de orelha em pé, estranhando o compor-tamento do Ustra, sempre me cercando.

5 Nota da edição: em 1993,Erundina foi convidada peloentão presidente ItamarFranco (1992-94) para serministra-chefe da Secretariade Administração Federal.Ela aceitou, à revelia do PT,e foi suspensa por um ano.

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DV – Qual foi a sua atitude quandovoltou ao Brasil?Bete Mendes – Redigi um documento e

enviei ao Sarney denunciando o adido militar,dizendo que era a minha obrigação como de-putada, representante do povo, evitar quepessoas como aquela fossem premiadas.Denise Sarraceni havia me convidado para par-ticipar de uma série e vim para o Rio gravar.Esperei 24 horas por uma resposta do presi-dente para depois abrir para a imprensa.

Estava gravando em um lugar longínqüo deJacarepaguá quando veio um carro da Presi-dência da República para me levar a um lugarmais próximo da Globo, onde pudesse falarcom o presidente por telefone. Sarney disseque não sabia que eu tinha passado por isso –não sei se era verdade. Lembro que havia feitominha campanha à deputada federal pelo PTsem dizer: ‘Fui torturada, fui presa’. Achavaque não devia usar o que sofri na ditadura parame eleger. Ao fim dessa conversa por telefo-ne, Saney disse: ‘Não se preocupe, vou cuidardessa situação’.

DV – O que ele fez?Bete Mendes – A situação era a seguinte:

quando se é promovido a adido militar, volta-separa o país de origem com a perspectiva de irpara a reserva como general. Isso é um prêmio!Além disso, um adido militar recebe um exce-lente salário. Em nenhum momento da nossaconversa, Sarney pediu para eu não comentar ocaso, para ser sigilosa, e em nenhum momen-to ele se justificou pelo que não poderia fazer.Disse apenas que iria cuidar daquilo. Ele nãodeu a promoção para o Brilhante Ustra, quevoltou ao Brasil como coronel da reserva. Todoano, ele entrava no topo da lista do Almanaquedo Exército para o generalato, instituição queindica os prováveis nomeáveis para o prêmio,mas nunca foi nomeado.

DV – Qual foi o impacto dadenúncia no Congresso?Bete Mendes – Após falar com Sarney,

levei a denúncia para a imprensa. Eu faziaparte da Comissão de Relações Exteriores, comJosé Genoíno e outros companheiros. Sabíamosque havia um adido militar em situação seme-lhante na França, outro no Peru e outros emcargos da maior importância na representaçãobrasileira no exterior. Nossa idéia era fazer umpedido de informações à Presidência da Re-pública, para que nos abrissem os nomes detodos os funcionários, pois isso era secreto.Genoíno foi torturado pelo Ustra também,vários foram, pois ele serviu em São Paulo, no

Rio e no Nordeste. Mas a direita veio contracom todo furor. Sebastião Curió [coronel Sebas-tião Rodrigues de Moura], que também haviatorturado Genoíno, e seus companheiros co-meçaram a dizer que Genoíno era um terrorista,que matou gente, que eu era uma puta. Nósmurchamos, não tivemos força política dentrodo Congresso.

DV – E a repercurssão na imprensa?Bete Mendes – Dei entrevistas para todos

os jornais, foi uma explosão. No momento emque fiz a denúncia, o ministro do Exército, Leô-nidas Pires Gonçalves, foi para os jornais dizen-do que eu estava mentindo, que o BrilhanteUstra era um militar de altíssima qualidade e queestranhava minha postura como parlamentar.Tomei um avião, voltei para Brasília, a Denisesuspendeu uma gravação por minha causa,coisa rara de acontecer no meio artístico. Redigiuma resposta para o Leônidas e mandei para aimprensa. Disse que achava muito estranhoaquele tipo de declaração, primeiro por eleestar duvidando de mim, o que não era nadarespeitoso, que achava que ele estava equivo-cado, talvez por alguma relação de proximidadecom a pessoa denunciada. Disse achar estranhoque dentro do Exército brasileiro não fossembeneficiados e escolhidos para representar oBrasil no exterior militares que tivessem sua his-tória defendendo a população e não torturandoou matando. Disse ainda que, ali, estava colo-cando o ponto final no que acreditava ser meudever, que era denunciar.

Minha visão era que não houvesse umavulgarização com a relação de atriz e tortu-rador. Tanto que nas entrevistas, tinha de mesegurar para não me emocionar e ficar na

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44 DEMOCRACIA VIVA Nº 40

posição formal de parlamentar. As pessoasperguntavam se eu tinha sofrido muito, o queele tinha feito, mas não detalhei nada. Nãoqueria passar uma visão de vítima e algoz, masde uma representante do povo brasileiro con-tra um facínora de um governo que já haviasido destituído, e isso ficou muito claro.

DV – E qual foi a reaçãodo denunciado?Bete Mendes – Um ou dois anos depois,

Ustra escreveu um livro se defendendo. Distri-buiu a todos os parlamentares do CongressoNacional, menos a mim. Não li. E, agora, ele es-creveu um segundo livro. Atualmente, ele viveem Brasília. Nessa época, eu já estava fora doPMDB, não me entendia em nenhum partido.

DV – Você não tem vontadede se filiar mais?Bete Mendes – Não, mas a palavra “nun-

ca” é muito perigosa. Tenho a política no meusangue e falo de maneira bem vulgar: tem deter tesão para fazer. Se não for entrega total,não dá. Não tenho interesse de seguir carreira

política, de ter cargo público. Amo minhavida de atriz e sou apaixonada pela funçãode agir politicamente.

DV – E onde estaria o tesão hojena dimensão política do Brasil?Bete Mendes – O meu tesão é complicado.

Desde pequena, fico entre a arte e a partici-pação política de alguma maneira. Mas tenhoo maior orgulho da minha profissão. Tenhoorgulho de ser ligada às artes. Ao mesmotempo, não posso ver algo errado na rua quequero me meter e fazer algo. De 1999 a 2002,presidi a Funarj [Fundação de Artes do Rio deJaneiro], ligada à Secretaria de Cultura do es-tado do Rio de Janeiro. Como cidadã e comoprofissional, não posso ficar vendo a bandapassar. Tenho que estar envolvida, participando.Fui convidada, há alguns anos, a fazer partedo Movimento Humanos Direitos, composto poralguns atores e intelectuais que lutam contrao trabalho escravo, a prostituição infantil, emdefesa do ecossistema.

Hoje, o meu tesão está na arte. Uma expe-riência muito rica no Executivo foi como secre-tária de Cultura. Foi importante para conhecera máquina do Executivo. Fiquei muito frus-trada, queria permanecer por lá 15 anos, gos-taria de estar envolvida com o desenvolvimentode uma ação.

O Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro,não quer ter soluções e foge de quem temsoluções a partir da cultura. A Espanha deu umnó e, depois de várias crises econômicas, resol-veu por meio da cultura. Portugal faz a mesmacoisa. A Argentina, por exemplo, que está nesseburaco agora. Estive lá em janeiro do ano pas-sado e fiquei embasbacada com a forma comoeles conseguiram desenvolver o turismo cultu-ral, trazendo dinheiro para o país. O Rio de Ja-neiro fica nessa discussão sobre violência, maspoderia copiar idéias geniais. Para fazer umtrabalho de desenvolvimento no estado, temde ser a partir da cultura como forma de pro-dução de economia e de desenvolvimento.

DV – Há um debate dentro dogoverno federal, que já estáganhando a sociedade, sobre a Lei daAnistia. Qual sua opinião a respeito?Bete Mendes – Sinceramente, não tenho

uma posição clara. Se estivesse no Congres-so ou em alguma função pública ligada aoassunto, teria mais argumentos para fecharuma posição. Por sentimento, concordo total-mente com o Tarso Genro [ministro da Justiça].Ele está sendo profundamente habilidoso eperspicaz e, ao mesmo tempo, correto. Porque

A atriz em 1980

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BETE MENDES

SETEMBRO 2008 45

Participaramdesta entrevistaMetade do corpode funcionários(as)do Ibase (cerca de25 pessoas) fez questãode conhecer BeteMendes pessoalmentee acompanhar os doisdias de entrevista –por se tratar de umaextensa lista,excepcionalmente, nãocitaremos seus nomes.

Realização

Entrevistadores(as)

Ana BittencourtCarlos TautzDulce PandolfiFernanda CarvalhoFlávia MattarFrancisco MenezesJamile ChequerJoão Roberto Lopes Pinto

Decupagem

Ana BittencourtDiego SantosJamile Chequer

Edição

Ana Bittencourt

Fotos atuais

Marcus Vini

Fotos de arquivo

Reproduzidas do livroÁlbum de retratos,Bete Mendes porFátima Guedes, editadopela Trio de JaneiroProduções Artísticas.Não há crédito afotográfos, pois todasas fotos são doarquivo pessoalde Bete Mendes.

Produção

Geni Macedo

Vídeo

Flávia MattarDiego Santos

não foi crime político e sim crime comum oque foi cometido e ele, como ministro, temmais condições de saber as gravidades e asnuances da situação para decidir se mexe ounão na Lei da Anistia. Acho que é cabível,mas é uma idéia, não um posicionamento,até porque não tenho elementos para me po-sicionar. O que acho é que deveria haver umarevisão constitucional e a Lei da Anistia ca-beria bem no caso.

DV – Por quê?Bete Mendes – Foi uma matéria discutida

em uma Constituição militar, que conseguiuavançar por pressão da sociedade, mas aindano regime militar. E a Constituição de 1988 nãomexeu nisso. Seria interessante um debatesobre uma possível revisão constitucional, enão só para essa matéria. Deveria haver ummovimento buscando mais participação dasociedade. Hoje, temos muita comunicação eas pessoas têm mais informações. Acho inte-ressante que haja um desejo da sociedade dediscutir a Constituição.

DV – Quais outros temas não foramaprofundados suficientemente edeveriam ser revistos?Bete Mendes – Não havia condição, a

Constituinte de 1988 foi a melhor possível.Ela é excelente no corpo duro, nas leis perenesque propõe, mas alguns pontos ficaram circuns-tanciais. O movimento constituinte foi uma dascoisas mais lindas que já aconteceram nestepaís. Houve um movimento de vamos fazer,vamos participar, vamos discutir. Acho queela é excelente, mas ficou muito ordinária emalguns artigos. No caso da Anistia, veja bem,denunciei o Brilhante Ustra em 1985, a Cons-tituinte foi em 1988. É uma matéria muitodelicada, os militares que não foram anistia-dos viveram nessa época. O período foi muitocurto para resolvermos tantas coisas duras queaconteceram no país.

DV – Acredita que haja riscode perdermos algumas garantiase direitos conquistados em 1988?Bete Mendes – Não gosto de pensar

muito em risco, acredito que temos de serresponsáveis. A sociedade tem de saber gritar.Falamos de movimentos maravilhosos como as“Diretas Já”, a Constituinte... Mas ainda faltaparticipação. E não podemos ter o risco comotemerário. Tivemos uma evolução desde 1964,nós fomos para a guerra, uma luta contínua, echegamos aonde estamos hoje. Acho quemudamos para melhor, principalmente com umpresidente operário. Eu sou fã dele! E eleitora.

DV – Há um apelo da sociedadepara o governo abrir os arquivosda ditadura. É possível que secriem mecanismos para que osdocumentos desapareçam?Bete Mendes – A responsabilidade é da

sociedade. Em 1964, a sociedade quis o gol-pe militar. Muitas pessoas que quiseram nãosabiam porque queriam, mas achavam quefaltava lei e ordem, organização, criticavam ogoverno Jango. Depois, muitas recuaram, maso erro já estava feito. A sociedade tem de terconsciência. Por isso, cumprimento vocês, doIbase, e outros movimentos sociais organi-zados. É função desta sociedade trazer o maiornúmero de pessoas para o debate. Se não forassim, a gente não avança. Por isso, acreditono trabalho organizado.

DV – A Constituição de 1988foi uma grande emoção paraa sociedade brasileira. Como foiparticipar desse processo?Bete Mendes – Dr. Ulysses era um homem

sábio, professor, sabia dizer as coisas certasna hora certa. Aliás, se não fosse Ulysses pre-sidindo a Constituinte, teríamos muito mais di-ficuldades pra chegar ao fim. Hoje, estamoscom carência de grandes líderes no CongressoNacional. Foi uma emoção muito grande,embora tenha traído a Constituinte por umperíodo. Fui convidada pelo Orestes Quérciapara ser secretária de Cultura do estado de SãoPaulo. Aceitei, abandonei a Constituinte, fuipara São Paulo, fiquei um ano e oito meses nasecretaria e voltei para a Constituinte. Foi umaexperiência muito rica também.

DV – Você citou diversas vezes suaadmiração pelo Lula. Como vocêavalia os dois mandatos dele?Bete Mendes – Sou uma entusiasta do

Lula, adoro o fato de ele estar na Presidência,e também acho que ele comete erros. Mas éum operário, inteligentíssimo, e tem um pro-jeto de governo para o Brasil. Isso é evidentee nós estamos vendo resultados. Tenho váriasdivergências, porém elas são menores que aminha admiração pelo governo dele. No mais,só posso continuar aplaudindo o Lula. Achoque ele tem, mais uma vez, o que nós chama-mos de inimigos bem-informados, tem contraele o peso da mídia. Tenho uma alegria muitogrande porque esse presidente fala a línguado povo. É muito gostoso ouvir as pessoasfalando de suas conquistas, tem uma relaçãode identidade real, que não é aquela de prín-cipe no Olimpo.