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87 Educação, Batatais, v. 6, n. 2, p. 87-106, jul./dez. 2016 Democratizando narrativas: processos educativos na comunidade Coral Trovadores do Vale Pedro DUTRA 1 Resumo: O trabalho que apresentamos é oriundo de um projeto de pesquisa em andamento cujo tema são os processos educativos gerados a partir da prática so- cial de canto e dança do Coral Trovadores do Vale, situado na cidade de Araçuaí, norte de Minas Gerais, Vale do Jequitinhonha. Parte do entendimento de que nas mais variadas práticas musicais, escolares ou não escolares, encontramos subsídios para pensarmos a educação musical. Entende-se ainda como emergente a busca por outras epistemologias, por novas narrativas, formas de olhar e ou- vir que historicamente foram negadas. Acredita-se que a democratização de tais narrativas é fundamental para outras propostas vinculadas ao ensino de música. Palavras-chave: Práticas Sociais. Processos Educativos. Educação Musical. 1 Pedro Dutra. Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestre em Educação pela mesma instituição. Especialista em Arte-Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é coordenador e docente nos cursos de Licenciatura em Música e Pós-Graduação em Educação Musical do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

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Democratizando narrativas: processos educativos na comunidade Coral Trovadores do Vale

Pedro DUTRA1

Resumo: O trabalho que apresentamos é oriundo de um projeto de pesquisa em andamento cujo tema são os processos educativos gerados a partir da prática so-cial de canto e dança do Coral Trovadores do Vale, situado na cidade de Araçuaí, norte de Minas Gerais, Vale do Jequitinhonha. Parte do entendimento de que nas mais variadas práticas musicais, escolares ou não escolares, encontramos subsídios para pensarmos a educação musical. Entende-se ainda como emergente a busca por outras epistemologias, por novas narrativas, formas de olhar e ou-vir que historicamente foram negadas. Acredita-se que a democratização de tais narrativas é fundamental para outras propostas vinculadas ao ensino de música.

Palavras-chave: Práticas Sociais. Processos Educativos. Educação Musical.

1 Pedro Dutra. Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestre em Educação pela mesma instituição. Especialista em Arte-Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é coordenador e docente nos cursos de Licenciatura em Música e Pós-Graduação em Educação Musical do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

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Democratizing narratives: educational processes in Coral community Trovadores do Vale

Pedro DUTRA

Abstract: The paper presented is from a research project underway with the theme are the educational processes generated from the social practice of singing and dancing in Coral Trovadores do Vale, located in Araçuaí, north of Minas Gerais, Vale do Jequitinhonha. Part of the understanding that in various musicals, school or non-school practices, find grants to think music education. It is further understood as the search for other emerging epistemologies for new narratives, ways of seeing and hearing that were historically denied. It is believed that the democratization of such narratives is critical to other proposals related to music education.

Keywords: Social Practices. Educational Processes. Music Education.

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar um pro-jeto de pesquisa que foi desenvolvido ao longo do ano de 2015 com previsão de conclusão em 2018. Trata-se de uma pesquisa de doutoramento vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Edu-cação da Universidade Federal de São Carlos, que tem como tema os processos educativos gerados a partir da prática social do cantar e do dançar no coral Trovadores do Vale – Vale do Jequitinhonha – Minas Gerais – Brasil. Busca ampliar vozes e saberes a partir do Sul global2, ampliando formas distintas de se pensar a educação musical.

O coral Trovadores do Vale é um grupo de cultura popular fundado no ano de 1970 na cidade de Araçuaí – MG, com a inicia-tiva de um frei franciscano holandês, conhecido como frei Chico, e a participação de pessoas da própria comunidade, entre elas a artesã Lira Marques. Frei Chico e Lira buscaram recolher e resgatar, em toda a comunidade, cantigas, brincadeiras, cantos e danças que ain-da permaneciam na memória de muitas pessoas da região do médio Jequitinhonha. A proposta era de que o coral, além de cantar em celebrações da Igreja Matriz, cantasse também as músicas próprias da região do vale do Jequitinhonha. Dentre os cantos e cantigas pre-servadas pelo coral estão os cantos de trabalho como os cantos de canoeiros, cantos de tropeiros, boiadeiros, machadeiros, lavadeiras, além de penitências, excelências e folias. São preservadas também as danças de roda, vilão, contradança, tecedeira, nove, batuques, tendo as vozes acompanhadas pelo tamborzão, roncador, pirraça, pandeiro, caixa e violão. Passados 45 anos, o coral continua em atividade e dentre seus integrantes existem artesãos e artesãs, en-fermeiros, professores, secretárias, carpinteiros, motoristas, jardi-neiros, serviçais, estudantes, balconistas.

Entende-se que a convivência do pesquisador junto ao coral, nessa prática de mais de 45 anos de canto e dança, nos traz subsí-2 O Sul é concebido por Santos e Meneses (2010, p. 19) não totalmente de forma geográfica, mas “metaforicamente como um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo”. A ideia central é que o colonialismo, para além de todas as suas dominações, foi também uma dominação epistêmica de saber-poder, suprimindo muitos saberes e experiências do Sul global em relação à hegemonia do Norte global.

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dios para pensar a educação musical não só com as contribuições vinculadas a conteúdos como os cantos, cantigas e danças, mas também subsídios epistemológicos na análise de como se estabe-lece a relação dos sujeitos com a música, a convivência, as tro-cas, os aprendizados, a relação com a cultura, ou seja, os processos educativos vinculados a tal prática. Entende-se também que tais processos educativos são importantes para que pensemos novas e diferentes alternativas para o ensino de música no contexto escolar.

2. CONTEXTUALIZANDO O VALE

Situado no nordeste do estado de Minas Gerais, o vale do Jequitinhonha é conhecido por seus baixos indicadores sociais e por longo tempo divulgado como o “Vale da Miséria”. De forma contrastante, também é conhecido por sua ampla cultura, “orgulho sertanejo”.

Segundo Ramalho (2010), o Vale do Jequitinhonha, habitado originalmente por diferentes tribos indígenas, tem seu nome prove-niente da linguística indígena dos botocudos (denominação genéri-ca às diversas tribos da região). O prefixo “Jequi” era uma armadi-lha indígena de captura de peixes e o sufixo “onha” se referia aos peixes encontrados na região. Nesse sentido, a busca em verificar se no “jequi” tem “onha”, resultou no nome “Jequitinhonha”, nome do rio que denominou o próprio vale.

Miranda (2013, p. 34) aponta que a estruturação territorial do Vale do Jequitinhonha se deu por influência das atividades eco-nômicas, a princípio no Alto Jequitinhonha: “[...] a mineração e o garimpo, principalmente do ouro e do diamante, deram o impulso inicial à ocupação regional a partir de 1720, nas circunvizinhanças do arraial do Tijuco (atual Diamantina)”.

Todo escoamento de pedras preciosas, carne e algodão se dava pela navegação no rio Jequitinhonha, interligando centros ur-banos do Vale, como a cidade de Araçuaí, ao porto de Belmonte na Bahia; “De lá a riqueza do Jequitinhonha seguia para Portugal e para os demais mercados europeus” (MIRANDA, 2013, p. 39).

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Do declínio da atividade mineradora, resultaram-se dois mo-vimentos. Por um lado, houve um esvaziamento dos centros urba-nos onde a mineração se desenvolvia e, em consequência disso, a organização de novas atividades econômicas, principalmente ati-vidades agrícolas e a pecuária bovina, ao longo do Médio e Baixo Jequitinhonha (MIRANDA, 2013).

Dentre as atividades agrícolas, pode-se destacar o cultivo do algodão. Segundo Ramalho (2010), o algodão era exportado como matéria-prima para as nascentes indústrias têxteis inglesas, assim como também era utilizado para atender o mercado local no proces-so de confecção de tecidos e cobertas.

Porto (2007, p. 61, grifo do autor) aponta que o Vale do Je-quitinhonha é marcado, “[...] no início do séc. XX, pelo tema da valorização do ‘orgulho sertanejo’ – baseado na ideia de uma vida saudável, simples, vinculada a valores essenciais como dignidade, honra, trabalho e honestidade”.

Porém, ainda segundo a autora, é apenas a partir da década de 60 “[...] que os representantes políticos regionais veem na definição de uma identidade própria e carente a possibilidade de ter acesso a maiores recursos externos” (PORTO, 2007, p. 62).

Tal identidade que designou o Vale como o “vale da pobre-za”, “vale da miséria”, “vale dos órfãos”, “vale das viúvas de ma-ridos vivos”, foi e é amplamente disseminado pela mídia, sofrendo “[...] um processo de crescimento gradativo da negatividade de seu conteúdo” (PORTO, 2007, p. 63). Tal negatividade foi motivo para intervenções “desenvolvimentistas”, como na década de 70, como nos aponta Guerreiro (2009, p. 85), em que as empresas reflores-tadoras expropriaram os pequenos produtores de suas terras. Por meio de um programa do Governo Federal, as empresas tinham como objetivo abastecer as indústrias siderúrgicas e de papel e ce-lulosa, com a plantação de eucalipto.

Nesse contexto, na cidade de Araçuaí, encontra-se o coral Tro-vadores do Vale que há mais de 45 anos canta e dança sua realidade vivida. O coral nasce em 1970, justamente nesse movimento em que se procura disseminar a ideia de um vale “miserável” e “esque-cido”, como considera Porto (2007, p. 79), “um marco na história

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do Vale do Jequitinhonha”. Nesse sentido, vários questionamentos se levantam: Qual realidade vivida o coral canta e dança? Será a mesma realidade de “miséria” divulgada? Será uma realidade de dificuldades geradas a partir da tentativa de “desenvolvimento” e “modernização” imposta? Será que cantam uma realidade baseada no que Porto (2007) aponta como “uma vida saudável, simples, vinculada a valores essenciais como dignidade, honra, trabalho e honestidade”? O que entendem como miséria e pobreza ou moder-nidade e desenvolvimento? Miséria e pobreza de quê? Modernida-de e desenvolvimento de quem e para quem? Por meio do canto e dança há resistência? Resistência contra o que e contra quem? Os cantos de trabalho envolvem as atividades de canoeiros, boiadeiros, tropeiros, machadeiros e lavadeiras. Que trabalhos são esses? Em que relações eles se davam e se dão? Como tais cantos nos ajudam a entender tais relações a partir da perspectiva de quem os entoavam e entoam? Quais denúncias e anúncios esses cantos nos trazem?

Além disso, o que os faz permanecer em atividade por mais de 45 anos? Quais suas histórias? Quais os possíveis conflitos? Quais foram/são suas dificuldades? Quais alegrias? Qual a impor-tância e valor das danças e cantos que há tanto tempo executam? Qual o significado para cada um?

Perguntamos, ainda, quais saberes emergem de tais práticas? Quais experiências? O que aprendem/aprenderam nessas relações? Quais conhecimentos e epistemologias podem contribuir para os conhecimentos e epistemologias escolares? Como construir pers-pectivas alternativas de produção de conhecimento a partir de tais práticas? Serão possíveis outras epistemologias não eurocêntricas e não pautadas no pensamento abissal do Norte global como também apontado por Santos e Meneses (2010)?

Assim como questiona Meneses (2016, p. 12, tradução nossa), “[...] é possível descentrar esta história, através da democratização das narrativas, somando as pequenas vozes silenciadas?”. Assim, justifica-se a pesquisa com base no entendimento de que os pro-cessos educativos gerados a partir de uma prática social de mais de 45 anos, de canto e dança do coral Trovadores do Vale, podem contribuir para processos educativos escolares.

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3. QUESTÃO DE PESQUISA E OBJETIVOS DE PES-QUISA

A pesquisa apresentada vem sendo orientada pela seguinte questão:

Que processos educativos são gerados a partir da prática social do cantar e do dançar no coral Trovadores do Vale – Vale do Jequitinhonha/MG?

Para que se responda à questão de pesquisa apresentada, o projeto tem por objetivo descrever e analisar processos educativos desencadeados da prática social do cantar e do dançar no coral Tro-vadores do Vale.

Os objetivos específicos delineados são:• Identificar os processos educativos gerados a partir da prá-

tica social do cantar e do dançar no coral Trovadores do Vale.

• Apreender os cantos de trabalho, louvores religiosos e danças desenvolvidas pelo coral.

• Buscar as histórias e conhecimentos construídos a partir das letras, cantos e danças executadas pelo coral.

• Compreender aspectos da realidade local onde se encontra inserido o coral Trovadores do Vale.

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Com a finalidade de se pesquisar processos educativos decor-rentes da prática social do cantar e dançar estabelecida entre o coral Trovadores do Vale, pretende-se um estudo de natureza qualitativa, baseado na pesquisa participante.

Minayo (2004) aponta que o método qualitativo se aplica ao estudo da história, das relações, crenças, percepções, opiniões, in-terpretações que as pessoas fazem a respeito de como vivem, sen-tem, pensam.

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Segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 16), as investigações de natureza qualitativa “[...] privilegiam, essencialmente, a compre-ensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação”.

Teremos como base a pesquisa participante e, segundo Bran-dão e Streck (2006, p. 13, grifos do autor), a pesquisa participante:

[...] é também uma pedagogia que entrelaça atores-autores e que é um aprendizado no qual, mesmo quando haja dife-renças essenciais de saberes, todos aprendem uns com os outros e uns através dos outros. Uma pesquisa de criação solidária de saberes sociais em que a palavra-chave não é o próprio conhecimento, mas é, antes dele, o diálogo.

Para Streck (2006, p. 266-267), “[...] uma constatação que faz parte da história da pesquisa participante é que as pessoas do povo se movimentam através de um vasto repertório de formas de interação”.

No presente projeto, como apontado no título, entendemos o coral Trovadores do Vale como uma comunidade, comunidade Trovadores do Vale, tendo em vista que:

Todo grupo humano que se reúne em algum tempo e lugar com o propósito de estabelecer uma interação fundada na troca de símbolos, de sentimentos, de sentidos e de signi-ficados dirigidos a uma busca solidária de algum tipo de saber, através da qual todos se ensinam e aprendem mu-tuamente, constitui uma comunidade aprendente (BRAN-DÃO, 2003, p. 113).

Brandão (2003, p. 88) ainda diz que “[...] dentro e fora da escola estamos sempre envolvidos com diferentes tipos de comu-nidades aprendentes, onde todos ‘são fontes originais de saber’”.

Entendendo o coral como uma comunidade, pretende-se, para a realização da pesquisa, a inserção do pesquisador nessa comuni-dade. Para isso, é importante compreender que:

Inserir-se em uma prática social e construir um proces-so de pesquisa junto com os grupos populares significa que esta inserção não é um momento técnico, um simples procedimento. Inserir-se é dialogar, vivenciar, conviver, compartilhar momentos felizes, tristes, angustiantes, es-

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perançosos. A inserção do (a) pesquisador(a) não pode ser arbitrária, mas concedida pelo grupo, que aceita participar junto do processo de pesquisa (OLIVEIRA et al., 2014, p. 129).

Como sujeitos participantes da pesquisa, teremos o próprio coral, assim como possíveis outros moradores da localidade. Esco-lhemos um número de 30 sujeitos participantes e essa escolha teve como critério envolver todos os integrantes do coral (entre 20 e 25 participantes), ex-integrantes do coral e algumas pessoas da comu-nidade que acompanham o coral nessa história de 45 anos de ativi-dade. Os critérios para a escolha das pessoas da comunidade serão estabelecidos na fase exploratória do campo. Entendemos que esse número pode variar na medida em que se realiza a pesquisa.

Como instrumentos para a coleta de dados, pretende-se usar principalmente os registros em diário de campo. Minayo (2004, p. 100) aponta que o diário de campo possibilita o registro de “con-versas informais, comportamentos, cerimônias, festas, instituições, gestos, expressões que digam respeito ao tema da pesquisa”. Pre-tende-se, ainda, a utilização de entrevistas semiestruturadas, que, segundo Minayo (2004), combinam perguntas fechadas ou abertas, dando a possibilidade do entrevistado discorrer sobre o tema pro-posto, não se fechando a respostas objetivas de um questionário. Além disso, pretende-se também a utilização da análise documen-tal, tendo em vista as “crônicas do coral” escritas pelo próprio co-ral3.

Tendo isso em vista, nos utilizaremos da triangulação como mecanismo metodológico, para “[...] contrastar e verificar os re-sultados a partir de diferentes fontes e perspectivas (GALLEGO; LORENZO; NAVARRETE, 2009, p. 89).

A triangulação será utilizada nas seguintes perspectivas:Triangulação de fontes de informação e informantes: to-mar como fonte diferentes atores, diferentes documentos, ou dados quantitativos. Os dados que se obtém dessa for-

3 As chamadas “crônicas do coral” foram uma iniciativa de Frei Chico para que o coral registrasse sua própria história. São vários cadernos a que tive acesso, escritos pela secretária do coral em acordo com todo o grupo, com o objetivo de registrar histórias, ensaios, viagens, alegrias, tristezas, despedidas, além de registros financeiros e de apresentações do coral. Trata-se de textos escritos à mão a partir de 1974 até 1991.

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ma se contrastam e ajuda a corroborar os dados e também, a encontrar diferenças que podem assinalar dimensões al-ternativas não contempladas previamente, e que se devem levar em conta (GALLEGO; LORENZO; NAVARRETE, 2009, p. 90).

Triangulação de técnicas: a utilização da observação, gru-pos focais, entrevistas, análise documental, etc., ajudam a obter dados diferentes e assim uma aproximação mais completa da realidade que estudamos. Os dados assim ob-tidos se integram na análise e interpretação dos resultados (GALLEGO; LORENZO; NAVARRETE, 2009, p. 90).

Triangulação desde diferentes perspectivas e momentos: isto nos permite observar como se apresenta o fenômeno que estudamos desde distintas perspectivas, individual, grupal ou institucional, ou momentos diversos no tempo (GALLEGO; LORENZO; NAVARRETE, 2009, p. 90).

A triangulação de fontes de informação e informantes con-templará a verificação dos resultados a partir dos integrantes do coral, dos ex-integrantes e de algumas pessoas da comunidade de Araçuaí, não integrantes, mas que acompanham o coral em suas atividades. Já a triangulação de técnicas contemplará os diários de campo, as entrevistas e a análise documental. Por fim, a triangula-ção desde diferentes perspectivas e momentos visará a diferentes perspectivas da prática social apresentada, seja durante os ensaios, seja durante as festas tradicionais, apresentações, atividades reli-giosas. Em ocasiões oportunas, serão utilizados também gravador de áudio, vídeo e fotografia para que se tenham transcrições fiéis das falas dos participantes e registros das cantigas e danças presen-ciadas.

5. ABORDAGEM TEÓRICA

Entendemos as relações estabelecidas entre os integrantes do coral Trovadores do Vale como uma prática social, tendo em vista que:

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Práticas sociais decorrem de e geram interações entre os indivíduos e entre eles e os ambientes natural, social e cultural em que vivem. Desenvolvem-se no interior de grupos, de instituições, com o propósito de produzir bens, transmitir valores, significados, ensinar a viver e controlar o viver; enfim, manter a sobrevivência material e simbóli-ca das sociedades humanas (OLIVEIRA et al., 2014, p. 33).

O coral Trovadores do Vale se configura como uma prática social, pois sua prática de canto e dança reflete o comprometimento com os bens simbólicos e a transmissão de valores existentes na região do Vale do Jequitinhonha. Suas músicas estão ligadas à reali-dade vivida por eles, ou seja, os ambientes natural, social e cultural.

As práticas sociais:[...] se constroem em relações que se estabelecem entre pessoas, pessoas e comunidades, nas quais se inserem, pessoas e grupos, grupos entre si, grupos e sociedade mais ampla, num contexto histórico de nação e, notadamente em nossos dias, de relações entre nações, com objetivos como: repassar conhecimentos, valores, tradições, posi-ções e posturas diante da vida; suprir necessidades de so-brevivência, de manutenção material e simbólica de pesso-as, grupo ou comunidade (OLIVEIRA, et al., 2014, p. 33).

De todas as práticas sociais decorrem processos educativos capazes de conduzir nossos olhares para os processos educativos escolares. “Como pode a escola participar dos processos educativos que fazem parte da vida das pessoas, estejam elas onde estiverem, no intercâmbio umas com as outras?” (OLIVEIRA et al., 2014, p. 38). Para além desse questionamento Santos e Meneses levantam outros:

Por que razão, nos dois últimos séculos, dominou uma epistemologia que eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento? Quais foram as consequências de uma tal descontextualização? Haverá epistemologias alternativas? (SANTOS; MENESES, 2010, p. 16).

Santos (2010, p. 31) aponta que “[...] o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal”. Tal pensamento separa dois universos distintos, um universo “deste lado da linha”, hegemô-

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nico, colonialista, patriarcal, e outro do “outro lado da linha”, ine-xistente, invisível, ausente, excluído. Para o autor, a racionalidade deste lado da linha é uma racionalidade indolente, que desperdiça muita experiência disponível ou possível no mundo.

Santos (2010, p. 536) ainda questiona: Com que saberes reve-lar as experiências produzidas como inexistentes ou impossíveis? Como identificar, avaliar e hierarquizar saberes tão diversos? Como articular saberes que sabemos com saberes que ignoramos?

O autor propõe uma ecologia de saberes, em que o saber só existe como pluralidade de saberes. As possibilidades e limites de cada saber são conhecidas na medida em que cada saber se propu-ser uma comparação com outros saberes.

Os saberes que dialogam, que mutuamente se interpelam, questionam e avaliam, não o fazem em separado como uma atividade intelectual isolada de outras atividades so-ciais. Fazem-no no contexto de práticas sociais constituí-das ou a constituir, cuja dimensão epistemológica é uma entre outras e é dessas práticas que emergem as questões postas aos vários saberes em presença (SANTOS, 2010, p. 547).

Entendendo o coral como uma prática social em que ocorrem processos educativos, compreendemos também que, nessa relação de convivência por meio de cantos, danças e diálogos, seus inte-grantes se educam em sua humanidade, se humanizam, assumindo sua cidadania.

Segundo Oliveira et al. (2014, p. 35, grifos nossos), “Nes-tas relações de convívio amistoso, tenso, acolhedor, excludente, as pessoas se educam na sua humanidade para a cidadania negada, conquistada, assumida”.

Ao falarmos em humanização, é importante que discorramos em primeiro lugar sobre os conceitos de ser humano e educação.

Sobre o ser humano, Freire (2000, p. 33, grifos do autor) aponta:

Me parece fundamental sublinhar, no horizonte da com-preensão que tenho do ser humano como presença no mundo, que mulheres e homens somos muito mais do que

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seres adaptáveis às condições objetivas em que nos acha-mos. Na medida mesma em que nos tornamos capazes de reconhecer a capacidade de nos adaptar à concretude para melhor operar, nos foi possível assumir-nos como seres transformadores. E é na condição de seres transformado-res que percebemos que a nossa possibilidade de nos adap-tar não esgota em nós o nosso estar no mundo. É porque podemos transformar o mundo, que estamos com ele e com os outros. Não teríamos ultrapassado o nível de pura adaptação ao mundo se não tivéssemos alcançado a possi-bilidade de, pensando a própria adaptação, nos servir dela para programar a transformação.

Não sendo simplesmente adaptável, mas por essa capacidade de transformação, mudança e libertação de estruturas que condicio-nam, o ser humano não é, no sentido de ser determinado e estanque, mas ao contrário, está sendo, busca ser mais. E essa busca, como ser inconcluso, possibilita, juntamente com os outros, a transforma-ção do mundo em que se encontra, não simplesmente se adaptando a ele: “O mundo não é. O mundo está sendo... Não sou apenas ob-jeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da Histó-ria, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar” (FREIRE, 2000, p. 79, grifos do autor).

Assim como Freire, temos também em Fiori o ser humano enquanto sujeito transformador, produtor de cultura:

Uma das características essenciais do homem é a expres-são, porém, enquanto consciência transcendental, ao ex-pressar, objetivando intencionalmente o mundo, transfor-ma-o. Expressão e transformação são, fundamentalmente, uma atividade de produção. O homem cria e recria conti-nuamente formas de existência que constituem seu mun-do – um mundo englobante de significação, onde, por sua vez, se desenvolve. Portanto, ele se encontra a si mesmo, se autopromove, expressa-se, modificando a realidade, pelo trabalho. E não o faz sozinho, mas em colaboração. Sua expressão, é também comunicação ou intersubjetividade (FIORI, 1991, p. 44-45).

Somada a essas concepções, Dussel (1997, p. 192) aponta que o ser humano tem como característica própria a produção de um mundo cultural. Segundo o autor, o ser humano transforma a matéria natural, produzindo cultura.

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Sabe-se que um fóssil é humano porque junto aos seus res-tos ósseos encontra-se um “meio” natural modificado por uma inteligência prático-produtiva criadora do não dado. O natural e o cultural diferenciam-se, essencialmente, en-quanto que o cultural tem o homem com origem e funda-mento (DUSSEL, 1997, p. 192).

A partir desse exposto, vemos que os três autores compreen-dem o ser humano como ser transformador, que se expressa, que modifica a matéria natural, produz cultura, transforma o mundo.

Em paralelo à definição de ser humano, e na busca por discor-rer sobre humanização, também é importante que falemos sobre o termo Educação. Fiori discorre da seguinte forma:

Educação é, pois, processo histórico no qual o homem se re-produz, produzindo seu mundo. Todos que colaboram na produção deste deveriam reencontrar-se, no processo, como sujeitos de sua própria destinação histórica, autores de sua existência. A condição de sujeito só pode ser pre-enchida pelos que trabalham o mundo. Estes são verdadei-ramente o povo – a comunhão pessoal só tem um nome: colaboração no mundo comum (FIORI, 1991, p. 80).

Para Fiori (1991, p. 45) não existe antinomia entre produção e educação, esse processo de transformação, criação, expressão, pro-dução de cultura, é educação: “Enquanto o homem se desenvolve, se educa; isto é, ele produz e, mediante a produção, na transforma-ção do mundo, educa-se”.

Para Freire (2000, p. 32), educação é sinônimo de mudança, revelando a intervenção do homem no mundo.

A educação tem sentido porque o mundo não é necessaria-mente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão pro-jetos quanto podem ter projetos para o mundo. A educação tem sentido porque homens e mulheres aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres capazes de sa-ber, de saber que sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação (FREIRE, 2000, p. 40).

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Nesse sentido, entendemos a humanização como essa voca-ção de homens e mulheres, como seres inconclusos, nessa cons-tante busca para ser mais. Homens e mulheres que, ao estarem no mundo, o transformam, produzem cultura, criam, expressam-se, libertam-se de condicionamentos. Não são humanizados, mas se humanizam em convivência e colaboração, em autonomia. Buscam reconstruir a própria história, “[...] tomando distância de si mesmo e da vida que porta” (FREIRE, 1992, p. 99), dialogam, dizem sua própria palavra, libertam-se de processos de desumanização que tanto marcaram a América Latina. Desumanização, segundo Dus-sel (2001), realizada por um processo irracional em que a chamada “civilização moderna”, “desenvolvida”, “superior” procurou “de-senvolver” e “civilizar” os mais “primitivos”, “bárbaros”, “rudes”. O “salvador” “civiliza” e “moderniza” os “bárbaros”, mesmo que para isso tenha que sacrificá-los, silenciá-los, impedir que produ-zam, que criem, que transformem, ou seja, os coisificam, os desu-manizam.

No contexto da pesquisa, a identidade criada de um local “miserável” ao Vale do Jequitinhonha tem por referência essa “mo-dernidade” “desenvolvimentista” apontada por Dussel.

Santos e Meneses (2010, p. 16-17, grifo nosso) apontam que “[...] sob o pretexto da ‘missão colonizadora’, o projeto da coloni-zação procurou homogeneizar o mundo, obliterando as diferenças culturais”. Nesse sentido, segundo esses autores, tais experiências e diversidades foram submetidas à norma epistemológica dominante, definidas como saberes locais, inferiores, de seres inferiores.

Porém, Dussel (s.d., p. 273, grifo nosso) coloca que “[...] con-tra a vontade hispânica foi nascendo uma vontade nativa; contra a oligarquia nacional e depois liberal, nosso povo continuou a cria-ção de sua cultura”.

Tempos depois, como em geral os liberais foram anticleri-cais e jamais viveram o processo cultural do povo e muito menos o processo de evangelização de tal povo, o povo apoiou-se em seu catolicismo popular para resistir à oli-garquia... o paradoxal é que no tempo colonial se introjetou a cultura hispânica importada, mas, aos poucos, esse ca-

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tolicismo se transforma na própria cultura do povo (DUS-SEL, s.d., p. 274, grifo do autor).

Essa transformação de uma cultura imposta em cultura popu-lar parte desse movimento autônomo que é a própria cultura. Mo-vimento do próprio ser humano enquanto ser transformador, que produz, cria, se humaniza.

A humanização é justamente esse retomar de expressão, cria-ção, autonomia, diálogo, transformação de mundo, esse retomar de ser humano.

Práticas sociais como a prática do cantar e dançar entre o co-ral Trovadores do Vale é justamente o espaço em que as pessoas, nessa convivência, se humanizam e se formam pessoas-cidadãs. Enquanto seres humanos autônomos, criam, expressam-se, trans-formam, produzem cultura e educam-se.

Esse processo de produção, característica humana, é também processo de educação. Fiori (1991, p. 46) aponta que “[...] todo processo de cultura, na perspectiva da aprendizagem, é educação”.

Assim, ao propormos uma pesquisa que busca compreender os processos educativos existentes na prática social do cantar e do dançar junto ao coral Trovadores do Vale, buscamos compreendê--los, entendendo o coral como uma prática em que se permeiam processos de educação, humanização e cidadania.

6. POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES

A pesquisa destina-se a possibilitar novas perspectivas epis-temológicas que nos ajudem a ter novos olhares sobre o ensino de música. Nesse sentido, vislumbram-se contribuições em duas dire-ções. A primeira, vinculada a danças, cantos e cantigas preservadas pelo coral, como contribuição para uma ampliação de materiais, repertórios e práticas em sala de aula. A segunda, de cunho episte-mológico, visa olhar para outros saberes, outras formas de se rela-cionar com a música, de ensiná-la, ou seja, questionado que outras formas de relação entre sujeitos e música são possíveis, que nos

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orientem a novas perspectivas para o ensino de música. De certa forma, a segunda direção é o objeto central desse estudo.

Mesmo de forma bem insipiente, tendo em vista o processo da pesquisa, apresento pequenas contribuições de campo, apenas com a finalidade de o leitor conhecer um pouco mais a proposta do coral. Com relação as danças, cantos e cantigas, é possível identifi-car versos e textos que refletem os ambientes natural, social e cultu-ral do Vale do Jequitinhonha. Temos versos que nos apresentam os trabalhos que por anos foram exercidos pelo povo do vale, como os tropeiros, canoeiros, tecedeiras. Relatos de integrantes do coral nos apresentam que tais atividades eram exercidas acompanhadas por esses cantos e versos. No caso dos canoeiros, que passavam dias fora de casa para o trabalho de transporte de mercadorias via flu-vial, a despedida às margens do Rio Araçuaí, por exemplo, aconte-cia ao som dos cantos. Sumiam na curva do rio entoando seus can-tos, e no retorno anunciavam sua volta ao som dos mesmos cantos.

Alguns integrantes apontam que, mesmo que determinadas atividades não mais sejam exercidas na atualidade, a importância de preservar tais cantos se vincula ao conhecimento da história, cultura e ancestralidade de seu povo. Dentre os versos de alguns cantos, temos:

Canoeiro, canoeiro o que é que trouxe na canoa

Trouxe ouro, trouxe prata trouxe muita coisa boa

Em outros versos:Vou descendo rio abaixo numa canoa furada

O beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia

Arriscando minha vida, numa coisinha de nada,

O beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia.

Ainda outros versos:O dinheiro de São Paulo é dinheiro excomungado

O dinheiro de São Paulo que roubou meu namorado

Palmatória quebra dedo, chicote deixa vergão,

cassetete quebra costela mas não quebra opinião.

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Na perspectiva de encontrar subsídios epistemológicos que nos ajudem a pensar a educação musical e a relação entre sujeito e música, é possível vislumbrar nas primeiras etapas da pesquisa que a conotação “coral” ou “ensaio” ou mesmo “música” vai mui-to além dos significados de uma perspectiva que tenha como fi-nalidade a produção musical, com fins especificamente musicais. Tais relações acontecem dentro e fora dos ensaios, ou seja, o termo “coral” me parece representar todas as relações, musicais ou não, estabelecidas entre os sujeitos participantes de tal prática social. Participar do coral vai muito além de participar apenas de seus en-saios ou apresentações e percebe-se isso quando vemos sujeitos que se intitulam membros do coral, porém, por morarem em outras lo-calidades ou exercerem outras atividades, não mais participam dos ensaios e apresentações, mas se mantêm como integrantes do mes-mo. Além disso, a finalidade do coral tem dimensões muito amplas e plurais, como convivência, superação de problemas pessoais, pre-servação de raízes, produção de cultura, práticas religiosas, dentre outras. Em termos gerais, é possível perceber o envolvimento com a música para além da própria música.

Tendo em vista que a educação musical sempre será a relação entre sujeito e música, não sendo possível pensá-la fora da dimen-são humana ou como uma entidade exclusivamente vinculada à música, acreditamos que ouvir a voz de grupos, pessoas, comunida-des, que há tempos já exercem o envolvimento com a música nessa perspectiva, por meio de suas experiências, depoimentos, história, seja fundamental para identificar propostas outras para pensarmos a educação musical.

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