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Robert B. DENHARDT Arizona State University Teoria Geral de Administração Pública 6ª edição Tradução e Glossário: Prof. Francisco G. Heidemann, PhD em Administração Pública, USC, Los Angeles

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Robert B. DENHARDTArizona State University

Teoria Geralde Administração Pública

6ª edição

Tradução e Glossário:Prof. Francisco G. Heidemann,

PhD em Administração Pública, USC, Los Angeles

WADSWORTH, CENGAGE LEARNING2011

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S U M Á R I O

Apresentação

Prefácio para a edição brasileira

Capítulo I

ORGANIZAÇÃO PÚBLICA COMO OBJETO DE APRENDIZAGM1. Em busca do conhecimento

2. Teorias formais de organização pública3. Construção de teorias de organização pública

4. Foco em organizações complexas5. Redefinição do campo

6. Conclusão7. Questões para debate

8. Casos 9. Referências e leituras adicionais

Capítulo II

HERANÇA INTELECTUAL: MARX, WEBER E FREUD1. Karl Marx

2. Transição para o socialismo3. Organização industrial e desenvolvimento individual

4. Crescimento da alienação5. Max Weber

6. Racionalização da teoria social: a noção do ‘tipo ideal’7. Sigmund Freud

8. O que podemos aprender?9. Conclusão

10. Questões para debate11. Casos

12. Referências e leituras adicionais

Capítulo III

HERANÇA POLÍTICA: DE WILSON A WALDO1. Primórdios da teoria da administração pública

2. Dicotomia de ‘política e administração’3. Influência persistente da dicotomia de política e administração

4. Adoção de técnicas da gestão de negócios5. Abordagens científicas à gestão

6. Gestão administrativa e estrutura organizacional7. Centralização e integração

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8. Eficiência: a medida-chave do sucesso9. Administração democrática

10. Conclusão11. Questões para debate

12. Casos13. Referências e leituras adicionais

Capítulo IV

MODELO RACIONAL DE ORGANIZAÇÃO1. Ciência do comportamento humano

2. Abordagem genérica à administração3. Provérbios de administração

4. Modelo racional de administração5. Tomada de decisão e formulação de políticas

6. Sistemas fechados versus sistemas abertos7. Conclusão

8. Questões para debate9. Casos

10. Referências e leituras adicionais

Capítulo V

HUMANISMO ORGANIZACIONAL E A NOVA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA1. Temas no humanismo organizacional

2. Personalidade e organização3. Desenvolvimento organizacional no setor público

4. A nova administração pública (NAP)5. Conclusão

6. Questões para debate7. Casos

8. Referências e leituras adicionais

Capítulo VI

ÊNFASE EM POLÍTICA PÚBLICA E A NOVA GESTÃO PÚBLICA1. Desenvolvimento da orientação para a política pública

2. Responsividade na política pública3. Eficácia na política pública

4. A descoberta da implementação de políticas5. Métodos para análise política

6. A crise intelectual7. A nova gestão pública (NGP)

8. Conclusão9. Questões para debate

10. Casos

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11. Referências e leituras adicionais

Capítulo VII

ADMINISTRÇÃO PÚBLICA E O NOVO SERVIÇO PÚBLICO1. Crítica ao modelo racional

2. Teoria interpretativa ou da ação 3. Teoria social crítica

4. Discurso e a administração pública postradicional5. O novo serviço público

6. Esboço do novo serviço público7. Governança democrática em rede

8. Conclusão9. Questões para debate

10. Casos11. Referências e leituras adicionais

Capítulo VIII

O PROFISSIONAL COMO TEÓRICO1. Teorias e construção de teorias

2. Em busca de teorias da organização pública3. Aprendizagem pessoal e organizacional

4. Um novo papel para os teóricos5. Conclusão

6. Questões para debate7. Casos

8. Referências e leituras adicionais

Apêndice

1. O Diário do Administrador2. Formato do Diário

3. Autor do Diário em ação4. Exemplos de anotações no Diário

Créditos

Índice onomástico

Índice temático

Glossário de termos usados

Anexo: Questionários

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APRESENTAÇÃO

Em agosto de 2004, foi inaugurado, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), o Curso Superior de Administração de Serviços Públicos, com a abertura de duas turmas, uma no município de Balneário Camboriú e outra no campus central da Universidade, no bairro de Itacorubi, em Florianópolis. A iniciativa veio em resposta à manifestação de um segmento da sociedade catarinense que então solicitava um saber ‘administrado’ por sua universidade pública em sua região. Por seu caráter de serviço essencial a todos os catarinenses (um bem comum, portanto), este saber tomou a forma de um curso de Administração de Serviços Públicos, posteriormente renominado como curso de Administração Pública. Na mesma data iniciava-se na ESAG/UDESC a implantação de um Mestrado Profissional em Administração com o aval da CAPES.

Na condição de instrumento estratégico da comunidade política do Estado e à sua disposição e serviço, a Universidade acolheu o pleito dessa parcela de sua cidadania e encarregou os professores José Francisco Salm e Francisco G. Heidemann, dois doutores em Administração Pública, para a tarefa de elaborar um projeto político-pedagógico. Como primeira coordenadora do curso, tive a honrosa satisfação de somar esforços com meus colegas de universidade para, com eles, implantar um projeto que não só representasse uma resposta à demanda cívico-política recebida, mas que também oferecesse um diferencial em relação aos cursos superiores de Administração Pública em funcionamento em outras partes do país. O próprio nome inicial ‘Administração de Serviços Públicos’ tinha a pretensão de distingui-lo de um curso convencional de ‘Administração Pública’. O projeto foi concebido tendo em mente, em especial, os propósitos e interesses colimados pela teoria da delimitação dos sistemas sociais e pelo conceito de redução sociológica, duas contribuições teóricas notáveis de Guerreiro Ramos para a ciência social brasileira. Idéias e conceitos como governança pública ou coprodução do serviço público – em que os cidadãos pudessem contar com o concurso não somente dos órgãos do Estado, mas também das organizações do terceiro setor em sua acepção geral e até das organizações de mercado, por sua participação livre e espontânea em iniciativas de responsabilidade pública, – indicavam a base filosófica distinta e peculiar do projeto. Esta concepção não se alterou quando nosso curso passou a ser denominar simplesmente ‘Administração Pública’, a partir de 2008, em cumprimento a determinações legais.

A implantação desse curso de graduação apresentou desafios de vários tipos. Mas o principal deles dizia respeito à manutenção da congruência em relação à concepção proposta e aprovada pela Universidade. Havia carência de professores em geral, em número e expertise, mas principalmente de professores com a titulação e o preparo acadêmicos que se faziam necessários à fiel implementação da filosofia preconizada. Muito do sucesso inicial do Curso se deveu aos professores, efetivos e/ou colaboradores, da primeira hora, que, conosco, uniram esforços a fim de se prepararem para a tarefa de corresponder com arrojo aos conteúdos diferenciados do projeto. Numa iniciativa informal e voluntária, muitas horas de estudo em grupo foram realizadas para este fim.

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Além desta, muitas outras limitações dificultavam a implantação bem sucedida do novo curso. A indisponibilidade de materiais didáticos alinhados com o projeto filosófico-pedagógico também avultava entre as carências. Era urgente enfrentar e resolver as carências de livros e outros meios que garantissem os fundamentos essenciais à realização do ideário assumido. A título de exemplo, a disciplina axial de ‘Teoria Geral de Administração Pública’ (TGA Pública) não seria atendida em termos próprios e satisfatórios com o uso exclusivo de materiais ou livros-textos clássicos de TGA ou de teoria de Administração Pública. O desenvolvimento cívico-político da sociedade, além do desenvolvimento social e econômico, por exemplo, não aparece como uma das atribuições-chave dos administradores públicos nesses manuais de teoria administrativa. Como um valor precioso da sociedade brasileira, inscrito na primeira linha de sua constituição, a democracia não cai do céu por artifício de um deus ex machina; compete, sim, aos administradores públicos cultivá-la e desenvolvê-la, da mesma forma que lhes cabe produzir com eficiência os serviços públicos de caráter econômico e social.

No início de 2005, já com duas turmas em andamento, os professores Salm e Heidemann tomaram conhecimento da obra de Robert B. Denhardt, um professor, pesquisador e consultor da Arizona State University, nos EUA [ver relação de suas publicações no final do prefácio, mais adiante]. Com grata surpresa constataram que sua construção teórica em torno do assim chamado Novo Serviço Público (que, por sinal, é também o nome de um de seus livros, publicado em co-autoria com a esposa Janet Vinzant Denhardt) se aproximava de forma auspiciosa do ideário impresso no curso de Graduação em Administração de Serviços Públicos e na linha de pesquisa sobre gestão pública e responsabilidade social do Mestrado Profissional em Administração de nossa Universidade. Sua proposta de um retorno ao estudo do (novo) Serviço Público e seus argumentos críticos ao New Public Management, entre outras contribuições de grande valia, nos chegaram ao conhecimento em hora oportuníssima.

Quem é Denhardt e que relação ou afinidade possibilitou a aproximação entre ele e os

autores do projeto de Administração Pública da UDESC? No contato que o Prof. Salm estabeleceu com o Prof. Denhardt em 2005, acabou-se descobrindo as razões da caminhada convergente. A figura-chave dessa conexão era ninguém menos que Alberto Guerreiro Ramos, um político e sociólogo brasileiro e um estudioso de Administração Pública, que, por obra de um feliz acaso e, sobretudo, por causa de um déficit de democracia no Brasil, acabou exilado em Los Angeles, na Califórnia, onde se dedicou à pesquisa e ao ensino na Escola de Administração Pública da University of Southern California (USC), entre 1966 e 1982.

Para quem acredita que Guerreiro Ramos foi ou está esquecido, convém lembrar que

a produção acadêmica brasileira de administração ainda não faz justiça ao pensamento administrativo construído por este primeiro scholar da ciência administrativa no Brasil. Ninguém esquece o que não conhece! Talvez sua contribuição intelectual seja melhor avaliada no exterior do que em seu próprio solo nacional. São dele dois conceitos consagrados mundialmente na literatura de ciências sociais. O primeiro deles, ‘redução sociológica’, foi elaborado e publicado no livro de igual nome, Redução sociológica, antes de seu exílio, e encontrou eco em traduções para outros idiomas. E o segundo é a ‘delimitação dos sistemas sociais’, um conceito construído durante seu exílio nos Estados Unidos e

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divulgado em seu livro A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações, em 1981.

Ramos terminou por influenciar gente de todo o mundo durante sua estância na USC,

em Los Angeles. Foi uma influência de ordem acadêmica, filosófica e de visão de mundo. Os professores Salm e Heidemann descobriram, ainda em 2005, que, nas décadas de 1970 e 80, Denhardt fazia parte de um grupo de admiradores e estudiosos (cult) da obra de Ramos que se reunia para discutir suas idéias sempre que um novo artigo ou outro trabalho acadêmico seu aparecesse publicado em algum lugar. Mais que isso, observaram uma convergência muito estreita entre o pensamento de Ramos e a orientação político-filosófica presente na publicação conjunta de Vinzant Denhardt & Denhardt, The new public service, e no livro de Robert Denhardt, Teoria Geral de Administração Pública, cuja 6ª edição é aqui apresentada ao público brasileiro.

Os autores do projeto do Curso de Administração Pública, por seu turno, também passaram pela experiência do convívio com o pioneiro dos estudos de administração no Brasil. Salm e Heidemann tiveram a oportunidade rara de estudar com o Professor Ramos, quando realizavam seus projetos de doutoramento em Administração Pública na University of Southern California, no início da década de 1980. Conviveram com ele e discutiram com intensidade uma tradição mais conspectiva, democrática e substancial de Administração Pública do que a favorecida então em outros importantes centros universitários norte-americanos, onde prevalecia uma tradição altamente centrada na racionalidade burocrática, técnica e econômica; era o tempo em que a ‘velha administração pública’ começava a perder força e a escola do New Public Management, sob os governos de Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, e Ronald Reagan, nos EUA, começava a mudar o papel do governo na produção do serviço público, com o propósito, presumível, de fazer face ao colapso do estado do bem-estar ou welfare state.

Para o desenvolvimento dos nossos cursos de Graduação em Administração de

Serviços Públicos e de Mestrado Profissional em Administração, os dois livros dos Denhardt a que acabamos de aludir se revelaram particularmente pertinentes: Teoria Geral de Administração Pública (alvo desta apresentação) e The new public service. Dada a relevância de sua obra para os novos cursos, os dois autores foram convidados a visitar nossa universidade, em maio de 2006, quando fizeram palestras, debateram idéias e trocaram experiências e impressões com os professores e com os alunos das primeiras turmas de Administração Pública (da Graduação e do Mestrado). A tradução do livro Teoria Geral de Administração Pública foi uma decorrência natural; servia sob medida às necessidades de conteúdos epistemológicos e teóricos para os alunos de Administração de Serviços Públicos. Além de realizar a tradução com a meticulosidade e os cuidados que uma empreitada de ordem acadêmica séria requer, e contando com a colaboração de colegas e, sobretudo, de alunos tomados de entusiasmo e curiosidade, o professor Heidemann tomou a iniciativa de elaborar um glossário dos principais termos científicos e técnicos empregados no livro; o glossário passa a integrar a edição brasileira.

Importa fazer ainda alguns outros destaques sobre o livro que estamos apresentando,

pois trata-se de uma obra inovadora para o público estudantil brasileiro de Administração

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Pública por outros motivos. Como confessa Denhardt, a literatura teórica de administração pública tem se espelhado muito fortemente – para não dizer de forma exacerbada e acrítica – na literatura de administração de negócios; a fundamentação teórica (a saber, public choice) do New Public Management é um exemplo inequívoco dessa afirmação. Além disso, os livros-textos de TGA e de teoria da administração pública, no Brasil, não tem se apoiado em termos adequados e suficientes na literatura de ciências sociais. Autores como Marx e Freud, e até mesmo Weber e Simon, não são levados na devida conta em nossos livros de teoria geral de administração, pública ou privada. O pensamento desses e, provavelmente, de outros autores ainda mal conhecidos pelos estudiosos da administração, é fundamental para o entendimento e o tratamento dos problemas enfrentados pelos administradores na sociedade de organizações em que vivemos. A racionalização intensa das relações sociais, a dinâmica poderosa e, muitas vezes, desconcertante dos grupos, a alienação dos trabalhadores, a falta de sentido e motivação para o trabalho e para a própria vida, a qualidade de vida nos contextos organizacionais, a possibilidade limitada de exercício da liberdade individual e da cidadania, a síndrome comportamental e conformista frente às estruturas de liderança organizacional, entre outros tantos desafios, não serão questões simples de compreender ou de tratar, sem os proveitosos esclarecimentos que estes autores podem nos proporcionar.

Em síntese, o que Robert Denhardt nos propicia, em seu livro Teoria Geral de Administração Pública, é uma visão vigorosa das dimensões não contempladas em grau adequado pela literatura tradicional, principalmente a ênfase no governo democrático, no interesse público e no papel de cidadão do administrador público como articulador, facilitador e catalisador dos anseios dos cidadãos, tendo sempre em sua mira possibilitar a efetiva coprodução dos valores societários publicamente definidos. Os assuntos de natureza técnica e operacional ou as preocupações focadas na produtividade e na eficiência das organizações públicas recebem igual ênfase de Denhardt, embora ele encoraje os estudiosos e os gestores no sentido de serem criativos e não capitularem facilmente quando enfrentam dificuldades para implementar valores societários que vão além dos socioeconômicos. Com uma orientação verdadeiramente pública e de envolvimento da cidadania na produção do bem público, o compêndio de Denhardt facilita nosso trabalho de preparar o aluno de Administração Pública para o exercício responsivo e competente de sua tarefa de servir cidadãos, além de, ao mesmo tempo, satisfazer seus próprios anseios mais genuínos e insondáveis de auto-realização.

Caro estudante, dialogue com o autor e extraia de seu livro o que ele tem de melhor a oferecer para a construção e o fortalecimento de sua própria teoria de administração pública.

Profa. Maria Ester Menegasso, Dra. Coordenadora do curso de Administração Pública (2004-09)

Florianópolis, Novembro de 2010.

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PREFÁCIO PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA--ix--

É com sentimento de satisfação que escrevo esta introdução para a edição brasileira de meu livro Teoria Geral de Administração Pública (*). Embora o livro resgate o desenvolvimento da teoria de administração pública nos EUA, as questões e problemáticas que ele levanta não são limitadas pelas fronteiras nacionais, mas se aplicam a todos quantos se interessam por administração pública em qualquer país. Essas questões, e muitas outras, são elaboradas segundo a tradição substantiva da teoria de administração pública espelhada nessas páginas. Damos destaque às questões de interesse para os envolvidos com a administração pública, valendo-nos de materiais da ciência política, de estudos organizacionais e de outras áreas, mas ressaltamos os elementos específicos aos interessados em administração pública. Deve-se considerar que este é um livro de teoria de administração pública, mas também um livro claramente voltado para o mundo real da prática. A aplicação das teorias ao mundo da prática é central para o entendimento do mundo da administração pública.

Isso é particularmente verdadeiro em relação aos debates mais recentes entre a Nova Gestão Pública (New Public Management) e o que Janet Denhardt e eu chamamos de Novo Serviço Público. A primeira tem sua origem na interpretação convencional ou dominante da administração pública, especialmente na medida em que esta é valorizada ou exaltada pelos modelos de mercado e pela economia da public choice e se preocupa em reduzir o red tape e aumentar a eficiência e a produtividade do governo. O segundo deriva mais claramente da tradição humanística democrática na administração pública e se interessa pelas questões da cidadania e da comunidade. Em minha visão, estas duas correntes de pensamento apresentam opções importantes para os estudiosos que procuram desenvolver uma filosofia pessoal de administração pública.

Em outros aspectos, esta edição do livro dá continuidade a alguns temas importantes estabelecidos nas edições anteriores. É um livro que trata de teoria, mas também de prática. É um livro escrito com o objetivo de apresentar as teorias de organizações públicas tanto aos estudiosos de administração pública como também a quem não faz parte do campo, mas deseja se engajar em organizações comprometidas com propósitos públicos. De uma maneira ainda mais importante, o livro é uma tentativa de desenvolver uma crítica à literatura dominante no campo da teoria de administração pública por sua incapacidade de fazer conexões com as experiências reais dos que trabalham em e com organizações públicas.

Nos últimos anos, a separação tradicional entre teoria e prática, no campo da administração pública, se tornou ainda mais pronunciada. Os acadêmicos e os profissionais, que sempre se olharam com certo ceticismo, parece que estão agora ainda mais divididos. Esta é uma situação extremamente infeliz que limita não só o nosso entendimento das organizações públicas, mas também nossas ações dentro delas. --x-- A intenção principal deste livro é compreender mais claramente a separação entre teoria e prática e começar a reconciliar ou resolver suas diferenças.

Para lograr este propósito, faço inicialmente uma revisão dos vários estudos anteriores sobre o campo, não com o intuito de apresentar uma análise histórica ampla das teorias de

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organizações públicas, mas para examinar trabalhos representativos que encarnam os compromissos e as visões dos vários grupos e das várias épocas. Com base nesta revisão, tomo então em consideração diversos estudos contemporâneos de organizações públicas e sugiro formas para melhor entendermos o mundo real da administração pública. Inclui também vários teóricos mais genéricos de organizações que deram contribuições sólidas ao campo da administração pública.

Em minha revisão destes trabalhos, descobri que há mais consistência entre os diversos teóricos do que imaginava encontrar. Esta descoberta me levou às seguintes conclusões, que estão implícitas em tudo o que segue:

1. Embora tenham havido muitas teorias distintas de organização pública, o trabalho dominante na teoria da administração pública centrou-se na elaboração de um assim chamado “modelo racional de administração” e de uma visão de accountability democrática baseada implicitamente na dicotomia de política e administração.

2. Enquanto teoria de aprendizagem, a abordagem referida limitou-se a um entendimento positivista da aquisição de conhecimento, deixando de reconhecer ou de promover formas alternativas de enxergar as organizações públicas. Em termos específicos, essa abordagem não conseguiu integrar explicação, compreensão e crítica nas teorias de organização pública.

3. Enquanto teoria organizacional, essa abordagem limitou-se aos interesses instrumentais expressos nas estruturas hierárquicas, não reconhecendo ou promovendo a busca de designs organizacionais alternativos. Em termos específicos, esta abordagem não conseguiu integrar as questões de controle, consenso e comunicação.

4. Por consequência, os profissionais tiveram a impressão de que as teorias de organização pública não tratavam de seus interesses, pois não lhes ofereciam especificamente um contexto moral para a ação pessoal no processo de governança.

5. Apesar do predomínio da visão convencional, sempre houve argumentos importantes de contraponto no campo. Estes interesses receberam recentemente um novo foco no debate entre a Nova Gestão Pública e o Novo Serviço Público – um debate que coloca os estudiosos e os profissionais diante de escolhas dramáticas em relação ao futuro da teoria e da prática da administração pública.

6. Esses desafios se tornam ainda mais importantes na medida em que nos deslocamos de um foco exclusivo no governo para um foco mais abrangente na governança, especialmente na governança democrática em rede.

Para cumprir a promessa da teoria da administração pública, precisamos agora de um redirecionamento na maneira em que enxergamos o campo, uma guinada que nos leve a nos preocuparmos não meramente com a administração governamental, mas também com o processo mais abrangente de governança e administração da mudança que tem por objetivo alcançar valores societários publicamente definidos. Seguindo esta perspectiva, que é elaborada no capítulo I, somos levados a um interesse mais amplo pela natureza do trabalho da administração nas organizações públicas, --xi-- um interesse que incorpora não apenas as demandas por eficiência e eficácia, mas também a noção da responsabilidade democrática. Este novo direcionamento tem implicações para o campo da governança e da administração pública e também para o campo mais amplo da gestão. Na medida em que várias instituições de governança dominam o panorama social e político, faz todo o sentido nos perguntarmos se todas estas organizações devem ser governadas de maneira a manterem seriamente de pé os nossos compromissos com a liberdade, a justiça e a igualdade entre as pessoas. A questão

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não é como devemos ver as operações dos órgãos de governo, mas antes como poderemos tornar mais públicas as organizações de todo tipo, como poderiam elas nos ajudar a expressar os valores de nossa sociedade.

Durante mais ou menos um século, a administração privada, ou administração de negócios, serviu de modelo para a administração pública. Neste livro sugiro que os órgãos públicos – e as teorias e abordagens que lhes dão sustentação – se tornem modelos para a reconstrução de organizações de todo tipo segundo linhas mais democráticas. A tradição da administração pública contém elementos de reforma organizacional que são importantes para todas as nossas instituições. Se quisermos que a democracia sobreviva em nossa sociedade, ela não deve ser atropelada pelas falsas promessas de uma hierarquia e de um governo autoritário. Resultados democráticos exigem processos democráticos.

A conexão entre teoria e prática será muito importante para se alcançar este objetivo. Uma teoria que se aparta da prática e dos valores e sentidos implícitos na prática jamais será capaz de fazer com que modifiquemos nossa prática, a não ser de forma incremental. Ela não permitirá o tipo de compromisso amplo com a noção da governança democrática que a nossa sociedade exige. Em minha visão, no entanto, a conexão entre teoria e prática só pode ocorrer mediante um processo de aprendizagem pessoal. Somente na medida em que os indivíduos refletirem sobre suas experiências e fizerem generalizações a partir delas é que eles irão desenvolver teorias de ação. E somente dessa maneira conseguirão eles incorporar suas idéias numa filosofia pessoal e prática de administração pública.

De modo consistente com esta visão, incorporei nesta edição vários elementos pedagógicos importantes, inclusive questões para debate e estudos de caso curtos, mas pertinentes e pontuais, depois de cada capítulo. Mas o mais importante é o apêndice sobre o uso de um Diário do Administrador. O Diário oferece uma forma de ligar teoria e prática, por meio do exame das experiências administrativas de cada um, a partir de quatro perspectivas distintas. O uso diligente do Diário do Administrador fará o material incluído no texto tomar vida para o leitor. O leitor é instado, num certo sentido, a desenvolver seus próprios estudos de caso, com o uso das anotações que ele ou ela fizer em seu Diário do Administrador. A simples leitura ou reflexão das teorias, sem conexão com a prática, por si só, não terá qualquer efeito substancial sobre nossas ações. Para que ocorra alguma aprendizagem verdadeiramente significativa, é preciso demonstrar para nós mesmos a relevância e o sentido da teoria em nossas vidas diárias. A teoria, como veremos, é, no fim das contas, um assunto muito pessoal, e o Diário do Administrador nos ajuda a fazer essa conexão. Em particular, recomendo o uso do Diário do Administrador como meio para testar no Brasil as teorias desenvolvidas no contexto norte-americano. Algumas teorias serão aplicáveis; outras, talvez não. Mas a aplicação do material de estudo por meio do Diário permitirá um entendimento mais cabal dessas teorias no contexto brasileiro.

Em todo este trabalho cheguei a uma convicção mais firme de que as idéias fazem a diferença. A ação humana requer reflexão humana e, sem o ato de pensar, nossas ações são cegas. Mas, na medida em que nos damos conta de que o pensamento leva à ação, temos também que reconhecer a responsabilidade de quem faz teoria. A conexão entre pensamento e ação, entre teoria e prática, exige de quem pensa --xii-- e de quem escreve que

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compartilhem uma obrigação moral com quem atua nas organizações públicas. Na maioria das vezes tem-se dado muito pouca importância a esta responsabilidade – a responsabilidade do teórico – em nosso campo. É preciso ter uma compreensão mais integral da vocação e da obrigação dos teóricos em nosso campo – e, na verdade, em todas as ciências sociais.

Devo uma palavra de apreço especial àqueles que foram de extrema importância para o meu próprio aprendizado sobre organizações públicas e àqueles que me deram ajuda e apoio na realização deste projeto, em suas versões original e revistas. Quero igualmente agradecer os profissionais de administração que muito me ajudaram a dar foco a meu trabalho nos últimos anos. E, naturalmente, desejo agradecer a meus bons amigos Francisco G. Heidemann e José Francisco Salm, que me apresentaram ao mundo da administração pública do Brasil e que tornaram possível ao público brasileiro esta nova edição do livro. Eles têm minha mais profunda gratidão.

(*) Nota do tradutor: Na versão original, o título do livro é Theories of Public Organization. Com a ciência e o consentimento do autor, optou-se na tradução pelo título Teoria Geral de Administração Pública, porquanto as organizações públicas (repartições e órgãos de governo) constituem o principal instrumento estratégico de ação usado pela administração pública para a produção dos serviços públicos. E é nesse sentido de estratégia em ação que o autor trata a organização pública no livro. E nesses termos, mutatis mutandis, o livro também guarda semelhança com os manuais clássicos de Teoria Geral de Administração (TGA) no Brasil. Por outro lado, o conteúdo teórico apresentado no livro se distingue da tradição de estudos organizacionais encontrada na respectiva literatura.

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--xiii--SOBRE O AUTOR

Robert B. Denhardt é professor e diretor da Escola de Public Affairs da Universidade do Estado do Arizona (EUA) e proeminente visiting scholar na Universidade de Delaware. Foi presidente da American Society for Public Administration (ASPA) e é membro da National Academy of Public Administration (NAPA). O Dr. Denhardt publicou 21 livros, entre os quais se incluem: The dance of leadership, The new public service, Managing human behavior in public and non-profit organizations, Public administration: an action orientation, In the shadow of organization, The pursuit of significance, Executive leadership in the public service, The revitalization of the public service e Pollution and public policy. Assumiu cargos em várias universidades norte-americanas e ocupou nelas diversas posições executivas. O Dr. Denhardt também presta serviços de consultoria a jurisdições estaduais e municipais nas áreas de liderança e mudança organizacional.

--xiv--O bem-estar, a felicidade e as próprias vidas de todos nós dependem em medida significativa do desempenho dos mecanismos administrativos que nos cercam e dão apoio. A qualidade da administração na sociedade moderna toca nossas vidas diárias, desde as questões primárias de alimentação e abrigo até a periferia de nossa atividade intelectual. Hoje, a vida de uma pessoa pode depender da administração dos controles de pureza numa farmácia; amanhã, ela pode depender das decisões de um departamento estadual de trânsito; na próxima semana, ela pode estar à mercê da sabedoria administrativa de um alto funcionário do Departamento de Estado. Querendo ou não, a administração é uma preocupação de todo mundo. Se quisermos sobreviver, convém que o façamos com inteligência.

– Dwight Waldo (1955, p. 70)

Livre e não livre; controlando e controlado; escolhendo e sendo escolhido; induzindo e sendo incapaz de resistir ao induzimento; fonte de autoridade e incapaz de negá-la; independente e dependente; nutrindo sua personalidade, mas despersonalizado; dando forma aos propósitos e sendo forçado a mudá-los; estabelecendo restrições, com o objetivo de tomar decisões; perseguindo o particular, mas preocupado com o todo; descobrindo líderes, mas negando sua liderança; esperando dominar a terra, mas sendo dominado pelo invisível – esta é a história do homem e da sociedade contada nestas páginas.

– Chester Barnard (1948, p. 296)

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Capítulo I--1--

ORGANIZAÇÃO PÚBLICA COMO OBJETO DE APRENDIZAGEM

1. Em busca do conhecimento1.1 Derivando a teoria da prática

1.2 Abordagens diferentes: Caso A1.3 Abordagens diferentes: Caso B

2. Teorias formais de organização pública2.1 Por que estudar teorias formais?

2.2 O papel dos modelos

3. Construção de teorias de organização pública3.1 Administração pública e governo

3.2 Administração pública e organizações privadas3.3 Administração pública como profissão

4. Foco em organizações complexas4.1 Administração pública, sinônimo de administração governamental

5. Redefinição do campo

6. Conclusão

7. Questões para debate

8. Casos

9. Referências e leituras adicionais

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--1--Capítulo I

ORGANIZAÇÃO PÚBLICA COMO OBJETO DE APRENDIZAGEM

A apreciação feita por Dwight Waldo sobre a importância das organizações públicas em nossas vidas diárias é até mais importante hoje do que o foi no tempo em que ele escreveu a esse respeito há mais de 50 anos (WALDO, 1955). Naquela época, as organizações públicas, em seus níveis federal, estadual e municipal, cresceram de uma maneira estupenda, de tal forma que existem hoje mais de 22 milhões de pessoas empregadas por governos nos Estados Unidos. Além disso, há milhões de outras trabalhando em organizações com e sem fins lucrativos que desempenham papel essencial no processo de governança. Mais importante ainda é que a amplitude e complexidade das questões tratadas pelo governo e por agentes correlatos aumentaram muito mais do que se poderia imaginar há bem poucos anos apenas. Em virtude do sério impacto que as organizações públicas causam em nossas vidas, quando falamos de administração, como diz Waldo, é bom que o façamos com inteligência.

Mas, como ressalta Chester Barnard, temos também que manter um sentido de qualidade de vida nas organizações. Embora muitas vezes pensemos sobre a burocracia pública como um mecanismo impessoal, na realidade, por trás de cada contato nosso com organizações públicas, há uma longa e complexa cadeia de eventos, percepções e comportamentos humanos que se desenvolveram nas vidas diárias de pessoas bem iguais a nós. As organizações são, na verdade, produtos de ações humanas individuais – ações com sentido e significado especiais para quem nelas atua. A organização supostamente impessoal é o pano de fundo de um mundo muito pessoal.

Por essa razão, as organizações públicas podem parecer bem diferentes, dependendo de nossa perspectiva particular. A título de exemplo, muitas vezes falamos sobre o labirinto de confusão e red tape que parece caracterizar as organizações públicas. Alguns órgãos, apesar de seu alegado interesse por eficiência e serviço, parecem ter por objetivo evitar soluções satisfatórias para nossos problemas. Por um lado, --2-- a burocracia se mostra tão rotinizada que parece insensível; por outro, ela se revela tão arbitrária que parece cruel. Por consequência, não devemos nos surpreender que tanta gente tenha uma opinião tão melancólica a respeito da burocracia pública.

Este quadro muda na medida em que nos familiarizarmos mais com a burocracia e as pessoas que a integram. Em sua maioria, estes indivíduos são altamente interessados e competentes, trabalhando para ganhar a vida e procurando lidar de forma efetiva com os problemas complexos com que se deparam. Para a maioria, a velha noção do serviço público não está morta. Trabalhar para o governo não é, apenas, mais um trabalho qualquer; é uma oportunidade de participar na solução de problemas públicos difíceis. É o ‘mundo real’, em que as pessoas vivenciam sofrimento e orgulho, alegria e desapontamento. É um lugar muito pessoal.

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Num sentido, este livro se interessa pelo que significa tratar as organizações públicas com inteligência; mas ele também está interessado no modo pelo qual o nosso conhecimento pode ser usado para lidar de forma compassiva com os problemas humanos. Estaremos interessados num conjunto bem básico de questões: De que modo podemos desenvolver um entendimento melhor e mais sistemático das organizações públicas? O que precisamos conhecer, ou saber, para que as organizações públicas sejam mais responsivas, isto é, correspondam melhor, aos anseios públicos? Como podemos usar o conhecimento que adquirimos de forma a melhorar a qualidade de nossas vidas?

1. EM BUSCA DO CONHECIMENTO

Estas questões têm, ao mesmo tempo, importância prática e teórica. Todo profissional de administração deve constantemente (embora não necessariamente de forma consciente) se perguntar que conhecimento se pode gerar e como se pode aplicá-lo. O que eu preciso saber sobre esta organização, como posso descobrir as informações de que preciso e como posso usá-las? Em todos os casos, o gestor deve fazer certas escolhas sobre a acumulação de conhecimento e depois tomar decisões e partir para a ação ou ações com base neste conhecimento. Na verdade, poder-se-ia argumentar que as questões de aquisição do conhecimento estão no coração da administração.

As pessoas, obviamente, adquirem conhecimentos de maneiras diversas. O nosso entendimento das organizações públicas é claramente influenciado por eventos que aconteceram mesmo antes de entrarmos em contato regular com elas. Nossas experiências na vida familiar nos ensinam muita coisa sobre poder, autoridade e comunicação, ao passo que nossas experiências na igreja e na escola nos dão informações sobre organizações mais estruturadas. Na hora em que começamos a interagir com organizações públicas de expressão, quer enquanto membros ou como usuários, já estamos inteiramente socializados, em termos de alguns padrões básicos esperados de comportamento e ação. Mas existe ainda uma grande quantidade de informações que precisamos aprender e um grande número de diferentes formas pelas quais podemos obtê-las. Podemos confiar em rumores ou em ‘conversas casuais’, podemos pesquisar as práticas passadas da organização, podemos ouvir e aprender com os conselhos de outros integrantes da organização, ou podemos nos deixar guiar por experts em eficiência e por especialistas em desenvolvimento organizacional.

--3--1.1. Derivando a teoria da prática

Em cada uma dessas formas, estamos construindo nossa própria abordagem ou teoria pessoal de organização pública; estamos procurando explicações ou entendimentos que nos permitirão ver, de forma sistemática, as organizações públicas, seus membros e seus usuários. Pode-se dizer que o corpo de observações e avaliações feitas por nós constituem teorias implícitas de organizações públicas, no sentido de que, embora raramente sejam articuladas ou mesmo consideradas de modo consciente, elas constituem um conjunto de proposições sobre a maneira como as organizações públicas funcionam. É de extrema importância saber que essas teorias não existem separadas da prática; elas se relacionam integralmente à maneira em que atuamos enquanto membros ou usuários das organizações

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públicas. Cada uma de nossas ações acontece dentro do quadro referencial de teorias que sustentamos, ou, mais precisamente, enquanto uma expressão de nossas posições teóricas. No campo da ação, teoria e prática são indissociáveis. Esta afirmação parece bastante simples, mas de fato o que se ouve com mais frequência, nas discussões sobre administração pública, é exatamente a caracterização contrária, isto é, de que a teoria e a prática não estão ligadas uma à outra. Os profissionais de Administração, muitas vezes, se queixam de que os teóricos, desde os ‘fundadores da república’ até os acadêmicos de hoje, vivem e trabalham em torres de marfim tão distantes do mundo da prática que seus princípios e enunciados mal correspondem à vida no mundo real. Enquanto isso, os acadêmicos, mesmo aqueles mais interessados na relevância dos estudos de administração, se queixam de que os profissionais nos órgãos públicos estão tão preocupados com os elementos operacionais do dia-a-dia da administração que não conseguem sustentar uma visão teórica geral. O fosso entre teoria e prática parece grande demais para se fazer uma ponte entre elas.

O que está em jogo aqui é muito mais que uma mera disputa entre acadêmicos e profissionais; pelo contrário, como veremos, a questão teórica e prática é essencial ao desenvolvimento de uma abordagem inteligente e compassiva para as organizações públicas. Por esta razão, o propósito central deste livro é desenvolver um entendimento das organizações públicas que nos torne capazes de integrar teoria e prática, reflexão e ação. Com esta finalidade, os capítulos subsequentes apresentam um quadro geral sobre as teorias do indivíduo, da organização e da sociedade, que foram desenvolvidas a título de diretrizes para explicar as ações das organizações públicas, destacando-se a questão específica de como estas teorias e os argumentos que alicerçaram sua construção informam nossos próprios processos de construção teórica – processos que levam a nossas teorias implícitas de administração. No curso da revisão dessas obras examinaremos de forma crítica a relação entre teoria e prática, e esta relação será no fim reconstruída em torno do conceito de ação pessoal.

O propósito central deste livro é desenvolver um entendimento das organizações públicas que nos torne capazes de integrar teoria e prática, reflexão e ação.

1.2. Abordagens diferentes: Caso A

Conforme já indicamos, tanto os acadêmicos como os profissionais procuraram resolver o problema da aquisição do conhecimento na administração pública. Para --4-- entender de modo prático as questões que eles levantaram, vamos examinar dois casos que ilustram alguns tópicos centrais na teoria da administração pública. Em cada um dos casos, na condição de observador, você pode começar se perguntando como você caracterizaria os vários atores e como analisaria as relações entre eles. Que tipo de informações – completas ou incompletas, objetivas ou subjetivas etc. – você tem? Por ventura o fato de você pedir informação adicional sugere que você já tem certa visão das organizações e que esta visão se tornaria mais completa com o acréscimo da informação requisitada? Se suas perguntas refletirem um conjunto de pressupostos sobre a vida nas organizações públicas, de que maneira você caracterizaria estes pressupostos?

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É muito comum ouvir de quem avalia casos como os incluídos neste capítulo (e em outras partes do livro) que ele precisa de mais informação, que o caso não lhe dá informações suficientes. Obviamente, os participantes envolvidos nos casos diriam a mesma coisa – parece mesmo que nunca há informação suficiente. Dito isso, você poderia abordar todo e qualquer caso a partir do ponto de vista das partes envolvidas. Tente entender, a partir do ponto de vista delas, o que estava exatamente acontecendo. Você pode tentar reconstruir, em termos específicos, a análise da situação feita por elas. Com base em que conhecimento ou compreensão da vida organizacional agiram elas? Que informações tinham elas? Que informações lhes faziam falta? De que maneira haviam caracterizado sua abordagem geral à vida nas organizações públicas? Que expectativas tinham elas a respeito do comportamento humano? Como viam as tarefas básicas de sua organização? Qual era o entendimento delas sobre o papel dos órgãos de governo e sobre as pessoas que neles atuavam? Qual era a relação entre seu quadro teórico e seu comportamento?

Nosso primeiro caso ilustra a relação existente entre a maneira como vemos a vida organizacional e a maneira como atuamos nas organizações públicas. Ken Welch era um estagiário de verão na divisão de serviços de gestão de uma grande repartição federal. Durante seu estágio de três meses, ele deveria se engajar em vários projetos relacionados com interesses de gestão nos diversos laboratórios de seu centro. A divisão de serviços de gestão fazia parte do departamento de pessoal, mas na divisão os funcionários muitas vezes atuavam como ‘desarmadores de problemas’ para a administração superior, de forma que a unidade gozava de um prestígio considerável dentro do departamento e, por consequência, recebia atenção especial de seu diretor.

Depois de um período de mais ou menos duas semanas, durante o qual Ken recebeu informações gerais sobre as tarefas da divisão, do departamento e do centro, um dos analistas permanentes, de nome Rick Arnold, pediu a Ken que o ajudasse num estudo sobre o processo de recrutamento em um dos laboratórios de informática. Este era exatamente o tipo de projeto que Ken esperava que surgisse em sua experiência de verão, e ele de pronto agarrou a oportunidade de participar nele. Ken estava especialmente satisfeito por Rick lhe ter pedido que o auxiliasse, já que Rick era claramente um dos funcionários preferidos do chefe da divisão e também conhecido como ‘Superanalista’, uma referência um tanto brincalhona, mas respeitosa. Além de ganhar alguma experiência pessoal, Ken iria ter a oportunidade de observar um analista de gestão altamente competente em plena ação. Além disso, como estava claro que Rick gozava das boas graças do chefe da divisão, havia possibilidades reais de Ken observar pelo menos algumas interações naquele nível, talvez até de participar em reuniões nos níveis mais elevados de gestão do centro. Em suma, tratava-se de um trabalho atrativo, ao qual ele de imediato se lançou.

--5--Mas, pelo jeito em que as coisas se desenrolavam, Ken não pôde fazer muita coisa.

Na condição de analista principal, Rick claramente desejava liderar este projeto, o que Ken achava perfeitamente normal. Mas como Rick tinha vários outros projetos em andamento, havia períodos consideráveis em que Ken não tinha muito o que fazer no projeto de recrutamento. Por isso, ele ficou mais do que feliz em colaborar, quando Eddie Barth, um dos membros mais antigos do staff, lhe pediu que o ajudasse a montar alguns organogramas solicitados pela administração superior. Eddie fazia parte de um pequeno grupo de técnicos

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vindos de uma das duas unidades fundidas há vários anos para formar a atual divisão de serviços de gestão. Ken logo descobriu que a montagem de um organograma, especialmente nas mãos desses técnicos, se tornara um processo altamente especializado, envolvendo não apenas aprovações sem fim, mas também problemas complicados de design gráfico e reprodução muito além do que se poderia imaginar. Ken certamente estava menos interessado nesse trabalho do que nos problemas mais humanos que ele encontrava no projeto de recrutamento, mas Eddie sempre se mostrara cordial e parecia estar feliz em contar com alguma ajuda. E, assim, Ken continuou a desenvolver organogramas. Depois de trabalhar algumas semanas nos dois projetos, Ken começou a perceber sinais de que nem tudo estava bem com seu trabalho. Outro estagiário do escritório ouviu comentários nos corredores sobre estagiários superativos que haviam sido contratados recentemente. Uma das secretárias comentou que esperava que Ken tivesse condições de ‘suportar a pressão’. Como Ken não se sentia superativo nem sob qualquer pressão, estes comentários lhe pareciam curiosos. Era provável que estivessem falando de outra pessoa, pensou ele.

Alguns dias mais tarde, porém, Ken foi chamado ao gabinete de Jim Pierson. Jim, outro dos membros mais antigos do staff, – o qual, pensou Ken, até já dirigira a unidade técnica por algum tempo, – havia se mostrado um pouco distante, mas não inamistoso, durante as primeiras semanas de Ken no centro. Enquanto outros tinham sido bem simpáticos, convidando Ken para festas e para participar no time de softball do departamento de pessoal, Jim parecia um tanto reservado. Mas, por outro lado, Ken e Jim haviam tido muito pouco contato no trabalho; por isso, raciocinou Ken, talvez seu comportamento não era, afinal de contas, tão estranho assim. Ken via no encontro um gesto amistoso da parte de Jim e aguardava com ansiedade a hora de se conhecerem melhor. Qualquer esperança de uma conversa amistosa foi, porém, imediatamente por água abaixo: tão logo Ken chegou, Jim foi lhe dando uma preleção sobre como se deve administrar o próprio tempo, ressaltando especificamente que o envolvimento em projetos demais significava que nenhum deles seria bem feito. Embora não houvesse menções específicas, Jim estava se referindo aos dois projetos em que Ken estava trabalhando.

Ken saiu zonzo do encontro. Ninguém havia questionado, ainda que minimamente, a qualidade de seu trabalho. Não havia conflitos de tempo entre os dois projetos. E mesmo que tivesse havido, imaginou Ken, por que teria Jim assumido a responsabilidade de lhe aplicar essa reprimenda? No final daquela tarde, Ken compartilhou sua conversa com outro estagiário, o qual comentou que Jim sempre se ressentira por não ter sido nomeado diretor, por ocasião da fusão das duas unidades. No dia seguinte, Ken fez menção à controvérsia, numa conversa com Rick, mas recebeu como resposta apenas uma observação casual sobre os membros démodés da divisão. Ken começou a se sentir vítima de uma espécie de luta de poder dentro do escritório e imediatamente resolveu tentar sair desse meio. Tão logo teve chance de ver o chefe da divisão, lhe explicou toda a situação, inclusive seu sentimento --6-- de que não havia de fato problemas reais e que ele estava sendo usado. O chefe ouviu-o com atenção, mas não lhe deu sugestões concretas. Disse apenas que ficaria atento à situação.

Mais tarde naquela semana, numa cervejada após uma partida de softball, o diretor do departamento de pessoal perguntou como estava indo o estágio. Na conversa que se

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seguiu ele lhe contou o que aconteceu. O diretor iniciou um longo discurso sobre as dificuldades que vivera quando reorganizou as unidades dentro de seu departamento. Mas ele também salientou como a fusão das duas unidades na divisão diminuíra sua amplitude de controle e tornara consideravelmente mais fácil para ele a operação do departamento. Estava claro que ele preferia a abordagem mais analítica dos serviços de gestão representada pelo chefe e pelo Superanalista. Em parte, ele disse que a reorganização havia enterrado um de seus principais problemas, ou, pensou Ken mais tarde, talvez ele tenha dito que, em breve, o enterraria.

Este caso ilustra uma ampla gama de questões que enfrentam aqueles que desejam saber mais sobre organizações públicas. O que motiva as pessoas que trabalham em organizações públicas? Como podemos explicar padrões deficientes de comunicação em órgãos públicos? Qual é a melhor maneira de entendemos a relação entre burocracias e burocratas? Como podemos lidar com a mudança organizacional, ou talvez até comandá-la? Mas – o que é ainda mais importante para nossos propósitos – este caso indica o papel central da aquisição de conhecimento como base para as nossas ações. Cada uma das pessoas envolvidas nesse caso enfrentou o problema de acumular conhecimento sobre as circunstâncias específicas; depois ela teve que determinar como aquela informação se ajustaria a (ou exigiria que ela modificasse) seu próprio quadro de referência, suas próprias teorias a respeito de como as pessoas e as organizações se comportam. Cada uma dessas pessoas teve que resolver três questões básicas sobre seu entendimento das organizações públicas: (1) Que conhecimento se faz necessário como base para a ação? (2) Quais são as melhores fontes possíveis para se obter esse conhecimento? (3) De que modo este conhecimento pode ser aplicado à situação enfrentada? Somente depois de resolver essas questões (pelo menos implicitamente), estava cada pessoa preparada a agir.

Tome-se como exemplo o personagem central de nosso caso, Ken Welch. Entre as muitas categorias que ele poderia ter usado para ajudá-lo a entender o que estava acontecendo à sua volta, Ken optou por dar ênfase àquelas que tratam de poder e autoridade. Sua preocupação (talvez até obsessão) com poder e autoridade lhe deu uma lente especial através da qual ele via o mundo, uma lente que realçava alguns eventos e embaçava ou ocultava outros. Depois de obter certa quantidade de informações, Ken concluiu que ele era vítima de uma ‘luta de poder dentro do escritório’ e tentou resolver as coisas apelando para aqueles que detinham autoridade dentro da organização. Se, por outro lado, Ken tivesse dado ênfase a outros tópicos – por exemplo, ao colapso das comunicações que muitas vezes acomete organizações complexas, apesar das tentativas de cooperação – ele teria agido de forma bem diferente, provavelmente tentando descobrir a causa da confusão e procurando criar uma relação mais efetiva com seus colegas de trabalho. De qualquer modo, está claro que a perspectiva pessoal de Ken sobre vida organizacional, sua própria teoria implícita de organização, foi crucial para orientar suas ações.

--7--1.3. Abordagens diferentes: Caso B

Vamos examinar outro caso, um que ilustre de novo a conexão entre as teorias que as pessoas acalentam e as ações que elas empreendem, mas que também esclareça vários outros temas que são centrais ao estudo das organizações públicas. John Taylor e Carol

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Langley trabalhavam para uma organização local de desenvolvimento comunitário. Depois de uma reestruturação drástica do órgão, em que vários novos programas foram a ele incorporados, John foi convidado a supervisionar um novo programa de financiamento habitacional e Carol foi convidada para ser a assistente dele. O programa se destinava a oferecer empréstimos com juros baixos para ajudar as pessoas de algumas partes da cidade a reformarem suas casas. Embora John e Carol tivessem experiências em áreas afins, nenhum dos dois tinha familiaridade com este programa em particular. Para tornar as coisas ainda mais difíceis, fazia apenas alguns meses que haviam sido oferecidos alguns seminários para ajudar na implantação de programas como este. John e Carol apenas receberam um manual e a ordem de iniciar, imediatamente, a tarefa.

O programa envolvia várias atividades novas e exigia tempo considerável para começar a funcionar. Por exemplo, era preciso treinar novos inspetores habitacionais para coordenar as atividades do programa em harmonia com as ações realizadas pela prefeitura, e era necessário estabelecer relações com os vários órgãos que ofereciam informações sobre os requerentes dos empréstimos que estavam sendo processados.

John começou logo a receber grande pressão para concluir o processamento da primeira batelada de requerimentos dentro de um período bem curto de tempo. Para começar, o primeiro grupo de requerentes era composto por mais ou menos 40 pessoas que haviam se candidatado originariamente para outros programas, mas haviam sido preteridos. Como seus requerimentos já estavam há pelo menos um ano nos arquivos da repartição, eles estavam muito ansiosos para vê-los processados rapidamente. Visitas intempestivas e chamadas telefônicas de vários requerentes deixaram John bem consciente dos sentimentos deles. No entanto, John também sabia que este programa de empréstimo em particular teria impacto significativo na comunidade e que, consequentemente, seu eficiente desempenho, sob essas circunstâncias difíceis, seria importante para a repartição e, por sua vez, também para o seu próprio futuro no serviço público.

Carol reconhecia a necessidade de se fazer o trabalho o mais rapidamente possível, mas também sentia uma obrigação especial para com os próprios requerentes. Ela levou a sério o comentário de seu diretor de que a repartição poderia usar esta oportunidade para ajudar a ‘educar’ os candidatos aos empréstimos sobre os procedimentos envolvidos nos projetos. Ela achava que era muito importante fazer contatos periódicos com eles para deixá-los a par do que estava acontecendo, por exemplo, com as inspeções, as estimativas de custos, os montantes, as informações financeiras e os termos e condições dos empréstimos. Diferentemente de John, que gastava a maior parte de seu tempo no escritório, ela conversava com frequência com os requerentes, muitos dos quais conhecia pessoalmente em virtude de sua posição anterior na repartição.

John e Carol deviam montar uma pasta completa com informações sobre a posição financeira e o projeto de reforma de cada requerente. Esta pasta devia ser recebida e assinada pelo candidato e depois encaminhada ao escritório regional do ministério da habitação e desenvolvimento urbano do governo federal para processamento.

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John achava que o processo poderia ser completado mais rapidamente se Carol simplesmente conseguisse fazer com que os candidatos assinassem em branco um conjunto de formulários que ficariam guardados à disposição no escritório. Quando as informações sobre os empréstimos estivessem disponíveis, os itens correspondentes poderiam ser preenchidos nos formulários assinados, encurtando o tempo consumido com a revisão de cada formulário com o respectivo candidato a empréstimo. Este procedimento também eliminaria o processo muitas vezes longo de coordenar várias visitas do escritório aos requerentes para discutir papéis.

Quando John solicitou a Carol que obtivesse a assinatura dos requerentes nos formulários, ela recusou. Ela não somente achava que os candidatos deveriam ver e entender os papéis antes de assiná-los, como também temia que fosse ilegal solicitar às pessoas que assinassem formulários em branco. Quando conversou com o supervisor de John sobre a solicitação, ela foi informada que o procedimento não era ilegal e que até já havia sido usado anteriormente no escritório regional.

John e Carol, obviamente, tinham orientações diferentes em relação ao papel da administração pública na sociedade moderna. Da mesma forma, eles tinham entendimentos diferentes sobre como alguém poderia ser eficaz como administrador. Consequentemente, quando se depararam com esta situação em particular, eles imediatamente enquadraram as circunstâncias dadas em seus quadros administrativos de referência, e estes quadros referenciais se tornaram a base para suas ações. Enquanto John parecia acima de tudo interessado no cumprimento eficiente da tarefa que lhe havia sido confiada, Carol parecia mais preocupada em corresponder prontamente aos membros do grupo de requerentes e a ajudá-los a compreender o processo de empréstimo.

Como veremos, as questões que parecem colocar John e Carol em lados opostos não são incomuns; de fato, elas estão no coração da teoria da administração pública. Por um lado, os órgãos governamentais são instados a atingir a maior eficiência possível em sua prestação de serviços – eliminando a falsa burocracia (red tape) sempre que possível. Por outro, como se presume que as repartições públicas devem operar em prol do interesse público, elas devem corresponder às necessidades e aos desejos daqueles para quem e com quem trabalham. Além disso, poder-se-ia argumentar que os órgãos públicos têm a responsabilidade especial de contribuir para a educação dos cidadãos, no sentido de capacitá-los a lidar com os problemas sociais, por iniciativa própria e de modo mais eficaz.

Por um lado, as repartições governamentais são instadas a alcançar a máxima eficiência possível na prestação dos serviços. Por outro, elas precisam corresponder às necessidades e aos anseios daqueles para e com quem trabalham.

Este caso também enseja um comentário interessante sobre outra questão com que iremos nos deparar em nosso estudo das organizações públicas: Nossos pontos de vista influenciam consideravelmente o que vemos. Especificamente, as ações de uma pessoa muitas vezes parecem bem diferentes, quando vistas de dentro do que quando vistas de fora. Poderíamos, por exemplo, caracterizar as ações de John como auto-interesseiras, como se ele estivesse preocupado apenas em impressionar aqueles que poderiam vir a influenciar sua promoção futura; mas também, de forma mais benevolente, poderíamos

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caracterizar John como altamente preocupado com os clientes da repartição, ansioso por ajudá-los a obter suas aprovações de empréstimo o mais rapidamente possível, com o intento de --9-- amenizar suas dificuldades financeiras. O próprio John poderia descrever suas ações de uma maneira ou de outra, ou poderia falar de sua situação em termos totalmente diferentes. Por exemplo, ele poderia dizer que se sentia tremendamente pressionado, tanto por pessoas de dentro quanto de fora da organização, para terminar seu trabalho; por conseguinte, ele vivenciava toda esta situação, em especial o conflito com Carol, como uma fonte de angústia pessoal. Embora possamos descrever o comportamento dos indivíduos nas organizações de maneira assaz apressada, será muito mais difícil, porém, avaliar o que suas atividades de fato significam para eles. Mas as duas coisas são necessárias, ao procurarmos compreender as organizações públicas com inteligência e compaixão.

2. TEORIAS FORMAIS DE ORGANIZAÇÃO PÚBLICA

Mencionamos acima as várias fontes das quais derivamos o nosso entendimento das organizações públicas. Independentemente de tentarmos desenvolver, de forma consciente, nossas perspectivas, elas efetivamente se desenvolvem e nós somos guiados por elas. Se desejarmos refinar nossa habilidade de dar respostas, com mais inteligência e compaixão, às situações que enfrentamos enquanto membros ou usuários de organizações públicas, precisamos considerar com mais cuidado as teorias implícitas que sustentamos. Uma maneira de o fazer, evidentemente, é comparar nossas próprias teorias implícitas de organização pública com as teorias mais explícitas desenvolvidas pelos teóricos e profissionais, numa tentativa de compreender melhor o mundo organizacional em que vivemos. Podemos comparar as teorias formais de organização pública com as nossas próprias perspectivas, e daí fazer os ajustes ou refinamentos que nos tornariam capazes de entender de forma mais clara nossas próprias ações e as ações dos outros.

2.1. Por que estudar teorias formais?

Há, obviamente, vantagens em examinar as teorias formais. Muito embora aqueles que criam essas teorias entretenham essencialmente as mesmas questões que os outros que procuram ter uma melhor compreensão da vida organizacional, eles o fazem com muito mais cuidado, rigor e sofisticação. Não que eles sejam mais brilhantes ou mais perspicazes que os outros – eles simplesmente têm mais tempo para se dedicar a esse afazer. Visto que as teorias formais são desenvolvidas com mais diligência, elas refletem tanto uma variedade de tópicos mais ampla do que normalmente se poderia levar em conta quanto uma agenda que dá ênfase aos itens que parecem mais importantes. Por esta razão, as teorias formais fornecem um marco de referência contra o qual podemos medir nossas próprias abordagens à vida organizacional. Ao tentarmos aperfeiçoar nosso próprio entendimento, somos aconselhados a estudar de que modo os outros teóricos e profissionais procuraram construir suas próprias teorias. Ao fazê-lo, desenvolvemos uma idéia da gama de problemas que devemos levar em consideração, um quadro geral de questões que são intermitentemente debatidas (e entre as quais teremos que inevitavelmente escolher) e um senso de posicionamento pessoal em relação aos problemas centrais que enfrentam as pessoas envolvidas na administração pública.

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É claro que os teóricos divergem quanto à base teórica que serve para se entender as organizações públicas; entretanto, em um nível bem amplo, --10-- a maioria deles concorda que, em termos gerais, o propósito da teoria é oferecer uma compreensão mais coerente e integrada de nosso mundo do que conseguiríamos obter de outra forma. A teoria procura ir além da simples observação dos fatos ou da adesão cega a certos valores, tentando fornecer interpretações mais gerais. Ela não apenas reúne ou aglutina fatos, ela extrai conclusões deles; ela não apenas reconhece valores, ela os reordena. Dessa forma, as teorias acrescentam uma dimensão simbólica à nossa experiência. Uma teoria não é apenas um arranjo de fatos ou valores, mas uma reconstrução mental de como nos vemos e vemos o mundo à nossa volta. É uma maneira de dar sentido a uma situação. As teorias podem então ser avaliadas em termos de sua capacidade de nos ajudar a ver o nosso mundo com mais clareza e de agir nele com mais eficácia.

Como já vimos, os profissionais da administração têm que decidir sobre os tipos de conhecimento de que necessitam, como estes conhecimentos podem ser efetivamente aprendidos e como podem ser aplicados. Os teóricos têm que fazer o mesmo – eles devem se perguntar que tipos de conhecimento desejam produzir, como podem garantir que os resultados obtidos sejam completos e precisos e como o conhecimento recém-descoberto pode ser aplicado. Os teóricos têm que fazer algumas escolhas sobre o que estudar e como fazê-lo. E, tendo-as feito, eles e suas teorias tornam-se reféns delas.

Por esta razão, devemos cultivar certo ceticismo em relação às teorias da organização pública (e também em relação às outras teorias). Devemos ter consciência de que as teorias da organização pública, à semelhança das próprias organizações, são artefatos da atividade humana – construções particulares que podem ser mais ou menos convenientes a vários propósitos. Todas as teorias dão ênfase a algumas coisas e pouca ou nenhuma ênfase a outras; elas refletem, ou espelham, portanto, os compromissos mais amplos de uma determinada cultura. Por essa razão, na medida em que levamos em conta várias teorias, veremos a vida ‘refletida’, ou espelhada. Mas devemos saber que este ‘reflexo’ é imperfeito, já que é filtrado através das lentes da cultura geral e das escolhas específicas feitas pelo teórico. Consequentemente, as teorias podem às vezes esconder a realidade, e outras vezes projetá-la.

2.2. O papel dos modelos

Este fato pode ser ilustrado pela consideração dos papéis que exercem os modelos na transmissão do conhecimento. Os teóricos de administração pública muitas vezes falam de seu trabalho como se consistisse na tarefa de desenvolver modelos de organização ou modelos de administração. Neste sentido, a palavra modelo não significa uma forma ideal de organização ou tipo de administração, mas antes uma representação da vida real (neste caso, uma representação verbal). Poderíamos, por exemplo, pensar sobre organizações como se fossem semelhantes aos modelos das estruturas moleculares encontrados na física, com as bolas representando os vários escritórios e os filamentos de ligação representando as linhas de autoridade. De todo modo, os modelos desenvolvidos pelos teóricos das organizações públicas têm em comum algumas das características dos modelos em geral.

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Considere-se, por um momento, o modelo do carro. Este carro em miniatura tem por objetivo representar um carro real, em tamanho normal, completo. Ele tem a mesma forma geral do carro maior; tem pára-choques e janelas; e tem até rodas para girar e rolar. Nestes --11-- aspectos, o modelo do carro reflete muito bem a realidade. Mas, num sentido, o carro em miniatura é drasticamente diferente – ele tem motor de borracha, em vez de motor de combustão à gasolina. Neste aspecto, o modelo distorce a realidade, em vez de refleti-la, espelhá-la. No entanto, esta distorção foi intencional. O fabricante do modelo desejava ilustrar o fato de que o automóvel se desloca sobre o solo e pensou que era mais importante ilustrar este aspecto do desempenho do carro real do que representar com precisão o artifício pelo qual ele é movido. O modelo resultante é, pois, tanto um ‘reflexo’ preciso quanto uma distorção da realidade. Para que o modelo signifique alguma coisa para nós, temos que reconhecer o que é o quê.

Ao estudarmos as teorias da organização pública, portanto, devemos sempre estar conscientes das escolhas que os teóricos fizeram, ao construírem suas teorias, e das distorções a que essas teorias podem ter levado. Em termos de linguagem, devemos sempre nos perguntar o que se diz, o que se deixa de dizer e o que se deve dizer na sequência. Este último ponto é particularmente importante, porque, como se viu em discussão anterior, a teoria convida à ação. Assim, não devemos nos perguntar apenas como as teorias expressam quem somos e o que são nossas organizações, mas também em quem ou em que nós e nossas organizações poderíamos nos transformar.

3. CONSTRUÇÃO DE TEORIAS DE ORGANIZAÇÃO PÚBLICA

Voltemo-nos agora para as escolhas que os teóricos tiveram que fazer em relação à construção das teorias de organização pública. Em termos específicos, argumentamos aqui que as escolhas feitas pelos teóricos não são suficientes para o nosso entendimento da vida nas organizações públicas; mesmo assim, embora ainda não se tenha desenvolvido uma teoria da organização pública que seja completa e integrada, vários temas muito importantes e adequados a este estudo já foram explorados com grande detalhe. Além disso, agora se tornou possível, finalmente, reunir estes temas para cumprir a promessa da teoria da administração pública – ajudar a fazer sentido do nosso envolvimento nas organizações públicas e, por sua vez, melhorar a qualidade geral do serviço público.

Embora este argumento seja desenvolvido em todo o livro, cabe neste ponto rever algumas das formas pelas quais se viu a questão da construção da teoria da administração pública no passado e esboçar algumas formas pelas quais se poderia desenvolver uma abordagem mais integrada. Com respeito ao escopo da teoria da administração pública, pode-se identificar pelo menos três orientações. Em primeiro lugar, a administração pública foi vista como uma parte do processo governamental e, portanto, tendo afinidade com outros estudos de ciência política. De acordo com esta visão, a teoria da organização pública é simplesmente uma parte de uma teoria política mais ampla. Em segundo lugar, as organizações públicas foram vistas como se fossem praticamente iguais às organizações privadas. Por esta visão, a teoria da organização pública simplesmente constitui parte de uma teoria organizacional ampliada. Em terceiro lugar, argumentou-se que a administração

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pública é um campo profissional, muito semelhante ao direito ou à medicina, que se vale de várias perspectivas teóricas para produzir impactos práticos. Nesta visão, a teoria da organização pública é ao mesmo tempo inatingível e indesejável.

--12--3.1. Administração pública e governo

A visão de que a administração pública se distingue por sua relação com o processo de governo foi sustentada por muitos dos primeiros autores do campo e continua a atrair inúmeros seguidores. Deste ponto de vista, se reconhece que a burocracia pública não é apenas um braço do governo, mas que também exerce papel significativo no processo governamental. Diz-se que as organizações públicas afetam o desenvolvimento e a implementação das políticas públicas de várias maneiras e, por consequência, afetam a alocação de valores na sociedade. Se este for o caso, porém, estas organizações devem se sujeitar aos mesmos critérios de avaliação a que se submetem os outros atores que participam no processo político. Termos como liberdade, igualdade, justiça, responsividade e assim por diante são tão apropriadamente aplicáveis à burocracia pública quanto se aplicam ao executivo central, ao legislativo ou ao judiciário. Portanto, de acordo com esta visão, o corpo teórico mais adequado para informar as operações da burocracia é a teoria política, e as recomendações mais importantes que os teóricos políticos poderiam fazer são as que servem para orientar a formulação e implementação de políticas públicas.

Esta visão da organização pública como elemento central para o processo político foi sustentada por muitos dos primeiros teóricos, em especial pelo pessoal da ciência política. (Curiosamente, a relação entre os subcampos da administração pública e da teoria política é marcada por grande ambivalência. Embora tenham sido vistas muitas vezes como os pólos prático e filosófico da disciplina, a administração pública e a teoria política têm importantes heranças em comum que se baseiam em seu interesse por uma efetiva governança democrática). Apesar de essas raízes da administração pública na teoria política terem sido muitas vezes negligenciadas, mormente por conta de interesses técnicos mais imediatos, alguns teóricos mantiveram interesse pela teoria política das organizações públicas – um interesse que, conforme veremos mais adiante, está especialmente presente no ‘Novo Serviço Público’ (NSP) e em certos aspectos da ênfase recente em política pública. Esta questão se torna especialmente crítica na medida em que explorarmos a emergência da governança democrática em rede.

3.2. Administração pública e organizações privadas

Contrastando com esta posição, outros autores têm argumentado que o comportamento dos indivíduos dentro das organizações e o comportamento das próprias organizações são muito parecidos, independentemente do tipo de organização sob análise. Esta abordagem genérica à análise organizacional também atraiu muitos seguidores e de fato criou uma área de estudo interdisciplinar que se aproveita do trabalho nos campos da gestão de negócios, administração pública, sociologia organizacional, psicologia industrial e vários outros. Os proponentes desta perspectiva argumentam que os interesses básicos da gestão são os mesmos, quer se trate de administrar uma empresa privada ou um órgão público. Isto é, nos dois casos, o administrador terá que lidar com questões de poder e autoridade, com

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questões de comunicação e assim por diante. Se este fosse o caso, deveríamos esperar que as lições aprendidas num setor pudessem ser facilmente transferidas para o outro. Mais importante ainda é a idéia de que as lições aprendidas em um e outro contexto poderiam contribuir para uma teoria geral das organizações. Por exemplo, uma pesquisa sobre a motivação dos trabalhadores --13-- numa linha de montagem da indústria automobilística e sobre os efeitos de um novo padrão de incentivo no setor público poderia contribuir para oferecer uma explicação mais geral sobre a motivação dos empregados.

É típica a associação que se faz entre a visão de que se deve promover o estudo genérico da administração e a visão de que o interesse principal desse estudo deve ser a eficiência. Em parte, esse interesse vem da relação existente, no início, entre ciência e negócio, que claramente enfatizava o uso de princípios científicos para aumentar a produtividade do negócio. Logo esse interesse também se fez ouvir no setor público; de fato, em um artigo que é frequentemente citado como o marco inaugural do campo da administração pública, o futuro presidente Woodrow Wilson (1887) argumentou que este estudo poderia permitir lograr os mesmos ganhos de eficiência produzidos no setor privado. De todo modo, este ponto de vista, propondo que o estudo genérico das organizações se estruture em torno do interesse de tornar as organizações mais eficientes, continua a ser importante, e talvez até predominante, entre os estudiosos da administração pública.

3.3. Administração pública como profissão

Finalmente, existe a visão de que se pode compreender melhor a administração pública se a virmos como uma profissão, semelhante ao direito ou à medicina, que se fundamenta em múltiplas perspectivas teóricas. Dwight Waldo, um dos mais respeitados teóricos de administração pública (1975, p. 223-24), foi especialmente eloquente em promover este ponto de vista, traçando uma analogia com o campo da medicina: “Não existe uma teoria única, unificada, de doença ou de saúde; as teorias e as tecnologias que nelas se baseiam estão mudando constantemente; há muita coisa desconhecida; há controvérsias acirradas sobre questões médicas de importância vital; o elemento de ‘arte’ continua a ser expressivo e importante. Sob escrutínio rigoroso, a ‘saúde’ se mostra tão indefinível quanto a ‘boa administração’.” Entretanto, apesar da aparente falta de coerência, as escolas de medicina se propõem a formar profissionais no campo da medicina e o fazem recorrendo a perspectivas teóricas de um sem número de disciplinas distintas. De maneira semelhante, poder-se-ia argumentar que a formação para as carreiras na administração pública deveria seguir uma estratégia equivalente, porém menos preocupada com o fundamento disciplinar de certas idéias e técnicas do que com a sua aplicabilidade aos problemas que os administradores efetivamente enfrentam na realidade. Já que nenhuma disciplina isolada pode atualmente prover o tipo de conhecimento necessário aos administradores no setor público, poderíamos esperar que todas as disciplinas contribuíssem com o que pudessem.

Infelizmente, esta visão da administração pública como profissão – talvez até mais do que as outras visões apresentadas aqui – impede a possibilidade de uma teoria cabal e integrada de organizações públicas bem como a possibilidade de que a teoria venha a satisfazer plenamente os interesses e preocupações dos profissionais. A afirmação de que os administradores públicos devam se valer apenas das perspectivas teóricas desenvolvidas

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no contexto de uma disciplina acadêmica tradicional como a análise organizacional ou a ciência política significa dizer que os administradores públicos devem depender da orientação de teorias não diretamente calibradas aos seus interesses. Pela ótica do administrador, a teoria política continua incompleta, porque deixa de fora os interesses essenciais da gestão; de maneira semelhante, --14-- a análise organizacional é incompleta, pois não contempla a preocupação com a responsabilidade democrática. De qualquer maneira, o administrador fica com o problema teórico de reconciliar as duas perspectivas, uma tarefa que nem os mais talentosos teóricos conseguiram ainda realizar.

4. FOCO EM ORGANIZAÇÕES COMPLEXAS

Antes que se possa continuar o exame do escopo das teorias de organização pública, importa observar duas outras tendências, na teoria da administração pública, que limitaram a extensão das questões tratadas no campo. Em primeiro lugar, em sua maioria, mas certamente não todos, os teóricos de administração pública privilegiaram, em seus estudos, principalmente, as organizações grandes e complexas. Assim, as definições dadas ao termo organização giraram em torno de características muito claramente associadas às estruturas burocráticas tradicionais. Afirma-se que as organizações são grupos de pessoas que se reúnem para realizar determinado propósito; segundo esta visão, as organizações conduzem as atividades de muitos indivíduos com vistas à realização de algum objetivo. Além disso, a condução dessas atividades se dá por meio de uma série de relações de autoridade entre superiores e subordinados. Nessas relações, é típico que a autoridade flua, de forma predominante, de cima para baixo. As organizações burocráticas são também definidas por sua estrutura, ou hierarquia, o que decorre da divisão do trabalho e da explicitação das relações de autoridade (de forma tal que cada pessoa tenha apenas um chefe).

Embora a maioria das definições de organização elaboradas pelos estudiosos de organizações grandes e complexas envolva alguma combinação desses elementos, é possível definir a organização de uma maneira mais flexível e menos rígida. Por exemplo, Barnard (1948, p. 73) descreveu a organização como “um sistema de atividades ou forças conscientemente coordenadas, formado por duas ou mais pessoas”. Observe-se que a definição de Barnard não só amplia o tamanho dos grupos que poderíamos considerar como organizações, mas também sugere que se ponha em foco atividades coordenadas em vez de mecanismos formais. Embora a maior parte das teorias revistas neste livro se concentre sobre organizações grandes e complexas, a extensa gama de órgãos públicos sugere que permaneçamos abertos a uma definição menos restritiva de nosso objeto. Além disso, devemos estar conscientes de que, se tomarmos os atributos das grandes estruturas burocráticas para definir as características das organizações públicas, poderemos, inconscientemente, estar perpetrando a continuação dessas estruturas. Se os profissionais e os teóricos da administração pública decidirem estudar somente as organizações burocráticas, será muito menos provável que eles considerem formas alternativas de organização. Na verdade, talvez se sintam inclinados a tentar ajustar as outras organizações a esse modelo. (Como veremos mais adiante, há uma grande vantagem em sermos mais flexíveis em relação a essa questão).

4.1. Administração pública, sinônimo de Administração governamental

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Em segundo lugar, em sua maioria, mas, de novo, não todos, os teóricos de administração pública equipararam, ou confundiram, em grande parte, a administração pública com a administração governamental – isto é, com a realização dos mandatos de governo. Os estudiosos da administração pública --15-- têm se concentrado nas organizações que fazem formalmente parte do governo: departamentos, conselhos, diretorias e comissões de nível local, estadual e federal. Paul Appleby (1945, cap. 1) argumentou que já que o “governo é diferente” da empresa privada, a administração pública é diferente da gestão de negócios. Com certeza, há razões para se pensar que o campo da administração pública pode ser diferenciado de outros campos, semelhantes a ele, mas deve-se isso ao fato de estar ele simplesmente associado a governo? Quando os integrantes dos órgãos de governo são indagados sobre o que torna distinto seu trabalho, eles tendem a distinguir claramente a sua percepção sobre seu próprio trabalho de sua percepção sobre o trabalho na empresa privada. Por exemplo, eles observam que os órgãos governamentais estão tipicamente mais interessados em serviços do que em produção ou lucro. Por consequência, argumentam que os propósitos dos órgãos de governo são, consideravelmente, mais ambíguos do que os do empreendimento privado e são em geral enunciados em termos de serviço, e não de lucro ou de produção. Eles argumentam que, com metas mais difíceis de serem mensuradas, os órgãos de governo são inerentemente limitados em relação ao grau de eficiência que podem alcançar. Além disso, os profissionais assinalam que o processo da tomada de decisão nos órgãos públicos é pluralístico, e que não só os funcionários das repartições precisam estar atentos a outros fatores do ambiente, mas também que sua capacidade de agir pode, com efeito, ser subtraída ou impedida por decisões tomadas em outras instâncias do sistema de governança. A exigência de que o governo e seus órgãos correspondam aos interesses da cidadania coloca restrições óbvias, embora certamente corretas, ao processo de tomada de decisão. Finalmente, os profissionais observam que suas ações ocorrem muito mais à vista do público do que as ações de seus colegas no setor privado. Como diz o velho ditado, os administradores públicos estão expostos na vitrine, tendo cada um de seus movimentos sujeito ao escrutínio de um público muitas vezes crítico.

Para muitos administradores, essas oportunidades e restrições colocam de fato a administração pública num mundo à parte. Entretanto, há sinais de que estas características não resultam simplesmente do fato de o governo estar envolvido. Poder-se-ia, certamente, argumentar que sistemas políticos menos democráticos talvez sejam mais precisos em seus objetivos, menos pluralísticos em seus processos de tomada de decisão e mais negligentes em termos de abertura ou accountability. Pode-se muito bem imaginar sistemas totalitários com atividades administrativas que aparentemente não têm quaisquer dessas características distintivas. Além disso, muitas assim-chamadas ‘empresas privadas’ estão hoje cada vez mais se lançando na arena pública em decorrência de um processo de governança e estão achando necessário modificar suas práticas tradicionais de gestão. Muitas organizações privadas e semipúblicas estão se voltando cada vez mais para objetivos de serviço. Elas realizam seus esforços com uma preocupação crescente pelo impacto de fatores ambientais incertos e suas operações estão sujeitas ao diligente e zeloso escrutínio tanto do governo quanto do público.

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Este desenvolvimento sugere não que o governo e os negócios estão se tornando cada vez mais parecidos – embora talvez até estejam – mas que o grau de democratização com o qual a organização está comprometida determina o caráter ‘público’ de seus processos de gestão. As organizações que estão comprometidas com um processo aberto e público na formação e execução de suas políticas irão encontrar as oportunidades e restrições especiais que associamos a organizações públicas.

--16--5. REDEFINIÇÃO DO CAMPO

Argumentamos aqui que podemos de fato chegar a uma teoria da organização pública mediante uma redefinição do campo. Para superar as restrições das definições anteriores, é necessário que a abordagem alternativa contenha as seguintes características: ela deve tornar claras as perspectivas das abordagens anteriores ao campo – políticas, genéricas e profissionais; ela deve identificar a administração pública mais como um processo do que como algo que ocorre dentro de um tipo particular de estrutura (por exemplo, hierarquia); e ela deve antes enfatizar a natureza pública deste processo do que sua ligação com sistemas formais de governo. Esta alternativa será esboçada mais adiante; mas antes disso é preciso desenvolver uma definição do campo, para que a partir dela se possa construir a alternativa imaginada.

A teoria política democrática, como é tipicamente descrita, preocupa-se com a forma como as instituições públicas promovem os valores societários que foram definidos e aplicados com elevado grau de envolvimento dos cidadãos e com elevado nível de responsividade aos interesses e necessidades da cidadania. Portanto, a teoria democrática enfoca questões como liberdade, justiça e igualdade. As teorias organizacionais, por outra parte, estão interessadas no modo como os indivíduos podem administrar processos de mudança em proveito próprio ou das empresas, especialmente em sistemas grandes e complexos. Essas teorias enfocam questões como poder e autoridade, liderança e motivação e a dinâmica de grupos em ação.

Ao juntarmos essas duas perspectivas, argumentaremos, neste livro, que a administração pública está interessada na gestão de processos de mudança que visem lograr valores societários publicamente definidos. Esta definição do campo sugere que a administração pública é mais que simplesmente uma conjunção de várias outras abordagens para o estudo e a prática – que ela contém uma coerência essencial e, na verdade, diferenciada do objeto. Sendo este o caso, nossa nova definição permite haver teorias de administração pública em vez de apenas teorias relacionadas com administração pública. Na medida em que conseguirmos definir nosso objeto de forma distintiva, seremos capazes de enfocar o desenvolvimento de uma teoria coerente e integrada de organização pública, de uma teoria que se coaduna com as tendências emergentes no processo de governança. Além disso, na medida em que nossa definição corresponda à prática, ela com certeza terá uma relevância consideravelmente maior para quem atua no campo do que tiveram as teorias propostas anteriormente. Na verdade, ela reconhecerá a importunante complexidade que caracteriza o trabalho do gestor público.

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A administração pública se interessa pela gestão dos processos de mudança que visem lograr os valores societários publicamente definidos.

Essa visão do gestor público sugere um indivíduo sensível ao impacto das relações interpessoais e estruturais no desenvolvimento de padrões estáveis ou instáveis de organizações – alguém capaz de reconhecer e responder às sutilezas dos processos de mudança organizacionais. Ela também reconhece que --17-- o gestor público exerce uma relação especial no design e na implementação de valores societários – uma relação que provê uma base ética para a gestão pública. “O gestor vive na junção entre o mundo político e o mundo administrativo e, portanto, não é um ator independente nem apenas um instrumento do sistema político. Nesta situação singular, o gestor aceita, interpreta e influencia os valores que guiam a aplicação de habilidades e conhecimento” (DENHARDT & NALBANDIAN, 1980).

Na medida em que examinamos várias abordagens para compreender a vida nas organizações públicas, nossa definição de administração pública – isto é, a gestão de processos de mudança que visem lograr valores societários publicamente definidos – deve-se tornar mais clara. Entretanto, importa reconhecer que esta definição apenas permite, mas não garante, o desenvolvimento de uma teoria cabal de organização pública. A produção dessa teoria e a discriminação de suas implicações para a prática administrativa irão exigir o exame e a reconciliação de muitos pontos de vista diversos. O desenvolvimento de uma teoria de organização pública enquanto tal constitui uma tarefa importante e difícil, não só para os teóricos, mas também para os profissionais.

6. CONCLUSÃO

Com estas considerações em mente, podemos nos voltar agora para algumas das forças que deram forma à nossa compreensão do papel das organizações públicas na sociedade moderna. Como vimos, todos nós construímos teorias implícitas que guiam nossas ações nas organizações públicas. Uma maneira de dar foco mais claro a nossas próprias teorias e aperfeiçoar sua eficácia como guias para ação é estudar as teorias mais formais de administração pública. Dessa forma, teremos condições de testar nossas teorias pessoais, comparando-as com as de outros, e de considerar com mais cuidado como nossas teorias podem nos servir enquanto membros ou usuários de organizações públicas.

Todos nós construímos teorias implícitas que guiam nossas ações em organizações públicas.

Nos vários capítulos que se seguem, examinaremos como os teóricos e profissionais da administração pública procuraram desenvolver perspectivas mais formais de gestão pública. O propósito não é apenas apresentar um panorama histórico do desenvolvimento da teoria de administração pública, mas antes examinar as idéias que poderiam ser de extrema valia para a eventual construção de uma teoria cabal e integrada de organização pública. Embora se reconheça a contribuição de disciplinas como ciência política e análise organizacional, o foco é dirigido às obras dos teóricos que, de forma consciente, enfatizaram o estudo das organizações públicas e, ao fazê-lo, formaram a base para o moderno estudo da administração pública.

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Nossa discussão começa com uma consideração sobre o amplo significado que o estudo das organizações públicas tem para os indivíduos na sociedade moderna. Como ficou claro nas discussões --18-- deste capítulo, a construção de uma teoria de organização pública não é simplesmente uma questão de acumular um conjunto de técnicas aplicáveis a situações particulares. Falar sobre o sentido de nossas experiências ou do impacto que estas experiências têm sobre os valores da sociedade significa começar um estudo bem mais complexo – um esforço que sugere que estejamos atentos, não somente às questões empíricas associadas à gestão da mudança em sistemas complexos, mas também aos contextos social, político e ético mais amplos que envolvem a administração pública.

7. QUESTÕES PARA DEBATE

1. Que estratégias você poderia empregar para aprender algo sobre organizações públicas numa sociedade democrática?

2. Que perguntas você poderia fazer para aprender alguma coisa dos estudos de caso ou das experiências de outras pessoas?

3. Qual é o papel da teoria formal para o aprendizado sobre organizações formais e governança democrática?

4. Em que termos o trabalho em organizações públicas é diferente do trabalho no setor privado?

5. Como as definições de administração pública poderiam variar – e que diferença fariam essas mudanças no modo pelo qual entendemos o trabalho nas organizações públicas?

8. CASOS

6. Yolanda e Margery estão iniciando seus programas de mestrado em administração pública. As duas decidiram fazer carreira no serviço público, mas Yolanda já está trabalhando num órgão do governo há mais de cinco anos e Margery mal concluiu seu curso de graduação. Em que sentido são diferentes as experiências que as duas trarão para seus estudos? O que cada uma delas pode aprender da outra?

7. Ed Hill está trabalhando num programa de treinamento no governo do Estado, tentando retreinar trabalhadores demitidos de uma fábrica que faliu numa comunidade de tamanho médio do interior. Com que diferentes tipos de organizações de natureza pública, privada e sem fins lucrativos poderia ele lidar com vistas a garimpar novas oportunidades de emprego aos participantes de seu programa de treinamento? De que maneira os integrantes desses grupos poderiam trabalhar juntos da forma mais eficaz?

--19--9. REFERÊNCIAS E LEITURAS ADICIONAIS

APPLEBY, Paul. Big democracy. New York: Knopf, 1945. APPLEBY, Paul. O governo é diferente. In: WALDO, Dwight (org.). Problemas e aspectos

da administração pública. São Paulo, SP: Pioneira/Usaid, 1966. p. 72-81.

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BARNARD, Chester. The functions of the executive. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1948.

BARNARD, Chester I. As funções do executivo. São Paulo: Atlas, 1979.DENHARDT, Robert B. & NALBANDIAN, John. Teaching public administration as a

vocation. Paper apresentado no encontro anual da American Society for Public Administration, 1980.

WALDO, Dwight. The study of public administration. New York: Doubleday, 1955.WALDO, Dwight. O estudo da administração. 2ª.ed. Rio: FGV, 1971.WALDO, Dwight. Education in the seventies. In: MOSHER, Frederick C. (org.). American

public administration, pp. 181-232. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 1975.WILSON, Woodrow. The study of administration. Political Science Quarterly, vol.2, p.197-

222, Junho 1887. WILSON, Woodrow. O estudo da administração. In: WALDO, Dwight (org.). Problemas e

aspectos da administração pública. São Paulo: Pioneira/Usaid, 1966. p. 83-97.

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