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VIRTUDES, CARÁTER E RESPONSABILIDADE Denis Coitinho Universidade do Vale do Rio dos Sinos/CNPq Resumo: Meu objetivo central nesse artigo é pr ocurar refletir sobre uma concepção específica de responsabilidade moral que pode ser derivada de uma ética das virtudes que tem como foco central da av aliação moral os traços de c aráter do age nte. Para tal, eu ressaltarei inicialmente algumas características centrais do modelo da ética das virtudes em contraposição aos modelos deontológico e consequencialista. Posteriormente, ressaltarei o aspecto internalista da ética das virtudes, com destaque para as características de motivação e deliberação. Por fim, id entificarei e probl ematizarei sobre um ti po de responsabilidade moral abrangente que estaria pressuposta nesse modelo ético. Palavras-chave: Virtudes, caráter, responsabilidade moral. Abstract: My main aim in this paper is to try to r eflect on a particular conception of moral responsibility that may derive from a v irtue ethics that has as its central focus of mo ral evaluation the character traits of the agent. To do this, I first will highlight some key features of the model of virtue ethics as opposed to deontological and consequentialist models. Later, I will highlight the internalist aspect of v irtue ethics, highlighting the characteristics of motivation and deliberation. Finally, I will identify and problematize about a c omprehensive type of moral responsibility that would be assumed in this ethical model. Keywords: virtues, character, moral responsibility. I O que faz uma ação ser considerada como correta ou errada? Seria em razão de sua adequação com alguma regra de correção universal ou mesmo em razão de suas boas consequências? Veja-se que os modelos éticos deontológico e consequencialista oferecem esse tipo de resposta ao problema, © Dissertatio [39] 121 – 142 inverno de 2014

Denis Coitinho Virtudes, Caráter e Responsabilidade

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  • VIRTUDES, CARTER E RESPONSABILIDADE

    Denis Coitinho Universidade do Vale do Rio dos Sinos/CNPq

    Resumo: Meu objetivo central nesse artigo pr ocurar refletir sobre uma concepo especfica de responsabilidade moral que pode ser derivada de uma tica das virtudes que tem como foco central da av aliao moral os traos de c arter do age nte. Para tal, eu ressaltarei inicialmente algumas caractersticas centrais do modelo da tica das virtudes em contraposio aos modelos deontolgico e consequencialista. Posteriormente, ressaltarei o aspecto internalista da tica das virtudes, com destaque para as caractersticas de motivao e deliberao. Por fim, id entificarei e probl ematizarei sobre um ti po de responsabilidade moral abrangente que estaria pressuposta nesse modelo tico. Palavras-chave: Virtudes, carter, responsabilidade moral. Abstract: My main aim in this paper is to try to r eflect on a particular conception of moral responsibility that may derive from a v irtue ethics that has as its central focus of mo ral evaluation the character traits of the agent. To do this, I first will highlight some key features of the model of virtue ethics as opposed to deontological and consequentialist models. Later, I will highlight the internalist aspect of v irtue ethics, highlighting the characteristics of motivation and deliberation. Finally, I will identify and problematize about a c omprehensive type of moral responsibility that would be assumed in this ethical model. Keywords: virtues, character, moral responsibility.

    I O que faz uma ao ser considerada como correta ou errada? Seria em

    razo de sua adequao com alguma regra de correo universal ou mesmo em razo de suas boas consequncias? Veja-se que os modelos ticos deontolgico e consequencialista oferecem esse tipo de resposta ao problema,

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    com o acrscimo que a regra universal de correo ser conhecida pela racionalidade e as melhores consequncias explicadas em termos de maximizao do bem-estar. Mas, isso ainda poderia ser considerado como uma avaliao moral, uma vez que tanto as regras como as consequncias estariam desconectadas da vontade do agente, sendo inteiramente exteriores estrutura motivacional e deliberativa do sujeito moral? Assim, uma ao de solidariedade aos desabrigados pelas fortes chuvas e alagamento, por exemplo, como as que acorreram na cidade de Esteio/RS, na primavera de 2013, poderia ser realizada apenas pelo dever universal de caridade ou mesmo em razo da expectativa em alcanar a estabilidade (segurana) social. Mas se o agente no agir por um desejo interno de ser solidrio, no se perderia todo o valor moral do ato? Outra questo relevante seria a de saber que tipo de dever teramos aqui? Uma obrigao externalista realmente obrigaria a ao do sujeito? De que forma ele seria responsvel pelo ato?1

    Isso j parece demonstrar uma importante vantagem do modelo da tica das virtudes, a saber, a de no precisar contar com uma regra ou conjunto de regras externas ao agente para garantir a correo (ou virtude) da ao, nem mesmo considerar apenas as consequncias dos atos na avaliao moral. E isso se deve porque o modelo moral das virtudes tem como base a prpria disposio do agente, bem como sua deliberao, para a determinao do que contar como uma ao correta. Para saber se um ato correto, no se olhar para um princpio universal, como o da utilidade ou da universalizabilidade, a fim de verificar a correspondncia do juzo com a regra. Antes, o prprio carter do agente que contar como critrio de validao, lembrando, claro, que o carter do agente formado por atos repetitivos que se tornam hbitos.2 Assim, a tica das virtudes parece se

    1 Bernard Wi lliams destaca claramente que os modelos morais tais co mo o kantismo e o utili tarismo compreendem erroneamente as obrigaes morais, uma vez que no destacam as razes internas que o sujeito teria em fazer uma certa ao. No lim ite, o que Wi lliams parece afi rmar que a mo ralidade (instituio peculiar) no obriga realmente o sujeito a agir, pois a ideia de obrigao ou razo moral para agir estaria desconectada internamente da motivao do agente. Por isso, a alternativa parece ser a da reflexividade tica, tomando com o ponto de part ida as prprias experincias ticas. Ver: WILLIAMS, 1985, p. 174-196. Sobre a questo de razes internas e externas ver, tambm, WILLIAMS, 1981, p. 101-113. 2 Quero ressaltar que no estou defendendo que aja uma prevalncia e anterioridade das disposies frente s aes. Antes, pelo contrrio, necessrio que se pratiquem aes repetidas para formar uma disposio de agir de certa maneira. A isso chama-se hbito, o que implicar na formao do carter do agente. Mais especificamente, creio que aja uma rela o de complementaridade entre as disposies e

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    constituir das seguintes premissas: (i) Um ato tal correto se e somente se ele for realizado por um agente virtuoso, em determinadas circunstncias. Por sua vez, (ii) um agente virtuoso aquele que age virtuosamente. E, para alm dessa circularidade, pode-se apontar que o (iii) agente virtuoso aquele que busca um fim bom, isto , a eudaimona, e delibera adequadamente sobre os meios. Dessa forma, teramos a seguinte frmula:

    Um ato X correto sse ele for realizado por um agente virtuoso A, em circunstncias C, sendo um agente virtuoso quele que age virtuosamente, o que implica buscar um fim bom, isto , a eudaimona, e deliberar adequadamente sobre os meios.3

    Essa frmula j parece apontar para algumas das questes centrais da tica das virtudes, questes essas que estariam ligadas com a disposio de carter do sujeito para a identificao do fim bom, bem como com seu raciocnio deliberativo para a determinao dos meios adequados. Tambm, o ponto de partida seria, ento, no a pergunta de como se deve agir, mas uma pergunta anterior e crucial de como se deve viver, que seria uma condio de possiblidade da correo da ao dada atravs da noo de pessoa virtuosa.4 Isso quer dizer que a resposta para a questo moral no se daria pela aplicao de uma regra universal ao caso particular, mas se daria com um postulado de um certo tipo de conhecimento particular necessrio

    as aes. Essa uma outra maneira de defender a tese da precedncia e prevalncia das aes sobre s disposies. A esse respeito, ver a seminal introduo ao tratado da virtude moral de Aristteles, de Marco Zingano, onde ele aborda a tese da precedncia e prevalncia das aes sobre s disposies em Aristteles. Ver: ZINGANO, 2008, p. 30-31. 3 Rosalind Hursthouse apresenta uma distino entre os trs modelos ticos mais conhecidos, a saber: modelo deontolgico, consequencialista e mod elo das virtudes. Apresenta o modelo da teoria das virtudes da seguinte maneira: P.1. Uma ao corre ta sse ela for o que um agent e virtuoso faria em determinadas circunstncias. P.1a. Um agente virtuoso aquele que age virtuosamente, isto , aquele que tem e exercita as virtudes. P.2. Uma virtude um trao de carter que um ser humano precisa para florescer ou viv er bem. Note-se como essas premissas estabelecem uma conexo conceitual entre virtude e f lorescimento ou eudaimona. O import ante nessa dist ino dos t rs modelos notar que o agente virtuoso substitui a regra moral no modelo deontolgico e as melhores consequncias no modelo consequencialista. Com isso, se ident ifica uma import ante caracterstica internalista, uma vez qu e o critrio para a correo da ao o prp rio agente moral a partir de sua vontade em ser de certa forma. Veja-se que nos modelos deontolgico e consequencialista o critrio para a correo da ao sempre externo vontade do agente. Ver: HURSTHOUSE, 1991, p. 223-226. 4 Para saber como s e deve viver, necessrio fazer a seguinte pergunta: o que o bem para o s er humano? A resposta de Aristteles a esse questionamento a base desse modelo da tica das virtudes: O bem para o ser humano a felicidade, isto , a eudaimona, que uma atividade da alma conforme a virtude: Uma vez que a f elicidade um certo tipo de at ividade da alma de acordo com a virt ude completa-perfeita, devemos examinar o que a virtude. (EN I, 13, 1102 a 5-6).

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    ao agente virtuoso para distinguir corretamente o que deve ser feito no caso especfico.5

    Aps essa caracterizao introdutria do modelo da tica das virtudes, creio ser necessrio um maior esclarecimento do significado da palavra virtude, para, posteriormente, especificar as caractersticas de disposio, deliberao e responsabilidade. Vejamos como Aristteles define virtude:

    A virtude (aret) uma disposio (hxis) para a escolha deliberada (prohairetik) consistindo numa mediedade (mestti) relativa a ns (prs hms), a qual determinada por uma razo (lg) prpria do homem dotado de sabedoria prtica (phrnimos). (EN II, 6, 1106 b 35 - 1107 a 4).

    Interpretando essa definio, temos que a virtude entendida como uma disposio de carter para uma escolha deliberada que consistir em uma mediedade entre dois extremos. Ela pode ser entendida como um trao de carter permanente manifestado nas aes habituais, que algo bom para a pessoa possuir, como, por exemplo, coragem, moderao, justia, prudncia, autoconfiana, amizade, solidariedade, cooperao, cortesia, benevolncia, lealdade, pacincia, confiana, respeito, tolerncia. Por exemplo, a coragem um meio-termo entre a temeridade (no ter medo de nada) e a covardia (ter medo de tudo), implicando em uma disposio para controlar os temores. Por sua vez, a generosidade uma disposio em gastar seus prprios recursos para ajudar aos outros, sendo uma mediedade entre a mesquinharia (no gastar nada) e a extravagncia (gastar demasiado).

    Mas por que seriam elas desejveis? Porque seriam qualidades necessrias para uma vida humana bem-sucedida, tendo seu valor dado principalmente de forma social. Por exemplo, necessrio saber enfrentar os perigos que ameaam os indivduos e, assim, a coragem desejvel. Todos precisam ser corajosos e no apenas os soldados, uma vez que a vida social oferece uma srie de perigos que precisam ser enfrentados pelos cidados.

    5 John Mcdowell faz uma interpretao desse tipo ao propor uma inverso da reflexo em filosofia moral, tomando como questo central o com o se deve viver, questo que ser abordada via conceito de pessoa virtuosa. Para Mcdowell, a resposta no ser encontrada ao apelar para regras universais, mas sendo um certo tipo de pessoa: aquela pessoa que v as situaes de forma distinta, percebendo as salincias do caso particular de forma internalista (elemento apetitivo) e no por um mot ivo externo vontade do indivduo. Ver: McDOWELL, 1979, p. 331-336; 347-348.

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    Sem a coragem, possivelmente nem sairamos de casa para trabalhar, estudar, ou mesmo ir ao cinema e isso em razo do medo da violncia crescente ou mesmo do temor irracionalidade do trnsito. Da mesma forma, desejvel a generosidade porque h situaes em que as pessoas precisam de ajuda, bem como a honestidade fundamental para estabelecer a confiana entre os cidados. Sem a generosidade e a honestidade, por exemplo, dificilmente se teria uma estabilidade social intrnseca. O ponto central aqui que para se ter uma vida bem sucedida ser necessrio possuir determinadas qualidades morais. De uma forma bem especfica, as virtudes so padres morais sociais, isto , elas so tomadas como traos permanentes de carter que possuem valor positivo para uma vida social e, tambm, individual, claro.

    Retomando o que j se disse no incio do texto, uma grande vantagem do modelo tico das virtudes fornecer uma concepo adequada de motivao moral. Lembremos do conhecido exemplo dado por Michael Stocker: Smith nos visita em um hospital por dever, isto , por pura obrigao moral de ser caridoso ou benevolente. Do nosso ponto de vista, isto , do ponto de vista de algum que est se recuperando de uma doena no hospital, essa visita no perderia todo o seu valor? Parece que sim e a razo para tal que ns no gostaramos de viver sem amizade, tendo as relaes governadas apenas por deveres e no pelos afetos (STOCKER, 1976, p. 462).6 Veja que o que est em jogo no apenas o julgamento sobre a correo da ao, mas, principalmente, sobre se os sentimentos so apropriados7. Por isso, Marta Nussbaum fala acertadamente que uma pessoa virtuosa no s age apropriadamente, mas ela tambm experencia os

    6 Stocker defende que a esquizofrenia da teoria moral moderna se rev ela na separao entre motivos e razes, usando conceitos de dever, correo, obrigatoriedade sem estarem relacionados aos mot ivos em primeira pessoa do agent e. Por iss o, o agent e faz uma ao por dever e no porque ele qu er internamente e, isso, no possui um valor moral relevante. Ele dir que o que faz essa co nexo entre motivos e razes ser a considerao do outro no juzo moral de forma internalista e, assim, teramos o amado, o amigo, o companheiro para ser considerado na avaliao. Ver: STOCKER, 1976, p. 453-455; 462. 7 No liv ro The Childhood of Jesus, de Coetzee, h um interessante exemplo a esse respeito, havendo uma contraposio entre, de um lado, os desejos, vnculos afetivos, sentimentos, intuies e, de outro, os princpios universais de benevolncia e imparcialidade. O personagem Simn, ao chegar em Novilla, a cidade em que b usca refgio, sente-se deslocado e des confortvel com a at itude dos colegas e conhecidos. Os atos das pessoas so totalmente regulados pela boa vontade, sendo o afeto substitudo por regras. Nessa cidade as relaes so governadas por princpios universais e no por sentimentos e apetites. O problema que para Simn isso insuf iciente para uma vida boa, uma vez que a est rutura motivacional interna estaria ausente das relaes de amizade e amor. Ver: COETZEE, 2013, chap. 8.

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    sentimentos apropriados (NUSSBAUM, 2001, p. xvi-xviii). Dessa forma, se olha mais detidamente para os motivos da ao e no exclusivamente para as aes mesmas, de forma que um ato s poder ser considerado bom se a inteno for igualmente boa. E isso assim porque se poderia agir corretamente pelos motivos errados, como em um ato solidrio em vista de uma promoo no emprego ou para tornar o perfil do facebook mais interessante, ou como no exemplo dado por Stocker, em um ato caridoso em razo de alguma crena crist ou comunista de obrigao de benevolncia. O ato com certeza correto, mas no virtuoso. O que parece constituir esse gap entre ato correto e virtuoso a excelncia da vontade. Assim, no preciso uma obrigao externa para algum ser virtuoso, uma vez que o prprio agente que julga e exige a realizao da ao por motivos internos.

    Dito isto (I), no restante desse texto procurarei apresentar duas vantagens do modelo tico das virtudes e uma limitao especfica. Veremos que ela apresenta uma concepo adequada de (II) motivao e (III) deliberao moral e, tambm, (IV) uma ligao estreita entre carter virtuoso e responsabilidade moral. Entretanto, tambm apontaremos que (V) essa concepo de responsabilidade parece ser uma exigncia demasiada ao agente moral.

    II

    Deixem-me comear pela caracterstica da motivao internalista para uma melhor compreenso do escopo de uma tica das virtudes. Nesse modelo tico, o que constitui prioritariamente o valor moral da ao a estrutura motivacional do agente em primeira pessoa e no a simples adequao da regra ao caso ou a considerao das melhores consequncias.8 Isso parece indicar duas caractersticas importantes que procurarei detalhar

    8 Essa t ese central para a propost a de tica das virt udes baseada no ag ente (agent-based virtues ethics) defendida por Michael Slote. Nessa concepo, os motivos so a base para avaliar moralmente as aes. Com isso, se possibilita estabelecer a distino entre fazer a coisa certa e fazer a coisa certa por razes corretas e isso significa que o valor moral da ao se dar de forma internalista, uma vez que o ponto central da moralidade no estar nas consequncias das aes, mas no estado motivacional do agente ao realizar a ao. Ver: SLOTE, 1997, p. 241-242. Quero ressaltar que no estou subscrevendo a radical distino feita por Slote entre uma tica das virtudes baseada no agente (agent-based) e outra que estaria focada no agent e (agent-focused), como o modelo arist otlico das virtudes. No meu entender, h mais semelhanas que distines entre os dois modelos. Sobre essa distino, ver: SLOTE, 1997, p. 239-241.

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    no decorrer da seo, a saber: (i) a pluridirecionalidade entre disposies-aes e normas e (ii) a excelncia da vontade. Isso quer dizer que as normas sero estipuladas em relao com as aes e disposies do agente e no de uma forma vertical, em que a norma apontaria extrinsecamente o que deveria ser feito, superando, assim, a dicotomia entre a esfera ftica e a normativa. Tambm, que a ao virtuosa estar conectada com a vontade, isto , que as virtudes so disposies para agir de uma maneira adequada, sendo uma excelncia da vontade.

    A primeira caracterstica internalista importante da tica das virtudes que quero ressaltar que ela oportuniza uma inverso do primado das regras sobre s disposies. Isso quer dizer que seu ponto de partida no sero as normas que funcionariam como placas indicativas da direo da ao, mas, antes, sero as prprias aes e disposies do agente ao procurar estabelecer o critrio da ao. Isso representa uma importante modificao de direo, pois no se ter mais uma unidirecionalidade de normas e aes, mas uma pluridirecionalidae de aes e normas, uma vez que a virtude ser alcanada pela realizao de certas aes, levando em considerao s disposies do sujeito. Com isso, parece se conseguir uma superao da dicotomia entre fato e valor, pois o valor, aquilo que virtuoso, s ser alcanado pela realizao de certos atos virtuosos, sendo esses atos fatos constitutivos do mundo.9

    Elizabeth Anscombe, em seu j clssico artigo, Modern moral philosophy, de 1958, aponta muito bem essa inverso do primado de regras sobre s disposies na tica das virtudes. Ela identifica que na filosofia moral moderna se abandonou o ideal de legislador divino com a laicizao, mas se continuou a usar os termos modais de dever, obrigao, ter de, substituindo o legislador pela razo, sentimentos ou contrato. Sua concluso que uma legislao sem legislador no obriga ningum a agir, uma vez que a sobrevivncia de um termo fora de seu quadro conceitual o torna ininteligvel. Importante notar que a norma na filosofia moral moderna assume o lugar da lei das ticas legalistas, sendo que tanto a lei como a

    9 Isso fica muito claro em Aristteles ao procurar vincular a aquisio do carter virtuoso pela repetio de certos atos e no pelo conhecimento do que seria o correto de um ponto de vista universal-abstrato. Nas palavras de Arist teles: Isso o mesmo, ento, com as virt udes: pelos atos que f azemos em nossas relaes com os homens nos t ornamos justos ou injustos; pelo que f azemos em presena do perigo e pelo hbito do medo ou da ousadia, nos tornamos bravos ou covardes. (...) Para sumarizar isso em uma concepo simples: um estado [de carter] resulta da [repetio de] atividades similares. (EN II, 1, 1103 b 14-17; 21-22).

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    norma moral so unidirecionais, uma vez que elas determinam de forma absoluta qual deve ser a ao do agente (ANSCOMBE, 1958, p. 13-15). Mas, como pode uma norma isolada dizer o que se deve fazer? No teramos aqui o problema de arbitrariedade ou mesmo solipsimo? por essa razo que esse modelo unidirecional deve ser abandonado e substitudo pelo modelo de uma tica das virtudes. Nas palavras de Anscombe:

    Mas enquanto isso enquanto no estiver claro que existem diversos conceitos que precisam ser investigados apenas como parte da filosofia da psicologia e como eu recomendaria deveramos banir totalmente a tica de nossas mentes? A saber comear com: ao, inteno, prazer, desejo. Mais provavelmente [a tica] se transformar se ns comearmos com eles. Eventualmente pode ser possvel avanar na considerao do conceito de virtude; com o qual, eu suponho, deveramos comear algum tipo de estudo de tica. Encerro descrevendo as vantagens de usar a palavra deve de uma forma no-enftica, e no em um sentido moral especial e descartando o termo errado em um sentido moral, usando, ao invs, noes como injusto. (ANSCOMBE, 1958, p. 15).

    O que parece ser relevante aqui a proposta de Anscombe de iniciar a investigao tica pelos conceitos de ao, inteno, prazer, desejos e, assim, a norma moral deixaria de ser equivalente lei, uma vez que se buscar a norma nas virtudes humanas que so aes. Assim, possvel identificar uma pluridirecionalidade entre aes e normas em razo das aes repetitivas gerarem hbitos e estes hbitos formarem o carter do agente, resultando em virtudes, que podem ser tomadas como normas. Com isso se alcana uma importante superao da dicotomia entre fato e valor em razo da conexo entre uma parte descritiva e uma parte normativa no conceito tico, uma vez que a justia, por exemplo, recai sobre determinadas circunstncias factuais, isto , sobre aquilo que razovel, e essa descritividade que possibilita um ponto de referncia real para se estipular a norma tica.10

    10 Na parte final do artigo, Anscombe procura ressaltar os aspectos positivos de uma tica da virtude. Um aspecto importante a ident ificao da superioridade do conceito de just o (just) sobre o corret o (right) e isso em razo do conceito de correto ser somente prescritivo e o conceit o de justo ter, alm dessa, uma part e descritiva. A part e descritiva do conceito tico importante para responder ao

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    A segunda caracterstica que quero destacar que ser virtuoso implica em uma excelncia da vontade. Mas o que quer dizer mesmo ser a virtude uma excelncia da vontade? Fao uso aqui da correta compreenso de Philippa Foot a respeito do conceito de virtude. Ela defende que a virtude no uma mera capacidade intelectual, estando conectada com a vontade, isto , que a virtude engaja a vontade. Virtudes so disposies que beneficiam os indivduos que as possuem e beneficiam os outros, tendo relao com o bem comum. A virtude, assim, uma excelncia da vontade, no sendo uma excelncia do corpo ou da mente. Dessa forma, a virtude uma disposio moral, o que significa dizer que ela uma disposio para ser uma pessoa de uma certa forma, isto , ter um certo tipo de carter, um carter virtuoso, o que implicaria controlar os impulsos e levar em considerao os interesses dos outros em sua deliberao.11

    Mas como explicar o que a vontade? Creio que uma forma interessante de compreender esse conceito seja fazendo referncia ao termo tcnico de desejos de segunda ordem. Veja-se o interessante exemplo dado por Frankfurt. Existe um psiquiatra que trabalha com drogados e acredita que sua habilidade para auxiliar seus pacientes seria aprimorada se ele entendesse melhor o que para eles o desejo pela droga da qual eles so viciados. Ele deseja ser movido por um desejo de tomar a droga, mas no deseja que esse desejo seja efetivo. Vejamos a diferena crucial aqui: o desejo de tomar drogas, desejo de fazer X, seria um desejo de primeira ordem, enquanto o desejo de ser movido por um desejo de tomar drogas, um desejo

    argumento da f alcia naturalista de Mo ore. Conclui que as virtudes so construdas a partir de uma performance das aes e que o f lorescimento humano tomado como o objet ivo da tica, como aquilo que bom. Ver: ANSCOMBE, 1958, p. 15-19. Importante ressaltar que c rucial para a t ica das virtudes estabelecer a passa gem de a spectos descritivos para a norma que pr escreve a a o. Peter Geach, por exemplo, faz essa passagem da descrio O adultrio mau par a a prescrio No se deve cometer adultrio a part ir da noo de eupraxa (boa ao). Para ele, a eupraxa influencia decisivamente o agente moral, enquanto outros objetos da escolha so apenas relativos. Ver: GEACH, 1967, p. 72. 11 Philippa Foot defende trs teses centrais em seu art igo que parecem estar conectadas, a saber: que as (i) virtudes no so uma mera c apacidade intelectual, mas esto conectadas com a vontade, isto elas engajam a vontade; (ii) virtudes so corretoras das paixes, isto , elas so corretivas em relao natureza humana em geral; (iii) virtudes tm valor moral positivo, o que implica considerar que para uma ao ser virt uosa o f im precisa ser bom . Ver: FOOT , 1978, p. 1-18. Para Foot, inclusive a sabedor ia prtica (phrnesis) est conectada vontade uma vez que o phrnimos aquele que (i) conh ece os meios para alcanar certos fins bons e (ii) conhece (apreende) que muitos fins particulares tm valor. Ver: FOOT, 1978, p. 5-6.

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    de desejar fazer X, seria um desejo de segunda ordem. O importante notar que o psiquiatra no deseja que esse desejo de primeira ordem seja efetivo, pois a funo desse desejo apenas a de auxiliar no tratamento oferecido aos pacientes, uma vez que ele passaria a ter conhecimento do que ter esse desejo especfico para consumir drogas. O que importa para Frankfurt identificar o desejo que motiva o agente para uma ao e a isso ele chama de vontade (will). A sua concluso que a vontade no coextensiva noo do que um agente pode fazer. Antes, identificada com a noo de um desejo efetivo que move a pessoa ao (FRANKFURT, 1971, p. 7-9).12

    III

    Passemos agora para o segundo aspecto da caracterstica internalista da tica das virtudes, a saber, a ao virtuosa (ou correta) se constitui por uma escolha deliberada do agente moral. Isso quer dizer que o agente deve pesar razes alternativas, isto , deliberar e, em seguida, escolher o que ser realizado, concluindo o processo deliberativo. Importante ressaltar que essa escolha j estar acompanhada da prpria ao. Por exemplo, imaginemos uma situao em que o agente se encontra em um dilema moral na forma em que as virtudes estejam em conflito. O que constituir a ao virtuosa ser precedida de um processo deliberativo. Vejamos esse caso ilustrativo. Augusto um profissional bem sucedido na rea da sade e tem orgulho em procurar agir virtuosamente em cada situao cotidiana. Ele honesto, amigo, solidrio, justo, moderado, corajoso, prudente etc. Num dado dia, Augusto recebe a visita de seu amigo de infncia, Beto, que lhe conta que atropelou

    12 Frankfurt inicia sua ref lexo apontando para a especif icidade da no o de pe ssoa, identificando a vontade como a caracterstica distintiva entre as pe ssoas e outras criaturas, ou o que ele c hama de desejos de segunda ordem. Isso significa que, para Frankfurt, os seres humanos no possuem apenas a capacidade de desejar fazer alguma coisa ou outra, mas possuem a capacidade de desejar ter (ou no ter) certos desejos e mot ivos, sendo est a uma capacidad e de aut oavaliao reflexiva. Esse desejo efetivo que mot iva ao do agent e chamado de vontade. Em sntese, a caracterstica predominante das pessoas ter uma capacidade metaavaliativa e essa capacidade que faz o agente ser tomado como responsvel pelos atos. Ver: FRANKFURT, 1971, p. 6-7. Em suas prprias palavras: [A vontade] no uma noo de algo que apenas inclina um agente em algum nvel para agir de certa forma. Antes, a noo de um desejo efetivo que move integralmente (ou mover ou move u) a pessoa para a ao. (FRANKFURT, 1971, p. 8).

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    um jovem ciclista e fugiu com medo das consequncias por ter tomado dois copos de cerveja. Ele ressalta que o acidente no foi grave, pois logo aps a coliso o ciclista j havia se levantado. Pede, ento, para Augusto manter segredo a respeito do ocorrido e, tambm, de seu paradeiro. Augusto tranquiliza o amigo e promete no contar nada para ningum. No dia seguinte, dois policiais responsveis pelo caso, lhe informam que o referido jovem est no hospital, numa situao fora de risco, mas que requer bastante cuidados, e lhe perguntam sobre o paradeiro de Beto, uma vez que havia uma testemunha no local que anotou a placa do carro. Veja-se que Augusto deseja agir virtuosamente, isso , ele quer fazer a coisa certa. Mas o que ele deve fazer no parece to evidente, uma vez que se ele for leal ao amigo e quiser manter a promessa de segredo a respeito de seu paradeiro, ele no estar sendo justo, em razo de acobertar fatos importantes de uma situao injusta, alm de ilegal, que a de um atropelamento sem prestao de socorro vtima. Tambm, provavelmente ter que mentir. Mas, por outro lado, se desejar agir justamente, ele dever contar aos policiais sobre o paradeiro de Beto, mas, com isso, no estar sendo leal ao amigo, alm de quebrar sua promessa. O que mais importante aqui: a lealdade ou a justia? Como as virtudes estaro em conflito, ele dever pesar as razes alternativas para ou (i) contar sobre o paradeiro do amigo ou (ii) para calar. No se trata de aplicar uma regra universal ao caso particular, uma vez que tanto a ao justa como a leal so padres desejveis de comportamento. O que Augusto ter que fazer, ser escolher internalisticamente aps pesar as razes. E ele poder arrepender-se, posteriormente, da escolha feita. No h uma garantia absoluta a respeito da melhor escolha realizada.13

    Mas o que se levaria em considerao nesse processo deliberativo? Como as regras universais dizem muito pouco para a escolha do agente, no

    13 Para David Wiggins, o processo deliberativo na tica aristotlica no faz uso de uma regra ou conjunto de regras qual o agente poderia apelar para determinar o que deve ser feito no caso especfico, com exceo das proibi es absolutas. A marca relevant e do phrnimos a capacidade de seleciona r, dentre as caractersticas infinitas de uma situao especfica, os aspectos mais relevantes para o ideal de existncia que ele pretende realizar. Nas suas palavras: Em nenhum caso existe uma regra na qual um homem possa s implesmente apelar para lhe di zer exatamente o que f azer. Ele talvez tenha que inventar uma resp osta ao problema. Com f requncia, tal inveno, assim como as frequentes acomodaes que ele obrigado a f azer entre as reinvindicaes d os valores morais em compet io, pode contar como uma modif icao, inovao ou um passo a mais para a det erminao na evoluo dessa concepo do que uma vida boa. Ver: WIGGINS, 1975, p. 48.

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    estaria o processo deliberativo sujeito arbitrariedade em razo das emoes subjetivas serem usadas para pesar razes? Assim, seria toda deliberao um ato emocional e arbitrrio? De que forma isso poderia ser considerado como uma avalio moral? Uma resposta interessante a essa questo foi dada por Stuart Hampshire, no artigo Fallacies in moral philosophy, de 1949.14 Para ele, o modelo deliberativo no emotivista e nem arbitrrio em razo de (i) ser uma situao no trivial em que no se sabe o que fazer, mas (ii) que exige uma considerao integral das questes envolvidas, sendo que (iii) a concluso a soluo de um problema prtico na forma: X a melhor coisa a fazer nessas circunstncias. (HAMPSHIRE, 1949, p. 469-470).

    Veja-se que dizer que X F em C no o mesmo que dizer que juzos morais expressam sentimentos. E isso porque no modelo deliberativo o agente pesa e reflete sobre as alternativas em questo e, ento, pode justificar sua deciso. No caso de Augusto, ele teve que pesar e refletir sobre as alternativas de contar ou calar e isso em razo de honrar ou a justia ou a lealdade. Como pesou e refletiu, ele pode justificar sua deciso, isto , apresentar as razes que o levaram a escolher um rumo de ao e no outro. Digamos que ele tenha escolhido contar aos policiais sobre o paradeiro do amigo. As razes para quebrar a promessa e romper com a lealdade poderiam ser justificadas, inclusive publicamente, com a alegao de que o ato cometido foi injusto, pois no houve a prestao de socorro vtima aps o atropelamento e, alm disso, o condutor havia ingerido bebida alcolica, o que no permitido pela lei. Seria uma situao injusta no reparar o dano

    14 Nesse artigo, Stuart Hampshire apont a para quat ro falcias da f ilosofia moral que se constituiriam como a base da tica de tradio analtica (metatica): (i) Dizer que os juzos morais so prescritivos e, por isso, arbitrrios, expressando apenas emoes; (ii) Dizer que porque os juzos de valor no podem ser deduzidos dos juzos de fato, eles no poderiam estar baseados em juzos factuais; (iii) Dizer que todas as sentenas significantes devem corresponder a algo ou descrever algo; (iv) Dizer que em se def inindo as e xpresses ticas de bom, correto e dever, se saberia como agir corretamente. Em sua int erpretao, os ju zos morais devem ser tomados como um procediment o deliberativo e, assim, no seriam arbitrrios em razo do processo de pesar razes e a posterior justificao. Tambm, que no porque o s juzos morais no so deduzid os de juzos factuais, pois a seriam redundantes, que eles precisam ser considerados co mo ltimos e removidos da discusso racional. Eles podem, sim, tomar por base aspectos factuais. Tambm, que decises racionais no correspondem a algo, mas podem ser ditas como corretas ou erradas, racionais ou irracionais. Por f im, as expresses ticas de bom, correto e dever no dizem o que o agente deve fazer no caso especfico, pois a resposta ao que se deve fazer precedida pela deliberao, que um pr ocesso de anlise dos cursos alternativos. Ver: HAMPSHIRE, 1949, p. 469-482.

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    cometido por Beto. Por outro lado, no modelo emotivista, a deciso apenas uma declarao moral feita sobre os prprios sentimentos e isso no se constitui como uma justificao nem necessria e nem suficiente, pois no apresentaria qualquer critrio objetivo. claro que essa objetividade alcanada pelo modelo deliberativo no pode ser confundida com a objetividade de uma declarao terica que seria verdadeira ou falsa. Em um silogismo prtico, a concluso no ser uma declarao verdadeira, mas ser um juzo prtico que apontar para a melhor coisa a se fazer nas dadas circunstncias (HAMPSHIRE, 1949, p. 469-472).

    Com isso, se pode concluir que o processo de dar razes numa deliberao no um caso de dar razes logicamente conclusivas. A discusso sobre a concluso uma discusso sobre crenas factuais. Por exemplo, para saber se a deciso de Augusto foi certa ou errada, se deve fazer uso de crenas factuais, como crenas jurdicas, polticas, sociais, histricas etc. Crenas como: crime atropelar algum e no prestar socorro, Gera instabilidade social a no punio de crimes, A justia a virtude social mais importante. Essas crenas sero partes relevantes do argumento, funcionando como premissas para a concluso. Vejamos um argumento que poderia sustentar e justificar a deciso de Augusto:

    P1 Todo crime deve ser denunciado. P2 crime atropelar algum e no prestar socorro. P3 Beto atropelou algum e no prestou socorro e, assim, cometeu um

    crime. Concluso: Devo denunciar Beto. Veja-se que para a concluso se constituir no ato certo a ser feito, P2

    deve ser considerada verdadeira. Se essa crena factual for falsa, a concluso no seguir o melhor curso de ao, considerando-se situaes normais. Isso revela que um juzo prtico, de tipo X o melhor curso de ao (nessa ou em todas as circunstncias), deve ser corrigido pela experincia e observao, pois implica, sobretudo, em julgamentos sobre a correo das premissas, que so juzos factuais. claro que existe uma fora prescritiva nos juzos prticos, em que a normatividade parte significativa desses juzos. Por exemplo, a concluso de denunciar Beto precedida pela prescrio de P1 e pela descrio de P2 e P3. Com isso, podemos perceber que um juzo moral possui uma certa objetividade que o distingue de um juzo puramente emocional e subjetivo, em

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    razo da parte descritiva desses juzos estarem relacionados apenas aos estados mentais do agente, havendo apenas uma direo de ajuste mente-mundo, enquanto que nos juzos morais se pode identificar tambm uma direo mundo-mente. Essa direo de ajuste mundo-mente revela uma importante caracterstica intersubjetiva para a justificao que essencial para o modelo da tica das virtudes que tenho em mente.15

    IV

    A segunda caracterstica positiva do modelo tico das virtudes que quero destacar agora que ele parece estabelecer uma ligao estreita entre as virtudes, o carter e a responsabilidade moral, o que pode trazer por consequncia uma concepo abrangente de responsabilidade. Isso pode significar que o agente se sentir responsvel por fazer tais e tais aes ou agir a partir de um certo padro moral excelente em razo de seu prprio carter virtuoso que foi formado a partir das diversas escolhas realizadas e as aes subsequentes. Isso j nos aponta para uma concepo internalista de responsabilidade moral, uma vez que ser o prprio agente que exigir dele prprio um certo tipo de comportamento, sem a necessidade de contar com exigncias externas ao prprio carter do virtuoso, tais como exigncias jurdicas, polticas e sociais.16 Penso que essa concepo internalista e

    15 O que eu quero dest acar que o t ipo de t ica das virtudes que tenho em mente segue um padr o coerentista em epist emologia e no um padro f undacionista, o que implica lev ar em considerao a coerncia de uma crena com um conjunto coerente de crenas para obter a justificao e no a simples correspondncia entre as crena s e os fatos. Essa coerncia no precisa se dar em termos da adequao de crenas com princpios. Ela pode se dar entre as crenas dos agentes e os traos sociais de carter que so desejveis. Com isso, teramos um critrio intersubjetivo para assegurar a validade de uma dada crena, que pode ser compreendida como um caso de crescimento nas int erconexes explanatrias. Aqui f ao uso da ex presso usada por Jonathan Dancy, ao explicar que seu particularismo-holismo pode ser visto, em um sentido lato, como um modelo coerentista de justificao e, assim, ter-se-ia a ju stificao quando um conjunto de casos podem agir como uma conf irmao para uma crena sobre como as coisas so no fato diante de ns, podendo ser interpretada em termos de um crescimento nas interconexes explanatrias (increase in explanatory interconnections). Ver: DANCY, 2004, p. 150-155. 16 Estou chamando d e responsabilidade i nternalista a responsabilidade moral que o agente sente em primeira pessoa, isto , a obri gao que o prprio sujeit o moral est abelece para ele a part ir de sua prpria conscincia e isso poderia ser visto como uma exigncia abrangente, isto , absoluta. Isso estaria contraposto a uma responsabilidade externa lista, em que a exigncia ao agente seria externa sua vontade, tal como uma censura s ocial ou, at, uma penalizao, podendo ser vist a como uma

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    abrangente de responsabilidade moral pode assumir uma posio compatibilista17, podendo ser apresentada atravs da seguinte frmula:

    Um agente A, em circunstncias C, responsvel por fazer uma ao

    X sse A exige de si mesmo agir em razo de seu carter virtuoso. Ou, ainda, em uma verso mais completa: Um agente A, em circunstncias C, responsvel por fazer uma ao

    X sse A exige de si mesmo agir em razo de seu carter virtuoso, o que implica ter uma disposio para buscar o fim bom e escolher por deliberao os meios certos para realizar esse fim.

    Vejamos um caso para melhor compreender esse fenmeno que estou querendo chamar ateno. Bucky Cantor, personagem do livro Nmesis, de Philip Roth, um bom exemplo de um indivduo que tem um carter

    exigncia de meno r alcance, ou melhor, uma exignc ia estrita. Essa con cepo internalista de responsabilidade est centrada na no o de voluntariedade, mas isso no implicar, necessariamente, em uma concepo indeterminista de responsabili dade. Penso que se pode adotar uma viso n o-metafsica de livre-arbtrio ou vontade livre, a conectando com a tomada de deciso do agente. Daniel Dennett tem uma concepo interessante nesse sentido: ele destaca que os agentes tomam decises livres, bem como escolhem livremente, d e forma que podem ser responsabilizado s por suas escolhas e aes, o que no implicar em um a responsabilidade metafsica ltima. Dennett defende uma concepo naturalizada de livre-arbtrio e tomada de deciso, de forma que a nat ureza d capacidade ao agente de escolher prin cpios (representaes) para viver em conjunto, sendo a respon sabilidade circunscrita a essa escolha das melhores alternativas. Ver: DENNETT, 2003, p. 1-23; 259-288. 17 Creio que esse tipo de responsabilidade internalista pode ser melhor compreendida no mbito de uma concepo compatibilista preferencialmente do que no mbito de uma conce po indeterminista ou libertista de responsabilidade. Nela possvel que e xistam determinaes p ara a ao, mas q ue a escolha deliberada possa ser vista como um tipo de ao no determinada. Essa posio guarda fortes semelhanas com a de Frankfurt, em razo de conectar a responsabilidade com a liberdade da vontade, uma vez que se a pessoa aquele ente que possui a capacidade de apreciar a liberdade da vontade, que significa a satisfao de certos desejos de segunda ordem ou de ordens elevadas, ela deve ser responsabilizada pela sua ao, uma vez que sua vontade no determinada causalmente. Assim, a pessoa que tem liberdade de ao livre para fazer o que quer; tendo liberdade da vontade, a pessoa livre em querer o que sua vontade quer, ou em querer o que ele deseja querer. Mas sobre a questo de se a pessoa moralmente responsvel pelo que fez isso no est conectado em saber se a pess oa estava em uma posio de ter a vontade que ela desejava. Para Frankfurt um erro achar que algum age livremente apenas quando ele livre para f azer o que ele quer ou que ele age por seu livre-arbtrio apenas se s ua vontade for livre. A co ncluso que es sa concepo de liberdade da vont ade de Frankfurt neut ra no que diz resp eito ao problem a do det erminismo ou livre-arb trio, uma vez que a pessoa responsvel por sua a o em razo de apreciar a liberdade da vo ntade ou f alhar nessa apreciao, o que possibilita a escolha do agente que, mesmo sendo determinada de alguma forma, no invalidaria sua responsabilidade. Ver: FRANKFURT, 1971, p, 17-20.

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    virtuoso e, em razo desse tipo de carter, sente-se responsvel de uma forma absoluta pelos acontecimentos e pelas pessoas a sua volta. Ele teve uma vida dedicada ao esporte e tornou-se professor de educao fsica. Bucky tem um sentimento de culpa por no ter servido ao exrcito e lutado na Segunda Guerra Mundial em razo de sua miopia e uma noo internalista de responsabilidade pela sade e segurana de seus alunos que o conduz a uma culpabilizao de suas escolhas, como a de ter ido para a colnia de frias Indian Hill, para ficar prximo da namorada, Marcia, ao invs de ter permanecido no playground, que passava por um surto de poliomelite. Bucky totalmente ntegro, uma vez que seu comportamento sempre coerente e consistente, o que o faz um bom namorado, um neto devotado e um professor atencioso. Ele corajoso para enfrentar os diversos perigos e tem uma relao forte de cuidado com todos sua volta. Inclusive, rompeu o noivado com Marcia logo aps saber que estava com poliomelite, enquanto ainda se recuperava no hospital. Aqui, a soma das virtudes de integridade, coragem e cuidado parecem trazer por consequncia a responsabilidade moral. Creio que esse exemplo joga luz nesse fenmeno de uma ligao internalista entre o carter virtuoso do agente e a sua responsabilidade moral correspondente. Suas decises so pautadas por uma cobrana em primeira pessoa de seguir um certo padro moral de excelncia, no precisando de estmulos externos para agir de forma virtuosa. Assim, sua responsabilidade derivada de seu prprio carter virtuoso.

    Mas de que maneira se pode responsabilizar integralmente o agente por seu prprio carter? No haveriam razes externas vontade do indivduo que contribuiriam para o sujeito ser de uma certa forma, isto , ter uma certa identidade mental, tais como predisposio gentica, situao scio-econmica ou mesmo situaes traumticas no voluntrias? O carter de Bucky seria o mesmo se ele no tivesse miopia e, assim, pudesse ter lutado na guerra ou se seu pai no o tivesse abandonado? Seria Bucky ntegro, corajoso e disciplinado se no tivesse aprendido esses valores com o seu av? Se tivesse sido criado em um orfanato ao invs de criado pelos avs, com muito afeto, ser que suas escolhas seriam as mesmas? Se no tivesse perdido a me, ser que essa caracterstica de culpabilizao de suas escolhas permaneceria inalterada?

    Mesmo considerando que razes externas influenciam na formao do carter do agente e ponderando que no haja uma responsabilidade integral sub species aeternitatis, isto no ter por implicao afirmar que o agente no

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    pode ser responsvel por seu carter, ao menos em um sentido prospectivo, isto , como uma responsabilidade em tomar um certo trao de carter desejvel, a saber, um certo trao comportamental permanente que desejvel por possibilitar uma vida bem-sucedida. Veja-se um interessante exemplo dado por Robert Audi a esse respeito. Jean desonesta, mas tem a decncia em se sentir culpada por isso. Alguns de seus valores se contrapem desonestidade e ela deseja ser uma pessoa melhor. Possivelmente a desonestidade de Jean foi formada em sua infncia, dada por seu ambiente familiar. Dado essa circunstncia externa, Jean no tem uma responsabilidade gentica sobre a desonestidade. Isso no implica em dizer que ela no ser responsvel pelos atos desonestos, uma vez que ela responsvel, ao menos parcialmente, por mudar seu carter para ser honesta (AUDI, 1997, p. 189-190).18 Concordo vivamente com essa noo aristotlica de responsabilidade sobre o carter, de forma que o nosso carter recair sobre nosso controle voluntrio e nossa capacidade deliberativa, uma vez que o agente responsvel pelo exerccio de atividades sobre os objetos especficos que formam as disposies de carter, significando que ns sempre somos responsveis por nos tornarmos o tipo de pessoas que somos.19

    18 Robert Audi faz u ma importante distino entre trs tipo s de re sponsabilidade sobre os traos d e carter, a saber: responsabilidade gentica, retencional e prospectiva. Na responsabilidade generativa ou gentica (generative responsibility), a respo nsabilidade tem relao c om o produzir o t rao em questo. Na responsabilidade retencional (retentional responsibility), existe a re sponsabilidade por reter um certo trao de carter. Por fim, na responsabilidade prospectiva (prospective responsibility), o agente possui uma responsabilidade por adquirir um certo tipo de carter e no outro. Voltemos ao exemplo de Jean. Ela n o tem responsabilidade gentica por se u trao de de sonestidade, uma vez que este f oi adquirido pela convivncia com os pais desonestos. Os pais de Je an, sim, possuem a repon sabilidade gentica pela desonestidade da filha. Por outro lado, Jean possui uma responsabilidade prospectiva em adquirir o trao de honestidade. Uma vez honesta, Jean passa a ter a responsabilidade retencional, isto, passa a ser responsvel por ret er esse trao de carter que desejvel. Talvez esclarea a ques to dizer que tanto a re sponsabilidade prospectiva quanto a retencional operam no nvel de um desejo de segunda ordem. Ver: AUDI, 1997, p. 188-191. 19 Ver o t exto de Aristteles: EN III, 5, 1114 a 4-31. A re speito do tema da responsabilidade sobre o carter, ver o in teressante artigo de Susan Meyer, em que ela esclarece o argumento central de Aristteles sobre a q uesto: Para ele, (i) nos tornamos virtuosos praticando aes virtuosas, como, por exemplo, nos tornamos justos fazendo aes justas; tambm, (ii) ns sabemo s disso quando estamos realizando essas aes que formam o carter e, dessa forma, (iii) ns, voluntariamente, nos tornamos o tipo de pessoas que somos, sem esquecer, claro, da importncia da educao para a habituao. Ver em MEYER, 2006, p. 153-156. Para uma interpretao da responsabilidade como capacidade efetiva de deliberao, ver: Terence Irwin em IRWIN, 1980, 139-144. Tambm, sobre o papel da moralidade para auxiliar no desenvolvimento do carter moral e moldar a deliberao prtica, ver: Susan Wolf em WOLF, 1982, p. 438.

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    V

    Deixem-me terminar esse texto enfocando, agora, um problema

    especfico da tica das virtudes, a saber, que sua concepo de responsabilidade internalista muito exigente. Um limitador que pode ser bastante relevante a esse modelo tico a de que ele parece exigir demasiadamente do agente moral, uma vez que exige, em primeira pessoa, que o indivduo se sinta responsvel por seu prprio carter e pelas escolhas correspondentes. Vejamos um exemplo a respeito dessa exigncia demasiada. Consideremos novamente o caso de Augusto, mas agora sob o prisma de um novo dilema. Augusto planeja passar suas frias na Grcia, visitando Atenas e algumas ilhas e, para tal, economiza durante dois anos. Ele havia prometido essa viagem de frias sua mulher, Brbara, desde o incio do casamento. Um dia antes de comprar as passagens, uma catstrofe ocorre na cidade de Esteio/RS, cidade onde trabalha e reside. No dia 23 de outubro de 2013, ocorrem fortes chuvas na regio que so seguidas de alagamentos generalizados pela cidade e vrias pessoas perdem todos os seus bens. Casas ficam alagadas, da mesma forma que as ruas e a estrada que interliga a regio metropolitana de Porto Alegre. A televiso e os jornais iniciam uma campanha de solidariedade para auxiliar as vtimas. As pessoas so convidadas a doar roupas, alimentos e, especialmente, dinheiro. Tambm, os profissionais da sade so convocados para prestar assistncia aos desabrigados, uma vez que h, sobretudo, crianas e idosos doentes. Tomando esse contexto, o que Augusto deve fazer levando em conta o padro da tica das virtudes? Qual seria o comportamento virtuoso desejvel? Ele deveria auxiliar as vtimas ou permanecer com os preparativos da viagem, lembrando que Augusto virtuoso e sente orgulho em ter esses traos de carter de honestidade, solidariedade, coragem, moderao etc.?

    A resposta parece bastante bvia. Augusto deve desistir ou adiar sua viagem e auxiliar aos desabrigados. Se ele for comprar as passagens e fazer as reservas de hotel, ele no poder auxiliar os desabrigados com seu trabalho voluntrio. Se ele doar algum dinheiro para os atingidos pelas chuvas, ento, no poder viajar para a Grcia, pois faltar dinheiro para o passeio. E por que ele deveria desistir ou adiar sua viagem? Pela razo de que desejvel ser solidrio em contraposio a ser egosta. No seria uma ao virtuosa deixar de prestar auxlio aos vizinhos e mesmo parentes em uma situao de urgncia para realizar um

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    sonho pessoal (ou do casal) que seria muito prazeroso. claro que uma viagem de frias algo desejvel porque prazeroso e relaxante. E ela no uma ao errada, evidentemente. Mas, no poderia ser considerada como uma atividade fundamental na vida das pessoas. Tambm, uma nova viagem poderia ser realizada em um outra oportunidade. O mais urgente nesse contexto seria auxiliar com trabalho e mesmo financeiramente os que necessitam de ajuda. Tambm no caso de Bucky essa responsabilidade internalista parece ser exigente em demasia, ao ponto dele ter desistido de seu casamento com Marcia em razo de ter contrado poliomelite e se sentir responsvel integralmente pela felicidade de sua noiva.

    O ponto que eu gostaria de ressaltar aqui o seguinte: isso no demasiado exigente e pouco eficaz se imaginarmos problemas de moralidade pblica e/ou tica aplicada que devem ser resolvidos por uma diversidade de cidados, alguns virtuosos e outros viciosos? Veja-se, por exemplo, a exigncia demasiada que feita ao agente moral por uma abordagem como a que faz Hursthouse sobre a questo do aborto. O foco de sua investigao no recair na abordagem tradicional dada ao problema, que ora investiga sobre o status do feto e sobre a legislao para permitir ou no o aborto e ora investiga sobre os direitos das mulheres. A tica das virtudes tomar como ponto de partida a questo: no ato do aborto, em tais circunstncias, o agente estaria agindo virtuosamente ou viciosamente ou nenhum dos dois casos? (HURSTHOUSE, 1991, p. 233-235). O ponto central de Hursthouse enfatizar que uma nova vida, as relaes de me e filho e as relaes familiares so valorosas e, assim, devem ser tomadas como critrios para saber que tipo de vida boa. Ela enfatiza a relevncia dos fatos biolgicos e psicolgicos e sua conexo com a atitude correta em relao maternidade e relaes familiares. Veja-se que a questo central apontar para a vida humana boa e, nessa dimenso, a maternidade, o amor e as relaes familiares so tomadas como essenciais, isto , como valorosas (HURSTHOUSE, 1991, p. 237-241).

    A partir disso, creio que o argumento contra o aborto defendido por Hursthouse possa ser apresentado da seguinte maneira:

    P1 Maternidade e paternidade tem valor intrnseco e so constitutivos

    para a vida boa. P2 Mulher que aborta pode manifestar um entendimento errado do

    que sua vida deve ser ou sobre o que a vida boa.

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    P3 Mulher que aborta pode manifestar uma falha de carter, tal como egosmo, covardia, fraqueza.

    Concluso: A mulher no deve abortar em circunstncias padres.20 Mas, o que isso nos mostra? Que o modelo das virtudes possui um

    padro moral de excelncia que tomado como pressuposto para a ao. Por isso, o ponto de partida sobre o que constitui a vida boa. Esse modelo exige um comprometimento total do agente com um certo tipo de vida, a vida virtuosa. Me parece muito adequado exigir um comportamento virtuoso do agente em questes de moralidade privada, tais como as que exigiro fidelidade, lealdade, honestidade, solidariedade etc. No mbito dos deveres imperfeitos, esse padro me parece, alm de adequado, exequvel. Mas o que dizer do mbito da moralidade pblica, em que o que estaria em jogo seriam os deveres perfeitos, queles que geram direitos? Poderiam esses deveres estarem baseados nesse padro virtuoso de exigncia apenas? Como fazer um agente vicioso cumprir um dever perfeito apenas no mbito do elogio e da censura? Outro problema que em sociedade plurais, como as contemporneas, parece no haver uma unidade a respeito do que constituiria a vida boa. Veja-se que no caso especfico do aborto, isso implicaria que as nicas circunstncias corretas para a sua realizao seria o estupro ou o risco de morte com a gravidez. Assim, uma jovem mulher que abortasse pela razo de pensar que no a hora adequada, pois ainda uma estudante e no possui uma situao empregatcia slida, no estaria agindo virtuosamente e, logo, no estaria agindo corretamente. Ou, alternativamente, como interpretar o caso de uma mulher que no deseja ter filhos e tem como objetivo central de vida apenas a sua carreira? Ela no seria virtuosa, pois sua ao no estaria conectada ao fim bom? Mas isso seria um dever de que tipo e como fazer para que todos o seguissem?

    20 Esse argumento pode ser formulado a partir da parte final do texto em questo. Ele ressalta o valor intrnseco da maternidade e paternidade, sendo constitutivos para a vida boa e, dessa forma, se pode estipul-lo como a p remissa universal do argumento. Ver: HURSTH OUSE, 1991, p. 241-244. Em suas palavras: Se isso verdadeiro, como sustento, que na medida em que a mat ernidade intrinsicamente valorosa, ser uma me um propsito importante na vida das mulheres, bem como ser um pai (ao invs de um mero genitor) um prop sito importante na vi da dos homens, e f az parte da adolescncia do homem fechar os olhos para is so e fingir que eles tm muito mais coisa s importantes para f azer. (HURSTHOUSE, 1991, p. 244).

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    Parece que uma fraqueza do modelo da tica das virtudes no contribuir significativamente para a discusso a respeito do que justo ou correto de um ponto de vista pblico e pluralista, isto , de um ponto de vista que poderia ser aceitvel por todos e que deve contar com exigncias externas vontade do agente. Por outro lado, sua riqueza parece constituir-se por sua fora internalista que obriga o sujeito em primeira pessoa, na forma de uma pluridirecionalidade entre os fatos e os valores, de maneira que o carter virtuoso do agente implicar em sua responsabilidade moral. No seria desejvel ter uma teoria moral que pudesse contar com esses dois importantes elementos para avaliar a moralidade dos atos e, assim, integrar esses horizontes (interno e externo) de exigncias na reflexo moral?

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