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1 Departamento de Teologia - Antropologia Teológica 2017/I - Geraldo De Mori SJ Excursus 2 RICOEUR, Paul. Pensando a Criação. In LACOCQUE, André; RICOUER, Paul. Pensando biblicamente. Bauru, SP: EDUSC, 2001.p. 49-87. Durante as últimas décadas, um problema dominou a exegese e a teologia do Antigo Testamento: que grau de independência deve ser concedido à doutrina da criação em relação à afirmação soteriológica fundamental que se supõe percorrer ambos os testamentos da Bíblia. Este problema não se restringe ao interesse apenas dos especialistas no pensamento de Israel antigo no contexto das culturas do Antigo Oriente Próximo. Ele preocupa a teologia e a pregação contemporâneas por ele influenciadas a um grau em que a leitura resolutamente cristocêntrica dos dois testamentos, influenciada por Karl Barth, é justificada por uma exegese do Antigo Testamento que toma como seu fio condutor o tema da Heilsgeschichte, a história da salvação. No interior das comunidades cristãs, portanto, as apostas desta discussão são altas. Espero mostrar que ela também afeta todos aqueles para quem o enigma dos primórdios ou origens desperta angústia, perplexidade ou simplesmente curiosidade e uma busca de conhecimento. André LaCocque lembra, desde as primeiras páginas de seu ensaio [o capítulo 1 desta obra] o papel desempenhado pelo conhecido ensaio de Gerhard Von Rad de 1936, "The Theological Problem of the Old Testament Doctrine of Creation" (“O Problema Teológico da Doutrina da Criação do Antigo Testamento") 1 . Este exegeta alemão foi um dos primeiros a suspeitar que, mesmo considerando a doutrina da criação como de fato inseparável daquela da salvação, suas categorias ainda requerem um tratamento diferente. André LaCocque adota a tese sobre a qual eu também basearei meus comentários, a saber, de que a Criação emana de uma pré-história cujos eventos relatados põem em movimento um amplo dinamismo que opera no próprio cerne da história 2 . As referências [p.49] à pré-história e à história através de sua apresentação do debate exegético contemporâneo me levam a pensar que é no nível das relações pré- ou proto-história (ou ainda melhor-, história primordial) e história que devemos abordar esta discussão. Se é o sentido ou significado da história que está em questão para a tese soteriológica, nos textos relativos à Criação, é com esses eventos que emergem dessa história primordial que devemos lidar. Deste modo devemos primeiro esclarecer o uso destes dois termos e sua relação, tanto no plano literário como no nível dos significados capazes de nutrir uma teologia bíblica digna deste nome. A hipótese de trabalho que norteia as análises seguintes pode ser colocada de modo amplo como se segue. O elo que une a história primordial e a história datada (ou datável) tem ainda que ser pensado. Por prudência, vou chamá-lo de relação de precedência, por razões que passo sem mais demora a explicar. O que é paradoxal nesta relação é que ela deve ser pensada em termos da interseção de duas linhas de interpretação. A primeira enfatiza a cesura entre 1 VON RAD, Gerhard. The Problem of the Hexateuchi and Other Essays. Trad. E.W. Trueman Dicken. Edinburgh e London: Oliver & Boyd, 1966. p. 131-43. 2 André LaCocque mostra as diferentes maneiras pelas quais esta solidariedade entre criação e história é expressa. Primeiro, a ordem instituída pelo ato de Criação permanece ameaçada por uma desordem que tem sua contrapartida nas tribulações dentro da história de Israel. Em seguida, a íntima afinidade entre a ordem cósmica e a Lei tem seu eco na teologia da aliança. Finalmente, a Criação e a história têm o mesmo horizonte escatológico.

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Departamento de Teologia - Antropologia Teológica – 2017/I - Geraldo De Mori SJ

Excursus 2

RICOEUR, Paul. Pensando a Criação. In LACOCQUE, André; RICOUER, Paul. Pensando

biblicamente. Bauru, SP: EDUSC, 2001.p. 49-87.

Durante as últimas décadas, um problema dominou a exegese e a teologia do Antigo

Testamento: que grau de independência deve ser concedido à doutrina da criação em relação à

afirmação soteriológica fundamental que se supõe percorrer ambos os testamentos da Bíblia.

Este problema não se restringe ao interesse apenas dos especialistas no pensamento de Israel

antigo no contexto das culturas do Antigo Oriente Próximo. Ele preocupa a teologia e a pregação

contemporâneas por ele influenciadas a um grau em que a leitura resolutamente cristocêntrica

dos dois testamentos, influenciada por Karl Barth, é justificada por uma exegese do Antigo

Testamento que toma como seu fio condutor o tema da Heilsgeschichte, a história da salvação. No

interior das comunidades cristãs, portanto, as apostas desta discussão são altas. Espero mostrar que

ela também afeta todos aqueles para quem o enigma dos primórdios ou origens desperta

angústia, perplexidade ou simplesmente curiosidade e uma busca de conhecimento.

André LaCocque lembra, desde as primeiras páginas de seu ensaio [o capítulo 1 desta

obra] o papel desempenhado pelo conhecido ensaio de Gerhard Von Rad de 1936, "The

Theological Problem of the Old Testament Doctrine of Creation" (“O Problema Teológico da

Doutrina da Criação do Antigo Testamento")1. Este exegeta alemão foi um dos primeiros a

suspeitar que, mesmo considerando a doutrina da criação como de fato inseparável daquela da

salvação, suas categorias ainda requerem um tratamento diferente. André LaCocque adota a

tese sobre a qual eu também basearei meus comentários, a saber, de que a Criação emana de

uma pré-história cujos eventos relatados põem em movimento um amplo dinamismo que opera

no próprio cerne da história2. As referências [p.49] à pré-história e à história através de sua

apresentação do debate exegético contemporâneo me levam a pensar que é no nível das

relações pré- ou proto-história (ou ainda melhor-, história primordial) e história que devemos

abordar esta discussão. Se é o sentido ou significado da história que está em questão para a tese

soteriológica, nos textos relativos à Criação, é com esses eventos que emergem dessa história

primordial que devemos lidar. Deste modo devemos primeiro esclarecer o uso destes dois

termos e sua relação, tanto no plano literário como no nível dos significados capazes de nutrir

uma teologia bíblica digna deste nome.

A hipótese de trabalho que norteia as análises seguintes pode ser colocada de modo

amplo como se segue. O elo que une a história primordial e a história datada (ou datável) tem

ainda que ser pensado. Por prudência, vou chamá-lo de relação de precedência, por razões que

passo sem mais demora a explicar. O que é paradoxal nesta relação é que ela deve ser pensada

em termos da interseção de duas linhas de interpretação. A primeira enfatiza a cesura entre 1 VON RAD, Gerhard. The Problem of the Hexateuchi and Other Essays. Trad. E.W. Trueman Dicken. Edinburgh e London:

Oliver & Boyd, 1966. p. 131-43. 2 André LaCocque mostra as diferentes maneiras pelas quais esta solidariedade entre criação e história é expressa.

Primeiro, a ordem instituída pelo ato de Criação permanece ameaçada por uma desordem que tem sua contrapartida nas tribulações dentro da história de Israel. Em seguida, a íntima afinidade entre a ordem cósmica e a Lei tem seu eco na teologia da aliança. Finalmente, a Criação e a história têm o mesmo horizonte escatológico.

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tempo primordial e histórico. Por "cesura" quero significar mais do que apenas uma

descontinuidade numa sucessão. Ela também inclui o fato ele que o tempo dos eventos

primordiais em relação ao tempo dos eventos da história não pode ser plenamente coordenado

em termos de alguma sucessão temporal, mesmo se começamos os últimos com o tempo dos

ancestrais, inaugurado pelo chamamento dirigido a Abraão em Gênesis 12, e pelas promessas

desconhecidas que acompanham o chamamento para deixar Ur. É, mais fundamentalmente, em

termos de cronologia, que esses dois tempos, que faríamos melhor em chamar de duas

qualidades temporais, não podem ser coordenados. Portanto, não faz sentido perguntar se a

história de Abraão sucede a de Adam e dos outros personagens apresentados em Gênesis 2.4-

11.22. Há ainda menos sentido em perguntar se a história de Abraão está situada depois

daquela da Criação em sete dias, a qual, sabemos, pertence a uma redação posterior à de

Gênesis 2-11, que pertence à seqüência sobre a qual André LaCocque e eu estamos nos

concentrando aqui. Qualquer que possa ser o significado do termo "precedência", ele não

significa anterioridade cronológica.

Este comentário inicial é relevante não apenas para a exegese do texto bíblico, ele

também afeta o uso que foi feito e ainda o é, às vezes, das narrativas da Criação,

particularmente por fundamentalistas. [50] Do mesmo modo que os eventos da história

primordial não podem ser coordenados com o que os hebreus antigos tinham como o tempo

da história - e nisto eles coincidiam com as culturas do antigo Oriente Próximo em geral -

tampouco podemos hoje, como herdeiros da ciência física de Galileu e Newton, da teoria

darwiniana da evolução e da pesquisa científica sobre as origens da humanidade, fazê-lo.

Todas essas pesquisas - cosmológicas, biológicas, antropológicas e assim por diante -

procedem em termos de um tempo homogêneo, cujos períodos de tempo são partes de uma

seqüência apontando para trás em direção a um início que deve colocar mais adiante como

inacessível3. Assim, não é apenas dentro dos limites da exegese e da teologia do Antigo

Testamento, mesmo quando ampliados para incluir o horizonte mais extenso das culturas do

antigo Oriente Próximo, que a cesura entre tempo primordial e histórico se impõe. Afirmar isto

em reconhecimento da pesquisa científica dos inícios e origens (e não estou ainda

distinguindo entre estes dois termos) é uma questão de honestidade intelectual e, se posso

colocá-lo deste modo, de pensamento correto. Há um certo alívio ao se admitir que não há

necessidade de se tentar datar a criação de Adam em relação ao pitecantropo ou ao homem de

neandertal.

Entretanto, esta primeira instância, que podemos denominar disjuntiva, não faz justiça

à outra idéia contida dentro da idéia de precedência: a de que eventos que ocorreram no tempo

das origens têm um valor inaugural com respeito à história que, no plano literário da narração,

segue-se aos eventos primordiais. Bem no começo de seu estudo, André LaCocque aborda esta

relação constituinte de um importante ângulo: as histórias recontadas em Gênesis 2-3 servem

para universalizar a descrição ali feita da condição humana. Além - ou melhor, antes - do

povo judeu, o que temos são seres humanos à parte da qualificação étnica que já reveste a

figura de Abraão bem como as dos outros protagonistas na saga dos ancestrais. E esta relação

fundamental assume outras formas além da do arquétipo. Exegetas de bom grado enfatizam a

3

Cf. FRASER, J. T. The Genesis and Evolution of Time. Amhest: University of Massachusetts Press, 1982.

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função etiológica de algumas dessas narrativas que explicam as coisas ocorrendo como o

fazem hoje, porque é assim que elas ocorreram na origem. Isto se aplica particularmente às

punições no fim da grande narrativa de Gênesis 2-3 Entretanto, nem a função universalizante /

arquetípica nem a função etiológica / causal esgotam o papel de fundador dos eventos

primordiais, como veremos adiante em "A Fundação" [p.51].

Qualquer que possa ser o caso no que diz respeito a esta noção de eventos fundadores, a

dificuldade insuperável é combinar dentro da idéia de precedência o caráter não coordenável dos

tempos primordial e histórico em termos de cronologia e a função de fundadores atribuída aos

eventos primordiais. É por isso que vou lidar em sucessão com estas duas dimensões da idéia de

precedência, a qual permanecerá ainda pensada além de qualquer justaposição simples destes

dois pontos de vista.

Separação

Antes de abordar a questão dessas narrativas e de outras relações que podem ser tiradas

da história primordial, temos que ser mais precisos quanto a certas características formais da

Urgeschichte que estão sob as expectativas forjadas por séculos, mesmo milênios, do uso da

Bíblia.

Em primeiro lugar, antes da era helenística, a noção de Criação ex nihilo era

desconhecida. Ou melhor, a questão à qual esta resposta corresponde ainda não havia sido posta.

Isto é claro no que diz respeito à mais antiga narrativa da Criação no Gênesis, a de Gênesis 2.3,

que é introduzida por uma fórmula notável: "quando nenhuma planta da terra e nenhuma erva

do campo existia ainda...então o Senhor Deus formou o homem da poeira do solo" (2.5-7).

Esta fórmula, "quando ... ainda não...então" determina um ponto de partida sem precedente para

o ato criativo. (Os elementos que ainda não existiam - plantas do campo, relvas do campo,

chuva, o homem cultivador do solo - não são, exatamente, descritos. Eles são simplesmente

nomeados como o que ainda não estava ali, quando...). Na medida em que não colocamos a

questão do que poderia ter precedido a atividade divina, não perguntamos de onde veio a

poeira da qual o homem foi tirado, nem que materiais constituíam as árvores do jardim ou os rios

que as irrigavam, nem de onde vinha o solo do qual Deus fez os animais. Criar é formar, é dar

uma forma e uma consistência. O mesmo se aplica ao relato da criação do mundo em Gênesis 1.

o abismo está ali, bem como as trevas e as águas primordiais. A palavra de Deus não cria a partir

do nada e as sucessivas separações que marcam os seis dias de trabalho constituem em si o ato

criativo. A noção de Criação ex nihilo é uma resposta a uma especulação ulterior referente ao que

G. W. Leibniz chamará muito mais tarde de "origem radical das coisas".

Uma segunda expectativa não correspondida pelos nossos textos tem a ver com a idéia de

uma única Criação total. Este critério estrito [p.52] se aplica apenas a Gênesis l. Exatamente Gênesis

2.5-3.26 reconta a criação do homem, dos animais, da mulher, c a irrupção do mal com sua

cadeia de punições. Poderíamos, seguindo alguns estudiosos, distinguir entre um início "relativo" e

um "absoluto" 4. Mas esta distinção entre absoluto e relativo é estranha à cultura hebraica e

também às outras culturas do antigo Oriente Próximo. O que conta é a criação por um deus -

aqui pelo Senhor Deus, Yhwh Deus - de algo importante, quando o cenário do ato criativo

4 Por exemplo, GIBERT, P. Bible, mythes et récits de commencement. Paris, Seuil, 1986, 29.

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ainda não existia. A noção de inícios múltiplos desempenhará um extenso papel em nossa seção

intitulada "A Fundação".

Uma outra expectativa que nossos textos descartam é a idéia bem mais moderna de um

início como um evento marcante. Esta idéia depende claramente da representação do tempo

como uma linha e dos próprios eventos como uma série linear, o início constituindo o

primeiro termo da série, como um ponto de partida. Com a refutação desta expectativa,

entramos no cerne da noção de uma história primordial. "História" é apenas a palavra que se

encaixa aqui, se não a assimilarmos ao sentido de história documental, que está representada

em outras partes na Bíblia por aquelas narrativas, manifestamente inspiradas por arquivos reais,

que têm a ver com as peripécias das monarquias davídica e salomônica. A história primordial é

uma história no sentido em que põe em ordem uma multiplicidade de eventos sobre os quais

imprime a unidade de uma seqüência inteligível. Claus Westermann usa a expressão adequada,

um Geschehensbogen - um arco que dá unidade a um curso de eventos5. A este respeito, a

forma narrativa é particularmente apropriada para essa relação de ordenação. Gênesis 2.4b-

3.24 constitui uma narrativa no melhor sentido do termo. Nesta seqüência, a cuja

complexidade interna devo retornar, história primordial e narrativa primordial coalescem.

Quanto à noção dc narrativa de um evento, podemos aplicá-la, por sua vez, às peripécias

tomadas uma por uma e à seqüência toda na medida em que ela pretende a unidade da vinda à

existência, digamos, no caso de Gênesis 2-3, da condição humana com todas suas ambigüidades.

É esta condição que é, de certo modo, colocada como um todo por um ato cujos detalhes são

explicados minuciosamente pela narrativa. Mais adiante, necessitaremos desta noção de um

evento totalizante para corrigir os efeitos perversos que a própria narrativa introduz, logo que

[p.53] ela relata em sucessão o que, de certo modo, foi produzido numa única explosão6.

Entretanto, a narrativa não é a única maneira pela qual podemos nos referir ao tempo

primordial. Gênesis l não é uma narrativa, mas um poema didático. É apenas num sentido

impróprio, devido à sucessão das palavras e atos de divisão, que podemos dizer que Gênesis l

relata a Criação do mundo. Seja como for, esta quase narrativa carece do caráter dramático cios

eventos relatados em Gênesis 2-3, que emana do fato de se tratar de uma narrativa no sentido

exato do termo7. Também não deveríamos perder de vista as referências à Criação nos Salmos,

onde o coro da oração reduz à forma de "cláusula narrativa" às breves seqüências narrativas

como "Glória a Vós que outrora fez [este...]". Devemos levar em conta estas proclamações com

seu caráter hínico geral, quando nos referirmos à diversidade de modelos de Criação.

Finalmente, devemos destacar a confissão de fé como despida de qualquer caráter

narrativo como aquela encontrada em II Macabeus 7.25-29, onde a influência helênica é bem

5

Cf. WESTERMANN, Claus. Gênesis, Biblischer Kommentar, Altes Testament. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1966. p.259-67. 6 As restrições impostas pela sucessão narrativa são em grande parte responsáveis pelo nivelamento de todas as histórias

relatadas numa única linha de tempo, bem como pela deplorável confusão acima referida relativa ao caráter não coordenável do tempo primordial em relação ao tempo histórico. 7 A iconografia irá restaurar sua dimensão dramática à representação da Criação. Tenho em mente exemplos como o teto

da Capela Sistina pintado por Michelangelo, a "Criação" de Haydn e o primeiro movimento da Nona Sinfonia de Beethoven. Mais adiante abordaremos essa redramatização em termos da persistência dos temas de combate que continuam mesmo nas representações mais livres da Criação.

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evidente8. A observação à primeira vista desconcertante, de Pierre Gibert, de que nenhuma

forma literária privilegiada captura a Criação, deriva desta diversidade de gêneros9. Mesmo se a

forma narrativa se adapta perfeitamente às seqüências [p.55] mais dramáticas, como aquelas em

Gênesis 2-3, podemos denominar num sentido mais amplo "narrativas primordiais de criação" todas

as outras "referências à criação" para considerar a sucessão de eventos nelas relatada10

. Este

emprego amplo da expressão "narrativas primordiais" pode ser justificado pelo caráter dos eventos

que são relatados, trate-se de uma questão dos episódios e incidentes que constituem os

componentes elementares dessas narrativas, poemas ou hinos, ou mesmo que tenhamos em mente

a unidade configuracional através da qual é expressa a unidade múltipla de um ato que postula a

"coisa" criada como um todo significativo: mundo, humanidade, ou mesmo o mal (embora se trate

aqui de algo como uma descriação, como no caso do Dilúvio). Esta característica de um evento

global, que devo retomar mais adiante em "Trajetórias: Pensando a Criação?", é o que impõe a forma

literária de narrativa, seja no sentido estrito ou amplo, como sendo a mais adequada para contar o que

ocorreu outrora, no início. Neste sentido, tudo o que tem a ver com o que pode ser considerado um

evento pode ser chamado uma narrativa. Finalmente, a expressão "história primordial" é mais

obviamente justificada na medida em que, em diversas línguas, a palavra "história" designa tanto os

eventos que realmente ocorreram como o relato deles que é dado no plano das formas literárias. Eu

deveria, portanto, falar de histórias primordiais [p.55] no sentido de caracterizar os relatos narrativos

ou quase narrativos que são feitos sobre eventos que ocorreram in illo tempore.

Gostaria de acrescentar uma última observação antes de me voltar para os sentidos ligados

à noção de uma história primordial. A Criação admite diversos modelos operativos, se posso

colocar desta forma. Claus Westermann propõe uma tipologia simples para eles: criação por

geração, criação por combate, criação por fabricação, criação por meio de uma palavra11

. Os

Salmos 40 e 79, bem como várias referências à Criação no livro de Jó, relacionam-se ao segundo

tipo. Nossa narrativa em Gênesis 2-3 pertence ao terceiro tipo. Gênesis l, ao quarto tipo.

Apenas o primeiro tipo está estritamente excluído da Bíblia Hebraica. Numa teoria baseada no

conceito de progresso, o qual a história das religiões tem dificuldade em evitar, haveria uma

8 Enquanto seu filho mais novo está sendo torturado - o episódio tem lugar durante a perseguição dos judeus em 167 a.C.

- a mãe exorta-o com estas palavras: "Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe, e reconhece que não foi de coisas existentes que Deus o fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma. ...Aceita a morte..." Cf. Gibert. Bible, mythes et récits de commencement. P.142 e nota 38 abaixo. 9 "Em minha opinião, o tema da criação, e portanto de um início absoluto, não postula algum gênero literário específico... Ele pode ser tomado em diferentes gêneros possíveis: narrativas, poemas (cf. Salmos), credos, sabedoria, discurso, etc". Gibert. Bible, mythes et récits de commencement, p. 2-16. LACOCQUE, André chega à mesma conclusão: "Deste modo, sabedoria, história, estória e mitos convergem aqui" (acima, p. 11). Ele está correto em colocar sabedoria no início da lista, seguindo a engenhosa análise de ALONSO-SCHÖKEL, Luís. "Motivos sapienciales y de alianza en Gn 2-3". Biblien, 4, p. 295-315, 1962, traduzido como "Sapiential and Covenant Themes in Genesis 2-3". In: Modern Biblical Studies. Milwaukee: The Bruce, 1967. O conhecimento do bem e do mal, a "astúcia" da serpente, a sabedoria de Adam ao nomear os animais e a mulher, e caindo apenas por amor, não por meio de engodo, a detalhada discussão dos "quatro rios", e, bem claramente, toda a discussão sobre o enigma do mal são todos temas de sabedoria. Schökel denomina a maneira pela qual toda uma série de linhas horizontais de explicação são transformadas, vinculando-se a um único ponto de vista (a origem da humanidade), uma "ascensão triangular". Esta é a marca da sabedoria. 10

Estou recorrendo aqui à minuciosa tipologia de categorias literárias geralmente relacionadas com o gênero narrativo proposta por COATS, George W. em seu Genesis, with an Introduction to Narrative Literature. Grand Rapids, MI: W.B. Eardmans, 1983. Ele distingue saga, conto, novela, lenda, história, relato, fábula, etiologia e mito. As narrativas da Criação são parte do gênero saga - "uma saga é uma longa narrativa tradicional em prosa" – devido a sua estrutura episódica. A saga "primitiva" deve ser classificada junto às formas "familial" e "heróica". Eu colocaria a ênfase aqui mais sobre a palavra "primordial" do que saga. Por outro lado, eu concordo com a eliminação do termo mito, que é emprestado de outros domínios literários, helênicos ou indígenas norte-americanos, o que apenas aumenta a confusão. 11

Cf. WESTERMANN, Gênesis. Biblischer Kommentar, p.36-65.

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progressão de um tipo para outro, e nosso texto do Gênesis 2 nos deixaria num ponto mediano.

Podemos, contudo, colocar o problema de um modo diferente, mesmo no que diz respeito à

exegese e, o que é mais importante, no nível teológico. Podemos, ao invés disso, perguntar, com

Jon D. Levenson12

, a cujo trabalho devo retornar, que traços o modelo de combate, comum a

Israel e outras culturas do antigo Oriente Próximo, deixou sobre outros modelos, na medida em

que não há nunca uma questão de Criação ex nihilo antes das especulações inspiradas pelo

helenismo. Creio que esta questão é de interesse tanto teológico como exegético na medida em

que a Bíblia Hebraica nunca cessou de confrontar a boa vontade do Criador e do Redentor com a

persistência do mal. Se este é o tema mais abrangente da Bíblia Hebraica e talvez também dos

escritos do Novo Testamento, a hipótese mais abrangente então não seria a de que a Criação

permanece um drama, seja qual for o modo pelo qual ela é contada ou relatada?

Prosseguindo esta discussão dos aspectos formais que, no plano literário, fazem da história

primordial uma história "separada", consideremos os próprios eventos, como são contados ou

relatados, e indaguemos se o aspecto formal de separação não é refletido, sobre o plano desses

conteúdos, numa estrutura de separação, substancialmente vinculada à própria noção de um início.

Colocando esta hipótese para nossa leitura, estou retornando às minhas observações anteriores

referentes aos dois lados da idéia de antecedência, que me parecem constituir o que está

decisivamente em jogo nas relações entre história primordial e história datada ou datável. Por um

lado, o início não pertence à seqüência [p.56] de coisas contadas; por outro, ele inaugura e dá

uma base a esta seqüência. A hipótese que devemos agora por em teste é se devemos levar

adiante o aspecto de separação ligado à idéia de início, se desejamos finalmente dar seu

significado pleno à noção de eventos fundadores.

Devo me concentrar na seqüência em Gênesis 2.41>3.24, onde encontramos duas

histórias contadas, a da Criação da humanidade e aquela que Claus Westermann põe sob o

item "Crime e Castigo". Proponho reler estas duas histórias como as de uma separação

progressiva, onde o conteúdo contado é o homólogo de sua forma literária.

Quando falo de separação, não estou falando de abandono ou alienação. Separação é

fundamentalmente o que distingue o Criador e a criatura e deste modo indica

simultaneamente a "retirada" de Deus e a consistência pertencente à criatura. Os aspectos

propriamente humanos dessa separação são certamente a perda de proximidade a Deus

simbolizada pela expulsão do jardim, mas também como elevo tentar demonstrar, acesso à

responsabilidade no que diz respeito a si e aos outros. Culpada e punida, a humanidade não

é amaldiçoada13

.

12

LEVENSON, Jon D. Creation and the Persistence of Evil: The Jewish Drama of Divino Omnipotence. San Francisco: Harper & Row, 1985. 13

CRÜSEMANN, F;rank. "Die Eigenständigkeit der Urgeschichte: Ein Beitrag zur Diskussion um den 'Jahwisten'". In: Die Botschaft und die Boten: Festschriit für Hans Walter Wolff. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1981, protesta contra a tendência dominante entre exegetas do Antigo Testamento em ver em Gênesis 2-11 uma imagem sistematicamente "negativa" da condição humana, destinada a servir de contraste à bênção que acompanha o chamamento de Abraão em Gênesis 12. Temos que parar de ler Gênesis 2-11 à luz de Gênesis 12.1-3, afirma ele. Uma vez livre deste defeito, a descrição da condição humana em Gênesis 2-11 mostra características "ambíguas" e não exclusivamente "negativas" da condição humana. Crüsemann conclui, seguindo uma análise minuciosa do vocabulário usado aqui e das referências antropológicas, que Gênesis 2-11 não foi escrito pela mesma mão que Gênesis 12ss. Esta contribuição ao desmantelamento corrente da sogennante Jahwist não é nossa preocupação aqui tanto quanto seu reconhecimento da especificidade temática de Gênesis 2-11.

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O que proponho, portanto, é uma leitura de segundo grau das narrativas em Gênesis

2, baseada nas exegeses de André LaCocque e de outros estudiosos deste material

(especialmente Claus Westermann e Paul Beauchamp) e orientada pela idéia de uma

progressão em separação, culminando na "retirada" de Deus e na expulsão dos humanos do

jardim maravilhoso.

Não devo discutir Gênesis 1 aqui. Entretanto, é impossível, dada a perspectiva

teológica baseada numa exegese canônica, não dar alguma direção à nossa narrativa no

sentido de restaurar toda a trajetória do tema da separação. Se a Criação do mundo significa

algo, é, ao menos no sentido negativo, que a criatura não é o criador. [p.57] Ao exteriorizar-

se, como Franz Rosenzweig o coloca, usando uma linguagem que lembra a do último Schelling,

Deus estabelece em exterioridade uma natureza que até então existia, se não para-si, ao menos

em-si. O primeiro sentido que a criatura tem, devido ao fato de ter sido criada, é existir a uma

distância de Deus, como uma obra distinta. A este respeito, lembramos a força e a amplitude

que o pensamento judeu deu a este tema em que o Criador distancia a si mesmo daqueles que

ele distancia de si mesmo14

. Do mesmo modo que os estágios "sucessivos", que juntos

constituem o evento único da Criação como um todo completo, são distinguidos uns dos outros

como muitas separações15

, assim também a Criação como um todo é colocada sob o signo da

separação, que nós podemos chamar "originária", por meio da qual o mundo existe como uma

realidade multiforme, hierarquicamente organizada e fechada em si mesma. É verdade que

essa separação não é conhecida ou considerada, devido à ausência de alguma testemunha que

pudesse interiorizá-la ou ao seu significado. Não obstante, "quando Deus criou os céus e a terra",

essa multiplicidade começou a existir "em-si" sem ainda ser "para-si".

É o "para-si" da separação que se dá com a Criação da humanidade contada em Gênesis

2.4b-3.2416

. Esta seqüência, que é claramente marcada a partir de um ponto de vista literário,

conta "sucessivamente" duas histórias com cada uma apresentando uma certa unidade

narrativa mas que coalescem. Podemos assim lê-las juntas costurando uma à outra. Um efeito

de superposição é assim criado anulando de certa forma a ilusão de sucessão que, como eu

disse acima, advém dos constrangimentos do gênero narrativo. A narrativa da Criação da

humanidade estende-se de Gênesis 2.7 a Gênesis 2.25, incluindo um incidente relacionado ao

ciclo de "enumerações" relativas aos "quatro rios" do jardim17

. A segunda narrativa está ligada

[p.58] à precedente pelo tema do "jardim" e das "duas árvores" (2.9). Ademais, ela é

antecipada pela colocação da proibição em 2.16-17. Ela se desdobra sem interrupção da

tentação à expulsão do jardim. Propriamente falando, a segunda narrativa conta não tanto uma

Criação como uma brecha na Criação (o que justifica o título de André LaCocque: "Fissuras

no Muro"). Em todo caso, como uma narrativa do início do mal, ela deriva da história

14

GISEL, Pierre. "Reprises du thème de Ia création". In: La Création.Geneva: Labor et Fides, 1987. p. 79-91. Cf. EINSENBERG, J.; ABECASSIS, A. A Bible ouvert.. Paris: Albin Michel, 1978; Et Dieu créa Eve. Paris: Albin Michel, 1979. 15

BEAUCHAMP, Paul. Création et séparation. Etude exegétique du chapitre premier de la Genèse. Paris: Aubier/Cerf, 1969. 16

O cosmos não se perdeu de vista, no sentido em que no tempo em que "Javé fez a terra e os céus", não havia arbustos sobre a terra, nenhuma planta dos campos, nenhuma chuva para cair sobre a terra, e nenhum "homem para cultivar o solo". A tríade -mundo-vida-homem- é implicitamente postulada junto com a criação da humanidade. 17

WESTERMANN, Claus. distingue em sua Introdução Geral entre textos de "enumeração" (Aufzählende) e de "narrativa" (Erzählende) (p. 24). Ver também sua discussão dos versículos 2.10-14 (p. 292-8). As "genealogias" Toledoth pertencem ao primeiro terreno, Gênesis 1-2:4a também.

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primordial.

Se relemos cada uma dessas duas meias-narrativas, primeiro separadamente, depois como

superpostas, orientados pela idéia de separação, somos tocados pelo sentido forte que este tema

ilumina referente a certos detalhes em cada uma dessas duas meias-narrativas e mais ainda pelo

efeito de emaranhamento resultante de sua superposição.

Primeiro, um "homem" é criado, mas em duas vezes, ou melhor, em dois atos. Há a

formação do homem a partir da poeira da terra e a insuflação em suas narinas de um hálito de

vida. O homem ainda não é um ser vivo mas é ainda dependente. Sua tarefa de cultivar e cuidar

do jardim (2.15) começa a torná-lo responsável por algo frágil a ele confiado. Uma separação

importante é indicada pela enunciação de um mandamento que em si consiste de uma permissão

geral (comer quaisquer frutas) e de uma proibição precisa (comer de todas menos uma). "Antes"

de qualquer erro, o mandamento é uma estrutura da ordem criada para o homem. A lei implica

um Limite, e o limite é constitutivo do homem em sua finitude, distinto do Ilimitado divino.

Javé deste modo representa como além do limite, o inacessível, ao mesmo tempo em que ele é

apresentado como o autor de um mandamento não motivado por seu conteúdo (não comer o

fruto da árvore) mas, ao invés disso, assegurado pela autoridade daquele que postula o limite.

Neste sentido, não é isto ou aquilo que é proibido mas, se posso colocá-lo desta maneira, que

há originariamente um limite. Alguém pode objetar que é apenas sob o reino do pecado que a Lei

é percebida como traumatizante e mutiladora. É assim que Paulo entendia a relação entre a Lei e

o pecado. A Lei, despertada pelo pecado, concede morte. Mas, à parte do pecado, o limite teria

sido apenas um limite e não uma mutilação do humano, hostil à vida, como, por exemplo,

Nietzsche o compreendia, recorrendo aqui a Paulo e não a Gênesis 2. Entre a Lei e a Vida, a

relação é a que está posta no Deuteronômio: escolha o bem e você viverá. Neste sentido, o limite

primordial, no cenário de uma Criação inocente, é constitutivo de uma distância que, longe de

excluir proximidade, a constitui. Como pode ter sido observado, a enunciação do limite é

imediata; isto é, à parte de qualquer mediação institucional, mesmo à parte das tábuas da Lei.

Deus ainda fala diretamente ao homem. Esta intimidade em termos de distância define

"proximidade", uma relação desconhecida entre Deus e o resto da Criação. [p.59]

Para continuar na mesma linha, sob a orientação do tema da separação, a nomeação dos

animais, um ato importante de divisão e classificação, não comprova uma iniciativa que é de

alguma maneira emancipada? E a busca por um "ajudante", que a Criação dos animais de certo

modo extravia, não leva à Criação de um parceiro que não é Deus, mas a mulher? E o homem,

em seu grito de júbilo, não celebra a mulher sem nomear Deus? Desta maneira, a humanidade,

dupla embora una, emerge como um evento completo indicando o advento de uma

humanidade separada, que vive por isso tudo em proximidade a Deus.

A segunda meia-narrativa pode também ser lida do ponto de vista de uma progressão

em separação em termos de uma mudança qualitativa que afeta o próprio significado de

separação. Do ponto de vista da composição da narrativa, esta meia-narrativa inclui três

episódios: a tentação, a transgressão da proibição e o julgamento (que em si é dividido em três

seqüências: ocultação, descoberta e as sentenças). Finalmente, vem a expulsão do jardim.

Devemos estar muito atentos à composição da configuração da narrativa para designar

corretamente o que conta como a história primordial. Seria um erro e um grave equívoco para

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a compreensão teológica desta seqüência inteira considerar a transgressão como um evento

separando dois "estados" sucessivos, um estado de inocência que isoladamente seria

primordial e um estado de queda, que seria daí em diante parte da história. A quebra entre o

primordial e o histórico não ocorre no meio da narrativa, mas ela, isso sim, separa o

Geschehensbogen como um todo18

, incluindo a proibição, a tentação, a transgressão e o

julgamento de todas as histórias de desobediência atribuídas a Israel ou às nações. A

configuração em grande escala designa um evento complexo integral, a saber, a postulação

geral da condição humana originária. Mas, se não há dois "estados" sucessivos, um dos quais,

o estado de inocência, seria primordial, a narrativa sugere a idéia de uma progressão na

separação, dentro da história primordial isolada, uma separação que culmina na condição

empobrecida representada pelo episódio da expulsão do jardim.

Considerado deste ângulo, o episódio da tentação assume um significado digno de nota.

Ele deriva do questionamento da proibição

[p.60] como um componente estruturador da ordem criada. Deus disse? A colocação

desta questão encerra a confiança inquestionada nesta proibição, como uma das condições da

vida, que a fazia parecer tão auto-evidente quanto as plantas do jardim. A era da suspeita é

inaugurada19

uma linha falha é introduzida na mais fundamental condição da linguagem, a

saber, a relação de confiança, que os lingüistas chamam de cláusula de sinceridade. A este

respeito, a serpente não deve ser considerada apenas do ponto de vista de seu papel

narrativo, quaisquer que sejam as características míticas que estejam por trás dela20

. Estas

características são de fato "demitologizadas" pela redução narrativa desse tentador que vem

sabe-se lá de onde21

. Como o único outro com quem a mulher conversa, a serpente

representa a inescrutável dramatização do mal como sempre presente ali. Quem - ou o que -

quer que seja que a serpente possa ser, o que é importante para o progresso da narrativa total

é a súbita mutação no desejo humano: "Então, quando a mulher viu que a árvore era boa

para comer e uma delícia para os olhos [não há nada condenável nesta “bondade” ou nesta

delícia “sedutora”], e que a árvore era desejável para adquirir sabedoria. .."(3.6). Temos

aqui o exato momento da tentação: o desejo por infinidade, que implica uma transgressão de

18

No que se refere à unidade inseparável do Geschehenablauf, excluindo uma quebra entre dois "estados" separados pelo erro, ver WESTERMANN, Genesis. Biblischer Kommentar, p. 374-80. "A meta de Gênesis 2-3", observa ele, "não é relatar a substituição de um 'estado' por outro mas a expulsão do jardim e a separação de Deus que a acompanha" (ibid., p. 377). 19

Cf. BEAUCHAMP, Paul. “La serpent herméneute”. In: L’Un et L’Autre Testament. Paris: Seuil, 1990. p.137-58. v.2. Accomplir les Ecritures. 20

Concordo completamente com o que André LaCocque diz sobre a "demitologização / remitologização" do tema da serpente e sobre a dialética humanidade / animalidade. De fato, mesmo se dizemos com Claus Westermann que a serpente é demitologizada devido à redução narrativa que acompanha seu papel nesta história, quaisquer que sejam seus antecedentes míticos, seu papel é tal que não pode ser inteiramente demitologizado. Há a necessidade, se posso pô-lo deste modo, de um resíduo mítico no sentido de transmitir o aspecto inescrutável do poder que perverte a linguagem e o desejo nos "inclinando deste modo para o mal. Essa remitologização parcial da serpente como o outro do humano põe em questão a fronteira entre humanidade e animalidade estabelecida no episódio da nomeação dos animais. Um personagem fabuloso, um animal que fala, era requerido como uma base para a narrativa de um drama humano - demasiado humano. 21

"A afirmação extraordinariamente importante para J de que não há etiologia para a proveniência do mal seria destruída por uma interpretação em termos de mito onde uma proveniência precisa fosse estabelecida" (Westermann, Genesis, Biblischer Kommentar, p. 32-1). Westermann concorda com Zimmerli em que "a sedução ocorre de súbito como algo absolutamente inexplicável dentro da criação boa de Deus. Ela permanece um enigma" (ZIMMERLI, Walther. DieUrgeschichte Mose 1-11. Zurich/Stuttgart: Zwingli Verlag;1967. p. 163).

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todos os limites. Podemos admirar nesta composição como o narrador uniu suspeita ao nível

da [p.61] linguagem e subversão ao nível do desejo. Quando o limite é suspeito como uma

estrutura, o desejo de ausência de limites flui pela brecha deste modo aberta.

O que quer que possa ser dito sobre o enigma do tentador, a narrativa não orienta o

pensamento em busca de sentido na direção da idéia de uma implicação necessária entre

tentação e a violação da proibição. Ao invés disso, a narrativa apresenta essa violação como

um ato distinto e inexplicado (3.6b). A força da conexão narrativa em sua especificidade é

irredutível a uma conexão lógica ou física. Daí o porquê disso ter ocorrido "uma vez". O

evento é, deste modo, reduzido à sua dimensão de ponto como o clímax de todo o arco do que

está por vir.

Para nossa reflexão, centrada no tema da separação, podemos tomar a expulsão do

Éden como a conclusão suficiente bem como real desta narrativa22

. As três sentenças de

punição são certamente significativas na medida em que elas tendem a dar um sentido punitivo

aos aspectos árduos e vulneráveis da condição humana tais como um camponês palestino

podia experimentá-los23

Contudo, a expulsão do Éden é a verdadeira conclusão da narrativa

como um todo. Ela indica o fim daquela proximidade em separação que caracteriza a condição

da criatura.

É o caso de dizer que Gênesis 2.3 descreve a condição humana fundamental em termos

inteiramente negativos? Poder-se-ia ser tentado a dizer isto, especialmente se se lê a seqüência

inteira partindo de sua conclusão, a expulsão do Éden. É por certo verdade que essa peripécia

assinala uma reversão da condição inicial descrita em 2.8, de uma humanidade vivendo em

proximidade a Deus num jardim plantado por Deus. De agora em diante, a história primordial

desdobrar-se-á "fora do Éden". Talvez fosse preciso também que interpretássemos as narrativas

que decorrem das narrativas da Criação em Gênesis 2 a Gênesis 11 em relação ao

estabelecimento de uma condição desterrada do Éden. Contudo, por mais longe que esticarmos

nossa interpretação [p.62] nesta direção, há um limite que não podemos cruzar: a expulsão do

Éden não torna os seres humanos amaldiçoados24

.

Para compreender o hiato que permanece entre separação e condenação, temos apenas

que sobrepor o episódio da Criação dos humanos e o de sua derrelição e lê-los um em relação

ao outro. Pode-se ver, então, que os humanos não cessam de ser criaturas e, enquanto tais,

criaturas boas. As mesmas capacidades fundamentais que constituem a humanidade dos seres

humanos permanecem, embora afetadas com um sinal negativo. A este respeito, duas

características da condição humana são expressamente referidas: nudez e morte. Dentro do

domínio da Criação boa, a nudez é isenta de vergonha (2.25); a vergonha de estar nu emerge

22

Aqui concordo com Westermann em que a verdadeira conclusão da história toda é a expulsão do jardim. As punições têm um caráter etiológico tão pronunciado que é difícil ver nelas a intenção de descrever uma humanidade primordial. Não obstante, devemos retornar a essas punições quando tratarmos da questão se Gênesis 2-3 transmite um julgamento exclusivamente negativo da condição humana. 23

Os comentários de André LaCocque sobre essas três sentenças interpoladas entre o julgamento e a expulsão do jardim são dignas de nota por levar em consideração as análises e discussões delas que foram propostas pela teologia feminista. 24

Colocar Gênesis 2 em paralelo a Gênesis 12.1-3 introduz uma falsa oposição entre maldição e bênção. A este respeito, vale a pena lembrar a advertência de Frank Crüsemann referida na nota 13. "As dádivas originais de Deus vinculadas à Criação não são inteiramente abolidas. Em cada vida, elas combinam com as enfermidades ligadas à Queda e juntas constituem a ambivalência da condição humana" (p. 23). É oportuno lembrar também que a palavra "pecado" é usada apenas em relação a Caim em Gênesis 4.7.

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apenas sob o reino da Queda25

. Mas vergonha está longe de ser uma maldição. Este sentimento,

estudado por antropólogos e acuradamente analisado por Max Scheler26

, constitui uma

considerável aquisição cultural. E a alegria da nudez compartilhada não permanece no abraço

amoroso celebrado no Cântico dos Cânticos? Também em relação à morte, as hesitações

encontradas na narrativa são instrutivas. Por um lado, a ameaça de morte em Gênesis 2 não é

levada a cabo. (O narrador faz com que Adam morra fora do Éden, sem nenhuma palavra de

comentário, em Gênesis 5). Por outro lado, a volta ao pó mencionada nas sentenças de

encerramento indica mais o fim do sofrimento do que uma punição ulterior: Pelo suor do teu

rosto/ comerás o pão/ até que retornes à terra,/ pois dela foste tirado;/ és pó,/ e ao pó tornarás

(3.19). Não deveríamos, então, dizer da morte o que dissemos da nudez, que a Queda não cria

uma nova experiência, que seria aquela da mortalidade, mas que ela inverte o sentido deste sinal

fundamental de finitude. A morte, que deveria ter sido uma morte "fácil", torna-se uma fonte de

angústia e terror - o que o apóstolo Paulo vai referir ulteriormente como as "ondas de pecado".

Além disso, estaria a morte além de toda a esperança, [p.63] quando São Francisco de Assis

recebeu a graça de saudá-la como uma irmã, ao lado do irmão sol?

E o que devemos dizer sobre o conhecimento do bem e do mal? Não resume ele todas as

ambigüidades da condição humana? Sim, este conhecimento foi obtido por meio de uma queda,

mas ele designa uma dimensão doravante irrevogável da condição humana. Não surpreende que,

na tradição do Iluminismo e mesmo além dela, esse conhecimento foi saudado como uma "queda

feliz". Esse tipo de desafio ao divino era necessário para que a humanidade conseguisse seu

status próprio, mesmo ao preço dos tormentos ligados a esse discernimento, e deplorado por

muitos sábios. Sou tentado a colocá-lo desta maneira: é assim que é! Doravante, os seres

humanos enfrentam o desafio de tirar sentido dessa condição infeliz. Não é que até Deus, nessa

narrativa de origens, desempenha um papel? "Então o Senhor Deus disse: 'Vê, o homem tornou-

se como um de nós, conhecendo o bem e o mal'"(3.22).

As coisas tornam-se mais obscuras, e a ambivalência aumenta, se recuamos desta

conquista para as insinuações anteriores da serpente e para a hermenêutica de suspeita que ela

inaugurou27

. A distinção entre bem e mal, em conseqüência, doravante estará ligada à subversão

anterior da confiança na qual está baseada a instituição da linguagem. Em certo sentido, a

serpente falou a verdade: "teus olhos serão abertos, e serás como Deus, conhecendo o bem e o

mal" (3.5)28

. As sombras espessam-se ainda mais se, ao seguirmos o declive do texto, chegamos

ao tema de ser mandado para longe da Árvore da Vida (3.22 e 24). É verdade que a maioria dos

exegetas tende a ver no episódio final da Árvore da Vida (preparado pela alusão às duas árvores

situadas no jardim em 2.9) um tema discordante, derivado de uma outra tradição, a do Deus

ciumento dos seres humanos. Contudo, este episódio pertence à redação final e uma leitura

25

A respeito desta relação entre nudez e vergonha, ver os comentários de André LaCocque na p. 16 |no original]. 26

SCHELER, Max. Ressentiment. Trad. William W. Moklheim. New York: The Free Press of Glencoe, 1961. 27

Ver as observações de Paul Beauchamp a respeito da "serpente hermeneuta" referidas na nota 19. Beauchamp refere-se à interpretação de JAUSS, Hans Rohert em Questíon and Answer: Forms of Dialogic Understanding. Trad. Michael Hayes. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989. p. 51-94. A meta de Deus era conduzir o primeiro casal humano ao longo dos caminhos da história por meio da volta através de uma "Queda", cuidando para que o homem não tivesse nada de que se envergonhar aos olhos de seus descendentes (p. 151, n. 31). 28

Devemos lembrar uma característica para a qual já tivemos nossa atenção voltada: a árvore não era apenas "boa para comer" e "um deleite para os olhos", ela era "desejável para adquirir conhecimento"(3.6). A busca de discernimento emerge das profundezas do desejo, seduzido, cativado c desencaminhado por um "mau infinito”.

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canônica tem que levar isto [p.64] em conta29

. Podemos não estar arriscando ao dizer que para

descobrir uma reflexão sobre a condição humana como separada, foi talvez necessário abrir a

possibilidade, projetada no próprio Deus, de um sentimento de ciúme em relação às

realizações humanas? Para seres humanos reflexivos, é talvez, difícil fazer uma distinção

clara entre a condenação justa de um desejo de não ser contido por limites e a sugestão de que

os deuses não querem que os seres humanos sejam como eles. Uma vez que os seres humanos

tornam-se responsáveis por si mesmos e por outros, a imagem de Deus que somos tem que

aparecer como o lugar possível para uma rivalidade com o divino. Esta rivalidade é, talvez,

meramente uma fantasia, mas a fantasia é real. É o ápice da ambigüidade da condição humana

dentro do âmbito da separação.

A fundação

Ao privilegiar o tema da separação - separação entre o criador e a criatura, separação

do humano dentro do que é criado, separação dos humanos maus de suas profundezas boas -

iluminamos apenas um aspecto da idéia de antecedência. Temos ainda que discutir em que

sentido os eventos constitutivos da história primordial inauguram a própria história, antes de

tudo como a história legendária dos ancestrais, depois como a história tradicional de Israel

entre as nações30

. [p.65]

Esta segunda linha de interpretação é imposta pela Bíblia como se encontra em sua

redação final. A questão que emerge é que intenção poderia ter presidido sobre essa obstinada

imposição de continuidade que a maioria dos exegetas atribui ao javista, que continua a

levantar problemas para uma leitura canônica da Bíblia no que diz respeito a todas as

hipóteses histórico-críticas.

Somos providos de uma transição entre a abordagem descontínua, imposta pelo status

literário das narrativas sobre o início, que as situa à parte das narrativas históricas, mesmo as

legendárias, e a abordagem contínua imposta pela ordem canônica do livro de Gênesis, que faz

destas narrativas a pré-história da história, por duas observações derivadas da primeira

abordagem. Em primeiro lugar, foi observado que, no que diz respeito ao aspecto redacional

de Gênesis 3, três inícios são mencionados, os quais podemos representar graficamente por

três círculos concêntricos: a criação do mundo, a criação da humanidade, e a criação /

29

A difícil questão colocada pelo papel da "Arvore da Vida" nesta narrativa toda originou uma imensa literatura relacionando-a a outros textos do antigo Oriente Próximo. Cf. WESTERMANN, Claus. Genesis. Biblischer Kommentar, p. 288s. Esta claro que apenas a Árvore do Conhecimento do bem e do mal desempenha um papel no drama da tentação e da Queda, de modo que é plausível que a referência final à Árvore da Vida em Gênesis 3.22 derive de outra tradição. Ainda assim, ela deve ter algum significado teológico, pois uma leitura canônica parece igualmente legítima. André LaCocque lembra a interpretação judaica tradicional segundo a qual o texto conota ironicamente algo não dito tal como "assim pensava o homem" ou "de acordo com o tentador". A interpretação que estou propondo não está tão afastada desta tradição como poderia parecer à primeira vista. Parte do confronto entre o homem e Deus consiste em que aquele devia atribuir ciúme a este, como é comprovado, entre numerosos mitos do Oriente antigo, pelo mito grego de Prometeu. Pode ser um outro paradoxo irônico que desde o momento mesmo em que o homem pensa que pode viver como um deus, ele tenha que morrer como um animal. O papel do desejo carregado de fantasia está relacionado à hermenêutica da suspeita articulada pela serpente. 30

Aqui endosso a afirmação central de André LaCocque de que o javista ao situar a história primordial sobre um plano de universalidade, fez esta narrativa um "prefácio" à história específica de Israel, esta tese é verdadeira mesm o se Gênesis 2-11 vem de uma outra mão que Gênesis 12 e mesmo se o redutor desses capítulos tinha em mente nada mais que a oposição entre maldição e bênção. A Criação permanece o início da história, uma força dinâmica operando no interior da história.

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descriação do mal. Estes são três inícios, sendo que em cada caso algo é relatado como vindo

a ser que nada precede. Alguém pode retrucar que todos esses três inícios pertencem ao que

comumente chamamos de Criação, mas o que dizer então sobre todos aqueles outros inícios

relatados em Gênesis 4 até Gênesis 11, que, a despeito do laço generativo que cobre todas as

quebras, referem-se ao surgimento de realidades, situações, relações e mesmo instituições até

então desconhecidas? Como já notamos, o rompimento produzido pela expulsão do "jardim"

não impede o primeiro casal de prosseguir sua existência alhures. (A narrativa não anuncia a

morte de Adam até Gênesis 5.4-5.) E a exclamação de Eva em Gênesis 4.1 - "Eu produzi um

homem com a ajuda de Javé" - faz do primeiro nascimento de uma criança um evento

comparável à aparição da primeira mulher, que fora saudada com um grito semelhante de

júbilo. As narrativas que se seguem contam outros inícios. Por exemplo, o assassinato de Abel

certamente representa "o primeiro crime entre irmãos", completando à sua maneira as

experiências iniciais da humanidade. Sob o signo dos cinco ancestrais, as genealogias que se

seguem fazem surgir invenções que não eram previstas no Éden: a cidade, a vida pastoril,

instrumentos musicais, a forja e mesmo os cultos. É dito de Enoc, filho de Set: "ele foi o

primeiro a invocar o nome de Javé" (Gênesis 4.26)31

. Não há necessidade [p.66] de listar

todas as coisas novas vinculadas à narrativa do Dilúvio ou da Torre de Babel. Sim, é uma

questão de narrativas de origens diversas expressando intenções distintas. Mas do ponto de

vista que estamos adotando aqui, todas elas tendem a constituir, ao menos no nível da

redação final, uma cadeia de inícios que tomados em conjunto constituem a imagem da

humanidade em seus inícios.

Esta corrente de inícios continua além do círculo ampliado dos tempos primordiais

para o próprio cerne daqueles tempos que podemos chamar, num sentido amplo, tempo

histórico, em contraste a esses tempos primordiais. Pierre Gibert fala de "inícios relativos"

no sentido de caracterizar duas grandes categorias de coisas vindouras que se seguem

àquelas que acabamos de mencionar. A primeira dessas categorias tem a ver com as

narrativas relativas ao nascimento de Israel como um povo; a segunda, com as narrativas de

chamamento pertencentes a pessoas, às quais Gibert vincula as narrativas de anunciação.

Notemos que as narrativas relativas ao vir a ser de Israel distribuem-se, por sua vez, em

várias diferentes narrativas de origens: o chamamento individual e coletivo de Abraão, a

passagem através do Mar Vermelho durante a fuga do Egito, a travessia do Jordão no limiar

da Terra Prometida. As narrativas de chamamento, também, são múltiplas pela sua própria

natureza.

A despeito de sua multiplicidade, esses eventos relatados deveriam ser denominados

primordiais. Eles não têm precedente, no sentido exato do termo, entre tudo que os

precedeu. E mais, eles descrevem um encontro face a face entre Deus e um parceiro

humano: Abraão ou Moisés, sem uma terceira parte envolvida, sem nenhuma testemunha,

portanto! O evento é proclamado como tendo ocorrido exatamente desse modo e não

diferentemente, sem qualquer justificativa oferecida que fosse passível de discussão.

Finalmente, essas narrativas de inícios relativos fazem uso do simbolismo dos inícios

absolutos como duas narrativas em particular, duas narrativas simétricas, atestam: a passagem

31

Como André LaCocque coloca em seu ensaio “Fissuras no Muro", Javé é nomeado "o Deus da humanidade."

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através do Mar Vermelho e a travessia do Jordão. As águas do Mar Vermelho são ameaçadoras

como eram as águas primitivas, e elas são separadas do mesmo modo que foram as águas

abaixo e acima no tempo da Criação. Para os egípcios, o desastre é equivalente à

decretação do Dilúvio.

Deste modo, uma relação é estabelecida entre o que podemos chamar de

intersignificação entre inícios relativos e absolutos32

. Trata-se

Mesmo de uma questão de uma relação circular entre inícios, que [p.67] tende a

eliminar a distinção entre início absoluto c relativo, uma distinção que era estranha, como já foi

notado, à cultura do antigo Oriente Próximo. Todo início é ab-soluto, no sentido mais básico de

não estar ligado ao que o precedeu. Assim, os inícios de Israel e aqueles dos chamamentos

proféticos aparecem como desarraigamentos do curso da história e de sua continuidade. Esta

relação circular assegura a transferência de características ligadas à primeira Criação para todos os

eventos fundadores e eleva todos eles ao status de eventos de Criação.

Este paradoxo de uma multiplicidade de eventos fundadores confirma meus

comentários iniciais referentes aos preconceitos desmentidos pelas narrativas de Criação

bíblicas. Não se trata nunca de uma questão de uma Criação ex nihilo, o início não é único por

definição, e um primeiro evento não pode ser representado por um ponto numa linha. Esses

eventos têm uma espessura temporal que requer o desdobramento de uma narrativa33

. Em suma,

a própria idéia de Criação emerge enriquecida desse tipo de proliferação de eventos originários.

Assim, um sentido inicial pode ser vinculado à noção de um evento fundador, a saber, que nele

se expressa o que podemos chamar de energia de início. O que circula entre todos os inícios,

graças à relação de intersignificação, e graças à relação circular realizada pelos eventos iniciais, é

o poder iniciador, inaugural, fundador de um início. A continuidade assegurada por esta relação

circular entre eventos de fundação pode ser comparada com a de uma linha que corre nas

montanhas de pico a pico, a energia do início circulando ao longo dessa cadeia de pontos altos.

A idéia de um evento fundador não é esgotada por esta representação de uma cadeia de

eventos, todos fundadores cada um ao seu modo. Acrescentada a ela está a idéia de uma

continuação, de algo se seguindo, que nos permite dizer que o evento fundador inicia uma

história. Isto é o que está em jogo desde o começo da exegese proposta por André LaCocque.

Mesmo sendo verdade que o evento fundador está separado da história que ele inaugura por uma

palavra específica, o início não é um início a não ser que ele propague o que acabo de chamar

de energia de início, não apenas a outros inícios homólogos, mas à história inaugurada por esses

eventos fundadores.

Aqui surge a reflexão sobre o par "iniciar" e "continuar", porque na Bíblia o início é

sempre, até certo ponto, a promessa34

[p.68] ou ao menos a demanda de uma continuação: a

promessa de um mundo ordenado, ou de uma humanidade responsável, de muitos

descendentes, de uma identidade comum, de uma terra para se viver; uma demanda na

32

GIBERT, Pierre fala aqui de uma "complexa interação de fusão, de trocas” (Bible, mythes et récits de commencement,p. 36). 33

Onde Westermann fala de Geschehensbogen (Genesis. Biblischer Kommentar, p. 259-67), Gibert fala da "persistência dos inícios" (Bible, mythes et récits de commencement, p. 103-13). 34

Jon Levenson (Creation and the Persistence of Evil, p. 17) confere grande importância à promessa que Deus faz a Noé em Gênesis 8.21 de nunca mais amaldiçoar a terra por causa do homem.

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forma de uma missão, nas narrativas de chamamento, o chamamento inaugurando os testes

de um destino com freqüência irresistível. Esta promessa e esta demanda de uma

continuação são redobradas pela certeza de que o que Deus iniciou será continuado por

meio de sua graça. O que a Bíblia chama de fidelidade de Deus constitui o verdadeiro

princípio de continuidade para a história inaugurada pelos eventos fundadores.

De fato, a conexão entre início e continuação - por mais familiar que possa ter

vindo a se tornar para nós no curso de nossa experiência individual ou coletiva - é ainda

mais sutil do que possa parecer à primeira vista; na realidade, ela está repleta de paradoxos

e enigmas.

O paradoxo é apresentado nos seguintes termos por Pierre Gibert na obra a que já

me referi. Para um sujeito reflexivo situado na vida, na história de seu povo, mesmo no fim

da cadeia de seres vivos, "o início é o lugar que não pode ser compreendido, um lugar que

é radicalmente impossível de perceber ou experimentar enquanto um início" (p. 8). A

origem nem mesmo pertence à memória que sonda as profundezas passadas da experiência.

Neste sentido, ele é imemorial. Como, então, reunir-se à origem, partindo do meio da

experiência histórica, de outra maneira a não ser reconhecendo após o fato a força

inaugural da origem no que continua e perpetua sua energia inicial? Neste sentido, a

continuação atesta o início, mas apenas após o fato, na ausência de qualquer testemunha

do início. Se adotamos o ponto de vista da consciência presente, o paradoxo do após o fato

é apanhado na aporia de um início não localizável. Esse início é pretendido sobre o horizonte

de um movimento regressivo que retrocede no tempo e se perde num labirinto de inícios

relativos que, por sua vez levam de volta para um primeiro início, que é, como eu já disse,

incompreensível. Esta maneira de abordar o problema, partindo da experiência vivida, que é

ao mesmo tempo psicológica e filosófica, é legítima com a condição de que a completemos

com uma consideração orientada na direção oposta. A primeira é a abordagem do cientista,

seja ele o psicanalista retornando à origem da vida psíquica (de quem, diga-se de passagem,

vem a noção de "após o fato" que estou usando aqui), ou o historiador pesquisando o

nascimento dessa ou daquela nação, ou o antropólogo procurando os inícios da espécie

humana, ou o biólogo indagando sobre os inícios da vida, ou o cosmólogo que ousa falar,

em termos da imagem de um "big bang", da explosão tida [p.69] como ocorrida no "início"35

.

Não deixa de ser razoável atribuir ao narrador das narrativas da Criação um tipo de

comportamento comparável ao desses cientistas procurando retornar a uma origem partindo de

experiências pertencentes à sua própria esfera de observação36

. Esta maneira de ler a história

dos inícios às avessas é plausível pelo menos de dois modos. Em primeiro lugar, ela

compreende a afinidade, que não é insignificante, que relaciona o suposto ponto de vista

"mítico" e o científico37

. Em seguida, e para nossa pesquisa este é, talvez, o mais importante

dos dois, este retorno à origem partindo da experiência presente esclarece de uma certa forma a 35

GIBERT (Bible, mythe et récits de commencement, p. 58) refere-se a WEINBERG, S. The First Three Minutes: A Modem View of the Origin of the Origin of the Universe. New York: Basic Books, 1977. 36

Assim Gibert vê um paralelo significativo entre a história de Adam e Eva; e a história da violação de Tamar por Amnon, uma narrativa que deriva da historiografia do período monárquico, portanto, uma experiência contemporânea do narrador. 37

Gibert critica vivamente o uso e abuso do termo "mito" na história comparativa das religiões (Bible, mythes et récits de commencement, p. 92s.), Cf. A rejeição deste termo cm VERNANT, Jean-Paul. Le Temps de la réflexion. Paris: Gallimard, I980.p. 21s.

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dialética entre início e continuação, que estamos enfocando aqui. Não falamos de início exceto

após o fato da continuação. A função inaugural do início é reconhecida nesta característica de

após o fato.

Não podemos, contudo, simplesmente parar neste paralelo entre a intenção bíblica das

origens e o retorno às origens a partir de uma perspectiva psicanalítica, histórica,

antropológica, biológica ou cosmológica. Este paralelo entre o que o narrador bíblico e o que

os cientistas procuram fazer faz sentido apenas se atribuímos ao narrador bíblico uma operação

de "projeção das origens" a partir da experiência que ele compartilha com seus contemporâneos.

Entretanto, como formaria ele a própria idéia de uma origem, se ela não lhe fosse já familiar a

partir dos mitos, hinos e escritos de sabedoria que, para ele, já se encontram ali e falam de uma

condição humana e de uma condição cósmica que em si já se encontravam ali antes de serem

relatadas? A idéia deste duplo "já ali" diz mais do que o "depois do fato", que confirma a

primazia de um questionamento enraizado no presente. Ela requer um descentramento radical do

sujeito. Enquanto o pensador presente volta à origem a partir de sua experiência, as narrativas

sobre as origens exercem sua função inaugural e fundadora apenas postulando eventos "após os

quais" há uma história subseqüente. Elas o fazem, por certo, explorando recursos, eles próprios

[p.70] imemoriais, de representações transmitidas que por assim dizer esquematizam a idéia de

uma origem. Graças a esta preparação, podemos denominar "míticas", num amplo e, muitas

vezes, impróprio sentido do termo, as narrativas de origem que falam do início como aquele "a

partir do que" há uma história subseqüente.

Ficamos assim diante do paradoxo de duas versões do "a partir do que": a partir da

experiência presente e a partir do que se fala sobre a origem. Este duplo paradoxo é inevitável.

Por um lado, à parte de se falar da origem, não haveria sentido em se falar de uma experiência

presente de "projeção das origens", sejam individuais ou coletivas, psicológicas, históricas,

antropológicas, biológicas ou cosmológicas. É porque a origem está já sempre relatada que

podemos, após o fato, formar o plano de retorno a ela. É verdade que esta conjunção entre duas

versões de partida dá origem a um conflito interno que explica o caráter tumultuoso dos

eventos fundadores. Falar sobre as origens, como vimos, implica em utilizar representações

antropomórficas (geração, luta, produção, mandamento) herdadas de tradições inescrutáveis. E o

que é ainda mais importante, falar sobre uma origem sem qualquer testemunha é autorizado

apenas por si mesmo. Postula-se a si mesmo a postular o começo que se relata. Esta auto-

referencialidade indica o insuperável aspecto querigmático de tal discurso. É por isso que falar

sobre a origem é exercer uma função de iniciação, inaugural, de fundação.

Por outro lado, a volta às origens a partir da experiência presente, mesmo quando

orientada em sua busca pela confirmação de uma origem que a precede, tem que exercer uma

função crítica no que diz respeito a todas as representações que esquematizam qualquer fala sobre

a origem, e deve fazê-lo na medida em que a experiência do narrador oferece modelos cada vez

mais refinados capazes de orientar a "projeção de origens" e de conjeturar "como" eles ocorrem.

Isto justifica a verdade da resposta que Pierre Gibert dá à questão de por que há diversas

narrativas sobre o mesmo início, que não é a mesma questão que a que consideramos acima

referente à multiplicidades de inícios. Tomando em seqüência Gênesis 2-3, Gênesis l e 2

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Macabeus 7.25-2938

, ele vê um processo de crescente "demitologização", primeiro afetando os

mitos cananitas que estão no horizonte de Gênesis 2-3, em seguida o conhecimento

protocientífico dos babilônios [p. 71] no horizonte de Gênesis l, e depois a completa erosão de

toda representação de início sob a pressão da cultura helenística nos horizontes de 2 Macabeus. A

projeção de origens a partir da experiência contemporânea do narrador seria responsável, então,

pela depuração progressiva das narrativas do início na direção de um ponto de fuga onde o

reconhecimento da Criação de todas as coisas por Deus não mais seria suportada por alguma

representação e seria, assim, reduzida ao status de uma pura confissão de fé.

Creio ser preciso seguir Pierre Gibert aqui. Mas sua reflexão crítica só assume seu

significado pleno se situamos o relato da origem em cada instância no ponto de cruzamento de

duas postulações: a de uma origem que requer ser referida como aquela "a partir da qual" há

uma história subseqüente, e a da experiência de um narrador como aquela "a partir da qual" esse

narrador tenta representar o início a partir de um modelo conhecido por ele39

. O que é importante

para qualquer pensamento ou linguagem relativo ao início, à origem, é o conflito entre estes dois

movimentos que emergem neste ponto de cruzamento. Um fala da origem de uma maneira

enfática, peremptória, querigmática, o outro a procura e, no limite, leva à admissão de que a origem

é inalcançável. Este segundo movimento parte de uma consciência presente, autocentrada,

procurando seu próprio início; o primeiro parte do próprio início, que descentra a consciência e se

impõe como estando ali já antes de a consciência começar [p.72] a procurá-lo40

. O pressuposto

religioso aqui é o de que a própria origem fala deixando-se a si mesma ser referida. A origem

das coisas e a da fala coincidem neste ponto. Esta coincidência tem que ser tomada como uma

dádiva: uma dádiva de ser e de falar de ser41

. A partir desta dádiva, todo retorno rumo à

38

“O rei Antíoco chamou a si a mãe e insistiu para que ela aconselhasse o jovem a salvar-se. Depois de muita insistência da parte dele, ela encarregou-se de persuadir seu filho. Mas, aproximando-se dele, e ludibriando o cruel tirano, assim falou na língua de seus pais: ‘Filho, tem compaixão por mim que por nove meses te trouxe em meu ventre c por três anos te amamentei, alimentei-te e te eduquei até esta idade, provendo sempre ao teu sustento. Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma. Não temas este carrasco, mas torna-te digno dos teus irmãos. Aceita a morte, a fim de que eu torne a receber-te com eles na misericórdia de Deus'" (2 Macabeus 7.25-29). O resto deste capítulo conta como o filho e sua mãe morreram de "horríveis torturas" (ver GIBERT, Bible, mythes et récits de commencent, p. 142). 39

Poderíamos perguntar se a interseção desses dois "a partir da qual" não se encontra em uma maneira atenuada mesmo nas formas científicas contemporâneas de uma busca pela origem. Nossa angústia referente à nossa origem, sublinhada pela psicanálise, pressupõe, no mínimo, a certeza de que eu nasci, já nasci, que eu descendo de meus pais, de meus ancestrais; em suma, que meu próprio início ocorreu e, na medida em que ele aconteceu, ele precede qualquer consciência que eu possa ter dele. Perguntamos da mesma maneira sobre as origens da humanidade, da vida, do mundo. 40

O fenômeno de vir depois do fato, do qual Gibert fala, está situado na interseção dos dois "a partir da". De outro modo, Gibert não poderia falar do "alicerce do evento", usando uma expressão emprestada da psicanálise, que se encontra ela mesma confrontada com a "cena primitiva". Cf.LAPLANCHE, Jean. Vocabulaire de la Psychoanalysis. Paris: PUF, 1973. p. 432-3 41

Há também a capacidade dos leitores de reconhecer que eles foram criados com uma inclinação para o mal. Esta, como diz André LaCocque, é a chave para a autoridade e credibilidade de J. Seguindo Timóteo 3.16, poderíamos chamá-la de "inspiração" ou theopneustia. Também LaCocque, muito corretamente, aproxima a ausência da audiência das palavras inquiridoras, "onde estás" em Gênesis 3.9, da situação do leitor das narrativas da Criação. "O que o leitor sabe está limitado ao que o autor cuida de contar, e a como ele cuida". É verdade que ele compensa esta declaração com o seguinte comentário: "A 'estória' de J está repleta de poder porque o leitor está, a despeito de sua suposta ausência enquanto endereçado, na verdade presente no todo e em cada detalhe. Ela se reconhece em Eva, ele se reconhece em Adam". Este reconhecimento é a réplica indispensável às narrativas desses eventos em relação aos quais Beauchamp e Gibert salientam que não tinham testemunhas no que nos precediam.

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origem é possível, permitido, necessário, mesmo se ele termina no inatingível42

.

Trajetórias: pensando a criação?

Nesta seção, que traz o mesmo título que este ensaio, eu gostaria de explorar diversas

trilhas ao longo das quais devo me empenhar em pensar que significados teriam as

representações de Gênesis e de outros textos da Bíblia Hebraica sobre Criação. Não há

realmente uma quebra entre esta nova inquirição e as duas precedentes, que estavam mais

próximas da exegese, na medida em que as narrativas [p.73] da Criação, mesmo as de aspecto

mais arcaico, trazem todas as marcas da reflexão dos sábios do antigo Oriente Próximo, do qual

Israel era uma parte integral. Embora esses sábios pensem diferente dos gregos, eles apresentam a

mesma curiosidade, o mesmo espanto, o mesmo deslumbramento, a mesma vontade de

compreender dos gregos, dos Pré-Socráticos a Plotino.

Nossa exploração pode tomar duas direções43

. Podemos primeiro indagar sobre o status

da realidade - cósmica ou humana - como uma criatura. Em seguida, recuando da criatura

como um fato dado ao ato criativo, podemos colocar de novo a questão do significado da idéia

de precedência que dominou nossas duas primeiras seções.

Ao longo da primeira linha de pensamento, nossa distância dos textos antigos será

especulativa e crítica. É apenas ao longo da segunda via que consideraremos as importantes

mudanças que o Novo Testamento e o período da Patrística introduziram na idéia de um início

e / ou uma origem.

Nosso primeiro ciclo de reflexão encontra seu ponto de partida na questão posta no

início deste ensaio, sobre se uma teologia da Criação pode ser autônoma a despeito sobre seus

estreitos laços com uma teologia da salvação. Recentemente esta questão recebeu uma

resposta inteiramente afirmativa do exegeta-teólogo alemão Hans-Heinrich Schmid, a quem

devemos também uma investigação séria da questão da contribuição do Javista à composição do

Pentateuco. Entretanto, não é seu Der Sogennante. Jahwist que vou considerar, mas sim, seu

livro de 1974, The world of the Ancient Orient in Old Testament Theology44

. Sua tese ali é

exegética e teológica. No plano exegético, Schmid enfatiza a solidariedade do pensamento

hebraico com seu contexto cultural no antigo Oriente Próximo. No plano teológico, ele afirma

que o tema teológico da Criação é apenas uma expressão parcial de um "tipo cósmico de

pensamento", que deve ser tomado como o Gesamthorízont da teologia bíblica45

. Daí o subtítulo

de seu livro: Schöpfung, Recht, Heil - criação, lei, salvação. Pensar a [p.74] Criação como uma

obra que foi feita e recebida é pensar através da profunda unidade que une três ordens ou

ordenações (Ordungen), nos planos cósmico, político e jurídico, com a salvação sendo vista

42

Seria útil concluir esta discussão com uma observação referente à discussão que Gibert abre sobre como teologia e ciência estão relacionadas no que diz respeito à questão da origem. Se o narrador bíblico está próximo ao cientista em busca da origem a partir de seu conhecimento da realidade presente ele permanece sozinho na interseção do que já foi dito sobre a origem e uma busca orientada na direção de uma origem finalmente inatingíve l. O discurso resultante tem o status paradoxal de um discurso partido, um discurso já dito e sempre inadequado. 43

A bifurcação de minha meditação é quase paralela à proposta por Pierre Gisel em sua obra La Création. Por um lado, há a questão de um início; por outro, a da consistência do real. Estou fazendo uso deste termo "precedência" como uma maneira de falar destas duas faces do grande enigma da Criação. 44

SCHMID, Hans-Heirich. Altoríentalische Welt in der alttestamentlichen Thelogie. Zurich: Theologische Verlag, 1974. 45

Schmid vai a ponto de dizer que o tema paulino da "justiça de Deus" pertence ao mesmo "horizonte geral", que nos permite chamar a nova ordem histórica inaugurada pela ressurreição de uma "nova criação".

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como o retorno à ordem em cada um destes diferentes registros.

Eu volto a esta obra neste estágio de minha indagação porque Schmid pensa que

nossas aspirações contemporâneas à justiça derivam do mesmo tipo de pensamento sobre

ordem, o qual, malgrado seu arcaísmo, deveria ser capaz de encontrar uma aplicação atual

precisamente por meio destas aspirações46

.

Mas pode uma eventual teologia de criação ser pensada apenas por meio da idéia de

ordem, mesmo se esta idéia é tomada no sentido de ordenação? Eu gostaria de propor três

correções a esta idéia de criação como uma realidade ordenada.

Primeiro, temos que falar da contingência da ordem47

. Em suma, pensar no real como

um todo - abarcando humanidade e mundo - como uma criatura, é pensar nele como uma obra,

como algo feito. Isto implica um paradoxo. Por um lado, temos que enfatizar o aspecto já

instituído da Criação como um todo, e isto vai contra duas tendências características da

modernidade (como Pierre Gisel aponta em La Création). A primeira dessas características, que

surgiu na época de Galileu e Descartes, com a matematização da realidade física, leva à

remoção de toda opacidade do real e sua redução a um modelo matemático, homogêneo a certas

operações de pensamento características da mente humana; a segunda característica leva a tornar o

sujeito pensante o centro do universo de significação48

. Pensar em termos da ordem do mundo,

para voltar a Schmid, é uma alegação, no [p.75] plano cósmico, da irredutibilidade do real às

representações que a mente humana dá a ele e, no plano antropológico, de um lugar para uma

passividade e receptividade que negam a hybris do sujeito soberano, devolvendo-o ao seu lugar,

o de um ser humano situado dentro de uma criação que o precede. Esta dupla alegação

encontra fortes ecos em muitos críticos contemporâneos da modernidade49

.

Entretanto, o outro lado deste paradoxo referente à Criação não deve ser perdido de vista,

pois de outro modo transformaríamos este pensamento sobre ordem num ídolo. Pensar em

termos da idéia de Criação não é a mesma coisa que pensar em termos da idéia de ordem. É, mais

fundamentalmente, pensar na Criação como uma gênese; isto é, conceber a própria ordem como

um evento. Na linguagem do antigo Oriente Próximo como na da Bíblia Hebraica, a idéia de uma

tal irrupção sem precedente da ordem cósmica e humana é transmitida por meio de diversas

representações tais como a luta contra o caos, como fabricação quase artesanal, como a eficácia

de uma palavra que suscita, ordena, que traz à existência. O significado que percorre essas

46

Ao invés de existir uma adequação exata entre a "justiça de Deus" e a do inundo, só o primeiro termo "nos autoriza a falar coram deo da justiça do mundo" (SCHMID. Altoríentalische Welt, p. 29). "Todo pensamento humano tem ... a ver com a questão da compreensão correta do mundo e de suas ordens, portanto com a questão do direito e da justiça no sentido mais amplo destes termos" (ibid.). Numa nota, Schmid concorda que é verdade que esta Ordnungsthematik é uma "abstração de segundo grau do intérprete" (n. 45). 47

Volto aqui à tese central de La Création de Pierre Gisel. Ao falar dos textos bíblicos e de como eles foram tomados durante os períodos Patrístico e Medieval, ele declara: "Descobrimos que o que ocorre aqui, em cada instância, é a interacão de uma gênese e de algo positivo, e devemos pensar através da irredutibilidade destes dois termos entre si e de sua necessidade recíproca mútua" (p. 241). 48

Esta dupla alegação encontra um forte eco em várias críticas contemporâneas da modernidade – em Husserl, Heidegger e Gadamer, por exemplo - que visam redescobrir os valores concretos de uma experiência do mundo que resistiria à completa matematização da natureza. 49

GISEL, Pierre encontra uma aproximação teológica e filosófica do significado pretendido pela doutrina bíblica da criação no conceito tomista de um "ato de existir" e na primazia que ele implica da existência sobre a essência (cf. La Création, p. 148-67). Devo retornar a este problema adiante em minhas observações a respeito de Êxodo 3:14: "Eu sou quem sou."

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reapresentações é o mesmo: um feito, um ato está na origem do que é. É difícil para a razão

aceitar e manter esta idéia. Ela requer o entrelaçamento das idéias de contingência e necessidade

e a afirmação, de um modo quase mítico, de que a necessidade é a obra de um ato contingente,

portanto, não necessário, um ato sem razão ou precedente. Se, contudo, unimos as idéias de

necessidade e contingência sob a idéia de "ordenação", podemos perguntar se a idéia de ordem

em si não assume um sentido mais dinâmico do que estático, particularmente quando passamos do

plano cósmico para o plano humano de direito e justiça. Mesmo se, seguindo Schmid, nós

corretamente afirmamos que é ainda a idéia de ordem que demanda justiça, esta ordem não mais

designa uma obra completada, mas antes uma obra ainda em andamento, uma ordem confrontada

com a injustiça do mundo.

Aqui um segundo ciclo de problemas e dificuldades vem à luz.

Num artigo sobre a teologia da criação, Schmid se refere à discordância (Diskrepanz)

entre a ordem da Criação e a experiência histórica do mal. Esta discordância assume a forma de

um conflito aberto se, dentro do campo de uma suposta teologia da criação, estendemos a idéia

de ordem do plano cósmico para o plano ético-jurídico, [p.76] e se, deste modo, incluímos a

idéia de justiça dentro da de ordem. O que se abre, então, é o hiato entre a "justiça" ou

"retidão de Deus" e a injustiça do mundo. Podemos perguntar se, pelo próprio fato de

acrescentar a noção de justiça à de Criação no sentido cósmico estrito do termo, não

introduzimos, no interior do próprio cerne da idéia de ordem, um aspecto de fragilidade, um

aspecto que altera o caráter inicialmente tranqüilizador da idéia de ordem, e que o faz em

maior medida que a mera idéia da contingência da ordem, onde apenas a origem desta

ordem parece estar em questão. Aqui é a própria ocorrência da ordem, sua eficácia, que é

posta em questão, como se um elemento ameaçador estivesse originariamente implicado no

"pensar através da ordem cósmica" de Schmid.

E mais, enquanto a idéia de discordância parece implicar um desafio vindo de fora, a

idéia de fragilidade sugere uma vulnerabilidade intrínseca à própria ordem.

Diversas características do que a Bíblia diz sobre a Criação sugerem isto. Primeiro, os

redatores finais do Pentateuco preservaram Gênesis 2-3 e situaram esta narrativa seguindo

imediatamente Gênesis l, cujo tom tranqüilizador, para não dizer triunfal, é discretamente

questionado. Gênesis 2-3 apenas relata a Criação do homem no sentido de estabelecer o

cenário para um conto exemplar, aquele que Claus Westermann intitulou "crime e castigo".

Em seguida, como vários comentadores indicaram, a sombra de Gênesis 3 é projetada

retrospectivamente sobre Gênesis 2. Por exemplo, a proibição, de início apresentada como

uma estrutura da ordem criada, que fornece uma razão para Schmid reunir "criação, justiça e

salvação", aparece retrospectivamente, do ponto de vista de Gênesis 3, como a ocasião para

a queda. E a narrativa passa gradualmente, por meio do engodo atribuído à serpente, da

obediência à tentação e da tentação ao erro. Schmid pode muito bem dizer que a retribuição

ainda deriva do pensamento de ordem, a qual, tendo sido perturbada, é restaurada, mas

permanece a possibilidade de que o mal surge como inscrito na estrutura ética da Criação.

Para que serve uma proibição que não implica uma alternativa entre obediência e

desobediência? E não é a Árvore do Conhecimento a árvore desta alternativa, embora

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tenhamos traduzido por conhecimento do bem e do mal?50

[p.77]

Esta vulnerabilidade da ordem em sua forma ética nos convida, por sua vez, a perguntar

se, entre todos os modelos da Criação que uma tipologia cuidadosa possa distinguir, não é a

Criação concebida como uma batalha com forças adversas que tem as maiores afinidades com o

tipo de fragilidade que o erro original transforma em más ações vigentes. Há aqui, à primeira

vista, um paradoxo perturbador: Quais seriam as representações mais "arcaicas", mais "míticas",

mais "bárbaras" que melhor explicariam a estranha e subterrânea solidariedade que parece

existir entre o aspecto já ali do mal e o aspecto dramático da Criação?

É isto que, para mim, confere tanta força ao livro de Jon Levenson, Creation and the

Persistence of Evil, que toma o tema do "controle" ao invés do da ordem, mesmo da ordem

enquanto ordenação, como seu tema central. A resistência à ordem não é, então, reduzida desde

o início a uma idéia de uma rebelião secundária, extrínseca, finalmente redutível ao erro

humano, ao pecado. Essa resistência, manifestada na expressão "a persistência do mal", surge,

pelo contrário, inerente à Criação, que é em essência vulnerável e frágil.

A base exegética para esta concepção profundamente dialética da Criação dá-se da

seguinte maneira. Ao invés de distribuir os modelos da Criação como faz Westermann, isto é,

como criação por geração, por combate, por fabricação, pela palavra, Levenson os coloca em

termos de uma escala de graus e modalidades de resistência àquelas forças hostis a uma

Criação bem ordenada e benéfica para os seres humanos. O primeiro resultado desta investigação

é que as diversas teologias da Bíblia podem ser dispostas entre aquelas concepções em que as

forças do caos permanecem não conquistadas e sempre ameaçadoras - mesmo após a vitória

sobre o caos, como vemos no Salmo 104.6-9, Jó 38.8-11, Salmo 74.12-17 - e a concepção de

uma vitória sem resistência, como em Gênesis l, e mesmo ali os traços do mito de um combate

com o caos não estão completamente apagados51

.

A segunda lição de Levenson é que, em períodos de tensão, a onipotência de Deus é

invocada, conforme testemunham os salmos de lamentação. Tempos infelizes são vividos como

aqueles em que Deus está dormindo, como tempos de latência, de uma retirada de Deus como

poderíamos dizer hoje. Às vezes, o salmista implora, lembrando "outros dias", que Deus devesse

despertar. Às vezes, a vitória de Deus [p.78] é projetada em tempos escatológicos. Como diz

Levenson, não encontramos "fé absoluta na bondade definitiva de Deus, mas fé restrita em sua

bondade próxima" (Creatíon and the Persistence of Evil, p. 45).

Um terceiro tema é a certeza de que a bondade originária e final da Criação apóia-se

sobre a confiança na fidelidade de Deus; isto é, sobre um juramento divino, que encontra seu

modelo no juramento feito por Deus, em seguida ao Dilúvio, de nunca mais desfazer sua

50

Cf. a discussão introduzida por WESTERMANN, Claus referente ao sentido bíblico da expressão "conhecimento do bem e do mal" (Genesis: Biblischer Kommentar, p. 328-38). É uma questão de discernimento moral no sentido preciso do Deuteronômio ou, antes, de uma sabedoria prática baseada numa expressão evasiva para o que está em questão? De acordo com minha própria tese, ambas as interpretações refletem a fragilidade da ordem. 51

O vácuo disforme de Gênesis 1.2 certamente não parece ter sido criado, nem as águas que são separadas, nem especialmente as sombras que são contidas dentro da luz. Entretanto, nenhuma dessas teologias se refere a uma Criação ex nihilo.

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Criação52

.

A lição final é que a Criação sem resistência, ilustrada em Gênesis l, encontra seu

significado num contexto essencialmente litúrgico, como a referência ao que Sabá, que parece

de fato ser o pólo organizador deste texto inaugural, testemunha. O conflito não é abolido,

contudo. Ele agora se insinua entre nossa confiança litúrgica na onipotência de Deus e nossa

experiência diária da persistência do mal.

Há uma última questão a ser notada, não menos significativa. Se a fidelidade de Deus à

Aliança é a única garantia de que Deus finalmente triunfará sobre as forças do mal, a

contribuição dos seres humanos a essa vitória final é o mitzvah — a ação boa, correia. O

conjunto da ética judaica encontra-se assim mobilizada como um tipo de mediação entre a

fragilidade da Criação e a persistência do mal.

Devemos em seguida considerar a afinidade que é deste modo sugerida entre as forças

hostis inerentes ao processo da Criação e o mal humano. A lição de Gênesis 2-3 é, por certo,

não a de que deveríamos confundir fragilidade e maldade, finitude e culpa. A origem do mal é,

ao invés disto, apresentada ali como distinta e, finalmente, como enigmática. É por isto que

falamos sobre um terceiro ciclo de eventos fundadores, distinto daqueles referentes à Criação

da humanidade e daqueles relativos à Criação do mundo.

Mas, então, se a origem do mal é algo além da fragilidade constitutiva da Criação, uma

outra perplexidade nos assalta referente à assimilação que Schmid propõe entre criação e ordem.

Ela trata da consistência da própria seqüência que sua exegese propõe como criação, justiça,

salvação.

Uma teologia de criação que procura reunir em um pensamento, o pensamento sobre a

ordem cósmica, os três termos, criação [p.79], justiça e salvação, é sobrepujada pelas forças

que levam a dissociar a Criação como o vir-a-ser do mundo a partir da justiça exigida dos seres

humanos e a salvação projetada no horizonte escatológico da história. A este respeito, a

Criação pode permanecer o "horizonte circundante" do campo teológico, mas ela não pode

tornar-se abrangente no que diz respeito aos seus vários temas. Por que não? Porque o campo

teológico não pode ser totalizado. Nossas experiências mais básicas nos três domínios que

Schmid gostaria de unificar - da física, do direito e da ética, e o da esperança de salvação - na

verdade levam ao rompimento de qualquer tentativa de forjar algum conceito totalizador.

Vejamos qual é o ponto crítico. Já não sabemos como pensar a "justiça de Deus" como

uma estrutura da Criação do mundo e como uma demanda que organiza o campo prático, isto é,

o campo da ação humana. De todos os conceitos referidos por Schmid, e com o qual ele

encerra seu ensaio, é seguramente a "justiça de Deus" que se tornou o mais enigmático para nós.

Se a justiça de Deus pertence ao mesmo tipo de pensamento que a Criação e a Salvação, então

devemos dizer que deixamos o campo onde essa conexão ainda é concebível. Mas estamos sós

em termos nos tornado estranhos a esse tipo de pensamento totalizador? Não teria a sabedoria do

52

O juramento e a fidelidade que dele se seguem indicam a extrema proximidade da teologia da Criação com aquela da Aliança, que se reforçam mutuamente. De acordo com a primeira, Deus sobrepuja o caos; de acordo com a segunda, a fidelidade de Deus é a única segurança de que o caos será finalmente conquistado, como o foi na origem, e de que o tempo de aflição é transitório.

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antigo Oriente Próximo e judaica desferido o primeiro golpe contra esse tipo de pensamento

totalizador? E não foram esses primeiros golpes dados no próprio domínio onde a ordem cósmica

revelava sua fragilidade, a experiência e o enigma do mal? A irredutibilidade da lição de Gênesis

2 às ambições totalizadoras de Gênesis l já testemunha isto. Sim, o pensamento sobre a ordem

cósmica deve preservar sua intenção totalizadora. Mas ele pode fazê-lo somente situando a

problemática do mal sob o signo da retribuição, onde todo sofrimento deve descarregar algum

pecado. Esta é, é verdade, a concepção que os profetas de Israel tentaram transmitir ao povo

judeu. De fato, a doutrina da retribuição é a concepção que governa a ponto de saturação a

historiografia deuteronomista, onde os dirigentes de Israel são sempre julgados e condenados

por uma única infração, aquela do primeiro mandamento. Mas se esta teologia totalizadora deve

ser assumida, que sentido podemos dar aos salmos de lamentação ou ao protesto de Jó? E mesmo

se Jó finalmente curva-se diante de Deus, resignado a uma ordem que o ultrapassa, sua questão

permanece, mais forte que sua resposta final. Esta questão indica o rompimento da idéia de

ordem como abrangendo criação, justiça e salvação. A injustiça do mundo constitui um fato tão

sólido que o suposto laço entre a idéia de justiça e a de criação perde quase toda sua

pertinência. A Criação pode permanecer o horizonte [p.80] circundante, mas ela cessa de ser a

idéia abrangente que constituiria sua identificação com a idéia de ordem.

Em última análise, falamos de criação, justiça e salvação como diferentes modos de

pensamento. Esta divisão entre pensamento cosmológico, pensamento ético e político e

pensamento escatológico é, talvez, uma daquelas características por meio das quais a

experiência histórica de Israel se posiciona contra o pano de fundo do "pensamento sobre a ordem

cósmica" que ele continuou a compartilhar com seus vizinhos do antigo Oriente Próximo.

Quero agora indicar duas importantes questões ao longo da longa estrada que leva aos

argumentos na filosofia clássica e moderna referentes às idéias de um início ou uma origem.

Falo de início ou origem no sentido de levar em conta uma discussão que desempenhará um

papel considerável na filosofia que trata da distinção entre a idéia de um início, tomada no

sentido limitado de um início temporal (isto é, o primeiro termo numa série sucessiva de

eventos, estados ou sistemas), e a idéia de uma origem, tomada no sentido de uma fundação,

num sentido atemporal do termo. Como se pode ver, esta discussão prolonga a bifurcação que

consideramos no plano exegético entre o aspecto separado da história originária e função

fundadora dos eventos que a compreendem.

Recordemos a fórmula de Gênesis 2.4b: "Quando (não havia) ainda (isto ou aquilo)

então Deus criou..." Nada está decidido aqui no que se refere ao sentido temporal ou atemporal

do evento em questão. E o mesmo parece aplicar-se à fórmula em Gênesis 1.1. "No início Deus

criou", que importantes intérpretes judeus como Rashi, Buber e Rosenzweig lêem em termos de

Gênesis 2.4b como "[Quando] no início Deus criou os céus e a terra, a terra estava vazia e sem

forma". O léxico grego forneceu um conceito, o de arkhe, que tendia a subordinar a noção de

início num sentido temporal à de origem no sentido atemporal de fundação. O grego arkhe

tornou-se o latino principium como pode ser visto nas primeiras traduções da Bíblia para o

latim e na Vulgata de Jerônimo: "in principio Deus..." O que deveríamos entender por en arkhe

ou in principio? O sentido em Gênesis l do que vem primeiro, bereshîth, o que é princípio ou

primordial, excelente, "primeiro". O sentido da preposição é dinâmico: "em direção a / para a

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excelência, Deus criou..."

É aqui que intervém a mais importante decisão teológica, a de assimilar este "princípio" à

Palavra. O prólogo a João vem naturalmente à memória, o qual pretende ser uma réplica

explícita de Gênesis: "No início havia a Palavra/ e a Palavra estava com Deus/ e a Palavra era

Deus./ No início a Palavra estava com Deus./ Tudo foi [p.81] feito através dela / e sem ela nada

foi feito"53

. Esta assimilação do início e da Palavra por certo tem antecedentes hebraicos nos

escritos de sabedoria, onde a sabedoria quase personificada é associada a uma mediadora na

obra da Criação54

,s' e a idéia de um início é composta com a de uma origem graças às obras

atribuídas à sabedoria, elevada deste modo à categoria de um co-criador. O texto da epístola

aos Colossenses é especialmente notável no que diz respeito a isto: "Ele é antes de todas as

coisas [uma indicação temporal do início] e tudo subsiste através dele [uma indicação

atemporal da origem]" (1.15). A hesitação, ou se preferir, a supradeterminação devido à qual é

possível escrever "início e / ou origem" já estava, talvez, presente no beth do bereshîth de

Gênesis 1.1. Entretanto, qualquer que possa ser o caso em relação aos antecedentes desta

polissemia latente de "no início" e "em Cristo" ( ou "através" de Cristo), foi crucial para o

futuro da teologia cristã. O sentido temporal de início não estava completamente excluído, mas

estava virtualmente subordinado ao sentido atemporal de origem compreendida como

fundação. Contudo, a concordância entre o sentido temporal de "início" e o sentido atemporal

de "origem" deveria ser enfatizada novamente durante o período da Patrística na ocasião da

polêmica com filósofos gregos, que eram firmes defensores da eternidade do mundo. A tese

da eternidade do mundo aparecia como incompatível com a doutrina da criação na medida em

que ela parecia implicar a auto-suficiência do mundo. Nessas circunstâncias, os apologetas

cristãos e os fundadores da teologia patrística foram levados a ligar a idéia de criação à de um

início temporal, como um tipo de contraponto, por assim dizer, à idéia de uma fundação /

origem. Ao afirmarem que o mundo nem sempre existira, esses pensadores cristãos

confirmavam que ele havia sido criado em algum tempo, um dia. Mas e o tempo anterior a este

evento inicial? Seus oponentes zombavam deles, perguntando: "o que Deus estava fazendo

antes de criar o mundo? Estava ele ocioso, esse Deus todo poderoso? E por que decidiu ele

num determinado momento ao invés de em outro criar o mundo, esse Deus todo sábio? Do que

carecia ele, esse Deus que de nada precisa?" Este é o debate que Agostinho herdara ao abordar

os primeiros versículos do Gênesis nos Livros X e XI das Confissões.[p.82]

É importante que sua primeira questão foi a identificação já referida entre início e

princípio. "Posso eu ouvir e compreender como no início [in principio] fizeste [fecisti] céu e

terra" (XI.v[7]). Falar do início é falar da "palavra": "Portanto falaste e eles foram feitos, e por

sua palavra os fizeste" (XI.v[7])55

.w Deste modo, temos desde o começo a idéia de um início

solidamente ligada à idéia de uma fundação / origem. A primeira oposição que, então, se

impõe é entre coisas que passam, incluindo nossas próprias palavras, e a Palavra eterna. Isto

não quer dizer que a questão de um início temporal é posta de lado, pelo contrário, ela está daí

em diante aberta a uma solução inteligível: a primeira resposta a ser dada ao adversário que

53

Não devemos perder de vista as proclamações que acompanham este hino na carta aos Colossenses. "Ele é a imagem do Deus invisível, o primeiro nascido de todas as criaturas, pois todas as coisas foram criadas nele" (1.15). 54

"Javé criou-me no início de seus planos,/ antes de suas obras mais antigas/ Da eternidade, fui fundada,/ do início, antes da origem da terra..." (Pr 8.22s.). 55

AGOSTINHO, Confessions. Trad. Henry Chadwick. New York: Oxford University Press, 1992. p. 223 e 225.

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exige saber o que Deus estava fazendo antes de fazer os céus e a terra, que é dirigida aos

maniqueus e que permanece no plano formal da contradição, é: "ele não estava fazendo nada"

(XI.xii[14]). Com efeito, se ele estivesse fazendo algo, isto significaria criar algo. A segunda

resposta de Agostinho, que é dirigida mais aos neoplatônicos, toca o cerne do nosso problema,

pois é a própria noção de "antes" que é posta de lado, na medida em que o tempo como um

todo foi criado junto com todas as outras coisas criadas. "Fizeste o próprio tempo. O tempo

não podia decorrer antes que o fizeste... Não havia 'então' [tunc] quando não havia tempo"

(XI.xiii[15]).

Deste modo, um significado definitivo é dado à noção de precedência que coloca nossa

pesquisa em movimento. Não se trata mais da precedência de uma história primordial, mas da

precedência da eternidade, da eternidade de Deus e sua Palavra, em relação ao tempo. "Não é

no tempo que precedes [praecedis] o tempo ... Na sublimidade de uma eternidade que está

sempre no presente, estás antes de todas as coisas passadas" (XI.xiii[16]). O timbre da sucessão

temporal, que as restrições narrativas ainda impunham sobre a noção bíblica e do antigo

Oriente Próximo de uma história primordial, desapareceu. O vocabulário de anterioridade

pode ser preservado - "Criaste todos os tempos e existes antes de todos os tempos" (ibid) - mas

anterioridade significa antecedência, isto é, a transcendência do tempo da eternidade recebe de

Agostinho a significação precisa de uma oposição entre um presente subsistente - isto é, um

presente sem passado ou futuro - e um presente humano, o qual, como a continuação do Livro

XI.14-29 mostra, sofre de uma "distensão" entre um presente do passado, que é memória, e um

presente do futuro, que é esperança, e o presente do presente, que é intuição ou atenção. [p.83]

Contudo, a necessidade de criar um lugar para um início temporal do mundo ainda

permanece. Agostinho não pôde evitá-lo dada a existência daqueles que defendiam a

eternidade do mundo. É por isso que entre as várias interpretações da expressão "no início

Deus fez o céu e a terra" a que Agostinho dá espaço, ele termina com: "'No início Deus fez o

céu e a terra' significa que no próprio começo [in ipso exordio] de seu fazer e obrar, Deus fez..."

(XII.xx[29]). Podemos compreender por que ele fala deste modo. Se as coisas criadas são

inconstantes e mutáveis, elas são finitas, como o é seu período total de tempo. Portanto, o

mundo tem um início, mas um início dentro do tempo criado. Esse início, então, já não é objeto

de perplexidade na medida em que é idêntico ao início do tempo, que, tomado como um todo,

é uma dimensão da Criação, portanto, ele mesmo uma criatura. A questão do início não é deste

modo abolida, ela é simplesmente exorcizada. E ela é exorcizada porque o princípio é uma

origem no sentido de uma fundação para as coisas temporais, elas mesmas derivadas de coisas

eternas, a saber, Deus e sua Palavra.

Devemos a esta discussão uma das tentativas mais vigorosas e perspicazes de pôr em

ordem os vários sentidos aceitos de "antecedência": prioridade através da eternidade (como no

caso de Deus em relação às coisas); através do tempo (como no caso da flor sobre o fruto);

através de preferência (como no caso do fruto sobre a flor); e através da origem (como no caso

do som sobre a canção) (XII.xxix[40]). Como Agostinho admite, com grande franqueza, a

primeira e a última destas quatro ordens de prioridade são as mais difíceis de compreender. Por

que a primeira? Porque é necessário tomar uma medida exata do paradoxo de um Deus criando

imutavelmente coisas mutáveis. E por que o último sentido? Porque a idéia de uma origem

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expressa uma prioridade meramente lógica, enquanto nossas palavras, aquelas do enarratio das

Confissões, desdobram-se elas mesmas em sucessão. Portanto, para concluir, Agostinho diz:

"Nesta diversidade de visões verdadeiras, possa a própria verdade gerar concórdia, e possa

nosso Deus ter misericórdia de nós para que possamos 'usar a lei licitamente', para o 'fim do

preceito, amor puro'" (Xll.xxx[4l]). Uma lição admirável de generosidade hermenêutica!56

[p.84]

Para concluir estas considerações exegéticas, teológicas e filosóficas, gostaria de invocar

o testemunho de um pensador judeu de nossa época, Franz Rosenzweig, em seu The Star of

Redemption [A Estrela da Redenção]57

. Esta obra é aplicável de duas maneiras. Primeiro, ela

começa com uma crítica meticulosa de toda idéia de totalidade, de todo sistema onde Deus, o

mundo e a espécie humana -os três "objetos" distintos da metafísica clássica - tornaram-se

elementos separados. A este respeito, Hegel é o paradigma desse tipo totalizador de pensamento.

Não quero dizer que com Hegel seja uma questão do mesmo tipo de totalidade que é atribuída

por H. H. Schmid ao pensamento do antigo Oriente Próximo e, a partir dele, ao da antiga Israel.

Entretanto, na medida em que esse pensamento arcaico é reconstruído pelos exegetas e

teólogos de nosso século, eles têm que repensar o pensamento da ordem cósmica dos

babilônios e dos hebreus com a ajuda da conceitualidade disponível em sua própria época. É

aqui que o pensamento hegeliano de totalidade torna-se uma passagem obrigatória para quem

quer que procure restaurar uma concepção, mesmo uma concepção arcaica, de totalidade. E é

aqui que a demolição por Rosenzweig deste pensamento prova ser exemplar. Após esse

esforço, o pensador é deixado com os membros desconjuntados de uma totalidade quebrada:

um Deus desconhecido, um mundo auto-explanatório, a espécie humana entregue à tragédia do

mal e da morte. E é sobre essas ruínas que Rosenzweig reconstrói não um sistema, mas uma rede,

cujos nós são chamados Criação, Revelação e Redenção. Através da Criação, Deus se

exterioriza num mundo, mas ele é referido, então, apenas na terceira pessoa e na linguagem da

narrativa. Através da Revelação, Deus se dirige a uma alma individual e diz: "você, ama-me!"

O diálogo nasce a partir de ser assim dirigido. Através da Redenção, uma esperança é aberta para

um nós, que é uma comunidade histórica.

É este um novo sistema, construído sobre alguma totalidade obscura? Não, pois a

segunda importante idéia de Rosenzweig, sobre a qual eu gostaria de concentrar minhas reflexões

finais neste ensaio, desenvolve-se como se segue. Poucos anos antes da publicação de Being

and Time de Heidegger, Rosenzweig havia compreendido que o laço entre Criação, Revelação e

Redenção não era aquele de algum modelo de pensamento lógico, mas aquele de uma profunda

temporalidade, irredutível a qualquer cronologia ou a qualquer representação linear. Se se

tratasse de uma questão de um tempo [p.86] pó de sucessão, teríamos que dizer que Criação,

Revelação e Redenção não se sucedem ao longo da mesma linha. É mais uma questão de uma

seqüência de estratos. A Redenção - utopia, se se preferir constitui o nível mais alto; a Revelação,

o nível médio; e a Criação, o nível mais baixo. O "pensamento novo" que Rosenzweig invoca tem

algo do fascínio de uma arqueologia do tempo bíblico. Esta profunda temporalidade faz justiça às

descontinuidades que marcam a passagem de uma temática para a seguinte. Entre o início, que é

56 Cf. Confissões XII.xxiii(32) c xxvi(36) no que diz respeito à pluralidade de interpretações correntes. Procurando dar sentido à intenção de Moisés, a quem toda a Tora era atribuída, Agostinho concede: "Quando ele escreveu 'No início', ele podia muito bem estar pensando na partida inicial da realização do processo [in ipso faciend exordio] (XII..xxiv[33]. Este é para ele o lugar para lembrar que a verdade é inseparável da caridade. 57 ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Trad. William W. Hallo. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1970.

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tema da exteriorização de Deus bem como das palavras que falam disso, e o contínuo

chamamento pelo qual Deus estabelece o diálogo com as almas rebeldes e obedientes, e além

disso, entre o diálogo com um único ser humano e o advento de eventos históricos que indicam o

crescimento do Reino, não há totalidade.

O elo temporal não abole esses rompimentos; ao invés disse ele os incorpora numa verdade

que não tem outra expressão além tia três figuras da Criação, Revelação e Redenção. Há um tempo

da Criação, o do passado imemorial; um tempo da Revelação, o do colóquio do amante com o amado;

e um tempo do Reino, que está sempre vindo. Rosenzweig tem o cuidado de usar subtítulos que

indicam isso: "Criação ou a Fundação Perpétua das Coisas". A Criação, neste sentido, está sempre

atrás de nós. O início não é um passado que passou mas um início incessantemente continuado.

Quanto ao presente da Revelação, o hoje da alegria do amante e do amado, não se trata de um

presente que passa, mas simplesmente de uma transição entre o futuro da esperança e o passado da

memória. Como o subtítulo de Rosenzweig indica: Revelação ou "o nascimento incessantemente

renovado da alma". Este "incessantemente renovado" prolonga o "perpétuo" da fundação das

coisas. Quanto ao futuro do Reino, o subtítulo novamente nos informa: "Redenção ou o Eterno

Futuro do Reino".

Deste modo, Rosenzweig pode nos ajudar a pensar a ruptura da ordem, como ela era

talvez pensada pelos sábios do antigo Oriente Próximo e, em sua esteira, pelos sábios de Israel, e

a recomposição do que não mais merece ser chamado de ordem, ou mesmo de "ordenação", mas

sim algo como uma unidade rítmica, mais acessível a uma meditação existencial do que à

especulação teológico-filosófica. O lugar da Criação nessa unidade rítmica é o do "sempre já ali".

Com este título podemos fazer justiça às interpretações antagônicas que consideramos: a

separação da origem naquelas narrativas referentes a um tempo que não é coordenável com o

tempo de alguma história; a irrupção de múltiplos inícios que inauguram uma história ou

histórias, esta ou estas dando uma continuidade e um significado a esses inícios fundadores. E

mais, a ideia de um passado [p.86] imemorial nos ajuda a dar sentido às nossas duas abordagens

sobre a “origem”: a que parte da origem em nome de uma palavra que carece de testemunho

e que parte da experiência e recua, após o fato, na direção de um início inatingível.

Finalmente, para ligar nosso ponto final ao nosso ponto inicial, que era também o de

André LaCocque, podemos afirmar que a teologia da Criação não constitui nem um apêndice

à teologia da Redenção nem um tema separado. O sempre-já-ali da Criação não faz sentido

independentemente da futuridade perpétua da Redenção. Entre estes dois está intercalado o

eterno agora do "vocês, amem-me!" Talvez seja nesse eterno agora que nasça a proclamação:

"Eu sou aquele que é", que será objeto de uma outra de nossas pesquisas conjuntas. [p.87]