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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA Marianna Protázio Romão Depressão e Transformação: Uma Perspectiva sobre um Marco Psicopatológico da Contemporaneidade. ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA E PRÁTICA JUNGUIANA RIO DE JANEIRO 2009

DEPRESSÃO E TRANSFORMAÇÃO

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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

Marianna Protázio Romão

Depressão e Transformação:

Uma Perspectiva sobre um Marco Psicopatológico da Contemporaneidade.

ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA E PRÁTICA JUNGUIANA

RIO DE JANEIRO

2009

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Marianna Protázio Romão

Depressão e Transformação:

Uma Perspectiva sobre um Marco Psicopatológico da Contemporaneidade.

ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA E PRÁTICA JUNGUIANA

Monografia submetida à Universidade Veiga de Almeida, como exigência parcial para a obtenção do titulo de Especialista em Teoria e Prática Junguiana, na área da Psicologia Clínica, sob orientação da Profa. Dra. Elizabeth C. Cotta Mello.

RIO DE JANEIRO

2009

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BANCA EXAMINADORA

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Dedico este trabalho a aqueles que me mostraram

a conexão entre o dentro e o fora, a importância de

tentar compreender o seu significado maior e ter a

bravura de segui-lo.

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Agradeço a todos aqueles que fizeram parte da minha jornada até este momento, professores e

colegas de profissão, alguns em especial: minha professora de graduação Sheva Nóbrega que

acreditou em mim e, de dentro de sua perspectiva teórica social, ajudou-me a iniciar meus estudos

sobre depressão. Um agradecimento à minha orientadora Elizabeth Mello que orientou e re-orientou

esse trabalho com detalhes, paciência e bom humor de verdade magistrais. À Cristina Lopes e Andrea

Graupen que estiveram ao meu lado nos meus principais momentos de descoberta profissional e que -

ainda bem – iniciaram-me na prática da Psicologia Analítica.

Agradeço a todos os meus amigos da capital pernambucana que sempre vão fazer parte do

meu coração e que por muito tempo encheram minha vida de significado, doando força e amizade.

Aos meu novos amigos da capital da Catalunha, que me injetaram ânimo e os mais diferentes pontos

de vista sobre o tema desse trabalho. Agradeço, acima de tudo, a minha família, ao meu irmão e aos

meus pais pela confiança que sempre tiveram em mim e o apoio sempre marcado de muito amor e

sabedoria. Foi com a presença de todos vocês que eu pude desejar e chegar até aqui.

Acredito que Deus está presente em cada pedaço do Universo e essa sabedoria maior é a fonte

da criatividade que nos preenche. É graças a Ele que vivo e caminho, assim que é em Sua direção que

vai meu principal obrigada.

Marianna Protázio Romão.

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RESUMO

ROMÃO, Marianna Protázio. Depressão e Transformação: Uma perspectiva sobre um Marco Psicopatológico da Contemporaneidade. Rio de Janeiro, 2009. De extensão demográfica ampla, ainda que sob diferentes denominações e alegorias, a depressão se faz presente na contemporaneidade de maneira preocupante. A Organização Mundial de Saúde (OMS) passou oficialmente a tratar a depressão como um problema de saúde pública por se haver convertido em uma das doenças de maior incidência no mundo e a principal causa de limitação na capacitação e no desempenho das pessoas, sobretudo jovens. Em dados da OMS, no Brasil mais de 10 milhões de pessoas sofrem deste problema clínico. Este estudo busca compreender a relação simbólica que a depressão pode ter com o tempo/espaço na contemporaneidade. Diante de um extenuante número de trabalhos com vieses bioquímicos através dos quais costuma-se estudar a depressão, surge a necessidade dentro da psicologia clínica de compreensão do significado simbólico dessa incidência. Assim, a partir do paradigma epistemológico da antropologia do Imaginário e da Psicologia Analítica de Carl G. Jung pode ser discutida a contemporaneidade e a incidência dessa psicopatologia que leva em direção ao fundo. A psicologia arquetípica auxilia ao compreender a depressão como uma metáfora de aprofundamento. Suportar a angustia do conflito neurótico e contatar a imagética provinda do inconsciente é psicologicamente terapêutico per se, pois permite a admissão de elementos rejeitados pelo Ego e a integralização da personalidade. Ao deslocar-se da maníaca inflação egóica contemporânea para o rebaixamento de humor e consciência característicos da depressão, permite-se transportar a psique num percurso para encontrar-se a si mesma na vida, em um constante e honesto caminho de transformação. Palavras chaves: Depressão, Contemporaneidade, Psicologia Analítica, Transformação.

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ABSTRACT

ROMÃO, Marianna Protázio. Depression and Transformation: A Perspective regarding a Psychopathology Contemporary Boundary. Rio de Janeiro, 2009. With a large population rate, throughout different names and allegories, depression has become a contemporary concern. The World Health Organization (WHO) began to include and consider the depression as a public health problem as well as one of the most prevalent diseases in the world and the leading cause of limitations in training and accomplishment, particularly for young people. According to the WHO data in Brazil more than 10 million people reported to suffer from this problem. This study seeks to understand the hypothetical symbolic relationship between depression and the contemporary time/space. The exhausting numbers of biochemical researches that are usually used to study depression show that it is necessary to understand the symbolical meaning of this disease within the clinical psychology. Thus, from the epistemological paradigm of Imaginary Anthropology and the Analytical Psychology of Carl G. Jung this study is allowed to discuss the contemporary issue and the incidence of this psychopathology that leads toward the base. The archetypal psychology helps to understand the depression as a metaphor of the depth. To sustain the anguish of the neurotic conflict and contact the unconscious imagery is psychologically therapeutic per se, it allows the admission of evidences rejected by the Ego and it helps to become an integral personality. Moving from the contemporary manic Ego’s inflation to the lowering of mood and consciousness - that are characteristics of depression - can transport the psyche in a way to meet herself in life, in a constant and honest manner of transformation. Key Words: Depression; Contemporary; Depth Psychology; Transformation.

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SUMÁRIO:

1. Introdução 08.

2. Depressão e Contemporaneidade 14.

3. Epistemologia e Nova Ética 24.

4. Psicologia Analítica e Transformação 37.

5. Considerações Finais 46.

6. Referências Bibliográficas 49.

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1. INTRODUÇÃO:

A Organização Mundial de Saúde (OMS, 2001) em seu relatório mundial sobre a Saúde

Mental, trouxe à tona um preocupante quadro acerca das desordens psíquicas e em especial

acerca da depressão. Esta desordem é nada menos do que a principal causa de incapacitações

em todo o mundo e seu prognóstico, que será detalhado mais adiante, não é nada favorável.

Negligenciar a saúde mental é uma opção da nossa sociedade que está presente há muito

tempo em diversos meios sociais e em âmbito mundial. Esse é um assunto tabu em muitas

famílias da nossa era, como o foi o cancro alguns anos atrás - e acaba transvertido em um

segredo de família. Tais considerações feitas pela Dra. Gro Harlem Brundtland (OMS, 2001)

são apenas uma introdução a uma pesquisa que aponta que o faz-de-conta ou a postura

individual de ignorar o stress emocional tem correlação positiva com a afecção desse mesmo

indivíduo por uma sintomatologia psicopatológica.

Tendo por base esses dados epidemiológicos, este estudo propõe pesquisar a depressão a

partir da idéia de que esse mal-estar da alma humana encontra respostas às suas dores em si

mesmo, pois sim: podemos ser resgatados do que nos aflige pelo que nos aflige. Nessa leitura

está permitido contrapor a práxis fundamentada no modelo da psiquiatria clássica1 que

permeia a sociedade atual e pela qual fatalmente se busca compreender a doença. Essa diversa

maneira de olhar a doença é importante não apenas pela abertura de novas propostas

terapêuticas, mas também pela quebra da estrutura causalista, dicotômica e, por tanto

excludente na qual os homens têm transitado desde a revolução cartesiana.

Diante das transformações sociais da contemporaneidade - à primeira vista um caleidoscópio

de diversos valores e práticas - buscamos compreender as dimensões da psique humana a

partir dos paradigmas da Psicologia Analítica de Carl Jung numa tentativa de integrar, sem

1 Este modelo será abordado nas considerações do capítulo Depressão e Contemporaneidade.

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excluir. Essa busca tem por base o pressuposto da totalidade formulado em Jung, que pretende

que a tendência do ser-humano seja o crescimento e universalização, alcançando seres e

condições que parecem longes dele próprio.

Jung amplia o olhar sobre o tema depressão sem excluir o confronto com ele ou indicar sua

supressão sintomatológica. O psiquiatra suíço nos apresenta a uma perspectiva hermenêutica,

pela qual a historicidade do homem não se resume a um vetor linear e unidirecional e onde

corpo e psique estão suficientemente conectados e fechados entre si para permitir encontrar

em um mesmo sintoma a doença e a cura. A psicologia arquetípica auxilia nesse caminho, ao

trazer como paradigma psicopatológico na depressão a metáfora do aprofundamento.

Parece compreensível que para acontecer a transformação psíquica - que poderíamos também

chamar de “maturidade”, segundo Whitmont (2002, p. 195) - em um nível mais elaborado, um

chamado precisa ser feito desde os níveis mais profundos da psique, que se não for atendido

voluntariamente o será através de um sintoma. Dentre vários significados apontados por

Aurélio Buarque de Holanda (1974, p.98) o verbete “profundar” quer dizer: “Tornar fundo ou

mais fundo; escavar; pesquisar, perquirir entender, ou compreender perfeitamente, penetrar”.

A depressão, como uma perspectiva da Alma, do grande feminino, vem atender a esse

chamado.

Em outras palavras, dizia Jung que hoje os deuses tornaram-se doenças, de modo que se

quisermos encarar os deuses, é para nossas patologias que devemos olhar. Nesse sentido, está

a cargo da Alma (Psique) a descida aos infernos para a posterior redenção.

A alma volta constantemente às suas feridas para extrair delas novos significados; volta em busca de uma experiência renovada. Ficamos familiarizados com nossos complexos e nosso sofrimento. O ego, identificado com o arquétipo do herói, chama a repetição de neurose. Mas na repetição, na circularidade, o ego é forçado a conscientizar-se de que há uma outra força governando a coisa toda. Na repetição o ego é forçado a servir à

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psique. Há um aspecto ritual aqui, uma humilhação. A circularidade, por fim, nos personaliza. Do ponto de vista da alma, a repetição é uma maneira de nos tornarmos aquilo que somos (BARCELLOS, 19912)

Desde que iniciei na prática clínica, no estágio em uma instituição modelo CAPS, tive por

respaldo uma psicologia que se recusa a explicar o normal à luz do patológico, e que me fez

repensar a clínica que aprendi durante boa parte de minha graduação. Os rótulos e

diagnósticos sempre significaram pouco nesta instituição, que não procurava pensar em

função de doenças, mas sim em função de indivíduos que podem tropeçar no caminho de

volta à realidade cotidiana e que vislumbram boas perspectivas de futuro.

A partir dessa epistemologia e clínica que experimentei através de Jung, me foi possível

desenvolver um confronto do que aprendi durante os quase cinco anos que passei na

graduação de Psicologia com a prática desta profissão, em especial no que se refere à área

clínica.

Este confronto de informações e experiências deu-me maior segurança de que o estudo teórico

se faz permanentemente necessário para os profissionais da saúde mental. É a partir de uma

base essencialmente teórica que podemos reformular paradigmas e desconstruir práticas

equivocadas, encontrando nosso caminho como psicoterapeutas. Convém não esquecer que a

prática clínica não é um laboratório, pois é feita de humanidades e é com humanidade que

deve ser vivida em sua plenitude.

A depressão sempre foi um diagnóstico predominante entre os usuários do serviço

mencionado e me fez despertar o interesse para o seu sentido maior (global) e não apenas

sintomático. Creio que essa necessidade de sentido não é isolada e pode ecoar em grupos que

vão desde os estudiosos do assunto até os próprios portadores da dita síndrome.

2 Transcrito em 23/05/2009 a partir do acesso ao site http://www.ijusp.org.br/artigos/apj_gustavo.html

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Levando em conta que os alertas da Organização Mundial de Saúde sobre a depressão têm a

considerado a quarta causa de morbidade entre todas as doenças no mundo, podemos

considerá-la um marco psicopatológico da nossa era. Além disso, conforme mencionado

anteriormente, de acordo com estimativas, se as tendências contemporâneas da trajetória

demográfica e epidemiológica persistirem, a depressão passará a ocupar o segundo lugar

nessa lista no ano de 2020, como principal causa de doenças (OMS, 2001).

Diante dessa importância, não só individual como também coletiva, busco nesse trabalho re-

significar o valor intrínseco da depressão. Esse valor carrega uma oportunidade de

transformação e também como uma crítica à cultura, a partir do momento em que "uma

sociedade que não permite a seus indivíduos deprimir-se não pode encontrar sua profundidade

e deve ficar permanentemente inflada numa perturbação maníaca disfarçada de 'crescimento'"

(HILLMAN, 1991).

No capítulo subseqüente o leitor terá oportunidade de conhecer mais acerca da depressão,

suas formas de manifestações e algumas variáveis que se interpõem no estudo desse tema, tais

quais a dinâmica de vida na contemporaneidade e o sentido que poderá estar por detrás da

apresentação dos sintomas depressivos. Não é segredo pra nenhum de nós que a descrição

puramente sintomatológica desse tema é mais usual, sobretudo por oferecer mais segurança

aos autores e estar em conformidade com paradigmas que já não respondem a visível

necessidade de compreensão do tema.

Não é pretensão de este estudo desvendar ou perpetrar nenhuma verdade definitiva sobre o

assunto, porém há uma tentativa de ampliar o ângulo de visão que temos sobre ele.

Especialmente porque os dados epidemiológicos já citados anteriormente, nos incitam a

atentar para a depressão com mais respeito. Assim, nesse segundo capítulo que chamo de

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“Depressão: a busca do sentido na Contemporaneidade”, será possível um olhar ampliado e

crítico a respeito de muitos vieses que perpassam essa manifestação psíquica.

No capítulo “Epistemologia e Nova Ética” será apresentado ao leitor algumas definições no

terreno da Epistemologia: a base através da qual é possível compreender as condições de

possibilidade da teoria junguiana. Surge uma necessidade de resgatar o olhar ecológico de

mundo, onde a doença é vista como um desequilíbrio entre as várias partes – partilha essa que

não pressupõe divisão - que compõem o ambiente externo e interno do homem: o

agrupamento social, a família, a mística, o sentimento, a mente e o corpo.

É nesse sentido que o terceiro capítulo vai tentar desenvolver os constructos teóricos aos quais

se propõe e que lhe dão título, fazendo um breve histórico das fases pelas quais passaram a

humanidade, a consciência do homem e sua ética e, assim a episteme de seu saber até o nosso

contexto contemporâneo.

Busco nessa monografia facilitar o resgate do olhar terapêutico da Grécia Antiga, conduzindo

através de teorias que permitem esse entrecorte: cujos preceitos olhavam o universo não como

uma máquina, mas um sistema vivo, não fragmentado, numa relação dinâmica e

interdependente. Assim, faz-se imprescindível oferecer ao leitor os fundamentos que

permitem a incursão nesse olhar por outro ângulo: ou seja, os fundamentos epistemológicos e,

por conseguinte, a prática clínica.

Ao abordar a transformação, o terceiro capítulo chamado “Psicologia Analítica e

Transformação” procurará mostrar a importância desse mergulho que a sintomatologia

depressiva obriga a passar. É necessário, através do aprofundamento em si mesmo, chegar ao

estágio de nigredo alquímico da Alma para romper com a dinâmica superficial de vida

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estabelecida por nossa sociedade contemporânea, que vive em função do prazer imediato e

sem significado quando sua necessidade maior é a transformar-se.

Na conclusão serão apresentadas as possíveis soluções teóricas diante do que foi discutido

durante o trabalho, fazendo conexões e pontuações que facilitem a compreensão do tema de

maneira geral.

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2. DEPRESSÃO E CONTEMPORANEIDADE.

De extensão demográfica ampla, ainda que sob diferentes denominações e alegorias, a

depressão se faz presente na contemporaneidade com certa freqüência que não pode mais ser

deixada em olvido. Pude atentar melhor para isso ao trabalhar em um CAPS onde esse

diagnóstico atingia a maior parte dos usuários. No entanto, além do simples diagnóstico estive

também atenta às atualidades dos meios bioquímicos e sociais, que têm deixado clara a sua

presença: alta gama de pesquisa e desenvolvimento de novos psicofármacos e, ao mesmo

tempo, levas de trabalhadores recorrendo à seguridade social com o diagnóstico de depressão

e impossibilitados de trabalhar.

A tristeza ou pesar, que é apenas um dos sintomas prevalentes da depressão, pode ser

facilmente confundido por terceiros e tachado como a doença em si. No entanto, enquanto

sintoma de uma doença, a tristeza depressiva é desproporcional às circunstâncias que

eventualmente a tenham originado e não vai embora como um pesar circunstancial, prevalece

sobre todas as tentativas de sair dele até minar a vontade de tentar (SOLOMON, 2002).

A depressão é classificada pela publicação de Classificação Internacional das Doenças - o

CID-10 (OMS-ONU, 2005), dentre os Transtornos de Humor. A doença se apresenta sob

diferentes formas clínicas, que compreendem alterações no estado de humor ou afeto, sejam o

rebaixamento ou elação do mesmo. O episódio da depressão propriamente dita varia em grau

de intensidade, de leve a severo, que pode ser determinada pelo número de sintomas. Dentre

estes sintomas destaca-se a diminuição do humor, redução da energia e diminuição da

atividade.

Há muito material acadêmico disponível para fazer considerações fisiológicas a respeito da

depressão, são inúmeros os livros de Psiquiatria que comportam esse tema. O fato de não nos

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determos em tais considerações nesse estudo não deve ser tomado pelo leitor como sinal de

contraposição ou negação da sua presença na doença, mas pode sim ser interpretado como

uma constatação da esterilidade do seu campo teórico quando o assunto é a psique criativa.

Parte-se da base de que não se trata apenas de saber como domar e subjugar a psique; é

preciso que saibamos um mínimo sobre o desenvolvimento metódico da alma ou das suas

funções para que em um nível cultural mais completo o desenvolvimento possa substituir a

dominação (JUNG, 2004). Quando passamos a ver o cliente como portador de uma

mensagem, que pode inclusive ser coletiva, o terapeuta sai do lugar de poder e também passa

a ser objeto do tratamento. Segundo Jung (2004) a doença nesse caso pode ser, no máximo, o

sofrimento que a todos atormenta e é assim que compreendemos a depressão nesse estudo.

Ainda a respeito da relação entre a expressão fisiológica do sintoma psíquico e a condução de

um processo psicoterápico com o seu portador, estamos de acordo com Jung (2004) quando

este diz que a complexidade e a globalidade de um estado, vai ser tão maior quanto mais

“psíquico” ele for. Ou seja, o fator fisiológico é sem dúvida parte de um dos pólos do cosmos

psíquico e igualmente têm íntima ligação com as formas psíquicas elementares.

Muito embora os processos instintivos e afetivos, bem como toda sintomatologia neurótica, produzida pelos distúrbios dos mesmos tenham inequivocadamente uma base fisiológica, o fator perturbador prova, por outro lado, que ele tem o poder de converter a harmonia fisiológica, em desordem. (...) Esta esfera de dominantes altamente complexas forma o outro pólo da psique. Segundo nos mostra a experiência, este pólo possui uma energia que em certos casos ultrapassa muitas vezes a da psique ligada à fisiologia (JUNG, 2004, p.76).

Questionando o espírito da ciência moderna fundamentalmente causal que será discutido no

capítulo de epistemologia e, ao mesmo tempo, afinando-se com o empirismo que também faz

parte dessa mesma ciência, Jung (apud SILVEIRA, 1997) introduzirá um novo viés em suas

formulações teóricas acerca do funcionamento da psique humana: é o viés que se refere à

finalidade. Sendo assim, nos deparamos com uma teoria que compreende a depressão – assim

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como compreende outras neuroses - como a chave do crescimento do indivíduo portador. É

entrando em contato com a manifestação do conflito neurótico que será possível a remissão

do sofrimento e a permissão para aceder a um novo patamar de consciência.

A partir do ponto de vista energético proposto por Jung (apud SHARP, 1988) o fluxo da

energia psíquica humana tem direção definida, seguindo uma inclinação potencial. Paralela às

leis físicas, há uma conservação de energia na psique humana que quando consumida ou

expandida em determinada instância, cumulará na expansão ou diminuição de sua equivalente

em outra. Daí a importância de saber qual a direção final da energia, para onde ela está sendo

levada a partir da intenção da psique (SHARP, 1988). Em termos psicológicos, isso nos

remete ao fato de que se há uma escassez energética de uma função psíquica, tal como ocorre

na depressão, esta energia deverá surgir sob alguma outra forma, como por exemplo, um

sintoma.

Há até certo ponto concordância entre Freud e Jung no sentido de que numa depressão a

libido regride a estágios inconscientes, reativando processos que culminam na neurose. Os

estágios inconscientes investidos pela energia libidinal regredida, tal como são considerados

pela psicologia analítica, podem ser tanto os nós de energia formados a partir de determinadas

experiências pessoais conflituosas [complexos], quanto configurações de vivências ancestrais

inscritas no inconsciente coletivo [arquétipos]. No entanto, do ponto de vista conclusivo de

Jung esta regressão ocorrerá com a finalidade de encontrar associações a partir das quais a

psique do indivíduo possa se desenvolver.

Para Jung (apud SHARP, 1988), a neurose é uma tentativa de auto-cura onde o sistema

psíquico se reajusta no sentido de encontrar um equilíbrio, tal como ocorre em qualquer outra

doença física. Na depressão a energia libidinal regride culminando na formação de sintomas

neuróticos, tais como o medo, ansiedade, culpa e mau humor. Porém, na ativação destes

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conteúdos do inconsciente, a partir do qual se desencadeia um conflito, há a intenção de

compensar uma atitude unilateral da consciência. Encontra-se aí a importância da psicoterapia

como o facilitador do reencontro do paciente em depressão com o significado perdido, de

efeito transformador.

Na tese defendida em seu mestrado de psicologia clínica na PUC-SP, Lilian Loureiro (2007)

vislumbra mapear o estilo de vida de portadoras da síndrome dos ovários policísticos sob o

olhar da Psicologia Analítica. Foi lendo esse estudo que pude finalmente entender a relação

entre a vivência no mundo contemporâneo dito pós-moderno e a sintomatologia depressiva

como uma necessidade de aprofundamento, já mencionada por Hillman (1991) em seu livro

"Psicologia Arquetípica" e importante fonte da minha monografia de graduação.

Quando tratamos da contemporaneidade muitos adjetivos nos ocorrem, incorporados por

nossa vivência desse espaço-tempo ou talvez adquiridos por estudos no tema: apocalíptica é

um adjetivo atribuído por Giddens (apud LOUREIRO, 2007), e explica:

Nas situações a que chamo de "alta (modernidade)" ou "(modernidade) tardia" - nosso mundo de hoje-, o eu, como os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser construído reflexivamente. Mas esta tarefa deve ser realizada em meio a uma enigmática diversidade de opções e possibilidades. (GIDDENS apud LOUREIRO, 2007, p.14)

Com características da cultura de consumo, do ritmo veloz da internet e das mudanças

ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, uma das principais

marcas do pós-modernismo é a desvinculação do conceito de tempo e espaço, agora um já

pode viver sem o outro (LOUREIRO, 2007). Vemos isso passar com a comunicação virtual, a

flutuação nos mercados econômicos e no valor do câmbio das moedas, a presença física já

não é imprescindível para influenciar em grandes mudanças.

Diante disso o leitor pode perguntar-se o que a depressão teria que ver com a pós-

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modernidade e por que essa foi e ainda é a psicopatologia marco de nossa era, no sentido

epidemiológico do termo marco. Proponho explicitar essa ponte: se na modernidade a

sociedade se propunha iconoclasta, agora a imagem já se torna gratuita, numa cultura

econômica e midiática consumista e imediatista, onde os bens materiais se convertem em

instrumentos de reconhecimento pessoal: os bens que adquires ou que te adornam determinam

teu valor ou estilo de vida (LOUREIRO, 2007). Há uma assustadora liberdade, diversidade e

tolerância às escolhas pessoais e nessa dinâmica não há outra escolha que não seja escolher,

são "uma narrativa particular da auto-identidade" (GIDDENS, apud LOUREIRO, 2007), são

decisões não apenas de como agir, mas de quem ser.

Considerando que as transições na auto-identidade se sucedem uma à outra rapidamente, ou

melhor, o que é valorizado como modelo a escolher tem geralmente apenas seus 15 minutos

de fama, os rituais de transição que marcavam a vida das pessoas em outros tempos já não

estão mais presentes, a mudança de identidade não é mais indicada com claridade, assim que

cabe ao próprio indivíduo escolher os passos a serem dados "em observância ao seu processo

de autoconhecimento", que corresponde ao conceito junguiano de individuação3.

Entretanto, como disse James Hillman (1991) essa expansão “maníaca” da sociedade pós-

moderna não permite essa observância ao processo interno do ser humano, não permite seu

autoconhecimento e aprofundamento, ficamos na superficialidade. A depressão seria um

sintoma necessário e uma metáfora do nosso inconsciente para a nossa necessidade de parar,

silenciar e contatar. Talvez, para que não seja necessário um sintoma psicopatológico emergir,

possamos nós mesmos dar-nos conta do imperativo desse processo.

Segundo o Dicionário Crítico de Análise Junguiana (SAMUELS, 2003), ao abordar a

depressão Jung concentra-se no esclarecimento através do conceito de energia psíquica mais

3 O conceito de individuação estará melhor descrito e explicado no capítulo que se refere à Psicologia Analítica e Transformação.

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do que em conceitos psicanalíticos de relações objetais, perda de objeto ou separação:

Jung conceitualiza a depressão como um represamento de energia, que, quando libertada, pode tomar uma direção mais positiva. A energia fica presa em virtude de um problema neurótico ou psicótico, porém, se liberada, realmente ajuda a superação do problema. Um estado de depressão deveria ser vivenciado tão plenamente quanto possível, de acordo com Jung, de modo que os sentimentos envolvidos possam ser esclarecidos. (...) A depressão está ligada à regressão em seus aspectos regenerativos e enriquecedores (SAMUELS, 20034).

Ainda na explicação do verbete depressão, Samuels (2003) enfatiza que é comum que muitos

junguianos tendam a fazer muitos empréstimos à psicanálise no intento de explicar a

depressão em termos de relações objetais, mas que não era essa a posição prevalente de Jung

sobre o tema, mas que sua posição seria sim no sentido da “tranqüilidade vazia que precede o

trabalho criativo”.

Essa posição de Jung é justamente a base da interpretação que faço a respeito da incidência da

sintomatologia depressiva, pois tomo emprestado dele a visão da psique criativa e ao mesmo

tempo me respaldo em James Hillman para justificar a importância desse processo de descida

energética na contemporaneidade.

A metáfora do aprofundamento leva a psicologia arquetípica a concentrar-se na depressão

como paradigma psicopatológico da nossa era. Esta doença leva a pessoa para o fundo de si

própria, diminuindo seu ritmo e seu intelecto, aproximando-a daquilo que está abaixo de sua

vida cotidiana (HILLMAN, 1991). Estamos embasados a olhar a depressão desse ponto de

vista junguiano: a visão teleológica para com a sintomatologia.

Em um artigo sobre a “Psique Criativa” a analista junguiana Sherry Salman (2002), faz

algumas considerações sobre esse tema ao informar seus leitores do quanto as bases e idéias

junguianas seguem instruindo o pensamento e a prática contemporâneos, cita como exemplo

4 Transcrito em 04/05/2009 a partir do acesso ao site http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/depresao.htm.

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disso a aproximação de Jung com a alquimia medieval: “ele, na verdade, estava à frente de

seu tempo, presciente em termos de sua visão pós-moderna da psique”.

Salman (2002) continua seu raciocínio para apontar a compreensão sintética da matéria e da

psique desenvolvida por Jung, que via no pensamento alquímico e na astrologia uma fonte

que partia do mesmo pressuposto de que o processo psicológico do interior do homem e seus

mecanismos de funcionamento no mundo físico e biológico não estão separados. Embora,

segundo Salman (2002), tampouco Jung se afinasse com os sistemas animistas, ele também

divergia das visões racionalistas modernas em que o inconsciente é separado e o ego pode ter

controle sobre a matéria e a psique.

Toda a postura de Jung em relação à psique era “pós-moderna”: sua metáfora central é o dialogo entre o consciente e o inconsciente, que depende de sistemas de retroalimentação auto-regulados entre fenômenos inconscientes autônomos e a participação do ego, bem como uma interação entre sujeito e objeto, psique e matéria. Os alquimistas medievais diziam “tanto acima, tanto abaixo”; os analistas contemporâneos acrescentariam “tanto dentro, tanto fora” e vice-versa. Um elemento importante da visão junguiana do processo psicológico é que ela pode oferecer uma contribuição construtiva à “desconstrução” pós-moderna da dicotomia sujeito-objeto” (SALMAN 2002, p.70).

Dessa forma, ainda no clima “tanto dentro, tanto fora” voltamos à Hillman (1991), que

interpreta a depressão como uma rejeição aos modelos de egos fortes, maníacos e superficiais

presenteados ao grande público pela pós-modernidade. A alma não é dada, ela tem que ser

construída e, para isso, ela (a alma) deveria poder reconhecer o fraco, o depressivo e o

profundo. O objetivo não é que o ego vá reconhecer as profundezas e subir à superficialidade

consciente, mas sim ser um pouco rebaixado para vez por outra estar receptivo a um novo

contato com a profundidade, nisso consiste ser animado em uma alma (ADAMS, 2002).

Finalmente, a ciência psicológica mostrou que certos tipos de perturbações mentais e comportamentais, como a ansiedade e a depressão, podem ocorrer em conseqüência da incapacidade de fazer face adaptativamente a um acontecimento vital gerador de stress. De um modo geral, as pessoas que procuram não pensar nos fatores de stress ou que não os enfrentam têm mais probabilidades de manifestar ansiedade ou depressão, enquanto as que

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discutem os seus problemas com outras e procuram encontrar meios de controlar esses fatores funcionam melhor com o decorrer do tempo. Essa descoberta levou ao desenvolvimento de intervenções que consistem em ensinar aptidões para enfrentar a vida (OMS, 2001, p.43).

Aqui entramos com mais segurança no tema da Transformação: pela qual não apenas a

consciência individual deve buscar passar, mas especialmente a coletividade. Quintino (apud

LOUREIRO, 2007) caracteriza a sociedade contemporânea, ou pós-moderna, como uma

sociedade em que a velocidade faz com que a realidade pareça antiquada em segundos, o que

impõe a necessidade de uma renovação e re-atualização constantes. A autora sustenta essa

definição na mídia, uma vez que esta se configura como uma rede de informações cuja teia

alcança ou mais remotos lugares e grupos.

Para Giddens (apud LOUREIRO, 2007) quanto mais pós-tradicionais as situações, mais o

estilo de vida diz respeito ao próprio centro da auto-identidade, se fazer e refazer, implicando

ao indivíduo escolhas constantes. Segundo o mesmo autor, no nível do EU, um componente

fundamental da atividade do dia-a-dia é o da escolha. De forma que a contemporaneidade

confronta o indivíduo com uma complexa variedade de escolhas e, ao mesmo tempo, oferece

pouca ajuda sobre quais opções devem ser selecionadas.

Giddens (apud LOUREIRO, 2007) aponta que transições na vida dos indivíduos sempre

demandaram uma reorganização psicológica. Como já foi mencionado anteriormente quando

tratamos especificamente do tema contemporaneidade, em culturas tradicionais as transições

eram freqüentemente ritualizadas na forma de ritos de passagem, de forma que a mudança de

identidade era claramente indicada.

Hillman (apud ADAMS, 2002) faz considerações interessantes ao tentar facilitar o trânsito

pela multiplicidade imagética contemporânea. Sem adentrar pelo reducionismo interpretativo

psicanalítico ou tampouco pelo procedimento de alguns junguianos que - arbitrariamente -

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reduzem diferenças significativas a uma identidade enganosa, diz ele que: “Se coisas

compridas são pênis para os freudianos, coisas escuras são sombras para os junguianos”

(HILLMAN, apud ADAMS, 2002, p. 117).

Nesse sentido, seria interessante e talvez menos dicotômico considerar a possibilidade que o

escuro ou profundo não são necessariamente imagens enfermas ou sombrias. Ou ainda, mais

especificamente dentro do tema deste estudo, rebaixar o estado de humor pode ser um

caminho de enriquecimento. Trabalho com a perspectiva de que a multiplicidade imagética é

mais valiosa que a unidade conceitual e a contém. Estar aberto ao múltiplo sem pressionar o

ego a tomar uma decisão, pode sim levar a conflitos, mas se suportamos por um tempo esse

estado, logo as imagens estarão integradas e poderemos seguir em frente.

Segundo Adams (2002) um dos motivos pelos quais a psicologia do ego parece ser tão

atraente ao mundo acadêmico ocidental é o fato de que é compatível com os dogmas da

religião monoteísta: onde é valorizado um conceito abstrato unitário em detrimento de

imagens concretas múltiplas.

Jung (apud ADAMS, 2002) e a escola de psicologia arquetípica têm uma orientação politeísta

ou pluralista que considera metaforicamente “personificações de forças psíquicas” pelas quais

os deuses e deusas aparecem como fobias, obsessões, sintomas neuróticos ou doenças. Assim,

coerente com a ênfase na multiplicidade, refletimos sobre o impacto negativo que as três

religiões monoteístas – Judaísmo, Islamismo e Cristianismo – tiveram na psicologia.

Diz Jung (apud ADAMS, 2002, p. 119) que “Zeus não governa mais o Olimpo e sim o plexo

solar, e produz espécimes curiosos para o consultório médico, ou perturba os cérebros de

políticos e jornalistas que inconscientemente liberam epidemias psíquicas no mundo”. Não

poderia haver autor nem citação mais apropriados para encerrar este capítulo e seguir o

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intento de compreender a depressão como um paradigma psicopatológico da

contemporaneidade através de bases epistemológicas.

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3. EPISTEMOLOGIA E NOVA ÉTICA

Diante de tais colocações, é preciso esclarecer os territórios epistemológicos sobre os quais

essas teorias se fundam, desemaranhando os nós e seguindo com formulações diferentes. A

epistemologia, tomada como estudo da ciência, propõe-se estabelecer o valor dos critérios,

sentidos e verdades nas quais se fundam os pressupostos de cientificidade que permeiam o

meio acadêmico.

Para melhor compreender a transformação epistemológica pela qual a ciência passou e

continua atravessando, me proponho a explicar o desenvolvimento da consciência coletiva, e

portanto também individual, segundo o entendimento de Neumman e outros teóricos da

Psicologia Analítica. Acredito que compreender o desenvolvimento da consciência ajuda a

compreender também a base dos pressupostos epistemológicos das diferentes épocas da

ciência.

Em um livro em que trata do que denomina “Nova Ética”, Neumman afirma que entende que

"a evolução da ética e a evolução da consciência acham-se unidas estritamente entre si, não

podendo se estender uma sem a outra" (NEUMMAN apud LOUREIRO, 2007, p.41). Dessa

forma, a meu ver há uma tênue linha que traspassa e une essas duas áreas da filosofia –

epistemologia e ética – ao desenvolvimento da consciência humana.

Por ética encontramos a seguinte acepção no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

(20095): “1. parte da filosofia pela investigação dos princípios que motivam, distorcem,

disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo esp. a respeito da essência das

normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social”.

Neumman (apud LOUREIRO, 2007) nos fala da passagem da humanidade pela fase

5 Transcrito em 23/05/2009 a partir do acesso ao site: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm

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Matriarcal e pela fase Mitológica: nesses tempos as referências éticas da humanidade eram

incipientes, as deusas e a fertilidade eram reverenciadas, a consciência era grupal, os instintos

agressivos de morte e destruição eram vistos como parte de um ciclo e a natureza humana

poderia ser caracterizada por uma emocionalidade elementar. Foram fases importantes na

evolução da consciência e onde o processo de interiorização foi iniciado. A priori os rituais

eram formas socialmente válidas para dar vazão aos impulsos agressivos, porém no final

dessa fase a divindade masculina ganha reverência e exclusivamente os aspectos luminosos da

psique passam a ser valorizados: estamos entrando no ciclo Patriarcal.

Na fase Patriarcal, segundo Whitmont (apud LOUREIRO, 2007) a compreensão de que o

homem foi expulso do paraíso por haver comido a fruta proibida (por culpa de Eva), leva com

que o mal passe a ser visto como castigo, permitindo separá-lo do bem. Esse aspecto é o início

do que se pode chamar de ética, bem como da divisão em opostos que marca o homem até os

dias de hoje. A capacidade de abstrair decorrente de esses referenciais permite algo ainda

mais característico desse tempo: a noção do eu e, em conseqüência, de tempo e espaço e

corporeidade. Os aspectos femininos passam a ser rejeitados e todo o mal é projetado ao

exterior.

Esta fase é caracterizada pela supremacia do intelecto e o homem perde sua alma, pois perde a

conexão com o sagrado. Muitos aspectos da consciência foram beneficiados, pois a ética e a

responsabilidade individual foram desenvolvidas, apesar da cisão em nossos sentimentos e

julgamentos: "gostamos e não gostamos, queremos e não queremos, acreditando que a única

forma de existir é essa" (LOUREIRO, 2007, p. 73).

Aí se situa a corrente epistemológica que nos regeu por tanto tempo. A epistemologia, tomada

como estudo da ciência, propõe-se estabelecer o valor dos critérios, sentidos e verdades nas

quais se fundam os pressupostos de cientificidade que permeiam o meio acadêmico. Sendo

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assim, ela nos ajudará a lançar uma luz sobre as controvérsias científicas que até hoje

circundam o meio psi e sua práxis clínica, onde se inclui a psicologia analítica.

Na tentativa de esclarecer essas bases epistemológica e aprofundando - na descida pela busca

do sentido – ficamos frente a frente com a atual tradição pedagógica no Ocidente pós-

moderno que se quer iconoclasta. No entanto, nos fazemos iconoclastas não no sentido da

censura às imagens (que fez parte da modernidade até a década de 50), mas na gratuidade

epistemológica com a qual lidamos com elas nos dias de hoje. Um exemplo é o grande

volume de imagens projetadas na mídia, mas que não estão integradas na corrente do

pensamento acadêmico. São imagens reduzidas a um jogo estético, afastadas dos poderes

inerentes a elas (DURAND, 1982).

No percurso da reabilitação do imaginário, observamos uma aproximação entre as noções até

então opostas de método racional, experimental, cartesiano e os ditos processos do símbolo,

do místico e do poético. Os responsáveis por esse reencontro, nada mais são do que o próprio

meio científico, através de Gaston Bachelard (DURAND, 1982).

Este filósofo a partir do qual Durand formulou sua teoria, iniciou o estudo sistemático e

interdisciplinar do símbolo. Resgatou a poética das sombras, devolvendo-a ao mundo da luz

do conhecimento, ainda que por meio do simbólico, do sensível e do subjetivo (PITTA,

2005). Para Bachelard (apud PITTA, 2005), a imagem poética emerge em um súbito realce do

psiquismo, não havendo qualquer relação causal em termos psicológicos que a determine. A

relação da imagem com o arquétipo não é causal, mas sim o inverso: a partir da explosão de

uma imagem, o passado irá ressoar em seqüência.

A revalorização do simbólico pelo científico, veio munida dos pressupostos de relatividade do

tempo e do espaço, que diz: “um objeto não é independente do sistema que o comporta”

(EINSTEIN apud DURAND, 1982), jogando por terra a idéia de objetividade absoluta.

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A episteme repensada pela corrente da qual Durand faz parte, resulta em muitos princípios

que diferem da epistemologia clássica, relaciono alguns dos mais importantes:

Primeiro “O tempo não provoca ou resulta de uma evolução linear irreversível” (DURAND,

1982), é o princípio da repetitividade, a repetição dos ciclos míticos que se observa nas mais

diferentes épocas da humanidade, assim como na psique individual. Há a abolição da

causalidade linear, observada desde há muito tempo nos fenômenos humanos que são

recorrentes, redundantes. Há uma lógica de regressos.

Segundo “Os espaços da geometria são transcendidos por correlações objetivas de sentido,

são transcendidos por um real semântico que escapa à espacialização” (DURAND, 1982). O

símbolo é uma coerência no sentido físico deste termo, ou melhor, identidades diferentes são

postas em conjunto sem que haja exclusão.

Terceiro “O determinismo não é de causa e efeito. Há um determinismo da complexidade”

(DURAND, 1982), certa desordem que é produtora da ordem. O autor cita a noção de

similitude, ou princípio das filosofias homeopáticas, em que o semelhante trata o semelhante.

O que mostra um universo em homologias, funcionando num sistema de micro e

macrocosmos. Ressurge aqui o simbólico.

Ao traspassarmos esses pressupostos epistemológicos para a área da psicologia clínica, nos

deparamos com uma revolução iniciada pela descoberta do inconsciente de Sigmund Freud e

consolidada pelas concepções de arquétipo, símbolo e inconsciente coletivo, desenvolvidas

por Carl Jung. Inicialmente, ao perceber na prática clínica que poderia interpretar o

significado do sintoma através do registro da linguagem e que esse registro no sujeito não se

dava na consciência, Freud formulou a idéia de inconsciente. A partir de então, a concepção

do sujeito fundado na história e na significação rompeu com a tradição da filosofia

consciencialista.

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A práxis psicanalítica é constituída por determinados objetivos, finalidades e desejos (FINK,

1997). A genialidade inconteste de Sigmund Freud, traduzida pela revolução que o

inconsciente trouxe à história da humanidade a partir do século XX, marcou profundamente a

visão de homem, mas manteve-se atada às idéias filosóficas dominantes da época. Dos

méritos freudianos pode-se falar, inclusive, numa popularização de certa psicanálise, que

desde Édipo passou para a linguagem e costumes comuns, que vem preenchendo de mitologia

e símbolos as rodas de discussões corriqueiras. Além disso, há também o mérito dessa teoria

ter resgatado a um nível médico ou para-médico a noção de símbolo e da imagem, visto que

uma parte do diagnóstico psicanalítico repousa sobre as imagens, sobretudo as oníricas

(DURAND, 1982).

Um dos grandes avanços da psicologia científica consta na demonstração dos atos falhos,

conteúdos dos sonhos, sintomas neuróticos dentre outros, como sendo submetidos ao

determinismo causalista, sendo possível sempre chegar a sua origem ao seguir os elos que se

estabelecem (SILVEIRA, 1992). No entanto, a articulação mitologia-mitologia pessoal –

sintoma - depressão foge às regras causa e efeito. Como veremos adiante, buscamos delinear

uma ordem diferente, onde a imagem precede o racional, num tempo psicológico, e o que está

por vir não necessariamente se fundamenta na história pessoal.

Sendo Freud um rigoroso determinista (SILVEIRA, 1997), protestou ao pressentir a

aproximação de novos paradigmas para a ciência, iniciados na física moderna através da

teoria da relatividade de Einstein, chamando de “anarquismo intelectual” o que em sua

opinião era:

[...] Uma contrapartida do anarquismo político, talvez uma irradiação deste. Decerto, já houve no passado niilistas intelectuais, mas atualmente parece que a teoria da relatividade da física moderna subiu-lhes à cabeça. Partem da ciência, mas acabam arrastando-a para sua própria anulação, para o suicídio; levando-a a suprimir-se a si mesma pela renúncia a suas aspirações” (FREUD apud SILVEIRA, 1992).

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O curso da história, porém, mostrou uma desconstrução científica diferente das predições

freudianas. As antigas dicotomias estabelecidas pelo positivismo foram sendo desfeitas por

pesquisas no campo da microfísica e até botânica. Os limites de realidade têm se ampliado,

mostrando a natureza em maior beleza e complexidade, interligada em todas as suas partes

(SILVEIRA, 1992).

Supõe-se controverso formular paradigmas no nosso campo de saber que procurem responder

positivamente a determinadas normas epistemológicas. Para explicitar qual o nosso fio

condutor neste estudo sobre depressão, é necessário introduzir uma abordagem simbólica da

psicologia clínica. Esta vertente nos ajuda a focalizar a problemática do ser no mundo

partindo de outro ângulo, não necessariamente o verdadeiro, mas devidamente mais integrado

e sistêmico.

Voltamos então às fases de desenvolvimento da consciência e da humanidade para tentar

encontrar a base da mudança de posicionamento da sociedade contemporânea frente aos seus

valores e práticas. De acordo com Neumman (apud LOUREIRO, 2007), a ética decorrente do

estágio Patriarcal - como já pudemos notar ao falar da episteme do saber desse período - não

leva em consideração a totalidade do indivíduo e, por isso, é incapaz de exorcizar as forças

destruidoras do homem: ao irromper sua cosmovisão o homem passou a se dar conta que não

é um lutador do bem contra o mal, que necessita assumir a responsabilidade também por seus

processos inconscientes, assumir o seu mal.

Assim, segundo Neumman (apud LOUREIRO, 2007), uma das características mais marcantes

dessa pós-modernidade é que se passa a ser reconhecida a ambigüidade e pluralidade de sua

própria natureza e o indivíduo entra em crise diante da obrigação de aprofundar-se em si

Page 31: DEPRESSÃO E TRANSFORMAÇÃO

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mesmo, de forma nunca antes realizada. É a partir dessas bases que transita a ética com a qual

tentamos fundamentar esse estudo e que nos remete a Carl G. Jung.

A escolha por Jung para nos guiar por este estudo, parte basicamente do fato de sua teoria

psicológica condensar de forma ampla muitos elementos que busco resgatar no olhar

terapêutico atual, dentre eles o simbólico, a imagem, a alma, o cuidado e a transformação.

Assim, sentimos a necessidade de apresentação de alguns fundamentos teóricos a partir dos

quais Jung construiu seu pensamento e sua visão de mundo para que possamos transitar com

mais segurança no terreno de propostas clínicas e da almejada transformação. No caso desse

estudo em particular tratamos o tema olhando aos portadores da síndrome, mas nunca é

demais enfatizar que esse resgate poderia ser coletivo, visto que a sociedade contemporânea e

suas práticas muitas vezes fazem da vida cotidiana uma dinâmica doentia e superficial.

Algumas interpretações acerca da obra junguiana estabelecem juízos que remontam sua

popularidade à reconciliação entre ciência e espiritualidade gnóstica (SALMAN, 2002). A

concepção de realidade postulada por Jung provocou muitas críticas, a menor delas era que

não poderia ser considerado um cientista (SILVEIRA, 1992).

Tendo nascido em berço psicanalítico, as idéias de Jung seguiram outro percurso, em

consonância com os avanços da física moderna. Os átomos são divisíveis, a matéria tem

comportamento diferente na escala macro ou microfísica, os elétrons se comportam de

maneira imprevisível, a luz não se apresenta unicamente sob a forma de onda: matéria e

energia são equivalente, tal qual Einstein pôde demonstrar: O tempo é relativo. Essas e outras

descobertas derrubaram a sensação de conhecimento seguro do mundo exterior, mas não

fizeram a ciência acabar, apenas certa estrutura científica construída em determinado

momento histórico foi abalada (SILVEIRA, 1992).

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A pesquisa contínua, mantendo acesa a chama do espírito científico veio a demonstrar pelo

prêmio Nobel da Física Richard Feynman, que a suposta necessidade para ser ciência que

pedia que as mesmas coisas produzissem sempre os mesmos efeitos não acontece, referindo-

se aos fenômenos da mecânica quântica: “Observamos o que encontramos e não podemos

saber com antecedência o que acontecerá. Muitas vezes não são as probabilidades mais

razoáveis aquelas que correspondem à situação” (FEYNMAN apud SILVEIRA, 1992). Torna-

se importante verificar os resultados das observações e pesquisas científicas com a

inteligência livre de enquadres que limitam.

O físico F. Capra (apud SILVEIRA, 1992) admite um crescente reconhecimento da

compatibilidade e coerência entre a psicologia junguiana e a ciência pós-moderna. A

abordagem da mente humana formulada pelo psicólogo suíço aponta para um novo

paradigma: a identidade da matéria e psique. Segue a opinião de Jung a respeito do que vem a

ser realidade:

Não sei de nada que diga respeito a uma super-realidade. A realidade contém tudo quanto posso conhecer, pois qualquer coisa que age sobre mim é real e presente. Se uma coisa não age sobre mim, não noto nada e, portanto, nada sei sobre ela. Só poderei fazer afirmações sobre coisas reais, e nunca sobre coisas irreais, super-reais ou sub-reais. A menos que ocorra a alguém limitar o conceito e realidade de tal maneira que o atributo ‘real’ seja aplicado somente a um segmento particular da realidade do mundo [...] à chamada realidapudde material ou concreta de objetos percebidos pelos sentidos (JUNG apud SILVEIRA, 1992, p. 158).

A visão dicotômica do mundo, que acompanha os paradigmas positivista ou clássico, tal como

certo e errado, luz e sombra, matéria e energia, razão e emoção também é posta em cheque

pela formulação de Jung do unus mundus, a hipótese da unidade psicofísica de todos os

fenômenos, matéria e psique. A partir desse pressuposto, Jung reflete que a multplicidade do

mundo empírico repousa sobre uma unidade subjacente. Todas as coisas opostas, diferentes,

divididas, são parte do mesmo mundo e se integram numa totalidade (SILVEIRA, 1992).

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Psique e matéria são idênticas e seguem leis semelhantes. O inconsciente para Jung é uma

parte da natureza, algo objetivo, real, genuíno. O que é gerado a partir da atividade

inconsciente deve culminar credibilidade, pois são “manifestações espontâneas de uma esfera

psíquica não controlada pelo consciente, livre em suas formas de expressão” (JUNG apud

SILVEIRA, 1992), aí se enquadram os símbolos elaborados no inconsciente e que

expressamos através de imagens.

A disposição introvertida, dada ao misticismo e posteriormente obscurantista-esclesiasta da

Idade Média, fez com que o atual desenvolvimento ocidental enfatizasse excessivamente o

pensamento racional e abstrato. As categorias usuais da razão são desafiadas para

compreender o mundo simbolicamente. Os modelos operantes, ou “hipóteses operantes

simbólicas” (WHITMONT, 2002) como por exemplo o átomo ou arquétipo, precisavam ser

descritos para que nos aproximássemos de uma compreensão do modo pelo qual um

desconhecido atua no mundo da matéria.

A psique e seus elementos consituintes, tal qual o átomo, não são materiais que possam ser

percebidos pelo mundo dos sentidos. Falamos dela indiretamente, descrevendo o

comportamento dos outros e nossa própria experiência subjetiva, como se houvesse uma

integridade virtual que organizasse a ação das partes. “A hipótese mais básica sobre a psique

humana com a qual lidamos aqui é a de um padrão de totalidade que só pode ser descrito

simbolicamente” (WHITMONT, 2002). Além disso, ainda segundo Whitmont (2002), o

pensamento racional e abstrato não tem passe livre para esta dimensão da psique e para que

haja a integralização do que está dividido, dicotomizado de maneira insistente pela nossa

sociedade, somos forçados a recorrer ao símbolo como um modo cognitivo que serve de

intermediário.

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O pressuposto da totalidade formulado em Jung, pretende que a tendência do ser-humano seja

o crescimento e universalização, alcançando seres e condições que parecem longes dele

próprio. Um dos critérios que poderão dar idéia de onde se situa este homem quanto a etapa

da caminhada que tem a percorrer, é a atitude face às produções artísticas. Por muito tempo

designou-se por arte selvagem ou primitivismo maravilhosas produções artísticas da África ou

da Oceania. Tais produções só passaram a ser aceitas no começo do século XX, inspirando

artistas modernos como Picasso, que inspirou-se na arte negra com o impulso que o fez

desprender-se das regras racionais clássicas, rompendo com o racionalismo convencional e

tornando sua arte pertubadora (SILVEIRA, 1992).

Jung (apud SILVEIRA, 1997) não considerava tarefa da psicologia analítica explicar as

imagens poéticas ou artísticas. Seu trabalho foi a pesquisa sobre as estruturas da produção

artística e imagens simbólicas emergentes no conteúdo da obra de arte indo além das relações

causais da história pessoal do artista.

Em termos práticos, o método de Jung de interpretar símbolos espontâneos do inconsciente nunca tenta dizer que uma situação humana é assim ou assado, mas sim que essas imagens descrevem a própria situação sob forma de analogias ou parábolas. [...] Embora esta abordagem não seja abstrata ou racional, também não pode ser considerada irracional; mas precisamente, ela possui leis e estruturas próprias que correspondem às leis estruturais da emoção e do conhecimento intuitivo” (WHITMONT, 2002, p.19).

Neste sentido, Jung afirma que o símbolo não traz explicações, mas “impulsiona para além de

si mesmo na direção de um sentido ainda distante, inapreensível, obscuramente pressentido e

que nenhuma palavra da língua falada poderia exprimir de maneira satisfatória” (SILVEIRA,

1997, p.71).

O estudo da imagem, tanto nos sonhos como em expressões artísticas, ajudou Jung na

formulação de um dos seus pressupostos principais. As imagens para a teoria junguiana

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(WHITMONT, 2002), funcionam de maneira compensatória ou complementar, portando

mensagens que estão faltando ao consciente, em decorrência de suas posturas unilaterais; é a

reação de defesa auto-reguladora da psique.

Questionamos então o fato de que sendo a finalidade do inconsciente conduzir-nos ao

equilíbrio psíquico, por que apresentar imagens de difícil compreensão em lugar de conceitos

lógicos e bem definidos? Segundo Jung (apud WHITMONT, 2002), o pensamento abstrato e

conceitual é uma forma de desenvolvimento secundário e tardio da mente humana, como ilhas

de segurança criadas pelo consciente a partir da abstração das imagens carregadas

emocionalmente, estas como a unidade básica ou original do funcionamento mental. O

intercruzamento dos impulsos com cargas emocionais ativas focados nas imagens, gera a

necessidade no pensamento de abstrair criando raciocínios e estabelecendo uma posição à

primeira vista independente.

A própria história da humanidade mostra uma transformação nas faculdades mentais do

homem, primariamente baseada na comunicação através de símbolos e imagens, para

posterior desenvolvimento do pensamento lógico-abstrato. Da convergência de dados

empíricos expressos em delírios e associações de seus próprios pacientes e estudos na

literatura da arqueologia e mitologia, Jung observou uma tendência a temas comuns,

personificados em temas míticos e símbolos recorrentes nas mais diversas culturas.

Corresponde às camadas profundas e estruturais da psique humana, o inconsciente coletivo:

Na qualidade de herança comum transcende todas as diferenças de cultura e de atitude conscientes, e não consiste meramente em conteúdos capazes de se tornarem conscientes, mas em disposições latentes para reações idênticas. Assim, o inconsciente coletivo é simplesmente a expressão psíquica da identidade da estrutura cerebral, independente de todas as diferenças raciais. Deste modo pode ser explicada a analogia, que vai mesmo até a identidade, entre vários temas míticos e símbolos, e a possibilidade de compreensão entre os homens em geral (SILVEIRA, 1997, p. 64).

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A imagem, portanto, não é constituída e explicada decisivamente pelos conflitos pessoais.

Tampouco estes são as únicas chaves para o conhecimento da obra de um artista. Silveira

(1997) ao explicitar o ponto de vista de Jung, define a obra de arte como uma produção

impessoal que expressa a alma inconsciente e ativa da humanidade.

As imagens na psique humana compõem os sonhos, símbolos totêmicos, rituais religiosos nas

diversas culturas, artes, filosofia, assim como nos mitos e contos de fada, e nas produções do

inconsciente de maneira geral, ainda que no delírio psicótico. Tais conteúdos apresentam-se

idênticos nas mais diferentes épocas e culturas humanas. Não sendo variáveis ao infinito, são

agrupados em categorias bem definidas, sendo as bases para os outros fenômenos da psique,

comuns a todos os seres humanos (SILVEIRA, 1997). A tais bases, Jung dá o nome de

arquétipos.

O arquétipo está no inconsciente coletivo, funcionando como um nódulo onde se concentra

energia psíquica. “Quando essa energia, em estado potencial, se atualiza, toma forma, então

teremos a imagem arquetípica. (...) O arquétipo é unicamente uma virtualidade” (SILVEIRA,

1997, p.69).

Hillman (1991) faz referência aos últimos trabalhos de Jung, remetendo-nos novamente à

questão epistemológica, pois sendo estes trabalhos teoricamente profundos tentam dar solução

aos problemas psicológicos para além dos moldes científicos. Denomina ainda esta psicologia

como Psicologia Arquetípica, pois pertence a todas as culturas e formas de atividade humana

e não se delimita somente na psicoterapia.

É possível perceber uma forte ascendência da concepção de arquétipo na antropologia na

linha do imaginário, onde Durand (apud COSTA, 2000) utiliza-o com algumas alterações;

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assim como na publicidade e crítica de arte, sejam plásticas ou na literatura (SILVEIRA,

1997).

Pela definição tradicional, arquétipos são as formas primárias que governam a psique. Mas não podem ser contidos apenas pela psique, uma vez que também se manifestam nos planos físico, social, lingüístico, estético e espiritual. Os primeiros vínculos da psicologia arquetípica são mais com a cultura e imaginação do que com a psicologia médica e empírica, que tendem a confinar a psicologia às manifestações positivistas da condição da alma do século XIX (HILLMAN, 1991, p.22).

James Hillman (1991) retoma a importância da imagem proposta por Jung, acrescentando que

os arquétipos são acessados pela imaginação unicamente através das imagens. Considerando

que quando interpretamos a mesma, afastamo-nos do fenômeno, pois a imagem é sempre mais

abrangente que um conceito, enfatiza a importância de se relacionar com uma constelação de

significados.

Porém, quando remetemo-nos à psicologia arquetípica o coletivo é valorizado enquanto

reflexo da alma. Alma entendida como “uma perspectiva (...) um ponto de vista sobre as

coisas, mais do que uma coisa em si” (HILLMAN, 1991, p.8). Insistindo neste contraponto,

enriquecemos o paradigma da imagem com Durand, que contextualiza-a no campo da cultura.

Cada imagem é universal e arquetípica, mas torna-se específica nas diferentes culturas,

assumindo diferentes formas.

A psicoterapia junguiana não tem por objetivo apenas a dissolução de conflitos intrapsíquicos

ou problemática interpessoal, facilita que possam se desenvolver as “sementes criativas”

pertencentes ao indivíduo, ajudando-o a amadurecer (SILVEIRA, 1997).

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4. PSICOTERAPIA ANALÍTICA E TRANSFORMAÇÃO

Levando em conta todo o processo de mudança epistemológica pelos quais passou a ciência e

a psicologia, convido a não esquecer que o indivíduo é uma outra face dessa mesma moeda.

Assim, procuro aclarar que a transformação individual também está ligada a transformação

coletiva. A depressão, como um sintoma da coletividade contemporânea, sugere uma

necessidade, bem discutida por Mello (2007) ao propor que a metanóia6 pode contribuir para

a compreensão dos resgates necessários na ciência e no indivíduo.

De acordo com o que vimos no capítulo anterior, é interessante notar que a teoria junguiana

tende a orientar o campo da psicoterapia para ampliar algumas de suas técnicas. Poderíamos

pensar que se trata de uma evolução de teorias e práticas, entretanto segundo Jung (2004) não

seria evolução a palavra mais indicada. O autor postula uma renúncia, tendo sempre em conta

a atitude terapêutica menos preconcebida possível. Completa Jung: “Em outras palavras: O

terapeuta não é mais um sujeito ativo, mas ele vivencia junto um processo evolutivo

individual” (JUNG, 2004, p.05).

Conforme analisou Mello (2007) a psicologia analítica em consonância com a física provocou

uma ruptura de modelos que aproximou as ciências naturais e humanas. O grande mérito desse

ponto é que essa colaboração permite refletir sobre “o espelhamento entre as fronteiras do

mundo interior e exterior” (ibid). A autora traduz então essa importante relação apontada por

Jung onde explorar a natureza em busca de qualidades objetivas faz com que o homem

aproxime-se de suas próprias qualidades subjetivas. Da mesma maneira: “Analistas junguianos

6 “Metanoia (del griego µετανοῖεν, metanoien, cambiar de opinión, arrepentirse, o de meta, más allá y nous, de la mente) es un enunciado retórico utilizado para retractarse de alguna afirmación realizada, y corregirla para comentarla de mejor manera. Su significado literal del griego denota una situación en que en un trayecto ha tenido que volverse del camino en que se andaba y tomar otra dirección [grifo nosso]”. Transcrito em 21/05/2009 a partir do acesso ao site http://es.wikipedia.org/wiki/Metanoia.

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ao aprofundarem o olhar para dentro descobrem-se voltando o olhar para o macrocosmo, para

a exterioridade do universo” (ibid) .

Ao tratar do assunto de processo evolutivo individual, Jung dá margens para pensarmos em

transformação. Em seu livro “A Prática da Psicoterapia”, Jung nos introduz a seu método que

chama de dialético. Segundo o autor, o método dialético favorece diversas possibilidades de

interpretação para os conteúdos simbólicos trazidos pelos pacientes. Contudo, o que o autor

entende por transformação não é o mesmo de mudança na personalidade do paciente e isso

deve estar bem claro, pois tampouco é essa a idéia que propomos através desse trabalho.

Nessa linha de raciocínio trazemos a consideração de Mello (2007, p.197) de que “A

transformação paradigmática do conhecimento, também segue o mesmo caminho no

indivíduo, ocorrendo através da ampliação da consciência que necessita um recolhimento de

projeções”.

Jung (2004) alerta que em todas as circunstâncias o método dialético tem como norma

suprema que a individualidade do paciente é tão digna quanto a do psicoterapeuta e deve por

isso ser respeitada. “Se é que ‘cura’ significa tornar sadio um doente, cura significa

transformação. Sempre que possível, isto é, no caso de a personalidade do doente não ser

sacrificada em demasia, ele deve ser transformado terapeuticamente” (JUNG, 2004, p.08).

Jung (2004) nos apresenta casos de pacientes que encontraram alivio pra seus sintomas ao se

tornarem católicos, protestantes ou adeptos de outras crenças religiosas, por exemplo:

Em todos estes casos dispenso o método dialético, porque não vejo razão alguma em fomentar uma evolução individual acima das necessidades do paciente. Se ele encontrar o sentido de sua vida e a cura de sua inquietação e desarmonia dentro do quadro de uma das formas de confissões existentes – inclusive um credo político, - então o terapeuta deve aceitá-lo (JUNG, 2004, p.14).

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Retomando a idéia proposta no capítulo Epistemologia e Nova Ética indicamos a necessidade

de incorporar aos dias atuais a função coletiva exercida pelos ritos místico-religiosos.

Algumas vezes essa função pode ser conseguida através da adesão a alguma crença religiosa,

no entanto apesar de não se opor aos que se satisfazem com essa opção, Jung indica o

caminho do meio: encontrar o coletivo no próprio Self.

Depois de tantos rompimentos epistemológicos, a maneira do ser humano vivenciar a

coletividade nos dias atuais é um tanto fragmentada, Mello (2007) ao citar Hillman esclarece

sobre uma dinâmica que poucas vezes é referida pelas “psicologias” não junguianas quando o

assunto é contemporaneidade: o desaparecimento dos ritos de passagem e a dicotomia entre a

natureza e cultura não seriam necessárias caso o homem pudesse compreender que tudo que

ele constrói, carros, avenidas, concreto, assim como as árvores que o rodeiam, são também

natureza e por isso devem ser vivenciadas como parte desta, o humano é também natural.

Além disso, ainda sobre a necessidade de reconsiderar a nossa ligação com a totalidade Mello

(2007, p.207) acrescenta: “Um duplo lugar se estabelece: desviar-se da massa para depois

reencontrar o coletivo significa romper nossa racionalidade capaz de esgotar o

conhecimento”, acredito que dessa maneira o coletivo é re-integrado e a transformação entra

em curso.

A reunião do indivíduo com a totalidade ou a busca do mito das origens é contemplada com a

realização da metanóia. Mello (2007) esclarece o processo:

Em termos individuais e coletivos, há, um sentido quântico-mítico do tempo de resgate, de revirar “as lembranças do passado”, acertando contas com nossos projetos. Eis outro paradoxo humano: precisamos mudar para continuar ser o que somos, o que foi uma conquista para o indivíduo e civilização. (MELLO, 2007, p.204).

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Ao defender a opção religiosa, Jung (2004) pondera que a partir do momento em que uma

análise culmina no campo do domínio espiritual, estamos entrando no campo do coletivo ou

das idéias gerais. Nesse sentido, o autor nos explica que tais pressupostos espirituais não são

tema de debates ou criticas. Diz-se com muita freqüência que futebol e religião não se

discutem. Arrisco que isso se deve ao fato de estarem no domínio da coletividade, ou seja, as

idéias relacionadas ao que é religioso, por exemplo, são inconscientes: por essa razão podem

tornar-se fontes de conflitos de consciência muito graves. Jung (2004) prossegue:

[...] Quantas vezes os preconceitos gerais herdados, por um lado, e a desorientação na moral e na visão do mundo, por outro, são as causas mais profundas de graves distúrbios do equilíbrio psíquico, sobretudo na nossa época de transformação revolucionária. A única coisa que o medico pode oferecer a pacientes desse tipo é a possibilidade de uma evolução espiritual individual. (JUNG, 2004, p. 15)

Levando em conta que o inconsciente é a base, a condição preliminar da consciência - e que

se foi diferenciando século apos século acumulando heranças instintivas, funcionais e

formadoras que já pertenciam à psique ancestral - não é de se estranhar que o comportamento

do homem seja idêntico ao de seus antepassados e que diante de mudanças revolucionárias

estruturais no meio em que vive esse homem adoeça, pois suas reações já não sentem-se

confortáveis com os ditos novos tempos.

Jung (2004) acrescenta ainda que aproximadamente um terço dos seus clientes nem chega a

sofrer de neuroses clinicamente definidas. Estavam doentes devido “à falta de sentido e

conteúdo de suas vidas”, e continua “ Não me oponho a que se chame essa doença de neurose

contemporânea generalizada” (JUNG, 2004, p.67).

A tão discutida questão de temporalidade e contemporaneidade pode ter seu início com o final

da era moderna e do modernismo, em 1950. Segundo Loureiro (2007) “Contemporaneidade

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também é conhecida como sociedade avançada, pós-industrial, pós-moderna, e tem como

característica a pluralidade. Segundo Santos (apud LOUREIRO, 2007), ela acontece a partir

da segunda Guerra Mundial”. Esse processo coincide com o momento que se tomou em

consideração a Cosmologia Quântica enquanto ciência, também em torno do mesmo período.

Conforme pondera Mello (2007), a Cosmologia Quântica confirmou suas proposições de que

o universo se expande de forma constante, em paralelo a psicologia junguiana introduz a idéia

de movimento energético no psiquismo, como seria no universo. Mello (2007) esclarece que

para Jung o tempo exerce uma influência que se manifesta no ritmo de contração e expansão

da vida. Isso significa que os acontecimentos da vida mudam no decorrer do tempo de

maneira multi e indeterminada, amparados no fato de que a singularidade de um sujeito se

complementa com os efeitos da natureza bio-psico-social. Esses pressupostos estão

intrinsecamente ligados à transformação:

Dentro da concepção dinâmica de Jung (apud SILVEIRA, 1981), os conteúdos transformam-se. Posteriormente concluiu que algo ainda mais importante acontecia: os conteúdos do inconsciente eram susceptíveis de metamorfoses, a natureza estava viva e seguia também os seus propósitos Jung (ibid) introduz a idéia de tempo no psíquico. Um dos motivos que os povos tradicionais dão tanta importância aos seus velhos, e também por Jung (1963) é que nos ensinam sobre o tempo. É partir da metanóia, das crises da vida adulta que surge a busca de sentido, a reflexão sobre a vida e morte. (MELLO, 2007, p. 201)

Em uma tentativa de explicar o mecanismo de funcionamento dos domínios coletivos da

psique e a sua importância para o processo terapêutico, Jung (2004, p.32) diz que: “Logo, o

inconsciente é visto como uma predisposição geral para um conservadorismo extremo, ou

como que uma garantia de que jamais acontecerá algo novo”, no entanto, paradoxalmente é

somente nessa base sadia e natural da mente humana que se pode encontrar uma semente

criativa para renovar posturas e re-significar, tornando-se útil.

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Jung (2004) cita pacientes “cultos e inteligentes”, que resistiam a qualquer tentativa séria de

mudança. E é a partir desse momento que o autor nos apresenta a transformação não como um

objetivo final do processo terapêutico, nos explica que o percurso que se segue é o da própria

individuação, onde ao “final” o paciente se torna aquilo que de fato é. “Na pior das hipóteses

poderá chegar a aceitar a sua neurose, porque entendeu o sentido da sua doença” (JUNG,

2004, p.08).

Isso porque, no processo evolutivo individual, o inconsciente passa a ocupar o primeiro plano. A causa mais profunda desse fenômeno poderia ser a unilateralidade antinatural da postura neurótica do consciente, que por isso mesmo é contrabalançada pelos conteúdos complementares e compensatórios do inconsciente. (...) O caminho individual não pode prescindir do conhecimento das leis próprias do indivíduo, senão corre o risco de perder-se nas opiniões arbitrárias do consciente e separar-se do instinto individual, da terra mater. (JUNG, 2004. p.09)

Jung (2004) trata de explicar como se poderia produzir essa evolução psíquica individual,

comentando que a princípio se produz algo muito parecido com o velho mundo das fábulas.

Esse caminho individual transmitiria a impressão de um recuo aos tempos pré-históricos, e

como conseqüência, uma regressão também na evolução espiritual – nos remete assim, aos

estágios de consciência anteriormente mencionados que devem nesse momento serem

acessados e resgatados. Esse não é um trajeto agradável, dando a impressão de algo

inconveniente ocorrendo, algo que deveria ser impedido pelo processo terapêutico e não

desencadeado por ele (JUNG, 2004).

No que tange ao tema deste trabalho, logo nos deparamos com a freqüente incidência da

depressão na sociedade atual e é então que a conexão com o que disse Jung sobre esse

caminho individual pode ser compreendido. Essa regressão, que a princípio pode parecer

assustadora, é na verdade a grande responsável pelo encontro do homem com seus próprios

obstáculos: “[...] um concentrar e integrar forças, que no decorrer da evolução vão constituir

uma nova ordem”. (JUNG, 2004, p. 13).

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A teoria junguiana trabalha com uma perspectiva inclusiva, onde as partes constituem um

todo maior. Totalizam quatro as etapas que constituem um processo terapêutico completo,

mas uma não prescinde da outra nem se encadeiam hierarquicamente. Assim, na quarta etapa

de terapia, à qual Jung chama de transformação, não há contradição com as demais etapas

desse percurso:

[...] Ela [não] deve ter a pretensão de ser a verdade, por fim alcançada, a única que tem validade. Não. Não há a menor dúvida de que ela também vem apenas preencher uma lacuna deixada pelas etapas anteriores. Vem apenas para satisfazer uma necessidade a mais, transcendendo tudo o que foi feito até então (JUNG, 2004, p.67).

Para tornar claro qual a finalidade dessa fase de transformação, e qual o significado desse

termo “transformação” – que talvez possa soar um tanto estranho – é preciso levar em

consideração antes de mais nada, qual a necessidade da alma que passou despercebida nas

fases anteriores da psicoterapia. Alguém poderia ser considerado normal e adaptado pela

sociedade em geral, mas o simples fato de poder ser considerado dentro desses parâmetros é

insuficiente, é estar na média. E muitos são os que desenvolvem sua neurose por resumirem-

se à chamada normalidade, quando na verdade lhes apetece uma amplitude e aprofundamento

extra-normais.

Na Psicologia sabemos que a transformação só aparece quando se unem: necessidade e força de vontade (JUNG, OC XVII). A necessidade do erro permite a intervenção da “graça”. Não errar, não sofrer desmedida, manter-se sempre em completo equilíbrio no meio do caminho é estar cristalizado, é ser possuído pelo poder da consciência. Eis a metáfora cristã de quem não peca não poderá ser perdoado: eis nossa humanidade – corruptível - e seu paradoxo, nossa possibilidade de mais trevas para alcançar mais luz – nosso aspecto incorruptível. (MELLO, 2007, p. 205)

Jung (2004) aprofunda ainda mais nossa compreensão dessa tríade neurose-análise-

transformação, o autor nos diz que a psicologia analítica rompe os grilhões que a prendiam à

uma prática médica ao mesmo tempo que preenche uma falta de nossa cultura ocidental em

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relação às orientais: o conhecimento da espiritualidade, da alma e suas funções. Não se trata

de um analista tratar um paciente com a intenção de subjugar sua psique ou qualquer mudança

nesse sentido, tampouco se trata de um analisando buscar terapia com intenção de suprimir os

sintomas de seu sofrimento psíquico ou, nesse caso, de sua depressão.

Em nível cultural mais adiantado, o desenvolvimento deve substituir e vai substituir a dominação. (...) Para tanto, os conhecimentos e experiências da psicologia – segundo me parece – poderiam fornecer-nos pelo menos as bases, pois, no momento em que uma psicologia, que nasceu da medicina, toma o próprio medico como objeto, ela deixa de ser um simples método de tratar doentes. Ela passa a tratar de homens sãos, ou, pelo menos, de pessoas que se dão o direito moral de reivindicar a saúde psíquica, e cuja doença pode ser, no máximo, o sofrimento que a todos atormenta (JUNG, 2004, p.72).

É nesse sentido, pelo pressuposto de que mito, corpo e psique funcionam em uníssono e que

seu funcionamento não pode ser compreendido dicotomicamente, que este trabalho tentou

aprofundar e descortinar associações simbólicas do fenômeno da depressão. Traduzindo-a

enquanto paradigma da alma e uma metáfora para as necessidades da sociedade

contemporânea.

Como bem se pode entender desse e de outros textos que tratam do tema contemporaneidade,

quando uso a expressão “contemporânea” estou fazendo uma referencia temporal e ao mesmo

tempo subjetiva. Assim, diante de tudo que expus no corpo deste trabalho não vejo melhor

maneira de terminar esse capítulo de Transformação com uma citação feita por Elizabeth

Mello (2007) em seu artigo sobre metanóia que fala sobre o tempo de uma maneira bastante

específica:

O tempo para os povos indígenas, é uma divindade sagrada encarregada de manter a Lei dos Ciclos. [...] O tempo faz a ligação do ritmo – que é coordenado pelo coração. [...] Quando chegaram as Grandes Canoas dos Ventos (as caravelas portuguesas), tentaram banir o espírito do tempo, algemando-o no pulso do Homem da civilização. Dessa época em diante, o tempo passou a ser contado de modo diferente. Esse modo de contar o tempo

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gerou a História, e mesmo a História passou a ser contada sempre do modo como aconteceu para alguns e não do modo como aconteceu para todos (JECUPÉ apud MELLO, 2007, p. 201).

Assim, posso concluir que a depressão ao se manifestar no mundo contemporâneo vem trazer

ao homem a possibilidade de reconectar o seu tempo do relógio ao tempo do ritmo do seu

coração, conforme muito bem descreveu esse antropólogo indígena. A humildade em aceitar

não controlar o tempo e o espaço, tirando o ego da posição dominante, é um bom fio condutor

para permitir chegar a possibilidade de transformação.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Diante de todo o exposto, considero que dos principais méritos trazidos por Carl Jung e a

Psicologia Analítica encontra-se a possibilidade de salvar a psique do domínio do Ego e

transportá-la a sua própria categoria de Alma. Nosso psiquismo não é escravo de um modelo

ou máscara, ele é muito mais amplo do que a nossa suposta ilha de segurança egóica e pode

sim ser melhor integralizado ao permitir-se relacionar com o multi.

Na sociedade contemporânea, a partir do momento em que não sentimos mais a obrigação de

seguir a lógica dos opostos e quando os estereótipos não subjugam mais as relações sociais,

somos ensinados a viver a abertura à diversidade, ao diferente. Essa nova ordem pode sim ser

geradora de conflitos dolorosos em nosso psiquismo e é aqui que encontramos a depressão, e

também a possibilidade que ela nos traz de sermos animados pelo mundo.

Por integralizar a Alma entendo a tarefa de ampliar nossa consciência para tudo ou quase tudo

que possa formar parte de nossa personalidade, através de uma honesta capacidade de admitir

e permitir. Não somos donos da nossa própria casa e a admissão do que é escuro em nós é

uma condição básica para estar em contato com a nossa base, contrabalançando a ilusão

maníaca contemporânea mencionada por Hillman (1991) e já discutida no capítulo

“Depressão: a busca do sentido na Contemporaneidade”.

Como já mencionei no corpo do trabalho, diante de tantas imagens, modelos, tendências e

direções opostas, me parece evidente que a transformação verdadeira só vem com o

desempenho da tarefa de suportar o conflito, sofrer por estar nesse vale, mas suportar. Algum

não-junguiano que possa estar lendo esse trabalho poderia se questionar a validade de passar

por uma depressão, se não seria mais fácil suprimir seus sintomas e seguir. Então eu insisto

que seguir assim é se propor a viver uma vida sem significado ou amadurecimento, ignorando

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o processo de individuação e a possibilidade cada vez maior de admitir quem realmente

somos.

Como muito bem descreveu Hart (2002), a partir desse processo doloroso, e sobretudo

honesto, a energia que anima nossa psique está detida no conflito, mas logo encontrará o

caminho em direção ao inconsciente. O mais importante ao destacar esse percurso, é

esclarecer ao leitor que é justamente das profundezas do inconsciente que vai surgir uma

solução inesperada ao conflito vivido: o símbolo, ele é a “nova ordem” que Jung descreve em

seu livro A Prática da Psicoterapia (2004) e que mencionei no capitulo Psicologia Analítica e

Transformação. O mandala é uma imagem que pode representar bem esse processo onde em

um círculo estão contidos vários aspectos da vida psíquica, em uma interação salutar.

Através desse artigo de David Hart (2002) também pude refletir que o fato de não necessitar

do domínio egóico e estar aberto a multiplicidade de símbolos e imagens que a vida nos

oferece corresponde em termos práticos a estar aberto ao inesperado. O inesperado é um

conceito que faz parte do mundo contemporâneo e que angustia a todos que lidam com ele.

São as mudanças repentinas de paradigmas, é a independência do tempo e do espaço é o

mundo virtual e dinâmico que nos traspassa.

O inesperado pode chegar através de um email recebido ou um encontro imprevisto numa

esquina de outro continente com alguém que já não se tem contato há anos e que atualmente

era o tema-do-dia de sua análise - e essa foi uma situação que aconteceu comigo. Viver a vida

consciente do nosso próprio inconsciente é viver a vida com sentido. O inesperado tem a

capacidade de nos conduzir ao significado prático da vida e assim podemos participar dela de

uma forma mais integral.

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Por isso posso afirmar muito convencida aos que questionem a validade do estar deprimido,

que desde que se possa viver o rebaixamento de humor de forma criativa e consciente ele

pode favorecer o processo de transformação que se necessite viver. O sofrimento psíquico não

deve ser ignorado e ao se instalar qualquer neurose a psicoterapia é um caminho acertado

para conquistar a integralidade, não poderia ser diferente com a depressão.

A meta final é o próprio processo e a incidência da depressão na contemporaneidade não foge

disso. Ser compelido pela depressão a freqüentar um vale da Alma é não se deixar ser

subjugado pelo Ego: aceitando tanto a dor da desilusão, quanto o possibilidade de

transformar-se.

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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