ANLISE CRTICA DO DISCURSO E TEORIA DA MULTIMODALIDADE:

UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO VISUAL/CRTICO

Derli Machado de Oliveira1 (UFRN)

derli_machado@hotmail.com

INTRODUO

Nas prticas sociais ps-modernas os cidados esto cada vez mais sendo

expostos leitura de textos que misturam escrita, layout, imagens, som e objetos 3D. ,

portanto, nessa era visual, em que as imagens tambm produzem e reproduzem relaes sociais, criam e reproduzem valores, crenas e ideologias (KRESS & VAN

LEEUWEN, 2001), que os alunos convivem.

Para atender as demandas sociais desse mundo visual, a sociedade atual precisa de cidados crticos, que alm de observarem as realidades sociais, saibam

tambm analis-las criticamente, bem como sejam capazes de organizar aes para

intervir nessa realidade.

Entretanto, apesar do uso intensivo da imagem fora do ambiente escolar, ainda

insuficiente a sistematizao do uso dessas imagens para fins pedaggicos.

Nesse sentido, nas ltimas dcadas, pesquisas realizadas no campo das cincias

humanas, em reas como a educao, a lingustica aplicada, psicolingustica,

sociolingustica e diferentes correntes de anlise do discurso, tm dedicado parte de seus

estudos ao que se refere s prticas de letramento como instrumento do exerccio da cidadania.

Entendemos que os eventos de letramento no contexto escolar, como qualquer

ao no mundo, se do a partir do discurso, o qual veicula significaes e ideologias que

constroem a realidade. Essas prticas podem favorecer as transformaes, ao veicular

um sentido fortalecedor e emancipatrio ou pode ratificar o poder e a hegemonia.

Na tentativa de contribuir na direo emancipatria, com base na Teoria da

Multimodalidade (KRESS & VAN LEEUWEN, [1996] 2006, 2001), que olha para

alm da linguagem verbal e examina os vrios modos de comunicao e construo de

significados, nesse trabalho apresentamos a metodologia de anlise de imagem proposta

por Kress e van Leeuwen (2006), a Gramtica do Design Visual, doravante GDV.

A GDV busca descrever como os produtores de textos multimodais

representam pessoas, coisas e lugares em uma estrutura visual. Seguindo este modelo

possvel analisar trs modos de representao (metafuno) de um texto no-verbal:

representacional, interativa e composicional.

Buscaremos mostrar ainda, fundamentados na Anlise Crtica do Discurso

(ACD), que concebe o discurso como um momento das prticas sociais, aspectos

relacionados ideologia e o poder (FAIRCLOUGH 2001, 2003, 2006).

O corpus em que baseamos a nossa pesquisa constitudo pelos cartazes

promocionais dos filmes de Harry Potter. A saga do bruxinho Harry Potter e seus

amigos da escola de magia e bruxaria de Hogwarts na luta contra as foras do mal,

lideradas pelo cruel Voldemort, da escritora britnica J.K. Rowling, que comeou nas

livrarias em 1997 com A Pedra Filosofal, e chegou ao final em 2007, com a publicao

do livro Harry Potter e as Relquias da Morte, colecionou impressionantes recordes

1 Bolsista CAPES

editoriais2. Os sete livros publicados deram origem a oito filmes. No cinema, o

fenmeno Harry Potter teve sua estreia em 2001, com o lanamento de Harry Potter e a Pedra Filosofal. Depois de 10 anos, a franquia cinematogrfica mais rentvel da histria despediu- se dos seguidores da srie (pottermanacos) com a verso para o

cinema do ltimo ttulo escrito por J. K. Rowling em dois filmes. Com uma frmula que

mistura magia e aventura, o tema mais recorrente ao longo da srie a morte. Mas tambm retratado o amor, o preconceito, a amizade, a lealdade, dentre outros.

Entre os vrios fatores que contriburam para o grande sucesso dos filmes do bruxinho

esto as estratgias de marketing. Entre as peas de campanha esto os cartazes.

Desde o comeo da stima arte, a campanha de divulgao impressa dos filmes

(cartazes e psteres) tem exercido papel fundamental para o sucesso das produes

cinematogrficas. Um dos principais objetivos dos produtores ao criarem uma pea de design

atingirem o seu pblico-alvo. No caso do filme Harry Potter, o pblico infanto-juvenil. Com

elementos sofisticados de design (imagens, ttulos, cores) e diversos outros elementos grficos,

as peas publicitrias servem para atrair a ateno dos espectadores. Alguns cartazes de

divulgao so to impactantes que se tornam um marco da identidade visual de determinada

produo. Dessa forma, quando o espectador se lembra do filme a primeira imagem que lhe vem

mente a do cartaz.

Diante desse contexto, partindo do conceito de letramento como prtica social

(KLEIMAN, 1995), o objetivo deste trabalho apresentar, uma proposta de letramento

visual/crtico de modo que os alunos aprendam a ler textos multimodais e adotem um

posicionamento crtico ao lerem textos visuais.

Este trabalho est dividido da seguinte forma. Apresentamos, inicialmente, as

caractersticas e funes do gnero cartaz promocional de filmes (BAKHTIN, 1997; NUNES,

2006) e o conceito de texto e leitura (FARACO, 2002). Em seguida enfatizamos alguns

conceitos e pressupostos tericos da Semitica Social (KRESS e van LEEUWEN, [1996] 2006,

2001) e da Anlise Crtica de Discurso (FAIRCLOUGH, 2008; MEURER 2005; HEBERLE,

2000; ORMUNDO, 2010), estabelecendo relao com o letramento (SOARES, 2006; TFOUNI,

1995; KLEIMAN, 1995; MARCUSCHI, 2007), multiletramento (DIONSIO, 2006) e

letramento visual/crtico. Em seguida apresentamos as categorias de anlise e interpretao da

linguagem visual de Kress e van Leeuwen ([1996] 2006).

1. Gnero cartaz promocional de filmes: caractersticas e funes

Antes de discorrer sobre o nosso objeto de estudo, convm aqui destacar a

definio de gnero discursivo em Bakhtin, feita a partir do carter social da linguagem,

cujo conhecimento suscitou novos caminhos para o trabalho pedaggico com a

linguagem verbal, demandando uma nova abordagem para o ensino de Lngua.

A utilizao da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e

escritos), concretos e nicos que emanam dos integrantes duma ou

doutra esfera da atividade humana. O enunciado reete as condies especcas e as nalidades de cada uma das esferas, no s por seu contedo (temtico) e por seu estilo verbal, ou seja, para seleo

operada nos recursos da lngua recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais -, mas tambm, e sobretudo, por sua construo

composicional. Estes trs elementos (contedo temtico, estilo e

construo composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do

enunciado e todos eles so marcados pela especicidade de uma esfera

2 Ao todo, os seis primeiros volumes da saga venderam 2,5 milhes de exemplares no Brasil e mais de

325 milhes em 64 lnguas, em todo mundo. Disponvel em . Acesso em 15 de set 2011.

de comunicao. Qualquer enunciado considerado isoladamente, ,

claro, individual, mas cada esfera de utilizao da lngua elabora seus

tipos relativamente estveis de enunciados, sendo isso que

denominamos gneros do discurso (BAKHTIN, 1997, p.279).

O gnero, enquanto uma prtica social, deve orientar a ao pedaggica com a

lngua, privilegiando o contato real do estudante com a multiplicidade de textos

produzidos e que circulam socialmente.

Os conceitos de texto e de leitura abrangem a integrao da linguagem verbal

(textos escritos e falados) com

as outras linguagens (as artes visuais, a msica, o cinema, a fotograa, a semiologia grca, o vdeo, a televiso, o rdio, a publicidade, os quadrinhos, as charges, a multimdia e todas as formas infogrcas ou qualquer outro meio linguageiro criado pelo homem), percebendo seu

cho comum (so todas prticas sociais, discursivas) e suas

especicidades (seu diferentes suportes tecnolgicos, seus diferentes modos de composio e de gerao de signicados) (FARACO, 2002, p.101, destaques do autor).

Os cartazes promocionais de filmes, geralmente exibidos em salas de cinema,

locadoras, revistas e outdoors, possuem aspectos estruturais relativamente estveis que

relacionam o texto verbal (ttulo, ficha tcnica etc.) e o texto imagtico (cores,

fotografias, desenhos etc.), podendo haver predomnio de uma delas.

A funo principal do gnero cartaz promocional de filmes persuadir o

pblico.

Numa pesquisa em que realizou sobre a histria dos cartazes de cinema, Nunes

(2006, p.18) destaca que O cartaz foi uma das primeiras e continua sendo uma das principais formas de se fazer publicidade em mdia impressa. Segundo Moles (1978 p.21, apud NUNES, 2006, p. 18), ele [] nasceu da vontade de difundir o anncio impresso e o cartaz publicitrio [...] do texto que se desejou ilustrar [].

Citando Ribeiro (2003), Nunes (2006) ressalta que apesar do primeiro cartaz a

ser produzido com finalidades publicitrias ter sido criado no ano de 1482, somente a

partir do sculo XIX, com a evoluo da impresso, a produo de cartazes ganhou

relevncia para a publicidade. No final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo

XX, quando ainda no existiam o rdio e a televiso, o cartaz era o principal meio de

comunicao para as massas. O pice de sua utilizao ocorreu durante a Segunda

Guerra Mundial, usado para difundir principalmente ideologias polticas. Atualmente,

mesmo com o avano tecnolgico nos meios de comunicao, o cartaz considerado

um elemento publicitrio da maior importncia (RIBEIRO, 2003 p.239, apud NUNES, 2006, p. 19).

Os primeiros cartazes de cinema de que se tem notcia foram criados em 1892

(POOLE, 2003, apud NUNES, 2006, p. 20). Nessa poca a imagem j assumia um

papel fundamental na construo de cartazes. Durante vrias dcadas as ilustraes

feitas por artistas renomados foram a principal maneira de se agregar imagens ao cartaz,

tornando assim o principal elemento de persuaso do olhar dos espectadores.

O cartaz lanado meses antes do prprio filme, afixado de forma que seja

visvel em locais pblicos para informar e despertar a curiosidade dos espectadores.

Alm das imagens, esto presentes no cartaz o ttulo e os crditos do filme.

Com a ascenso do cinema em Hollywood, a partir da dcada de 1920 e 1930,

comeou a surgir uma maior demanda por cartazes publicitrios e as artes dos cartazes

tambm passaram a acompanhar esta evoluo, incorporando agora imagens com muita

ao, em sua maioria imagens de cenas dos filmes.

Com as novas tecnologias, o cartaz de cinema tem evoludo. Hoje os designers

contam com a computao grfica como a ferramenta principal, principalmente para

elaborar imagens de fico e aventura.

Os cartazes3 promocionais dos filmes de Harry Potter, objeto deste trabalho,

constituem um texto eminentemente multimodal, pois apresentam imagens e palavras

que coexistem, significando e se complementando entre si.

Os cartazes nacionais do ltimo filme, "Harry Potter e as relquias da morte,

parte 2", trazem os personagens Harry, Rony, Hermione, Neville, Voldemort, Snape,

Draco e Bellatrix com a frase Tudo termina escrita abaixo.

2. Teoria da Multimodalidade, Anlise Crtica do discurso e letramento (crtico)

Alm da palavra escrita, um enorme aparato semitico tem desempenhado

importante papel constitutivo nos textos ps-modernos, principalmente nos textos

miditicos como jornais, revistas, livros, cartazes publicitrios, dentre outros.

Dionsio (2006, p. 160) chama a ateno para o fato de que nossa sociedade

est cada vez mais visual, mostrando que os textos multimodais so textos especialmente construdos que revelam as nossas relaes com a sociedade e com o que

a sociedade representa. Em virtude disso, o conceito de multimodalidade torna-se imprescindvel para analisar a inter-relao entre texto escrito, imagens e outros

elementos grficos, alm de possibilitar a compreenso dos sentidos sociais construdos

por esses textos.

Na teoria da Semitica Social organizada por van Leeuween (2005) e Kress

e van Leeuween (2001, 2006), a multimodalidade focaliza a inter-relao de diferentes

modos de significao ou modos semiticos, que incluem a lingustico, o visual, o

gestual. Um texto multimodal aquele que admite mais de um modo de representao

semitica como a oralidade, a escrita, a imagem esttica ou em movimento, o som,

dentre outros.

Segundo Kress e van Leeuwen (2006), assim como a linguagem verbal, a

visual tambm:

representa o mundo de maneira concreta e abstrata; constri relaes scio-interacionais e constituem relaes de significado a partir

de sua composio;

produz conhecimento, formas de pensar e de agir no e com o mundo; meio eficaz para o convencimento e o controle do leitor-consumidor; portadora de sentidos que direcionam comportamentos; ideologicamente construda representa um importante papel na construo de identidades, de valores, de

crenas e da prpria realidade.

Ainda segundo os autores, os gneros da escrita compem um conjunto

integrado que combinam a linguagem escrita, imagens e grficos, por isso so

multimodais. No caso de nosso objeto de estudo, os cartazes promocionais dos filmes da

srie Harry Potter, constitui-se a partir da combinao dos elementos verbais e no-

verbais.

3 Foram capturados no site , em 20 de agosto de 2011.

Desse modo, o trabalho com a Teoria da Multimodalidade (KRESS & VAN

LEEUWEN, 2006), que olha para alm da linguagem verbal e examina os vrios modos

de comunicao e construo de significados, tem ganhado cada vez mais espao nos

estudos lingusticos nas ltimas dcadas. Isto ocorre devido ao fato de que nas prticas

sociais ps-modernas tem sido bastante recorrente a utilizao de textos multimodais.

Nesse sentido, o estudo da comunicao contempornea numa abordagem Semitica

Social representa um avano ao estudo da linguagem.

Da mesma forma, quase impossvel falar sobre as prticas sociais e

discursivas sem recorrer Anlise de Crtica do Discurso (ACD), haja vista que essa

teoria metodolgica concebe a linguagem como prtica social e leva em considerao o

contexto do uso da linguagem, relaes de poder e sua conexo com a linguagem no

discurso como uma dimenso crucial (FAIRCLOUGH, 2008).

Na concepo da ACD, o discurso uma prtica ideolgica que estrutura as

relaes de poder na sociedade e por elas estruturado, mantendo ou transformando

identidades e relaes sociais. Segundo Heberle (2000, p. 291),

Em estudos de ACD h a preocupao com a desconstruo

ideolgica dos textos, com as relaes complexas entre texto,

conversa, cognio social, poder, sociedade e cultura [...].

Consideram-se aspectos scio-culturais que vo alm de estudos

tradicionais de descrio e explicao de elementos linguisticos,

mostrando como o discurso refora e ao mesmo tempo reforado

pelo status quo, pela estrutura social.

De acordo com Fairclough (2008, p. 121), [...] as prticas discursivas so investidas ideologicamente medida que incorporam significaes que contribuem para

manter ou reestruturar as relaes de poder. Admitindo que sua posio assemelha-se de Thompson (1984, 1990), a de que determinados usos da linguagem e de outras formas simblicas so ideolgicos, isto , os que servem, em circunstncias especficas para estabelecer ou manter relaes de dominao, Fairclough entende que as ideologias so significaes/construes da realidade (o mundo fsico, as relaes

sociais, as identidades sociais) que so construdas em vrias dimenses da

forma/sentidos das prticas discursivas e que contribuem para a produo, a reproduo

ou a transformao das relaes de dominao (FAIRCLOUGH, 2008, p. 117).

Dessa maneira, os eventos de letramento devem ser tratados como discurso e

consequentemente como prtica social que esto conectados com relaes de ideologia

e de poder, podendo configurar novos sentidos de mudana para as relaes das

identidades.

O termo letramento surgiu no contexto das grandes transformaes culturais, sociais, polticas, econmicas e tecnolgicas, ampliando o sentido do que

tradicionalmente se conhecia por alfabetizao (SOARES, 2006).

No Brasil, o termo letramento foi usado pela primeira vez por Mary Kato, em 1986, na obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingustica. Depois dessa

referncia, o vocbulo letramento aparece em 1988, no livro Adultos no alfabetizados:

o avesso do avesso, de Leda Verdiani Tfouni, a qual dedica boa parte da obra

definio de letramento e busca distinguir letramento de alfabetizao.

Mais recentemente, o verbete passou a figurar em ttulos de livros, por

exemplo: Os significados do letramento, organizado por ngela Kleiman (1995), e

Alfabetizao e letramento (TFOUNI, 1995).

Por ser um termo complexo, estudiosos de vrias reas (lingustica, educao,

psicolingustica, sociolingustica) buscam conceituar e entender o letramento. Surgiram,

ento, conceitos como letramento autnomo e letramento ideolgico (STREET, 1984),

letramento crtico (MCLAUGHLIN e DEVOOGD, 2004), multiletramento (COPE e

KALANTZIS, 2000).

Tradicionalmente, o conceito de letramento sempre esteve associado ao

domnio das habilidades de leitura e escrita aprendidas por indivduos na escola.

Ultimamente passou a alargar-se e concebido como um conjunto de prticas sociais.

Nesta concepo, todo indivduo que nasce e cresce numa sociedade letrada,

independentemente de saber ler, letrado latu sensu. Sobre isso, Kleiman (1995, p.

18,19) afirma:

Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de prticas

sociais que usam a escrita, como sistema simblico e como tecnologia,

em contextos especficos, para objetivos especficos [...]. As prticas

especficas da escola, que forneciam o parmetro de prtica social

segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos

eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou no-

alfabetizado, passam a ser, em funo dessa definio, apenas um tipo

de prtica de fato, dominante que desenvolve alguns tipos de habilidades mas no outros, e que determina uma forma de utilizar o

conhecimento sobre a escrita.

Nas sociedades letradas, os indivduos no alfabetizados vivenciam

diariamente eventos e prticas de letramento. Acerta disto Marcuschi (2007, p. 25)

comentou:

O letramento [...] envolve as mais diversas prticas da escrita (nas

suas variadas formas) na sociedade e pode ir desde uma apropriao

mnima da escrita, tal como o indivduo que analfabeto, mas letrado

na medida em que identifica o valor do dinheiro, identifica o nibus

que deve tomar, consegue fazer clculos complexos, sabe distinguir as

mercadorias pelas marcas etc., mas no escreve cartas nem l jornal

regularmente, at uma apropriao profunda, como no caso do

indivduo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemtica ou

escreve romances. Letrado o indivduo que participa de forma

significativa de eventos de letramento e no apenas aquele que faz um

uso formal da escrita. (destaques do autor).

Nessa viso, as prticas de leitura e escrita esto em diferentes contextos e

exercem diferentes funes. Alm da escola, h outras agncias de letramento, como a

famlia, a igreja, a rua, o lugar de trabalho, dentre outras. Desse modo, no basta apenas

dominar os conhecimentos escolares, preciso relacion-los com o mundo.

A partir da constatao de uma crescente mudana nas formas de interao

humana, influenciadas pelo desenvolvimento tecnolgico, Dionsio (2006) prope uma

reviso do conceito de letramento sugerindo o termo multiletramento para designar a

capacidade de atribuir e produzir sentidos a mensagens multimodais. Na concepo da

autora, uma pessoa letrada deve ser uma pessoa capaz de atribuir sentidos a mensagens oriundas de mltiplas fontes de linguagem (DIONSIO, 2006, p. 131).

A respeito do Letramento Visual, Gunther Kress e van Leuween (2006) fazem

as seguintes consideraes: a) As imagens visuais podem ser lidas como um texto; b) A

multiplicidade de significados dos textos multimodais deve estar pautada nos seus

contextos sociais; c) As imagens visuais, como a linguagem e todos os modos

semiticos, socialmente construda. Segundo os autores, o desprezo pelo letramento

visual na escola acaba gerando iletrados visuais.

De acordo com Kress e van Leewen (2006), a multimodalidade uma

caracterstica de todos os gneros textuais, j que congregam, no mnimo, dois modos

de representao, como imagens e palavras e palavras e tipografias. Dessa forma, o

empoderamento semitico depende da compreenso das diferentes semioses presentes

em cada gnero.

No gnero discursivo cartaz promocional de filmes, que constitui o material de

anlise para este trabalho, os elementos imagticos exercem um papel importante.

Seguindo a mesma perspectiva da Semitica Social, dentro do campo de

investigao da Anlise Crtica do Discurso busca-se prioritariamente a compreenso de

textos que incluem alm do cdigo escrito, fotografias, imagens e outras formas de

semioses como outro modo de representao da realidade que permite a construo de

significados.

No livro Discurso e mudana social, o autor britnico Norman Fairclough

(2008, p. 23) ressalta que muito apropriado estender a noo de discurso a outras formas simblicas, tais como imagens visuais e textos que so combinaes de palavras

e imagens por exemplo, na publicidade. Ao discorrer sobre a obra de Fairclough de 2003, Analysing discourse: Textual

analysis for social research (ainda sem traduo para o portugus), Ormundo (2010, p.

22, grifo nosso) enfatiza que a ACD

est tambm interessada nas escolhas dos elementos semiticos que

so apresentados nas produes e nas recepes de textos e nas suas

formas de interaes, alm de investigar o modo (estilo) como as

escolhas so combinadas nos gneros para atingir determinados

objetivos e consolidar o propsito da argumentao.

Assim, o crescente empreendimento da Anlise Crtica do Discurso busca

mostrar como os discursos aparentemente neutros podem veicular atitudes ideolgicas,

da mesma maneira como os discursos mais explicitamente editados para esse

determinado fim; e como a linguagem no-verbal usada para transmitir poder e status

na interao social contempornea.

Em suma, para a ACD imagens so cdigos providos de significados

ideolgicos, podendo, portanto, serem investigadas sob uma perspectiva crtico-social.

Meurer (2005, p. 106) incentiva a incorporao dos princpios e mtodos da

ACD ao ensino numa perspectiva crtica de letramento, sugerindo trs perguntas que

exploram de forma prtica no texto o poder constitutivo da linguagem:

Em termos de aplicao prtica de ensino, com base na ACD, os[as]

professores[as] podem envolver os[as] alunos[as] em prticas que

promovam o que Fairclough chama de conscientizao quanto

linguagem, em especial quanto ao papel constitutivo do discurso. Por

exemplo, os professores[as] podem utilizar com bons resultados trs

perguntas gerais explorando o princpio de que a linguagem tem o

poder de constituir formas de conhecimento e crenas, relaes e

identidades: (1) Como esse texto representa, em termos de

conhecimentos e crenas, a realidade especfica a que est relacionado? (2) Que tipo de relaes sociais esse texto reflete ou

estabelece? (3) Quais as identidades ou os papis sociais envolvidos

nesse texto? (MEURER, 2005, p. 105,106).

Ainda segundo Meurer (2005, p. 106), a ACD uma ferramenta que permite

aos professores encorajar seus alunos a observar que tipos de texto precedem e seguem o uso de determinado gnero especfico e como pom em ao formas de ver o mundo, identidades, relaes, maneiras de construir e distribuir textos, refletindo

ideologias e formas de poder.

3. Gramtica do Design Visual: importante ferramenta crtico-analtica para a

anlise da composio imagtica de textos

Alinhada com o campo terico-metodolgico da Lingustica Sistmico-

Funcional de Hallyday, a Gramtica do Design Visual (doravante GDV), proposta por

Gunther Kress e Theo van Leeuwen (2006), tem se apresentado como uma importante

ferramenta crtico-analtica para a anlise da composio imagtica de textos e seus

contextos de uso. Partindo da concepo de que as imagens so um modo distinto de

produzir significado e devem ser vistas como complementao da informao verbal e

no somente como uma ilustrao, o mtodo de anlise da GDV busca descrever como

os produtores de textos multimodais representam pessoas, coisas e lugares em uma

estrutura visual.

Ao discorrer sobre a Gramtica de Design Visual, Fernandes e Almeida

(2008, p. 11,12) ressaltam:

Diferentemente dos tericos tradicionais, que costumam basear-se em

aspectos lexicais das imagens, Kress e van Leeuwen (2000) trabalham uma anlise gramatical das imagens. Pautam-se nas teorias gramaticais verbais, em especial nas metafunes da Gramtica Sistmico Funcional de Halliday, que procuraram

regularidades para compreender de que forma os diferentes modos de

representao visual e de relaes entre si se tornam padres. Eles

propem uma gramtica do design visual, que hoje um dos estudos

mais importantes na descrio da estrutura que organiza a informao

visual nos textos.

Segundo Almeida (2008, p.9),

[...] o que a Gramtica Visual de Kress e van Leeuwen advoga a

conscientizao das imagens no como veculos neutros desprovidos

de seu contexto social, poltico e cultural, mas enquanto cdigos

dotados de significado potencial, imbudos de estruturas sintticas

prprias.

Corroborando essa diretriz, Fernandes e Almeida (2008, p.11) afirmam que

imagens produzem e reproduzem relaes sociais, comunicam fatos, divulgam eventos e interagem com seus leitores com uma fora semelhante de um texto formado por

palavras. Nesta mesma linha de pensamento, Cmara (2008, p.73) ressalta que

Existe na imagem uma mensagem simblica, vinculada sociedade,

histria, ideologia de quem a produz e de quem a v, o que retrata

um universo simblico, favorecendo a construo de significados,

conhecimentos e valores, cuja diversidade de temas oferece espao

para a reorganizao e construo de conceitos.

A estrutura bsica da GDV de Kress e van Leewen ([1996] 2006, 2001)

contempla a anlise de trs metafunes: a representacional, a interativa e a

composicional. Neste trabalho a anlise ficar restrita aos aspectos que dizem respeito

metafuno interativa.

3.1 As ferramentas de anlise da gramtica visual exemplificada na anlise do

corpus

Esta subseo organiza-se do seguinte modo: primeiramente apresentamos,

com exemplos, os quatro aspectos da GDV que esto relacionados interao entre

participantes, ou seja, as estratgias de aproximao/afastamento do produtor do texto

para com o leitor. Em seguida fazemos um breve comentrio.

Antes de descrevermos esses aspectos, convm ressaltarmos dois conceitos

elaborados por Kress e van Leeuwen (2006), que aqui sero teis: so os de

participantes interativos e participantes representados (doravante, respectivamente, PI e

PR), que entram em uma relao de comunicao por meio do texto e apresentam

diferentes graus de envolvimento, definidos pelas estratgias de aproximao ou

distanciamento. Os PI so aqueles que produzem e consomem o texto; os PR so as

pessoas, lugares e coisas presentes no texto.

O primeiro recurso, denominado contato, determinado pelo vetor que se

forma, ou no, entre as linhas do olho do PR (personagem humano ou personificado) e o

leitor.

O sistema de contato pode ocorrer de duas formas: atravs da demanda e da

oferta. Na primeira, o PR olha diretamente para o observador, convidando-o

interao. Nessa configurao ele o sujeito do ato de olhar. Na segunda, o PR no olha

diretamente para o observador. Nesse modelo ele deixa de ser o sujeito do ato de olhar

para se tornar objeto. O participante da imagem oferecido ao observador como

elemento de informao ou objeto de contemplao, de forma impessoal. O observador

passa a ser o sujeito deste olhar.

Os cartazes a seguir (figuras 01 e 02) exemplificam de que maneira essas

configuraes se apresentam4.

4 Figura 1: Cartaz do filme Harry Potter e a Ordem da Fnix, de 2007

Figura 2: Cartaz do filme Harry Potter e a Pedra Filosofal, de 2001

Figura 1 - Imagem de DEMANDA

Figura 2 - Imagem de OFERTA

O segundo aspecto, denominado distncia social, est vinculado

dimenso do enquadramento. a exposio do participante representado perto ou longe

do leitor. Relao imaginria de maior ou menor distncia social, que pode ser de

carter:

1) ntimo. Plano fechado (close shot) - inclui a cabea e o ombro do

participante representado;

2) Pessoal. Plano mdio (medium shot) - exposio do participante at a

cintura ou o joelho;

3) Social. Plano aberto (Long shot) - os participantes so apresentados de

forma distanciada, expondo todo o corpo.

Vejamos essas configuraes nos cartazes abaixo5:

O terceiro aspecto, denominado perspectiva ou poder, refere-se ao ngulo

em que os participantes so retratados. Ocorre por meio dos ngulos frontais, oblquos e

verticais:

1) Frontal: Grande envolvimento do leitor com a imagem. Imprime ao leitor

(espectador) uma identificao com a imagem como se ela fizesse parte de seu mundo.

Quando a imagem est no nvel do olhar, a relao de poder igualitria (FERNANDES e ALMEIDA, 2008, p. 21).

2) Oblquo: apresenta o participante em perfil provocando no leitor um

sentido de desprendimento da cena observada; Envolvimento imparcial. No fazem

parte do mundo do leitor. Transmite a ideia de distanciamento do participante

representado em relao aos leitores.

5 Figura 3: Cartaz do filme Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, de 2004

Figura 4: Cartaz do filme Harry Potter e a Cmara Secreta, de 2002

Figura 5: Cartaz do filme Harry Potter e o Clice de Fogo, de 2005

Figura 3 - distncia NTIMA

Figura 4 distncia PESSOAL

Figura 5 - distncia SOCIAL

Vejamos os exemplos6:

3) Vertical: possui seus variantes: baixo, de nvel ocular (direto) ou alto, que

assinalam distintas relaes de poder. No ngulo baixo o leitor est embaixo da

imagem. Este tipo de imagem causa uma sensao de poder ao PR, colocando o leitor

em uma posio inferior. No ngulo direto existe uma posio de igualdade entre o

leitor e o PR. No ngulo alto, em que a cmara capta o objeto de cima para baixo, o

leitor est em posio de poder (obs. nenhuma imagem com ngulo alto nos cartazes

analisados).

Vejamos os exemplos7:

O quarto aspecto, denominado modalidade, codifica o nvel de realidade que

a imagem representa. Pode ser categorizada em naturalista ou sensorial. As imagens

naturalistas normalmente possuem alta saturao de cores, cores moduladas e

diversificadas. A modalidade sensorial da imagem retratada numa configurao que

produz um impacto sensorial, ou um efeito que ultrapassa a realidade, provocando

emoes subjetivas no leitor. Quanto maior a equivalncia entre o que mostrado na

imagem e o que considerado real para o leitor, mais alta a modalidade. Os

mecanismos modalizadores das imagens so (FERNANDES e ALMEIDA, 2008): i)

utilizao da cor (saturao/diferenciao/modulao da sombra cor plena; ii)

contextualizao (sugesto de profundidade tcnicas de perspectiva da ausncia de cenrio ao cenrio mais detalhado); iii) iluminao (grande luminosidade at quase a

ausncia dela); iv) brilho (luminosidade em ponto especfico nvel mximo de brilho at os tons de cinza). Os cartazes

8 a seguir so um exemplo de como estes mecanismos

de modalizao ocorrem:

6 Figura 6: Cartaz do filme Harry Potter e as Relquias da Morte, parte 2, de 2011

Figura 7: Cartaz do filme Harry Potter e o Enigma do Prncipe, de 2009 7 Figura 8: Cartaz do filme Harry Potter e as Relquias da Morte, de 2010

Figura 9: Cartaz do filme Harry Potter e a Cmara Secreta, de 2002 8 Figura 10: Cartaz do filme Harry Potter e a Pedra Filosofal, de 2001

Figura 6 - ngulo FRONTAL

Figura 7 ngulo

OBLQUO

Figura 8 ngulo DIRETO

Figura 9 ngulo BAIXO

3.2 Analisando a modalidade visual

Neste trabalho, procurou-se analisar, com base na Gramtica do Design Visual,

quais estratgias so utilizadas pelos produtores dos cartazes promocionais dos filmes

Harry Potter para estabelecer relao com o leitor/consumidor.

Observou-se que quanto funo interativa contato, dos oito cartazes analisados houve o predomnio da demanda (seis casos): quando o vetor parte do olho

do Participante Representado, e acaba nos olhos do Participante Interativo.

Nesse caso, o intuito da representao seria a de aproximao, de colocar o

participante representado em uma posio que a mesma em que o leitor se encontra.

Na funo interativa distncia social, o plano mdio (pessoal) e o aberto (social) foram mais utilizados (trs vezes cada). O plano fechado (ntimo), no qual o

participante interativo pode capturar minuciosamente as expresses faciais,

proporcionando a descoberta da personalidade do participante representado, foi

utilizado duas vezes. Observa-se, dessa forma, um convite ao leitor a se tornar mais

ntimo desse participante.

Quanto funo interativa perspectiva ou poder, predominou a ngulo frontal (sete ocorrncias), o qual sugere o envolvimento do observador. A imagem est

no nvel do olhar do PI. Nesse caso a relao de poder representada como igualitria.

Esse ponto de vista torna o observador parte do mundo do participante representado.

No que diz respeito ao uso das cores, que inclui cores extremamente escuras,

possvel dizer que as imagens apresentam baixa modalidade naturalista. As imagens

esto descontextualizada da realidade, exigindo do observador uma percepo sensorial.

Ao ser mostrado no vazio (nenhum cenrio real), o participante representado

torna-se genrico, ou seja, um smbolo, um tipo (KRESS E VAN LEEWEN, 2006).

Essa reduo da modalidade natural (fundo neutro, sem profundidade; pouca

iluminao; utilizao de brilho em pontos especficos) confere abstrao nesse tipo de

representao, alm de uma essncia intemporal ao participante representado.

Em suma, podemos inferir que nos cartazes promocionais da srie Harry Potter

analisados, o que se pretende uma identificao entre participante interativo (leitor) e

o participante representado. Nessa representao o participante representado passa a ser

o portador de atributos que convida o observador a juntar-se a ele em seu mundo:

mundo dos bruxos. O que s vai acontecer com a compra da ideia por parte do PI e consequentemente da compra do ingresso para assistir ao filme.

CONCLUSES

Figura 11: Cartaz do filme Harry Potter e a Cmara Secreta, de 2002

Figura 12: Cartaz do filme Harry Potter e as Relquias da Morte, parte 2, de 2011

Fig. 11 Brilho luminosidade

em ponto especfico

Fig. 10 Utilizao da cor -

saturao

Fig. 12 Contextualizao

cenrio detalhado

Na cultura comunicativa visual predominante na sociedade atual, em que os

textos esto se tornando altamente multimodais, imprescindvel no s conhecer o

funcionamento do sistema de escrita (conhecimento dos signos verbais), como tambm

poder interpretar as imagens (signos imagticos), cada vez mais incorporadas aos textos

verbais.

Segundo Kress e van Leeuwen (2006, p.41) 9, a multimodalidade dos textos

escritos tem sido ignorada, de modo geral, no contexto educacional, na teoria lingustica

ou no senso comum popular. Hoje, na era da multimdia, pode repentinamente ser percebida de novo (traduo nossa).

Neste trabalho, que tratou da multimodalidade no gnero discursivo cartaz

promocional de filmes, procuramos apresentar a Gramtica de Design Visual

sistematizada por Kress e van Leeween (2006) com parmetros para descrever e analisar

os elementos visuais presentes em um texto.

Atemo-nos aqui a ilustrar os quatro aspectos da metafuno interpessoal,

relacionados interao entre os participantes representados e interativos.

No gnero cartaz de divulgao de filmes, possvel observar que a

transmisso de mensagens e a construo de sentidos acontecem principalmente com a

utilizao da imagem.

Nesse caso, propomos um roteiro de anlise considerando todas as complexas

relaes que se estabelecem entre os elementos verbais (ttulo, ficha tcnica etc) e no-

verbais (desenhos, fotos, cores, cenrio etc.) desse gnero.

Procuramos apresentar tambm a anlise de textos sob o escopo da Anlise

Crtica do Discurso, que concebe a linguagem enquanto prtica social. Segundo o

analista crtico Meurer (2005, p. 81), ao analisar textos criticamente no est[amos] interessados apenas nos textos em si, mas em questes sociais que incluem maneiras de

representar a realidade, manifestao de identidades e relaes de poder no mundo contemporneo.

Considerando todas essas questes apresentadas e, partindo do pressuposto de

que ser um leitor/escritor proficiente significa no s saber codificar/decodificar

aspectos lingusticos do texto verbal (estruturas internas) e saber lidar com todas as

caractersticas do contexto de produo e recepo dos textos, mas tambm saber

interpretar todos os modos semiticos presentes no texto, entendemos que o gnero

cartaz promocional de filmes, se bem trabalhado em sala de aula, uma excelente

oportunidade para o aluno ter contato com texto que tem grande poder de persuaso.

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