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DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver. Trad. Marcelo Jacques de Moraes et al. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012 Entrevista com Peter Brunette e David Wills. Trad. João Camillo Penna. ASSINATURA p. 33 Obviamente, o que parece à primeira vista distinguir a problemática da assinatura para as obras discursivas ou literárias é que nessas obras o que geralmente chamamos assinatura é um ato discursivo, um nome no sentido geral da palavra “assinatura”, um nome que pertence ao discurso, embora eu tenha demonstrado que na verdade o nome não pertence mais à linguagem. Ele funciona no sistema linguístico como um de seus elementos, mas como um corpo estranho. ASSINATURA - ACONTECIMENTO p. 34 […] haverá assinatura cada vez que um acontecimento ocorrer, cada vez que houver produção de uma obra cuja ocorrência não seja limitada ao que é semanticamente analisável. Isto é a sua significância: uma obra que é mais do que ela significa, que está ali, que resta ali. “A ASSINATURA NÃO EXISTE ANTES DA CONTRA-ASSINATURA” p. 35 […] a assinatura não deve ser confundida nem com o nome do autor, com o patronímico do autor, nem com o tipo de obra, pois não é nada além do acontecimento da obra em si, na medida em que ela atesta de uma certa maneira – aqui eu retorno ao que estava dizendo sobre o corpo do autor – o fato de que alguém fez isso, e é isso que resta. O autor está morto – não sabemos nem mesmo quem ele ou ela é – mas isso resta. No entanto, e aqui está envolvido todo o problema político-institucional, ela não pode ser contra-assinada ou seja, atestada como uma assinatura, salvo se houver um espaço institucional no qual ela pode ser recebida, legitimada, e assim por diante. É preciso haver uma “comunidade” social que diga que essa coisa foi feita – não sabemos nem mesmo por quem, não sabemos o que significa – no entanto, podemos -la em um museu ou em um arquivo; vamos considerá -la como uma obra de arte. Sem contra-assinatura política e social ela não seria uma obra de arte; não haveria assinatura. Na minha opinião, a assinatura não existe antes da contra - assinatura, que se fia na sociedade, nas convenções, nas instituições, nos processos de legitimação. Assim, não há obra assinada antes da contra-assinatura. Isso vale até mesmo para as obras-primas mais extraordinárias, Michelangelo, por exemplo. Se não há contra-assinatura, a assinatura não existe. Isso quer dizer que a contra -assinatura precede a assinatura. A assinatura não existe antes da contra-assinatura. PRIVADO – PÚBLICO p. 37 […] a temporalidade da assinatura é sempre esse futuro perfeito que naturalmente politiza a obra, que a entrega a uma outra pessoa, isto é, à sociedade, a uma instituição, à possibilidade da assinatura. E acho que é necessário aqui dizer “política” e “instituição” e não apenas “outrem”, porque se há apenas um, se há hipoteticamente apenas um contra - assinante, não há assinatura. E com isso passamos do privado ao público. […] não há obra de arte particular, e o que acabamos de analisar em termos de assinatura deve ocorrer em um público, e portanto em um espaço político. Mas talvez seja verdade que esse conceito de “publicidade” não pertence mais a uma oposição rigorosa entre público e privado. A OBRA DE ARTE – BELEZA – INACESSÍVEL p. 44-45 a experiência da beleza, se ela existe, e inseparável das relações com o outro e do desejo por ele, na medida em que ela trabalha através da voz, através de alguma coisa como um diferencial tonal – sendo mais específico, através da voz como algo que intensifica tanto mais o desejo porque o separa do corpo. Há um efeito de interrupção, de suspensão. Pode -se fazer amor com uma voz mas sem fazer amor. A voz separa. E assim trata-se do que quer que seja na voz que provoca o desejo; é uma vibração diferencial que ao mesmo tempo interrompe, atrapalha, previne o acesso, mantém uma distância. Para mim, isto é a beleza. Falamos de beleza diante de alguma coisa que é, ao mesmo tempo, desejável e inacessível, alguma coisa que me fala, que me chama, mas ao mesmo tempo me diz que é inacessível. Então posso dizer que ela é bela, que ela existe além, que ela tem um efeito de transcendência, é inacessível. Assim, não posso consumi -la – ela não é consumível; é uma obra de arte. Esta é a definição de uma obra de arte, que ela não é consumível. A beleza é alguma coisa que acorda/desperta o meu desejo ao dizer “você não me consumirá”. É um alegre trabalho de luto, embora não seja nem trabalho nem luto. Por outro lado, se posso consumi-la, digo que não é bela. É por isso que eu teria mais dificuldade em dizer que um quadro ou uma peça de arquitetura é belo. Poderia dizer que é, mas não seria capturado por ela, não ficaria comovido pelo mesmo sentimento de beleza. Entretanto, posso ficar comovido, no caso de um discurso finito, quando há seres que falam, ou mesmo, no caso de textos, um poema, por exemplo, quando há efeitos de uma voz que chama e se dá

DERRIDA 2012 - Pensar Em Não Ver - fichamento

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Fichamento parcial de "Pensar em não ver", de Jacques Derrida (2012)

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  • DERRIDA, Jacques. Pensar em no ver. Trad. Marcelo Jacques de Moraes et al. Florianpolis: Editora da UFSC, 2012

    Entrevista com Peter Brunette e David Wills. Trad. Joo Camillo Penna.

    ASSINATURA p. 33 Obviamente, o que parece primeira vista distinguir a problemtica da assinatura para as obras discursivas ou literrias que nessas obras o que geralmente chamamos assinatura um ato discursivo, um nome no sentido geral da palavra assinatura, um nome que pertence ao discurso, embora eu tenha demonstrado que na verdade o nome no pertence mais linguagem. Ele funciona no sistema lingustico como um de seus elementos, mas como um corpo estranho.

    ASSINATURA - ACONTECIMENTO p. 34 [] haver assinatura cada vez que um acontecimento ocorrer, cada vez que houver produo de uma obra cuja ocorrncia no seja limitada ao que semanticamente analisvel. Isto a sua significncia: uma obra que mais do que ela significa, que est ali, que resta ali.

    A ASSINATURA NO EXISTE ANTES DA CONTRA-ASSINATURA p. 35 [] a assinatura no deve ser confundida nem com o nome do autor, com o patronmico do autor, nem com o tipo de obra, pois no nada alm do acontecimento da obra em si, na medida em que ela atesta de uma certa maneira aqui eu retorno ao que estava dizendo sobre o corpo do autor o fato de que algum fez isso, e isso que resta. O autor est morto no sabemos nem mesmo quem ele ou ela mas isso resta. No entanto, e aqui est envolvido todo o problema poltico-institucional, ela no pode ser contra-assinada ou seja, atestada como uma assinatura, salvo se houver um espao institucional no qual ela pode ser recebida, legitimada, e assim por diante. preciso haver uma comunidade social que diga que essa coisa foi feita no sabemos nem mesmo por quem, no sabemos o que significa no entanto, podemos p-la em um museu ou em um arquivo; vamos consider-la como uma obra de arte. Sem contra-assinatura poltica e social ela no seria uma obra de arte; no haveria assinatura. Na minha opinio, a assinatura no existe antes da contra-assinatura, que se fia na sociedade, nas convenes, nas instituies, nos processos de legitimao. Assim, no h obra assinada antes da contra-assinatura. Isso vale at mesmo para as obras-primas mais extraordinrias, Michelangelo, por exemplo. Se no h contra-assinatura, a assinatura no existe. Isso quer dizer que a contra-assinatura precede a assinatura. A assinatura no existe antes da contra-assinatura.

    PRIVADO PBLICO p. 37 [] a temporalidade da assinatura sempre esse futuro perfeito que naturalmente politiza a obra, que a entrega a uma outra pessoa, isto , sociedade, a uma instituio, possibilidade da assinatura. E acho que necessrio aqui dizer poltica e instituio e no apenas outrem, porque se h apenas um, se h hipoteticamente apenas um contra-assinante, no h assinatura. E com isso passamos do privado ao pblico. [] no h obra de arte particular, e o que acabamos de analisar em termos de assinatura deve ocorrer em um pblico, e portanto em um espao poltico. Mas talvez seja verdade que esse conceito de publicidade no pertence mais a uma oposio rigorosa entre pblico e privado.

    A OBRA DE ARTE BELEZA INACESSVEL p. 44-45 a experincia da beleza, se ela existe, e inseparvel das relaes com o outro e do desejo por ele, na medida em que ela trabalha atravs da voz, atravs de alguma coisa como um diferencial tonal sendo mais especfico, atravs da voz como algo que intensifica tanto mais o desejo porque o separa do corpo. H um efeito de interrupo, de suspenso. Pode-se fazer amor com uma voz mas sem fazer amor. A voz separa. E assim trata-se do que quer que seja na voz que provoca o desejo; uma vibrao diferencial que ao mesmo tempo interrompe, atrapalha, previne o acesso, mantm uma distncia. Para mim, isto a beleza. Falamos de beleza diante de alguma coisa que , ao mesmo tempo, desejvel e inacessvel, alguma coisa que me fala, que me chama, mas ao mesmo tempo me diz que inacessvel. Ento posso dizer que ela bela, que ela existe alm, que ela tem um efeito de transcendncia, inacessvel. Assim, no posso consumi-la ela no consumvel; uma obra de arte. Esta a definio de uma obra de arte, que ela no consumvel. A beleza alguma coisa que acorda/desperta o meu desejo ao dizer voc no me consumir. um alegre trabalho de luto, embora no seja nem trabalho nem luto. Por outro lado, se posso consumi-la, digo que no bela. por isso que eu teria mais dificuldade em dizer que um quadro ou uma pea de arquitetura belo. Poderia dizer que , mas no seria capturado por ela, no ficaria comovido pelo mesmo sentimento de beleza. Entretanto, posso ficar comovido, no caso de um discurso finito, quando h seres que falam, ou mesmo, no caso de textos, um poema, por exemplo, quando h efeitos de uma voz que chama e se d

  • ao se recusar. Tudo o que se pode dizer que a coisa bela, e que voc no responsvel por isso. S pode acontecer com voc como o caso com a assinatura que discutimos antes e ao mesmo tempo voc no tem nada a fazer com isso. Nesse momento voc est morto; a obra no precisa de voc. H uma voz que diz que isso s pode se passar com voc, mas no precisa de voc. Isto a beleza; triste, o luto. 1

    O CHAMADO NO CONHECIDO O ACONTECIMENTO p. 52

    O que esse chamado? No sei. Se soubesse, nada jamais aconteceria. O fato que, para aquilo que convenientemente chamamos desconstruo se pr em movimento, esse chamado necessrio. Ele diz vem, mas vir aonde, eu no sei. Isso no quer simplesmente dizer que eu seja ignorante; o chamado heterogneo ao conhecimento. Para que esse chamado exista, a ordem do conhecimento precisa ser fendida. Se podemos identificar, objetificar, reconhecer o lugar, a partir desse momento no h chamado. Para que haja chamado, e para que a beleza de que falamos exista, as ordens de determinao e de conhecimento precisam ser excedidas. em relao ao no conhecimento que o chamado feito. Portanto, eu no tenho uma resposta. No posso dizer-lhe: isto. Eu de fato no sei, mas esse no sei no resulta s de uma ignorncia, de ceticismo, niilismo ou obscurantismo. Esse no conhecimento a condio necessria para alguma coisa acontecer, para que a responsabilidade seja assumida, para que uma deciso seja tomada, para que um acontecimento ocorra.

    PENSAR EM NO VER

    Conferncia pronunciada por JD em Orta, Itlia, 1 jul. 2002

    ACONTECIMENTO p. 70

    Um acontecimento o que vem; a vinda do outro como acontecimento s um acontecimento digno desse nome, isto , um acontecimento disruptivo, inaugural, singular, na medida em que precisamente no o vemos vir. Um acontecimento que antecipamos, que vemos vir, que pr-vemos, no um acontecimento: em todo caso, um acontecimento cuja acontecimentalidade neutralizada, precisamente, amortecida, detida pela antecipao.

    O ACONTECIMENTO E O OUTRO p. 71 No devemos v-lo vir, e, portanto, o acontecimento no tem horizonte; s h acontecimento ali onde no h horizonte. [] O fato de que um acontecimento digno desse nome venha do outro, de trs ou de cima, pode abrir os espaos da teologia (o Altssimo, a Revelao que nos vem do alto), mas tambm do inconsciente (isso vem de trs, de baixo, ou simplesmente do outro). O outro algum que me surpreende por trs, por baixo ou pelo lado, mas assim que o vejo vir, a supresa amortecida. A menos que, no que vem minha frente, olha-me, haja todos os recursos do muito alto, do muito baixo, do debaixo, etc.

    PENSAR E O ACONTECIMENTO p. 75

    Como pensar a experincia do que (de quem) vem, do acontecimento, de um acontecimento que cai em cima, que cai em cima de ns sem prevenir e sem que o vejamos vir?

    O RASTRO CONTRA O PRESENTE / A PRESENA A EXPERINCIA DO RASTRO p. 79 Diante dessa situao histrica, historial, desse extraordinrio mas incontestvel privilgio do presente vivo, da palavra falada, da proximidade da vida etc., eu havia tentado, de minha parte [] colocar esse privilgio em questo e propor um

    1 Aqui, Derrida aproxima a definio de beleza enquanto distncia de forma bastante anloga da definio de aura, por W.

    Benjamin: aconselhvel ilustrar o conceito de aura, acima proposto para objetos histricos, com o conceito de aura para objetos naturais. Definimos esta ltima como manifestao nica de uma lonjura, por mais prxima que esteja. (1955, p. 5). Adiante, em nota, diz: A definio de aura como 'a manifestao nica de uma lonjura, por mais prxima que esteja' mais no representa do que a formulao do valor de culto da obra de arte, em categorias da percepo espacial e temporal. Lonjura o oposto de proximidade. A lonjura essencial a inacessvel. De fato, a inacessibilidade uma qualidade primordial da imagem de culto. Pela sua prpria natureza, mantm-se 'longe, por mais prxima que esteja'. A proximidade propiciada pela sua matria no afeta a lonjura que mantm depois da sua manifestao. (idem, p. 6, nota 7).

  • conceito de rastro [trace] ou de texto que no fosse delimitvel como escrita alfabtica, como escrita sobre a pgina, como escrita em um livro. O rastro a prpria experincia, em toda parte onde nada nela se resume ao presente vivo e onde cada presente vivo estruturado como presente por meio da remisso ao outro ou outra coisa, como rastro de alguma coisa outra, como remisso-a. Desse ponto de vista, no h limite, tudo rastro. So propostas que alguns consideraram um pouco provocantes. Eu disse que tudo rastro, que o mundo era rastro, que este gesto rastro, que a voz uma escrita, que a voz um sistema de rastros, que no h fora-do-texto, e que no h nada que bordeje de algum modo, do exterior, essa experincia do rastro

    EXPERINCIA

    1 A experincia o que nos relaciona apresentao do presente: algo se apresenta, temos a experincia disso. (p. 79) 2 Erfahrung a viagem ou a travessia, o que quer dizer experimentar rumo a, atravs da ou desde a vinda do outro na sua heterogeneidade mais imprevisvel; trata-se da viagem no programvel, da viagem cuja cartografia no desenhvel, de uma viagem sem design, de uma viagem sem desgnio, sem meta e sem horizonte. (p. 80)

    A VIAGEM E O TURISMO p. 80 Uma viagem que no fosse ameaadora, uma viagem que no fosse uma viagem em vista do impossvel, em vista do que no est em vista, seria ainda uma viagem? Ou apenas turismo?

    A EXPERINCIA E O OUTRO p. 80 Quando se est em relao com outro, quer se trate de um quem ou de um qu, quando se est em relao com outro cuja prpria prova consiste em fazer a experincia do fato de que o outro no aproprivel, h a experincia: no posso assimilar o outro a mim, no posso fazer do outro parte de mim mesmo, no posso capturar, tomar, apreender, no h antecipao. O outro o inantecipvel. Estamos lidando com outro conceito de experincia, diferente daquele que permanece dominado pelo ente enquanto ente (ente quer dizer presente).

    SUJEITO OBJETO p. 81 [] o que chamamos de sujeito uma substncia presente que permanece como o suporte de seus predicados ou de seus acidentes; a esse respeito, no h diferena essencial entre sujeito e objeto

    RASTRO E ARQUIVO, IMAGEM E ARTE. DILOGO.

    Dilogo ocorrido no Colgio Icnico, no Instituto Nacional do Audiovisual, Paris, 2002

    SOBRE O PRIVADO E O PBLICO p. 106 [] de onde vem a distino entre pblico e privado, qual e a sua histria, qual a sua legitimidade, como se atravessa essa fronteira?

    [] Creio que essa distino entre o privado e o pblico uma distino que tem uma histria, uma histria relativamente recente.

    HOSPITALIDADE SEGREDO - PERDO p. 107 A hospitalidade absoluta, incondicional, no pblica, ela no pode ser pblica. Ela secreta. Isso no quer dizer que ela seja privada, mas ela secreta. a mesma coisa para o perdo, que no nem a anistia, nem a prescrio, nem a desculpa. O perdo puro e incondicional no pode ser uma coisa pblica, ele deve permanecer secreto.

    PUBLICADO / PBLICO p. 107

  • [] o filme [D'ailleurs, Derrida, de Safaa Fathy. Frana, 1999] pblico, como todo escrito publicado pblico. Mas o que acontece quando se publica, com o estatuto mximo da publicidade que hoje o da televiso ou o do cinema, quando se publica algo que nos diz: isto privado, isto absolutamente privado, isto secreto, quando, em suma, nos mostram uma porta que se fecha sobre um segredo que deve ser guardado, j que no filme h tambm um motivo poltico que consiste em acusar o poltico, no apenas o totalitarismo, mas o poltico em geral, de ser uma violncia contra o segredo e, portanto, contra o privado?

    Como se pode mostrar um segredo, fenomeniz-lo sem faz-lo perder sua separao de segredo? Pois o segredo quer dizer isso, a separao. [] Ser possvel exibir um segredo como secreto? (p. 108)

    NO-REAPROPRIABILIDADE ASSINATURA O OUTRO p. 109

    O que absolutamente singular para cada um de ns, o que absolutamente idiomtico, a assinatura, digamos, paradoxalmente aquilo de que no posso me reapropriar. Isso me absolutamente prprio, mas no posso me reapropriar dele, esse o paradoxo, o que um filme nos d a pensar. O filme me diz: Voc no pode se reapropriar daquela coisa. O idioma, o seu idioma absoluto, o que voc , o que voc pensa, o que voc diz desde a primeira circunciso, tudo isso que o seu idioma, que o seu prprio absoluto, bem, trata-se de um prprio que s aparece para o outro e que portanto, no reaproprivel, voc no pode se reapropriar do seu prprio, o seu prprio pertence ao outro. [] o mais prprio no se deixa reapropriar.

    PALAVRA IMAGEM p. 114 [] as prprias palavras, em seu carter intraduzvel, precisamente por que eram intraduzveis, deviam funcionar, se podemos dizer, como imagens. Eles iriam ouvir palavras, quer as entendessem ou no. [] E quando no se entende tudo de uma linguagem, o que acontece o tempo todo, mesmo quando se muito inteligente e muito culto, nunca se entende tudo, isso quer dizer que a palavra funciona como uma imagem. Ela conserva sua reserva discursiva, sua reserva de pensamento, sua reserva terica, filosfica, tudo o que os senhores quiserem, mas ela est ali em primeiro lugar como uma imagem, e isso que faz obra.

    DA SINGULARIDADE [APAGADA] DO DESTINATRIO p. 118 certo que estamos sempre construindo o outro, e s vezes para o bem dele, s vezes no.

    O EU E A ILUSO DA ESSENCIALIZAO p. 119 [] no podemos viver sem a iluso da essencializao do eu ou do si. claro, at mesmo um pouco o que eu dizia: apegamo-nos a isso, buscamos a identidade, precisamos dela. Mas entre no poder viver sem a iluso da essencializao do eu e dizer h um eu essencial, h uma diferena considervel. Assim que digo iluso da essencializao do eu, reconheo, como o personagem que diz no filme, que eu no foi encontrado em parte alguma, no h eu. porque no h eu dado, seguro, estvel, constitudo que h essencializao, que um movimento. A essencializao, a palavra bem escolhida, um movimento para tornar essencial algo que no o . [] o eu sempre o tema de uma tentativa de essencializao, vital sem dvida, mas que uma tentativa de essencializao ali onde no h essncia do eu. Ento, claro, uma vez que eu disse isso, isso quer dizer que eu no dado. Para empregar ainda sua expresso, que no a minha, h uma busca insacivel, interminvel [inessencial, o termo usado por Patrick Charaudeau, que o corrige] de uma identidade do eu.

    p. 120 Quando se diz que no h eu, que preciso tentar essencializar, porque se tenta totaliz-lo, isso que no possvel. No h totalidade, h um esforo para totalizar, um esforo interminvel para totalizar um eu que nunca totalizvel. []

    RASTRO p. 120 Isso parte [parte substantivo, uma parte; parte adjetivao, de parcial; parte da ao verbal, de partir, espedaar; e parte do verbo partir, sair de] de mim, quer dizer, isso procede de mim e, procedendo de mim, isso se separa de mim. por isso que deixa um rastro. Quanto a mim, posso morrer a cada instante, o rastro fica a. O corte est a. uma parte de mim que cortada de mim e que, portanto, parte de mim nos dois sentidos do termo: ela procede, ela emana de mim, mas ao mesmo tempo separando-se, cortando-se, desligando-se de mim. E, portanto, essa parte de mim, eu a ganho, eu a reencontro narcisicamente, mas perco-a ao mesmo tempo.

    RASTRO E ARQUIVO

  • p. 120-121 O rastro, a definio de sua estrutura, algo que parte de uma origem mas que logo se separa da origem e resta como rastro na medida em que se separou do rastreamento, da origem rastreadora. a que h rastro e que h comeo de arquivos. Nem todo rastro um arquivo, mas no h arquivo sem rastro.

    RASTRO E RESTO p. 121 O rastro resta, mas isso no quer dizer que ele , substancialmente, ou que ele essencial, mas a questo da restncia que me interessa, a restncia do rastro para alm de toda ontologia.

    O RESTO NO UM OBJETO p. 121 [] nem todo resto tem a forma de um objeto. Primeiramente, o objeto uma determinao do ser, h ser como objeto, ser como sujeito, e a objetalizao uma das formas do resto, objeto como algo que est ao mesmo tempo diante de mim, jogado diante de mim, substancialmente, etc. Mas nem todo ser, nem todo ente um objeto, e nem todo rastro objetivante ou objetalizante.

    p. 122 Agora, pode-se fazer com que objeto diga vrias coisas. Pode-se dizer, se se quiser, uma questo de terminologia, que os rastros so tipos de objetos. Quanto a mim, eu diria antes o contrrio, que os objetos so tipos de rastros.

    MARCA E IMPRESSO // SEPARAO p. 124 O primeiro corte entre a marca, o instante singular da presena supostamente singular da impresso, e, quase colada impresso, a marca deixada que, no entanto, j no mais a impresso. O primeiro corte est a, e todos os outros se seguem dele.

    AUTOIMUNIDADE AUTODESTRUIO: OS PERIGOS DA IDENTIDADE p. 125 Escrevi muito sobre o autoimunitrio, esse movimento que faz com que simultaneamente nos exponhamos ao perigo nos protegendo do perigo e destruamos nossas prprias protees. Por um lado, destroem-se as prprias protees, mas ao mesmo tempo constroem-se outras. [] Ao expor-me ao perigo, protejo-me, e ao me proteger, destruo minhas protees. uma lei, a meu ver, irredutvel, invencvel e insupervel, e isso vale tanto para os livros quanto para os filmes, e para a vida, para a existncia em geral. []

    p. 126 [] quando o eu ameaado, no bom, ele est em perigo, mas se eu gegasse a um eu estvel e slido, a um eu essencial, a uma identidade tranquilizadora, seria a morte. Ou o delrio. Portanto, naturalmente, protejo-me contra o desmembramento projetando um eu, mas projetando indefinidamente, porque sei que se um dia eu chegar a ele, ser o fim. Nada mais mortal do que a identidade ou do que o eu. O movimento ainda aqui de tipo autoimunitrio, com uma proteo de si que difcil distinguir da destruio de si.

    O SEGREDO E O POLTICO ARQUIVO p. 127-128 Segredo quer dizer corte, se cernere, quer dizer separar. Ento no sou um partidrio do corte ou do segredo como separao. [] verdade que nunca a questo do segredo cruzou tanto hoje a questo poltica. Ela sempre cruzou, mas cruza-a hoje de maneira bastante singular. E de modo algum sob as formas da violao do segredo pela cidadania, pelo totalitarismo etc., mas da violao do segredo pela tcnica, pela informtica, por tudo o que, nas sociedades mais democrticas, pe em perigo o segredo, no sob as formas policiais ou torturadoras habituais, mas sob formas suaves e tcnicas. um dos desafios polticos de hoje e creio que, naturalmente, todos aqueles que tm a responsabilidade do arquivamento [...] fazem a experincia da coisa. Onde deve-se deter o arquivo pblico? Onde devem-se deter a coleta, a organizao e a disponibilidade pblica do arquivo? [] A questo do segredo no apenas uma questo de segredo profissional. Entre o segredo profissional do mdico e do advogado, o segredo clssico, e o segredo profissional do psicanalista, h um abismo, um outro segredo. Onde se vai parar o arquivamento? um problema poltico, o problema de saber em que vo se transformar as instituies psicanalticas numa democracia, um problema poltico maior e ainda uma questo de segredo, de corte, de arquivamento, de contas a prestar, de responsabilidade cvica.

    [NOVAMENTE] RASTRO E ARQUIVO RASTRO p. 129-130 Para mim, h rastro assim que h experincia, isto , remisso a outro, diffrance, remisso a outra coisa etc. Portanto,

  • onde quer que haja experincia, h rastro, e no h experincia sem rastro. Portanto, tudo rastro, no apenas o que escrevo no papel ou registro numa mquina, mas quando fao isto, tal gesto, h rastro. H vestgio, reteno, protenso e, portanto, relao com algo outro, com o outro, ou com outro momento, outro lugar, remisso ao outro, h rastro. O conceito de rastro, digo-o com poucas palavras porque isso exigiria longos desenvolvimentos, no tem limite, ele coextensivo expereincia do vivo em geral. No apenas do vivo humano como do ser vivo em geral. Os animais rastreiam, todo ser vivo rastreia.

    ARQUIVO p. 130 Sobre esse fundo geral e sem limite, o que chamamos de arquivo, se a palavra deve ter um sentido delimitvel, estrito, supe naturalmente rastro, no h arquivo sem rastro, mas nem todo rastro um arquivo na medida em que o arquivo supe no apenas um rastro, mas que o rastro seja apropriado, controlado, organizado, politicamente sob controle. No h arquivo sem um poder de capitalizao ou de monoplio, de quase monoplio, de reunio de rastros estatutrios, reconhecidos como rastros. Dizendo de outra maneira, no h arquivos sem poder poltico.

    ARQUIVO GESTO DE PODER DESTRUIO VIOLNCIA p. 130 um gesto de poder. Foi isso o que tentei recordar no incio de Mal de arquivo ao me referir ao arkheon na Grcia[...]. Eu diria que, ainda hoje, o caso. A gesto, a constituio de um arquivo no tem forosamente o rosto da violncia totalitria, da censura, mas mesmo em pases ditos democrticos, evidentemente, logo que h uma instituio, h pessoas que so apontadas e que tm reconhecida competncia para controlar o arquivo, isto , para escolher o que se guarda e o que no se guarda, aquilo a que se d acesso, a quem d acesso, quando e como etc. No h arquivo sem essa organizao quase estatal, em todo caso legtima e poltica, do material assim iformado, isso , ao qual se d forma, justamente por meio da interpretao e da classificao, da hierarquizao, da seleo. No h arquivos sem destruio: escolhe-se, no se pode guardar tudo. Ali onde se guardasse tudo, no haveria arquivos. O arquivo comea pela seleo, e essa seleo uma violncia. No h arquivo sem violncia.

    A VIOLNCIA DO ARQUIVO E O INCONSCIENTE p. 130-131 Essa violncia no simplesmente poltica no sentido em que ela esperaria que houvesse um Estado designando funcionrios com competncia reconhecida. No, esse arquivamento j ocorre no inconsciente. Em uma nica pessoa, h aquilo que a memria, aquilo que a economia da memria guarda ou no guarda, destri ou no destri, recalca de uma maneira ou de outra.

    A FINITUDE DO RASTRO O MAL DE ARQUIVO p. 131-132 O rastro finito. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que um rastro sempre pode ser apagado. Afirmo em Da gramatologia [trad. Brasileira: 2011, p. 79 e ss] que um rastro que no se apagasse, que pudesse nunca se apagar no seria um rastro. Ento um trao pode ser apagado. Isso pertence sua estrutura. Isso pode se perder. Alis, por isso que se quer guard-los, porque eles podem se perder. prprio do trao poder ser apagado, perdido, esquecido, destrudo. a sua finitude. E porque prprio do trao ser finito que h arquivo, isto , que se fazem esforos para selecionar, para guardar, para destruir tais arquivos ou deixar morrerem tais rastros, para deixar desaparecerem tais rastros e guardar tais outros, porque sabemos que os rastros so finitos. E um arquivo sempre finito, sempre destrutvel []. Quaisquer que sejam os progressos que se possam fazer quanto estocagem e conservao de arquivos, sabemos que prprio de todo arquivo poder ser destrudo. No h arquivos indestrutveis, isso no existe, isso no pode existir. Portanto, o arquivamento um trabalho feito para organizar a sobrevivncia relativa, pelo maior tempo possvel, em condies polticas ou jurdicas dadas, de certos rastros deliberadamente escolhidos. H sempre deliberao, h sempre avaliao. Dizendo de outra maneira, os arquivistas mais bem intencionados, os mais liberais e os mais generosos avaliam o que merece ser guardado. Quer se enganem ou no, pouco importa, eles sempre avaliam. essa avaliao dos rastros com autoridade e competncia, com uma autoridade e uma competncia supostas, que distingue o arquivo do rastro.

    ARQUIVO TRABALHO DE ARQUIVO PULSO DE ARQUIVO p. 132 A pulso de arquivo um momento irresistvel no apenas para guardar os rastros, mas tambm para dominar os rastros, para interpret-los. [] A pulso de arquivo uma pulso irresitvel para interpretar os rastros, para dar-lhes sentido e para preferir este rastro quele outro. Portanto, preferir esquecer apenas no preferir guardar. O arquivo, como digo em algum lugar, no uma questo de passado, uma questo de futuro.

    A PULSO DE ARQUIVO UMA PULSO TERRIVEL p. 133

    O ofcio de arquivista um ofcio terrvel. A pulso de arquivo uma pulso terrvel. uma pulso destrutiva,

  • contrariamente imagem conservadora que temos dela. Os arquivistas so conservadores obstinados que pretendem saber o que preciso destruir e que, em geral, so bastante hbeis nisso. E jamais se saber, por definio, o que estavam certos em destruir, porque destroem to bem que aquilo no deixa rastro! Mas sabe-se o que eles tero destrudo, que tero destrudo Deus sabe o qu.

    A PULSO DE ARQUIVO E AS OBRAS DE ARTE [e sua conservao ou no] p. 133 Essa filtragem do arquivo uma coisa aterrorizante porque ela no diz respeito apenas aos documentos pblicos, aos arquivos da televiso, do rdio ou aos documentos oficiais, ela diz respeito, por exemplo s obras de arte. H obras que sobrevivem, outras que no sobrevivem. H obras que vo para museus, h aquelas que so esquecidas, que se destroem. H obras literrias sem gnio e que permanecem, e suspeita-se que pode ter havido obras literrias, artsticas, pictricas, cinematogrficas talvez geniais das quais no se guardou o arquivo, cujo arquivo, por uma razo ou por outra, no foi realizado ou foi at mesmo destrudo.

    O MAL QUE NO UM MAL p. 134 um mal, mas ao mesmo tempo no forosamente um mal, pois, sem essa seletividade, no restaria absolutamente nada. Para que certas obras-primas sobrevivam, foi preciso matar sabe Deus quantas outras obras. Ento, esse arquivamento coletivo, que sempre ao mesmo tempo benfico e monstruoso, as duas coisas de uma vez, uma chance e uma ameaa, isso no vale apenas nas instituies sociais e polticas, isso vale no inconsciente, o que acontece no inconsciente, o que acontece em ns. Guardamos montes de coisas, selecionamos e destrumos. Para guardar, justamente destrumos, deixamos muitas coisas se destrurem, a condio de uma psique acabada, que marcha para a vida e para a morte, que marcha matando tanto quanto assegurando a vida. Para assegurar a sobrevincia, preciso matar. isso o arquivo, o mal de arquivo.

    TODO TEXTO UMA CARTA DE AMOR p. 141-142 Creio, de fato, como ele [Jean-Luc Godard, no curta Changer d'images, de 1982, em que diz, segundo Marie-Jos Mondzain (p. 140-141), Todo texto um envio, um endereamento, todo texto uma carta, uma carta mulher amada. Quando Marx e Engels escrevem O capital, um texto mulher amada., e assim por diante], que todo texto , de certa maneira, uma carta de amor []. Agora, que toda carta seja uma demanda de amor ou uma declarao de amor, um envio amoroso, traio h por conta desse envio amoroso, traio possvel h sempre, interminavelmente, como possvel interminvel; traio h porque o destinatrio ou a destinatria dessa carta no apenas no absolutamente determinvel previamente, e assim que h rastro ela pode cair nas mos de qualquer um, mas tambm porque implico, quando escrevo, que essa carta vai constituir ou instituir o destinatrio. S ser destinatrio ou destinatria do meu gesto de amor, da minha oferta ou da minha demanda de amor, s ser o destinatrio ou a destinatria desse amor aquele ou aquela que recebe essa carta, que compreender essa carta, e que, portanto, ainda no existe, de uma certa maneira. Escrevo no apenas porque escrevo para algum que conheo ou que supem que conheo, mas tento instituir, pela inscrio de um rastro novo, que deve ser um acontecimento, o destinatrio ou a destinatria, dizendo de outro modo, o outro. Pode ser algum que conheo, mas esse algum que conheo s ser o destinatrio ou a destinatria dessa carta ao receb-la, ao aceit-la, ao subscrev-la de algum modo. Logo, isso quer dizer que, no momento em que a escrevo, o outro no existe, de uma certa maneira, ainda no. E a, h traio porque como se eu dissesse: isso, eu coloco uma condio para que a minha demanda de amor, a minha oferta de amor chegue ao outro, a de que o outro possa receber, ler, decifrar e, portanto, subscrever esse envio. E isso uma violncia, o que no pode no ser sentido como uma violncia. E por essa violncia que peo perdo, a que h sempre uma possvel traio.