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Esse desabafo, transformado em palavras escritas, será surpresa mesmo aos meus colegas de gestão do DAFE, com exceção de três ou quatro com quem o compartilhei antes. Mas como todo desabafo demanda um ouvinte, achei que vocês, neste momento de coletivo, seriam os ouvidos amigos ideais. Deparei-me esses dias com a seguinte reflexão: por que é tão cansativo compor a gestão do Diretório? Sim, é uma função cansativa, desgastante, que mexe profundamente com o meu emocional. Sinto-me desgastado, por muitas vezes, e mesmo tendo recém retornado, relembro vivamente os motivos que ao final do semestre de 2013 me faziam suspirar profundamente e buscar forças não sei de onde para conciliar estudos, trabalhos, vida pessoal, projetos sociais e Diretório. Fui profundamente marcado pelo debate politico e legislar das questões da educação brasileira e nessa discussão buscamos entender como somos “libertados” e ao mesmo tempo sabotados pelo sistema. Começamos a vislumbrar alguns oponentes da nossa luta de educadoras e educadores. Pela primeira vez, durante esta semana, dei inicio a uma leitura de Freire. Não havia cruzado com textos seus anteriormente, por mais que fosse citado, não recebi indicações de literatura e acabei por não me interessar. O título, entretanto, “Pedagogia da Autonomia”, em razão do momento que aqui vivenciamos desde o ano passado, chamou-me atenção e folhei o exemplar que tenho em casa. Ainda não sei ao certo se foi Freire que se derramou em mim ou eu quem me derramei nele, em confissão chorosa. Nesse momento, as folhas desta obra de poucas páginas surgiram como um oásis de alivio ideológico: eu não estou louco, não é descabida minha angústia! Encontrei nas primeiras palavras do escrito: “O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética. [...] Formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusa-lo do que não fez, são obrigações a cujo cumprimento devemos humilde, mas perseverantemente nos dedicar.” Pouco mais adiante, no item 1.6 do primeiro capítulo encontrei: O professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do ’faça o que eu mando e não o que eu faço’. Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo. Que podem pensar alunos sérios de um professor que, há dois semestres, falava com quase ardor sobre a necessidade da luta pela autonomia das classes populares e hoje, dizendo que não mudou, faz o discurso pragmático contra os sonhos e pratica a transferência de saber do professor para o aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda ontem, defendia a formação da classe trabalhadora e que, pragmática hoje, se satisfaz, curvada ao fatalismo neoliberal, com o puro treinamento do operário, insistindo, porém, que é progressista? Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê- lo. Não é possível ao professor pensar que pensa certo, mas ao mesmo tempo perguntar ao aluno se ‘sabe com quem está falando’. O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente a segurança na argumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem por que, contra ele ou contra ela, nutrir uma raiva desmedida, bem maior, às vezes, do que a razão mesma da discordância.” Silenciei. Meus olhos pararam de percorrer as páginas e relatos e mais relatos surgiram na memória. Contados por colegas – neste semestre e nos passados - , presenciados ou mesmo vividos por mim. Por que pareceu aos meus olhos que Freire falava da minha faculdade? Por que me senti tão

Desabafo

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Reflexão sobre a convivência universitária

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Page 1: Desabafo

Esse desabafo, transformado em palavras escritas, será surpresa mesmo aos meus colegas de gestão do DAFE, com exceção de três ou quatro com quem o compartilhei antes. Mas como todo desabafo demanda um ouvinte, achei que vocês, neste momento de coletivo, seriam os ouvidos amigos ideais.

Deparei-me esses dias com a seguinte reflexão: por que é tão cansativo compor a gestão do Diretório? Sim, é uma função cansativa, desgastante, que mexe profundamente com o meu emocional. Sinto-me desgastado, por muitas vezes, e mesmo tendo recém retornado, relembro vivamente os motivos que ao final do semestre de 2013 me faziam suspirar profundamente e buscar forças não sei de onde para conciliar estudos, trabalhos, vida pessoal, projetos sociais e Diretório. Fui profundamente marcado pelo debate politico e legislar das questões da educação brasileira e nessa discussão buscamos entender como somos “libertados” e ao mesmo tempo sabotados pelo sistema. Começamos a vislumbrar alguns oponentes da nossa luta de educadoras e educadores.

Pela primeira vez, durante esta semana, dei inicio a uma leitura de Freire. Não havia cruzado com textos seus anteriormente, por mais que fosse citado, não recebi indicações de literatura e acabei por não me interessar. O título, entretanto, “Pedagogia da Autonomia”, em razão do momento que aqui vivenciamos desde o ano passado, chamou-me atenção e folhei o exemplar que tenho em casa. Ainda não sei ao certo se foi Freire que se derramou em mim ou eu quem me derramei nele, em confissão chorosa. Nesse momento, as folhas desta obra de poucas páginas surgiram como um oásis de alivio ideológico: eu não estou louco, não é descabida minha angústia!

Encontrei nas primeiras palavras do escrito:“O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética. [...]

Formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusa-lo do que não fez, são obrigações a cujo cumprimento devemos humilde, mas perseverantemente nos dedicar.”

Pouco mais adiante, no item 1.6 do primeiro capítulo encontrei:“O professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade

do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do ’faça o que eu mando e não o que eu faço’. Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo. Que podem pensar alunos sérios de um professor que, há dois semestres, falava com quase ardor sobre a necessidade da luta pela autonomia das classes populares e hoje, dizendo que não mudou, faz o discurso pragmático contra os sonhos e pratica a transferência de saber do professor para o aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda ontem, defendia a formação da classe trabalhadora e que, pragmática hoje, se satisfaz, curvada ao fatalismo neoliberal, com o puro treinamento do operário, insistindo, porém, que é progressista? Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa certo, mas ao mesmo tempo perguntar ao aluno se ‘sabe com quem está falando’. O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente a segurança na argumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem por que, contra ele ou contra ela, nutrir uma raiva desmedida, bem maior, às vezes, do que a razão mesma da discordância.”

Silenciei. Meus olhos pararam de percorrer as páginas e relatos e mais relatos surgiram na memória. Contados por colegas – neste semestre e nos passados - , presenciados ou mesmo vividos por mim. Por que pareceu aos meus olhos que Freire falava da minha faculdade? Por que me senti tão compreendido pelas afirmativas críticas que demandam uma reformulação da postura docente? Por que no seio de uma instituição superior de Educação as indagações de Freire soaram como acusações tão ferrenhas ao que vejo por aqui? Nas páginas seguintes, retornam seus questionamentos, e retornou minha inquietação:

“O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. [...] O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem [...] o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que ‘ele se ponha em seu lugar’ ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima” age no sentido de ruir os fundamentos éticos da nossa existência. Novamente ressonância. Sentimento de “eu vejo e muito isso aqui!!”.

As minhas palavras são amargas. Muito amargas. Nascidas de uma dor e de uma decepção profundas. Decepção de ver as coisas a luz da Pedagogia e percebê-las totalmente deformadas em comparação com o discurso que delas faziam. Surgem em mim mais questionamentos: em verdade, não são as coisas que estão deformadas, já que neste caso, as “coisas” seriam as teorias e as ideias... seriam então... as pessoas? Seriam os seus professores, aqueles que as professam, que não foram tocados por elas o suficiente para se tornarem receptáculos verdadeiros de sentido e coerência? Mas como esperam, então, formar profissionais competentes se pelos corredores é senso comum que em muitas aulas a desconexão do que é dito com o que é feito é tão grande, que sentimos vergonha de ter de presenciar este espetáculo deplorável de esquizofrenia? Ou seria hipocrisia?

Quando indago-me da coerência daqueles que professam surgem na minha mente poucos professores desta faculdade. Para mim, pedagogo que se forma, estes são expoentes de significado e intenção coerente.

Page 2: Desabafo

Critiquem o que quiserem criticar, ideias estão ai para serem debatidas, e sei que estas educadoras e estes educadores serão os primeiros a por seus pensamentos em cheque em nome da possibilidade de crescimento. Eu mesmo questiono pontos do seu estar em aula quando penso no meu jeito de ser docente. Mas a coerência é uma marca indelével de quem respira e aplica o que idealiza, ela se manifesta em todos os segundos inexoravelmente. Peço a estas educadoras e a estes educadores, que guardem a tranquilidade em seus corações eu vejo e reconheço o trabalho de vocês. E com essa tranquilidade advinda da competência, guardem a chama da inquietude e da vontade de transgredir a institucionalização que desce sobre todos nós de maneira ferrenha. E a vocês eu peço, por favor: transgridam. Não unicamente por mim, não unicamente por vocês, não unicamente pela nossa dignidade de seres politico pedagógicos, mas por um ideal de educação, aquela tão sonhada educação de qualidade, que se desenha no horizonte.

Quanto aos outros, que ainda não atingiram esse estado de espírito coerente, não os vejo como vilões, mesmo que muitas vezes suas posturas em sala só encontrem significado em adjetivos como perversas ou maldosas. Não sei se se perderam das ideias que defendem ou efetivamente nunca as encontraram. Não sei se são vítimas do ego e da arrogância, mesmo que em alguns casos essa hipótese fique claramente gritante. Não sei se a institucionalização e a burocracia foram mais fortes que a vontade de fazer diferente... Sinceramente eu não sei o que houve. Sei que não quero, de forma alguma, seguir este caminho. Não quero ser mais um que critica professoras e professores do ensino básico, ostentando um doutorado e agindo pior do que eles, pior pois o título de doutor só vem com o estudo... Aproveito, contudo para fazer um pedido: abram os ouvidos a este desabafo. As palavras são minhas, a voz que as professa também, a urgência de fazê-lo também foi minha, não falo neste momento como representante discente, mas como um aluno desta faculdade. Mas eu sei, e eu sei sem sombra de dúvida, que a minha voz não se ergue sozinha. Por que vejo nos olhares aqui, das minhas colegas e dos meus colegas de curso, a concordância também dolorida de ter que reconhecer esse descompasso. E também neles não há alegria em reconhecer isso. E também neles há decepção e dor. Não há prazer em dizer isso. Não há jubilo em “jogar algo assim na cara”, por que não é essa minha intenção. É sim um apelo, quase desesperado e profundamente pensado para ser contundente, para desacomodar, para desconfortar , no intento pedagógico único de transformação para o melhor. Achei que cabia a mim fazer uso deste espaço e da voz que me foi conferida, e espero ser efetivo. Não somos ensinados aqui a abrir os olhos ao que é recorrente em sala de aula e que quer nos comunicar algo? Estas pontuações são recorrentes há anos...é urgente a humildade e o carinho de olhar para elas...e pensar sobre elas.

Percebi com toda essa reflexão que o grande desgaste que tenho no DAFE, é o de ter que brigar constantemente contra tudo isso. É ter de, no próprio berço da minha ideologia humanista, lutar por espaço, por respeito, por autonomia, por voz, por valorização. E não estou brigando contra as leis e políticas do município ou contra o Estado, ou ainda contra o país que tem mecanismos de sabotar a nossa educação. Sou obrigado, por ser inquieto e sinceramente crente num mundo mais justo, a brigar com a Faculdade de Educação da UFRGS, pois aqui não se formou o espaço de transformação coerente que seria muito mais engrandecedor e dignificante para e de todos nós. Vejo-me exausto por que a minha briga é dentro de casa. E ao invés de poder me unir às pautas justas que esta Faculdade tem para defender, sou obrigado a defender as pautas dos estudantes que são veementemente desrespeitadas com um sorriso “simpático” no rosto e uma ideia de “diálogo aberto”. Ainda não posso me juntar às causas dos professores, que também são as minhas causas!, por que AINDA não sou visto e nem tratado como igual. O oponente primeiro que tenho de enfrentar é essa desigualdade que violenta o meu intelecto, a minha ética e a minha capacidade enquanto educador, aluno e ser humano. Sou obrigado – vejo isso como uma obrigação – a resistir pedagógica e ideologicamente para defender a coerência desta casa e a Pedagogia por ela defendida. A Pedagogia que me foi apresentada. Para que FARCED, como é chamada a nossa unidade pelas demais licenciaturas, não seja uma alcunha verdadeira...

Quem nós somos? Que coletivo estamos formando aqui? Continuaremos vivendo a dicotomia professores de um lado e discentes de outro? Ou seremos parceiros verdadeiros na construção da sociedade que defendemos? Seremos mais uma faculdade a conceder láureas a elite da Universidade? Seremos mais um em meio à reprodução do mesmo neoliberalismo tão gritante na UFRGS e na sociedade? Compreendo as exigências imediatas da burocracia universitária. Mas quando pergunto: vamos conceder láurea acadêmica, existe outra pergunta, e essa sim o cerne da questão, que fica oculta na questão do laureamento. A pergunta oculta é: FACED serás mais uma covarde em meio a esta Universidade ou terás a coragem de quem tem um ideal e te erguerás numa vontade mais ferrenha do que aquela que nos engessa na burocracia? A pergunta oculta é: Serás a eterna e covarde FARCED ou terás a coragem de fazer valer o nome de Faculdade de Educação? Escolherás a covardia egoica ou coragem transformadora?

Finalizo meu desabafo com duas ponderações. Reforço que se ainda se ouvem reclamações é porque o problema não foi, em nada, sanado: deem ouvidos a isso, com humildade e carinho. E em segundo, mas não menos importante, com o desejo de união verdadeira. O desejo de discencia-docência. Finalizo no intento sincero, singelo significativo querer de estar aqui, fazer e ver ser feita uma justa, digna e educada Pedagogia. Obrigado por ouvir as palavras de um aluno angustiado.