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DESCE MAIS UMA!TERCEIRA RODADA

Todos os direitos autorais sobre este conteúdo estão

registrados na Fundação Biblioteca Nacional do Brasil:

Nº: 610.208 Livro: 1.169 Folha: 481

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RAFAEL CASTELLAR DAS NEVES

DESCE MAIS UMA!

TERCEIRA RODADA

EDIÇÃO PRÓPRIA DO AUTOR – 2013Literatura Brasileira – Poesias

Saiba mais sobre esta e outras obras em: Desce Mais Uma!

Esta obra foi licenciada sob uma Licença Creative Commons: Atribuição - Não Comercial - Sem Derivados 2.5 Brasil.

Você pode copiar, distribuir e exibir, desde que seja dado crédito ao autor original.

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“A lástima e a ignorância favorecem a domesticação dos indivíduos medíocres

adaptando-os à vida mansa; a coragem e a cultura exaltam a personalidade dos excelentes,

cobrindo-a de dignidade.”

José Ingenieros

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Sumário

Um Pouco Além De Mim........................................................................1

Meu Amor Meu.....................................................................................3

A Última Partida.....................................................................................5

Demência Buscada.................................................................................7

Porquês..................................................................................................8

Pelos Campos De Batalhas...................................................................11

Travessia..............................................................................................12

O Ceifador de Sonhos..........................................................................13

Flor do Meu Jardim..............................................................................15

Prefiro Assim........................................................................................16

Carta ao Amigo Desolado.....................................................................17

O Sorriso do Boiadeiro.........................................................................21

Eterno Retorno....................................................................................24

Nas Entrelinhas....................................................................................25

O Tesouro do Capitão Perdido.............................................................27

Um Novo Despertar.............................................................................29

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Encurralado..........................................................................................30

Entrega.................................................................................................31

Pela Janela...........................................................................................32

À Próxima Tempestade........................................................................34

Carta ao Pietro.....................................................................................36

Simples Assim......................................................................................39

Num Instante.......................................................................................40

A Coragem de Sonhar..........................................................................41

O Dia Em Que Caminhei.......................................................................44

Véspera de Natal..................................................................................45

Sozinha.................................................................................................46

Estúpida Essência.................................................................................47

Vaga-Lumes..........................................................................................48

Vela Velha............................................................................................50

Dos Meus Quereres.............................................................................51

Tempos Sentidos..................................................................................52

Alegrias................................................................................................53

O Barco e as Ondas..............................................................................54

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De Repente..........................................................................................55

Um Novo Fim.......................................................................................56

Subida em Espiral.................................................................................57

Enjeitado..............................................................................................58

Da Falsidade.........................................................................................59

Carinho (O Fim)....................................................................................60

Urubus.................................................................................................61

Penitência............................................................................................62

Errar – Presente do Indicativo, Segundo Gramática Conveniente.......69

Carta ao Amigo Infeliz..........................................................................70

Carta ao Papai Noel..............................................................................73

Oração ao Amanhecer.........................................................................77

À Outra Margem..................................................................................78

Sopa de Chuchu...................................................................................79

Onde Estão as Flores?..........................................................................81

A Vida Em Duas Vozes..........................................................................83

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Um Pouco Além De Mim

Quisera eu me assentar num lugar meu, onde pudesse respirar meu próprio ar,Preencher-me dele e somente dele, puro ou podre, mas meuA me limpar do alheio, a me distinguir de mim mesmo.

Em uma praia idealizada, talvez, onde pudesse apenas estar,Sem nada me rondar e sem nada estragar com meus quereres que somente eu entendo, mas deles nada sei contar,Pondo-me a assistir e sentir os ires e vires dos meus pensamentos e desejos – incontáveis, mas de mesma essência –, Sem que aos meus ouvidos chegasse nada que não fosse o vazio da ausência ou o estrondo de minha própria proliferação em mim mesmo.

E ainda, quisera eu, e muito, dos céus deste mesmo lugar descer e diante de mim, sentado à areia, pairar,Assistindo-me, sendo eu comigo mesmo e, talvez, quem sabe, um pouco saber deste meu eu: turbilhão de um tudo que se desfaz em deformados amontoados deslizantes.

Talvez assim, com um pouco deste saber, poderia eu, enfim, dar a mim mesmo, com tão buscada e compensatória dedicação, aquilo que se restringe aos limites do seu próprio ser: a verdadeira compreensão.

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Rafael Castellar das Neves

Pois são os mesmos lábios molhados os que beijam e os que maldizem,São as mesmas mãos protetoras as que espancam e as que afagam,São os mesmos olhos brilhantes os que desejam e os que condenam,É a mesma língua lasciva a que excita e a que dilacera o coração.

São Paulo, 24 de novembro de 2010.

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Meu Amor Meu

Meu amor tem os mais amáveis, desejáveis e inexplicáveis sorrisos, únicos em suas formas e nos seus doarem-se; suficientes para contestar-me a existência e colocar-me no mais alto e sagrado dos altares.

Meu amor apresenta-se em um existir que flutua magicamente pelo meu mundo e que entranha-se pelos cômodos da minha existência, pulverizando-se em inesquecíveis e inexplicáveis aromas por todo meu todo, tocando cada canto escuro meu, pondo-me a contestar o meu próprio ininteligível e inexplicável ser.

Meu amor me lança um misterioso e desejável olhar que me suplica e me condena. Olhar este que me atravessa pelas mais espessas e rijas defesas e vê, em mim, aquilo que nunca nem eu soube ou saberei.

Meu amor ouve de mim os mais secretos suspiros, aqueles que à ninguém dou o merecimento e dignidade de notar, para, simplesmente, a minha integridade e essência manter, e disso se beneficia a me conhecer, para a mim sentir e julgar.

Meu amor canta sua doçura para que a mim possa se permear, cada vez mais e as feridas todas conhecer, e nelas tocar quando se irritar ou diminuído me quiser; delas limpa o sangue, sem as cicatrizar, para que delas possa, um dia ou momento, se valer quando convir ou, simplesmente, se fazer presente e cúmplice a mim.

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Rafael Castellar das Neves

Meu amor conhece os meus cheiros e todas suas razões para que a mim possa governar em sua vontade e a mim possa acolher em seu desejar secreto e, acima de tudo, fazer-se parte de meu existir.

Meu amor saboreia-me como um fruto maduro, prestes a desprender-se de seu caule e ao chão dedicar-se sua podridão, de forma que neste momento possa se mostrar presente feito medicina garantida à eternidade de nossa existência, por seus lábios sedutores e aniquiladores daquilo que tanto lutei para ser – sem ao menos saber se a pena valeria.

Meu amor é cruel e destemido em seu querer para si, e de mim tira todas as forças para sigo próprio, sem questionar ou relevar as dores que a mim se apresentam por todo o meu dia.

Meu amor tem dúvidas de si para comigo, para consigo, por mim e para conosco, as quais planto sem ciência e desejo, mas das quais tento resolver para que a mim se apegue, por confiança e merecimento, o meu amor.

Meu amor é único e querido a mais que mim mesmo, mas ainda não sabe – e nunca saberá, pois nunca conseguirei dizer – o quanto caminhei e lutei, nem quanto me quebrei e me acabei para encontrá-lo; menos ainda sabe que isso nada significa diante ao tudo que posso – e sei que preciso – fazer para mantê-lo assim, amor meu!

São Paulo, 29 de novembro de 2010.

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

A Última Partida

Sem ao certo saber o porquê e nem sobre o quê ter entendimento algum,Impaciente, ele aguardava, em pé, na plataforma vazia, por entre a densa névoa úmida, afora do seu tempo, de um acinzentado amanhecer de mal gosto.

Consigo apenas uma velha maleta alaranjada, suficiente para acomodar mais do que o tudo que lhe restara da caminhada própria,Um surrado chapéu empoeirado a cobrir inutilmente a calva e alva cabeça,Da qual evadiam desordenadamente memórias do seu todo, simples e únicas, quase verdadeiras como um dia foram.

Memórias que se iam e vinham, a se misturar e a se distorcer em improváveis probabilidades desconexas e formas quase irreconhecíveis, que lhe renderam diversas deleitosas e insuportáveis sensações:

A culpa, que lhe apertou os olhos reluzentes, deles precipitando amargas e doloridas lágrimas plenas de destruições e possibilidades.A derrota, que a saliva lhe envenenou e lhe impôs a queda, sobre os próprios joelhos, ao lhe contrair o indignado abdômen, violentamente esvaziado à ausência da conquista.A saudade, que, intermitente lhe palpitou o coração, pincelando sarcasticamente, com uma das mãos, um sorriso de canto e com a outra rasgando as fibras que restavam a bater no peito.

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Rafael Castellar das Neves

O cansaço, que lhe ofegou a respiração e, mesmo diante dos rijos e atentos músculos, prontos a defenderem-se, lhe pôs trêmulas as mãos calejadas e os joelhos esfolados a chacoalharem feitos jovens varas.A certeza, que lhe congelou as entranhas ao se concretizar, pelo bater pesado dos cilindros que arrastam do horizonte a louca Maria fumegante, a lhe conduzir à última viagem, por terrenos desconhecidos e trilhos que de certidão somente a ida era garantida.

E, ao se mostrar em sua forma majestosa, ainda que ofuscada pela pesada cortina acinzentada e pelo desespero, que se tornou presente diante de seu aterrorizante berro histérico – tirano e anfitrião a todos os demais –, e lhe despejou o destempero e o calafrio da impotência sobre o tempo que se passou e se reprisou menor, ainda que completo, na simples plataforma, deixando consigo a verdade de que nada curou, apenas com um trapo cobriu.

Nada mais havia de ser feito, senão ao cobrador entregar o tão salgado bilhete, embarcar e deixar para traz memórias outras que em mentes, também outras, quem sabe, possam ainda sobreviver.

São Paulo, 15 de dezembro de 2010.

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Demência Buscada

Quisera eu, sob demência plena, num amanhecer nebuloso, rolar sobre o gramado úmido, por entre voares de gordos pombos, encontrar alegria desenfreada e desprendida, sem dar-me conta das tristes verdades, hipocritamente disfarçadas, que assombram traiçoeiramente os momentos mais nobres, com um acaso ridiculamente proposto.

Quisera eu, alienado desta, lançar-me à outra realidade, a de sonhos, únicos e misturados, criados a cada respirar, moldados a cada pensamento – meu –, vivíveis, tocáveis, reais; a eles me agarraria e entre eles viveria, não ingenuamente, mas pura e puerilmente em toda sua essência, como desde então não sei mais fazer.

Quisera eu, então, entorpecido de mim mesmo, pirar de vez, alucinar e torna-me alheio a mim mesmo e ao meu todo, não mais sentindo ou percebendo a mim mesmo, nem os medos que me congelam, nem os anseios que me turvam, nem as inseguranças que me falseiam, nem as decepções que me enfraquecem e nem os descasos que fazem abandonar-me; sem medo, não por coragem excessiva, mas por desconhecê-lo por completo.

Quisera eu, permanecer assim, lunático, em um mundo não mundo, com todas e nenhuma forma, colorido por todas as cores, mas gentil e doce, onde somente eu seria criador e criatura, sem ao menos perceber.

São Paulo, 04 de janeiro de 2011.

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Rafael Castellar das Neves

Porquês

Uma vez fundamentada a consciência da existência própria em um meio nada único, mas única e primordial na própria vida, passam os porquês a serem formados desordenadamente e diabolicamente inseridos de forma conflitante aos momentos pelos quais se passa, tornando-se elementos perpétuos e armas contra sigo mesmo que exigem cuidados extremos ao serem, no mínimo, considerados.

Muitos foram os indexáveis e inevitáveis porquês que me atormentaram e de mim exigiram uma grande e preciosa parte da vida e de mim mesmo, em vão! Sim, em vão, pois de mim eles tanto tiraram, mas nunca foram tirados e nem respondidos. Ao menos serviram para deixar cicatrizes que deste processo e suas consequências me fazem lembrar.

Como a qualquer porque, responder a estes se resume a simplesmente encontrar a raiz que o causa: olhar de perto, com atenção e dedicação, todas os eventos, variáveis e elementos que possam estar envolvidos e deste aglomerado de informações tentar entender a dinâmica e o como se relacionam para, assim, obter esta raiz e a ela tratar, erradicando o tal porquê. Simples, certo? Sim, simples, mas extremamente custoso. Estes porquês, como todos bem sabemos – e, neste ponto, o leitor, naturalmente, já consegue ter em mente uma lista daqueles que o persegue –, de triviais não têm nem o nome. A complexidade que os cerca e os compõem se dá pelo emaranhado de informações emocionais que se formam e se transformam entre si durante toda uma vida. Não são isoladas e nem momentâneas, mas extremamente carregadas do que realmente

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

somos, permeando nossos mais profundos e obscuros cantos – que assim os são por desconhecimento ou por simples ignorância proposital justificada pela dor que já causaram.

Desta maneira, enveredar-se em busca das respostas para este tipo de porque é uma tarefa árdua e cara! Requer custos altíssimos que não temos a ideia de quanto representam e que nem sempre estamos preparados para com eles arcar. Destes custos, o que mais salta aos olhos e mais representa para o “viver” é o tempo, e tempo é algo de que pouco dispomos, pois sabe já o leitor que a vida é curta e preciosa.

E sim, tentado a obter as respostas que julgava poderem, inclusive, abrir minha mente e melhorar o meu caminho, dediquei tempo e atenção a alguns destes porquês que me incomodavam e julguei serem de importância relevante; mas o que obtive, no melhor dos casos, foi estagnação, ademais, retrocesso e deterioração da minha vida.

Estes porquês não são apenas consumidores insaciáveis do nosso precioso tempo, mas são amarras extremamente fortes com nosso passado. Um passado incompreendido e que deveria simplesmente ser guardado em um baú, dentro de um quarto escuro para, vez ou outra, ser observado de longe para referência ao hoje.

Colocar-se a responder estes porquês ou, ao menos, tentar entender as razões de suas existências, não é nada para se orgulhar, pelo contrário é parar em um canto escuro qualquer do próprio caminho e nele se assentar, pondo-se a remoer, a lamentar e alienar-se, enquanto as oportunidades, as pessoas, os sentimentos, os momentos e possibilidades passam, bem ao nosso lado e sem nos darmos conta. E se nos dermos conta, já serão passado e nem mesmo as pegadas existirão para serem seguidas. Tudo isso por um

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Rafael Castellar das Neves

entendimento que, muito provavelmente, nunca virá, e se vier, não valerá o preço que foi pago.

Às duras custas, hoje entendo que estes porquês sempre existirão e ao decidir em responder um destes porquês, devo analisar bem a importância que ele tem e, principalmente, a utilidade que sua resposta poderia trazer para mim, para então olhar ao meu redor e contabilizar minha vida a fim de identificar se tenho algum trocado para gastar com ele. Realmente tenho este entendimento, e por esta única razão simplesmente rio, sem nenhum pesar, destes porquês, mas sem deles zombar. Apenas sei que existem por algum motivo importante e, por isso, os considero como importantes referências, mas sem com eles desperdiçar um minuto sequer da minha preciosa existência, e muito menos daquelas que me cercam. Por isso, vivo cada momento, saboreio cada curva do meu caminho, monto cada cavalo selado que por mim passa em disparada, sem trazer arrependimentos em minha bagagem – estes eu deixo para trás jogados a apodrecer às beiras da minha estrada –, levando apenas o que realmente me mantém firme neste movimento desenfreado que chamo viver.

Aos porquês deixo apenas minha ciência sobre as suas existências, às suas respostas minha mais sarcástica ignorância; pois respondê-los é amarrar-se a um junco qualquer de beira de estrada e a ele permanecer sozinho feito um animal condenado, digerindo a si mesmo a espera do fim. Não foi para isto que vim, vim para cantar!

São Paulo, 24 de janeiro de 2011.

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Pelos Campos De Batalhas

Não depois,Nem antes,Mas na guerra, somente na guerra,Entre uma batalha e outra,Poderá o soldado, escondido de si, desempunhar sua arma e afrouxar-se sobre os próprios joelhos cansados,E de si, feito criança, despejar todos os seus medos, todas as raivas e todas as derrotas que lhe assolam o coração;Todas as mentiras, todos os descasos e toda a ignorância premeditada que lhe fraquejam a alma.

Somente assim,Na pior das suas formas,Humilhado por si próprio,Cansado de toda uma caminhada incerta,Atordoado de tanto lutar,Sem nem mais o motivo lembrar – ou importar –,Que poderá o soldado, então, conhecer verdadeiramente a paz!

São Paulo, 09 de fevereiro de 2011

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Rafael Castellar das Neves

Travessia

Neste constante balançar inabalável, instável de si, que só faz lançar, de uma só vez, de uma borda à outra, tudo e todos,Perde-se dos pés o chão, perde-se das pernas a firmeza e cai-se, num instante, no infinito vazio que rouba o fôlego e engasga a voz; e cai-se, sem do lugar sair.

E neste desespero, é a esperança de ao outro lado chegar, outro qualquer lado que seja, diante do desespero da derrota e do abandono completo, que faz com que o levantar, mesmo sobre trêmulos joelhos esfolados, ainda que incerto, seja possível.

E envergado sobre os pés vacilantes, recosta-se e timidamente se segura, da forma que se pode, a algo discreto e que não afete a imagem, mas dê gratuita firmeza até a próxima ressaca, que certo como o sol no amanhecer seguinte, virá!

Enxuga-se o rosto, firma-se o semblante e fixa-se o olhar ao turvo e questionável destino, disfarçando os medos e as vergonhas que ainda na garganta palpitam, para que permaneça a imagem heroica, ao menos como deveria: invejável, intocável e inquestionável.

São Paulo, 24 de fevereiro de 2011.

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O Ceifador de Sonhos

Nos tempos de terra árida e ventos frios,Quando pouco do que resta é ainda banhado pelo lento sol fraquejanteQue se arrasta de um cardeal para outro,É que se revela o ceifador de sonhos.

Um que há tempos chegou manso e gentil,Quase sem ser notado, quase sem nada pedir,Disfarçado de um bem querido, de mãos estendidas para junto lavrar [presente da vida].

E é daí que assume sua verdadeira forma, personifica-se o horror da mentira.Lança por sobre a quase seca planície seu impiedoso alfanje sedento,Pondo abaixo os bravos brotos e talos agonizantes, que persistiam às insuportáveis pestes, sob à arrebatadora escassez.

Mais terrível que o anjo da morte, deixa uma única vida,Condenada à eternidade da própria existência,A conviver com o amargor das lembranças de um tempo em que ainda pairavam esperanças,Desgosto do que um dia antecipou uma colheita.

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Rafael Castellar das Neves

Assim, resta à vida da estéril planície, cemitério de seus sonhos, partir, cercando-a com o mais grosso e resistente farpado;Não para preservá-la, mas para proteger-se do próprio retorno.

São Paulo, 22 de março de 2011.

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Flor do Meu Jardim

Já não importam as montanhas que rasgaram minhas mãos e marcaram meu peito enquanto as cruzava a procura de você;Também já não importam os mares revoltos que me tomaram o fôlego quase levando de mim a vida enquanto os enfrentava a procura de você;Nem tampouco importam os desertos escaldantes que secaram o brilho da minha vida e cozeram meus pés enquanto os atravessava, desorientado, a procura de você;Já não importam as cicatrizes que em mim perpetuam a definir a minha forma.

Importa sim o dia que meus olhos brilharam, meu peito transbordou, meu corpo se renovou e minha esperança gargalhou ao lhe encontrar, depois do meu último matagal, brotada entre as rochas do meu último penhasco a completar a minha tão sonhada paisagem.

E neste mesmo dia, estonteado como uma criança ao descobrir diante de si a beleza simples e pura de uma flor, sem nada precisar entender ou fazer; senão sentir o delicioso transformar da própria existência,Pude sentar-me ao seu lado e ver o que você vê quando olha para o céu, sentindo bem ao meu lado a sua respiração, sem ter que ir embora.

São Paulo, 28 de março de 2011.

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Rafael Castellar das Neves

Prefiro Assim

Diante de tantos caminhos, com toda a sorte de destinos predefinidos incontestavelmente propostos, construídos através dos tempos sob uma ordem divinizada, prontos a serem livremente trilhados com o conforto e garantia de seus fins,Ponho-me a fazer o meu próprio, criando a cada dia meu possível amanhã, por entre as minhas picadas, o meu chão poeirento [intocado] e deixando, de mim, o rastro único.

Faço-o não por rebeldia ou por martirização espiritual,Mas por preferir a incerteza do amanhã a pôr-me em vigília de um futuro já sabido,Por preferir a possibilidade de arcar e gozar com meus próprios feitios a tentar me encaixar a modelo predito por um tradicional roteiro monótono,Por preferir sentir o frio na barriga da incerteza de cada passo meu a cumprir etapas de um jogo lúdico que só faz poupar os expectadores,Por preferir ter em cada batida do meu peito a vivência plena, nutrida pelas minhas dores e meus sorrisos, a mediocridade de um comodismo absurdo de pôr-me à janela da composição, aguardando as providências alheias – tidas como obrigatórias –, me conformando com as paradas de um itinerário comum, atribuído a decisões divinas, que ousam chamar de vida.

São Paulo, 25 de abril de 2011.

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Carta ao Amigo Desolado

Caro amigo Desolado,

Ao que percebi, pela sua última carta, você não tem passado por momentos muito agradáveis e sua fé nas pessoas está se perdendo. Inevitavelmente, aqui vai um conselho: perca-a!

Explico-lhe: não lhe peço para crer que as pessoas não têm valor ou que sejam dignas de descaso, mas que você deve entender que os valores são para si e que deve se atentar mais sobre si mesmo, sobre suas necessidades – independentes se soam ridículas ou utópicas. Apenas olhe para si, não no meio em que vive, mas meio único apenas seu, onde somente exista você. Sei que isto sim soa ridículo, mas esta é uma das verdades da vida e que pretendo lhe explicar.

Não é a verdadeira consideração ou dedicação entre as pessoas que têm diminuído – pois ambas nunca realmente existiram –, mas a manifestação da desconsideração e do descaso humano que tem tomado um lugar cada vez maior, sobre diversos aspectos, mas sobre um principal motivo: o egoísmo. Não se trata de um egoísmo no sentido direto de preferir ou exaltar o próprio ser, mas de abstê-lo de compromissos e responsabilidades para com os problemas alheios. Realmente é – e tem que ser – um verdadeiro “cada um por si”.

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Rafael Castellar das Neves

Também não quero ser um mensageiro do apocalipse, mas, talvez, uma luz que ilumina certas verdades que você não quer enxergar, mas as sabe muito bem, disto tenho certeza!

O relacionamento entre as pessoas ainda é uma necessidade intrínseca ao ser humano, e isto é um fato do qual não adianta nos refutarmos! O que temos é que nos atentar à profundidade que estas relações podem se apresentar. Não me refiro aos pesos que nós mesmos colocamos ou ao tão longe vamos, mas ao como lidamos com isso. É inevitável nos jogarmos de cabeça ou nos dedicarmos com todo nosso ímpeto a certas situações e relações que nos fazem bem e das quais enxergamos – míopes – um futuro dourado, mas temos, de alguma forma (se souber me conte) nos conter sobre nós mesmos, em uma realidade dura. As relações, por mais que digam, nunca são bilaterais, a balança sempre penderá para um dos lados e, acredite, o outro lado está se lixando. Tentar se posicionar e deixar claro seus medos, suas necessidades e até o seu jeito, não vai ajudar, pelo contrário. Se quiser que realmente funcionem, terá que consumir em si mesmo estas necessidades, estes medos e estas querências; do contrário, será visto e definido como um tolo infantil, quem sabe apenas um idiota!

Infelizmente, a parte realmente verdadeira é que cada um dos envolvidos quer satisfazer as si próprio e nunca ao próximo. Para cada parte, a relação somente será agradável e valerá a pena enquanto tiverem suas necessidades nutridas, mesmo que para isso, vez ou outra, tenham que encenar um interesse pela outra parte, sob o tão batido “é dando que se recebe”.

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Por isso, meu caro amigo, não espere que ninguém lhe ajude com suas necessidades, não espere que ninguém lhe entenda, não espere que ninguém lhe estenda a mão quando você cair, não espere que ninguém enxugue suas lágrimas e, acima de tudo, não espere que aceitem seus sentimentos! E olha que não falo de compreensão, apenas de aceitação.

Nunca, e digo novamente, nunca, exponha seus sentimentos! Ao fazer isso estará decretando o fim daquilo que mal começou. Nos dias de hoje, sentimentos são tratados como fantasias pueris, todos esperam uma posição mais firme e decidida uns dos outros ao lidar com os próprios problemas, por simplesmente ser mais fácil e abster-se das responsabilidades e esforços que deveriam ser herdados pela cumplicidade que se é, mentirosamente, proposta.

Sendo assim, quando quiser chorar, vá tomar um banho, pois assim não será ridicularizado, pois homem não chora; quando precisar de carinho, pense em comprar um cachorro, pois ele não entenderá o que se passa e permanecerá do seu lado; quando seus sentimentos lhe sufocarem, abrace forte seu travesseiro, pois ele não lhe reclamará se sentir sufocado; quando tiver raiva, morda a própria mão ou soque a parede, pois a dor pode lhe aliviar, nunca aquele que lhe pede para contar; quando lhe tiverem raiva, agradeça aos céus, pois será verdadeiro; quando precisar ser compreendido, ponha-se diante de um espelho e converse, pois, provavelmente, somente você poderá lhe entender; quando a dor for intolerável, tome algo que lhe tire de si, pois o contrário pode lhe causar ainda mais; e, acima de tudo, quando não conseguir cumprir estas regras e acabar por apresentar estes fatores, corra, mas corra como nunca

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correu, durante três dias e sem olhar para trás, pois, se vacilar, conhecerá a verdadeira dor da sua própria existência.

Então, amigo meu, me despeço aqui, pois já muito lhe fiz por esta vida. Quero, também, que saiba sempre que caso precise de um ombro, de um consolo ou de uma palavra amiga, vá para um bar ou para uma igreja – talvez para o inferno –, porque nem eu estarei aqui para isso.

Sem mais,

Seu grande e verdadeiro amigo.

São Paulo, 08 de maio de 2011.

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O Sorriso do Boiadeiro

Estávamos à beira do Goiás, a um passo do Araguaia e a dois do Tocantins, quando percebemos os grandes borrões esverdeados que se espalhavam pegajosos pela estrada, denunciando que seus autores seguiam no mesmo sentido que o nosso e logo deveriam se apresentar como parte da paisagem. Empolgados, andamos mais alguns quilômetros e nos deparamos com uma boiada de garrotes, tocada ao ritmo natural dos meninos que se atropelavam e se esgueiravam à caça de bocados do braquiária que cresce insistentemente às margens do asfalto.

Desde pequeno ouvi as histórias dos bravos boiadeiros que tocavam e zelavam a boiada por enormes distâncias e complicadas situações. Suas montarias sempre foram alvo de respeito e os arreios de inveja. As famosas mulas briosas elegante e rusticamente enfeitadas por arreios argolados e grossos pelegos que confortavam o acento das resistentes portas-capelas. Foram tantas as referências e as tentativas de aproximação que se fundaram em minhas imaginações e minhas admirações e, de repente, se personificaram bem diante de mim.

É claro que não resistimos e paramos para algumas fotos. Pedimos as devidas permissões aos boiadeiros que guardavam a retaguarda da boiada e eles nos atenderam com muita simpatia e simplicidade. Fizemos fotos deles, fotos montados nas mulas e conversamos um bocado. Eram boiadeiros de verdade, que carregavam na pele o cansaço e as marcas de uma vida dura e árida. Uma vida com poucas expectativas além das que se apresentavam

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como fatos rotineiros a serem arduamente transpassados todos os dias.

Mas toda a euforia daquele momento foi posta de lado, sem ressentimentos, diante desta simplicidade e a alegria com que fomos recebidos. Não se tratava da alegria de ser fotografado, ou cortejado com inúmeras perguntas e curiosidades da “gente da cidade”; mas de uma alegria intrínseca e natural, que corre em suas veias, brotada de um coração enorme e inexplicavelmente, nos dias de hoje, verdadeiro.

O sorriso no rosto daquele homem – com o qual mais conversei – era algo fascinante. Não se era um sorriso por entre palavras, mas palavras por entre sorrisos. Algo que não se limitava à expressão facial, mas que se compunha pelas palavras, pelas entonações, pelos gestos, pelos olhares, pelos movimentos e até pela timidez. Um sorriso que resplandece, não pelos seus motivos, mas pelos seus efeitos. Um sorriso puro e gentil, nada pueril, de homem sofrido, fora de casa há mais de um mês, que luta pesado todos os dias, recebendo da vida, com este sorriso, todos os golpes, todas as dificuldades, todas as ausências, todas as quedas; mas que recebe, de coração ainda mais aberto, e talvez por isso o sorriso, os pequenos presentes que a vida nos dá a todo momento, em todos os dias, e que fazemos questão de sufocar com as reclamações e injúrias de nossos problemas.

Não digo que tenhamos de parar, levar a mão à cabeça e pensar no que temos e no que eles não tem e nos redimir diante da situação alheia; pelo contrário, excomungo este tipo de nivelamento de vida, apenas penso que vale a pena, em todas as nossas manhãs, nos lembrarmos, por alguns instantes que sejam, que devemos abrir mais nossos olhos e apurar nossa percepção em busca dos pequenos detalhes com os quais somos presenteados todos os nossos dias, pois

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está na simplicidade da existência as maiores e melhores razões que fundamentam a verdadeira felicidade.

Por não me lembrar de nenhum outro, firmo em minha vida que neste dia conheci a verdadeira felicidade de viver.

Com ou sem peixe, a pescaria estava salva!

São Miguel do Araguaia, 14 de maio de 2011.

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Eterno Retorno

Quem é que diria, minguado amigo velho,Você de novo neste buraco!

Não era você aquele que, às grandes perdas, aprendera as lições da vida?Não era você aquele que, aos desastrosos erros, amadurecera a criança que habitara o seu peito?Não era você aquele que, aos prantos e latências, soerguera-se e pusera-se firme a caminhar?Não era você aquele que, por todos os seus fracassos e estragos, se postara astuto e infalível diante da vida?

Agora, como castigo pelo seu desleixo e arrogância, encontra-se aí,Pendurado à beira do seu buraco sem fundo,Agonizando indignado com mais este golpe.Culpado só você é!

Pare com este lamentar tedioso,Limpe este rosto suplicante,E salve o que lhe resta de dignidade!

Vamos, deixe de bobagem e abaixe logo esta sua mão.Use-a para a única coisa que agora lhe serve: salvar a si próprio;Pois daí ninguém lhe tirará, nem mesmo eu.

São Paulo, 07 de junho de 2011.

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Nas Entrelinhas

Não com um livro, mas com um lápis é que se compara a vida.

Capara-se a vida com um lápis a deslizar por entre as linhas, ora nas entrelinhas, em movimentos desconhecidos, outros premeditados, muitos outros até improvisados, que, ao se dar conta, formam significados, sentidos, verbetes.

Lápis que deixa por páginas, até tão brancas e vazias, rastros que eternizam memórias, momentos, sentimentos, muitos orgulhosos, outros esquecíveis, mas sempre perpetuados e denunciados, mesmo que pela rasura proposital.

E como lápis, desgasta-se! Passa a deixar marcas dúbias, borrões passíveis de correção [ah se houvesse uma borracha], até quando, novamente desbastado, toma-se forma nova e continua com traços delineados e firmes.

E em um gracioso movimento contínuo divinizado, segue adiante, ora com letras garrafais, outrora garranchos murmurantes; ora decorados e delicados, outrora minguados e entristecidos; ora precisos e centrado, outrora reticentes e trêmulos.

Mas sempre por novos parágrafos, por novas páginas, compondo um livro único, repleto de memórias e sentimentos, conquistas e derrotas, realizações e perdas. Um livro talvez nunca relido [quiçá lido], mas único e jamais extinguível!

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Um livro escrito por um único lápis, que trilhou toda uma sorte meios e que por eles teve de passar sem fazer correções, talvez explicações, até seu desgaste pleno e a entrega ao derradeiro ponto-final, quem sabe seco e absoluto como um suspiro, ou talvez um contorcido rabisco de um espasmo agonizante, mas final.

São Paulo, 16 de junho de 2011.

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O Tesouro do Capitão Perdido

Depois de todos os mares três vezes atravessar,De uma sorte de temíveis monstros marinhos enfrentar,De uma rústica tripulação esbravejante comandar,Por entre tribos, não mais primitivas, mas ansiosas a lhe comerem o fígado e saborearem o cérebro, sobreviver,O nobre capitão, por fim, encontrou-se e orgulhoso sorriu ao avistar, entre névoas, as praias de um dos seus tão procurados destinos.

Nem bem atracou, lançou-se entusiasmado ao caminho gravado em sua mente, um dia revelado pelo mapa em seu bolso.Em instantes parou súbito à praia, agradecido olhou desconfiado aos céus.Sem as intituladas roupas pesadas, cavou o mais fundo e mais rápido que pôde até encontrar o que tanto procurou.

De dentro do antigo baú, enrolado em trapos velhos, retirou seu tão sonhado e desejado tesouro.Radiante, pôs-se menino a contemplá-lo, enquanto se deleitava com a estranha sensação da pura felicidade da completude transbordando de seu coração.

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E assim o fez durante profundos e deleitosos instantes, suficientes para torná-lo comum à sua vida, da qual, por desleixo ao que é comum, permitiu que a maré o levasse, conforme tradição da sua espécie.

São Paulo, 21 de junho de 2011.

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Um Novo Despertar

Numa manhã de um domingo desses, não por ser dia, nem por ser belo, mas por se ver no espelho, pela primeira vez em muito tempo, como realmente era, sem vultos de dúvidas ou marcas de culpas a lhe cercarem e atormentarem a cabeça, inesperadamente, ela acordou; não porque o tempo passou ou porque se perdoou, mas porque se permitiu, novamente, sorrir.

São Paulo, 18 de julho de 2011.

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Encurralado

Era escura e estreita, de formas familiares, mas de cheiros repugnantes, a viela em que caminhava.Foi quando caiu a densa neblina cinzenta que pesava aos olhos e aos pulmões,Seguida de um puro silêncio absurdo que tomou todas as atenções dos ouvidos ao se fazer presente.

Ao parar, passos continuaram,Apavorado o corpo estremeceu.

À consciência, pensamentos sob o disfarce da corretude imposta sussurravam os fracassos e as faltas de uma vida.Às pernas, mãos de outros tempos se seguravam.À espinha, o insuportável arrepiar de lembranças forçosamente esquecidas suavemente deslizavam.Ao coração, finas e dolorosas agulhas da indecisão sobre o próprio existir se atravessavam.Aos joelhos, pedriscos do asfalto áspero a condenar e a sacramentar a queda arranhavam.

Aos olhos, a ofuscante e brilhante luz da esperança, que afastava a escuridão e anunciava a nova chance, absolvição própria, se formava conduzida pela persistente e fiel mão direita que, simplesmente por acreditar, insistia incansável em lutar.

Cotia, 17 de agosto de 2011.

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Entrega

Tantas foram as fantasias em mim vestidas,Tantas foram as formas por mim assumidas,Tantos foram os modos de mim investidos,Tantas foram as culpas a mim atribuídas,Que nem mais sei...

Tanto foi o que perdi,Tanto foi o que lutei,Tanto foi o que me iludiu,Tantos foram os reveses,Que nem mais dói...

Já não sei o que foi, nem o que era para ter sido, ou o que virá a ser.Sei apenas que assim continuará,De um lado para o outro, pra cima e pra baixo,Trocando, mudando, transformando, inventando!Mas sempre um eu mesmo [torto], de todos os tempos e com alguma coisa nova.

E por isso, hoje, envolto pelas minhas conquistas,Sigo cantando a minha música,Dançando a minha dança,Caminhando o meu passo,Rindo o meu riso,Sem de mim perder a criança que nunca deixei de ser.

São Paulo, 31 de agosto de 2011.

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Pela Janela

Há tempos que nesta janela,Nesta mesma janela,Ponho-me atendo a tudo observar,A tudo o que se faz por ela passar.

Há tempos que neste observar,Especulo os movimentos e me delicio com as expressões.

Há tempos que destas reações,Faço minhas imitações sem [é lógico] esquecer as infundadas deduções.

Há tempos que nesta janela,Fico a tudo observar,Sem de mais nada me lembrar.

Há tempos que atrás desta janela,Ponho-me assim: de tudo protegido e escondido,De tudo que somente além dela se faz passar.

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Hoje, um agradável dia ensolarado,Como há tempos não fazia,Pus-me despreocupado pelos passeios a caminhar,Com um semblante difícil de desvendar,Sentindo os cheiros e os sabores da paisagemHá tempos nesta mesma janela a se formar,Agora comigo por ela a se observar.

Cotia, 12 de setembro de 2011.

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À Próxima Tempestade

Atentai-vos a mim, homens, o vosso nobre capitão!Não vede que seguimos à carenagem?Machados aos estais, machados ao mastro,Livrai-nos do excesso, aprumemos a nave!

É de frente e não de lado que se enfrentam as ondas, jovem timoneiro,Alinha a proa e reze tua prece,É de madeira de lei a quilha,Mas a fé a fortalece!

Às tábuas a firmar, homens!Aguentai-vos firmes,Fazei-vos valer, esta é a hora,Buscai vós na batalha a honra!

Rezai vossas preces,Não percais a coragem!O choro é para mais tarde.Força!

Escorai-vos onde puderes,Segurai-vos como puderes,E, assim, revezai-vos ao descanso.

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Já se aproxima a bonança e é nela que se trabalha!Nela não se descansa, mas se repara e se toma o fôlego;Tão certo quanto ela é a próxima tempestade que já se precipita.

São Paulo, 22 de setembro de 2011.

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Carta ao Pietro

São Paulo, 22 de setembro de 2011.

Querido Pietro,

Você ainda não me conhece, mas hoje eu conheci seu rostinho: sou seu tio!

Queria que você soubesse da revolução que você já tem causado por aqui. Estamos todos muito felizes, de corações moles e extremamente ansiosos esperando a sua chegada – o tio está doido para te ver! Já faz um bom tempo que muita gente por aqui está se mexendo e correndo atrás das coisas para que esteja tudo pronto para quando você chegar.

Você deve estar curioso em saber como são as coisas aqui do lado de fora, não é? Mas tem quem diga que são nove meses tentando sair e o resto da vida tentando voltar, mas não é bem assim.

É verdade que o mundo tem mudado muito desde que eu e seu pai viemos, mais ainda de quando seus avós vieram. A vida por aqui anda bem agitada, cada vez mais temos mais trabalho, mais contas a pagar, menos tempo para nós mesmos e para aqueles que convivem conosco. O mundo está complicado, o progresso está faminto e não tem limites. O planeta está cada vez mais poluído, cada vez mais quente, as estações do ano – talvez você ainda ouça falar delas – já quase não se diferenciam umas das outras, o nível do mar está subindo, as calotas polares estão derretendo, alguns

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bichinhos você só conhecerá no seu berço ou nos seus livrinhos, e o que é pior, parece que ninguém está muito preocupado com isso.

As pessoas também mudaram muito. Não é de se estranhar. Neste ritmo em que vivemos cada um quer mais é cuidar do que é seu – ou pegar o que é do outro. Mas o problema é a forma como as coisas acontecem. Não há preocupação de um com o outro, nem que seja superficial. As pessoas não medem esforços e tão pouco pesam nos efeitos do que fazem para conseguir o que querem. Simplesmente atropelam um ao outro sem peso algum na consciência. Têm-se feito muita coisa ruim e feia por aqui. Já quase não existem mais valores e quando existem, só existem dentro de casa, pois são facilmente corrompidos. Parece-me que antes havia um pouco mais de respeito e acho que não é coisa da minha cabeça. E toda esta situação só faz com que as pessoas se isolem cada vez mais umas das outras, e até delas mesmas. Creio que seja uma forma de defesa, mas acredite: com bilhões de pessoas neste mundo, nunca houve tanta solidão. E o que é pior, solidão de si mesmo!

Há muitas outras coisas que não mudaram. Por mais que irão dizer a você que isso não acontecia antigamente, saiba que elas existem há muito tempo e por muito tempo ainda continuarão conosco. Por exemplo: os políticos são corruptos e agem em benefício próprio; o dinheiro move este mundo, dinheiro gera dinheiro e compra remédios para as dores de cabeça que causa; as guerras sempre existiram sob fachadas para disfarçar o real objetivo de lucro e aumento de poder entre as nações; ainda hoje, para alguns a fome e ignorância alheia é lucro; as mulheres são complicadas, mas mesmo sem as entender, você não conseguirá ficar longe delas – daqui um tempo o tio conversa melhor com você sobre isso –; a grama do vizinho é sempre mais verde; sempre alguém anunciará o fim do mundo e o mundo sempre continua aqui; as pessoas mais

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sábias que você conhecer serão as pessoas que mais erraram na vida; todos erram, mas poucos perdoam; e, creio que o principal, seus pais sempre saberão da vida mais do que você e sempre farão por você aquilo que eles entenderem como melhor para você, assim, por mais que não os entenda ou com eles não concorde, acredite no tio: eles sabem! Ouça-os, respeite-os e ame-os!

Mas por aqui também tem muita coisa boa. Você pode vir sossegado que o saldo é positivo. Viver ainda vale muito a pena! Há muita coisa bonita para se ver, muito lugar interessante para se visitar, muito canto de passarinho para se apreciar, muita flor perfumada a se cheirar, muito pôr do sol memorável a se observar, muita piada a se contar, muita risada rasgada a se rir, muita gente de bom coração para se conhecer e muito sentimento bom para se sentir. A vida é algo mágico e que nos surpreende todos os dias, basta nos permitirmos vivê-la. Tem muita coisa boa para a gente fazer! Vamos brincar na terra, tomar sorvete, andar a cavalo, comer doces escondidos, correr atrás de galinhas, contar histórias, pescar, pegar fruta no vizinho, andar de bicicleta, até jogar bola, vamos deixar a mamãe e o papai bem loucos da vida!

Você já é muito querido e tem um lugar especial em nossos corações!

Seja muito bem-vindo!

Beijos do tio!

São Paulo, 22 de setembro de 2011.

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Simples Assim

Ontem vi uma criança e uma flor,Foi num jardim destes à beira do caminho,Sombreado por calvas jovens árvoresE forrado por um esverdeado gramado tímido.

Uma levava a outraPor entre delicados dedinhos avermelhados,Com incertos passos pueris,Sob um brilhante olhar curioso.

Uma era levada pela outra,Com aveludadas pétalas coloridasA exalar um suave perfume adocicado,Permitindo a encantadora magia da descoberta.

Uma completava a outra,Com o vislumbre das formas e cores,Com uma inocente gargalhada despreocupada,Aconchegadas nas próprias existênciasA comungar da mesma cena.

Ontem vi uma criança e uma flor...

São Paulo, 18 de outubro de 2011.

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Num Instante...

Por um olhar ele se encantou,Em um sorriso ela se entregou,Com um toque eles se amaram,Em um instante uma vida eles viveram.

São Paulo, 08 de novembro de 2011.

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A Coragem de Sonhar

Há quem diga, ainda mais nos nossos dias, que sonhos são coisas infantis, coisas de tolos. É certo que não é de todo uma mentira, mas não é certo que por isso devem os sonhos serem afogados debaixo de um chuveiro.

Sem a pretensão de aconselhar ou “autoajudar”, costumo dizer que sonhos são feitos para se viver. Sonhos são motivadores da vida, são para serem vividos e não sonhados. Sonhos são apenas sonhados durante suas concepções. Do contrário, se sempre sonhados, passam a ser apenas conformações, lamentações, absorvidas como justificativas de uma desistência.

Sonhos são os motivadores da evolução da humanidade. O homem sonhou em cruzar os mares, sonhou em voar, sonhou em ir até a lua e sonhou em ser Deus. Mas estes foram sonhos grandes, de impacto relevante e sucesso evidenciado que puderam ser realmente vividos, por terem sido vividos foram tidos como grandes façanhas, grandes vitórias, respeitados; mas acreditem, foram desacreditados e ridicularizados em suas anunciações.

Hoje, sonhar é, de uma forma velada, proibido, considerado uma perda de tempo, uma atitude infantil e ridícula. E complemento que sonhar não é apenas proibido, mas perigoso. Não só pela violação da proibição em si, mas por colocar o sonhador em uma posição ridicularizada, sob questionamentos e incredulidades que podem ferir, inclusive, sua dignidade.

Há tempos, e cada vez mais, é exigida das pessoas a razão sobre o coração, e por isso, temos um mundo cada vez mais voltado

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ao materialismo e cada vez mais independente de emoções e sentimentos. Talvez as crianças e os lunáticos entendam isso; mas são muitos os outros que afogam seus sonhos tentando se conformar de algo ridículo gerado involuntariamente pela própria mente. Mas aqui vai uma novidade: sonhos não são involuntários! Sonhos têm bases muito bem fundamentadas na vivência, na ausência, nas prioridades e nas ânsias que cada um carrega no peito. Sonhos objetivam uma única coisa: a felicidade de seu criador!

Nenhum sonho é impossível, alguns são muito difíceis. Para estes, há outros menores e mais fáceis que os complementam e que podem, ao menos, preparar o caminho. Contudo, sonhos são propriedades privadas e extremamente íntimas de seus criadores, quase segredos de si mesmos, e por este simples motivos, devem ser guardados e protegidos da ciência alheia. Guarde e proteja seus sonhos da ciência alheia! E isso acontece não apenas pela maldade, que é maioria, mas pela falta de compreensão. Falta esta fácil de se compreender: as pessoas não tem e nem sabem as razões, as motivações que levam a um sonho de outra pessoa. Talvez nem mesmos os próprios sonhadores conseguem ter esta clareza, mas estes ao menos podem sentir, e este sentimento os tomam por completo sem justificativas ou explicações. As demais pessoas, por mais próximas e queridas que sejam, pelo simples fato de não compreenderem, acabam por injuriar os sonhos alheios. Outras, preferem utilizar-se da “praticidade da vida” como desculpa para desdenharem os sonhadores, quando não os próprios sonhos, o que simplesmente se traduz em se sentar comodamente num canto da vida e deixar que ela passe, se conformando com o todo. Compreendamos, é uma questão de escolha.

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Mas concordo com o que dizem: sonho é para crianças e para os tolos, pois somente as crianças e os tolos têm a inocência de sonhar livremente sem pudores. Deixar de sonhar, ou tentar sufocá-los antes do primeiro ato, é praticamente um suicídio. Sonhe, mas não se conforme com seus sonhos, busque-os nem que se passe a vida, e quando o realizar, sorria, tome fôlego e busque outros novos, pois sonhos evitam a rotina, sonhos colorem os dias, sonhos justificam a vida! E quando sonhar, sonhe baixinho, vai que alguém escuta!

São Paulo 21 de novembro de 2011.

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O Dia Em Que Caminhei

Um dia eu caminhei...Não me lembro por onde,Nem para onde,Caminhei eu, um dia.

Sei é que um dia eu caminhei...E sorri eu,No dia em que caminhei.

São Paulo. 30 de novembro de 2011.

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Véspera de Natal

Cercados por imponentes muros estilizados,Enfeitavam os largos jardins floreados,Acompanhados de sombrosas árvores volumosas,Os casarões encantadores que margeavam meu caminho naquela manhã.

À luz vermelha, parei.Tomaram-me os deliciosos aromas dos alegres preparativos natalinosQue, então, naquela manhã, anunciavam o tão esperado banquete.

À esquerda, na esquina, ele, de cabelos desgrenhados,Metido apenas numa calça de uma só perna,Mergulhava seus pés, um após o outro,No pouco de água suja represada à sarjeta.

Postando-se por completo n’água, purificou-se,Com mãos penitentes, olhar envergonhado para os céus,E, por mais um dia, talvez sem sabê-lo ao certo,Fez o Sinal da Cruz!

Cotia, 26 de dezembro de 2011.

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Rafael Castellar das Neves

Sozinha

Naquele sábado à noite,Ela enviou alguns e-mails,Comentou algumas postagens,Publicou alguns pensamentos,Mas não teve respostas...

Aborrecida por encontrar-se sozinha,Desconectou-se,Tomou um gole d’água,Trocou as roupas,Sentou-se à cama a ler um livro.

Decepcionada, interrompeu a leitura,Deitou-se por completo,Acomodou-se e chorou debaixo das cobertas,Pois não mais se encontrou: estava sozinha de si.

Cotia, 26 de dezembro de 2011.

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Estúpida Essência

Envolvido pela prepotente certeza de uma auto atribuída perfeição própria, que o libertara de qualquer necessidade de compreensão alheia e o fundamenta em uma indubitável verdade de si, garantida sobre quaisquer outras contraversões, ele pôs abaixo todos os que lhe cercavam, não pelo acaso ou conveniência, mas pela exacerbação de si ao exigir o que não lhe era de direito: a perfeição alheia, de acordo com seus próprios padrões.

São Paulo, 18 de dezembro de 2011.

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Rafael Castellar das Neves

Vaga-Lumes

Surgiram-me, às sombras de um grande jardim,Numa fresca noite na montanha,Distante de mim, com a cabeça a esvaziar,Coração a desacelerarE meu amor a me acompanhar, vaga-lumes!

Inesperados, por de mim extintos,Piscando em descompasso,Multiplicando-se, fantasiando o todo,Brincando de esconder-se do meu ver.

Enfeitaram o jardim,Inebriaram minha mente,Pacificaram meu coração,Como há muito não havia.

Tantas foram as lembranças,Não as lembradas, mas as sentidas,Do tempo em que ainda havia,Que, por um instante, um piscar talvez, senti-me novamente o menino, Não aquele que nunca deixei de ser, mas aquele que deixei de sentir.

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Apenas vaga-lumes,Tilintando por estas sombras, como há muito não via,Como há muito não havia,Lumes, vagando, por aí...

São Paulo, 01 de fevereiro de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

Vela Velha

Em um canto escuro qualquer,Sozinho e inconformado,Agoniza em seus últimos relutantes flamejos,A se esquivar do repouso final, em um fundo qualquer,O resto, irreconhecível, do que foi um dia uma vela formosa,Que provocou sorrisos e conforto ao acender,A espantar, vívida, a escuridão daqueles que a cercavam.

São Paulo, 15 de março de 2012.

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Dos Meus Quereres

Dos meus caminhos quero as pedras que lhe dão sentido,Dos inimigos quero a distância, não a derrota que tanto aproximaria,Do amor quero a mão à minha para juntos caminhar.

Das saudades quero as felizes,Dos erros quero as soluções,Da luz quero o lampejo.

Das cores quero a da cinza, fácil colorir e reviver,Das dores quero as cicatrizes a me lembrar de seus porquês,Das desistências quero as oportunidades outras.

Do caminho quero o meio, não o fim nem os cantos,Das crianças quero os sorrisos, que tanto colorem a vida,Pois a inocência quero a das flores, que não se perde ao amadurecer.

São Paulo, 02 de maio de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

Tempos Sentidos

Houve tempos em que, com os sentimentos,De tão considerados e encarnados no cotidiano humano,Justificavam-se até mesmo as mortes matadas e as morridas.

Tempos em que as fraquezasSe definiam pela ignorância e desleixo aos próprios sentimentos,E as forças, méritos da vivência e da guerra pelos seus mais supérfluos sentimentos.

Hoje é tempo em que, os sentimentos em si,Fagulhas primitivas da nossa natureza, quando muito, aprisionados no lar,São a constatação, irrevogável, da fraqueza [própria] que, se considerados,São rifados a preço de desdenhosas gargalhadas.

São Paulo, 22 de junho de 2012.

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Alegrias

São ínfimos, por nossa atual natureza e condição, os verdadeiros momentos de diversão e alegria que salpicam nossas vidas. Não falo daqueles como os das crianças ou aqueles das conversas descontraídas nos corredores; mas os outros, aqueles entre pessoas que se permitem verdadeiramente, baixando dos dentes as armas e entregando-se aos desejos e vontades, inesperados e deliciosamente inusitados, reproduzindo-os, descomedidamente, então sim, como crianças até, não pela inocência, mas pela liberdade – cada vez mais rara no andar da vida.

Andar este que é convenientemente proposto sob uma arrogante forma de maturidade, esperada e cobrada, com a qual a tudo se justifica, a modelos pré-definidos se satisfaz e, por ignorância à vida ou por castidade própria – que dão no mesmo – se põe tudo a perder, estragando não apenas o momento – pois é isso o que é a alegria – mas também o brilho que ainda restara nos olhos de seus poucos e teimosos sujeitos ativos.

Maragogi, 28 de junho de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

O Barco e as Ondas

É com tranquilidade e obstinação,Guiado por experientes mãos calejadas,Que cruza o pequeno barco as ciumentas ondasQue lhe irrompem o caminho.

Ora as enfrenta a insultantes trancos,Ora as desliza sob gentis respingos carinhosos;Mas aderna e afunda quando é dela o desejo.

Maragogi, 28 de junho de 2012.

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De Repente

Foi de repente,Quase sem querer,Que das trevas luzes surgiram,Que do cinza cores se misturam,Que ao nada contornos deram sentidos.

Não num piscar de olhos,Mas num abrir-se.

São Paulo, 23 de agosto de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

Um Novo Fim

Fechou a última das malas com todo seu passado dentro e as colocou num canto da sala. Voltou ao quarto e novamente alisou saudoso o lençol da cama. Foi à cozinha e bebeu lentamente um copo d'água e, pensativo, deixou-o solitário sobre a pia. Cruzou a sala em direção à porta, mas parou antes e voltou-se para trás. Passou os olhos marejados pelo o que havia sido por longo tempo o seu lar.

Na estante ficaram as memórias. Na mesa de canto as solitárias refeições dominicais. No canapé as tristezas e os anseios. Nas gavetas, bem no fundo, os sonhos e os defeitos. Sob o tapete os pecados.

Decidido e desolado, aspirou todos os seus medos para tê-los sempre consigo. Num só golpe se voltou à porta e partiu, deixando tudo para trás. Partiu de si mesmo, para si mesmo; mas não sem deixar no velho aparador um bilhete que lhe diria: “Não devia ter voltado!”.

São Paulo, 13 de setembro de 2012.

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Subida em Espiral

Neste já tão batido eterno retorno da vida,De um finito ir e vir de completos ciclos,Uns desapercebidos, outros ignorados,A se passar por tão conhecidos erros e tão desprezados acertos,Valho-me da oportunidade de tudo rever e de muito refazer,Às vezes melhor, outras nem tanto, mas nunca igual,E ponho-me a subir, círculo a círculo numa espiral oriental,Não por arrogância, mas por ter excomungado um passivo conformismoDas idênticas repetições de círculos sobrepostos,Definidos e impostos por um acaso divino.

Sigo adiante, errante e certeiro, decidido e indeciso,Mas com a única certeza de nunca ser o mesmo,Sem deixar de ser único, até o último fim.

São Paulo, 26 de setembro de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

Enjeitado

Depois de algum dia após dia,Simplesmente sem o mais e sem o menos,Não como punição,Mas pela não mais necessidadeDiante da satisfação própria,Após ter adormecido em lençóis de seda,Acordou jogado numa sarjeta suja,Enjeitado, sem nem uma carta de despedida.

Maragogi, 28 de junho de 2012.

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Da Falsidade

Deve-se, da falsidade, somente as verdades guardar,Fáceis de se notar à constatação da primeira.

Ademais, está nelas a garantia de que foi o todo provido e gerado,Simples e exclusivamente, ludíbrio a garantir a conveniência própria.

Maragogi, 28 de junho de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

Carinho (O Fim)

Nem pelo cansaço e nem pelo cotidiano se fina o carinho,Porque são incansáveis os carinhososE insatisfeitos os carentes;Mas sob o lento sufocar dos interesses mútuosPela crescente supremacia, inquestionável,Àquele que já tem o que um dia precisou.

Maragogi, 28 de junho de 2012.

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Urubus

Os urubus daqui são outros que os de lá.Aqui, como lá, por muito se plaina,Mas aqui o vento é mais forte e rasga baixo.

Plainam aqui com asas curvas, Não estiradas como os lá.

De tão baixo que plainam,Nos de cá uma plumagem branca se vê,Que não se vê nos de lá.

Os urubus daqui são os mesmos dos de lá,Mas cá voam mais baixo do que lá.Cá enfeitam!

Maragogi, 28 de junho de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

Penitência

Já faz algum tempo que estou entrevado nesta maca. É maca sim, cama de hospital não passa de uma maca. Não tem posição que alivie as dores nas costas ou que me dê um pouco de conforto na paciência. Na verdade não faz algum tempo, faz tempo pra caralho! Tanto tempo que nem sei dizer.

Entra dia, sai noite e eu continuo aqui, na mesma situação. Esperando sei lá o quê. Um problema no estômago me jogou aqui, era pra ser temporário, mas sabe como é, a idade ajuda a pesar o corpo e uma coisa leva a outra, um problema some, dois aparecem e por aí vai, estou todo fodido. São tantas coisas que eu passo a ter e deixo de ter que nem sei mais qual é o meu problema atual. Os médicos já não falam mais o pouco que falavam. Se dirigem a mim como se eu fosse um cachorro velho. Vêm, mexem, fuçam, cutucam, viram, apertam, enfiam, espiam, bocejam, anotam e se vão, sem dizer nada. Não me cumprimentam, não me explicam, no máximo um sorrisinho e um tapinha na perna doente. Ou já sarou? Ah, sei lá, não lembro e não importa, tudo dói mesmo. Sei que eles fazem assim comigo, acho que já se acostumaram comigo aqui como se eu fosse parte desta decoração de mau gosto. Eita, povinho pra ter mau gosto! Também não me importo mais em perguntar. Cansei de implorar para conseguir alguma resposta deles. E quando eles resolviam dizer alguma coisa, falavam comigo como se eu fosse um médico. Não entendo merda nenhuma do que eles falam. Então a coisa vai ficando assim: eles vêm, não falam, eu não pergunto e tudo fica bem. Bom, bem para eles que podem ir embora e ter a vidinha deles...

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Desce Mais Uma! – Terceira Rodada

Com os enfermeiros a coisa não é diferente. Só um rapaz baixinho, meio esquisito, que ainda conversa um pouco comigo, às vezes até chega animado com sorriso no rosto e faz alguma piada sem graça, mas que é de boa vontade então eu forço um riso amarelo. Outras vezes ele aproveita e fica um tempo aqui, não comigo, fica no celular dele falando com não sei quem, mas já é uma distração pra mim, sabe? Não pergunto nada sobre a ligação e ele também não diz nada. Fico como se não estivesse ouvindo, mas estou e me divirto um bocado, confesso. Os outros enfermeiros são uns imbecis. Além de não falarem comigo, como os médicos, são grossos e estúpidos na lida. Dão um banho sem-vergonha a cada dois dias, trocam os lençóis uma vez por semana, demoram a trocar meu papagaio, não respondem quando chamo ou quando berro. Quando não consigo segurar, me cago todo na cama, que situação! Demoram pra trazer aquela porcaria de comida e sou obrigado a engoli-la fria, é uma droga. Me regaçam todo, vão embora, não perguntam nem se dói alguma coisa ou se preciso de alguma outra. Meus braços parecem peneiras, estão todos roxos, todos cheios de feridas, pareço um viciado. Esses filhos da puta não conseguem acertar uma merda veia? Só fazem isso, porra!

Ainda tem o meu colega de quarto. Na verdade já se passaram vários por aqui, mas para mim são todos iguais: gemem, vomitam, fedem, reclamam, se curam e se vão. Procuro não conversar muito e nem dar muita atenção. Alguns ficam aqui jogados também, outros têm família que os vem visitar, mas não me importo. Como sempre tem um, então trato como meu colega de quarto e pronto.

Teve um que passou muito mal numa madrugada dessas. Sorte que eu estava meio acordado e fiz um escândalo aqui até aparecer alguém para acudir. Ele não podia falar, não lembro

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Rafael Castellar das Neves

porque, acho que era porque tinha uns tubos enfiados na goela. Mas acho que ele ia bater as botas se eu estivesse dormindo. O pobre infeliz começou a se debater, espumar, virar as bolas dos olhos, tremer, se contorcer... Uma coisa bem feia de se ver... Mas no fim foi embora, então deve ter ficado bem.

Sabe? Aqui o tempo não passa, ele se arrasta e com muita má vontade. Tem um relógio pendurado na parede que tento ao máximo ignorá-lo, mas acho que por isso mesmo acabo sempre olhando para ele. Quando o tempo não passa olhar para um relógio é a pior coisa que se pode fazer, faz com que o tempo se arraste ainda mais lentamente e a irritação tome conta. Mas os olhos são muito traiçoeiros, nos denunciam aos outros e nos mostram aquilo que não queremos ver. Já até joguei a bandeja de comida nele para ver se eu conseguia quebrá-lo, mas é claro que a bandeja nem chegou perto e ganhei umas boas picadas e alguns dias de sono.

Tento um pouco de tudo para me distrair, mas quase nada é suficiente. É raro eu conseguir um jornal velho, uma revista esfarrapada ou uma cruzadinha antiga. Sempre peço, mas ninguém me escuta. Aliás, escutar escuta porque não é possível que todo mundo aqui seja surdo, mas se fazem de surdos. Às vezes o rapazinho esquisito me deixa alguma coisa e eu leio, releio, leio novamente sem me cansar – até cruzadinhas feitas eu já refiz. Sei que é estranho, mas me distrai um pouco e isso alivia o tempo. E o tempo insiste em ficar aqui comigo. Por mais que eu suplique para ele ir, ele fica. Isso vai me irritando, as dores vão contribuindo e aí, meu amigo, eu viro um bicho aqui, até que todo mundo fica de saco cheio e me apaga por alguns dias. Perco a noção do tempo, não desse que não passa, mas do dia da semana, do dia do mês. A gente fica meio zureta com essa falta de referência de calendário, mas por

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outro lado não me incomodo muito, não vou pra lugar nenhum mesmo...

O que ainda não perdi é a lucidez, eu acho. Me lembro de tudo da minha vida, me lembro de tudinho, desde menino até hoje. Isso quem garante é o tempo, não o do calendário, mas aquele que se arrasta. Quando ele vem e fica, ele conversa comigo, me conta tudo aquilo que já vivi. Do início ao fim, do fim ao início, do meio para o começo, de cabeça para baixo, de tudo quanto é jeito. Aí é inevitável, acabo me lembrando até de coisas que acho que nunca mais lembraria. Me lembro de quando eu era pequeno, bem menino, de quando eu era adolescente, de quando fiquei mais moço... Parece que sou o mesmo em todas estas fases, como se hoje eu ainda fosse o mesmo menino, no mesmo corpo. Mas as minhas mãos são as primeiras a me trair com suas rugas, com seus dedos tortos, com essas unhas amarelas e contorcidas. Fico aqui deitado revendo minha vida, imaginando as possibilidades, imaginando como seria se certas coisas fossem feitas, se outras fossem feitas de forma diferentes, são tantas coisas...

Escuta! Escuta! Está escutando? É... Um piano! Não sei de onde vem, deve ser de algum apartamento aqui por perto. Vem sempre nesta hora, no comecinho da noite; mas não todos os dias. Pelo jeito de tocar é alguém que está aprendendo ainda, algumas notas engasgam, outras saem do tom, percebeu? Mas para mim soa como um recital! Isso sim é algo que me dá prazer aqui neste lugar. Parece que o mundo para e se restringe a este espaço, nada mais existe e tudo fica em paz, só o piano, escuta!

Fico analisando minha vida, tentando definir se tive uma boa vida, se fui uma pessoa boa. Fico em dúvida algumas vezes. Na juventude somos explosivos e acabamos fazendo coisas que neste

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Rafael Castellar das Neves

ponto da vida podem ser facilmente questionadas. Penso, analiso, imagino, mas nunca consigo concluir o que foi minha vida. Nestas lembranças, que são tão fortes, chego a sentir de verdade como eu me senti no momento em que elas realmente aconteceram; só que com alguns novos sentimentos que não existiam naquele tempo. Devem ser da idade, a gente fica mais velho e fica mais cuidadoso, ou mais medroso, sei lá. Sei que fico aqui, revendo meus arrependimentos, meus amores, minhas saudades, minhas decepções, minhas alegrias, minhas tristezas e me perguntando: e agora? Não me orgulho de muita coisa que fiz na vida, mas acho que repetiria a maioria delas. Não sou hipócrita e sei que no momento em que estas coisas aconteceram, eu tinha motivos suficientes que me levaram a elas e hoje seria inocência de mais da minha parte querer julgá-las. Tive meus momentos ruins, mas também tive muitos momentos bons e tento manter estes vivos em mim; só que o mal, meu amigo, ele é persistente e insiste em se fazer presente. Às vezes penso, de verdade mesmo, que estou pagando as coisas ruins que fiz. Fora a idade, não tenho outros motivos para estar aqui deste jeito, sempre tive uma saúde de cavalo. Por isso acho que pago algo, ou tudo. Talvez muitas outras coisas que não vejo como ruins podem ter sido ruins a outras pessoas, não sei... Sei que acho que tudo isso aqui é uma penitência, um acerto de contas antes de ir para o outro lado. Sempre me disseram, e agora assino embaixo, que o que aqui se faz e aqui se paga. Nada fica para ser acertado do outro lado.

Digo que isso é algum tipo de acerto de contas não só por estar entrevado aqui, mas por estar entrevado aqui sozinho. Da minha ex-mulher não tenho notícias há muito tempo. Sinto falta da minha filha, ela não vem mais me ver já faz muito tempo também. Sempre tivemos nossas diferenças, mas nunca deixei de amá-la, mas

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ela nunca mais veio... Quase nunca conversamos de verdade, sempre discutimos e isso é ruim, dó, sabe? Me lembro de quando ela era menininha, bem novinha, vestidinha para o primeiro dia de aula, com uma carinha de dúvida e medo. Parecia um anjinho com medo. A levei até a porta da sala de aula, ela me abraçou forte como se não fosse mais me largar e eu disse que tudo ficaria bem e que logo eu voltaria para buscá-la. Ela me deu o sorriso mais lindo que já vi em toda minha vida. É este sorriso, esta imagem que fica na minha cabeça. Queria que ela entrasse por aquela porta. Acho que é isso que fico esperando aqui. Toda vez que entra alguma enfermeira, no primeiro momento, meus olhos me enganam me mostrando a minha filha. Acho que esta frustração é uma das coisas que mais me deixa irritado... É... Não é fácil... Queria que ela entrasse por aquela porta com minha netinha para eu poder vê-las mais uma vez. Tenho tanta saudade!

Olha! Os olhos chegam até a molhar... Se ao menos aquele palerma do meu genro resolvesse alguma coisa, mas só servi pra ele enquanto eu dava dinheiro e não problemas.

É isso, a vida em comum é uma troca constante, cada um tem que levar alguma coisa; quando uma parte não tem mais o que oferecer, a outra se vai. Pode até ser que dinheiro não traga felicidade, mas é ele quem a mantém. Quando perdi o que tinha, perdi também minha mulher que levou minha filha e a envenenou contra mim. Agora nem o palerma vem me ver, ninguém vem me ver.

Estou abandonado e não esquecido, pois alguém está pagando a conta desta espelunca, senão já teriam me jogado na sarjeta. Esquecido, meu amigo, é melhor do que abandonado. Esquecer é involuntário; abandonar é caso pensado, sem se esquecer. Às vezes penso que até Deus já me abandonou, se negando a atender

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meus pedidos de mandar logo aquela desgraçada de preto vir me buscar.

Sobre o Atlântico, 28 de junho de 2012.

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Errar – Presente do Indicativo, Segundo Gramática Conveniente

Eu, quando muito, me enganoTu erras, e muitoEle erra pra cacete, é claroNós erramos, por culpa vossaVós errais descomedidamente, por culpa vossaEles só fazem cagadas, não é?

São Paulo, 12 de novembro de 2012.

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Rafael Castellar das Neves

Carta ao Amigo Infeliz

Caro amigo infeliz,

Foi com muito pesar que terminei de ler a sua carta. É triste saber que não acha na vida mais a felicidade. É triste saber que aborrecido é como tem se encontrado. É triste saber que se encontra estagnado nem mesmo vendo a vida passar. É triste vê-lo inútil diante de si mesmo, resmungando aos outros as suas responsabilidades, pois, acredite amigo, ninguém pode fazer nada por si que não você mesmo.

A sua falta de alegria não é culpa do mundo, aliás, pode até ser; mas a sua continuidade não. Não é culpa do mundo ou de outrem que continua você sem felicidade, sem alegria. É sua! Penso que esteja revoltado ao ler isso, mas precisa se conscientizar. De nada adianta aos outros atribuir esta culpa que é sua.

A felicidade está em todos os lugares, em todos os momentos e em todas as coisas. Difícil de ver, concordo, mas apenas enquanto nosso orgulho e nossas dificuldades diante da própria derrota nos caem como uma névoa escura.

É preciso um força que vem de dentro, um querer verdadeiro de ver novamente, para dissipá-la. Atente os olhos, não com esforço, mas com a simplicidade do coração. Olhe, não procure. Sinta, não busque. Continue, não espere. Inale o mundo, entorpeça-se dele, não o respire. Alargue os passos e não corra. Deixe que o redemoinho de pensamentos aconteça, não se concentre. Ouça tudo como música, não apure. Saboreie de tudo, não tente se saciar. Reflita a si mesmo, não o que poderia e deveria ser (você não

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sabe!). Transforme-se em todas as formas, não assuma uma. Mude, sempre mude, não se adapte, mude, mude porque sim, mude para viver, mude para ser o tudo em sua própria vida, permita-se mudar, não apenas queria, mude! Mude aos poucos, mude aos muitos, mude o que já mudou, mantenha a mudança, mude, de novo!

Procure a simplicidade e a inocência do sorriso de uma criança. Inveje as rugas nos olhares cansados dos mais velhos. Sinta a dor dos rostos tristes que cruzam seu caminho. Ria com os sorrisos que lhe passem. Atravesse a rua em um lugar diferente, mude seu caminho mais vezes. Misture as cores e faça tons novos. Mude seus gostos. Cante! Orgulhe-se do que pode ser, não do que tem. Faça caminhos, pule sobre as pedras, deite os galhos tortos e espinhentos. Deite em um riacho e se refresque. Continue... Foque, desfoque, foque. Despenteie-se. Ria, sem motivo algum. Não consegue? Então ria da ironia de não ter motivo. Admire as formas e estilos diferentes. Admire a você! Mude!

Mas nunca, meu amigo, nunca atribua a culpa da continuidade da sua infelicidade a alguém que não seja você mesmo. Fazer isso não resolve em nada o seu problema, causa estagnação e o torna rabugento, além de magoar aqueles que querem o seu bem, mas não sabem como fazer, pois depende de você. A estes, peça licença e volte sorrindo, abrace-os como nunca! Quanto aos que não se importam, tire-os de sua vida como se tira do talo o espinho lhe espeta a mão ao apanhar uma rosa. Jogue para longe.

A felicidade está por aí, como sempre esteve: espalhada em pequenas doses para que não nos entojemos dela e a tornemos comum, pois o comum é algo novo e gracioso que tanto nos fez bem e depois o colocamos em uma prateleira, ao lado de outros tantos, e o deixamos empoeirar para depois reclamar que, além de inútil, só faz ocupar espaço e nos dar trabalho.

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Rafael Castellar das Neves

Então, meu caro, permita-se, limpe o caminho do que é ruim e mantenha o que o decora. Mas, acima de tudo, acima de tudo mesmo: mude!

Um feliz Natal para você e para os seus e que não próximo ano, mas no próximo minuto, consiga ver um dos pequenos e iluminados momentos da sua vida, e que este pequeno momento lhe despeje uma tímida vontade de sorrir!

Com muito, muito mais,

Seu amigo.

São Paulo, 10 de dezembro de 2012.

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Carta ao Papai Noel

Querido Papai Noel,

Assim como no ano passado, me comportei muito bem neste: não briguei com meu irmãozinho, ele que brigou comigo; não desobedeci a mamãe, apesar de que ela anda muito brava; não respondi para o papai, ele está sempre trabalhando; comi beterrabas, chuchu e espinafre, sem reclamar, mas continuo os achando muito ruins; tirei boas notas, não foram melhores do que as da Aninha, como sempre, mas passei de ano.

Enfim, Papai Noel, como no ano passado, me comportei muito bem, apesar de o senhor não ter trazido a minha bicicletinha no último Natal. Neste ano, eu estava pensando em pedir um videogame, além da bicicletinha que o senhor já me deve; mas acho que isso não vai resolver muito as coisas por aqui, então, Papai Noel, quero combinar com o senhor uma nova lista de presentes. A lista é um pouco grande, mas é porque têm coisas para outras pessoas também. O senhor pode jogar fora a outra lista. Para esta lista, quero que o senhor não se esqueça do meu bom comportamento nestes dois anos e, inclusive, pode considerar já o bom comportamento o do ano que vem e também considerar o que o senhor já me deve, tá?

Aqui está minha nova lista:

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Rafael Castellar das Neves

• Queria que o senhor conversasse com o chefe do papai para ele dar mais dinheiro para o papai e deixá-lo trabalhar menos, porque ele fica muito tempo naquele lugar trabalhando e a mamãe está brava dizendo que não tem dinheiro para nada.

• Queria que o senhor conversasse com a mamãe para ela não ficar mais brava daquele jeito e nem mais chorar no quarto dela como ela faz. Sabe, Papei Noel, o papai falou estes dias que estava cansado de tudo e que queria sumir. Eu não quero que ele vá embora, tenho medo que eles briguem igual meu tio e minha tia que agora moram em casas diferentes. Minha priminha foi embora com minha tia e tenho muita saudade dela. Ah, mas não conta isso para a mamãe, ela não ia gostar de saber que lhe falei isso.

• Queria que o senhor nos ensinasse a fazer as coisas direito. A mamãe sempre fala que ninguém faz nada direito, mas eu faço igualzinho ela fala pra fazer, mas acho que esqueço alguma coisa. O meu pai também não faz nada direito. Ela disse que ele é inútil, mas ainda não sei o que é isso. Fui perguntar pra ela, mas ela não gostou não.

• Queria que o senhor pedisse para as pessoas pararem de brigar. Está todo mundo bravo, Papai Noel. O motorista do ônibus da escola fala cada nome feio para as pessoas dos outros carros e depois sai balançando o ônibus, dá até medo. Acho que o senhor devia lavar a boca dele com sabão. O homem da televisão conta todo dia sobre as pessoas matam

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as outras. Por que eles fazem isso? O Luizinho falou para mim que escutou o pai dele falando que o mundo está acabando e que está tudo está perdido. É verdade, Papai Noel? Eu não quero que o mundo acabe.

• Queria que o senhor curasse as pessoas que estão doentes, como o vovô. É muito ruim, porque já faz tempo que ele está dormindo naquele hospital e não volta para brincar comigo. Ele só dorme e a mamãe falou que é porque ele está doente e quem tem muita gente assim. Queria que ele acordasse logo.

• Queria que minha tia voltasse com minha prima. O papai falou que meu tio está muito triste e que agora bebe bastante. Eu não entendi, mas não queria que ele ficasse triste. Deve ser de saudade, né? Por que eles brigaram, Papai Noel?

• Queria que o senhor conversasse com os presidentes para eles pararem de jogar aqueles foguetes nas pessoas. Machuca! E se alguém morre, Papai Noel? Fala para eles pararem, tá bom?

• Queria que as nuvens fossem sempre branquinhas e que quando chovesse caíssem flores amarelas para todos os lados. Queria que o senhor fizesse um arco-íris bem bonito e bem grande, que passasse do lado do sol e que nunca saísse do

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céu e que dele saísse uma música bem bonita, só para as pessoas ficarem muito felizes todos os dias quando olharem para o céu.

• Queria que o senhor colocasse comida no prato das pessoas que não tem o que comer. Passou na televisão um monte de crianças bem magrinhas que não tem o que comer. Se precisar, pode pegar do meu prato, tá?

• Queria que o senhor levasse uns cobertores que tem aqui em casa para as pessoas que não tem onde morar e passam frio nas ruas. Aqui tem bastante cobertor, nunca usamos todos eles, mas avisa a mamãe, hein?

Papai Noel, se não der para fazer tudo isso, o senhor pode levar alguns brinquedos meus para compensar, eles estão bem cuidados, pode vir ver.

Feliz Natal Papai Noel!

São Paulo, 17 de dezembro de 2012.

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Oração ao Amanhecer

Pela diária luz primeira aos meus olhosQue me garante a certeza da vivência,Valha eu todos os meus dias.

Que desde meu despertares sobressaiamO entusiasmo pelo novo à inanimada rotina adquirida,A ternura de um bem-viver à impertinente maledicência corrosiva,A compreensão verdadeira à imposição intolerante,A pacífica temperança à violenta ignorância,A beleza das coisas aos meus olhos míopes.

Que não me mova a vida, mas que eu a escreva.Que não venha a sorte, mas que eu conquiste meu mundo.Que não me roubem os obstáculos, mas que eu os transpasse levando comigo cicatrizes para nunca os esquecer.Que não me prostre a vida diante da minha infinidade, feito mosca em uma vidraça engordurada de um sufocante apartamento, mas que me permita andar meus caminhos, abrir minhas picadas, encarar minhas encruzilhadas.Que não aja apenas o verbo, mas aja eu com o verdadeiro sentimento de estar vivo.

São Paulo, 04 de fevereiro de 2013.

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À Outra Margem

Que coisa adianta pôr-te cômodo à margem do rioA desejar lamentoso a outra?

Que coisa adianta alimentar um desdém latente,Para conformar os olhos obcecados e o coração inquieto?

O rio não baixará,A correnteza não diminuirá,Barco algum chegará,E a vida passará.

Há de lançar-te a braçadas, por completo,E permitir-te o risco de ao outro lado chegar.

São Paulo, 13 de março de 2013.

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Sopa de Chuchu

Desde que se conhecia por gente, seu Guimarães não gostava de chuchu. Aliás, ele não suportava chuchu. Ele dizia isso para a sua senhora todas as noites dos seus trinta e dois anos de casamento, mas isso nunca a impediu de rir enquanto lhe enfiava com truculência uma colher cheia de sua sopa fervente de chuchu goela abaixo.

O que, no início, foi um inocente “sim meu amor, vou experimentar, mas só desta vez” para satisfazer a vontade da sua jovem esposa, se transformou em uma obrigação cotidiana inquestionável e intransponível. Seu Guimarães, com o tempo, passou a ter medo da esposa, já havia provado o peso de seu braço gordo e o saboreado o fedor de suas palavras escarradas sob ódio.

Seu Guimarães não gostava de chuchu e fazia o possível para passar o dia na rua. Ia às praças, aos bares, às bancas de jornais, aos açougues, a qualquer lugar em que pudesse se encostar e esperar o tempo passar. No fim das tardes, tinha que voltar e isso era suficiente para lhe embrulhar o estômago. Todas as manhãs saia de casa pronto para não mais voltar, mas era o medo que tinha da sua esposa, não a idade, que o desencorajava.

Ele entrava à casa de fininho, tentando não ser notado, mas o enjoo do cheiro da sopa de chuchu que vinha da cozinha lhe causava perturbações intestinais monstruosas que lhe traiam e revelavam sua presença.

Durante trinta e dois anos, seu Guimarães sentou no mesmo lugar da mesa, ele que não gostava de chuchu, enquanto a

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esposa, sem lhe dar opção, enfiava-lhe colheradas fumegantes de sopa de chuchu.

Na semana passada, seu Guimarães foi encontrado morto na cadeira que costumava sentar da sua mesa de jantar. Parece que já havia cinco dias que ele estava morto naquela posição. Os vizinhos ligaram para a polícia por conta do cheiro forte de carne podre e chuchu exalava da casa. Dizem que o corpo do pobre coitado estava todo lambuzado e empanturrado de sopa de chuchu que a mulher continuou enfiando todas as noites goela abaixo do cadáver do marido. Os motivos da morte ainda não estão claros, mas a vizinhança, que conhecia muito bem a rotina do seu Guimarães, conta de tudo um pouco. Uns dizem que ele se enforcou, outros dizem que tomou veneno de rato, outros dizem que ele simplesmente enfartou, há quem diga que ele caiu da escada e bate a cabeça enquanto procurava alguma coisa na prateleira, mas a verdade é que o estômago do seu Guimarães explodiu de tanto comer sopa de chuchu. A esposa estava inconformada e contou que ele estava cansado e que ela o tentava animar com a sopa de chuchu de que ele tanto gostava.

Seu Guimarães não gostava de chuchu e todas as noites dos seus trinta e dois anos de casamento ele comeu sopa de chuchu até explodir. O bairro todo ainda está cheirando a sopa de chuchu e a seu Guimarães, mas logo passa.

São Paulo, 19 de março de 2013.

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Onde Estão as Flores?

Temos carros e internet,Temos conforto e televisão,Temos progresso e comodismo,Temos tudo e tudo nos falta.

Desejamos salvar o mundo,Desejamos limpar o ar e os rios,Desejamos um mundo melhor para os nossos filhos,Mas queremos é limpar a consciência e sairmos ilesos.

Perdemos a cidadania,Perdemos a gentileza e a ternura,Perdemos o senso dos direitos alheios e dos deveres próprios,Hierarquizamos a nossa pluralidade para esquecermos o próximo:Matamos a justiça que tanto clamamos.

Perdemos o vizinho e o amigo,Perdemos o carinho e a paciência,Perdemos a simpatia e a vontade,Ganhamos o egoísmo e a vaidade.

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E as flores, onde estão?Onde estão suas cores para agraciar a vida?Onde estão seus perfumes aliviar a existência?Onde estão suas pencas para despertar a criança?

Alguém ainda lembra-se das flores?

São Paulo, 02 de abril de 2013.

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A Vida Em Duas Vozes

Qualquer inclinação à passividade deve ser excomungada; é uma postura covarde e corrosiva à vida.

I - Ativa

Eu nasci e comi,Eu olhei e sorri,Eu cresci e andei,Eu corri e brinquei,Eu falei e me transformei.

Eu descobri e temi,Eu me apaixonei e chorei,Eu me rebelei e experimentei,Eu me assustei e até xinguei.

Eu me arrepiei e estremeci,Eu perdi e conquistei,Eu me perdi e me reencontrei,Eu gritei e me envergonhei.

Eu comunguei e multipliquei,Eu lutei e falhei,Eu tentei e ganhei,Eu sorri e sempre chorei,Eu provei e me lambuzei.

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Eu caí e me levantei,Eu balancei e me esquivei,Eu aprendi e reconheci,Eu esqueci e nem me lembrei,Eu renasci com os meus dos meus.

Eu revi e antevi,Eu encorajei e ouvi,Eu senti e não me arrependi,Eu cantei e dancei,Eu abracei e beijei.

Eu me espantei quando enruguei,Eu me assustei e aceitei,Eu parti, nem me despedi,Eu descansei e nada mais eu vi,Eu passei e não me arrependi.

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II - Passiva

Eu fui trazido à luz e alimentado,Mostraram-me e me fizeram rir,Eu fui criado e posto a andar,Fizeram-me correr e brincar,Ensinaram-me a falar e me transformaram.

Eu fui instruído e passei a temer,Eu fui envolvido e me fizeram chorar,Rebelaram-se contra mim e me fizeram experimentar,Assustaram-me e me fizeram xingar.

Arrepiaram-me e estremeceram-me,Tomaram de mim e não deixaram conquistar,Desviaram-me e não me mostraram o caminho,Fizeram-me gritar e me envergonharam.

Comungaram o que era meu e me exigiram a multiplicação,Lutaram comigo e me humilharam,Eu fui cercado e derrotado,Eu fui injustiçado e me fizeram chorar,Enfiaram-me goela abaixo e vomitei.

Derrubaram-me e ninguém me levantou,Fui empurrado e passaram rasteira,Ensinaram-me, mas errado,Lembram-me do que me fizeram,Estagnaram-me a ver tudo que se repete [é assim mesmo].

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Rafael Castellar das Neves

Fizeram-me rever tudo de novo,Não me encorajaram e nem me ouviram,Fizeram me sentir para eu me arrepender,Cantaram e dançaram minha derrota,Não fui abraçado e nem beijado.

Ignoraram o quanto me estragaram,Envelheceram-me sem me perguntar,A vida me levou e nem se despediram,Restou-me o descanso da injustiça que vivi,Fui passado e esquecido, jamais lembrado.

São Paulo, 08 de julho de 2013.

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