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Desconstruir o racismo e forjar a utopia revolucionária negra Por Jaime Amparo e Douglas Belchior 20 de novembro 2011 Desconstruir o racismo e forjar a utopia revolucionária negra Jaime Amparo Alves[1] Douglas Belchior[2] No Ano Internacional dos Afrodescendentes, há pouco para ser comemorado sobre a situação de negros e negras no Brasil, a maior nação afrodescendente fora do continente africano. Se houve progresso nos indicadores sociais do país, a precariedade das condições de vida de negros e negras segue sendo o principal empecilho para que o Brasil passe a fazer parte do seleto grupo de nações com alto índice de desenvolvimento humano. Se dividíssemos o país pela linha da cor e acesso às oportunidades, teríamos entre nós “dois Brasis” distintos: uma Noruega e um Congo. Isso equivale a dizer que, passados 123 anos da abolição da escravidão, a população negra continua sendo uma dor de cabeça para as elites do país. O que fazer com essa massa de gente feia, pobre e perversa que enche as favelas, po lui a paisagem urbana e coloca em risco “nossa” segurança e nosso patrimônio? Ainda assim, há uma teimosia negra que torna relevante outra questão: como foi possível que, apesar dos projetos raciais de embranquecimento e de extermínio da população negra, esse grupo chegue ao século XXI como a maioria do povo brasileiro? Como resolver o „problema‟ cultural, religioso, econômico e político, representado pela presença negra no país que se quer “civilizado” e moderno? Quais os principais desafios colocados ao movimento negro e à esquerda, levando em conta os aspectos conjunturais da política brasileira? Nem direitos, nem humanos: o que fazer com os feios, sujos e malvados? A resposta para esta pergunta pode ser encontrada nas políticas de segurança pública que elegem o corpo negro como o depositário absoluto do mal. Ainda está para ser feita a conta de quantos negros e negras morreram (e vão morrer) nos programas de

Desconstruir o Racismo e Forjar a Utopia Revolucionária Negra

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Desconstruir o Racismo e Forjar a Utopia Revolucionária Negra

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  • Desconstruir o racismo e forjar a utopia revolucionria

    negra

    Por Jaime Amparo e Douglas Belchior

    20 de novembro 2011

    Desconstruir o racismo e

    forjar a utopia

    revolucionria negra

    Jaime Amparo Alves[1]

    Douglas Belchior[2]

    No Ano Internacional dos Afrodescendentes, h pouco para ser comemorado

    sobre a situao de negros e negras no Brasil, a maior nao afrodescendente fora do

    continente africano. Se houve progresso nos indicadores sociais do pas, a precariedade

    das condies de vida de negros e negras segue sendo o principal empecilho para que o

    Brasil passe a fazer parte do seleto grupo de naes com alto ndice de desenvolvimento

    humano. Se dividssemos o pas pela linha da cor e acesso s oportunidades, teramos

    entre ns dois Brasis distintos: uma Noruega e um Congo. Isso equivale a dizer que,

    passados 123 anos da abolio da escravido, a populao negra continua sendo uma

    dor de cabea para as elites do pas. O que fazer com essa massa de gente feia, pobre e

    perversa que enche as favelas, polui a paisagem urbana e coloca em risco nossa

    segurana e nosso patrimnio? Ainda assim, h uma teimosia negra que torna relevante

    outra questo: como foi possvel que, apesar dos projetos raciais de embranquecimento

    e de extermnio da populao negra, esse grupo chegue ao sculo XXI como a maioria

    do povo brasileiro? Como resolver o problema cultural, religioso, econmico e

    poltico, representado pela presena negra no pas que se quer civilizado e moderno?

    Quais os principais desafios colocados ao movimento negro e esquerda, levando em

    conta os aspectos conjunturais da poltica brasileira?

    Nem direitos, nem humanos: o que fazer com os feios, sujos e malvados?

    A resposta para esta pergunta pode ser encontrada nas polticas de segurana

    pblica que elegem o corpo negro como o depositrio absoluto do mal. Ainda est para

    ser feita a conta de quantos negros e negras morreram (e vo morrer) nos programas de

    http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn1http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn2http://www.uneafrobrasil.org/thumbs.php?w=500&imagem=images/noticias/197/angela-c3a9-angela.jpg

  • sanitarizaco urbana empreendidos pelos governos federal, estaduais e municipais no

    bojo da preparao para os mega eventos esportivos. A importao de tecnologia

    israelense para a pacificao das geografias urbanas do pas d uma dimenso do que

    vem por a. Massacres, prises em massa, demolies de favelas, desaparecimentos.

    Ainda assim, o espetculo da morte negra ao vivo, pelas cmeras do jornalismo

    criminoso no comove nem suscita reaes da chamada sociedade civil.

    Entre os inmeros exemplos, o leitor poderia fazer um paralelo entre as reaes

    que se seguiram a morte do menino Joo Hlio Fernandes Vieites, arrastado por

    bandidos em um carro no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2007 e a banalizada morte de

    crianas negras como a do menino Juan Moraes, de 11 anos, em junho de 2011, por

    policiais militares do 20 BPM (Mesquita), na Favela Danon, em Nova Iguau, na

    Baixada Fluminense. Qual o valor da vida negra em uma sociedade que se diz

    antirracista mas insiste em produzir padres de vulnerabilidade morte delineados por

    raa e classe social? Se levarmos em conta que entre ns permanece atualizada a

    mxima direitos humanos para quem humano, fica fcil entender que a morte de

    negras e negros no suscita comoo porque este grupo social no tem sido visto nem

    pela lgica dos direitos nem pela lgica do humano; em outras palavras, um grupo que

    carrega um defeito de cor que lhe anula a possibilidade de um reconhecimento pleno e

    pertencimento categoria do humano.

    Temos insistido que impossvel entender a necro-poltica[3] racial brasileira

    sem levar em conta o lugar do corpo negro no projeto da nao verde-amarela. Se por

    um lado o corpo negro consumido na figura da mulata tipo exportao, do homem

    negro hiper-sexual, do carnaval, do futebol, da favela e do candombl como espaos do

    turismo extico, por outro ele alimenta a imaginao racista branca como sinnimo do

    mal: criminoso, perverso, dependente do bolsa-famlia, favelado, fanqueiro,

    promscuo. Haveramos de nos perguntar ento como possvel uma sociedade no

    racista, como nos quer fazer crer a grande mdia brasileira - capitaneada pela Rede

    Globo e pela Revista Veja e providencialmente coordenadas por uma intelectualidade

    treinada a partir das lies de Ali Kamel, Demtrio Magnoli e sua turma - conviver com

    tamanho paradoxo: ao mesmo tempo em que impossvel saber quem negro e quem

    branco no Brasil, negros so as principais vtimas da violncia homicida, a maioria dos

    que apodrecem nas prises, os alvos prediletos do terror policial e a maioria entre os

    empobrecidos e analfabetos. Em outras palavras, se os cnicos insistem em negar a

    existncia do racismo no pas, com um pouco de sensibilidade politica no nos parece

    ser difcil localizar onde esto os negros na hierarquia social brasileira. Os encontros

    mortais dos negros com o aparato policial, por si s deixa nu o argumento de que

    impossvel saber quem negro e quem no no pas da democracia racial. A incrvel

    capacidade da polcia em identificar o corpo negro nas invases de favelas e a insidiosa

    disparidade nos nmeros de homicdios entre a populao jovem de ambas as raas,

    requer no mnimo que o discurso que nega a existncia do racismo se sofistique.

    Racismo em nmeros

    Todos os indicadores sociais apontam para um padro consistente de

    vulnerabilidade social de negras e negros, seja no mercado de trabalho, no acesso

    educao formal, no acesso moradia urbana, terra ou justia. No mercado de

    trabalho, a taxa de desemprego de 10 entre negros e 8% entre os brancos. O Relatrio

    Global sobre a Igualdade no Trabalho, de 2011, aponta que embora seja 45,5% da

    populao ativa, a participao de negros na populao desempregada total de 50,5%.

    http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn3

  • Outro importante indicador, o perfil das 500 maiores empresas do pas, traado pelo

    Instituto Ethos, mostra que quanto maior o nvel hierrquico, menor a probabilidade de

    negros no quadro de direo. Em 2010, negros representavam 5% dos executivos e 13%

    dos gerentes das 500 maiores empresas. A mulher negra segue sendo, para usar a

    expresso de Sueli Carneiro, a ltima da fila depois de ningum. Elas simplesmente

    no existem, representam apenas 0,5% dos cargos de chefia ou gerncia[4]. No geral, as

    mulheres negras ganham em mdia 70% menos do que ganha o homem branco e a

    metade do que ganha o homem negro. Para a pergunta qual o lugar da mulher negra na

    fora de trabalho?, a resposta relativamente simples: o mesmo lugar que ocupava em

    1888 quando da abolio da escravido, ou seja, na cozinha.

    No que diz respeito ao acesso educao formal, embora tenha havido uma

    expanso universal do ensino bsico e mdio, de acordo com o IBGE os negros

    representam 70% dos cerca de 14 milhes de analfabetos do pas. No ensino superior

    no diferente: em 2007, entre a populao branca com mais de 16 anos, 5,6%

    frequentavam o ensino superior, enquanto entre os negros esse percentual era 2,8%. As

    universidades pblicas brasileiras tm feito pouco para mudar este abismo; apesar das

    polticas afirmativas, entre 1997 e 2007 o ingresso de negros com mais de 16 anos

    aumentou apenas 1,8% (de 1 para os atuais 2,8%). O aumento na matrcula de jovens

    negros no ensino superior deveria no ofuscar um aspecto importante aqui: as

    iniciativas negras autnomas, como os pr-vestibulares comunitrios, que tem

    preparado jovens para o seleto vestibular. revelia da comunidade acadmica, tais

    organizaes tm pressionado o governo e os gestores universitrios a adotarem

    polticas de incluso e comeam, ainda que lentamente, mudar a configurao

    monocromtica das universidades pblicas.

    Ainda assim, e apesar da luta, um menino pobre, negro, morador do Capo

    Redondo, na periferia de So Paulo, ou na favela da Mar, no Rio de Janeiro tem

    pouqussimas chances de entrar na USP ou na UFRJ, as universidades-smbolo da

    excluso educacional no pas. Ambas insistem em protelar o debate sobre as aes

    afirmativas e seguem imbatveis, ferindo o princpio republicano da igualdade de

    oportunidades e de direitos que supostamente defendem.

    O acesso terra continua sendo uma prerrogativa dos senhores brancos. A

    chamada bancada ruralista no Congresso Nacional, representada por figuras como

    Ronaldo Caiado e Ktia Abreu o principal, embora no o nico, entrave ao processo

    de afirmao dos direitos das comunidades quilombolas. No lado oposto da trincheira

    esto populaes tradicionais organizadas atravs da Frente Nacional em Defesa dos

    Territrios Quilombolas. O acesso terra urbana tambm continua inaltervel. A oferta

    de crdito imobilirio, uma poltica dos governos Lula/Dilma, desvirtuou a questo

    transformando o solo urbano em mais uma fronteira para a conteno emergencial da

    crise financeira. So as construtoras, e a emergente classe mdia branca, as principais

    beneficirias do Programa Minha Casa Minha Vida. Por outro lado, a populao negra

    segue vivendo majoritariamente em reas urbanas desprovidas de infraestrutura bsica.

    De acordo com a ONU-HABITAT, o Brasil possui 28.9% da sua populao urbana

    vivendo em favelas[5].

    Com os mega-eventos esportivos surgem no pas agora uma nova categoria de

    vtimas: os refugiados internos. So os moradores expulsos do entorno de reas nobres

    das cidades-sede da copa do mundo de 2014 e das olimpadas de 2016. So Paulo, Rio

    de Janeiro e Salvador, se tornaram lugares comuns de incndios inexplicveis de favelas

    http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn4http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn5

  • localizadas em pontos estratgicos da cidade. Assim como as polticas de pacificao

    das geografias problemas, os incndios aparecem como uma tima oportunidade para

    resolver a questo poltica inadivel: abrir a cidade para a circulao de mercadorias e

    de capital.

    O Genocdio da Juventude Negra

    Talvez a morte prematura da juventude negra seja a face mais visvel e mais

    cruel do racismo Brasil. Qual seria a reao se os papis se invertessem e a vitimizao

    de jovens brancos entre 15 e 24 anos fosse trs vezes maior do que entre jovens negros

    vivendo sob a mesma bandeira nacional? Jovens negros so as principais vtimas no

    apenas das politicas oficiais de extermnio, como tambm da violncia homicida em

    geral. Nos ltimos dez anos o pais registrou 522 mil homicdios, o que equivale a cinco

    guerras no Iraque. O Mapa da Violncia 2011, uma publicao conjunta da Unesco e do

    Ministrio da Justia, identificou um padro persistente de vtimas: jovens, moradores

    de reas urbanas precrias e negros. Se o quadro j assustador com o pas ocupando a

    sexta posio mundial no ranking de homicdios entre jovens, no seria exagero afirmar

    que nenhuma outra nao fora do continente africano assassina tantos negros. Em

    alguns estados brasileiros, o padro de vitimizao de jovens negros chega a quase

    2000% em relao aos jovens brancos na mesma faixa etria, como mostram os

    exemplos da Paraba (1.971,2%), Alagoas (1.304,0%) e Bahia (798,5%), os estados

    lderes no assassinato de jovens negros[6].

    Os dados do Ministrio da Justia revelam que, em 2002, em cada grupo de 100

    mil negros, 30 foram assassinados. Esse nmero saltou para 33,6 em 2008; enquanto

    entre os brancos, o nmero de mortos por homicdio, que era de 20,6 por 100 mil, caiu

    para 15,9. Em 2002, morriam proporcionalmente 46% mais negros que brancos. Esse

    percentual cresce de forma preocupante uma vez que salta de 67% para 103%. Constata-

    se que o grau de vitimizao da populao negra alarmante: 103,4% maiores as

    chances de morrer uma pessoa negra, se comparada a uma branca; sendo 127,6% a

    probabilidade de morte de um jovem negro [de 15 a 25 anos] de um branco da mesma

    faixa etria.

    Ao publicar os dados, o governo federal de certa forma tambm j admite a sua

    cumplicidade com a matana. Um estudo conjunto entre a Secretaria Especial dos

    Direitos Humanos, a UNICEF e o Observatrio de Favelas revelam que 33,5 mil jovens

    sero executados no Brasil entre 2006 a 2012. Os estudos apontam que os jovens negros

    tm risco quase trs vezes maior de serem executados em comparao aos brancos. Se

    distribuda a chacina no tempo, os nmeros equivalem a 400 mortes por ms. como se

    todo ms dois avies Air Bus, lotados de jovens de at 18 anos, cassem em algum lugar

    do Brasil, sem nenhum sobrevivente.

    Embora a polcia em si no seja a nica fora letal contra a juventude negra, ela

    certamente uma das mais incisivas. Apesar de ser visto como exagero pelos setores

    conservadores da sociedade, a poltica programada de eliminao de negros pelas forcas

    policiais j admitido por parte imprensa nacional, a exemplo do jornal Correio

    Braziliense, que aps cruzar dados de mortalidade por fora policial do Ministrio da

    Sade e das ocorrncias registradas nas secretarias de Segurana Pblica do Rio de

    Janeiro e So Paulo, revelou que a uma pessoa morta no Brasil pela polcia a cada

    cinco horas e que 141 assassinatos so realizados por agentes do Estado a cada ms.

    http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn6

  • Ainda segundo o estudo, Rio de Janeiro e So Paulo concentram 80% dos assassinatos

    cometidos por policiais no Brasil.

    Segundo a Human Rights Watch, entre 2005 e 2009 as foras policiais de So

    Paulo e Rio de Janeiro juntas assassinaram 11.000 pessoas sob a justificativa legal de

    resistncia seguida de morte ou autos de resistncia. Nos ltimos cinco anos, a

    polcia paulista assassinou mais pessoas (2176) do que toda a polcia sul-africana

    (1623). Embora os nmeros do terror policial sejam inconsistentes e no confiveis, o

    assassinato de jovens negros pela polcia j faz parte do senso-comum. Poupemos o

    leitor com a ladainha de sempre, afinal os ltimos desdobramentos dos programas de

    pacificao urbana, as imagens (no reveladas) de corpos negros lanados aos porcos,

    a poltica do estrebucha at morrer, ou ainda os desaparecimentos cada vez mais

    comuns de pessoas com passagem pela polcia falam por si s.

    Progresso racial? Dois passos atrs, um passo adiante

    Voc no pode enfiar uma faca de nove polegadas nas costas de uma pessoa,

    puxar seis polegadas para fora, e chamar isso de progresso!. A frase de Malcon X,

    expressa nosso ceticismo quanto ideia de progresso racial vendido exausto na

    propaganda poltica do governo federal e ecoado em alguns setores do movimento

    negro. O acesso da populao negra a direitos bsicos de cidadania mais uma

    conquista da luta organizada do que uma concesso do Estado. Dado o lugar histrico

    de no cidados ou cidados de terceira categoria que os negros ocupam no nosso

    regime racializado de cidadania [7], ainda estamos h kilometros dos primeiros passos

    consistentes rumo correo das injustias raciais. A cidadania incompleta reflete a

    abolio inconclusa, uma vez que os direitos bsicos de cidadania do ps-abolio no

    so reparao nem podem mudar, como um passe de mgica, a estrutura perversa da

    sociedade brasileira.

    O racismo cotidiano a que esto submetidos negros e negras poderia ser

    entendido aqui a partir da imagem de uma bola de ao amarrada no calcanhar de algum

    que desesperadamente tenta fugir de um leo faminto. O pas cresce e se consolida na

    esfera internacional, redistribui renda, diminui a taxa de analfabetismo, sobe posies

    em seu IDH, mas mantm sua populao negra em padres de vida semelhantes aos

    paises da frica Subsaariana. O pas vai bem, mas os negros vo mal.

    Talvez o exemplo mais ilustrativo para o leitor entender nosso pessimismo

    quanto a um suposto progresso negro seja o processo que levou aprovao do Estatuto

    da Igualdade Racial, o qual sugestivamente chamamos de Estatuto da Democracia

    Racial. Apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS), o PL do Estatuto da Igualdade

    Racial tramitou no Congresso Nacional por sete anos at ser aprovado pelo presidente

    Lula em 2010. A proposta animou a esperana de o Estado brasileiro finalmente iniciar

    um processo de reparao aos descendentes da escravido no Brasil. No entanto, nos

    difceis anos de debate e enfrentamento aos que resistiam sua aprovao, a proposta

    original sofreu alteraes que esvaziaram o seu sentido reparatrio. Ainda em 2009,

    alteraes feitas na Cmara Federal rebaixaram o Estatuto para uma condio

    autorizativa, alm de no garantir recursos para sua execuo. Com isso, os gestores

    pblicos j no seriam obrigados a coloc-lo em prtica.

    http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn7

  • Ao sancionar o Estatuto da Igualdade Racial Lula inadvertidamente (ou

    ironicamente orientado por uma parcela do movimento negro seduzida pelo Planalto)

    deu novo combustvel ao mito da democracia racial brasileira. Fruto de um acordo

    esprio entre setores do governo e o DEM, representado pelo senador Demstenes

    Torres, relator do projeto e presidente da CCJ no senado, com o Estatuto demos dois

    passos atrs e (se o leitor no quiser ser to pessimista) e um passo adiante. Vazio de

    contedos, o documento selou um acordo de cavalheiros em que ganhou o governo

    sem obrigao de implement-lo e ganhou a oposio, defendendo a ordem branca

    atual.

    O acordo que possibilitou a aprovao do Estatuto simplesmente enterrou as

    reivindicaes histricas e esvaziou a j fragmentada mobilizao poltica do povo

    negro. O texto aprovado excluiu as cotas para negros nas universidades, nos partidos e

    nos servios pblicos; excluiu a garantia do direito a titulao das terras quilombolas;

    excluiu a defesa e o direito a liberdade de prtica das religies de matriz africanas e no

    fez referncia a necessidade de ateno do Estado ao genocdio cometido pelas polticas

    que vitimam a juventude negra. Com a bobagem do melhor um estatuto imperfeito do

    que um estatuto perfeito engavetado, representantes de uma ala do movimento negro

    governista imps a todos ns uma derrota ainda por ser digerida pela militncia negra

    radical e ainda por ser estudada pelas cincias sociais interessadas em entender os

    processos de cooptao e subordinao poltica negra no Brasil da era Lula. Est a, de

    mo beijada, um tpico de pesquisa que o leitor bem poderia abraar.

    esquerda de Karl Marx?

    Tomamos emprestado a Carole Boyce Davies[8] o ttulo acima para uma ltima

    questo ainda pouco explorada sobre o movimento negro e a esquerda brasileira. Por

    que a esquerda brasileira continua refratria a incorporar a dimenso racial como

    estrutura fundante das desigualdades sociais no pas? Tambm, ao passo em que

    reconhecemos o terror estatal do perodo militar e nos colocamos como partcipes na

    luta pela Comisso da Verdade, questionamos: por que as vtimas da ditadura militar - e

    no o estado de exceo permanente em que vivem os negros nas favelas brasileiras

    tem sido o paradigma da luta pelos direitos humanos no Brasil? Hipteses: a) Talvez

    porque, ao contrrio das vtimas da ditadura militar, o assassinato de negras e negros

    no suficientemente poltico para uma luta coletiva contra a violncia estatal e para a

    unificao de bandeiras contra a opresso. b) Porque a morte negra to banal que ela

    no pode ser vista como tragdia. Afinal, o que a ditadura militar para quem a chibata

    a regra e a lei nunca foi sinnimo de proteo? c) Porque a condio negra vista, nos

    olhos da esquerda, como uma consequncia/derivativa, ao invs de parte fundante, do

    capitalismo racial brasileiro.

    As questes acima parecem dspares, mas no so. Elas apontam para uma

    dificuldade histrica da esquerda em entender a condio estrutural dos negros na

    sociedade brasileira. A dificuldade em relacionar a questo racial interpretao dos

    antagonismos de classes parece ser uma virtude do campo progressista, afinal, temos

    razes para acreditar que as elites sempre perceberam e atuaram a partir da ideia de que

    a classe trabalhadora no Brasil se caracteriza pela matriz tnico-racial e que, para

    mant-la dominada, seria necessria a construo de um mito que convencesse o povo

    brasileiro da sua cordialidade. No seria este mesmo discurso reatualizado na acusao

    de que movimento negro fragmenta a luta de classes no Brasil? Aqui est o calcanhar de

    http://www.uneafrobrasil.org/?pg=opiniaonot&id=197#_ftn8

  • Aquiles da nossa esquerda: ela refm de um discurso homogeneizante produzido

    pela Casa Grande.

    Para esvaziar a luta poltica pela emancipao radical numa sociedade

    estruturada a partir das desigualdades de raa, gnero e classe, foi preciso uma

    mentalidade que conformasse a populao em uma nao imaginada como una, uma

    mentalidade que, apesar de explicitamente condenar determinado grupo ao subjugo,

    construsse em torno dessa realidade um aspecto positivo, negasse a especificidade da

    experincia negra, reforasse a boa convivncia, a fraternidade e a compaixo, enfim,

    um ambiente de democracia racial. Afinal, o que o povo brasileiro seno esta deliciosa

    mistura? O que a classe trabalhadora seno esta massa de indivduos sem rosto, sem

    sexo, sem gnero e sem raa?

    Ao negar a existncia do conflito entre brancos e negros, as elites brasileiras

    negam tambm o antagonismo entre as classes. Inversamente, a resposta da esquerda

    direita tem sido negar o antagonismo racial, como se o resgate da identidade negra no

    fosse um elemento revolucionrio, na medida em que a negritude est relacionada a

    pobreza e opresso. Na medida em que h um reconhecimento e um resgate dessa

    identidade racial, ela est carregada tambm de uma identidade de classe no trip

    preto/a-pobre-trabalhador/a. Uma vez que as esquerdas brasileiras hesitam em assumir a

    questo racial ou a assumem como uma consequncia da dominao de classe acaba

    ficando para ns, as vtimas do racismo, a tarefa de oferecer um projeto radical de

    transformao da sociedade que incorpore como suas matrizes as dimenses de raa,

    gnero e classe. A esta a tragdia do racismo brasileiro: ele to sofisticado e brutal

    que fica para as vitimas a responsabilidade no apenas de lutar contra suas

    manifestaes, mas tambm de provar a sua existncia. Se a esquerda sofisticada,

    incisiva e radical em situar a opresso de classe, ela tem uma demncia histrica em

    reconhecer como a categoria raa se constituiu no fundamento da modernidade

    capitalista.

    A condio negra os ltimos da fila depois de ningum pode(ria) ser o

    lugar de onde gestar um projeto de sociedade que questione no apenas o modelo

    capitalista de organizao social, mas tambm o modelo de resistncia a ele porque tal

    modelo tem deixado de fora das suas prioridades as bandeiras de lutas da nossa gente.

    Refundar a esquerda brasileira implicaria, a partir da nossa lgica, colocar em

    perspectiva histrica e poltica o lugar do corpo negro como o ponto de partida para

    entender onde estamos e onde queremos chegar.

    Estaria o movimento negro brasileiro altura de tal desafio? A relao de

    setores do movimento negro com o Estado na era Lula/Dilma e o incmodo onguismo

    que cada vez mais substitui as iniciativas negras lanam dvidas sobre isso. Chegou a

    hora do movimento negro - em sua multiplicidade resgatar a utopia negra, uma utopia

    que resignifique a luta e incorpore as dimenses de raa, gnero, classe como

    convergentes.

    Resgatar identidade racial negra provocar, em conjunto, o resgate e a releitura

    de uma identidade de classe explosiva e revolucionria. Eis a o temor das elites

    brasileiras assombrada com a experincia transgressora povo preto do Haiti. A repousa

    a justificativa para a violncia programada contra negras e negros brasileiros. E repousa

    a tambm a oportunidade de, ao refletir e fazer a autocrtica necessria s organizaes

  • e a nossa postura, fazer nascer uma nova forma de provocar a organizao da classe

    trabalhadora no Brasil.

    Que os detratores das aes afirmativas no nos ouam, mas seria trgico se o

    movimento negro sucumbisse a uma agenda que tivesse como fim ltimo a incluso de

    negras e negros no modelo de sociedade que a est. Isso implicaria aceitar o status

    subalterno negro que o capitalismo racial requer. Faz-se imperativo que enquanto

    lutamos pragmaticamente pelo direito existncia, pelos direitos de cidadania e pela

    afirmao de nossa identidade, no capitulemos de uma utopia revolucionria negra. A

    luta pela liberdade humana incompatvel com o modelo de sociedade em que vivemos.

    [1] Jaime Amparo Alves jornalista e antroplogo [2] Douglas Belchior historiador e professor de historia. Ambos so membros da Uneafro-Brasil

    (www.uneafrobrasil.org)

    [3] Amparo Alves, Jaime. Necropolitica racial: a produo especial da morte na cidade de So Paulo. Revista da ABPN, novembro, 2009.

    [4] Instituto Ethos, O Perfil Social, Racial e de Gnero 2010.

    [5] Ver ONU-HABITAT, Indicadores Urbanos. Disponvel em:

    http://www.unhabitat.org/stats/Default.aspx

    [6] Waiselfisz, Julio Jacob. Mapa da Violncia 2011: os jovens do Brasil. Instituto Sangari, Brasilia.

    [7] Vargas, Joao e Amparo Alves, Jaime. Geographies of Violence: an intersectional approach on police

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