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Descrição, narrativa, dissertação Paulo Costa Galvão INTRODUÇÃO A composição escrita é tarefa difícil para a maioria dos alunos, mesmo àqueles em nível universitário. A razão principal para isto talvez seja a falta de habilidade natural que a maior parte das pessoas apresenta em seus discursos escritos, o que torna o ato de escrever com clareza e concisão, com coerência, coesão, uma experiência difícil para quase todos os estudantes. Porém, com base no pensamento de Raumsol, pseudônimo de González Pecotche, (ver os livros de Logosofia) estamos certos de que os estudantes carentes de habilidade poderão aprender como conquistá-la, e aqueles que ainda não a têm desenvolvida o suficiente poderão evoluir até alcançar uma boa condição. Este trabalho se relaciona às três habilidades básicas do ato de escrever, como abordadas tradicionalmente, a fim de dar aos estudantes pistas úteis para que consigam superar a si mesmos em excelência, no que tange à escrita: descrição, narração, e desenvolvimento de argumentos. Este não é um artigo para especialistas, mas para gente de nível universitário que pretende adquirir melhor controle sobre sua habilidade de comunicar via linguagem escrita.

Descrição, narrativa, dissertação

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Descrição, narrativa,dissertação

Paulo Costa Galvão

INTRODUÇÃOA composição escrita é tarefa difícil para a maioria

dos alunos, mesmo àqueles em nível universitário. Arazão principal para isto talvez seja a falta de habilidadenatural que a maior parte das pessoas apresenta em seusdiscursos escritos, o que torna o ato de escrever comclareza e concisão, com coerência, coesão, umaexperiência difícil para quase todos os estudantes.

Porém, com base no pensamento de Raumsol,pseudônimo de González Pecotche, (ver os livros deLogosofia) estamos certos de que os estudantescarentes de habilidade poderão aprender comoconquistá-la, e aqueles que ainda não a têmdesenvolvida o suficiente poderão evoluir até alcançaruma boa condição.

Este trabalho se relaciona às três habilidades básicasdo ato de escrever, como abordadas tradicionalmente, afim de dar aos estudantes pistas úteis para que consigamsuperar a si mesmos em excelência, no que tange àescrita: descrição, narração, e desenvolvimento deargumentos. Este não é um artigo para especialistas,mas para gente de nível universitário que pretendeadquirir melhor controle sobre sua habilidade decomunicar via linguagem escrita.

O assunto inicial — a descrição — é abordado emgeral, ou seja, não nos importamos com tratardescrições individualizadas, tais como "descreva suacasa", mas colocamos técnicas para descrever gêneros,ou espécies num sentido amplo. Assim, em lugar deensinar aos estudantes "como descrever suas casas",focamos na "melhor técnica para descrever sua casa".Se você conhecer as técnicas para desenvolver uma boadescrição generalizante, estará qualificado para tambémusá-las em casos individuais. Os outros dois pontos —narrativa e dissertação — não podem ser divididos destamaneira, embora os problemas sejam enfrentados damesma forma em todos eles, tanto em composiçõespequenas como em dissertações ou teses, tanto paranarrar eventos simples como para os complicados. Adiferença reside na complexidade do assunto que sedesenvolve, dependendo da natureza das idéias criadas.

Trabalhar com abstrações, tais como "amor" ou"responsabilidade", tem sido sempre ponto vulnerávelna composição escrita. Sendo quase impossíveldescrever nomes abstratos, recorremos a uma visãomultidisciplinar: a mente humana só pode descrever"amor" na medida que ele seja parte de uma narrativa,ou de um argumento. Assim, por exemplo, quando umrapaz age desta ou daquela maneira com relação à suaprópria mãe, isto significa que ele a ama. As mães dão omelhor de si mesmas para suas crianças, sem pedir nadaem retorno, e isto é o amor materno... Colocamos esteponto no limite entre descrever e definir objetos,partilhando ambas as áreas.

As definições, por outro lado, são idéias, ou seja,podem ser divididas em argumentos.

Na verdade, os três aspectos se mesclam, à medidaque penetramos neles.

Quanto à dissertação e à narrativa, assim como nadescrição, veremos as faculdades da mente mais usadaspara realizá-las, e como criar o pensamento que seconcretizará em cada uma delas.

*

1. Como criar um pensamento

Antes de abordar cada aspecto da composiçãoescrita em sua essência, é preciso explicar um conceitoque Raumsol introduziu na cultura atual, destinado amudar por completo, no futuro, toda a abordagem dosfatos humanos: o conceito da diferença entre pensar epensamento. Trata-se de uma verdade simples, e chegaa estarrecer que nenhum pensador — ocidental ouoriental — jamais tenha chegado a ela. É claro, por suaimportância é impossível tratar aqui deste conceito comtoda amplidão, pois seria necessário escrever tratadosde psicologia para desenvolvê-lo. Por toda a obra deRaumsol, porém, há elementos mais que suficientespara o ser humano realizar, finalmente, a função paraque foi criado, partindo sempre do despertar de suaconsciência mediante este conhecimento lapidar.

No livro "Logosofia Ciencia y Método", Raumsolafirma:

Apesar de filósofos e sábios, tantoda antiguidade como das idadesmoderna e contemporânea, haverem

usado a faculdade de pensar, nenhumdeles jamais atribuiu vida própria aospensamentos, nem declarou quepudessem reproduzir-se e ter atividadesdependentes ou independentes davontade do homem.

A Logosofia (...) afirma que ospensamentos são entidades psicológicasque se geram na mente humana, onde sedesenvolvem e ainda alcançam vidaprópria. Ensina a conhecê-los,identificá-los, selecioná-los, e utilizá-loscom lucidez e acerto. Tais entidadespsicológicas animadas se constituem emforças ativas de ordem construtiva apartir do instante em que ficamsubordinadas às diretivas da inteligência,ou seja, que pelo processo de evoluçãoconsciente são submetidas a umarigorosa fiscalização que permita dispordelas a serviço exclusivo da inteligência.

Pelo ensinamento acima, observamos que a) umacoisa é pensar, outra os pensamentos e b) ospensamentos em geral são autônomos e têm vidaprópria. Para um leigo no estudo da cultura criada porRaumsol, isto é difícil de entender, mas ao darmosalguns exemplos simples, veremos se tratar de umconhecimento que nenhum pensador foi capaz dedescobrir, apesar de ser tão óbvio.

Quando um estudante resolve problemas dematemática, está pensando; está usando sua razão, umadas faculdades da inteligência. Um cientista que coleta

dados, com toda paciência, a respeito de algum fatonatural, para induzir uma teoria geral a partir do quecoletou, está usando sua observação combinada com oraciocínio, além de contar também com a intuição. Umestudante de línguas estrangeiras que memoriza umalista de cem ou duzentas palavras, está usando outrafaculdade da inteligência, a memória.

Estes exemplos acima dizem respeito à utilização damente, das faculdades da inteligência. Vejamos agoracomo funcionam os pensamentos em sua fase autônoma— ou seja, pensamentos que têm vida própria e passamde uma mente a outra com extrema facilidade. Umapessoa que caminha pela rua e de repente lhe apareceuma música que fica a repetir-se em sua cabeça não estápensando, mas tem um pensamento autônomo atuandoem seu sistema mental. Um fumante que propõe a simesmo parar de fumar e cria uma série de razões paraisto, está pensando — usando sua função de pensar;mas quando fica um tempo sem o cigarro, vem oimpulso de fumar com uma série de argumentos que lhedão apoio. Não é possível considerar que este fumantetenha dupla personalidade. É o pensamento reagindopara não perder seu domínio sobre a mente quecontrola. Assim também ocorre com o viciado emcorridas de cavalos ou em baralho; com as pessoas quecomem por compulsão, ou que vivem tensas o diainteiro, com os nervos à flor da pele por qualquerproblema...

Os exemplos citados são bem simples. Os cientistasprocuram, inutilmente, a causa destas reações nosneurônios, apenas porque não conhecem quase nada dapsicologia humana. É impossível que o vício no baralhoseja causado por condicionamento físico, uma vez quenão se come baralho; nem é preciso deglutir cavalos decorrida para tornar-se viciado nas corridas do jóquei

clube. Quando uma pessoa boceja num determinadolugar, outras a imitam; quando em um ônibus alguémdispara a tossir, outros também começam a tossir. Estessão exemplos simples de pensamentos que passam deuma mente a outra, e esta passagem eles realizam "comextrema facilidade", conforme o ensinamento deRaumsol.

Também existem os pensamentos que controlam amente humana o dia inteiro, tais como a impaciência, atimidez, a indisciplina mental. Muitos estudantes têmum pensamento de incapacidade que lhes atrapalha orendimento escolar ou acadêmico. Este pensamento éextremamente nocivo. Há pessoas cuja atuação na vidaé diminuída ou até anulada pela timidez, apesar de teremgrande capacidade. Alguns tentam superar a preguiçamas não o conseguem, porque o pensamento dominasuas mentes quase por completo. A maioria dosestudantes tenta se concentrar no que lêem ou precisamaprender, mas perdem um tempo considerável, pois aindisciplina mental os leva a desviar a atenção para milcoisas diferentes ao mesmo tempo...

Algum leitor pode estar se perguntando se ospensamentos seriam como animais extra-físicos, e aresposta é que eles são realmente entidades com vidaprópria, portanto, têm energia imaterial, e usam ainteligência do homem e da mulher para cumprir seusobjetivos. Para comprová-lo, basta observar ocomportamento de uma pessoa que chega sempreatrasada aos compromissos, ou o de outra que tem omau hábito de atirar lixo na rua. São hábitos nocivosque se tornaram pensamentos dominantes, portanto,controlam as mentes das pessoas. Por exemplo: umsujeito que mora a 60 km de um local e outro que moraa cinco minutos dali marcam um encontro para as novehoras. O primeiro cultivou o pensamento da

pontualidade; o segundo é brasileiro típico. O que moraa 60 km do lugar do encontro chegará antes da hora, ooutro chegará atrasado — sempre dando uma série dedesculpas para sua impontualidade...

Como se pode tocar nos pensamentos, se sãoentidades incorpóreas com vida própria? — perguntarácom razão algum dos leitores. Raumsol dá a respostaem seu livro "Logosofia, Ciencia y Metodo":

Os pensamentos, apesar desua imaterialidade, são tão visíveise tangíveis como se fossem denatureza corpórea, já que, se a umser ou objeto desta últimamanifestação é possível vê-locom os olhos e palpá-lo com asmãos físicas, pode-se ver ospensamentos com os olhos dainteligência e palpá-los com asmãos do entendimento, capazesde comprovar plenamente suarealidade subjetiva.

Quando Raumsol criou seu método — comobjetivo de levar o ser humano a conhecer a si mesmoe evoluir conscientemente, — visou também ensinar aconhecer todas as deficiências e defeitos que nos criamproblemas diariamente; identificar, selecionar estespensamentos chamados deficiências, ou os que sãodefeitos. Alguns têm de ser controlados e postos aserviço da inteligência, como a rebeldia, por exemplo;outros devem ser literalmente eliminados — tal é o caso

do egoísmo, dos engendros instintivos que induzem àperversidade, do rancor, etc. Entretanto o método deRaumsol também ensina a criar pensamentos que virãoa servir a nossos propósitos de aperfeiçoamento, desuperação tanto exterior como interna.

Os pensamentos são criados a partir de um quererforte (chamado "anelo" em espanhol, a língua em queRaumsol escrevia), de uma inquietude qualquer (comoa necessidade de saber, por exemplo), de uma aspiração,uma necessidade ou um sentimento. Uma dasfaculdades da inteligência, a principal — chamadafaculdade de pensar — cria este propósito. Porexemplo, este trabalho que o leitor ora consulta nasceudo propósito de levar aos alunos uma contribuição nosentido de transmitir o que sei a respeito da técnica deescrever, com base nos ensinamentos de Raumsol, omestre que me ensinou a aperfeiçar o uso da minhainteligência. Igualmente, uma pessoa que planejaescrever um trabalho sobre "a revolução literária deGuimarães Rosa" ou "consequências da corrupção naprodutividade anual do Brasil", primeiro cria umpropósito. Assim, também, o pensamento da melhoriaeconômica, o de estudar para assumir uma profissão,são todos propósitos surgidos ora de uma necessidade,ora de uma aspiração, etc.

Em nosso caso, estamos estudando como se usa afunção de pensar — ou seja, o uso de todas asfaculdades da inteligência — para produzir trabalhos dedescrição, narração ou dissertação em forma escrita.Cada uma dessas criações é um pensamento que se vaigerar e fazer crescer usando a inteligência. Não é ociosorepetir: uma coisa é o uso da função de pensar, outrasão os pensamentos. Uma pessoa que entra em umônibus, senta-se e observa sua mente devaneando,aquele entra-e-sai de pensamentos que se movimentam

livremente pelo sistema mental — esta pessoa não estápensando; são os pensamentos que transitam por seuespaço mental sem nenhum controle.

Vamos seguir adiante no processo de criar umpensamento, após gerá-lo como propósito. A maioriados propósitos não chega a se concretizar em realizaçãopor vários motivos, sendo quase todos estes obstáculospensamentos negativos que interferem na realização. Ométodo de Raumsol ensina a superar estas causas defracasso. No caso que tratamos, para que o propósito serealize, ele precisa ganhar espaço suficiente no sistemamental, amadurecer e realizar-se, passando do mundomental ao mundo físico. É necessário que estepropósito se reproduza como pensamento, para ganharvida na realidade material.

Reproduzir-se quer dizer "produzir-se outra vez."Como é possível a um pensamento produzir a si mesmonovamente?

Ensina Raumsol a esse respeito:

A reprodução de pensamentos namente se realiza por uma necessidadenatural e em obediência à lei deconservação.

Suponhamos que a aspiração decultivar uma ciência, uma arte ou umaprofissão tenha chegado a concretizar-seali em um pensamento propósito. Essepensamento, para poder conservar empermanente ação o motivo central que oalenta, necessita reproduzir-se, e para

isto procriará novos pensamentos, umasvezes por próprio e espontâneoconcurso, outras pelo concurso dospensamentos que sustentam a ciência, aarte ou a profissão eleitas.

Ao culminarem os esforços na etapafinal de seu desenvolvimento, oconhecimento adquirido será o frutohereditário do pensamento propósitoque deu origem aos pensamentosconhecimentos, dos quais a inteligênciase servirá doravante para desenvolversuas atividades no campocorrespondente à especialidadecultivada.

O expressado será suficiente paraque se compreenda que não basta criarum propósito, mas que é forçoso dotá-lo de tudo quanto possa contribuir a seudesenvolvimento até sua total execução.

A reprodução de pensamentosaumentará, assim, a energia mental quedemanda a realização de uma aspiração epermitirá ao pensamento-propósitoabarcar uma zona da mente cada vezmais extensa.

Vejamos como um pensamento deve se reproduzirna criação do trabalho dissertativo.

Ao criar a idéia que será o ponto central dadissertação, o autor do texto irá buscar em sua mentetudo o que conhece a respeito do tema eleito.

Suponhamos que esse tema seja "o maior responsávelpela violência urbana é o consumidor de drogas ilícitas."O primeiro movimento será o de buscar na mente tudoque se possui de conhecimentos a respeito da violênciaurbana, uma vez que não se pode escrever sobre aquiloque não se conhece. À medida que o pensamento seforma por este meio, ele irá se reproduzindo, dia apósdia, até ganhar uma definição boa o suficiente para setornar trabalho de composição escrita.

Entretanto apenas o conhecimento ou aexperiência pessoal podem não ser bastante paracompor o texto. Nesse caso, o pensamento deverá sereproduzir usando o conhecimento alheio, que sebuscará em livros ou em conversas com pessoas queentendem do assunto. Este é um problema central parase conceituar a criação. Como ninguém conhece amente, seu funcionamento para criar pensamentos, noambiente acadêmico se acredita, de modo às vezesbastante grosseiro, que criar pensamentos é segregar ummonte de teorias novidadeiras, que as pessoas irãorepetir durante certo tempo, até que outras assubstituam. por esta crença, fruto da ignorância do queé a inteligência e os pensamentos, e da mecânica dosistema mental, os estudantes são obrigados a fazercitações aos montes, a granel, em seus trabalhos; sãoproibidos de escrever em primeira pessoa, obrigados aproduzir apenas coisas "que todo mundo já conhece",pois se pensa que criar pensamentos é inventar teoriasnovas, e como os estudantes ainda não conhecem tudoque os teóricos figuraram, eles são incompetentes paracriar.

Porém o estudante, ao compor seu trabalho escrito,está criando um pensamento em sua mente. Estepensamento, à medida que se reproduz usando o que oestudante foi buscar em livros, ou nas anotações em

classe, no conselho de professores, tomará forma namente de quem o criou como pensamento-próprio.Amadurecido, finalmente, este propósito é propriedadedo criador do trabalho. Portanto, obrigar um estudantea fazer o triste papel de macaco de imitação,alinhavando citações, além de inibir a capacidade mentalde quem é vítima dessa espécie de amesquinhamento dainteligência alheia, viola a melhor tradição doindividualismo ocidental, introduz um mecanismo deglorificação do anonimato — como se aindaestivéssemos na Idade Média — e constrange a mentede quem produz o trabalho escrito. Alguns professoreslevam tão a sério a necessidade, em moda atualmente,de tolher a liberdade de pensar do estudante, que dizemser obrigatório "escrever só o que todo mundo já sabe."Em outras palavras, o estudante não vale pelo quepensa, mas pelo que repete. Talvez esse método sejafruto da crença de que o ser humano é apenas ummacaco evoluído, o que faria de nossos estudantes umbando de macacos de imitação.

Seja como for, criar um pensamento não significainventar teorias, dizer coisas originais ou que seja. Istoé apenas uma faceta dos poderes que possui a mentehumana. Criar um pensamento é segregar e re-segregara substância mental que, ao amadurecer, poderá passardo mundo mental para o mundo físico onde se tornarárealidade.

2. Descrição

Que é descrever algo? Uma resposta direta esimples seria: "Descrever é colocar as características deum mineral, um vegetal, animal, ser humano ou de umapaisagem."

É uma definição do que seria "descrever", masainda não nos diz como nossa mente trabalha quandoestá criando uma descrição.

Ponto importante a colocar deve ser o uso daobservação. De acordo com o pensador argentinoGonzález Pecotche (Raumsol), as faculdades da nossamente, falando de modo bem simples, são: "pensar,razão, julgar, intuição, entender, observar, imaginar,memória, predizer, etc., as quais são assistidas poroutras faculdades que devemos chamar de acessórias,cujo trabalho é discernir, refletir, combinar, conceber,etc. Todas estas faculdades formam a inteligência. ALogosofia denominou a esta última "faculdade cume",porque abarca todas as faculdades da inteligênciajuntas."

Tais poderes intelectuais podem trabalhar de modoindependente ou como um sistema, interconectados ouinterpendentes. A observação, que é a capacidademental básica usada para realizar boas descrições, podeoperar sozinha, porém de ordinário ela se liga àmemória, à razão, ou mesmo à faculdade de pensar —esta última é a responsável pela criação de pensamentos.De acordo com os conhecimentos de GonzálezPecotche, a faculdade de pensar é o poder intelectualmais importante que temos em nossas mentes.

Para descrever um objeto, podemos simplesmentecolocar suas propriedades, ou seja, suas características,sem comentários adicionais. Caso se arranje estadescrição de modo organizado, se estará usando a razãocombinada com a observação, uma vez que a razão é afaculdade encarregada de organizar os pensamentos emnossa mente. Pode-se também enfeitar este objetomental, deixando que a imaginação interfira. Além disto,suponhamos que a descrição contenha expressões de

entusiasmo, ou sensações como o amor, o ódio, rancor,depressão. Neste caso, a pessoa pode permitir, ou não,que participe no processo a sensibilidade, ou seja, asreações sensíveis, ou o instinto, que comanda as reaçõespassionais. Pode-se também descrever um objetousando o poder de combinar as sutilezas que o formam,mas pressupondo que será preciso realizá-lo dememória. Então aparecem a memória e a observaçãooperando em conjunto.

Como se pode ver, a Logosofia nos sugere quetodos deveríamos aprender como manejar as faculdadesda nossa inteligência, e também as da nossasensibilidade com plena consciência.

2.a Como a razão contribui paraorganizar observações?

A razão é absolutamente fria. Por isto, o discursoacadêmico é em geral considerado monótono, oumesmo chato. Entretanto quando aparece a necessidadede arrumar os pensamentos em nossas mentes, a razãoé a faculdade chamada a atuar.

Suponhamos que temos necessidade de explicar aum marciano o significado da palavra "cadeira". Nossoalienígena é capaz de falar inglês, mas ele não sabe o queé uma cadeira — em outras palavras, até hoje ele nuncaviu este objeto. Como começar a explicação?

A interferência da razão nos diz que se deve dividira descrição em partes organizadas de acordo com ahierarquia, ou com seu grau de importância. Vejamos,então: o que é mais importante numa cadeira?

Neste caso: o propósito do objeto, para que ele éusado, esta é a característica mais distinta, a maisimportante qualidade ou propriedade dele.

Assim, seria necessário começar dizendo a nossoamigo marciano que "uma cadeira é um objeto parasentar."

Esta forma de pensar é o que eu particularmentechamo de "raciocínio por exclusão." Se dissermos aalguém que "uma maçã é algo para se comer", se estaráexcluindo toda outra ação humana, à exceção do ato decomer, das funções de uma maçã. Assim, se estarádizendo que uma maçã NÃO É algo que se usa paraescrever, ou para viajar por via aérea, ou para cortarmadeira — mas algo para comer, e só para isto. Logo,maçãs são um tipo de comida. Você também pode dizerque "uma maçã é uma fruta". O resultado seria omesmo, no que tange ao "raciocínio por exclusão."

Então nosso marciano já sabe que "uma cadeira éalgo que os humanos usam para sentar." E o que maisé importante numa cadeira? Seu peso? A cor? Omaterial que entrou em sua composição?

Como estamos descrevendo a cadeira comogeneralização, em forma de conceito comum a todas ascadeiras — ou seja, sem especificar nenhuma cadeiraem particular, — a cor, o material com que é feita estaou aquela cadeira, a altura, nada disso é importante.Devemos focar nossa atenção simplesmente noconceito de cadeira e descrevê-lo.

A maioria dos estudantes confunde as duasproposições, bem como mistura características da maiorimportância com meros acidentes, o que torna suasdescrições verdadeiras bagunças. Se usarmos

corretamente a faculdade da razão em tais casos, iremosperceber que descrever é algo muito fácil de realizar. Énecessário, em primeiro lugar, pensar em tornar aprópria descrição o mais simples possível para a pessoaque está ouvindo ou lendo esta descrição.

Boas descrições são simples; e a faculdade quesimplifica a transmissão do conhecimento é a razão. Épor isto que o conhecimento científico, quandotransmitido à mente do público em forma depensamentos simples, se torna rápido e leve, às vezesaté passível de entender sem esforço.

Que é mais importante em uma cadeira, além doseu objetivo? As porções mais importantes que acompõem. Tais seções devem ser colocadas juntas demodo coordenado, caso contrário o propósito dacadeira perderá sua função — e teremos uma confusãono lugar dele.

Que partes da cadeira, então, funcionam como umaintegração de componentes, um todo? O encosto, oassento, e o suporte das quatro pernas. Tais são aspartes que, unidas ao propósito do objeto,transformariam tais elementos numa cadeira.

Observe que, se você mencionar só uma destaspartes componentes, tal como "uma cadeira tem quatropernas", perderá a vantagem, previamente adquirida, deusar o "raciocínio por exclusão". Cavalos, cães, touros,ursos, todos são objetos de quatro pernas. Assim, épreciso manter-se conectado ao objetivo prévio —fazer nosso amigo marciano entender para que "nãoserve" uma cadeira, varrendo da idéia quaisquerpropósitos de seu conjunto que não sejam os

adequados. Para descrever algo bem, é precisotransmitir a impressão de unidade.

No caso da cadeira, se você disser ao marciano queé um objeto colorido (todo objeto tem cor), que é feitade ferro (prédios, locomotivas, facas, espadas são feitasde ferro), que é confeccionada com madeira (muitacoisa é feita de madeira), você vai perder o foco.Permaneça atento para este ponto: "Preciso raciocinarde tal forma que meu raciocínio deverá excluir todos osoutros objetos da minha descrição, e o que permanecerserá reunido numa unidade." Esta junção decomponentes (propósito mais os principaisconstituintes) é o que realiza o objeto, e uma boadescrição deve considerar este fato.

2.b Qual a diferença entre descrever edefinir?

Vamos continuar usando a organização, feita porGonzález Pecotche, das faculdades que compõemnossa inteligência. Existe uma grande diferença entre omodo como pensamos ao definir algo, e o modo comousamos nossa inteligência para descrever esse mesmoobjeto. Para descrever o "homem" de modo superficial,— neste caso, "homem" seria a pessoa humana — nãoprecisamos de nada além da nossa observação sozinha.Um homem tem cabeça, um tronco, dois membrossuperiores, dois membros inferiores. No final dosmembros inferiores há as mãos, na ponta dos membrosinferiores, os pés. O homem é bípede.

Se necessitássemos ir além da mera descrição desuperfície, porém, e captar a essência do "homem", éclaro que o objeto se tornaria muito mais complexo dedefinir. Cadeiras são bem mais simples, é claro. Qual é

o propósito de um homem? O que existe dentro de suacabeça? Como o homem vê?...

Seriam necessárias muitas horas para descrevermosum homem, a despeito de nossa técnica de descrever ascoisas numa forma bem chã, de modo simples eobjetivo, porque o "homem" é o ser mais sofisticadoque existe neste planeta. Acabamos de atingir a fronteiraentre as descrições e as definições.

Que é, então, uma definição?

A fim de descrever algo, a faculdade intelectualbásica da nossa inteligência é a observação. Para definir,a faculdade do intelecto mais fundamental é a... razão!

Por que a razão? Simplesmente porque a razão iráestimular as outras faculdades para sintetizarem oobjeto "homem" numa definição que abarcará todas assuas características básicas. Com apoio nisso, entendoque a melhor definição curta para a essência do"homem" é a colocada por Aristóteles algo como há2.500 anos atrás: "O homem é um animal racional." Ouseja, há um lado animal na constituição dessa estruturatotal a que denominamos "homem", mas algo maisexiste nela, algo que os animais não possuem: a porçãoracional. Podemos assumir que, por "racional",Aristóteles quis dizer "o homem é composto por umsistema mental, um sistema sensível, consciência,atenção, livre-arbítrio, e alguns destes órgãos existemapenas de modo rudimentar nos animais, enquantooutros nem existem."

De qualquer forma, as definições se esclarecem emnossas mentes por graus de compreensão, desde quesão conceitos.

Uma definição é um conceito. Ele pode sercomposto por outros conceitos, mas é primariamenteuma abstração. As definições são conceitos puros,enquanto as descrições referem-se a uma realidade quese coloca também fora de nossas mentes.

Grosso modo, descrever é dizer como é um objeto,enquanto definir é dizer o que ele é.

2.c Como descrever objetos abstratos?

Acreditamos em absoluto que não é possíveldescrever objetos abstratos de modo direto — porexemplo, ódio ou responsabilidade, amor, saudade, etc.

Coisas abstratas são noções, impressões, emoções,idéias que não têm correspondência no mundo material,etc. Eles não se referem a gêneros ou a espécies — queseriam possívels de transformar em descrições. Porexemplo, "mamífero" é uma idéia que remete a qualqueranimal que pertença a um gênero, e é possível que vocêpossa descrevê-la. Mas como compor uma descrição dopróprio signo "gênero"? É uma palavra que só se prestaa definições, mas não a ser descrita. Tentar descreverabstrações seria o mesmo que preencher um vazio,tentar converter um objeto puramente mental em algoda realidade material, e tal tentativa resultaria numa açãoimpossível de realizar.

Descrever saudade, digamos, é algo totalmenteimpossível. Saudade é uma palavra que só existe emportuguês, e mesmo em nossa língua não há sinônimopara ela. "Saudade" é um sentimento, mas pode sertambém uma sensação pura, como quando se usa apalavra em sentenças como "sinto saudade daquelesbons tempos." Neste caso, a pessoa não quer dizer"quero de volta aqueles bons tempos", mas apenas sente

uma nostalgia da felicidade que se curtia então. Pode-sesentir saudade de um objeto, de um tempo, um espaço,duma situação, duma pessoa, ou de animais, vegetais,minerais, duma pedra, de um ambiente... e comodescrever tudo isso?

Alguns traduzem saudade como "sentir falta de",mas você pode dizer "sinto falta da minha caneta",embora isto não signifique que você sente saudade dela.Você apenas sente falta da sua caneta para escreveralguma coisa, talvez porque sua ponta seja melhor..."Saudade" pressupõe uma conexão pessoal entre você eo objeto com o qual o sentimento vai uni-lo através darecordação. Há o caso contrário, em que uma pessoasente saudade de um objeto sem sentir falta dele. Poreexemplo, se você diz "eu sinto saudade da bicicleta queeu tinha quando era menino", isto não significa quevocê sente falta da sua bicicleta, pois hoje em dia vocênem anda mais de bicicleta. E, além dela ser hoje algoinútil, é impossível você andar numa bicicleta decriança. Neste último caso, "saudade" significa umarecordação da felicidade que se teve no passado, quandocriança, brincando com uma bicicleta de garoto, umaexperiência que só se pode ter de volta por via darecordação, mas na realidade física é algo perdido parasempre.

Voltando ao tema do conceito de definição:

Se dissermos "O amor é o poder de fertilização doUniverso", ou, com Gonzalez Pecotche, que o poder desustentação do Universo é o amor de Deus, isto seriauma definição, não uma descrição do amor. Pode-seconcordar ou não com estes conceitos, mas éimpossível não os conderarmos definições. Definiçõesnão são pensamentos verdadeiros de antemão,aceitáveis pelo ponto de vista de quem os ouve ou lê,

ou até mesmo sensatos. A definição dos nazistas para"raça" não passa de um complexo de idéias insanas. Naverdade, a maior parte da nossa comunicação diáriarepousa sobre descrições e definições que existem apriori em nossas mentes. É o que o filósofo EmanuelKant chamou "intuição a priori". Se não existissem as"intuições a priori" (de acordo com o conceito kantianode intuição) seria impossível realizarmos quaisquer atosde comunicação com nosso semelhante. O que Kantchama de "intuição", os linguistas chamam de"significado". Pareticularmente, prefiro o conceito doslinguistas, pois a intuição é uma faculdade da mente, nãouma simples junção do significante com o significadode um signo.

Em forma de nota, esclareço queminha conceituação das faculdades damente se baseia no conhecimento deRaumsol (Gonzalez Pecotche) sobre ainteligência e os pensamentos. O sistemamental é composto pela mente de umlado, com suas faculdades, tais comopensar, imaginar, intuir, raciocinar, ou amemória, a observação, etc; do outrolado estão os pensamentos, que sãoentidades autônomas, têm vida própria epodem passar de uma mente a outra comextrema facilidade. Para melhoresclarecimento sobre o que significaintuir no pensamento de GonzalezPecotche, ver "Imaginación—Intuición", artigo publicado na coletânea"Articulos y Publicaciones".

Quanto ao conceito de significado — suponhamosa frase: "Sua paixão por aquela garota era tão intensa,que ele quase perdeu toda sua fortuna para satisfazerseus caprichos." A palavra seu pressupões conhecimentodo que seja posse; paixão é uma palavra abstratacomplicadíssima, e a usamos em geral com significadomuito vago e superficial, não em sua acepção profunda,para nos comunicar com as pessoas; a inclusão de intensana frase também pressupõe uma idéia feita de antemãosobre o que significa intensidade.

Algumas pessoas acham que cada ser humano temsua realidade pessoal própria, e que tais visõesindividuais do universo são totalmente separadas dasoutras, ou seja, cada pessoa tem um diferente ponto devista sobre todas as coisas, e estas diferentes noçõesseparadas da realidade não se conectam entre si,havendo portanto bilhões de seres humanos combilhões de realidades individuais diferentes, que irãolevar consigo até o final de seus dias em sua constituiçãopsicológica. Se isto fosse verdade, não haveria o signolinguístico que nos permite a comunicação com nossossemelhantes, e seríamos ou esquizofrênicos todos, outeríamos que nos comunicar projetando imagensmentais na realidade, como faziam nossos ancestraisantes de aprenderem a falar.

Também à guisa de nota: GonzalezPecotche nos ensina que o primeiroofício da humanidade foi o que emespanhol se denomina "oficio mudo".Hoje em dia existe uma reminiscência

deste ofício, na brincadeira, praticadapelas crianças ou pelos jovens, de umapessoa fazer mímica para exprimir algo,enquanto as outras tentam entender oque a mímica quer dizer. A primeiralinguagem da humanidade foi esta, poisos primeiros homens ainda não tinham afala. Nas escolas onde se usa o métodode Raumsol para ensinar crianças apensar, os meninos são estimulados abrincar de "oficio mudo" paradesenvolver a habilidade de exprimirpensamentos e para tornar maispoderosa a observação das sutilezas dalinguagem humana.

Descrever pode também traduzir a expressão "dizerCOMO algo é", enquanto por outro lado definir podeser "dizer O QUE é este algo." É claro, para tentardescrever uma cadeira a fim de informar a alguém OQUE ela é, você terá que discriminar sobre seu usotambém (para quê), ou sua descrição será incompleta.Entretanto de certa forma "como" ou "o quê" são osobjetos, define a diferença entre descrições e definições.

Um último comentário: discriminarsobre O QUÊ e PARA QUÊ é umacoisa ou um conceito não é tão fácilcomo parece. O ensinamento deGonzalez Pecotche neste área abrangetodo o início de seu trabalho a respeito

do conhecimento de si mesmo e doprocesso de evolução consciente.

Para conhecer a si mesmo, é precisoconhecer a fundo a diferença entrepensar e pensamento dentro do própriosistema mental, bem como a diferençaentre sentir e sentimento. Esteconhecimento pressupõe a decisão deexaminar TODOS os conceitos (ou asdefinições) que existem em nossa mente— de modo paulatino, é claro, pois istoé impossível de fazer duma só vez. Àmedida que se vai conhecendo overdadeiro mecanismo do sistemamental e do sistema sensível, as leis queregem esse mecanismo também sãoconhecidas, e tudo que contradiz estasleis é preconceito. Uma pessoa com amente pejada de preconceitosideológicos, religiosos, pessoais, etc.,jamais consegue conhecer a si mesma,uma vez que não tem condição deentender o funcionamento de seussistemas mental e sensível, nem deorganizá-los, por causa dos preconceitosque travam, desviam, distorcem ou atédestroem a possibilidade de haver estefuncionamento.

2.d Algo sobre essência e acidente

Por que estas noções são importantes para realizarboas descrições?

Tem havido ampla discussão filosófica a respeitodos conceitos de essência e acidente. Uma vez que esteé só um artigo, não podemos mergulhar profundamenteno assunto, mas tratar apenas o básico dele. Com intuitode informar os estudantes sobre as abordagenscontroversas à definição de "homem", e ilustrá-lo sobrequão disputada tem sido a questão das definições,vamos nos fixar numa tentativa rápída de entender osconceitos de essência e acidente no pensamento deAristóteles. De acordo com Aristóteles, a essência dohomem precede sua existência. Assim, definir o que um"homem" é se torna sinônimo de identificar a essência dohomem. Tal essência existe anteriormente a nossonascimento como membros da humanidade. Destamaneira, somos todos "animais racionais", e esse énosso estado permanente, não importando o queacreditamos ter sido o método pelo qual tal essência nostenha sido dada: por um deus religioso, por um deusnão-religioso, pela natureza, pelas leis da Criação, etc.Conforme Aristóteles, não existe livre-arbítrio emrelação à escolha da essência do homem, pois ela nosfoi concedida antes do nascimento, simplesmenteporque somos todos indivíduos humanos, e não nos épossível escolher de outra forma. Em conformidade aopensamento de Aristóteles, a essência do homem defineo que somos, e se a mudarmos, nossa humanidadedesaparece.

Com base nisto, as definições referem-se a porçõesessenciais da coisa que descrevemos ou definimos,enquanto a descrição poderia até se tornar maiscomplexa que uma definição. De acordo com adefinição de Karl Marx, a religião é o ópio do povo. Mascomo descrever uma religião? Há algo mais a sercolocado, porém: se você fizer uma cadeira em pedaços,e usar sua essência material (madeira, por exemplo) parafazer molduras, esta essência material — a madeira —

permanecerá igual a si mesma, embora a descrição ou adefinição do que virá como consequência da destruiçãoda cadeira para fazer molduras mude por completo. Nasequência, teremos que descrever ou definir umamoldura, e não uma cadeira, apesar do materialempregado ser o mesmo. Mais tarde, poderíamosdesfazer a moldura e usar sua essência material parafazer uma caixa, e assim por diante.

Assim, a essência de um objeto individualizado ésua estrutura como um todo, não apenas a porçãoaparente desta. Tudo que faz parte da composição deuma coisa individualizada (esta cadeira, não cadeiras emgeral), pertence à sua essência; neste caso, isso torna asdescrições um pouco mais difíceis de realizar do quepoderia parecer num primeiro momento. Por outrolado, a descrição de um objeto não-individualizado, umsubstantivo de espécie (comum a todos os gêneros,como televisão ou geladeira) deve ignorar sua essênciamaterial, que é um acidente na medida desta descrição.Como se pode ver, o assunto relativo a descrições edefinições é algo mais complexo do que se poderiasupor numa consideração inicial.

Voltemos rapidamente à definição de "homem".Aristóteles define os seres humanos como tendo umaessência anterior a tudo o mais. A essência do "homem"é anterior à sua existência. Isto não é difícil de entender:séculos antes de nascer, eu era um "animal racional".Séculos antes de nascer um cavalo, ele era umquadrúpede. A essência de um objeto ou de um ser vivoexiste em forma de arquétipo muito antes dele existir.Um pouco adiante, veremos como, em relação ao serhumano, isto não é totalmente verdadeiro, quandoanalisarmos o pensamento de González Pecotche a esserespeito.

No século XX, os filósofos existencialistaspensaram o oposto de Aristóteles: os humanos não têmuma essência a priori, porque a existência humanaprecede sua essência. Para os existencialistas, quando oshumanos chegam a este mundo eles só existem, simplese livremente, e isto quer dizer que sua humanidade nãoé dada por antecipado. No momento em que nós,humanos, chegamos a este mundo, somos nada maisque uma forma existente. O que define nossa essência éa liberdade para escolher o que vamos FAZER.Adquire-se uma essência imediatamente após a primeiraescolha. Assim, "livre-arbítrio" é questão de selecionaralgo em conexão com os valores do mundo. Nossaescolha pode variar de algo inocente até a mais radicalde todas as opções: podemos escolher apenas existir, enão ter essência. Foi o que os "Beatniks" fizeram nosanos cinquenta: os crimes horrendos do passadorecente, a Segunda Guerra Mundial, era tudo evidência,para a juventude do pós-guerra, que o mundo era tãobaixo quanto pode ser o mais asqueroso dos objetos.Cerca de cinquenta milhões de pessoas forammassacradas na Segunda Guerra Mundial, e os horroresmais extremos haviam sido perpetrados recentementecontra a humanidade. A "Beat Generation" sentiu que avida nesse mundo não tem significado em absoluto, euma sociedade que permite a carnificina massiva quesabemos ter ocorrido no século XX não merece quevivamos nela. Influenciados pelo Zen-Budismo e pelaFilosofia Existencialista, grupos de jovenssimplesmente decidiram escolher não fazer nada nesteplaneta — em outras palavras, existir apenas, e nuncapenetrar no mundo exceto para realizar o necessário nosentido de praticar algum meio de sobrevivência.Chamou-se a isto, mais tarde, "sociedade alternativa". Apalavra "Beat" é uma gíria americana que significa"consumido", exausto, abatido ao extremo. Os Beatles

(Beat+suffix) se inspiraram nos Beatniks para criar onome de seu grupo de rock'n roll.

Para transmitir uma idéia do quão complexo podeser o assunto colocado acima — para a filosofiacomum, — vamos ler um comentário inserido naWikipedia sobre esta concepção da existência anterior àessência (traduzido por mim para o português):

A existência precede a essência

Uma proposição central doexistentialismo é que a existênciaprecede a essência, e isto significa que avida real de um indivíduo é o queconstitui sua "essência", em vez deexistir uma essência pre-determinadaque define o que é ser humano. Apesarde ter sido Sartre quem explicitamentecunhou a frase, noções similares podemser achadas no pensamento de muitosfilósofos existencialistas, de Kierkegaarda Heidegger.

[...] uma pessoa se define apenas (1)na medida em que age e (2) em que éresponsável por suas ações. Porexemplo, alguém que age cruelmentecom relação a seus semelhantes édefinido como um ser cruel. Além disso,através da crueldade esta pessoa se tornaresponsável por sua nova identidade(uma pessoa cruel). Isto se opõe à culpa

que em geral se coloca nos genes, ouseja, na "natureza humana".

Como Sartre coloca a questão, emseu livro "O Existentialismo é umHumanismo": "o homem primeiro detudo existe, encontra a si mesmo, surgepara o mundo — e só depois vai sedefinir." É claro, o aspecto maispositivo, terapêutico disto, estáimplicado: você pode escolher de mododiferente, e ser bom em vez de ser umapessoa cruel. Aqui também fica bemclaro que a partir do momento em que ohomem pode escolher ser cruel ou serbom, ele não é nenhuma dessas coisasessencialmente.

Vamos comparar estes dois conceitos — a idéiaaristotélica e a existencialista sobre o que é a essênciahumana. Pode-se definir uma coisa, à maneiraaristotélica, mesmo anos, séculos ou milênios antes delaassumir existência. Se um casal humano tiver duascrianças nos próximos anos, seus filhos projetadosserão "animais racionais" longo tempo antes da mulherficar grávida. Este é o conceito de essência porAristóteles: a essência é algo que precede a existência.Por tal razão, podemos definir um cavalo ou uma estrelaantes deles adquirirem existência. A definição é umanoção mental sobre algum ser material, moral, mentalou espiritual; eis porque se pode definir qualquer coisaem particular, tenha ou não aquele objeto já adquiridoexistência. Basta conhecermos o gênero ou a espécie àqual ele pertencerá quando passar a existir.

No oposto, os filósofos existencialistas acham queum ser humano não pode ser definido em absoluto,dado que nossa essência — se escolhermos ter uma —só pode acontecer depois, e nunca antes, de assumirmosa existência. De acordo com os existencialistas, ohomem é o único ser da natureza que pode escolher oque ele será, e essa escolha é condicionada por nossasações. Assim, uma pessoa que pretende adquirir umaessência deve AGIR, sendo tal ação uma questão deescolha; além disto, qualquer escolha trará totalresponsabilidade à pessoa que a realizou. De certaforma, com relação à culpa o filósofo existencialista émais severo ainda que os religiosos cristãos. Ninguémpode culpar os "genes" ou as "doenças" por seu ato malescolhido. A pessoa é sempre livre para escolher, nãoimportando as circunstâncias. E assim que tiver feito aescolha, é obrigada a assumir as consequências, semnenhuma excusa em absoluto.

Não importando o que pensemos a respeito dosconceitos existencialistas mencionados aqui, eles nosfazem entender que volta e meia as definições são muitodifíceis de realizar, em especial as que se referem aobjetos complexos. Mas voltemos ao Aristóteles. Deacordo com o estagirita, a palavra essencial, apesar deseu significado muito complexo em relação a coisassofisticadas, deve ser oposta à palavra acidental, e se apessoa for descrever uma coisa, deve separar suaessência dos acidentes de sua composição. A cor de umacadeira, sua aparência, o material de que foi feita, otamanho do objeto — é tudo acidente, com respeito àdescrição daquele objeto como um gênero. Assim, nãodevemos simplificar muito os conceitos, mesmoquando os empregando na comunicação comum dodia-a-dia, pois quando alguém decide mover-se umpouco adiante, adentrando a natureza das coisas, vai

descobrir que uma quantidade considerável de reflexãoé necessária para iluminar o objeto abordado.

Vamos agora ao que nos ensina GonzalezPecoteche (Raumsol) a respeito dessa questãocontroversa da definição do que é um ser humano.Embora os existencialistas estejam certos quando dizemque o ser humano se faz, eles erram ao afirmar que estaconstrução de si mesmo ocorre na escolha, na opçãopara agir desta ou daquela maneira. Uma pessoa quepratica — no campo experimental que é sua própriavida, seu mundo mental, — alguém que pratica osconceitos de sistema mental, função de pensar,pensamentos, ensinados por Raumsol, sabe que o serhumano só existe de forma bastante embrionária, e osque ultrapassaram os estágios primitivos do que se podeconsiderar um autêntico ser humano são muito poucos.

Vejamos um sujeito que acorda na segunda-feira demanhã de mau humor, e sai para trabalhar reclamandoda vida. No trajeto, se impacienta por causa dosproblemas do trânsito, e chega ao trabalho algonervoso. Enquanto trabalha, tem de enfrentar uma sériede problemas causados por suas deficiênciaspsicológicas, e as causas de seus problemas costumaatribuir a terceiros, o que lhe ocasiona uma série dedesavenças com seus colegas ou semelhantes em geral.Desordem, indisciplina mental (por exemplo, o hábitode deixar tudo pra depois), impontualidade, asexplosões temperamentais pelos contratempos epercalços diários, vão minando o bom humor docidadão ainda mais. Se é empregado, a grosseria dochefe termina por acabar de vez com sua boa vontade.Esbarra na irritação dos colegas, e estes na sua própriairritação. Às vezes comete erros por causa do hábito defazer tudo de modo automático. Aparte os momentosde bonança, que costumam ser poucos, na maior parte

do tempo a amargura o leva a sonhar com o prêmio daloteria, a aposentadoria, as férias, a cerveja no final desemana... De volta para casa, ainda tem de enfrentarmais um problema, causado pela esposa, que prometeuao filho uma vingança do pai quando este chegar, poiso moleque fez meia dúzia de travessuras pesadasdurante o dia. Como se não bastassem as irritações forade casa, o cidadão ainda tem de fazer o papel do deusrancoroso que vai às forras contra seus próprios filhos...

Vejamos o que nos diz Gonzalez Pecotche arespeito da vida inconsciente, em seu livro "Curso deIniciación Logosófica":

Controle consciente dsexperiências pessoais

44. No comum, o homem não éconsciente, na maior parte do dia, do quepensa e faz ou deixa de fazer, ou seja,não está atento a tudo que vaiacontecendo dentro dele. Distrai-se comsuma facilidade ou buscadesnecessariamente motivos dedistração. Por outro lado, descuida denão poucas das coisas que deberiammerecer sua atenção, essa atençãoconsciente que inclui o estudo de cadasituação, a análise detalhada dascircunstâncias que a criaram, aresponsabilidade que lhe incumbe emcada caso, etc. Há os que trabalham compressa, como se fugissem deles mesmos,e os que o fazem com despreocupadalentidão. Teme-se o esforço que

demanda o ato de pensar, amiúde seconfia na sorte para solucionar osproblemas. Aparte os momentos deócio, ou de descanso, breves ouprolongados, a maioria busca amenizarao máximo seu tempo comentretenimentos e diversões. Queconsciência pode por de manifesto umser que vive na forma descrita? Estapergunta leva a definir o caráter ambíguode seu comportamento, que reflete nãosó ausência de domínio, mas tambémfalta de sentido com respeito à direçãoque se deve dar à vida.

A colocação dos existencialistas é bastante ingênua.Uma pessoa que desconhece a atuação dospensamentos é escrava deles na maior parte do tempo."De hoje em diante vou agir de modo diferente",promete-se quem passa por alguma experiência difícil,mas logo depois se pega atuando como sempre. Umestudante que sofre de falta de vontade crônica tenta seratento, concentrar-se nos estudos, mas não consegue.

Os cientistas prevêem, para meados do século XXI,que a doença mais comum da humanidade será adepressão crônica. Eu, particularmente, o autor destetrabalho, pressinto e principalmente intuo para esteséculo uma situação de sofrimento extremo, que irá seagravando até que a humanidade será forçada a acordarde seu sonho milenar.

Este "sonho milenar" a que me refiro é fácil deentender. Há dois ou três mil anos, o ser humanoandava a cavalo, e para viajar cem quilômetros

demorava às vezes um mês inteiro. Hoje se vai à Lua, epara uma pessoa do Rio se comunicar com alguém noJapão, basta mandar um email ou dar um telefonema.No aspecto espiritual, porém, continuamos andando acavalo. A diferença absurda entre evolução material eestancamento moral e espiritual levou alguns aconsiderar que progresso não existe, mas isto é fruto domaterialismo dos cientistas, que julgam ser possívelcausar progresso moral e espiritual pela melhoria dosmeios tecnológicos — o que, diga-se, é o cúmulo daingenuidade, ou da ignorância.

Basta olhar ao redor para constatar que o serhumano, como entidade física, material, alcançou umprogreso estupendo, mas como ser moral e espiritualcontinua num estágio próximo — o que é pior: bempróximo — do que era há dois ou três mil anos. Osconceitos relativos à moral e ao espírito continuamquase os mesmos daqueles tempos, enquanto namedicina, na engenharia, no comércio — enfim, naciência e na tecnologia em geral o progresso foiestupendo...

Portanto é bastante ingênuo afirmar que o serhumano se faz pelas escolhas, porque estas escolhasestão condicionadas aos pensamentos que escravizam amente deste ser humano embrionário, que mal existecomo entidade consciente. Que espécie de escolhaconsciente pode fazer um sujeito que busca realizar algomas, presa de uma impaciência crônica, tenta "queimaretapas" o tempo todo e acaba desistindo de seu projeto?Um sujeito tímido, com a mente bloqueada pelopensamento chamado por Raumsol de "cortedad", vaiver suas escolhas influenciadas todo o tempo pelocomplexo de inferioridade, e as fará por impulsos depensamentos que ele mal conhece ou que desconheceem absoluto. Se assumir uma essência humana fosse tão

fácil como dizem os existencialistas, não haveria tantofracasso no mundo...

Este, enfim, é o objetivo da ciência criada porRaumsol, chamada por ele de "Logosofia": levar o serhumano a superar tudo que existir dentro dele mesmoe for passível de superação, criando assim uma novaindividualidade, muito mais ampla, mais livre do que aanterior. Isto é o que a Logosofia chama "conhecimentode si mesmo", ou seja, quem cria a si mesmo conhece oque criou, e ainda ajuda o semelhante a fazer o mesmo,mas pela única via possível: o conhecimento.

Dizer que, neste mundo onde vivemos hoje,controlado por forças cada vez mais materialistas e,muitas vezes, malignas, é possível fazer todas asescolhas por vontade própria, é demonstrar um enormedistanciamento da realidade que se vive. Até mesmo emcoisas mínimas se observa que isto é impossível. Grandeparte dos jovens brasileiros saem de casa e assumemuma profissão que não é a de suas escolhas, porqueprecisam com urgência se livrar do ambiente infernalque vivem em seus lares, com pais intolerantes,desrespeitosos, cuja frequente alteração notemperamento faz os filhos acharem que viver na rua émelhor do que viver em casa... Como um jovem nestasituação vai ter liberdade para fazer escolhasprofissionais refletidas, conscientes, se é pressionadopor uma realidade tão adversa?

Parece, os filósofos nunca perderam o hábitomental de apoiar suas teorias na lógica do raciocíniopelo raciocínio, divorciado da realidade humana euniversal... Mas, nós todos sabemos, a maior parte dasteorias não passa mesmo de manipulação de palavras...

Fechando esta parte de meu raciocíunio, indo maisa fundo no conceito, podemos observar a diferençaenorme entre uma definição pura e simples, que éestática, e um conceito dinâmico, que despertaria nãoapenas as faculdades da mente, mas também asensibilidade. Quando mente e sensibilidade atuamreunidas, pode ocorrer a ativação do princípioconsciente. Para que o conceito modifique a vidaindividual, é preciso que ele passe a integrar aconsciência. Vejamos o que nos diz Raumsol a esserespeito, na sua conferência "La razón y elconocimiento":

As simples definições só servempara acalmar uma inquietudemomentânea. As perguntas que oinvestigador expressar devem serelaboradas por ele com plenaconsciência do valor que haverá derepresentar para sua vida a explicaçãodas mesmas. E quando observardiariamente as coisas, os fatos, e em seusestudos meditar sobre cada um dosaspectos que lhe interesam vivamente,deve tratar sempre que tudo quantorecolher como explicação de suasinterrogações seja transladado ao planodo permanente, do eterno; que essaexplicação, uma vez recolhida eabsorvida, não permaneça como trasteinútil dentro da mente, mas que esteja alipara servir-se dela cada vez que ascircunstâncias o requeiram, pois só assimé como a vida ganha corpo e se faz

possível sua expansão sempre maisampla, tanto interna comoexternamente.

*

3. Narrativa

Narrativa

s.f. Relato, exposição de um fato, deum acontecimento; narração. / Conto,novela.

Narração

s.f. Ato ou efeito de narrar. /Exposição escrita ou verbal de um fato. /Obra literária em que se relata umacontecimento ou uma seqüência deacontecimentos e que se caracteriza pelapresença de personagens; narrativa;história; conto. / Exercício escolar queconsiste em redigir uma composição dogênero narrativo.

Fonte:http://www.dicionariodoaurelio.com/

Inferindo do que acabamos de ler no texto acima, overbo "narrar" significa apenas "contar uma história".

Enquanto as descrições requerem principalmente afaculdade da observação para serem realizadas, asnarrativas se apóiam em duas faculdades básicas:memória e imaginação. Nenhuma das duas podedispensar a razão, se têm por objetivo organizar ospensamentos que integram o que será narrado; é claro,além de ser impossível ignorar a faculdade de pensar nopercurso, pois ela criará o pensamento central danarração a ser criada.

Pode-se narrar algo que aconteceu no mundo real.Neste caso, a faculdade da memória será chamada àatuação. Se a narrativa é inventada, ou seja, se a histórianunca ocorreu na realidade, deve-se usar a imaginaçãopara figurá-la.

Em ambos os casos, a faculdade de pensar deverápatrocinar a reprodução do pensamento central danarrativa. Ele poderá, inclusive, reproduzir-se empensamentos secundários, como nas novelas detelevisão ou nos romances: há uma trama central evárias secundárias. Se a narrativa é feita de memória, opensamento central também terá de se enriquecer atéaparecer com amadurecimento satisfatório. Estareprodução do pensamento deverá ser feita com muitocuidado. Existem casos de pessoas que, ao tentaremcriar uma narrativa ou uma dissertação, vão colocandotudo que lhes assoma à mente na composição escrita, eacabam não criando nada, pois a faculdade de pensarnão está bem treinada para selecionar corretamente ospensamentos a integrar a reprodução da idéia básica, eo trabalho acaba como uma grande árvore cujos galhosdeveriam ter sido podados muito tempo atrás. Existem

ainda os que tomam um caminho, depois mudam depensamento ao sabor do que lhes aparece na mente.Estes acabam chegando sempre ao ponto de partida...sem nunca sair dele.

As duas definições apresentadas (memória eimaginação) levam nossas mentes a conectar-se comuma terceira dimensão, que tem causado problemas aosfilósofos, desde que os homens começaram a refletirsobre o significado do mundo em que vivem, bemcomo de si próprios: a dimensão na qual devemosconceituar a palavra "verdade".

Como foi afirmado, embora alguns digam que cadapessoa tem seu ponto de vista sobre a realidade, e quetais visões são excludentes, é impossível concordar comuma idéia tão extremista, a menos que consideremos ahumanidade como sendo formada por um conjunto deesquizofrênicos. Não é possível percorrer o conceito deverdade neste artigo, mas vamos com certeza abordaralgo básico dele.

Em primeiro lugar, se a verdade não existisse, seriaimpossível aos cientistas descobrirem as leis danatureza. As pessoas usam tais descobertas para criartecnologia, e esta simples evidência demonstra que háuma miríade de formas da verdade que podemosdesencavar em nossa busca permanente peloconhecimento. A própria existência da humanidade émanifestação da verdade — pois se algo tem vida nomundo real, deve necessariamente ter também umarealidade, e "real" é uma das palavras quereconhecemos, pelo senso comum, como estando emconexão com a idéia de verdade. Desta forma,considerando que nós existimos, tal existência se provapor nossa consciência de nós mesmos e do mundo — anão ser, é claro, que acreditemos em filosofias niilistas.

Se este é o caso, a única verdade que a pessoa vai aceitarcomo evidente é a idéia abstrata de que nada é real — oque não tem a ver conosco, felizmente...

Entretanto o problema permanece aberto àdiscussão: como confiar na memória humana? Este éum imbróglio que tem confundido as mentes no campodo Direito, da História, Economia, e em muitosoutros...

Suponhamos que ontem de manhã vimos umacidente de trânsito. Cinco outras pessoas também oviram. Uma pessoa observou o evento do terraço de umapartamento, outra estava enchendo o tanque de seucarro numa bomba de gasolina, uma terceira passava deônibus, a quarta testemunha — um sujeito míope quetinha acabado de perder os óculos — estava de pépróximo a você, e um quinto cidadão a se apresentarcomo testemunha dirigia um carro na vizinhançaquando ocorreu a colisão.

Muitos pensadores ocidentais utilizariam o fato deque cada testemunha observou a batida de um ângulodiferente como prova de que as noções de realidadevariam de pessoa a pessoa, e de que não existeuniversalidade em nossas apreensões do mundo real.Voltemos a González Pecotche, porém: nossopensador argentino afirmaria que tais ângulos não sãoexclusivos, mas complementares. Basta uma pessoasumarizar estas seis ou sete diversas versões da mesmarealidade, expurgar sua síntese de excessos imaginários,e terá uma versão excelente, e unificada, do querealmente aconteceu antes, durante e após a ocorrência.

A memória humana está sujeita à influência daimaginação, das paixões, de pensamentos distorcidos,mas também de nossos melhores pensamentos e

sentimentos — tais como o amor, a compaixão, etc.Assim, como confiar em nossa memória, e convencer anós mesmos de que estamos afirmando a absolutaexpressão da verdade?

Em minha opinião, o fato de diferentes versões damesma realidade poderem excluir umas às outras, nãoimportando quão falsas e pretensiosas elas possam ser,nos diz que a questão da verdade deveria ser substituídapor outra abordagem, algo menos perigosa, e um poucomais segura: devemos usar nossas memórias tão livresde preconceitos quanto for possível, e o mais próximoque puderem estar da verdade a respeito do fatoacontecido. Neste caso, a memória deve contar com aajuda da observação, da razão, da intuição, da faculdadede pensar; e a memória deve tentar com seriedadediminuir a influência da imaginação, e manter estaúltima sob controle nos limites de seu território.

O conceito de Pecotche sobre a imaginação é bemdiferente do comum. No livro "Exegesis Logosofica"(p. 41), Pecotche escreveu:

Deve-se lidar com a imaginação comextremo cuidado.

Nas mentes dos homens comuns,observamos que a imaginação promoveconfusão e erros, porque produz umahipertrofia das imagens que apresentacomo reais. É usual confiar demais nestafaculdade mental, e em seguida culpar asconsequências a outros fatores, nunca àprópria imaginação. Por isto a Logosofiaadverte sobre a influência da imaginação,

a qual é necessário neutralizar. Aimaginação inclina as pessoas ao fácil;acredita que vai a todo lugar, mas nuncaaparece em lugar nenhum; a imaginaçãose inebria com a ficção, e raramenteconsegue realizar um projeto, dentre osmil e um que arquiteta. A imaginação àsvezes consegue levar a cabo um projeto,mas sempre com enormes dificuldades.A imaginação acredita, e faz a pessoaacreditar, que tudo é fácil de realizar. Talmanobra diminui a força da vontade, queno final acaba anulada.

No processo para realizar quaisquerprojetos, especialmente aqueles que sãodifíceis de realizar, é o trabalho dainteligência que deve prevalecer. Ainteligência move e ativa a vontade emdireção ao sucesso de seu trabalho.Esquecer tal realidade é o equivalente apreferir uma inferioridade que as gentesnão podem nem devem desejar.

Pode-se inferir, do texto acima, que o conceito queRaumsol avança a respeito da imaginação é diferente daidéia comum que as pessoas armaram sobre estafaculdade mental. Se não usamos as outras faculdadespara controlar a imaginação, ela pode causar sériosproblemas à nossa vida. As pessoas que vão começarum negócio e imaginam que o futuro só tem cores azuis,e logo depois descobrem que a vida é uma luta dura, emgeral mergulham em pensamentos depressivos. Porquea maioria das pessoas têm uma imaginaçãodescontrolada, é muito fácil aos líderes religiosos ou

políticos empurrarem seus seguidores a situaçõesdifíceis, ou mesmo a guerras que matam milhões. Emperspectiva menos trágica, os demagogos convencemseus aderidos a lhes dar dinheiro em troca de benefíciosdivinos, como se Deus fosse um mesquinhocomerciante. A imaginação também aumenta o volumedos nossos problemas, tornando-os maiores do que sãona realidade...

Porém Pecotche não nos está dizendo paraexcluirmos a imaginação do nosso cenário mental; istoseria uma repetição do que a maioria das ideologiasreligiosas propõem — no caso das religiões, elasprescrevem abolir a razão. A imaginação não devetrabalhar sozinha, desde que empurra as pessoas aforada realidade, quando elas permitem que o absolutismodas "imagens em ação" aconteça. A questão é bemsimples, de acordo com Pecotche: a imaginação sóexerce função criadora quando não se aparta darealidade. Portanto, é preciso conhecer a realidade antesde usar a imaginação para criar algo. É o que fazemtodos os grandes escritores através da mimesis. Oconceito aristotélico pode ser usado aqui para esclarecera idéia de Raumsol: mimesis não é imitatio, masconhecimento da realidade. A imaginação transformaeste conhecimento em imagens, e neste caso ela exercefunção criadora.

Convido o leitor a observar como Guimarães Rosa,um dos dez maiores escritores do mundo em todos ostempos, nos conta seu modo de criar:

[...] À Buriti (NOITES DOSERTÃO), por exemplo, quase inteira"assisti", em 1948, num sonho duasnoites repetido. "Conversa de bois"(SAGARANA), recebi-a, em amanhecerde sábado, substituindo-se a penosaversão diversa, apenas também sobreviagem de carro-de-bois e que euconsiderava como definitiva ao ir dormirna sexta. "A terceira margem do rio"(PRIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me narua, em inspiração pronta e brusca, tão"de fora" que, instintivamente, levanteias mãos para "pegá-la," como se fosseuma bola vinda ao gol e eu o goleiro."Campo geral" (MANUELZÃO EMIGUILIM) foi caindo já feita no papel,quando eu brincava com a máquina, porpreguiça e receio de começar de fato umconto, para o qual só soubesse ummenino morador à borda da mata e duasou três caçadas de tamanduás e tatus;entretanto, logo me moveu e apertou, e,chegada ao fim, espantou-me a simetriae ligação de suas partes. O tema de "Orecado do morro" (NOURUBUQUAQUÁ, NO PINHÉM) seformou aos poucos, em 1950, noestrangeiro, avançando somente quandoa saudade me obrigava, e talvez tambémsob razoável dose do vinho ou doconhaque. Quanto ao "Grande sertão :Veredas", forte coisa e comprida demaisseria tentar fazer crer como foi ditado,

sustentado e protegido — por forças ecorrentes muito estranhas.

Estas forças e correntes "muito estranhas"advieram do próprio espírito deste grande escritor.Como carecemos por completo do conhecimento denós mesmos, ele as chama de "estranhas"... O que nãose conhece, às vezes se nos afigura "estranho". Vejamosum texto de Gonzalez Pecotche sobre a imaginação,quando esta faculdade assume função criadora:

[...] Também (a imaginação)contribuiu à formação de não poucoshomens das letras e da arte em suasdiversas manifestações. Porém ali, longede induzir ao erro, guiou o ser medianteinspirações, às vezes sublimes, a realizaras obras mais admiráveis. [...] Deveu (aimaginação) contar inevitavelmente coma predisposição natural interna, quefavoreceu a exaltação eventual destafaculdade, elevada à hierarquia depotência criadora.

[...] Porém essas exaltações nãotrabalhavam sob o império daconsciência; pelo contrário, uma forçadesconhecida parecia dirigir-lhes amente e as mãos em suas extraordináriasrealizações artísticas ou literárias. [...]Não são os conhecimentos de que podedispor a consciência do ser os que

dominam esta faculdade, e sim ainspiração que a exalta obedecendo aoutros desígnios ignorados por elemesmo.

Tal como as descrições, as narrativas devem sertambém elaboradas de acordo com técnicas. Naliteratura, há basicamente três tipos de narrativas:romance, novella e conto. Além destes, vamos incluir acrônica, por ser um gênero muito importante, existindoainda o teatro, que mescla literatura e arte. Porémvamos nos ater às três partes básicas da literatura:romance, novella e conto.

O romance é uma narrativa longa, com muitospersonagens diferentes, e uma trama com várias sub-narrativas — ou seja, no romance, o pensamento se re-produz com muito mais liberdade que nos outrosgêneros. O conto é uma narrativa que tem uma tramasó, em geral — sem tramas secundárias. Possui poucospersonagens, e satisfaz a necessidade dos leitores quenão têm tempo para abordar tramas complicadas. Umanovella se coloca entre o romance e o conto; em outraspalavras, corre a meio caminho entre a narrativa longae a curta.

A técnica moderna de criar contos foi inventada noséculo XIX por autores americanos, particularmenteEdgard Allan Poe. O rápído desenvolvimento docapitalismo nos Estados Unidos fez que elesprocurassem formas de expressão literária maisapropriadas aos tempos modernos, significando que astécnicas literárias deveriam se tornar melhor ajustadasao novo modo de vida capitalista. Os autores haviampercebido que o leitor capitalista não podia dedicar

muito tempo a ler longas descrições, arabescoslinguísticos, diálogos retóricos pomposos,entrecortados pela ação apenas aqui e ali. O novo leitornão estava mais interessado em histórias que tomavamcentenas de páginas para se desenrolarem. Os temposmodernos impeliram os autores a colocar, em poucaspalavras, o ambiente onde suas narrativas deveriamocorrer, e ir direto ao assunto, transmitir muitas idéias eações em poucos parágrafos, excitar a mente do leitor einduzi-lo ao entusiasmo pela história logo no começo, eapresentar um final convincente.

Talvez o melhor exemplo desta nova técnica —reunindo poesia e prosa, e fazendo um raconto — seja"O Corvo" de Edgar Allan Poe. É uma narrativa quetoma poucas estrofes para ser contada: pode-se lê-la doinício ao fim em poucos minutos. Poe usou apenas duaslinhas e meia para colocar o ambiente onde a históriairia ocorrer; ainda na primeira estrofe, ele apresenta ocomeço da ação:

Once upon a midnight dreary, while I pondered,weak and weary,

Over many a quaint and curious volume offorgotten lore,

While I nodded, nearly napping, suddenly therecame a tapping,

As of someone gently rapping, rapping at mychamber door.

" 'Tis some visitor," I muttered, "tapping at mychamber door;

Only this, and nothing more."

Considerando que o leitor brasileiro não temobrigação de ler em inglês, vamos apresentar umacuriosidade literária: as traduções d'O Corvo feitas pordois gênios — em minha opinião tão talentosos quanto,

porém muitíssimo mais profundos e complexos emmatéria de idéias do que Edgar Allan Poe. Vejamos "OCorvo" traduzido por Fernando Pessoa e Machado deAssis:

MACHADO DE ASSIS

Em certo dia, à hora, à horaDa meia-noite que apavora,Eu, caindo de sono e exaustode fadiga,Ao pé de muita lauda antiga,De uma velha doutrina, agoramorta,Ia pensando, quando ouvi àportaDo meu quarto um soardevagarinho,E disse estas palavras tais:"É alguém que me bate àporta de mansinho;Há de ser isso e nada mais."

FERNANDO PESSOA

Numa meia-noite agreste,quando eu lia, lento e triste,Vagos, curiosos tomos deciências ancestrais,E já quase adormecia, ouvi oque pareciaO som de algúem que batialevemente a meus umbrais."Uma visita", eu me disse,"está batendo a meus

umbrais.É só isto, e nada mais."

Assim o leitor, em três linhas, já sabe o tema dapoesia: é uma história, não uma coleção de pensamentos"poéticos": alguém bate à porta do narrador numa horaque, como crê a superstição do povo, é a das aparições.

Só aparecem três personagens em O Corvo: ohomem que conta a história, sua falecida esposa ounoiva, e o corvo de maus presságios, símbolo de tudoque pode existir no lado mais obscuro da mentehumana. A maior parte dos contos se desenvolve aoredor de poucos personagens, porque não oferecem aoescritor tempo suficiente para apresentar muita gente aopúblico. Histórias longas (romances) têm de usual umaidéia básica e muitas re-produções do pensamento emidéias secundárias, que correm em direção à dominantemaior — para usar a terminologia formalista. Esta é atécnica que vemos nas novelas de TV. Todas asnarrativas e poemas, de costume transmitem uma oumais idéias filosóficas que o autor quer fazer as pessoasentenderem e pensarem a respeito. A dominante realcostuma ser esta idéia. Todos os eventos entrelaçadosna trama constituem a parte material desta estrutura, eessa parte deve se acoplar à esfera psíquica dela. Ou seja,a história deve aceitar a guia da idéia ou das idéias que aconduzem. Em linguagem de Raumsol, há umpensamento central que se reproduziu enquanto a idéiaestava se desenvolvendo, e nos contos, as reproduçõesdo pensamento em idéias secundárias são poucas ecurtas. Portanto, é preciso usar a faculdade de pensarpara selecionar com cuidado o que se vai incluir nahistória, em especial nas narrativas longas, pois écostume não resistir ao impulso de incluir tudo que vem

à mente. Neste caso, como foi dito, a faculdade queseleciona é a de pensar, responsável pela criação dopensamento.

Entretanto algumas vezes esta idéia que guia ou quedirige não existe. Em "A Clean, Well-Lighted Place",Hemingway levou só duas ou três páginas paradesenvolver um universo de pensamentos filosóficos;em "O Corvo", porém, Edgar Allan Poe apenas contauma história gótica. O ensaio de Poe intitulado "ThePoetic Principle" declara que uma história não deveriater propósito moral algum. Portanto, em Hemingway opensamento central é de base moral, enquanto AllanPoe usa a própria trama como idéia base. Ele advoga a"ars gratia artis", a arte pela arte:

Tem-se considerado, de modo tácitoou assumido, direta ou indiretamente,que o objeto final de toda poesia é aVerdade. Todo poema, tem-se dito,deveria inculcar uma moral; e esta moralé o mérito poético do trabalho a serjulgado. (…) Temos considerado emnossas cabeças que escrever um poemaapenas pelo poema em si, e reconhecerque este foi nosso desígnio, seriaconfessar a nós mesmos que estamos emfalta com a verdadeira dignidade e com aforça poética: — porém o simples fato éque, caso permitíssemos a nós mesmosolhar em nossas almas, descobriríamos láde imediato que sob o Sol não existenem pode existir trabalho mais digno

por completo — mais nobre emsupremo que este poema per se — estepoema que é um poema e nada mais —este poema escrito apenas pelo poemaem si.

No ensaio "Que é um romance psicodinâmico",aqui publicado, discordei desta idéia. Tomando por baseuma proposição útil dos formalistas russos, diria queuma idéia importante da literatura é fazer o leitorenxergar a realidade de maneira renovada sempre, comose a repetição lhe trouxesse uma luz nova a cada dia. Osformalistas gostavam de Tolstoi, porque o autor deGuerra e Paz costumava usar uma série de artifíciosliterários para obrigar o leitor a enxergar as coisas comorenovadas, e um deles era produzir o efeito deestranhamento, como por exemplo fazer um cavaloproferir um discurso comunista.

Existe uma lei universal chamada "lei de repetição",que Raumsol descobre aos olhos humanos. Por esta lei— entre outras, é claro — todas as coisas evoluem. Masa repetição, na humanidade comum, longe de produzirevolução, reproduz uma rotina incessante, irritante. Oresultado é a permanência praticamente no mesmolugar sempre, e o que se colhe de evolução espiritualneste processo mecânico é quase nulo. Um dosobjetivos de Raumsol é ensinar as pessoas a parar deevoluir de modo inconsciente e passar à evoluçãoconsciente, começando pela identificação,individualização e seleção dos pensamentos, e pelaorganização de seus sistemas mental, sensível einstintivo. E um dos segredos que aprendi comRaumsol foi como usar a repetição para produzir umagrande novidade a cada dia, renovar impressões,

emoções, renovar pensamentos e sentimentos — masnunca, jamais utilizando artifícios, pois o processo deevolução consciente preconizado por Raumsol nãonecessita deles. Este é um dos grandes segredos doromance psicodinâmico: a história não tem nenhumartifício em absoluto, é sempre a mesma na trama,porém o leitor encontra nela novos alicientes morais eespirituais cada vez que retorna — e renova — sualeitura, porque a repetição em Logosofia não induz aocomportamnento mecânico, uma vez que o processo deevolução consciente se realiza em espiral. Portanto, parauma história ser psicodinâmica é essencial que elapossua conteúdo moral e espiritual, caso contrário elase esgotará na primeira ou segunda leitura...

O Corvo, porém, é uma história por ela mesma, umpoema per se — e de modo assumido. Allan Poe nãotem intenção de ensinar nada na esfera moral. Empoucos minutos, o leitor encontra que uma mulherchamada Lenore tinha morrido, e que a lembrança dostempos idos, quando o narrador e Lenore tinham vividojuntos, irá assombrar para sempre a memória dohomem. O efeito sombrio das cortinas fantasmagóricas;a hora (meia-noite), a noite invernal oferecem o pano defundo para a entrada de um corvo que profere umaúnica palavra: Nevermore (Nunca Mais). De início opersonagem principal não leva a ave a sério, mas logoele salta dum estado de admiração com a entrada docorvo em sua câmara de dormir ao alarme, até queatinge o horror extremo — realizando o propósito dePoe, que é dar pábulo ao surgimento duma impressãomacabra no peito do leitor.

Na verdade, as histórias pós-modernas, expressãoduma decadência extrema, costumam tender à maneiracomo Poe e seus confrades concebiam as novas formasliterárias. Não é preciso dizer que considero isto uma

expressão acabada da decadência de uma culturamilenar que está se esboroando. O autor não temobrigação nenhuma de edificar a moral, a ideologia, areligião ou que seja. É claro que o autor é livre paraescrever o que quiser. Diga-se, na maioria das vezes estaquestão moral foi usada por fazedores de milagres comsede numa instituição multinacional riquíssima, baseadana Itália, ou pelos outros milagreiros, além dosmanipuladores de ideologias e mentes que pulularam noséculo XX — nazistas, comunistas, fascistas e outros —com objetivo de usar a literatura com o fim espúrio deanular a função de pensar dos leitores e manipular suasmentes. Na maior parte das vezes, isto encerrou aliteratura numa camisa de força, como a que oscomunistas inventaram no século XX. Os autorescomunistas eram obrigados a enfiar o Marxismo emtudo que escreviam; isto era chamado de "RealismoSocialista". Durante muito tempo, os escritoresbrasileiros foram constrangidos a dar um "conteúdosocial" a suas histórias, sob pena de serem considerados"reacionários". O célebre protesto de Cacá Diegues, nosanos 70, quando veio à mídia denunciar as "patrulhasideológicas", marcou esta expressão para sempre noportuguês do Brasil.

O fato de ser adepto do romance psicodinâmicocriado por Raumsol me leva a advogar um novo uso,uma nova forma de criar histórias com objetivo decontribuir para o avanço moral e espiritual dahumanidade, livre por completo de constrangimentosreligiosos ou políticos; histórias que dependerão porexclusivo do talento individual de seus autores, e da suahabilidade para transformar o nível de conhecimento desi mesmo adquirido, em auxílio ao progresso extra-físico da humanidade.

Vale a pena mencionar que desde as primeirasocorrências literárias até o século XIX cristão, osescritores reconheceram tacitamente que o trabalhoprincipal de uma obra literária era edificar uma moralpositiva. A liberdade de todo constrangimentoideológico, religioso ou político, ao menos nasdemocracias ocidentais, penetrou no campo literáriosomente no final do século XIX.

Por último, devemos assinalar que os leitores nãodevem acreditar que uma narrativa histórica é anecessária expressão da verdade — o que é muitocomum entre os menos acostumados às teoriasliterárias. Por exemplo, uma narração que ocorre naItália durante a Segunda Guerra Mundial, e envolvesoldados brasileiros lutando no Vale do Pó, apresentaalguns fatos históricos patentes: os brasileiros foram osúnicos latino-americanos a lutar na Segunda GrandeGuerra, sua briga real foi contra os alemães no norte daItália, e isto aconteceu no século XX. É tudo fato real.Porém os eventos que envolverão os protagonistas,seus amigos, etc., não importando se baseados ou nãoem caracteres reais, jamais expressarão a verdadeabsoluta, uma vez que os autores nunca descartam afaculdade de imaginar para criar suas narrativas.

4. Dissertações ou teses

DISSERTAÇÃO s.f. Discurso,exposição ou exame minucioso dedeterminado assunto. / Exercício escritoem que os alunos expõem suas idéiassobre tema dado pelo professor, ou desua livre escolha.

In: Aurélio, Internet

Dado que uma dissertação, breve ou longa, édiscurso feito para demonstrar que uma ou mais idéiasestão corretas, é corolário dizer que as faculdades dainteligência atuando para elaborar tal tipo decomposição são a faculdade de pensar, porque ela criaou seleciona pensamentos, e a razão — a faculdadeencarregada de organizar objetos mentais. Estas são asduas faculdades principais da inteligência — além doentendimento, da intuição, da memória, etc. Istosignifica que todo o mecanismo mental — denominadopor Raumsol função de pensar — será convocado aotrabalho.

De início, vou desenvolver minhas idéias sobre oque é uma dissertação, falando de modo generalizante,para em seguida expor alguma crítica sobre o conceitopós-moderno de tese, ou de dissertação acadêmica.

ARGUMENTO s.m. Prova que serve paraafirmar ou negar um fato: argumento válido./ Sumário de um livro, de uma peça de teatroetc. / Lógica Raciocínio pelo qual se tirauma conseqüência de uma ou váriasproposições. // Lógica Argumento de umafunção, elemento cujo valor é bastante paradeterminar o valor da função dada.

ARGUMENTAR v.t. e v.i. Usar deargumentos; discutir apresentando econtrapondo razões que, através doraciocínio lógico, levem a uma conclusão.

Como se pode ler, em nenhum momento o Auréliodiz que argumento é um pensamento com intenção deconvencer. No entanto, a maioria dos dicionários assim odefiniria — desde os gregos clássicos, conformeveremos adiante.

Não importando o quão popular seja esta versão,só posso admitir que um argumento tenha função deconvencer em situações muito específicas. Considerodefeituosa esta idéia de que se deve convencer ointerlocutor. Em minha mente, o argumento écomposto por uma ou mais idéias com o desígnio deavançar uma contribuição a outras inteligências, semprecom o propósito de ajudá-las a pensar melhor a respeitode algum assunto. Em política, ou mesmo no meiocientífico, os argumentos têm sido usados para fazer aspessoas pensarem igual a quem os profere, o que violaa liberdade individual.

Abaixo, vamos ler a seção do meu livro "A Luz dosHomens" onde proponho uma nova noção para o signo"argumento":

Se consultarmos a maioria dosdicionários ou artigos sobre a arte dedissertar, veremos que se consideraargumento como sinônimo de raciocínioque tem por fim convencer. No entanto,penso que argumentar para convencer éimoral; logo, não é esta minha intenção.Este meu livro — A LUZ DOSHOMENS — aponta com seriedadepara os vícios impostos pelas ideologiaspolíticas e religiosas, denuncia a

corrupção humana, mas não tenhointeresse em convencer as pessoas aconsiderarem meus pensamentosválidos. Nenhum leitor deve acreditarem mim; pelo contrário: as coisasescritas neste livro têm por fim convidara refletir sobre aspectos da condiçãohumana; identificar os artifícios dos quemanejam a mentira com o objetivo —que considero o supra-sumo do mal —de submeter os outros às suas vontades,a seus caprichos ou à perversidade datirania, em especial a pior de todas: atirania que se intromete na consciênciado homem e destrói os recursos moraisali enraizados.

Segundo minha concepção da palavra "ética", oargumento é um raciocínio que leva em si o propósitode trazer alguma contribuição ao ideal de melhorar o serhumano. Ou seja, o argumento é composto por idéiasque pretendem ser verdadeiras, porém tais idéias nãopodem intentar fazer o ouvinte ou leitor pensar damesma forma que o criador da argumentação. Criarargumentos é uma arte desenhada para ajudar aspessoas a julgarem os fatos da condição humana demodo mais acurado, para corrigir erros, ou paramelhorar nossa sabedoria. O argumento planejado paraconvencer é antidemocrático — ele agride a ética.

De acordo com Gonzalez Pecotche (Raumsol): "Daverdade só surgem afirmações, jamais hipóteses." Istonão significa que todo argumento deva ser verdadeiro,mas que, para se chegar à verdade, é preciso antespensar; se cada um contribui com seu aporte de

experiência, de observação, raciocínio, pode-se chegar àverdade sem discussões estéreis, mais próprias daintemperância típica da filosofia. Se cada teoria que seinventa contradiz as outras, onde está a verdade?...

Existe ainda um outro aspecto dos maisimportantes, e que, se posto em prática pela maioria daspessoas, impediria que os tiranos da mente humanaconduzissem coletividades inteiras, reduzidas aoespírito nômade, para o abismo das guerras, dofantástico cenário de misérias espirituais, morais efísicas que advêm após a entrega que a ingenuidade faz,aos pastores da ideologia política e religiosa, de suasvontades e inteligências.

Com relação à reprodução de pensamentos, etambém ligado ao dito acima, um dos mnaisimportantes objetivos de Raumsol é ensinar quem sededica ao cultivo de seu pensamento a usar a faculdadeda observação. Existem pessoas cuja observação temsumo desenvolvimento, mas se atentarmos para comoela é usada, veremos que a maioria dirige esta faculdadepara fora deles mesmos. Não é de admirar, pois vivemosnuma cultura voltada para o externo quase porcompleto.

Entretanto a partir do momento em que se aprendea diferença entre pensar e pensamento, começa otreinamento de observar tudo que se passa na mente, —guiado pelo método de Raumsol — com objetivo depromover uma superação poermanente e, o que é desuma importância, de defender a mente individual dasintromissões de pensamentos que se instalaram neladesde longa data, e também defendê-la das intromissõesde pensamentos alheios. Parte do método logosóficoensina, por exemplo, a fazer juízos com base emconclusões amadurecidas, e não com base nas

interpretações alheias, que na maioria das vezes levamintenções no mínimo duvidosas. Se esta faculdade damente — a observação — é usada com disciplina emétodo, torna-se impossível aos demagogos, aos mal-intencionados, ao vigaristas, ou simplesmente àsinformações com intuito distorcido de penetrarem namente e fazerem nela o trabalho destrutivo que ahistória registra.

Para criar pensamentos é preciso, antes, criar umaindividualidade própria, que exclui terminantemente apossibilidade de reduzir seu dono à condição dehomem-massa, de espírito nômade. Esta realizaçãobastaria, sozinha, para avaliar o alto cunho pedagógicode um método que visa ensinar o ser humano a pensar,como é o método criado por Raumsol.

Vejamos que nos diz GonzálezPecotche sobre esta importantíssimafaculdade chamada observação — sempre,é claro, chamando a atenção para oconceito logosófico da diferença entrepensar e pensamento:

Do livro EXEGESISLOGOSÓFICA

Quando se conseguir que aobservação, tal como fica indicado,constitua um hábito, se notará que atuaa consciência. E isto se comprovaporque desaparece gradual edefinitivamente o inveterado costume dedistrair a mente em coisas vagas. O vaziomental produzido pela suspensão

frequente do pensamento é uma espéciede "letargo branco" — assim odenomina a Logosofía — que, sem sersono, recolhe a atenção como se o fosse,de modo que olhando não se vê eouvindo não se escuta.

A faculdade da observação deve seconstituir em vigía permanente dafortaleza interna [...]. Isto lhe evitaráincorrer em erros como os que secometem ao elaborar um juízo com basena apreciação alheia, e lhe evitarátambém que em sua mente seintroduzam subrepticiamentepensamentos de índole indesejável,como os alarmistas, os tendenciosos ouos simplesmente nocivos para o própriocampo mental.

Esta é, portanto, a possibilidade aberta pelo métodode González Pecotche: a de acumular sabedoriasuficiente para superar as deficiências da própria mentee, em paralelo, impedir que mentes alheias manipulem aprópria inteligência. Em outras palavras, tornar-se deverdade o dono de seu próprio campo mental. Istopossibilita ao ser humano criar seus própriospensamentos. No campo acadêmico, porá um fim àtendência grosseira, comum nas universidadesbrasileiras, de impedir que o estudante pense,obrigando-o a repetir pensamentos alheios como sefosse macaco de imitação. Considera-se, de modobastante primitivo, que "pensar" é criar um monte deteorias. Esta concepção limitadíssima do que seja"pensar" leva os professores a agredir o que de melhor

existe na cultura do Ocidente: o desenvolvimento, indaque embrionário, da individualidade.

Um capítulo de Platão intitulado Gorgias, mostra ogênio de Sócrates demonstrando, ao personagemGórgias, a verdadeira natureza da retórica. Este diálogose aplica a quaisquer períodos históricos, visto aspessoas usarem a retórica como ferramenta demanipulação, tornando desta forma sua prática imoral,e passível de culpa sob um ponto de vista ético. Nacitação abaixo, Gorgias aparece com o discurso malintencionado que Sócrates irá condenar minutos após:

Sócrates — Qual é, como você diz,o bem mais importante que um homempode ter, bem que você mesmo cria? Dê-nos uma resposta.

Górgias — Este bem, Sócrates, queé mesmo o melhor de todos os bens, é oque confere liberdade aos homens, e aoindivíduo confere poder sobre seuscompatriotas nos diferentes Estados.

Sócrates — E como você oconcebe?

Górgias — Existe algo maisimportante que a palavra que persuadeos juízes na corte, os senadores noconselho, os cidadãos na assembléia ouem qualquer outra reunião política? Sevocê tiver o poder de pronunciar estapalavra, transformará o doutor em seuescravo, e o treinador de ginástica emseu cativo, e o homem que empilha

dinheiro [...] irá acumular tesouros nãopara ele mesmo, mas para você, poisvocê tem a capacidade de falar econvencer a multidão.

Não obstante o discurso de Górgias parecer umexagero, pergunto-me, e ao leitor — ele não transmite ainterpretação usual que as pessoas geralmente dão àpalavra argumento? Persuadir. Convencer. É a fala dosditadores da ideologia religiosa e política, cujo objetivoé sempre escravizar a mente humana e torná-la dócilinstrumento de seus baixos desígnios.

O fenômeno da manipulação das mentes,envolvendo multidões, convencendo centenas, milhares oumilhões de pessoas a renunciar a suas individualidadespara seguir os "condottieri", os "fuehrers", os"pastores", os "padres", como os rebanhos decarneirinhos são guiados por seus donos — estefenômeno é observado há séculos. WilliamShakespeare, em seu "Júlio César", faz Brutusconvencer facilmente o povo de Roma de que havialiderado uma inconfidência, matando César, para o bemde Roma; alguns minutos depois, Marco Antônioconvence o povo romano do oposto, e os induz àrebelião contra os novos detentores do poder. Em"Coriolanus", Shakespeare mostra a mesma tristerealidade: quão fácil é conduzir a mente da multidãopara onde se quer, bastando com isso que se domine ahabilidade, emulada por Górgias, de convencer. Respeitobastante os milhares de páginas gastos pelos teóricospara explicar este fenômeno, mas a verdade é simples, enão se necessita de livros e mais livros para explicá-la:as pessoas desconhecem o que é a mente e ospensamentos, não sabem que possuem um tesouro

denominado por Raumsol de "sistema mental", por istoé tão fácil convencê-las, seja do que for. O mais cômicoé que todos pensam que os outros são fáceis deconvencer, que é a humanidade que se deixa levar comtamanha facilidade como espíritos nômades, mas deminhas observações concluí que é tão fácil convenceros doutores das universidades, que se acham muitocapazes de pensar, quanto convencer os mortaiscomuns, que não possuem títulos e comendas. A culturacomum não ensina ninguém a pensar; só formaprofissionais. Fora de sua área específica, o sujeito maisgenial costuma se comportar às vezes pior que osoutros, que ele considera seus inferiores...

Entre os seguidores de Hitler, Stalin, Mussolini,Mao Tsé Tung, havia doutores, PhD's, cientistas derenome, grandes artistas, filósofos, teóricos daliteratura, escritores, grandes cineastas... toda essa genteque se acha capaz de pensar às mil maravilhas. Algunsaté dizem que os poetas possuem uma capacidade deenxergar a realidade de modo mais profundo que ocomum dos mortais...

Pois é...

Portanto, convencer não deve constituir o objetivo deum escritor que se preze, mas é preferível apenas tentarcontribuir com seu aporte para a evolução dahumanidade. É um propósito muito mais humilde emodesto do que as pretensões dos criadores das tais"metanarrativas" — discursos fechados que explicamtudo, como o comunista, o das religiões — estas searrogam o direto de serem nada menos queproprietárias de Deus! — o do doutor Freud (Freudexplica!), o das filosofias antigas e modernas, e de tantosoutros. Meta significa "além de", e eles chegaram alémdo quê? Afora o fracasso das "metas", nenhum deles

jamais narrou a realidade do ser humano em suaverdadeira estrutura mental, moral e espiritual. A tristesituação da humanidade está aí, para demonstrar ofracasso da cultura vigente, ocidental e oriental, apesarde toda a empáfia das grandes autoridades dopensamento acadêmico.

4.a A relação entre razão econhecimento

Sempre que estou ensinando composição escrita,pergunto a meus alunos o que eles pensam ser aprincipal característica duma boa dissertação — oconhecimento do assunto ou a coerência? A maioria dosestudantes responde que se uma pessoa não temconhecimento do que está sendo desenvolvido, seráimpossível ser coerente.

Vamos ler o que diz González Pecotche sobre arelação entre razão e conhecimento:

A razão é e não é uma faculdade.Existe e não existe, e só aciona com basenos conhecimentos que se possua. É oconhecimento que lhe dá vida; sem ele, arazão não poderia exercer sua funçãocomo faculdade central da mente, pois oconhecimento constitui sua razão deexistir.

A razão requer o auxílio imediato doconhecimento para poder discernir; elanão pode estabelecer nenhum juízo semantes haver buscado e reunido oselementos indispensáveis a tal função.

De modo que os conhecimentosaumentam o volume e a consideração dojuízo que vai elaborando essa faculdadecentral chamada razão, a qual, nutridapor estes conhecimentos, pode fazercom que estes, por sua vez, nutram arazão com outros.

De tudo isto se depreende que, amaior conhecimento, maior razão.

[...]

Poderia, por exemplo, quem se achaem um bosque encontrar a planta quehaverá de curar-lhe uma ferida, se não aconhece? Não; e até pereceria no mesmolugar em que cresce a erva salvadora. Aoignorar sua existência, não pode fazeruso dela, nem sua razão pode julgaracerca do valor medicinal da mesma; emtroca, o que a conhece, por meio desseconhecimento a utiliza e julga ao mesmotempo sua bondade para curar feridas.

O conhecimento é básico para se estabelecer umraciocínio, mas pode não sê-lo para tratar um tema comcoerência. Há casos de pessoas que têm totalconhecimento do assunto sobre o qual devem discorrer,mas não podem ser coerentes em absoluto. Mesmo seum homem sabe tudo sobre um assunto, isto não fazdele automaticamente um bom escritor.

Os melhores autores profissionais fazem pesquisasdetalhadas do assunto que vão trabalhar, para sesentirem por completo seguros deles mesmos antes de

começarem a escrever suas histórias. Mário de Andradeescreveu Macunaíma, uma obra prima da literaturauniversal, com base nos conhecimentos que tinha dofolclore sul-americano, e do povo brasileiro. GuimarãesRosa conhecia profundamente o dialeto da região ondesuas histórias acontecem, e é mesmo de surpreenderque tanta gente escreva sobre a linguagem de GuimarãesRosa sem nunca ter sequer visitado aquela área doBrasil. É óbvio, como as razões destes teóricos não têmconhecimento do assunto, a quantidade de incorreçõesque cometem é enorme. Machado de Assis e LimaBarreto escreveram sobre a vida do Rio de Janeiro comtamanha acuidade porque eram cariocas da gema. Paracompor sua obra-prima "Os Sertões", Euclides daCunha participou como repórter e pesquisador dacampanha de Canudos.

Não obstante, o fato dos bons escritoresprofissionais construírem suas tramas desta forma nãosignifica que todos os escritores se comportem assim.No final dos anos setenta, um escritor Judeu-Americano chamado Isaac Bashevis Singer ganhou oprêmio Nobel. Este homem havia escrito uma históriasobre o Brasil que, além de ofensiva, era baseada na totalignorância sobre nosso povo, e até mesmo sobre fatoselementares da geografia. Em sua novella "One Nightin Brazil", Singer inventou um furacão perto de Santos,pois pensava que toda região tropical tem furacões; fezum navio que levava passageiro judeu atracar em Santospara se proteger do furacão, e seu judeu inventadoviajou de Santos ao Rio... em duas horas, de ônibus! Oônibus tinha asas, decerto. Em seguida, seu personagemabsurdo tomou um táxi no Rio e mandou o motoristaprocurar o bairro judeu, como se todas as cidadesbrasileiras fossem como as americanas, onde existem"comunidades" isoladas entre si. Como o tal cidadãonão morava no bairro judeu, ele foi achá-lo nas

cercanias do Rio de Janeiro, onde — pasmem osleitores! — Mister Singer pôs seu personagem a admirara luxuriante paisagem tropical, com pássaros devariegadas cores — e não a poluição de Santa Cruz oudos milhões de carros que trafegam por aqui! Os amigosjudeus do viajante de origem israelita que nunca existiumoravam — no Brasil! — numa casa igual àsamericanas, com aquelas portas que têm uma espécie derede fina para não entrar mosquito. É que a ignorânciade Mister Singer inventou que, à noitinha, mosquitos dotamanho de morcegos saíam da floresta para beber osangue de suas vítimas humanas! Seriam todos afilhadosdo famoso conde da Transilvânia? Depois vem umdiálogo em que a esposa do judeu que nunca aparece nahistória diz que seu marido estava maluco, mas que nãopodia tratá-lo no Brasil porque os psiquiatras daqui sãode décima categoria ou pior ainda. Seria porque elescostumam fazer estudos complementares nasuniversidades norte-americanas? Quando o visitante dizà esposa do judeu invisível que tem de voltar logo,porque o navio vai sair de Santos assim que passar oterrível tornado, a dona lhe informa que não temproblema, porque "essa gente não tem noção detempo", se o navio não sair hoje, sai amanhã ou daqui auma semana, vai ficar esperando o passageiro voltar, praeles tanto faz hoje como daqui a um mês...

Para o sujeito ser escritor, não precisa serprofissional. Existem amadores bons. Por outro lado,há profissionais como este senhor Singer, que ignoramo básico de sua profissão. Ele nem se preocupou emperguntar a algum brasileiro, dos tantos que semprehouve nas universidades americanas, como era o Rio deJaneiro; nem se deu ao trabalho de consultar um mapado sudeste do Brasil!

Quão grande foi minha surpresa quando, atônito,no final dos anos setenta, ouvi dizer que este escritor dedécima categoria ou pior tinha sido contemplado com...o Prêmio Nobel! A razão era política, como sempre, enão literária: aquele tratado que se denominou "Acordode Camp David" tinha sido assinado entre palestinos ejudeus, e era preciso chamar a atenção para ele — que,aliás, não resolveu nada, como sempre. Estes homensassinam tratados com uma mão e os violam, antes daassinatura, com as duas. Enquanto isso, escritoresrealmente profissionais, e bons, como Mário deAndrade, Guimarães Rosa, Carlos Drummond deAndrade, Cecília Meirelles, Graciliano Ramos, e tantosoutros escritores brasileiros muito melhores que estesenhor Singer, jamais chegaram perto do tal PrêmioNobel.

Não obstante maus ficcionistas poderem produzirtais imposturas grosseiras — talvez porque pensem queficcionista não tem compromisso com a realidade —não é admissível que um raciocínio dissertativoapresente tamanha contrafação. São dois osrequerimentos básicos para elaborar bem umadissertação: seu autor precisa ter a experiência, ou pelomenos ter estudado o suficiente do assunto paraapresentar idéias convincentes, e o desenvolvimento desua tarefa deve ser apresentado em parágrafoscoerentes.

Vamos ver em seguida, passo a passo, o modocomo um escritor usa sua função de pensar quandodecide produzir boas dissertações.

4.b Passos para compor umadissertação bem estruturada

I. Como criar uma idéia para uma redação ou umadissertação?

Meu método para atrair idéias é baseado nanecessidade do conhecimento para elaborar boasdissertações, sem considerar seu tamanho. Vale paratodas.

Chamemos o conhecimento geral do que se sabe de"assunto"; e vamos nomear como "tema" a idéia quevocê irá buscar no interior do assunto. Algumas vezes otema é dado de antemão, mas via de regra você tem queextrair a idéia do assunto dado.

O método é simples: busque na sua memória todotipo de conhecimento que ela tiver possivelmentearmazenado a respeito do assunto. Durante esteprocesso de memorização, você deve recorrer àpaciência, caso contrário perderá o foco. À medida quevocê espicaça a memória, — visando fazê-la fornecer oque sabe a respeito do assunto da sua breve ou longadissertação ou tese — algumas idéias surgirão nasuperfície de sua mente. Você deve escrever toda equalquer idéia que tiver aparecido, pois elaspossivelmente se originaram na parte mais profunda desua estrutura psíquica. O pré-requisito para criar essetipo de idéias é a capacidade para focar no assunto, efazer a memória fluir livre da interferência depensamentos estranhos a ele.

Qualquer informação extraída da faculdadememórica vale sua atenção. Por exemplo, se você vaiescrever uma dissertação breve sobre o assunto"Descobrimento da América", deve perguntar à suamemória: Quando a América foi descoberta?"Descoberta" é um bom termo para usar, com vistas a

nomear a chegada dos europeus em nosso continente?Quem era o comandante da frota que chegou aqui em1492? Por que os europeus vieram para a América?

De súbito, a primeira idéia irá aparecer na sua telamental. Em meu caso, me ocorreu que de fato oschamados "índios" (ameríndios, na velha termilogogiados historiadores) foram os verdadeiros descobridoresda América. Assim, eu escreveria dizendo que osantropólogos datam a chegada dos homens a nossocontinente por volta de uns 10 ou 15 mil anos atrás, enão no ano cristão de 1492, como foi convencionado.Também informaria que a etnia dos asiáticos e dosameríndios é aparentada, visto os povos antigos quevieram para nosso continente muito provavelmentehaverem cruzado o Estreito de Behring, vindos da Ásia,durante a última era glacial. É por isso que, no Brasil,com frequência esbarramos em pessoas que não têmsangue asiático, mas cujos rostos lembram os dosjaponeses. Portanto, nossos ancestrais (históricos eétnicos) foram os verdadeiros deescobridores docontinente onde vivemos.

Ei-la, então: a idéia para uma dissertação breve.

II. Como transferir uma idéia da mente para opapel?

O tema (a idéia) que você extraiu do assunto deveráser posto em folhas de papel. Assim, você tem umespaço e um tempo para ajustar seu discurso às folhasdisponíveis. Desta forma, sua idéia deve se adaptar aotamanho e à duração que o trabalho irá requerer. Comrelação ao tempo e ao espaço, o título tem grandeimportância. Por exemplo, se uma pessoa tem umafolha de papel para desenvolver uma idéia (o tema), elhe dá o título de "A Violência no Brasil", esse tema se

perdeu por antecipado. É impossível desenvolver idéiassobre a violência no Brasil em duas páginas.

Assim, a pessoa terá de passar o assunto por umapeneira, até que as idéias e o tempo-espaço disponíveisse coadunem. Você terá de continuar pensando temasde amplitude cada vez menor, até se ajustar ao tempo-espaço de que disporá para desenvolver seu trabalho.

No primeiro parágrafo, você começará informandoo que vai demonstrar. Se sua dissertação for longa,apenas escreva uma introdução dizendo ao leitor o queserá desenvolvido.

Não se esqueça de selecionar suas idéias emparágrafos. Algumas pessoas escrevem só um parágrafoque inclui muitos tópicos diferentes. Tal erro é resultadoda falta de treinamento. Se você escreve uma redaçãoou uma dissertação em longos, gigantescos parágrafosque vão de oceanos a lagoas, o leitor porá de lado seutrabalho num par de minutos. Parágrafos tão apinhadosde pensamentos ficam pesados e chatos. É impossívelmanter presa a atenção do leitor em parágrafos longose maçantes.

O ideal, portanto — e isto é de suma importância— é compor parágrafos curtos. Fazer parágrafos longosé para escritores experientes, ou para profissionais.Cada parágrafo deve conter uma seção da idéia geral dotrabalho, cada tópico deve conter um sub-aspecto destamesma idéia básica. O pensamento que se reproduziutem de estar bem organizado em suas várias seções esub-seções.

III. Do geral ao particular

Esta forma de pensar, — do geral ao particular —junto com a divisão das idéias em tópicos, fará suaredação ou dissertação, ou mesmo sua tese, funcionarbem e alcançar seu propósito. Vamos supor que vocêdeseja escrever uma dissertação sobre o modo como aspessoas nascidas e criadas no Rio de Janeiro falam oportuguês do Brasil:

Usando o método de desenvolver suas informaçõesdo geral ao particular: antes de mais nada, comentesobre os muitos e diferentes dialetos falados no Brasil.Ainda no geral, você pode dizer que o português doBrasil tem forte influência das línguas indígenas e domodo africano de falar, uma vez que os colonosportugueses costumavam absorver as culturas quesubmetiam, por toda a vasta área de seu império; emsegundo lugar, diga ao leitor que alguns eruditosconsideram o português carioca parte do dialeto dosudeste.

Assim, partindo de uma generalização (portuguêsbrasileiro) para o particular (português carioca), vocêchegou ao Rio.

Agora que você ofereceu ao leitor a informaçãogeral, diga-lhe que o registro mais sofisticado da língua— a linguagem artificial da alta cultura, usada nodiscurso escrito e no jornalismo radiofônico, ou na TV— é baseada no dialeto do Rio de Janeiro.

Chegue, então, às peculiaridades do nossoportuguês carioca. Para desenvolver melhor suadissertação, compare esse dialeto com os tipos básicosde português existentes no sudeste (se você osconhecer), ou mesmo com a linguagem do Espírito

Santo, que está mais próxima do dialeto do Rio que alinguagem mineira ou paulista.

IV. Dividindo suas idéias em tópicos

As idéias são como os militares: dividem-se emhierarquias. Isto significa que, se você tiver tópicosdiferentes a desenvolver, eles devem ser selecionados deacordo com suas hierarquias: do mais importante aomenos importante, dentre os tópicos a serem listados.

De acordo com o item número III (do geral aoparticular), vamos supor que é nossa intenção escreversobre a linguagem específica usada na cidade do Rio deJaneiro, e sobre as leves diferenças entre a linguagem dacidade e a do estado do Rio de Janeiro. Vocedesenvolveu seu tema com referência ao português doBrasil em geral; na sequência, filtrou o tema e chegou àlinguagem do sudeste, até sua chegada ao português doRio de Janeiro. Você informou a seu leitor que osmodos de falar no resto do estado podem apresentardiferenças consideráveis com relação à linguagem doRio de Janeiro, cidade.

Você pretende situar seu discurso no espaço,dizendo ao leitor que quanto mais uma cidade ou vila seaproximar do Rio de Janeiro, mais semelhante aoportuguês carioca será a linguagem do seu povo. Assim,que tópicos serão mais importantes, considerandonosso método de sortear as idéias de acordo com suahierarquia?

O tópico um seria uma citação, apenas, doportuguês falado ao norte do estado do Rio, dirigindo-se ao oeste, e mais tarde ao sul. Desta maneira vocêlocaliza as áreas influenciadas, mais ou menos, pelo Rio.

No tópico dois, você faria uma consideração geraldas áreas ao norte do estado, mostrando a semelhançacom o sotaque do sul do Espírito Santo; depois,passando pelo oeste, as áreas influenciadas por MinasGerais seriam alvo de uma consideração geral, atéchegar ao sul do estado, onde falam português parecidocom o sotaque daquela área paulista.

Após considerações gerais, com alguma mençãodos detalhes, você iria fundo nestes, escrevendo o sub-tópico um (o português do Rio influenciado peloEspírito Santo), sub-tópico dois (influência da Zona daMata mineira), e sub-tópico três (influência paulista).

IV. O parágrafo

Com respeito à construção dos parágrafos, não seesqueça de fazê-los curtos. O leitor moderno não gostade ler coisas muito longas, parágrafos ou romances.Outro aspecto: procure as palavras repetidas e trate desubstituí-las por sinônimos. Se não houver estapossibilidade, arrume outro jeito de exprimir as mesmasidéias. Textos com repetições exaustivas de palavras sãochatíssimos e redundantes, e dão a impressão de que apessoa não domina a flexibilidade do idioma. Evite,também, repetição de sons. Há textos com verdadeirascacofonias, tipo a repetição de "mente" e afins dezenasde vezes (tenente, semente, semelhante, somente,frequentemente)...

Não escreva de modo relaxado. Faça uma redaçãolimpa, com parágrafos bem localizados, escrita de modoelegante — por exemplo, nunca faça coisas como ñ emvez de não, ou q em vez de que. Comece os parágrafoscom letra maiúscula, escreva os substantivos comunscom minúsculas e os próprios com maiúsculas. Existem

regras básicas, necessárias, para fazer uma redaçãodecente.

Grande quantidade de indivíduos não consegueescrever combinando maiúsculas com minúsculas; elesescrevem só com maiúsculas, o que é um erro crasso.

Os estudantes brasileiros costumam armarparágrafos que começam com gerúndio, mas nãocolocam a oração principal depois. Isto faz suadissertação incoerente. Por exemplo: "Andando pelaborda duma plantação de café em São Paulo." Isto nãodiz nada, pois o verbo no gerúndio significa "quandoandava", ou "enquanto andava", e necessita de umaoração principal para ganhar sentido, como: "Andandopela borda duma plantação de café em São Paulo, vimeu amigo João." Outro péssimo hábito é começarparágrafos com "Pois", como por exemplo: "José viu airmã de seu amigo cair. Pois ela tinha escorregado, eentão ela se machucou. Pois ela era muito agitada."

V. Parágrafos finais

Você deveria fechar sua dissertação breve ou longadizendo ao leitor que alcançou seu propósito dedesenvolver um tema — e não se esqueça de nomeá-lo.Para demonstrar que sua afirmação é correta, faça umsumário da idéia central de seu discurso, e ofereça aoleitor uma viagem superficial e generalizante através dasvárias reproduções do pensamento que foram expostas.Esta é uma forma de acabar uma redação oudissertação.

Há outros modos de desenvolver parágrafos finais,tais como fazendo perguntas que lançarão as mentesdos leitores adiante, e dizendo-lhes que o temapermanece aberto ao intercâmbio de idéias. Diga que

você apenas abordou parte "deste vasto tema". Umaafirmação sincera como esta é sempre agradável aosleitores; significa que você os está convidando aviajarem juntos através de paisagens interessantes, e queseu aporte seria bem-vindo.

Então, comecei conceituando o que é umadescrição, depois passei à narrativa e ao argumento, evocê me acompanhou por todo o caminho, até estesparágrafos finais. Dissemos ao leitor que as pessoasdevem usar sua razão para organizarem discursosescritos, e como alcançá-lo. Alguns segredos dotrabalho escrito foram desvendados, além de umincentivo para pensar mais sobre este importanteassunto relativo à produção de redações, dissertações eteses.

Espero que você aproveite ao máximo as técnicascolocadas nesse trabalho.