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(Des)encontrosem El hombre de al lado(Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009) Natalia Christofoletti Barrenha Para Doreen Massey, o espaço é uma dimensão implícita que molda nossas cosmologias estruturantes. Segundo a geógrafa inglesa, ele “modula nossos entendimentos do mundo, nossas atitudes frente aos outros, nossa política. (...) Se o tempo é a dimensão da mudança, então o espaço é a dimensão do social: da coexistência contemporânea de outros” (2009: 15). Em seu livro Pelo espaço: uma nova política da espacialidade, Doreen concebe o espaço como uma imbricação de trajetórias, sempre aberto aoinesperado, ao acaso, e que, enquanto locusda existência contemporânea, é marcado pela multiplicidade, pelo encontro com o “outro” – colocando- nos, assim, permanentemente frente ao desafio do novo. Massey enfrenta aquela subentendida concepção de espaço como uma grande extensão através da qual viajamos; como a terra que se estende ao nosso redor, o que faz com que o espaço pareça uma superfície, contínuo e tido como algo dado. Para ela, essa maneira de entender o espaço pode, facilmente, nos levar a pensar outros povos, lugares e culturas simplesmente como um fenômeno “sobre” uma superfície – fazendo com que os mesmos fiquem desprovidos de história. Ela cita, como exemplo, a chegada dos espanhóis ao México: ao invés de ser um encontro de trajetórias, esse evento é visto como se os mexicanos estivessem imobilizados, esperando o desembarque do “descobridor”, o único agente ativo, quem atravessa o oceano para se deparar com aquele que está, simplesmente, lá. Assim, as diferenças encontradas entre eles são tomadas como atraso, expressando espaço em tempo; transformando geografia em história. Não devemos imaginá-los como tendo suas próprias trajetórias, suas próprias histórias específicas e o potencial para seus próprios, talvez diferentes, futuros. Não são reconhecidos como outros coetâneos. Estão, meramente, em um estágio anterior, na única narrativa que é possível fazer. Esta cosmologia de “única narrativa” oblitera as multiplicidades, as heterogeneidades contemporâneas do espaço. Reduz coexistências simultâneas a um lugar na fila da história (Massey, 2009: 24). Tal concepção temporal do espaço aumenta as distâncias, e a possibilidade de múltiplas narrativas é perdida. Assim, a geógrafa busca praticar o espaço de maneira diferente, através do qual, na negociação de relaçõesdentro da multiplicidade (sob todas as suas formas: diversidade, subordinação, interesses conflitantes), o social é construído: “o que o espaço nos proporciona é a heterogeneidade simultânea; ele retém a possibilidade da surpresa, é a condição do social em seu mais amplo sentido e o prazer e o desafio de tudo isso” (Massey, 2009: 157). O espaço não é fixo e está em permanente construção. Como afirma Rosaly Deutsche (1996 apudMassey, 2009), o conflito não é algo que acontece a um espaço, mas o espaço é o produto do conflito. Em O homem ao lado (El hombre de al lado, 2009), de Gastón Duprat e Mariano Cohn, acompanhamos um (des)encontro que o acaso e a multiplicidade que geram o espaço proporcionam, colocando a questão do viver junto e suas disputas.O protagonista, o arquiteto LeonardoKachanovsky, “a marretadas”, é obrigado a interagir com seu vizinho inesperado Víctor Chubeloatravés de uma fronteira (janela) que os une e os separa. Aqui, seguimos a definição de fronteira proposta por Andréa França, que se conecta com os postulados de Massey: “fronteira como linha demarcadora do idêntico, que limita, torna estável e mesmo enclausura um certo conjunto de valores e crenças, mas também lugar instável, de passagem e transição para o outro, o diferente” (França, 2003: 21). 352

(Des)encontros na cidade em "El hombre de al lado" (Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009)

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Apresentado no IV Congreso de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAECA), realizado em março/2014 na Universidad Nacional de Rosario. Publicado em UTRERA, Laura (ed). Actas IV Congreso de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual. Buenos Aires: AsAECA, 2014. Disponível em: http://asaeca.org/?wpdmdl=557.

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(Des)encontrosem El hombre de al lado(Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009)

Natalia Christofoletti Barrenha

Para Doreen Massey, o espaço é uma dimensão implícita que molda nossas cosmologias estruturantes. Segundo a geógrafa inglesa, ele “modula nossos entendimentos do mundo, nossas atitudes frente aos outros, nossa política. (...) Se o tempo é a dimensão da mudança, então o espaço é a dimensão do social: da coexistência contemporânea de outros” (2009: 15). Em seu livro Pelo espaço: uma nova política da espacialidade, Doreen concebe o espaço como uma imbricação de trajetórias, sempre aberto aoinesperado, ao acaso, e que, enquanto locusda existência contemporânea, é marcado pela multiplicidade, pelo encontro com o “outro” – colocando-nos, assim, permanentemente frente ao desafio do novo.

Massey enfrenta aquela subentendida concepção de espaço como uma grande extensão através da qual viajamos; como a terra que se estende ao nosso redor, o que faz com que o espaço pareça uma superfície, contínuo e tido como algo dado. Para ela, essa maneira de entender o espaço pode, facilmente, nos levar a pensar outros povos, lugares e culturas simplesmente como um fenômeno “sobre” uma superfície – fazendo com que os mesmos fiquem desprovidos de história. Ela cita, como exemplo, a chegada dos espanhóis ao México: ao invés de ser um encontro de trajetórias, esse evento é visto como se os mexicanos estivessem imobilizados, esperando o desembarque do “descobridor”, o único agente ativo, quem atravessa o oceano para se deparar com aquele que está, simplesmente, lá. Assim, as diferenças encontradas entre eles são tomadas como atraso, expressando espaço em tempo; transformando geografia em história.

Não devemos imaginá-los como tendo suas próprias trajetórias, suas próprias histórias específicas e o potencial para seus próprios, talvez diferentes, futuros. Não são reconhecidos como outros coetâneos. Estão, meramente, em um estágio anterior, na única narrativa que é possível fazer. Esta cosmologia de “única narrativa” oblitera as multiplicidades, as heterogeneidades contemporâneas do espaço. Reduz coexistências simultâneas a um lugar na fila da história (Massey,

2009: 24).

Tal concepção temporal do espaço aumenta as distâncias, e a possibilidade de múltiplas narrativas é perdida. Assim, a geógrafa busca praticar o espaço de maneira diferente, através do qual, na negociação de relaçõesdentro da multiplicidade (sob todas as suas formas: diversidade, subordinação, interesses conflitantes), o social é construído: “o que o espaço nos proporciona é a heterogeneidade simultânea; ele retém a possibilidade da surpresa, é a condição do social em seu mais amplo sentido e o prazer e o desafio de tudo isso” (Massey, 2009: 157). O espaço não é fixo e está em permanente construção. Como afirma Rosaly Deutsche (1996 apudMassey, 2009), o conflito não é algo que acontece a um espaço, mas o espaço é o produto do conflito.

Em O homem ao lado (El hombre de al lado, 2009), de Gastón Duprat e Mariano Cohn, acompanhamos um (des)encontro que o acaso e a multiplicidade que geram o espaço proporcionam, colocando a questão do viver junto e suas disputas.O protagonista, o arquiteto LeonardoKachanovsky, “a marretadas”, é obrigado a interagir com seu vizinho inesperado Víctor Chubeloatravés de uma fronteira (janela) que os une e os separa. Aqui, seguimos a definição de fronteira proposta por Andréa França, que se conecta com os postulados de Massey: “fronteira como linha demarcadora do idêntico, que limita, torna estável e mesmo enclausura um certo conjunto de valores e crenças, mas também lugar instável, de passagem e transição para o outro, o diferente” (França, 2003: 21).

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Leonardo e Víctorsão vozes discordantes que passam o filme descobrindo meios de acomodação. Para compreender como o filme aborda esses conflitos, nossa reflexão explorará, especialmente, a maneira como os personagens são construídos e se posicionam na miseenscène: como interagem entre si, com o espaço diegético e com a câmera.

Leonardo comunica-se com o mundo por meio de suas intervenções artísticas no espaço: porém, esse mundo é limitado àquele que possua dinheiro e “bom gosto”, buscando uma purificação do espaço que impeça o encontro com a alteridade e suas formas de negociação social. Da mesma forma, ele e sua família se isolam em sua casa-vitrine (a Casa Curutchet,1 em La Plata, única obra de Le Corbusier na América Latina) ou dentro do carro. Na Curutchet, os moradores se encerram em seus cômodos ao invés de socializarem nas áreas de convivência pensadas pelo arquiteto franco-suíço (ocupando os espaços comuns da casa apenas quando há visitas), ou a interação com o espaço exterior é permitida apenas se fundada em um olhar de admiração. Ademais, a residência está repleta de aparelhos de comunicação de última geração, mas que não são congregadores – tais aparelhos, como o notebook, ou o fone de ouvido, individualizam os espaços. Do mesmo modo, ainda que Le Corbusier buscasse que suas construções estivessem ligadas à cidade, os personagens que habitam a Curutchet insistem em separar-se do espaço público.E, ainda, de acordo com Carolina Soria:

Recupera-se, em um sentido inverso, a concepção arquitetônica da janela de Le Corbusier, na qual os muros exteriores se liberam e as janelas abarcam a largura da construção, melhorando a relação com o exterior. Aqui, a janela permite o ingresso do mundo exterior na vida da família Kachanovsky, colocando-a em crise, representando a abertura, a visão e a comunicação com um exterior que os personagens constantemente negam e querem ocultar, e que fica formalmente fora

de campo (Soria, 2010: 2).2

Assim, esses valores associados aos projetos de Le Corbusier estão suspensos na diegese. Dessa forma, nesse filme, podemos ver que o espaço e a arquitetura são vivos quando existem articulados àqueles que os usam.

***

Durante todo o filme, acompanhamos a Leonardo: se o personagem não está no centro do quadro, a câmera posiciona-se sobre seu ombro, mostrando-nos o que ele vê. É a partir dele que a história vai se desenvolver (apesar das intervenções desestabilizadoras de Víctor, acompanharemos as situações sempre através do arquiteto).Assim como Leonardo, a câmera é insegura: poucas vezes está fixa, e tampouco se vale de travellings ou outros movimentos mais precisos efetuados com equipamentos. Ela fica, maiormente, na mão, flutuando no espaço, pronta para espiar qualquer movimento novo, ou fugir a qualquer perigo que possa se apresentar.3Além do ponto de vista desse personagem, estamos sob seu ponto de escuta – procedimento significativo, já que Víctor e tudo que ele traz do mundo exterior chegam, especialmente, na forma de ruídos.

Como observa Frederico Canuto (2012), Leonardo e sua família são sempre vistos a partir de seu entorno: enquadrados pelas janelas e portas, rodeados de objetos, a câmera se esforça por mostrá-los ao mesmo tempo

1 A Casa Curutchet foi projetada por Le Corbusier em 1948 e edificada entre 1949 e 1953 em La Plata, uma das primeiras cidades do mundo (fundada em 1882) construída a partir de um plano urbanístico prévio. Encomendada ao arquiteto pelo médico Pedro Curutchet, a construção da casa teve muitos problemas e custou dez vezes mais que o planejado. Curutchet viveu aí com sua família por 12 anos, na década de 1960. Depois, o local esteve desocupado e esquecido, até que em 1988 uma fundação médica o alugou e, mais recentemente, o Colégio de Arquitetos da Província de Buenos Aires o utiliza como sede. Atualmente, há um projeto para expropriá-la e transformá-la em patrimônio público.2 Em O homem ao lado, o fora de campo constitui uma presença que inquieta e insiste sobre o espaço visível. Continuamente (e, especialmente, através dos sons off), esse espaço imaginário irrompe no devir das ações do espaço visível, modificando-as (Soria, 2010). Tradução nossa.3 De acordo com Anderson Roberti dos Reis (2012), também podemos pensar que essa maneira de situar a câmera evidencia a dificuldade de Leonardo em se posicionar no conflito com Víctor com algo que não seja fundamentado em desculpas, já que ele parece esquivar-se do quadro, escondendo-se.

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em que mostra o ambiente em que vivem. Enquanto cozinha, a cabeça de Leonardo é substituída pelo armário; enquanto trabalha, seu corpo é substituído pelo notebook. A filha, Lola, não se desconecta dos fones de ouvido, e a esposa, Ana, sempre possui algo em suas mãos: o celular, o telefone, um livro (e seu corpo também é substituído pelo notebook em mais de uma ocasião). Há uma relação simbiótica entre os espaços/objetos e os habitantes da Curutchet, e os corpos são como extensões da casa – dependentes, assim, do espaço onde se encontram ou dos objetos que os cercam.4

Por outro lado, Víctor é enquadrado sempre frontalmente, e seu rosto ocupa todo o plano, sem sobras de espaço. Há poucos elementos que exponham um contexto que possa vir a explicá-lo; não encontramos pontos de sua biografia para retornar nem presenciamos seu cotidiano. Nunca entramos em sua casa, apenas temos acesso a seu furgão em uma tomada fixa (ao contrário da câmera que passeia por toda a casa de Leonardo). O que nos é dado de Víctor é a existência de um tio, a maneira que se veste, seu gosto pela caça, sua arte feita a partir de munição velha, mas, especialmente,sua imagem captada em primeiro plano. Essa maneira de apresentar Víctor não apenas mantém o personagem enigmático (traço necessário para manter a tensão da narrativa), mas também nos remete à questão exposta por Massey sobre a recusa ao reconhecimento das histórias múltiplas: nega-se um lugar para Víctor, relegando-o a um estágio passado (ele é antiquado, selvagem).

O filme se inicia com a tela negra e os créditos, enquanto ouvimos o canto de passarinhos, sugerindo um lugar calmo e bucólico. Logo, a tela passa a ser dividida ao meio: de um lado, branca; de outro, cinza. Essa transição da tela negra à tela dividida é acompanhada pelo som da passagem de um carro em alta velocidade que buzina,ressignificando nossas impressões sobre o local da ação. Ouvimos também um cachorro latir, o que reforça essa sensação, já que vai se instaurando uma sutil poluição sonora. Ao fim dos créditos, surge uma marreta que começa a quebrar a parte cinza da tela, que então descobrimos ser uma parede – e cada lado da tela é uma face da parede. Não vemos quem detém a marreta, apenas os golpes. Conforme a marreta avança em seu trabalho, o lado branco vai se rachando, até que se abre um buraco, através do qual os dois lados se conectam. Nesse momento, podemos notar que a parede cinza não era pintada dessa cor, mas era escura pela falta de luz no ambiente.

O som reverberante das marretadas acorda Leonardo, que dormia em primeiro plano. Ele se levanta e é seguido de perto pela câmera que, assim, faz seu primeiro recorrido na casa pelas mãos de seu anfitrião, enquanto o personagem busca a origem dos ruídos. A proliferação do branco nesse espaço nos leva a intuir que Leonardo está do lado “iluminado” da tela dividida. Após um breve passeio (no qual a câmera, em um instante, deixa de acompanhar o arquiteto para captar um plano geral das rampas que compõem a casa), ele verifica que estão abrindo um buraco na parede que dá para a janela de sua casa. Ele grita descontrolado e vemos, pelo buraco, um homem na escuridão, quem vem explicar que depois limparia a sujeira feita do lado de Leonardo. O arquiteto não está preocupado com o entulho, mas, como afirma ao pedreiro, com o fato de abrir-se um buraco com vista para sua casa. A agressividade com o trabalhador é notória, quem sai de quadro (descontente com o tratamento recebido), já que deve esperar o dono da casa para continuar (ou não) seu serviço. Posteriormente, a câmera se posiciona mais distanciadamente da janela, mostrando esse novo ambiente da Curutchet, enquanto a família completa (Leonardo, Ana e Lola) observa, através do vidro, a janela vizinha em processo, ao que Leonardo suspira: “Que país feio, puta que pariu!”. Tudo o que está fora de sua casa impecável parece feio para Leonardo.

4 Todos os objetos da Curutchet, comprados em lojas de design ou museus internacionais (como é citado no filme), relacio-nam-se com o hermetismo formal modernista e clean da casa.

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Nessa primeira aparição, Leonardo é apresentado como arrogante e mal-educado. Em seguida, conhecemos mais sobre o personagem enquanto ele cria um site pessoal: arquiteto e designer importante que ganhou prêmios internacionais, seus produtos são sucesso de venda no mundo todo (o site deve ter vários idiomas: espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, japonês e chinês), é culto e conhece várias línguas (corrige a ortografia em outros idiomas e enfatiza que chinês é fundamental). Quando a câmera deixa a tela do computador para mostrar a situação na qual Leonardo dá instruções ao webdesigner, vemos essa sofisticação na composição do ambiente, confirmação de sua genialidade profissional que será enfatizada durante todo o filme através da exibição dos cômodos da Curutchet a partir de variados ângulos. Leonardo e a Curutchet são emblemas do design, da excelência e do bom gosto. Assim, há uma alternância entre planos gerais e primeiros planos, demarcando o protagonista e o espaço minimalista e ordenado da casa, frente a um exterior vegetal belo e tranquilo.

Enquanto vamos sendo absorvidos pela sofisticação de Leonardo (ele fala em inglês e alemão e, em uma ocasião, se dará o direito de interromper uma ligação internacional para cumprimentar a mulher), as marretadas recomeçam, ecoando no escritório do arquiteto. A câmera trepida levemente, como se o local fosse tomado por um tremor. Ele volta à janela, local onde perde toda sua elegância habitual, gritando, até aparecer Víctor. Leonardo dispara o mesmo discurso feito, anteriormente, ao pedreiro. Cordialmente, Víctor se apresenta e pede o mesmo a Leonardo. Para ambos, a questão é muito simples: segundo o arquiteto, é proibido fazer uma janela na medianeira; para o vizinho, os edifícios lhe taparam o sol e ele necessita iluminação. Para Leonardo, a abertura viola a intimidade de sua família; para Víctor, se já olham os Kachanovsky por todas aquelas janelas, que diferença faria mais uma? Leonardo não tem outros argumentos além daquele que afirma que uma janela ali seria contra a lei (o que já seria suficiente). Ao manejar um código amistoso e rechaçar a instância legal, propondo um tête à tête amigável e hospitaleiro (muito ao contrário do comportamento do protagonista), Víctor faz com que tudo que o arquiteto diga soe agressivo e autoritário, desconstruindo habilmente cada um de seus argumentos. A chuva que começa a cair no decorrer da conversa adianta a relação tempestuosa que se armará entre os dois.

Os Kachanovsky já são observados, mas em uma posição exibicionista e confortável. Morar em um marco da arquitetura moderna reforça o sucesso de Leonardo. Há sempre turistas tirando fotos do local e alunos de arquitetura têm aulas em sua calçada, e toda a família sorri para a câmera do avô. Ele não se incomoda com esse olhar admirador, e o toma como sendo também para si.Como analisa Vera Lúcia Follain Figueiredo,

A luta pelo direito à janela, travada por Víctor, recoloca (...) a questão da visibilidade, isto é, não se trata somente de quem tem o direito de ter acesso a um raio de sol, mas também de quem tem o direito de ver e ser visto. O olhar de admiração dos turistas, legitimado pela capacidade de reconhecer o valor artístico da obra do arquiteto, não incomoda Leonardo: o que o desespera é o olhar do vizinho, do homem comum que não possui a competência cultural específica para render homenagem àquele monumento arquitetônico, e, portanto, não sabe respeitar a distância que sua sacralização exigiria

(Figueiredo, 2012: 111).

As marretadas (acompanhadas de uma furadeira) ecoam nos espaços vazios da casa, permitindo à câmera mais um recorrido pelo local. O ruído acorda Leonardo pela segunda vez e, em uma elipse, o vemos, junto à mulher, encarar a medianeira, cujo buraco está tapado com um plástico preto, impedindo que se acompanhe o que se passa do lado de Víctor. Enquanto Ana insiste para que o marido vá averiguar o que está acontecendo, ele resiste: dentro de sua casa, o vizinho pode fazer o que quiser. Buscando sentir as vibrações para verificar se Víctor continua rompendo a janela ou outra parte da casa, Leonardo encosta as mãos e o rosto em seu lado do muro, expondo um voyeurismo sonoro que complementa a ação do casal na cena anterior.Quase o tempo

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todo, a “invasão” e o “imiscuir-se” do outro que se teme são apresentados como uma projeção da própria curiosidade e bisbilhotice. Vemos muito mais Leonardo e Ana espionando Víctor do que o contrário (embora muitas das falas de Víctor autorizem a conjecturar que ele também espiona).

Podemos pensar que o que Leonardo mais teme em Víctor é o fato de o vizinho tratá-lo como um igual. Ele é o único fora do círculo familiar de Leonardo que não se intimida com sua posição privilegiada e tenta ultrapassar limites que o arquiteto parece nunca ter experimentado – limites nos quais, por exemplo, Elba, a empregada, se encaixa, recebendo em troca um tratamento politicamente correto (Figueiredo, 2012). Ao encontrar-se com Víctor, Leonardo encontra-se com outro universo, no qual suas armas discursivas, seu poder e todas as suas seguranças são neutralizadas.Víctor pressiona Leonardo a ter experiências que nunca teve e, provavelmente, nunca teria: como, por exemplo, provar, com um garfo de plástico, o javali ao escabeche preparado pelo próprio vizinho (desde a caça do animal, contada em detalhes) e que chega até suas mãos através de um improvisado cabo de vassoura que sustenta um balde sujo de tinta, onde se encontra o pote com a conserva.

Por outro lado, o arquiteto depara-se com a inutilidade da lei para resolver o conflito. O amigo que ele consulta deixa bem claro: sim, é proibido fazer uma janela na medianeira; contudo, “essas coisas sempre se ajeitam falando”. Leonardo ainda não consegue compreender, ao que ouve: “A lei diz uma coisa, mas a vida diz outra”. Como afirma Anderson Roberti dos Reis,

(...) a altercação e as dificuldades na solução do problema surgem de uma diferença fundamental no modo como cada um dos protagonistas compreende e se relaciona com a noção de norma. Nesse sentido, trata-se mais de diferenças culturais do que de relações econômicas ou de poder. A obra que motiva a discórdia será significada distintamente por cada vizinho. Logo, em si, ela não constituirá o problema, que reside na disparidade entre os sentidos atribuídos pelos personagens às

circunstâncias que a envolvem (Reis, 2012: 245).

O arquiteto se dará conta, definitivamente, que a instância legal não servirá de nada para demover o impasse quando Víctor aparece em sua casa dizendo: “Como você manda um advogado atrás de mim? Estamos em La Plata, Buenos Aires, Argentina!”, expondo um Estado fragilizado, onde a manutenção da ordem está mais ligada a mecanismos da moral e da consciência individual que de regramentos jurídicos. Víctor se apoia nessas condições para ganhar tempo e conseguir o que deseja através do desenvolvimento de uma relação afetiva. Leonardo, por sua vez, entra nesse jogo inventando desculpas, como o descontentamento do sogro.

***

Víctor é mal-educado, invasivo, machista (“não percebe que as mulheres adoram dinheiro?”, “sou irresistível com as mulheres” – ao pensar que poderia demover Ana de sua opinião facilmente), preconceituoso (“o bar da esquina está cheio de cabeças chatas”), um rústico atrás do qual – segundo o preconceito de cada um – se aloja um violento perigoso. Leonardo é esnobe e pretensioso: como podemos notar não apenas na cena em que destrata o pedreiro ou o tio de Víctor, mas especialmente ao interromper a entrevista para a televisão, ou ao (des)orientar seus alunos. Quando busca reconhecer alguma qualidade no outro, sempre o faz de maneira irônica, de modo a inferiorizá-lo (como ao considerar a saída com Víctor uma experiência antropológica). Sua postura pedante tende a suscitar antipatias que nem sempre se revertem em simpatia à Víctor. Apesar de maltratar desconhecidos e humilhar seus alunos, Leonardo não consegue o mínimo respeito de sua filha e possui uma relação conflituosa com a mulher (com a qual mantém diálogos quase que exclusivamente sobre o problema com o vizinho). Víctor paira todo o tempo em um limbo entre o ridículo e o ameaçador, fazendo-nos rir, mas sem aderir totalmente a ele. Já Leonardo passa de ser a vítima a se tornar um algoz desajeitado. Sem nunca se desligar do ponto de vista de Leonardo, o filme alterna nossa inclinação e desconfiança entre

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um e outro vizinho. Podemos observar, ainda, nas trajetórias dos personagens e seus cruzamentos, o contraste entre a violência “civilizada” (oblíqua) de Leonardo e a violência “bárbara” (mais franca e direta) de Víctor. Tal oposição permanece até o fim, com Víctor utilizando uma escopeta para proteger Lola e Elba e Leonardo deixando de pedir socorro médico para o vizinho que agoniza.

O modo como a relação entre os personagens se desenvolve faz do título uma escolha evidente: o homem frisa distância, pois se trata de um desconhecido, a despeito da proximidade espacial (ao lado). Leonardo nunca chama Víctor por seu nome, tampouco o trata como vizinho (o que os ligaria de alguma maneira), e se refere a ele apenas como “o homem ao lado”, “selvagem”, e outros termos depreciativos que servem para marcar uma distância entre eles – não apenas física, mas um afastamento que os impeça de se relacionar. Víctor não pode ocupar a Curutchet nem que seja para defendê-la (ele morre dentro da casa), nem pode construir um novo espaço (a janela é fechada).

A cena inicial já antecipava a janela como elemento central e constitutivo do desenvolvimento argumental, já que a mesma será o eixo condutor de todas as ações, intervindo no devir dos personagens e modificando os vínculos que estabelecem entre si (Soria, 2010). O filme começa com sua abertura e termina com seu fechamento. A comunicação entre interior e exterior, e o encontro de dois mundos antes separados pela parede, se dá através da janela. Ela estabelece uma aproximação ao romper a medianeira: vizinhos que nunca se viram começam a se frequentar por causa da janela. A parede fazia com que Leonardo não precisasse participar de outra vida que não fosse a sua própria, e a janela é uma reconfiguração social que coloca os limites à prova durante todo o filme. Ainda que se deseje (e se cumpra) a eliminação de Víctor, a abertura da janela – e a chegada do novo vizinho – põem em marcha uma mudança no modo de morar na Curutchet.

Bibliografia:

Canuto, Frederico (2012). “O homem armário”, in Drops-Vitruvius. São Paulo: ano12, número 053.07, fevereiro. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/12.053/4228.

Figueiredo, Vera Lúcia Follain (2012). “A partilha do espaço urbano e a questão do outro próximo: repercussões no discurso teórico e na ficção cinematográfica”, in Galáxia. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. São Paulo: volume 12, número 24. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/10413/9429.

França, Andréa (2003). Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras.

Massey, Doreen (2009). Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Reis, Anderson Roberti dos (2012). “A América negociada e os homens ao lado”, in Territórios e Fronteiras. Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT. Cuiabá: volume 05, número 02, julho/dezembro. Disponível em: http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/169/139.

Soria, Carolina (2010). “Funcionalidad del marco y del fuera de campo en El hombre de al lado (2009)”. Trabalhoapresentado no II Congreso Internacional Artes en Cruce: Bicentenarios latinoamericanos y globalización, realizado entre 04 e 06outubro/2010 em Buenos Aires. Disponível em: http://artesencruce.filo.uba.ar/sites/artesencruce.filo.uba.ar/files/1-Cine-Soria.pdf.

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