Desenv Liberdade

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  • Faculdade de Economia do Porto Programa de Doutoramento em Economia

    Amartya Sen

    Desenvolvimento como Liberdade

    Joo Oliveira Correia da Silva

  • PREFCIO Situao Actual Pontos positivos:

    - abundncia nunca vista; - governo democrtico e participativo; - direitos humanos e liberdade poltica no discurso dominante; - esperana de vida elevada; - grande interaco entre as diferentes zonas do globo.

    Situao Actual Pontos negativos:

    - persistncia da pobreza e necessidades elementares insatisfeitas; - fome e subnutrio; - violaes das liberdades polticas e das liberdades bsicas; - desprezo pelos interesses e actividades das mulheres; - ameaas ao ambiente e sustentabilidade da nossa vida econmica e

    social; A superao destes problemas central ao exerccio do desenvolvimento. A aco individual essencial nesse sentido, mas a sua liberdade de aco condicionada pelas oportunidades sociais, polticas e econmicas. Existe uma complementaridade entre aco individual e agenciamentos sociais. A expanso da liberdade o fim prioritrio e, simultaneamente, o meio principal do desenvolvimento. O desenvolvimento consiste na remoo de vrios tipos de restries que deixam s pessoas pouca escolha e pouca oportunidade para exercerem a sua aco racional. Certas liberdades tm um papel instrumental na promoo de liberdades de outras espcies. As liberdades econmica e poltica reforam-se uma outra. Oportunidades sociais de educao e sade complementam as oportunidades individuais de participao econmica e poltica, e estimulam as nossas iniciativas no sentido de superar privaes. O ponto de partida desta abordagem reside na identificao da liberdade como o principal objecto do desenvolvimento; o alcance da anlise poltica consiste em estabelecer os nexos que tornam este ponto de partida coerente e consistente. Configura-se a necessidade de uma anlise integrada das actividades econmicas, sociais e polticas, particularmente das interaces entre certas cruciais liberdades instrumentais:

    - oportunidades econmicas; - liberdades polticas; - servios sociais; - garantias de transparncia; - segurana protectora.

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  • INTRODUO Desenvolvimento como liberdade O desenvolvimento pode ser encarado como um processo de alargamento das liberdades reais de que uma pessoa goza. A tnica nas liberdades humanas contrasta com perspectivas mais restritas de desenvolvimento, que o identificam com o crescimento do produto nacional bruto, com o aumento das receitas pessoais, com a industrializao, com o progresso tecnolgico, ou com a modernizao social. Considerar o desenvolvimento como expanso das liberdades substantivas orienta a aco para os fins que tornam o desenvolvimento algo importante, mais do que para os meios que desempenhem papis de relevo. Eficcia e interligaes A liberdade nuclear ao processo de desenvolvimento por duas ordens de razes:

    1. Avaliao: a apreciao do progresso tem de ser feita em termos do alargamento das liberdades das pessoas;

    2. Eficcia: a eficcia do desenvolvimento depende da aco livre das pessoas.

    O que as pessoas podem efectivamente realizar influenciado pelas oportunidades econmicas, pelas liberdades polticas, pelos poderes sociais e por condies de possibilidade como a boa sade, a educao bsica, e o incentivo e estmulo s suas iniciativas. Alguns exemplos: liberdade poltica e qualidade de vida A natureza radical da concepo do desenvolvimento como liberdade pode evidenciar-se com alguns exemplos elementares. frequentemente questionado se certas liberdades polticas e sociais (como a liberdade de participao ou discordncia polticas, ou as oportunidades de receber educao bsica) so, ou no, indutoras de desenvolvimento. Esta forma de colocar as questes passa ao lado da compreenso capital de que estas liberdades so constituintes do desenvolvimento. Estas liberdades so eficazes como contributo para o progresso econmico, mas essa justificao das liberdades vem depois de e sobre o papel directamente constitutivo destas liberdades para o desenvolvimento. O rendimento e a liberdade de viver bem e por muito tempo divergem. Os cidados do Gabo, da frica do Sul ou do Brasil podem ser, em termos de PIB per capita, muito mais ricos do que os cidados do Sri Lanka, da China,

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  • ou do estado indiano de Kerala. Mas os ltimos tm uma esperana de vida substancialmente superior. frequentemente realado o facto de os afro-americanos nos Estados Unidos, sendo relativamente pobres, so muito mais ricos do que os povos do terceiro mundo. No entanto, tm absolutamente menos hipteses de alcanar uma idade avanada do que povos de muitas sociedades do terceiro mundo, como a China, o Sri Lanka, ou algumas partes da ndia. Transaces, mercados e restries econmicas A capacidade dos mecanismos de mercado para contriburem para um elevado crescimento econmico e para um progresso econmico global tem sido largamente, e correctamente, reconhecido na literatura contempornea sobre o desenvolvimento. Mas esta liberdade no apenas um meio. Como Adam Smith salientou, a liberdade de troca e transaco , em si mesma, parte e poro das liberdades bsicas a que as pessoas, justificadamente, atribuem valor. A no aceitao da liberdade de participar no mercado de trabalho uma das maneiras de conservar as pessoas em servido e cativeiro, e a luta contra a explorao do trabalho forado em muitos pases do terceiro mundo , hoje, importante por razes semelhantes s que tornaram imperiosa a guerra civil americana. O elogio do capitalismo em Karl Marx e a caracterizao que, em O Capital, faz da guerra civil americana, aquele grande acontecimento da histria contempornea, esto relacionados com a importncia da liberdade de contrato de trabalho, em oposio escravatura. A liberdade de participar nas trocas econmicas tem um lugar bsico na vida social. A abordagem do desenvolvimento como liberdade proporciona uma perspectiva mais lata e mais inclusiva dos mercados do que a que frequentemente invocada quando se defendem ou quando se vituperam os mecanismos do mercado. Organizaes e valores A viso do desenvolvimento como um processo integrado de expanso de liberdades concretas imbricadas umas nas outras permite a apreciao simultnea do papel vital de muitas instituies diferentes, incluindo mercados e organizaes relacionadas, governos e autoridades locais, partidos polticos e instituies cvicas, sistemas educacionais, meios de comunicao, etc. Tal abordagem permite-nos reconhecer o papel dos valores sociais e dos valores dominantes, que influenciam as liberdades de que as pessoas gozam e justificadamente resguardam. Normas partilhadas influem nas realizaes

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  • sociais, como a igualdade dos gneros, a natureza dos cuidados infantis, o planeamento familiar e os modelos de procriao, ou o modo como se lida com o ambiente. Os valores dominantes e os costumes sociais afectam tambm a presena e ausncia da corrupo e o papel da confiana nas relaes econmicas, sociais e polticas. O exerccio da liberdade mediatizado por valores, mas, por sua vez, os valores so influenciados pelo debate pblico e pelas interaces sociais, estes mesmos influenciados pelas liberdades de participao. O grande racionalista do sculo XVIII, Condorcet, esperava que as taxas de fertilidade baixassem com o progresso da razo, pois uma maior segurana, melhor educao, e mais liberdade restringiriam o crescimento populacional. Em oposio, o seu contemporneo Thomas Malthus defendia que no h qualquer razo para supor que algo, a no ser a dificuldade de obter o tanto quanto adequado s necessidades da vida, poderia quer evitar que um grande nmero de pessoas se casasse mais cedo, quer impedi-las de criar saudavelmente famlias numerosas. Esta controvrsia particular apenas um exemplo do debate, em matria de desenvolvimento, entre as abordagens pr e contra a liberdade. Instituies e liberdades instrumentais So cinco as espcies de liberdade, vistas sob uma perspectiva instrumental:

    - liberdades polticas; - disponibilidades econmicas; - oportunidades sociais; - garantias de transparncia; - proteco da segurana.

    Na perspectiva do desenvolvimento como liberdade, as liberdades instrumentais ligam-se umas s outras e com os fins de plenitude da liberdade humana em geral. Nota conclusiva As liberdades no so apenas o fim primordial do desenvolvimento, contam-se tambm entre os meios principais. As liberdades polticas (sob a forma de livre expresso e eleies) ajudam a promover a segurana econmica. As oportunidades sociais (sob a forma de servios de educao e de sade) facilitam a participao econmica. Os dispositivos econmicos (sob a forma de oportunidade de participar no comrcio e na produo) podem ajudar a gerar tanto a riqueza pessoal como os recursos pblicos destinados a servios sociais. As liberdades de diferentes espcies podem reforar-se umas s outras.

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  • CAP. 1 A perspectiva da liberdade No texto snscrito Brihadaranyaca Upanishad, uma mulher chamada Maytreyee e o seu marido Yajnavalkya discutem uma questo mais vasta do que a relativa aos meios de obter riqueza: qual a dimenso da riqueza que nos ajudar a obter o que queremos? Nesta discusso Maytreyee faz uma famosa pergunta retrica: Para que me serve algo atravs de qu no me torno imortal? Interessante para a economia, e para compreendermos a natureza do desenvolvimento, a relao entre recursos e realizaes, entre bens e potencialidades, entre a nossa riqueza econmica e a capacidade para vivermos como gostaramos. Como notava Aristteles em tica a Nicmaco, a riqueza no manifestamente o bem que buscamos; pois ela meramente utilitria, em vista de outra coisa. Os ganhos e a riqueza so meios genricos de perseguirmos o tipo de vida que razoavelmente valorizamos. to importante reconhecer o papel central da riqueza na determinao das condies e da qualidade de vida como compreender a natureza especfica e contingente dessa relao. O crescimento econmico no pode ser tratado como um fim em si mesmo. Deve referir-se promoo da vida que construmos e s liberdades de que usufrumos. Formas de privao A maioria da populao mundial sofre de diversos tipos de privao, a muitos milhes mesmo recusada a liberdade bsica de sobreviver:

    - privao de alimentos; - privao de uma nutrio adequada; - privao de cuidados de sade; - privao de saneamento bsico ou gua potvel; - privao de uma educao eficaz; - privao de um emprego rentvel; - privao de segurana econmica e social; - privao de liberdades polticas e direitos cvicos.

    O desenvolvimento econmico inclui a dimenso da segurana econmica, que est ligada aos direitos democrticos e s liberdades. O funcionamento da democracia e dos direitos polticos pode ajudar a prevenir fomes e outras calamidades econmicas. Na histria do mundo, nunca houve uma epidemia de fome numa democracia efectiva, rica ou pobre. A liberdade poltica e as liberdades cvicas so imediatamente importantes em si mesmas e no tm de ser indirectamente justificadas pelos seus efeitos

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  • na economia. Pessoas sem liberdade poltica ou direitos cvicos esto privadas de liberdades importantes para a construo das suas vidas e vem recusada a oportunidade de participarem em decises cruciais respeitantes vida pblica. Processos e condies A perspectiva da liberdade aqui assumida inclui os processos que proporcionam a liberdade de aco e de deciso e as condies reais das pessoas. A distino entre processo da liberdade e condio da liberdade compreende uma diferena substancial, e ambas as perspectivas esto relacionadas com a considerao do desenvolvimento como liberdade. Duas funes da liberdade A importncia nuclear da liberdade individual no conceito de desenvolvimento relaciona-se com duas razes: a avaliao e a eficcia. O sucesso de uma sociedade deve ser avaliado pelas liberdades concretas de que gozam os seus membros. Esta perspectiva difere das que se centram na utilidade, na liberdade de procedimentos, ou no rendimento real. Ter liberdade para fazer coisas a que se atribui valor tem valor por si mesmo, e melhora as condies para obter resultados. A liberdade no s a base da avaliao do sucesso e do fracasso, mas tambm a principal determinante da iniciativa individual e da eficcia social. Sistemas de avaliao: rendimentos e potencialidades Esta abordagem diferencia-se das anlises tradicionais:

    - a fixao economicista no primado do rendimento e da riqueza; - o foco utilitarista na satisfao mental; - a preocupao libertria com os procedimentos em vista da

    liberdade. Mas no nega a relao entre a magreza dos rendimentos e a privao das potencialidades individuais, que se estabelece nos dois sentidos:

    1. baixo rendimento pode ser causa de iliteracia, falta de sade, fome e subnutrio;

    2. uma melhor educao e sade ajudam a obter rendimentos mais elevados.

    O papel do rendimento e da riqueza tem de ser integrado numa descrio mais ampla e complexa do sucesso e da privao. Pobreza e desigualdade

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  • A privao das potencialidades elementares pode reflectir-se em mortalidade prematura, acentuada subnutrio, doena crnica, iliteracia generalizada e outras carncias. O desemprego macio na Europa (10% a 12%) arrasta privaes que no tm expresso adequada nas estatsticas de distribuio de rendimento. Essas privaes so menosprezadas, sob o pretexto de que existe um sistema de segurana social que compensa a perda de rendimento. Mas o desemprego tem efeitos profundamente debilitantes sobre a liberdade, a iniciativa e as competncias individuais. Contribui para a excluso social, e conduz a perdas de auto-estima, de autoconfiana e de sade fsica e psicolgica. Rendimento e mortalidade notvel que a carncia de grupos particulares nos pases muito ricos possa ser comparvel s do chamado terceiro mundo. Nos Estados Unidos, o grupo dos afro-americanos tem hipteses menores de chegar a idades avanadas que as pessoas nascidas nas economias muito mais pobres da China, do estado indiano de Kerala, do Sri Lanka, da Jamaica ou da Costa Rica. Mesmo tendo rendimentos per capita (ajustados pelo custo de vida) muitas vezes superiores. Os contrastes entre rendimentos e longevidade so funo de dispositivos sociais e relaes comunitrias como a assistncia mdica, cuidados de sade pblica, educao escolar, lei e ordem, nveis de violncia, etc. Liberdade, potencialidade e qualidade de vida Alm da liberdade de sobreviver em vez de sucumbir a uma mortalidade precoce, h muitas outras liberdades igualmente importantes. A abrangncia extensiva de liberdades vista, por vezes, como um problema para a obteno de uma abordagem operativa do desenvolvimento centrado na liberdade. Focar a qualidade de vida e as liberdades concretas, mais do que no rendimento e riqueza, um desvio da tradio mais recente da economia. Mas tem muito em comum com as preocupaes anteriores, incluindo as de Aristteles e de Adam Smith. Ao fundar o mtodo da receita e o mtodo da despesa para determinar o rendimento nacional, William Petty visava o Bem Comum e a Felicidade particular de cada homem. Joseph-Louis Lagrange converteu as quantidades de trigo e outros cereais nos seus equivalentes funcionais, tal como as quantidades de carne e de bebida. Ao centrarmos a anlise na funcionalidade final mais do que nos simples bens, reivindicamos algo da antiga herana disciplinar da economia.

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  • Mercados e liberdades A recusa, atravs de controlos arbitrrios, das oportunidades de comerciar, pode ser, em si mesma, uma fonte de privao. A liberdade de intercmbio e de transaco sem obstruo nem impedimento importante em si mesma. Uma questo mais em voga hoje em dia muito diferente: a de que os mercados funcionam especificamente para expandir o rendimento, a riqueza e as oportunidades econmicas das pessoas. As duas defesas do mercado so substancialmente diferentes, mas vlidas. Tomemos o argumento de que um sistema de mercado competitivo pode ter uma eficcia impossvel a um sistema centralizado, quer por causa de uma economia de informao (no preciso que cada agente tenha uma grande massa de dados), quer por causa da compatibilidade dos incentivos (as aces de uns fundem-se fluentemente nas de outros). Suponhamos que o mesmo resultado poderia ser obtido atravs de um sistema completamente centralizado. Teria esse sido um bom desempenho? No. que nesse cenrio teria faltado a liberdade de as pessoas decidirem relativamente ao seu trabalho, produo, consumo, etc. O deslocamento do foco da liberdade para a utilidade teve um preo: o menosprezo do valor nuclear da prpria liberdade. Uma das maiores mudanas no processo de desenvolvimento em muitas economias implica a substituio do trabalho servil e do trabalho forado, por um sistema de trabalho livre contratualizado e de no restrio da deslocao fsica. O rendimento e a longevidade dos trabalhadores escravos do sul dos Estados Unidos era superior ao dos operrios industriais livres. Mas os escravos fugiam, e nem os elevados rendimentos prometidos aps a abolio da escravatura, permitiram a sua contratao sob a forma de brigadas de trabalho. Os comentrios favorveis de Karl Marx ao capitalismo, por ir contra a falta de liberdade dos esquemas de trabalho pr-capitalista, referem-se a esta questo, que o levou a caracterizar a guerra civil americana como o grande acontecimento da histria contempornea. Este um dos casos em que a anlise marxiana teve afinidade com a perspectiva libertria em oposio utilitarista. Valores e processo de avaliao Dado termos diversas espcies de liberdades, precisamos de pesos especficos para os diferentes tipos de liberdades. H avaliaes implicadas em todas as abordagens (o utilitarismo, o libertarismo, e outras), mesmo que sejam feitas implicitamente.

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  • A valorizao explcita criticada, mas tem a vantagem de ser aberta crtica e ao juzo pblico. Um dos argumentos mais poderosos a favor da liberdade poltica reside no facto de dar aos cidados a oportunidade de discutir e debater valores para eleger as prioridades. Tradio, cultura e democracia A questo da participao nuclear para alguns dos problemas fundamentais que tm mitigado a fora e o alcance da teoria do desenvolvimento. Se um modo de vida tradicional tiver de ser sacrificado para escapar a uma pobreza esmagadora ou a uma esperana de vida mnima, o povo directamente implicado que deve ter a oportunidade de participar na deciso do caminho a escolher. O conflito real entre:

    1. o valor bsico, segundo o qual deve ser permitido s pessoas decidir livremente que tradies desejam, ou no, seguir;

    2. a insistncia em que as tradies estabelecidas devem ser acatadas, ou seja, que as pessoas devem obedecer s decises das autoridades, religiosas ou laicas, que tutelam as tradies reais ou imaginrias.

    A fora do primeiro preceito reside na fora da liberdade humana que, uma vez aceite, tem grandes consequncias sobre o que pode ou no ser feito em nome da tradio. A liberdade de todos para participarem na deciso relativa s tradies a respeitar no pode ser normalizada pelos guardies nacionais ou locais nem pelos ayatollahs (ou outras autoridades religiosas), nem pelos governantes polticos (ou pelos ditadores), nem por especialistas da cultura (domsticos ou estrangeiros). A orientao a tomar, em qualquer conflito real entre a preservao da tradio e as vantagens da modernidade, requer uma resoluo participativa. Dado que a participao requer conhecimento e competncias educacionais bsicas, negar a oportunidade de escolarizao a algum grupo contrrio s condies elementares da liberdade participativa. Notas conclusivas Considerar o desenvolvimento em termos das liberdades concretas das pessoas tem implicaes de longo alcance, como a da importncia central da remoo de privaes. O sublinhar das liberdades na avaliao do desenvolvimento no equivale a afirmar que h um critrio nico e exacto do desenvolvimento. Dada a heterogeneidade dos diferentes componentes da liberdade, como das diferentes pessoas, haver provas em direces contrrias. Haver oportunidade, mais frente, de examinar a questo essencial da participao como parte do processo de desenvolvimento.

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  • CAP. 2 Os fins e os meios do desenvolvimento H uma perspectiva que encara o desenvolvimento como um processo violento, com muito sangue, suor e lgrimas. Segundo ela, preciso resistir a tentaes como a previdncia social, os servios sociais, o desvio de orientaes institucionais inflexveis, o favorecimento dos direitos polticos e cvicos, e o luxo da democracia. Aqui e agora, o que preciso rigor e disciplina. A corrente alternativa v o desenvolvimento como um processo amigvel. A naturalidade deste processo exemplifica-se pelas trocas mutuamente benficas, redes de trabalho de assistncia social, liberdades polticas e desenvolvimento social. Papis constitutivo e instrumental da liberdade A abordagem deste livro conduz muito mais com a perspectiva do desenvolvimento amigvel. O desenvolvimento concebido como um processo de expanso das liberdades reais de que as pessoas gozam. O alargamento da liberdade simultaneamente o fim primeiro e o principal meio de desenvolvimento. Podemos chamar-lhes, respectivamente, papel constitutivo e papel instrumental da liberdade no desenvolvimento. O papel constitutivo respeita importncia das liberdades concretas para o enriquecimento da vida humana. Estas liberdades concretas incluem: potencialidades elementares, como evitar a fome, a subnutrio, as doenas evitveis, a mortalidade precoce; liberdades associadas literacia, acesso participao poltica, liberdade de expresso, etc. Dentro de perspectivas mais estreitas de desenvolvimento (em termos de crescimento do produto interno bruto, por exemplo), interroga-se muitas vezes se a liberdade de participao poltica ou no indutora de desenvolvimento. luz da perspectiva do desenvolvimento como liberdade, esta questo falha a compreenso essencial de que a participao e a oposio polticas so partes constitutivas do prprio desenvolvimento. A questo ponderava apenas o papel instrumental dessas liberdades, no considerando o papel constitutivo. O papel instrumental da liberdade diz respeito ao modo como os diferentes tipos de direitos, oportunidades e habilitaes contribuem para o alargamento da liberdade humana em geral, promovendo, assim, o desenvolvimento. Um certo tipo de liberdade pode ser de grande ajuda para a promoo de outros tipos de liberdade.

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  • Liberdades instrumentais H cinco tipos de liberdade que merecem ser destacados na perspectiva instrumental:

    - liberdades polticas; - dispositivos econmicos; - oportunidades sociais; - garantias de transparncia; - previdncia social.

    Estas liberdades reforam-se mutuamente, so coesas. As liberdades polticas referem-se s possibilidades que as pessoas tm de decidir quem e segundo que princpios deve governar, e inclui a possibilidade de vigiar e criticar as autoridades, de gozar da liberdade de expresso poltica e de uma imprensa sem censura prvia, de escolher entre diferentes partidos polticos, etc. Os dispositivos econmicos respeitam as oportunidades de que os indivduos dispem para utilizar os recursos econmicos para consumo, produo ou troca. Na relao entre rendimento e riqueza, por um lado, e capacidades econmicas dos indivduos, por outro, as preocupaes distributivas tambm so importantes. As oportunidades sociais esto relacionadas com os dispositivos que as sociedades organizam em favor da educao, dos cuidados de sade, etc., que tm influncia na liberdade concreta de os indivduos viverem melhor. A iliteracia pode ser um obstculo de monta participao nas actividades econmicas, ou participao poltica. A sociedade funciona com base numa presuno bsica de confiana. As garantias de transparncia dizem respeito necessidade de abertura que as pessoas podem esperar. Estas tm um papel evidente na preveno da corrupo, da gesto irresponsvel e dos arrangismos subterrneos. necessria previdncia social para proteger as pessoas da misria. Este tipo de liberdade inclui dispositivos como subsdio de desemprego ou bancos alimentares. Interligaes e complementaridade Estas liberdades reforam as capacidades das pessoas, mas tambm se completam umas s outras, trazendo-se mutuamente um reforo suplementar. Por exemplo, o crescimento econmico, alm de aumentar os rendimentos privados, permite o alargamento dos servios sociais. Por outro lado, as oportunidades sociais, como a educao pblica ou os servios de sade contribuem para o desenvolvimento econmico.

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  • Cai por terra a crena, dominante em alguns crculos polticos, de que o desenvolvimento humano (expanso da educao, dos cuidados de sade, e de outras condies de vida) seria uma espcie de luxo a que s os pases ricos se podiam permitir. Diversos aspectos de comparao entre a China e a ndia Tanto a China como a ndia tm tentado acercar-se de uma economia mais aberta, internacionalmente activa e de mercado. Os resultados macios obtidos pela China no ocorreram na ndia. A China estava melhor preparada em termos de educao bsica e disseminao de cuidados de sade. Quando, em 1979, se virou para o mercado, a China tinha um povo com um alto nvel de literacia. A ndia tinha ainda uma populao semi-iletrada quando, em 1991, se abriu ao mercado, e a situao no tem melhorado muito. A comparao das condies de sade tambm muito favorvel China. Devem notar-se as limitaes da China em termos de liberdades democrticas. A falta dessa fora protectora notou-se no perodo de 1958-1961, quando trinta milhes de pessoas morreram de fome, enquanto a ndia no teve uma nica fome desde 1947. Dispositivos sociais mediados pelo crescimento O impacto dos dispositivos sociais na liberdade de prolongar a existncia pode ser muito forte e ser influenciado por relaes instrumentais muito diversas. A esperana de vida tem uma correlao significativamente positiva com o custo de vida, mas esta correlao decorre do impacto do produto nacional bruto sobre os rendimentos dos pobres e sobre a despesa pblica, particularmente em cuidados de sade. Duas comparaes interessantes e inter-relacionadas: 1. Nas economias de alto crescimento econmico, a comparao entre:

    1.1. As com grande sucesso em aumentar a durao e a qualidade de vida, como a Coreia do Sul e Taiwan;

    1.2. As sem idntico sucesso, como o Brasil. 2. Nas economias com grande sucesso em aumentar a durao e a

    qualidade de vida, a comparao entre: 2.1. As com grande crescimento econmico, como a Coreia do Sul e

    Taiwan; 2.2. As sem idntico crescimento, como o Sri Lanka, a China antes da

    reforma, e o estado indiano de Kerala.

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  • Previdncia pblica, baixos rendimentos e custos relativos O processo publicamente assistido de reduo da mortalidade no espera por aumentos espectaculares dos nveis de rendimento real per capita e funciona pela prioridade atribuda oferta de servios sociais que reduzem a mortalidade e reforam a qualidade de vida. A necessidade de recursos frequentemente causa de adiamento de investimentos socialmente importantes at ao momento em que um pas se torne mais rico. A viabilidade deste processo publicamente assistido reside no facto de os cuidados de sade bsicos e a educao bsica serem de trabalho intensivo, sendo, portanto, baratos para economias pobres. O processo mediado pelo crescimento tem a vantagem de oferecer mais. H carncias muito directamente associadas escassez de rendimentos, como a carncia de roupas ou abrigo. claramente melhor gozar de elevados rendimentos e de uma elevada longevidade, do que s da segunda. Reduo da mortalidade no sculo XX em Inglaterra O ritmo temporal de expanso da esperana de vida particularmente interessante se tivermos em mente que, na viragem do sculo, mesmo a Inglaterra tinha uma esperana de vida nascena inferior dos actuais pases de baixo rendimento. Houve dois perodos de expanso rpida das polticas assistenciais, correspondentes s duas guerras mundiais. As situaes de guerra provocaram uma maior partilha dos meios de sobrevivncia. Por exemplo, durante a segunda guerra, em Inglaterra a oferta de alimentao per capita diminuiu significativamente, mas os casos de subnutrio declinaram drasticamente. Democracia e incentivos polticos A liberdade poltica e os direitos cvicos relacionam-se com a liberdade de evitar catstrofes econmicas. O suporte emprico desta afirmao provm do facto de no ocorrerem fomes nas democracias. As fomes so fceis de prevenir, por isso numa democracia pluripartidria, com eleies e meios de comunicao independentes, os incentivos polticos levam os governos a prevenir as fomes. Notas conclusivas O reforo da liberdade humana , simultaneamente, o fim principal e o meio primordial do desenvolvimento. As potencialidades individuais dependem fundamentalmente dos dispositivos econmicos, sociais e polticos. Devem

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  • ser considerados os papis instrumentais dos diferentes tipos de liberdade, e as suas inter-relaes. Os fins e os meios do desenvolvimento reclamam que se coloque a perspectiva da liberdade no centro das atenes.

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  • CAP. 3 A liberdade e os fundamentos da justia Annapurna precisa de algum para fazer a limpeza do jardim, e trs desempregados Dinu, Bishanno e Rogini desejam ardentemente o emprego. Qualquer que seja a sua escolha, obter o mesmo trabalho, exactamente pelo mesmo preo. Dinu o mais pobre, e isso faz com que se incline fortemente para o contratar (que poder ser mais importante do que ajudar o mais pobre?). Mas Bishanno empobreceu recentemente, e encontra-se deprimido. Todos concordam que Bishanno o mais infeliz dos trs, o que faz com que Annapurna encare muito favoravelmente a possibilidade de o contratar (eliminar a infelicidade tem de ser a primeira das prioridades). Por sua vez, Rogini sofre de uma doena crnica estoicamente suportada e poderia usar o dinheiro para se livrar da terrvel enfermidade. Annapurna pergunta-se se no seria justo dar o trabalho a Rogini (faria toda a diferena para a qualidade de vida e superao da doena). Sendo os trs factos conhecidos, a deciso depende da informao a que se der mais peso. A favor de Dinu a igualdade de rendimentos, por Bishanno a utilidade ou mtrica da felicidade, e por Rogini a qualidade de vida. Os dois primeiros casos so muito debatidos em economia, mas neste livro sero apresentados argumentos em favor do terceiro. Analisa-se em seguida a importncia da base informacional para os juzos de avaliao e a adequao das bases informacionais de algumas teorias-modelo, nomeadamente o utilitarismo, o libertarismo e a teoria da justia de Rawls. Ficar fundamentada a abordagem avaliativa alternativa, centrada na liberdade vista como as potencialidades do indivduo para fazer aquilo que fundadamente valoriza. Incluso e excluso de informao Uma abordagem avaliativa pode ser caracterizada pela informao necessria e pela informao excluda. Na forma clssica do utilitarismo, desenvolvida por Jeremy Bentham, utilidade definida como prazer, felicidade ou satisfao, e tudo se reduz a estes estados mentais. A liberdade individual e a realizao ou violao de direitos estabelecidos no so includos na estatstica do prazer. Mais ainda, o quadro do utilitarismo no tem interesse por uma real distribuio dos proveitos, dado que o fulcro inteiramente o do total de utilidade. O liberalismo no apresenta qualquer interesse pela felicidade ou pela satisfao dos desejos, e a sua base informacional consiste inteiramente nas liberdades e direitos de vrias espcies. A comparao das bases

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  • informacionais do utilitarismo e do liberalismo torna evidente que as concepes de justia resultantes sero muito diferentes, e definitivamente incompatveis. Esboaremos uma abordagem alternativa da justia, centrada na base informacional relativa s liberdades dos indivduos, integrando uma sensibilidade s consequncias. A utilidade como base informacional A base informacional do utilitarismo-tipo a soma total de utilidade. A ideia prestar ateno ao bem-estar de cada um, concebendo-o como o prazer ou a felicidade gerados. Os pressupostos de uma avaliao utilitarista podem dividir-se em trs componentes:

    - o consequencialismo, que consiste em julgar as escolhas apenas pelas suas consequncias;

    - o bem estar, que reduz a apreciao das situaes ao que til nelas;

    - e o somatrio, que simplesmente adiciona as utilidades de diferentes pessoas para obter a utilidade agregada.

    A injustia, nesta perspectiva, consiste na perda de total de utilidade. Dada a dificuldade de medir a felicidade ou o desejo, a utilidade define-se como uma representao numrica das escolhas observveis de uma pessoa. Vantagens da abordagem utilitarista A principal desvantagem da contabilizao com base na escolha a de no haver uma via de comparao entre pessoas, devido ao foco na escolha individual. Isto no se coaduna com o utilitarismo, que requer a comparabilidade para somar as utilidades. A abordagem utilitarista apresenta alguns pontos muito pertinentes:

    1. Tem em conta os resultados; 2. Atende ao bem-estar da populao;

    Tomemos como exemplo os direitos de propriedade. Houve quem os considerasse constitutivos da independncia individual e reclamasse que no se colocassem restries posse, herana e uso da propriedade, rejeitando at a incidncia fiscal sobre a propriedade ou o rendimento. No lado oposto, outros mostraram repulsa pela ideia das desigualdades de posse uns com tanto, outros com to pouco e reclamaram a abolio da propriedade privada.

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  • A abordagem consequencialista sugere que se considerem os efeitos benficos e perversos dos direitos de propriedade. A propriedade privada demonstrou ter efeitos muito benficos ao nvel da expanso econmica e da prosperidade. Por outro lado, o seu uso sem restries e sem impostos pode contribuir para a pobreza persistente, para a degradao ambiental e para o desenvolvimento da estrutura social. A ateno s consequncias e ao bem-estar tem, portanto, aspectos muito favorveis, como a valorizao dos resultados. Limites da perspectiva utilitarista As limitaes da perspectiva utilitarista evidenciam-se pela sua base informacional:

    1. Indiferena relativamente distribuio; 2. Desinteresse pelos direitos, liberdades, e outras preocupaes no

    utilitrias; 3. Acomodamento e condicionamento mental o clculo da utilidade

    pode tornar-se extremamente injusto para aqueles que sofrem de privaes persistentes, que tendem a acomodar-se e a ajustar os seus desejos e expectativas ao que vem como alcanvel.

    Factores sociais e econmicos, como a educao bsica, cuidados bsicos de sade e segurana no emprego so importantes no apenas em si mesmos, mas pelo papel que desempenham ao proporcionar s pessoas a possibilidade de enfrentar o mundo com coragem e liberdade. Precisamos de uma base informacional mais larga, focada nas potencialidades das pessoas para escolherem as vidas que justificadamente valorizam. John Rawls e a prioridade da liberdade A mais influente e importante teoria da justia, de John Rawls, tem um requisito particular, a prioridade da liberdade. A sua formulao moderada, mas a moderna teoria liberal explana vrias categorias de direitos desde as liberdades pessoais aos direitos de propriedade - como tendo total precedncia poltica sobre a busca de fins sociais. A defesa de uma prioridade total pode ser contestada pela demonstrao da fora de outras constataes, como a das necessidades econmicas. A questo a de se a relevncia da liberdade para a sociedade est convenientemente reflectida na ponderao que a prpria pessoa tenderia a atribuir-lhe. A salvaguarda de uma liberdade tem de estar relacionada com a aceitao poltica geral da sua importncia.

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  • Robert Nozick e o liberalismo Nas verses mais estritas da teoria liberal, h prioridade total dos direitos, incluindo os de propriedade. Na teoria de Nozick, as competncias que cabem aos indivduos graas a esses direitos no podem, em geral, ser preteridas devido aos seus resultados por mais repugnantes que estes possam ser. A prioridade incondicional dos direitos liberais pode tornar-se muito problemtica, visto que pode levar violao da liberdade concreta dos indivduos para realizarem aquelas coisas a que, com razo, atribuem grande importncia, como escapar mortalidade evitvel, ser bem alimentado e ter sade, saber ler e escrever, etc. A importncia destas liberdades no pode ser ignorada com base na prioridade da liberdade. Mostrei, em Pobreza e Fomes, que podem acontecer crises gigantescas de fome sem ter havido violao dos direitos liberais de ningum. Os indigentes, como os desempregados ou os arruinados, podem morrer de fome porque as suas competncias no lhes do comida que chegue. A proposta de uma teoria de prioridade poltica independente das consequncias afectada por uma indiferena s liberdades concretas que as pessoas acabam por ter. Ignorar as consequncias, como as liberdades que as pessoas conseguem exercer, no permite obter uma base adequada para um sistema de avaliao. Para a justia, requer-se uma base informacional mais larga. Utilidade, rendimento real e comparaes entre pessoas J referimos a limitao do utilitarismo que provm das distores introduzidas pela capacidade de acomodao psicolgica privao continuada. No uso moderno, a utilidade concebida apenas como a representao numrica da escolha de uma pessoa. Esta mudana ocorreu como resposta crtica de Lionel Robbins e outros positivistas, que convenceram os economistas de que havia algo de metodologicamente errado na comparao interpessoal de utilidades. Esta abordagem, tendo a vantagem de no comparar os estados mentais de pessoas diferentes. Por outro lado, fecha a porta comparao interpessoal de utilidades. De modo a possibilitar a comparao das utilidades e a determinao da utilidade conjunta, pressupe-se a igualdade das preferncias. Este pressuposto no legtimo. A coincidncia de atitudes de escolha no implica identidade de utilidades. Mais grave ainda assumir a igualdade de bem-estar. Admitamos que uma pessoa pobre com um mal de estmago crnico prefere dois quilos de arroz a um quilo, de forma semelhante a

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  • qualquer outra pessoa. Seria difcil sustentar que ambas tm o mesmo bem-estar. Estas comparaes de utilidade vm a ser apenas, no mximo, comparaes de rendimentos reais. E mesmo estas se complicam quando as pessoas tm diferentes funes de procura. A nvel prtico, a maior dificuldade na anlise do bem-estar baseada no rendimento real talvez resida na diversidade dos seres humanos. Diferenas de idade, de gnero, de dotes prprios, de carncias, de propenso para a doena, etc. podem fazer com que duas pessoas tenham oportunidades ou qualidade de vida completamente divergentes, mesmo quando partilham exactamente o mesmo cabaz de bens. Bem-estar: diversidades e heterogeneidades fcil identificar, pelo menos, cinco fontes diferentes de variao entre os nossos rendimentos reais e as vantagens bem-estar e liberdade que deles retiramos. 1. Heterogeneidades pessoais. As pessoas tm caractersticas fsicas diferentes, relacionadas com as suas carncias, doenas, idade ou gnero, e isso torna diferentes as suas necessidades. A compensao requerida pelas desvantagens variar, podendo estas no ser plenamente corrigveis, mesmo com transferncias de rendimentos. 2. Diversidades ecolgicas. Variaes nas circunstncias ambientais, como o clima, as doenas ou a poluio, podem influenciar o bem-estar que uma pessoa obtm com determinado nvel de rendimento. 3. Variaes no clima social. A converso de rendimentos e recursos pessoais em qualidade de vida influenciada tambm pelas condies sociais, como a educao pblica, a criminalidade, ou, novamente os problemas epidemiolgicos. A natureza das relaes comunitrias pode ser tambm muito importante. 4. Diferenas nas perspectivas relacionais. Ser relativamente pobre numa comunidade rica pode impedir que uma pessoa realize algumas funes elementares, como tomar parte na vida comunitria. Aparecer em pblico sem vergonha pode exigir maior consumo numa sociedade mais rica, como notou Adam Smith. Os recursos pessoais necessrios para satisfao da auto-estima variam intersocietalmente. 5. Distribuio no seio da famlia. Os rendimentos auferidos por um ou mais membros da famlia so partilhados por todos, por isso a famlia a clula bsica a considerar. O bem-estar ou a liberdade dos indivduos depende crucialmente da distribuio interna dos rendimentos, que pode estar relacionada com o gnero, a idade ou as necessidades visveis.

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  • O rendimento real , portanto, um critrio limitado para a avaliao do bem-estar e da qualidade de vida. Mas qual a alternativa? Rendimentos, recursos e liberdades A insuficincia de rendimento muitas vezes a principal causa das privaes que, normalmente, associamos pobreza, incluindo a falta de alimento e a fome. Quando se estuda a pobreza, devemos procurar informao sobre a distribuio de rendimentos, especialmente os baixos rendimentos reais. A anlise clssica de John Rawls sobre os bens primrios proporciona um quadro mais vasto dos recursos de que as pessoas necessitam, sejam quais forem as suas finalidades. Os bens primrios so meios para fins genricos e compreendem direitos, liberdades e oportunidades, rendimento e riqueza e a base social do auto-respeito. Se algum, tendo o mesmo cabaz de bens primrios, acaba por ser menos feliz que um outro, no h que misturar a injustia com esta diferena de utilidade. Uma pessoa, afirma Rawls, tem de assumir a responsabilidade pelas suas preferncias. A relao varivel entre rendimentos e bem-estar, que focmos anteriormente, aponta-nos uma alternativa nfase nos meios de viver bem: focar a vida real que as pessoas conseguem levar a cabo. Isto no novo em economia. Houve muitas tentativas da economia contempornea de se centrar directamente no nvel de vida, com destaque para os relatrios sobre o desenvolvimento humano. Adam Smith colocou assim a questo: Por coisas necessrias entendo no somente os bens que so indispensavelmente necessrios para sustentar a vida como tambm o que quer que seja, por mais baixa importncia que tenha, de que, segundo os costumes do pas, se torne indecente uma pessoa credvel ver-se privada. Uma famlia, na Amrica ou na Europa Ocidental, pode ter dificuldade em participar na vida social se no possuir certos bens, como um telefone ou uma televiso. A nfase ter de ser colocada, segundo esta anlise, nas liberdades geradas pelos bens, mais do que nos bens vistos em si mesmos. Bem-estar, liberdade e potencialidades Para muitos fins avaliativos, o horizonte adequado no nem o das utilidades, nem o dos bens primrios, mas o das liberdades concretas as potencialidades para escolher a vida que cada um tem razes para estimar. Teremos ento que ter tambm em conta as caractersticas pessoais que comandam a converso dos bens primrios em capacidade pessoal de promover os prprios fins. O conceito de funcionamento, com as suas razes claramente aristotlicas, reflecte as vrias coisas cujo exerccio ou posse uma pessoa pode valorizar.

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  • Os funcionamentos variam desde os elementares, como alimentar-se convenientemente e estar ao abrigo das doenas evitveis, at actividades muito complexas ou a condies pessoais, como tomar parte na vida social e ter auto-estima. A potencialidade de uma pessoa respeita s diferentes combinaes de funcionamentos cuja realizao est ao seu alcance. uma forma de liberdade: a liberdade concreta de realizar combinaes de funcionamento alternativas (de levar diferentes estilos de vida). Os funcionamentos particulares, as realizaes importantes e respectivas capacidades. Esta abordagem tem a vantagem de colocar estes problemas de juzo explicitamente, em vez de os escamotear nalgum enquadramento implcito. Cada funcionamento seria um vector, cujo comprimento representaria a quantidade desse funcionamento. O leque de capacidades consistiria nos vectores de funcionamento alternativos entre os quais a pessoa teria a possibilidade de escolher, representaria a liberdade. Os funcionamentos efectuados informam sobre as realizaes, enquanto o leque de capacidades informam sobre as coisas que uma pessoa concretamente livre de fazer. O valor real de um leque de opes reside no melhor uso e, supondo uma realizao mxima e ausncia de incerteza, no uso efectivamente feito. O leque de capacidades fica avaliado, em ltima anlise, pelo vector de funcionamento escolhido. Podemos atribuir importncia ao facto de existirem oportunidades que no so escolhidas. Estaremos a valorizar o prprio processo atravs do qual os resultados so provocados. A prpria escolha pode ser vista como um funcionamento valioso. Jejuar muito diferente de ser forado a passar fome. Valores, avaliao e escolha social Os funcionamentos individuais podem garantir comparaes interpessoais mais fceis do que as comparaes de utilidades. Muitos funcionamentos podem ser vistos separadamente das suas apreciaes mentais. A diversidade da converso de meios em fins reflecte-se j na extenso das realizaes e liberdades que podem constar de uma lista de fins. No entanto, as comparaes interpessoais de vantagens gerais requerem uma agregao de componentes heterogneos. A perspectiva da liberdade inevitavelmente pluralista. Primeiro, h diferentes funcionamentos, uns mais importantes do que outros. Segundo, necessrio ponderar a importncia das liberdades concretas (leque de capacidades) face s realizaes efectivas (vector de funcionamento escolhido). Finalmente, dado que no se pretende que a perspectiva da capacidade esgote todas as dimenses relevantes da inteno avaliativa, subsiste a questo de saber que ponderao atribuir s capacidades em comparao com as outras consideraes significativas.

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  • Como que se seleccionam os valores? Para uma pessoa, necessria reflexo. Para obter uma escala acordada para avaliao social, deve haver uma espcie de consenso. Este um processo de escolha social e requer debate pblico e esclarecimento e aceitao democrticos. Entre tecnocracia e democracia h uma opo na seleco dos valores. Um procedimento de escolha assente numa procura democrtica de acordo ou de consenso pode ser extremamente complexo, levando muitos tecnocratas a suspirar por uma frmula mgica. evidente que no existe, de todo, tal frmula mgica, pois a escala de valores uma questo de valorao e de juzo racional, no de qualquer tecnologia impessoal. Todos os que valorizam a transparncia pblica devem tornar claro que, quando se utilizam os rendimentos reais como critrio de comparao da qualidade de vida, um juzo que est a ser feito e que as medies implicitamente usadas devem ser objecto de anlise avaliativa. Se uma anlise pblica esclarecida fulcral para qualquer avaliao social, ou valores implcitos tm de ser tornados mais explcitos. tambm importante pr em evidncia que a mortalidade, a sade, a educao, as liberdades e os direitos reconhecidos recebem uma ponderao nula nas avaliaes baseadas numa abordagem dos rendimentos reais. Potencialidade de informao: usos alternativos A questo relativa estratgia concreta a seguir para avaliar polticas pblicas deve ser distinguida da questo fundacional relativa ao modo como as vantagens individuais so melhor ajuizadas e as comparaes interpessoais analisadas da maneira mais fina. Seguem-se as caractersticas de trs estratgias de avaliao. 1. A abordagem directa. Exame directo e comparao dos funcionamentos. Pode ser total, compreendendo a seriao de todos os vectores em termos de pobreza e desigualdade; parcial, seriando alguns vectores; ou selectiva de potencialidades, compreendendo a comparao de algumas potencialidades particulares. A comparao total uma via demasiado ambiciosa. Podem encontrar-se exemplos de comparao selectiva de potencialidades quando se centra a ateno numa varivel particular de potencialidade, como o emprego, a longevidade ou a literacia. 2. A abordagem suplementar. Implica o uso dos procedimentos tradicionais de comparao interpessoal no domnio dos rendimentos, complementando-os com a considerao das potencialidades. Pode incidir em comparaes directas dos funcionamentos ou em variveis instrumentais, como a disponibilidade de cuidados de sade, a discriminao de gnero ou a prevalncia do desemprego.

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  • 3. A abordagem indirecta. A informao acerca de determinantes de potencialidades diferentes do rendimento. Pode ser utilizada para calcular rendimentos ajustados. Baseia-se na literatura geral sobre escalas de equivalncia. A utilizao do rendimento como mtrica permite uma medio mais estrita e uma interpretao mais simples. A afirmao fundamental da importncia das potencialidades pode acompanhar diferentes estratgias de avaliao efectiva implicando compromissos prticos. Isso o que exige a natureza pragmtica da razo prtica. Notas conclusivas Conta-se que Euclides disse a Ptolomeu: No h via real para a geometria. Tambm no h uma via real para a avaliao de polticas econmicas ou sociais. A anlise deste captulo dirigiu-se para abordagens avaliativas especficas, nomeadamente o utilitarismo, o liberalismo, e a teoria da justia de Rawls. Verificou-se que cada uma tem vantagens e limitaes. A parte construtiva deste captulo examinou as implicaes da focalizao directa nas liberdades concretas, e evidenciou tambm as suas vantagens e limitaes. Tem uma amplitude e uma sensibilidade que lhe facultam um alcance muito largo, porque as liberdades das pessoas podem ser estimadas atravs de uma referncia explcita aos rendimentos e aos processos que elas tm razo para valorizar e buscar. Foram debatidas diferentes vias de utilizao da perspectiva baseada na liberdade, rebatendo a ideia de que tal uso tenha de revestir a forma de tudo ou nada. A anlise que se segue debrua-se sobre o subdesenvolvimento (concebido como carncia de liberdades) e o desenvolvimento (visto como processo de remoo de carncias da liberdade e expanso de vrios tipos de liberdades concretas).

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  • CAP. 4 A pobreza como carncia de potencialidades Defendemos que ao examinar a justia social, deveramos considerar as liberdades concretas de que uma pessoa goza para levar a vida que, com razo, valoriza. Desse ponto de vista, a pobreza deve ser encarada como privao de potencialidades bsicas mais do que como carncia de rendimentos. Um rendimento insuficiente uma forte condio que predispe para uma vida empobrecida. Mas h vrios argumentos a favor de abordar a pobreza em funo das potencialidades. 1. A abordagem centra-se nas privaes intrinsecamente importantes (o rendimento instrumentalmente importante); 2. Na carncia de potencialidades h outras influncias alm do rendimento; 3. A relao instrumental entre rendimento e potencialidade varivel entre comunidades diferentes e mesmo entre diferentes famlias e indivduos. Quando se considera e avalia a aco pblica votada a reduzir a desigualdade e a pobreza, o terceiro argumento especialmente importante. Num contexto de definio de poltica prtica, so de destacar algumas razes para a variabilidade da relao entre rendimentos e potencialidades: 1. A relao entre rendimento e potencialidade afectada pela idade, sexo, papel social da pessoa, geografia e epidemiologia. 2. Pode existir uma acumulao de desvantagens se a carncia de rendimento se combinar com adversidade na converso de rendimento em funcionamento. 3. A distribuio no seio da famlia dificulta a anlise baseada no rendimento. 4. A carncia relativa de rendimentos pode compreender a privao absoluta de potencialidades. A perspectiva das potencialidades introduz um acrscimo de compreenso da natureza e causas da pobreza e da privao, deslocando a ateno dos meios para os fins. Pobreza de rendimentos e pobreza de potencialidades A relao entre a pobreza como insuficincia de potencialidades e modicidade de rendimento ntima, e existe nos dois sentidos. O rendimento

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  • , sem dvida, um meio importante para as potencialidades. Estas, por sua vez, alargam a capacidade da pessoa ser mais produtiva e obter mais rendimento. Esta ligao no sentido oposto crucial para ultrapassar a pobreza. A educao bsica e os cuidados de sade, alm de melhorarem a qualidade de vida, aumentam tambm a capacidade da pessoa obter rendimentos. interessante que, apesar do bastante moderado registo de crescimento econmico, Kerala parea ter tido um ritmo de reduo da pobreza de rendimentos mais rpido do que qualquer outro estado da ndia. Enquanto alguns estados reduziram a pobreza de rendimentos atravs de um elevado crescimento econmico, o sucesso de Kerala dependeu da expanso da educao bsica, dos cuidados de sade e repartio equitativa da terra. A mera reduo da pobreza de rendimento no pode ser a motivao ltima de uma poltica antipobreza. As questes fundacionais de base obrigam-nos a compreender a pobreza e a carncia em termos da vida que as pessoas podem levar realmente e das liberdades que realmente exercem. Desigualdade em qu? A preocupao de Adam Smith com os pobres, e o seu escndalo perante a tendncia para descuidar esses interesses, estava relacionada com a utilizao da experincia mental do que tal pareceria a um espectador imparcial. De modo semelhante, John Rawls concebia a justia como equidade escolhida numa hipottica posio originria, na qual as pessoas no sabiam o que lhes aconteceria. Desigualdades profundas no so socialmente atractivas, podendo ser mesmo brbaras. O sentimento de desigualdade pode corroer a coeso social e certos tipos de desigualdade podem dificultar a aco eficaz. Apesar de tudo, as tentativas para erradicar a desigualdade podem conduzir a perdas para a maioria por vezes mesmo para todos. Para a avaliao de realizaes sociais foram propostas frmulas de compromisso que considerassem simultaneamente resultados cumulativos e distributivos. O rendimento equivalente equitativamente distribudo, de A.B. Atkinson, ajusta o rendimento agregado atravs da reduo do seu valor contabilstico em funo da desigualdade, com a ajuda de um parmetro que reflecte o nosso juzo tico. H uma espcie diferente de conflitos, relativa escolha do domnio, a varivel central em funo da qual se avalia ou analisa a desigualdade. A desigualdade de rendimentos pode diferir substancialmente da desigualdade de bem-estar, liberdade, sade ou longevidade. A questo do desemprego tambm evidencia o contraste entre a perspectiva do rendimento e a das potencialidades.

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  • Desemprego e carncia de potencialidades Se a perda de rendimento perfizesse tudo o que o desemprego acarreta, tal perda poderia ser minorada. Mas o desemprego pode causar carncias de outras espcies, como doenas psicolgicas, perda de motivao para o trabalho, de destrezas ou de auto-estima, aumento de doenas e de morbidade, rupturas nas relaes familiares e na vida social, agravamento da excluso social, das tenses raciais e assimetrias de sexo. Pode afirmar-se que o nvel de desemprego constitui um problema de desigualdade pelo menos to importante como a prpria distribuio do rendimento. A desigualdade em termos de rendimento menor na Europa Ocidental do que nos Estados Unidos, mas o nvel de desemprego muito superior. A tica social americana permite negligenciar o apoio aos indigentes e aos empobrecidos de um modo que um europeu ocidental no aceitaria. Mas a mesma tica americana consideraria os nveis de desemprego de dois dgitos, comuns na Europa, totalmente inaceitveis. evidente uma diferena de atitudes relativamente s responsabilidades sociais e individuais, a que regressarei. Cuidados de sade e mortalidade: atitudes sociais de Americanos e Europeus No domnio dos rendimentos, os afro-americanos so manifestamente mais pobres do que os americanos brancos. Isto visto como um exemplo da carncia relativa dos afro-americanos no seio da nao. Mas em comparao com a populao dos pases do terceiro mundo, os afro-americanos so muito mais ricos, mesmo tendo em conta a diferena de preos. Mas ser o rendimento o domnio adequado para fazer tais comparaes? Em termos de mortalidade prematura, os homens afro-americanos ficam atrs dos homens muito mais pobres da China, de Kerala, do Sri Lanka, da Costa Rica, etc. Nos anos 80, as taxas de mortalidade apresentam um significativo diferencial entre negros e brancos, mesmo aps o ajustamento baseado no rendimento. O alargamento da base informacional, do rendimento para as potencialidades elementares, enriquece a nossa compreenso da desigualdade e da pobreza de forma radical. Nas prioridades oficiais americanas, h pouco empenho em providenciar cuidados bsicos de sade para todos, e muitos milhes de pessoas no tm qualquer espcie de cobertura mdica ou de seguro nos Estados Unidos, nalguns casos, devido a condies mdicas prvias que afugentam os seguradores privados. Uma situao idntica na Europa, onde a cobertura mdica tida como um direito bsico do cidado, seria intolervel. Por outro

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  • lado, vimos que as taxas de desemprego europeias seriam intolerveis nos Estados Unidos. Estas diferenas dos imperativos polticos ficam evidenciadas quando encaramos a desigualdade em termos de limitaes especficas de potencialidades bsicas. Pobreza e carncia na ndia e na frica subsahariana A pobreza extremada est hoje concentrada em duas regies: o sul da ndia e a frica subsahariana. Tm os mais baixos nveis de rendimento per capita, e a perspectiva das potencialidades esclarece-nos acerca da natureza e do contedo das carncias dessas populaes. Em 1991, a esperana de vida nascena era inferior a 60 anos em 52 pases, que somavam uma populao de 1,69 mil milhes de pessoas. No sul da ndia e na frica subsahariana situavam-se 46 desses pases, com 1,63 mil milhes de pessoas. Se tomarmos a ndia e a frica subsahariana como um todo, estas regies tm nveis de literacia e taxas de mortalidade infantil semelhantes. A esperana de vida na frica subsahariana bastante inferior (cerca de 52 anos). Em 1991, a mdia de idade de morte na ndia era de 37 anos, enquanto na frica subsahariana era apenas de cinco anos. Em cinco pases africanos, a mdia da idade de morte era igual ou inferior a trs anos. Mas a subnutrio generalizada muito superior na ndia, apesar de haver auto-suficincia alimentar. A proporo de crianas subnutridas situa-se entre os 40% e os 60%; na frica subsahariana esse proporo est entre os 20% e os 40%. Alm disso, no que respeita mortalidade, o desvio entre os sexos um problema essencial na ndia, mas no na frica subsahariana. Uma apreciao comparativa das duas regies tem de ter em conta as respectivas experincias de desenvolvimento, nomeadamente o processo de independncia da ndia e as guerras em frica. preciso considerar tambm o problema da iliteracia, que atinge um em cada dois adultos em ambas as regies. Os trs traos capitais de carncia de potencialidades bsicas onde me concentrei para comparar e constatar a natureza da carncia na ndia e na frica subsahariana (mortalidade prematura, subnutrio e iliteracia) no proporcionam um quadro completo da pobreza de potencialidades, mas evidenciam falhas chocantes. No tentei propor uma medida totalizadora da privao, que pode ser muito menos interessante para a anlise poltica do que o padro completo das realizaes. A desigualdade de gnero e as mulheres a menos

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  • Em muitas partes do mundo, h um horrvel fenmeno de excesso de mortalidade das mulheres. Para alm da sua brutalidade, as taxas de mortalidade feminina artificialmente aumentadas reflectem uma sria privao de potencialidades das mulheres. Em toda a parte nascem mais meninos do que meninas (5% a mais), mas as mulheres sobrevivem melhor. No Reino Unido, Frana e Estados Unidos, o rcio de mulheres para homens superior a 1,05. Na sia e no norte de frica, esse rcio desce at aos 0,95 (Egipto), 0,94 (Bangladesh, China, sia Ocidental), 0,93 (ndia) ou mesmo 0,90 (Paquisto). Tomando como referncia o rcio mulher/homem subsahariano de 1,022, obtemos uma estimativa de 44 milhes de mulheres a menos na China, 37 milhes na ndia, e mais de 100 milhes no conjunto destes pases. Apesar dos relatos horrveis de infanticdio feminino na ndia, tal fenmeno no chega para explicar a dimenso da mortalidade feminina. A principal responsabilidade recai sobre a negligncia dos cuidados de sade e de alimentao s mulheres. Na China h sinais de agravamento da negligncia, em particular desde 1979, ano em que foram introduzidas restries obrigatrias procriao. O rcio entre nascimentos de meninos e meninas aumentou radicalmente, indicando a dissimulao dos nascimentos femininos e prticas de aborto selectivo conforme o sexo. Notas conclusivas Os economistas so criticados por se focarem muito na eficincia e pouco na equidade. A haver razo de queixa, assentar mais na importncia que atribuda desigualdade num domnio muito estreito, o da desigualdade de rendimento, com graves consequncias para a definio de poltica econmica. A relao entre desigualdade de rendimentos e desigualdade em outros aspectos relevantes pode ser demasiado distante e ocasional. A mortalidade, por exemplo, serve como indicador de injustias profundas que dividem raas, classes e gneros. A relao entre rendimento, por um lado, e realizaes e liberdades individuais, por outro, condicionada por vrios factores, como as heterogeneidades pessoais e a diversidade ambiental, social e cultural. Passar da comparao dos meios, sob a forma de diferena de rendimentos, para algo avalivel em si mesmo, exige a considerao de variaes circunstanciais que afectam as tabelas de converso. A necessidade de debater a valorao das diferentes potencialidades em termos de prioridades pblicas um proveito, pois obriga-nos a explicitar os juzos de valor. A participao pblica no debate valorativo parte essencial

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  • do exerccio da democracia e da escolha social responsvel. Numa abordagem orientada para a liberdade, as liberdades de participao no podem deixar de ser nucleares na anlise da poltica pblica.

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  • CAP. 5 Mercados, estado e oportunidade social destino habitual das novas verdades, diz T. H. Huxley em Science and Culture, comear como heresias e acabar como supersties. Algo muito semelhante parece ter acontecido com a verdade sobre a importncia dos mercados na vida econmica. Tempo houve em que qualquer economista sabia em que aspectos os mecanismos de mercado apresentavam limitaes. A rejeio intelectual do mecanismo de mercado levou muitas vezes a propostas radicais de organizar o mundo, sem uma considerao adequado dos problemas novos que estes dispositivos alternativos poderiam engendrar. As virtudes dos mecanismos de mercado so hoje aceites como de tal modo universais que as suas restries parecem irrelevantes. A f inquestionada de ontem tornou-se a heresia de hoje e a heresia de ontem agora a nova superstio. Mercados, liberdade e trabalho Em debates recentes, a tnica central da avaliao do mecanismo de mercado tendeu a colocar-se nos resultados que se obtm. Mas a causa mais imediata para a liberdade de transaco reside na importncia bsica da prpria liberdade. Temos boas razes para comprar, vender, trocar, e para procurar viver uma vida que pode expandir-se com base na transaco. Mesmo que os escravos afro-americanos do sul pudessem ter rendimentos to elevados como os dos trabalhadores assalariados do norte, subsistiria ainda, como carncia fundamental, a prpria escravatura. O desenvolvimento dos mercados livres, em geral, e da liberdade de procura de emprego, em particular, um facto muito valorizado nos estudos histricos. Mesmo esse grande crtico do capitalismo que foi Karl Marx viu na emergncia da liberdade de emprego um enorme progresso. Esta questo respeita tambm ao presente, como vou demonstrar com os seguintes exemplos: 1. Podem encontrar-se diferentes formas de servido laboral em muitos pases da frica e sia. Em Bihar (ndia), os proprietrios rurais da casta superior aterrorizam atravs do assassinato e violao as famlias dos trabalhadores vinculados s suas terras. Esta situao envolve criminalidade, e recebe a ateno dos meios de comunicao, que sero decisivos para que mude o estado de coisas. Mas subjacente actividade criminosa, a situao econmica de base implica uma luta tanto pela liberdade de emprego como pela posse da terra.

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  • 2. O fracasso do socialismo burocrtico na Unio Sovitica e na Europa Oriental no pode ser plenamente percebido pela anlise do rendimento per capita e da esperana de vida. A esperana de vida caiu aps a reforma, e nem por isso os partidos e as populaes pretendem regressar ao regime anterior. preciso reconhecer a ineficcia econmica do sistema comunista. Mas h ainda a questo mais imediata da recusa de liberdade. Os mercados eram , em muitos domnios, excludos, e certas pessoas malquistas do regime podiam ser impedidas de utilizar os mercados mesmo quando eles existiam. 3. O confrangedor problema do trabalho infantil envolve escravatura e servido. Pode originar-se nas carncias econmicas familiares, mas no topo do problema est a barbaridade de forar as crianas a fazer coisas, recusando-lhes, por exemplo, a liberdade de ir escola. O sistema de trabalho infantil torna-se muito mais bestial quando coincide com a servido e a escravatura de facto. 4. Muitas mulheres so impedidas de procurar emprego exterior famlia, em especial no terceiro mundo. Esta grave violao da sua liberdade impede-as tambm de obter uma maior fatia na distribuio do rendimento familiar. Esta proibio pode ser brutalmente implantada, como no Afeganisto dos talibans, ou ser simplesmente consequncia dos valores tradicionais. Mercados e eficcia Ao apreciar o mecanismo de mercado, importante ter em conta as formas de mercado: se so competitivos ou monopolsticos, se faltam mercados, as questes de informao imperfeita e as economias de escala. Na ausncia de tais imperfeies, usaram-se modelos clssicos de equilbrio geral para demonstrar a eficcia econmica do mecanismo de mercado, que conduz a uma situao ptima de Pareto. Nesta situao, ningum pode ver a sua utilidade aumentada sem que a utilidade de outrm seja diminuda. Esta eficcia de realizao teorema de Arrow-Debreu realmente importante, apesar dos pressupostos simplificadores. possvel questionar se a eficcia procurada no deveria ser medida em termos de liberdades individuais, mais do que em termos de utilidades. Boa parte das proposies de eficcia de Arrow-Debreu transfere-se para o domnio das liberdades. Um dos pressupostos utilizados o da ausncia de no comerciabilidade. No esquema clssico, presume-se que todos procuram o prprio interesse como motivao exclusiva. Este pressuposto de egosmo universal pode ser uma limitao, mas na procura de eficcia em termos de liberdades individuais esta limitao substancialmente ultrapassada.

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  • Acumulao das desvantagens e desigualdade de liberdades A concluso bsica da eficincia do mercado pode ser alargada perspectiva das liberdades concretas. Mas esta eficcia no nos informa acerca da equidade na distribuio das liberdades. A acumulao de desigualdades de rendimento com desigualdades na converso de rendimentos em potencialidades intensifica as carncias dos grupos desfavorecidos. Uma pessoa deficiente, doente ou idosa pode ter dificuldades para obter um rendimento decente, e dificuldades ainda maiores em converter esse rendimento em potencialidades e numa vida melhor. Os problemas da equidade tm de ser encarados, especialmente quando lidamos com carncias e pobreza severas. Nesse contexto, a interveno social pode ter um papel importante. exactamente isso que os sistemas de segurana social nos estados providncia tentam realizar. Permanece a necessidade de dar ateno simultaneamente eficincia e equidade dos resultados, pois a interveno, baseada na equidade, pode reduzir a eficcia do mecanismo de mercado. Muitos objectivos sociais so antagnicos, e por isso fundamental a considerao simultnea do conjunto dos objectivos. Mercados e grupos de interesse H muitas pessoas cujos interesses so bem servidos pelo funcionamento escorreito dos mercados, mas tambm h grupos cujos interesses podem ser feridos por esse funcionamento. Se estes forem politicamente mais influentes, podem conseguir bloquear certos funcionamentos dos mercados. As restries do mercado contra as quais Adam Smith se manifestava no eram a interveno social pblica, que era rudimentar, nem o fornecimento de servios pblicos, como a educao, que Smith defendia vigorosamente. Adam Smith via os mecanismos de mercado como um antdoto contra os interesses estabelecidos, que pretendiam monopolizar a produo, levando ao aumento dos seus lucros pela venda de produtos de baixa qualidade a preos elevados. Pareto tinha uma opinio semelhante: se uma certa medida A leva perda de um franco para mil pessoas, e ao ganho de mil francos para uma pessoa, este despender grande energia, enquanto os outros resistiro fracamente; e verosmil que, no final, aquele que tenta ganhar mil francos seja bem sucedido. A influncia poltica na procura do interesse econmico um fenmeno bem real, e do poder dos grupos de interesse que os mercados devem ser defendidos. Adam Smith escreveu: O interesse dos negociantes (...) sempre a vrios ttulos diferente, e mesmo contrrio ao do pblico. Concluindo que a proposta de qualquer lei ou regulamento de comrcio provinda dessa origem deveria ser sempre escutada com grandes

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  • precaues e nunca deveria ser adoptada antes de ter sido longa e cuidadosamente examinada, no apenas com o maior dos escrpulos, mas tambm com a mais desconfiada das atenes. Necessidade do exame crtico ao papel dos mercados O debate crtico pblico um requisito inevitavelmente importante de uma boa poltica pblica, pois o papel e o alcance adequados dos mercados no pode ser pr-determinado com base nalguma frmula universal e genrica. Adam Smith tinha uma ideia bastante negativa sobre a influncia dos perdulrios e especuladores na economia. Estava profundamente preocupado com o problema do desperdcio social e da perda de capital produtivo. A procura de ganhos privados pode dar lugar a benefcios sociais ou a perdas sociais. Esta preocupao genrica permanece relevante, veja-se o enorme desperdcio ambiental, que reduz os recursos produtivos da sociedade. Segundo Adam Smith, no da generosidade do talhante, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas sim da sua solicitude pelo seu prprio interesse. Os interesses complementares podem promover-se mutuamente ou no, como nos casos do perdulrio e do especulador. No h que fugir necessidade de um exame crtico. Necessidade de uma abordagem multifacetada Um novo quadro conceptual do desenvolvimento deve abandonar uma viso dirigida exclusivamente para a liberalizao ou para outro processo singular tido como abrangente. A busca de um soluo nica para todos os objectivos deve dar lugar a uma abordagem integrada e multifacetada. Aliar a expanso do uso dos mercados com o desenvolvimento das oportunidades sociais deve ser encarado como parte de uma abordagem ampla que reala as liberdades de outros tipos, como direitos democrticos, garantias de segurana, ocasies de cooperao, etc. Por exemplo, na ndia, a negligncia das oportunidades sociais pode ser criticada, enquanto na China o maior foco de crticas ser relacionado com a ausncia de liberdades democrticas. Interdependncia e bens pblicos Como soluo para todos os problemas econmicos, os mecanismos de mercado tm algumas limitaes. J vimos a questo da equidade e a necessidade de ultrapassar o foco na eficincia.

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  • Mesmo a eficincia dos mercados pode ser insatisfatria, se considerarmos o fornecimento dos chamados bens pblicos. Estes so aqueles bens que as pessoas consomem conjuntamente, mais do que separadamente, como a preservao do ambiente e a epidemiologia. Posso estar disposto a pagar a minha parte de um programa social de erradicao da malria, mas no posso comprar essa proteco como se fosse uma ma ou uma camisa. um bem pblico um ambiente isento de malria que temos de consumir em conjunto. Defesa, policiamento e proteco ambiental so outros domnios aos quais se aplica esta argumentao. Servio pblico e incentivos pblicos Estas consideraes justificam as despesas pblicas em reas cruciais para o desenvolvimento econmico e para a evoluo social. Mas h argumentos contrrios que devemos ter em conta. A carga fiscal, os dfices oramentais e a inflao so consequncias directas da despesa pblica. Outra questo a dos efeitos do financiamento pblico na restrio da iniciativa e do empenhamento das pessoas. Defendeu-se que um seguro de desemprego enfraquecia a procura de emprego. A quantificao deste efeito est longe de ser evidente. Seria importante a anlise emprica deste fenmeno, de modo a permitir um debate pblico informado e um equilbrio entre equidade e eficcia. Relativamente prestao de cuidados mdicos ou de servios de educao, questiona-se, normalmente, a dimenso da necessidade desses servios, e em que medida um pessoa pagaria ela prpria esses servios. Aqueles que vm a elegibilidade para estes servios como um direito inalienvel encaram estas questes como descabidas e como uma lamentvel recusa de princpios. Em todo o caso, a questo dos incentivos tem de ser colocada, porque dela depende a quantidade de apoio social que a sociedade est apta a oferecer. Incentivos, potencialidades e financiamentos O cerne informacional da anlise da pobreza inclui, neste livro, deslocar a ateno do baixo rendimento para a carncia de potencialidades elementares. A ateno carncia de potencialidades traz tambm vantagens na preveno das distores dos incentivos. A apreciao das potencialidades baseia-se na observao dos reais funcionamentos da pessoa, sendo completada por outras informaes. Se algum morre precocemente ou sofre de uma doena perigosa e dolorosa, legtimo concluir que tem um problema de potencialidades.

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  • Mesmo com o fulcro informacional confinado aos funcionamentos (longevidade, estado de sade, literacia, etc.), obtemos um medida de carncia mais esclarecedora do que as estatsticas de rendimento. Alm de que os rendimentos baixos so relativamente fceis de forjar, com o objectivo de obter apoio estatal. As pessoas so naturalmente adversas a recusar a educao, a promover a doena ou a cultivar a subnutrio por razes tcticas, enquanto que as deficincias fsicas, a velhice, o gnero no podem ser manipuladas. Alm disso, os beneficirios tendem a prestar mais ateno aos funcionamentos e potencialidades realizados do que apenas a ganhar dinheiro. Os apoios na luta contra a fome so frequentemente prestados contra trabalho e esforo dos beneficirios. Este tipo de orientao refora as oportunidades econmicas de populaes carenciadas mas fisicamente capacitadas. Os cuidados de sade e os programas educacionais no so susceptveis de desvio e revenda. A implementao de apoios orientados para as potencialidades torna mais fcil atingir os objectivos ao reduzir as tentativas de perverso dos incentivos. Alvos a atingir e aferio dos recursos Subsiste a questo de como devem ser distribudos os recursos pblicos, e a questo da contribuio para os servios pblicos de acordo com as capacidades de pagamento. A dotao dos servios pblicos deslocou-se para a aferio dos recursos. Isso reduz a carga fiscal e cobre melhor os necessitados porque os relativamente ricos pagam pelos benefcios que recebem. Quando se trata da oferta de cuidados de sade ou de educao com base na aferio de recursos devemos distinguir dois problemas de incentivo:

    - as limitaes de potencialidades (por exemplo, uma doena); - as circunstncias econmicas (rendimento).

    Quando o apoio social fornecido com base no diagnstico directo de uma necessidade especfica e atribudo gratuitamente sob a forma de servios especficos e no transferveis, a possibilidade de distoro informacional diminuta. Para prestar servios gratuitos aos pobres mas no aos que podem pagar, necessrio verificar as condies econmicas das pessoas, o que se presta a distores. 1. Distoro da informao. Qualquer sistema de policiamento recusar alguns casos que esto de boa f.

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  • 2. Distoro do incentivo. A perspectiva de perda de um subsdio pode inibir a actividade econmica. 3. Inutilidade e estigma. A requisio da identificao de uma pessoa como pobre tende a afectar a auto-estima, que Jonh Rawls descreveu como talvez o bem primrio mais importante em que uma teoria da justia como equidade tem de concentrar-se. 4. Custos administrativos, perda de privacidade e corrupo. Este processo envolve grandes custos administrativos e a perda de privacidade dos fiscalizados. O poder das autoridades burocrticas pode conduzir tambm corrupo. 5. Sustentabilidade e qualidade polticas. Os beneficirios so, frequentemente, politicamente frgeis. Esta considerao fundamenta a apologia dos servios universais relativamente a programas dirigidos exclusivamente aos mais pobres. Participao activa e base informacional A abordagem correcta para a aferio de recursos deve ter sensibilidade s condies reais, quer natureza do servio pblico, quer s caractersticas da sociedade, incluindo os valores comportamentais que influenciam as escolhas individuais e os incentivos. Neste livro destacada a importncia da participao activa, passando os indivduos de recipientes a agentes, e da focagem informacional na carncia de potencialidades, mais do que simplesmente na pobreza de rendimentos. Prudncia oramental e necessidade de integrao As exigncias de conservadorismo financeiro so actualmente muito fortes. Temos de ser claros quanto ao que o conservadorismo oramental exige e porqu. Quais so os efeitos do gasto financeiro excedentrio? Qual a importncia da estabilidade macro-econmica, ou ausncia de presso inflaccionria? Num exame crtico, Michael Bruno nota que a inflao elevada acompanha importantes efeitos negativos de crescimento. Inversamente, a estabilizao firme aps uma inflao elevada traz efeitos de crescimento muito positivos. Bruno pensa tambm que os efeitos de crescimento com baixas taxas de inflao (15% a 20% ao ano) so no mnimo obscuros. Porqu preocupar-se com baixas taxas de inflao, especialmente se os custos da inflao antecipada podem ser evitados (pela indexao) e os custos da inflao no antecipada parecem ser reduzidos?

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  • O problema crtico evitar a instabilidade dinmica, que conduz a escaladas da inflao, e que nos leva a pretender evitar a inflao, mesmo que seja moderada. H fortes razes para reduzir os grandes dfices oramentais que se verificam em muitos pases, mas isso no deve ser confundido com o extremismo de pretender eliminar os dfices, e com grande rapidez. A Europa tem muito mais razes para se preocupar com os dfices oramentais do que os Estados Unidos. O cerne da questo est em saber se faz sentido atribuir prioridade absoluta a um s objectivo, evitar a inflao, ao mesmo tempo que so toleradas taxas de desemprego elevadas. Se a anlise proposta neste livro estiver correcta, a definio de poltica pblica na Europa ter de dar prioridade eliminao da carncia de potencialidades implicada no desemprego alargado. O papel da despesa pblica para gerar e garantir potencialidades bsicas deve ser considerado em conjunto com as necessidades da estabilidade macro-econmica. Na verdade, estas devem ser apreciadas dentro de um quadro alargado de objectivos sociais. As questes crticas dependero do contexto: na Europa ser a iniquidade do desemprego macio; nos Estados Unidos a falta de segurana mdica; na ndia a iliteracia; no Extremo Oriente e Sudeste Asitico a regulao do sistema financeiro. Os problemas so diferentes, e cada um exige um exame rigoroso dos objectivos e dos meios da poltica pblica. Notas conclusivas Os indivduos vivem e agem num mundo de instituies. As nossas oportunidades e projectos dependem de forma crucial das instituies que existem e do modo como funcionam. Devemos encar-las em conjunto, para apreciarmos o que podem fazer quando combinadas umas com as outras. O funcionamento do mercado um dispositivo bsico atravs do qual as pessoas podem interagir e assumir actividades mutuamente vantajosas. Os problemas brotam da capacidade dos poderosos criarem assimetrias no mercado. De modo a equilibrar as oportunidades, a oferta de educao bsica, a existncia de servios mdicos elementares e a disponibilizao de recursos essenciais (como a terra para a agricultura) so servios que requerem uma interveno pblica cuidadosa e decidida. Os pases ricos tm uma notvel histria de interveno pblica, que se ocupou da educao, sade, reforma agrria, etc. A partilha alargada dessas oportunidades sociais tornou possvel massa da populao participar directamente no processo de expanso econmica.

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  • A crena de que o desenvolvimento humano um luxo ao qual s os pases ricos se podem permitir um problema que deve ser esclarecido. As economias do Extremo Oriente caminharam relativamente cedo para a massificao da educao e dos cuidados de sade, tendo-o feito, em muitos casos, antes de terem vencido os constrangimentos da pobreza generalizada. O desenvolvimento humano primeira e primariamente um aliado dos pobres, mais do que dos ricos e abastados. Um pas que garante a todos cuidados de sade e educao pode conseguir resultados notveis em termos de durao e qualidade de vida de toda a populao. A natureza geradora de trabalho dos cuidados de sade e da educao bsica torna-os suficientemente baratos nos primrdios do desenvolvimento econmico, quando os custos laborais so baixos. O uso de recursos para propsitos cujos benefcios sociais no so evidentes, como as despesas militares nos pases pobres deveria ser contrariado pelo conservadorismo financeiro. sinal do mundo s avessas em que vivemos o facto de o professor ou a enfermeira se sentirem mais ameaados pelo conservadorismo financeiro do que um general.

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  • CAP. 6 A importncia da democracia Em muitos pases do terceiro mundo, a fora das necessidades econmicas supera outras exigncias, como a liberdade poltica e os direitos cvicos. Se a pobreza leva seres humanos a correr enormes riscos por um ou dois dlares, pode parecer descabida a preocupao com as suas liberdades e direitos polticos. Necessidades econmicas e direitos polticos Na conferncia de Viena sobre direitos humanos, na primavera de 1993, delegados de diversos pases opuseram-se aceitao generalizada dos direitos polticos e cvicos bsicos em todo o mundo, especialmente no terceiro mundo. Defendiam que a tnica deveria ser colocada nos direitos econmicos. Nesta corrente de pensamento surge a retrica frequentemente repetida: que dever vir em primeiro lugar eliminar a pobreza e a misria ou assegurar a liberdade poltica e os direitos cvicos, de que as pessoas pobres, em todo o caso, fazem pouco uso? A precedncia das liberdades polticas e da democracia A nossa conceptualizao das necessidades econmicas depende de maneira crucial de debates abertos e pblicos, cuja garantia exige a insistncia na liberdade poltica bsica e nos direitos cvicos bsicos. Defenderei que a intensidade das necessidades econmicas aumenta a urgncia das liberdades polticas. So vrias as consideraes que nos levam precedncia genrica dos direitos polticos e liberais bsicos: 1. A sua importncia directa para a vida humana; 2. O seu papel instrumental na expresso e defesa das pretenses; 3. A sua importncia constitutiva na conceptualizao das necessidades. Argumentos contra as liberdades polticas e os direitos cvicos H trs tipos de oposio democracia e s liberdades cvicas e polticas bsicas. O primeiro argumenta que essas liberdades e direitos impedem o crescimento econmico e o desenvolvimento (tese de Lee Singapura). O segundo defende que os pobres preferem claramente a satisfao das

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  • necessidades econmicas ao gozo de liberdades polticas (pressupe a tese de Lee). O terceiro afirma que a nfase na participao poltica uma prioridade especificamente ocidental que se ope aos valores asiticos, mais atreitos ordem e disciplina do que liberdade e participao. Democracia e crescimento econmico Ser que o autoritarismo funciona assim to bem? No podemos tomar o elevado crescimento econmico da China ou da Coreia do Sul como prova definitiva. Tal como no podemos tirar a concluso oposta com base no facto de o pas africano de crescimento mais rpido, o Botswana, ser um osis de democracia naquele conturbado continente. Existe ligao entre os direitos polticos e cvicos e a preveno de calamidades como fomes. Estes direitos proporcionam s pessoas a oportunidade de reclamarem aco pblica conveniente. Ser que os pobres se interessam pela democracia e pelos direitos polticos? A desvalorizao dos direitos e liberdades polticas faz certamente parte do sistema de valores dos chefes de governo em muitos pases do terceiro mundo, mas no podemos assumir isto como a opinio do povo. Quando o governo indiano presidido por Indira Gandhi declarou o estado de emergncia em 1970, estavam marcadas eleies. Essa eleio fatal, discutida largamente em torno da aceitabilidade do estado de emergncia, a supresso dos direitos polticos e cvicos bsicos foi firmemente rejeitada. O eleitorado indiano mostrou no ser menos vivo no protesto contra a recusa das liberdades e direitos bsicos do que nas queixas relativas pobreza econmica. Observaes semelhantes podem fazer-se em toda a sia: na Coreia do Sul, na Tailndia, no Bangladesh, no Paquisto e na Birmnia. Importncia instrumental da liberdade poltica Temos razes para estimar a liberdade bem como a expresso e aco livres nas nossas vidas. Alm disso, para expressarmos publicamente o que valorizamos e para reclamarmos a ateno que isso merece, precisamos de liberdade de discurso e de escolha democrtica. Os legisladores tm um incentivo para atender ao que as pessoas querem se tiverem de enfrentar as suas crticas e buscar o seu apoio em eleies. Nenhuma fome ocorreu em nenhum pas independente com uma forma democrtica de governo e com uma imprensa relativamente livre. As fomes

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  • aconteceram em antigos reinos e em sociedades autoritrias contemporneas, em comunidades tribais primitivas e em ditaduras tecnocrticas modernas, em economias coloniais geridas por imperialistas e em novos pases governados por dspotas ou por partidos nicos intolerantes. Papel constitutivo da liberdade poltica Os direitos polticos e cvicos, especialmente os relacionados com a garantia de discusso, debate, crtica e oposio livres, so essenciais para o processo de construo de escolhas informadas e conscientes. Estes processos so fulcrais para a constituio de valores e propriedades e no podemos, em geral, formular preferncias como se estas surgissem margem da discusso pblica. A nossa concepo de necessidades diz respeito s nossas ideias sobre a natureza evitvel de algumas perverses e ao nosso entendimento do que podemos fazer acerca delas. A discusso pblica desempenha aqui um papel nuclear. Funcionamento da democracia A democracia tem sido especialmente bem sucedida na preveno de catstrofes que so fceis de compreender, como as fomes. Outros problemas no so to acessveis. O sucesso da ndia na erradicao das fomes no repetido na erradicao da subnutrio e da iliteracia. A provao de cuidados de sade, de educao e de enquadramento social dos afro-americanos nos Estados Unidos contribui para a sua mortalidade extremamente elevada. Tal no evitado pelo funcionamento da democracia americana. A democracia deve ser encarada como criao de um leque de oportunidades, e o uso dessas oportunidades depende das prticas democrticas, como a comunicao e a participao. A prtica da democracia e o papel da oposio Segundo o ex-presidente das Filipinas, Fidel Ramos: Hoje, o desafio poltico para as pessoas em todo o mundo no apenas substituir os regimes autoritrios por regimes democrticos. Ademais disso, h que fazer a democracia funcionar para as pessoas comuns. A aco dos partidos de oposio uma fora importante. Muitos programas sociais so forados pela oposio, que pode ser eficaz mesmo sem chegar ao poder.

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  • Numa democracia, as populaes tendem a obter o que reclamam, e caracterstico que no obtenham o que no reclamam. Notas conclusivas Embora devamos reconhecer a importncia das instituies democrticas, no podemos encar-las como dispositivos mecnicos do desenvolvimento. O seu funcionamento condicionado pelos nossos valores e prioridades e pelo uso que fazemos das oportunidades de articulao e de participao disponibilizadas. O papel dos grupos de oposio organizados particularmente importante neste contexto. As liberdades so tambm importantes na formao de valores. Por exemplo, a discusso pblica mais informada e menos marginal das questes ambientais pode no ser boa s para o ambiente; poder ser tambm importante para a sade e o funcionamento do prprio sistema democrtico. preciso examinar os meios de fazer a democracia funcionar bem, de modo a concretizar o seu potencial.

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  • CAP. 7 Fomes e outras crises A falta de alimentao, a subnutrio e as fomes esto disseminadas. Um pessimismo tcito domina as reaces internacionais a estas misrias. A prpria percepo de impotncia pode conduzir ao abandono de tentativas srias para sarar as misrias que vemos. H pouca base factual para tal pessimismo. Polticas e aces adequadas podem erradicar os terrveis problemas de carncia alimentar no mundo. O que preciso que as polticas e programas retirem as lies que ressaltam das investigaes e estudos empricos. Este captulo respeita especialmente s fomes e outras crises recorrentes que implicam a irrupo sbita de privaes graves para uma parte considervel da populao. ful