Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidário_Paul Singer

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    1/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 7

    Desenvolvimento econmico e cientfico

    NTENDEMOSPO R desenvolvimento solidrio um processo de fomento denovas foras produtivas e de instaurao de novas relaes de produo, demodo a promover um processo sustentvel de crescimento econmico,

    que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se en-contram marginalizados da produo social e da fruio dos resultados da mesma.

    Quanto s foras produtivas, o ponto de partida o patamar de seu desen-volvimento na atualidade, quando o capitalismo est hegemnico. Este patamar ultrapassado a cada momento, tanto por revolues tecnolgicas em curso,como pela disputa dos mercados por empresas privadas capitalistas e no capita-listas, conforme regras que tornam vencedores os que dispem da melhor tecno-logia. A presena de empreendimentos individuais, familiares, coletivos ou p-blicos sem fins lucrativos influi na direo do desenvolvimento , que, no entanto ,

    determinada predominantemente pela competio tecnolgica entre empreen-dimentos que visam ao lucro.O desenvolvimento almejado deve gradativamente tornar a relao de for-

    as entre empreendimentos que no visam apenas nem principalmente aos lu-cros e os que sim o fazem, mais favorvel aos primeiros. Se e quando a economiasolidria, formada por empreendimentos individuais e familiares associados e porempreendimentos autogestionrios, for hegemnica, o sentido do progresso tec-nolgico ser outro, pois deixar de ser produto da competio intercapitalistapara visar satisfao de necessidades consideradas prioritrias pela maioria.

    Esse tema atualizado na controvrsia ao redor dos transgnicos assimcomo no que diz respeito agricultura orgnica versus aplicao das tcnicasqumicas etc. na produo vegetal e animal. O mesmo possivelmente se passa nadicotomia do desenvolvimento da educao distncia versus educao demo-crtica, que se baseia na auto-educao coletiva de crianas e jovens. Em suma, odesenvolvimento solidrio busca novas foras produt ivas que respeitem a nature-za e favoream valores como igualdade e auto-realizao, sem ignorar nem rejei-tar de antemo os avanos cientficos e tecnolgicos, mas submetendo-os aocrivo permanente dos valores ambientais, da incluso social e da autogesto.

    Essas controvrsias no se alimentam apenas da diversidade de valores, queest em sua origem, mas tambm de diferentes pontos de vista cientficos, que

    Desenvolvimento capitalistae desenvolvimento solidrioPAUL SIN GER

    E

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    2/16

    PA U L SI N G E R

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 20048

    talvez possam ser resolvidos pelas pesquisas em andamento . Seria simplificar de-mais imaginar que o desenvolvimento de novas foras produt ivas novos bens eservios de consumo humano e novos processos de produo esteja divididode forma maniquesta entre os que querem a sobrevivncia da humanidade e osque no se importam com ela.

    Os que lideram o desenvolvimento a partir do comando das grandes em-presas e os que o fazem a part ir empreendimentos solidrios, ONGs e movimen-tos sociais, compartilham, em parte, os mesmos valores fundamentais. O que osdivide so os interesses sociais que servem, o que naturalmente influi na escolhadas hipteses em que apostam. As multinacionais investem em P& D (Pesquisa eDesenvolvimento), estando condicionados a apostar no carter benfico dastecnologias que poupam trabalho. Com isso, do emprego a cientistas e valori-zam as pesquisas em curso, cujas conseqncias, tanto no plano material como

    no tico, so questionadas por diversas ONGs e movimentos sociais. Como seriade se esperar, a comunidade cientfica, por sua maioria, tende a alinhar-se com asmultinacionais, contra os crticos da P& D vigente.

    Os empreendimentos solidrios ou de pequeno porte tendem a adotar adefesa do meio ambiente e do bem-estar dos consumidores e a opor-se a tecno-logias que podem ameaar a biodiversidade, a sade do consumidor e/ou a auto-nomia dos produtores associados e individuais. A produo de sementes genet i-camente modificadas e estreis, pela Monsanto, submete os agricultores neces-sidade de, a cada safra, comprar aquelas sementes. Isso suscitou a formao de

    uma frente contra os transgnicos formada por entidades camponesas (que estoorganizadas internacionalmente) e entidades ambientalistas.

    A controvrsia no tanto de valores como de crenas em hipteses pro-babilsticas, que o progresso cientfico talvez venha a comprovar ou rejeitar. dese esperar que, em algum momento, a opinio cientfica se unifique a favor deum lado ou de outro, como fez recentemente a favor da hiptese de que a con-tnua emisso de gases afeta o clima, que adquiriu o status de teoria. Por tanto,nesse momento, apoiar a aplicao do Acordo de Kyoto uma exigncia dodesenvolvimento sustentvel. Em outro momento, porm, a marcha do conhe-cimento cientfico poder declarar t ecnologias controvert idas como aceitveis.

    Do ponto de vista social, uma questo, que afeta o rumo do desenvolvi-mento diz respeito competio versus cooperao, como motivao de com-portamentos desejveis. Existem linhas de pesquisa de economia experimentalque mostram que, apesar de todo o estmulo competio interindividual nocapitalismo atual, a maioria das pessoas continua a valorizar a reciprocidade e aajuda mtua. Mas duvidoso que essa controvrsia venha a ser resolvida atravsdo avano cientfico. Ela est no cerne das grandes lutas polticas de nossa poca

    e resulta do confronto de valores e vises de mundo.O conceito de desenvolvimento aqui proposto uma opo em termos devalores, mas sua concretizao depender da evoluo do conhecimento . O bvia-

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    3/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 9

    mente, imperioso agir sem esperar que as dvidas sobre nossas opes estejamtodas resolvidas. Por isso, imprescindvel adotar hipteses, frgeis em si mes-mas, para definir os rumos por onde desejamos que a humanidade se desenvolva.Mas algumas dessas hipteses podero ser rejeitadas, em funo de novos conhe-cimentos, exigindo a reformulao dos rumos do desenvolvimento solidrio,sem que nossos valores sejam abalados.

    Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio

    Desenvolvimento capitalista o desenvolvimento realizado sob a gide dogrande capital e moldado pelos valores do livre funcionamento dos mercados,das virtudes de competio, do individualismo e do Estado mnimo. O desen-volvimento solidrio o desenvolvimento realizado por comunidades de peque-nas firmas associadas ou de cooperativas de trabalhadores, federadas em comple-xos, guiado pelos valores da cooperao e ajuda mtua entre pessoas ou firmas,mesmo quando competem entre si nos mesmos mercados.

    Desde a primeira Revoluo Industrial, o capitalismo esteve no comandodo desenvolvimento, sem excluir, no entanto , formas alternativas de desenvolvi-mento que hoje surgem como solidrias. A ttulo de exemplos histricos, pode-mos rememorar o desenvolvimento cooperativo ocorrido inicialmente na GrBretanha, a partir do incio do sculo XIX, e que se difundiu pelo mundo tododesde ento. A chamada economia social nunca desapareceu, sendo formada hojepor entidades cooperativas de compras e vendas, de produo, de crdito, de

    seguros (conhecidas como muturias), de habitao e que representa o resulta-do de mais de um sculo de desenvolvimento solidrio. muito difcil avaliar quant itativamente o que a economia social hoje em

    dia, em qualquer pas. Mas para a Europa, houve um esforo neste sentido, quevale a pena resumir:

    O nico documento que fornece dados estatsticos europeus completos sobreo conjunto da economia social o publicado pela Comisso Europia [...]Publicado em 1997, repousa sobre trabalhos de 1991, que foram completadospor estudos em 1995. Havia, em 1990, 1.267.968 entidades de economia so-

    cial, o maior nmero sendo, ningum se espantar, o das associaes(1.150.446); as cooperat ivas eram 103.738 e as muturias apenas 13.784 . Mas,percebe-se que o peso econmico se reparte de forma inversa, o indicador deatividade sendo de 1.253.476 milhes de ecus [corresponde hoje a euros] paraas cooperativas, de 75.554 milhes de ecus para as muturias (mas o estudosobre elas cobre apenas onze pases) e de 143.631 milhes de ecus para asassociaes (fora o Luxemburgo e a Espanha), ou seja, um total de 1.476.662milhes de ecus para toda Economia Social1. [...] se agregam os dados sobre onmero de membros das cooperativas, as muturias e as associaes, chega-seprecisamente a 248.314.876 membros, com 53.732.338 membros para as coo-

    perativas, 94.612.538 para as muturias e cem milhes membros de associa-es (Jeantet, 2001, pp. 43 e 440).

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    4/16

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    5/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 11

    Uma caracterstica essencial do desenvolvimento capitalista que ele no

    para todos. Os consumidores, de modo geral, se beneficiam dele medida queenseja a produo de novos bens e servios que satisfazem suas necessidades(reais ou fictcias), alm de baratear a maioria dos bens e servios preexistentes,graas ao aumento da produtividade do trabalho. Mas o desenvolvimento capi-talista seletivo, tanto social como geograficamente. Parte dos trabalhadoresperde suas qualificaes e seus empregos e muitos deles so lanados misriaAlm disso, o desenvolvimento se d em certos pases e no em outros, e dentrodos pases, em certas reas e no em outras. O s moradores das reas que se de-senvolvem so beneficiados, os que moram nas demais so prejudicados.

    Leon Trotsky foi um dos primeiros a estudar essa caracterstica do desen-volvimento capitalista, abrindo novo campo de investigao, o do desenvolvi-mento desigual e combinado. Verifica-se que as reas em que ele no ocorre

    ou ocorre apenas debilmente tambm so atingidas, porque as empresas locali-zadas nelas perdem competitividade em relao s empresas portadoras das no-vas foras produtivas. Os pases, regies e localidades excludas do desenvolvi-mento perdem participao na renda global, seja porque seus produtos perdemcompradores, seja porque os preos dos mesmos caem em relao aos seus cus-tos, deprimindo lucros e salrios, bem como o ganho dos produtores simples demercadorias e dos autogestionrios.

    A economia solidria surgiu historicamente como reao cont ra as injusti-as perpetradas pelos que impulsionam o desenvolvimento capitalista. Foi assim

    desde a primeira revoluo industrial e continua sendo hoje, quando o mundopassa pela terceira. A economia solidria no pretende opor-se ao desenvolvi-mento, que mesmo sendo capitalista, faz a humanidade progredir. O seu prop-sito tornar o desenvolvimento mais justo, repartindo seus benefcios e preju-zos de forma mais igual e menos casual.

    O desenvolvimento solidrio apia se sobre os mesmos avanos do conheci-mento, e sua aplicao aos empreendimentos humanos, que o desenvolvimentocapitalista. Mas o desenvolvimento solidrio prope um uso bem distinto das for-as produtivas assim alcanadas: essas foras deveriam ser postas disposio detodos os produtores do mundo, de modo que nenhum pas, regio ou localidadeseja excludo de sua utilizao, e portanto, dos benefcios que venham a proporcionar.

    Para tanto, o novo conhecimento no deveria ser propriedade privada, prote-gida por patentes, mas deveria ser livremente disponvel para todos. (Esta proposi-o j se tornou concreta em relao ao software indispensvel utilizao da Inter-net: o movimento pelo software livre desenvolveu o sistema Linux, que repre-senta hoje desafio formidvel ao monoplio do software, explorado pela Microsoft).Isso requereria que o trabalho de P&D fosse pago por fundos pblicos (como de

    fato j , em boa parte) ou ento que a P&D continue sendo feita para empresasprivadas, mas seus resultados sejam socializados mediante o pagamento de um pr-mio adequado aos que contriburam desta forma para o avano do conhecimento.

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    6/16

    PA U L SI N G E R

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200412

    Entretanto, alm da liberao do conhecimento para sua livre aplicaopor todos (com as limitaes, discutidas na primeira seo), a economia solidriaprope outra organizao da produo, base da propriedade social dos meiosde produo. Isso no quer dizer a estatizao desta propriedade, mas a sua re-partio entre todos os que participam da produo social. O desenvolvimentosolidrio no prope a abolio dos mercados, que devem continuar a funcionar,mas sim a sujeio dos mesmos a normas e controles, para que ningum sejaexcludo da economia contra a sua vontade.

    Isso significa que a atividade econmica dever ser realizada por empresas,constitudas ou por uma s pessoa, por membros de uma famlia ou por d iversaspessoas que se associam para desenvolver atividades produtivas. As pessoas de-vem ser livres para constituir empresas e dissolv-las, entrar para alguma e deix-la quando for de seu desejo ou do desejo da maioria dos outros scios. Em

    princpio, dentro da empresa, no importa o seu tamanho, todos os que dela fa-zem parte devem ter os mesmos direitos de participar das decises que afetam a

    empresa e, portanto, a cada u m deles.Dessa forma, a economia solidria prope abolir o capitalismo e a diviso

    de classes que lhe inerente. A economia solidria atualmente concebida comouma economia de mercado, em que os cidados participam livremente, coope-rando e compet indo entre si, de acordo com os seus interesses e os contratos quecelebram. Mas a sociedade como um todo tem por dever tomar medidas paraevitar que o jogo das foras de mercado crie ganhadores e perdedores, cuja situa-

    o seja reiterada ao longo do tempo. Mesmo que as condies de partida sejamiguais para todos os participantes, o jogo do mercado inevitavelmente produzganhadores, que enriquecem, e perdedores, que empobrecem. Se a desigualda-de assim criada no for desfeita, a diviso da sociedade em classes e o prpriocapitalismo acabariam sendo restaurados.

    Cabe ao Estado, como representante democrtico da sociedade, defend-la contra sua diviso entre ricos e pobres, poderosos e fracos. Para isso, o Estado

    j dispe de instrumentos, dos quais os mais importantes so os impostos sobrea renda e a propriedade e a transferncia de recursos pblicos aos carentes. OEstado solidrio tem por misso tributar os ganhadores e subvencionar osperdedores para que a desigualdade entre eles no se perpetue, e isso sem des-truir os incentivos para que os produtores se esforcem em oferecer aos compra-dores a melhor qualidade e quantidade pelo melhor preo.

    claro que a misso do Estado no simples. Mas no impossvel. H ojej existem rgos especializados na defesa da concorrncia, que intervm nosmercados para impedir que algumas empresas os dominem. Assim como j exis-tem diversos programas de transferncia de rendas, que visam a limitar a desi-

    gualdade econmica entre cidados. Recentemente, o Congresso brasileiro apro-vou projeto de lei do Senador Suplicy instituindo a renda bsica cidad, que seprope a impedir que qualquer brasileiro seja lanado indigncia. De acordo

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    7/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 13

    com essa lei, cada morador no Brasil (e no apenas os necessitados) deve receberdo Estado uma renda, que em princpio deve-lhe permitir sobreviver com algu-ma dignidade.

    Desenvolvimento em tempos de reestruturao

    O desenvolvimento capitalista criou, ao longo da segunda Revoluo In-dustrial (1880-1975), a grande empresa fordista-taylorista, caracterizada pelaintegrao vertical de todas as etapas da cadeia produtiva, pela sua extenso atodos os continentes e pases e pela estrutura de governana hierrquica eburocrtica, anloga administrao pblica. A empresa multinacional (EMN)era extremamente competitiva por causa dos extensos ganhos de escala no s naproduo industrial, mas tambm nas compras e nas vendas, na P&D , nas opera-es financeiras e no controle interno. O seu gigantismo permitia o uso de es-pecialistas e de equipamentos especializados, ambos de alto valor, cujos custos eramdiludos em grandes volumes de produo, resultando em custos unitrios baixos.

    Tudo isso mudou com a terceira Revoluo Industrial. Com a informticae a comunicao por satlite, tornou-se possvel coordenar de forma eficientegrande nmero de fornecedores independentes, sem necessidade de integr-lossob o mesmo comando. O gigantismo burocrtico da empresa fordista-tayloristamostrou-se dispendioso e ineficiente, quando comparado com o sistemajust intime, de estoque (quase) zero.

    Alm disso, a grande centralizao do capital, promovido pelo fordismo,

    suscitou a centralizao da organizao sindical, elevando o poder de barganhados empregados. No Brasil, assim como em muitos outros pases, os sindicatosde trabalhadores das grandes empresas constituam a vanguarda do movimentooperrio. Eles conquistaram direitos sociais, consignados em constituies e c-digos legais, alm de vantagens contratuais importantes, inclusive de representa-o junto aos centros de poder da hierarquia gerencial. Os custos trabalhistaseram consideravelmente maiores nas EMNs do que nas pequenas e mdias em-presas (PMEs), sendo t ransferidos aos preos graas ao grande poder de merca-do das primeiras.

    Com os avanos da informtica e da telemtica, conjugados aos da globali-zao neoliberal, a grande empresa comeou a sofrer a competio de um novotipo de empresa capitalista, tambm de grande porte, mas enxuta. Ela se limitaa algumas atividades consideradas essenciais eventualmente o projetamento denovos produtos e o marketing dos mesmos subcontratando todas as restantes.Departamentos inteiros da empresa fordista foram liquidados e externalizados,isto , substitudos por empresas independentes contratadas. O enxugamentocomeou com servios de menor importncia, como os de vigilncia, limpeza,fornecimento de refeies etc. mas rapidamente atingiu outros, como os legais,de seguros, de contabilidade, de treinamento, de seleo de pessoal (inclusiveexecutivos) e, finalmente, a produo propriamente dita.

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    8/16

    PA U L SI N G E R

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200414

    Grandes empresas industriais subcontratam empresas especializadas paraconduzir as atividades produt ivas, que antes eram a sua razo de existir. Q uantomais enxuta a empresa, maior a sua competitividade, porque menores os seuscustos. E eles so menores no s porque o gasto com a administrao diminuiu,mas tambm porque o nvel de salrio direto e indireto nas empresas subcontra-tadas muito menor do que era quando o trabalho estava a cargo de departamen-tos da grande empresa.

    O equipamento especializado foi substitudo, graas microeletrnica, pormquinas polivalentes programveis, de grande flexibilidade. Essa mudanatecnolgica acarretou ampla desconcent rao do capital em todos os ramos, nos na indstria mas na agricultura e nos servios. A desconcentrao atingiu otamanho da empresa e sobretudo sua organizao. Esta, em vez de ser hierrqui-ca e burocrtica, passou a ser em rede, portanto, muito mais horizontal, e os

    operrios ganharam autonomia e poder de deciso.A pequena e a mdia empresa, que no auge do fordismo parecia destinada

    a fenecer, renasceu e se tornou um modo de ser do capital, ao lado da grandeempresa, com a qual interage, ora cooperando, ora compet indo com ela. A gran-de empresa tornou-se, acima de tudo, financeira, isto , ela um conglomera-do de capitais, que circunstancialmente possui um determinado nmero deunidades produtivas ou de distribuio, procurando coorden-las para delas ex-trair o mximo retorno sobre o capital invertido.

    O capital financeirizado tornou se mvel, podendo mudar de forma com

    facilidade. Cada empresa individual, controlada por holding, est permanente-mente venda, na medida em que suas aes so transacionadas nas bolsas devalores. Isso vale tambm para as matrizes das EMNs, sujeitas a tomadas hostis,fuses negociadas ou desmembramentos. A grande empresa se desfaz de empre-sas componentes e adquire outras, tomando em considerao o valor financeirodas mesmas em relao s perspectivas de lucro que oferecem. grande empresade hoje se aplica o famoso dito de Marx: tudo que parece slido desmancha no ar.No fundo, no passa de uma rede de empresas menores, presas por laos finan-ceiros a um centro de decises que, muitas vezes, pouco se ident ifica com elas.

    A morfologia da economia capitalista mudou. Na era fordista, algumascentenas de EMNs, dominavam a maior parte dos mercados nacionais e interna-cionais, tendo ao seu lado grande nmero de empresas de pequeno e mdioporte, fornecedoras das grandes ou atuando em nichos de mercado, em que osganhos de escala no eram importantes. Na era atual, da flexibilidade, soPMEs as que predominam, sendo uma parte formal e outra informal. U ma par-cela provavelmente minoritria das PMEs integra conglomerados financeiros degrande extenso, com perfil de EMNs; as outras PMEs esto independentes,

    muitas a servio das EMNs e muitas outras disputando diretamente mercados.Alm disso, ganhou mais espao e importncia, na economia dominadapelo capital, a economia solidria, na forma de empresas autogestionrias, coo-

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    9/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 15

    perativas de compras e vendas, complexos cooperativos, mutuarias etc., devendoser mencionada ainda a presena ampliada do crime organizado, dos parasosfiscais e da economia subterrnea, de contornos indefinidos, que cresce tambmmantendo relaes simbiticas com as empresas formais, inclusive com as EMNs.

    Dentro desse novo panorama, como se coloca a questo do desenvolvi-mento? Com o enxugamento da grande empresa, mais atividades de P&D estosendo contratadas com universidades e centros pblicos de cincia e tecnologia.Alm disso, multiplicam-se empresas capitalistas especializadas em P&D . Um ra-mo de P& D j se tornou autnomo, o dos softwares. Em funo disso, endure-ceu a imposio do respeito aos direitos intelectuais dos fabricantes de patentes.As novas foras de produo j vm ao mundo com um preo, que o custo desua ut ilizao mediante o pagamento de royalties.A contrapart ida disso o cres-cimento de um proletariado cientfico e tecnolgico, naturalmente antagnico

    ao capital que o emprega: a tica cientfica de conquistar conhecimento novopara a humanidade deve se chocar com a sua comercializao.O desenvolvimento capitalista emprega as novas foras produtivas para

    conquistar mercados, tanto nos pases que centralizam este desenvolvimento comonos que constituem a periferia dos primeiros. Na periferia, o capital desenvolve aeconomia mediante investimentos, em grande medida transnacionais, ou seja,promovidos por EMNs. Os Estados menos desenvolvidos tendem a competirpor t ais investimentos, oferecendo incentivos fiscais, infra-estrutura gratuita ouquase, participao dos governos no investimento etc. No Brasil, essa competi-

    o deu lugar guerra fiscal entre unidades da federao.Onde o investimento transnacional se d, o desenvolvimento resultante

    desigual e combinado. possvel que o desenvolvimento se torne cumulativo,atraindo novos investimentos e alargando a rea beneficiada. Mas, no prprioplo de desenvolvimento a desigualdade se aprofunda: alguns enriquecem comoexecutivos das novas empresas ou fornecedores das mesmas, outros conseguemum ganha-po como empregados ou terceirizados, mas muitos ficam desempre-gados, espera de uma oportunidade, e outros so excludos de qualquer parti-cipao normal na vida econmica, ficando relegados a atividades precrias.

    U m desenvolvimento semicapitalista e semi-solidrio

    Mas, a era da flexibilidade, que o capitalismo atravessa, possibilita tam-bm o desenvolvimento solidrio. Este se relaciona com a flexibilidade da PME,que nem sempre capitalista e, mesmo quando o , oferece aos trabalhadoresoportunidades de participar de sua conduo. N uma microempresa, com menosde dez trabalhadores, por exemplo, comum que o patro e os membros de suafamlia trabalhem ao lado dos que so empregados, desenvolvendo a mesmaatividade. N este ambiente, no h segredo do negcio. Os empregados em geralconhecem os clientes e o valor do bem ou servio que lhes vendido. Podemcalcular o valor que produzem e o que lhes pago.

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    10/16

    PA U L SI N G E R

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200416

    Os conhecimentos que os trabalhadores adquirem so importantes para obem do negcio e por isso eles so encorajados a manifest-los. Em empresascapitalistas tpicas, de maior tamanho, a participao dos trabalhadores na con-duo das atividades que exercem cada vez mais estimulada e recompensada.Os assalariados so tornados individualmente responsveis pela empresa, poissua remunerao passa a depender cada vez mais dos resultados obtidos pelosetor da empresa em que trabalham (o que no poucas vezes se transforma empresso sufocante sobre cada trabalhador).

    Surge, assim, um proletariado menos alienado que o da poca do fordismo,quando o operrio t inha orgulho de sua condio proletria e rejeitava a idia decolaborar espontaneamente indo alm de seus deveres especficos com osempregadores. Agora, o trabalhador encontra se numa empresa menor, em quea relao social de produo com quem lhe compra a fora de trabalho se tornou

    muito menos assimtrica. Q uando a microempresa cresce, os trabalhadores maisantigos mantm um relacionamento mais ntimo com o proprietrio e sua fam-lia, muitas vezes compartilhando suas tarefas gerenciais. Torna-se mais comumque o trabalhador assalariado aspire a se tornar empresrio e tenha habilidadepara tanto.

    So essas transformaes que explicam o surgimento de organizaes pro-dutivas, como os distritos industriais, que combinam traos capitalistas com ou-tros tpicos da economia solidria. Os distritos industriais foram descobertos ini-cialmente na Itlia e depois se verificou que existem, em vrias formas, nos de-

    mais pases tambm. Cada distrito constitui uma comunidade de pequenas e m-dias empresas, que se dedicam mesma linha de produtos. Na Terza Itlia,osdistritos se especializaram em ramos tradicionais, como tecidos, confeces, cal-ados, mveis, cermica, mas tambm em ramos modernos como mquinas fer-ramentas e maquinrio agrcola. A populao de cada distrito no costuma exce-der cem mil habitantes (Carlo Trigilia, 1992, p. 36).

    Os distritos industriais italianos tiveram notvel sucesso face aos desafioscolocados pela reestruturao produtiva.

    O que tornou os distritos industriais conhecidos internacionalmente e captu-rou a ateno de polticos e pesquisadores, seu notvel sucesso econmico.Eles penetraram mercados internacionais numa extenso sem precedentes parapequenas empresas. Eles levaram regies prosperidade. Eles impeliram Emilia-Romana, Toscania, Veneto e outras provncias, da que agora chamadaaTerceira Itlia, da posio medocre que mantinham h duas ou trs dca-das ao topo da escada regional de renda. Bolonha, situada no meio de distritosindustriais dinmicos, foi escolhida em 1989 como a cidade em que a maioriados italianos gostaria de viver. Distritos industriais ajudaram a mover a Itlia,como nao, para as fileiras da vanguarda europia. Seu PIB tanto agregado

    como per capita est agora bem frente da Gr Bretanha, e o pas est emquinto lugar no grupo das sete maiores naes industrializadas do Ocidente(Sengenberger e Pyke, 1992, p. 6).

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    11/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 17

    Qual seria o segredo do sucesso dos distritos industriais? Em primeiro lu-gar, a cooperao entre as empresas. Em cada distrito h uma diviso de traba-lho, em que grupos de empresas se encarregam de diferentes etapas da cadeiaprodutiva. Embora s algumas empresas tenham acesso direto aos mercados fi-nais so as que do o acabamento aos produtos as que lhes fornecem insumosno se subordinam a elas, como comum na economia capitalista. Nesta, a em-presa que completa o ciclo produtivo a que projeta o produto e determina oque e como as empresas subcontratadas devem produzir. Nos distritos industriais,o projeto do produto final elaborado por todas as empresas envolvidas. Issopermite que as empresas encarregadas das etapas iniciais, assim como as que seresponsabilizam pelas etapas intermedirias, possam colaborar, oferecendo o seuconhecimento especializado para aperfeioar a qualidade do produto e os proces-sos produtivos em todas as suas etapas.

    Este esprito de cooperao permeia todas as relaes entre as empresas decada distrito, assim como entre os distritos. As empresas, em cada mercado,competem entre si, mas sem procurar destruir o concorrente para dominar omercado. Todos sabem que o xito de cada empresa depende do xito de todas.Isso permite a livre troca de informaes e idias, condio bsica para a ajudamtua. As firmas no guardam segredos de seus concorrentes, pois so membrosda mesma comunidade de negcios.

    Uma prontido entre firmas para cooperar out ra caracterstica importante dedistritos industriais, uma espcie de cooperao que, longe de sufocar a com-

    petio, de fato a ajuda. [...] pode haver prontido para compartilhar informa-o, assim como idias sobre novas tecnologias ou produtos, que ajudam to-das as firmas no distrito a se tornar mais eficientes por meio de melhor produ-tividade, qualidade, desenho etc. Esta partilha de informao pode ser realiza-da informalmente num nvel pessoal ou mais formalmente por meio de insti-tuies especialmente estabelecidas. Tais instituies podem ser associaesde empregadores ou trabalhadores, ou centros de servios oferecendo conse-lhos sobre o balco. A proviso coletiva de servios e informao tornaacessvel algo que pequenas firmas de outro modo no poderiam esperar ad-ministrar como unidades individuais isoladas. A existncia de instituies, e

    talvez ideologias, capazes de sustentar relaes cooperativas coletivas aparececomo crucial (Sengenberger e Pyke, 1992, pp. 4 e 5).

    Esta solidariedade interfirmas torna o distrito industrial capaz de competircom as grandes empresas, cujo poderio econmico lhes permite comprar os ser-vios de consultorias especializadas e informaes de bancos de dados. A coope-rao entre as empresas do mesmo distrito, e mesmo de diversos distritos entresi, permite a empresas pequenas desenvolver novos produtos e encont rar formasde aperfeioar mtodos de produo, que esto fora do horizonte de congneres,

    que trabalham isoladas. O distrito industrial o equivalente a uma grande em-presa em rede, com a vantagem de poder organizar a colaborao mtua de de-zenas de milhares de pessoas sem imposio e sem subordinao, o que deve dar

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    12/16

    PA U L SI N G E R

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200418

    colaborao maior qualidade do que a que as grandes empresas conseguemobter de seus empregados e contratados.

    Diante dos desafios da reestruturao, que em geral tomam a forma decompetio acirrada por parte de empresas localizadas em pases de mo-de-obra

    barata, as pequenas firmas tm duas alternativas: a via baixa e a via alta,como as denominam Sengenberger e Pyke (1992). A via baixa

    Consiste na busca da competitividade atravs de baixos custos trabalhistas eum ambiente de desregulao do mercado de trabalho. Supe-se que o cortede custos ir alar a produtividade e os lucros e criar novo emprego. [...] Oproblema com esta abordagem que [...] de fato, ela acentua o problema.Salrios e condies de emprego desfavorveis impedem a firma de adquirir emanter o trabalho qualificado, requerido para atingir eficincia e flexibilidade;e raramente induzem a firma a investir em sua fora de trabalho para torna-la mais produtiva. Assim [...] mais cortes de custos podem se tornar inevit-

    veis, resultando num crculo vicioso de espirais descendentes (p. 12).A principal alternativa a tal competio destrut iva a via alta de competi-o construtiva, baseada na promoo da eficincia e da inovao; isto ,atravs de ganhos econmicos que tornam ganhos salariais e melhoras nascondies sociais viveis, assim como preservando os direitos dos trabalhado-res e provendo padres adequados de proteo social. A chave para alcanarisso melhor organizao e melhor mobilizao e ut ilizao do trabalho pro-dut ivo, que ento permite um melhor uso da tecnologia (em vez da outra via)(pp. 12 e 13).

    As duas vias contrastam de forma transparente a forma capitalista e a formasolidria de desenvolvimento. Pela lgica capitalista, a concorrncia de preosdeve ser enfrentada por corte de custos, e em tempos de desemprego, a mo-de-obra a candidata natural a se tornar objeto de cortes. A esperana que a redu-o dos salrios diminua o desemprego, at que o mercado de t rabalho retorneao equilbrio. Como mostram os autores, o mais provvel no o equilbrio, masa reiterao do desequilbrio pela intensificao da concorrncia dos produtosimpor tados exigindo mais cortes de salrio etc. O crculo vicioso de cortes suces-sivos deixa a firma merc da grande empresa que a contrata e a nica que lhepode abrir o caminho para o aumento da produtividade.

    A lgica solidria apostar nas virtudes da cooperao em obter ganhos deprodutividade que viabilizem a baixa dos preos para enfrentar a concorrncia,sem prejudicar os trabalhadores. O pressuposto aqui que a cooperao entrepatres e empregados pode ensejar inovaes que elevam a produtividade, pre-servando os empregos e a remunerao dos trabalhadores. A experincia dosdistritos industriais confirma a veracidade desse pressuposto. Mediante estreitacooperao entre empregadores e empregados e entre as firmas, as PMEs foram

    capazes no s de preservar suas posies nos mercados, mas at de ampli-las. Oque teve como contrapartida partilha dos ganhos com os trabalhadores, sob aforma de melhoria contnua das condies de trabalho e emprego.

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    13/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 19

    Lauren Benton (1992) estudou as condies de emergncia de distritosindustriais na Espanha. H , neste pas, como no Brasil e tantos outros, localida-des em que a maior parte dos moradores se dedica mesma atividade manu-fatureira ou a fases complementares da mesma cadeia produt iva, geralmente or-ganizadas em empresas familiares ou de pequeno porte. Mas isso s no bastapara fazer destas localidades distritos industriais. preciso que os moradores eseus empreendimentos formem uma comunidade, cujos laos se fortaleam aponto de ficar claro para qualquer um que o progresso dele depende do progres-so da comunidade e, portanto, do progresso de cada um dos outros membrosdela.

    Precisamos olhar para alm das caractersticas espaciais de configuraes in-dustriais e analisar o carter destas comunidades a natureza das relaesentre negcios, entre trabalhadores e empregadores, e entre o mundo do tra-

    balho e a vida social fora do lugar de trabalho se vamos entender comopadres dinmicos de crescimento evoluem em alguns lugares e como podemser cultivados alhures. [...] Pesquisas anteriores revelam a importncia de vrias

    formas de cooperao dentro e ao redor de distritos industriais como um com-plemento da competio. Estes conjuntos de relacionamentos tm o potencialde transformar configuraes destrut ivamente compet itivas em ambientes fr-teis para o desenvolvimento de sistemas dinmicos de produo flexvel (p.49).

    Lauren Benton distingue trs tipos de cooperao que so cruciais para aconstituio de d istritos industriais. O primeiro a cooperao entre firmas quese inicia pelo relacionamento entre empresas que produzem bens que so com-plementares. Se todas elas fossem subcont ratadas subordinadas, este tipo de co-operao no teria condies de se desenvolver, pois em cada elo da cadeia asfirmas estariam competindo entre si pelo mercado. Um distrito industrial pres-supe a autonomia das empresas membros, em relao aos clientes, o que lhespermite cooperar livremente entre elas. O segundo tipo de cooperao entrepatres e empregados dentro das firmas. Ele pressupe a ruptura com a estrutu-ra burocrtica hierrquica e o empoderamento dos trabalhadores, principalmen-

    te na autodeterminao de suas tarefas e na possibilidade de relacionamento es-treito com os clientes.

    Uma 3 forma importante de cooperao representada por alianas locaisentre governo, grupos trabalhistas, partidos polticos e associaes de empre-gadores. [...] Esta cooperao institucionalem si parece ser crucial como apoioda cooperao inter e intrafirmas. Ao subvencionar servios para pequenasfirmas [...] por exemplo, governos municipais ou regionais podem dar susten-to vital a associaes interfirmas. Relacionamentos dentro das firmas, ao mes-mo tempo, podem ser influenciados por polticas que promovem causas comoo t reinamento de trabalhadores, a formao de cooperativas e o acesso a crdi-to para trabalhadores qualificados que tentam iniciar novas empresas (pp. 50-51).

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    14/16

    PA U L SI N G E R

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 200420

    Nos diversos estudos de caso, apresentados por Lauren Benton, as firmasestudadas eram todas capitalistas, com um relacionamento digamos atpicoentre empregados e empregadores. Mas, a autora inclui em seus casos um quefoge inteiramente a esta regra: o Complexo Cooperativo de Mondragn. Ela

    justifica sua deciso nos seguintes termos:

    Seria uma negligncia se em nossa reviso de importantes distrito s industriaisna Espanha no mencionssemos o interessante caso das cooperativas deMondragn. [...] H razes persuasivas para colocar o caso de Mondragn margem da discusso de distritos industriais na Espanha. [...] No obstante, ocaso merece ser mencionado aqui porque suas caractersticas do claramenteapoio aos argumentos feitos em relao a (outros) distritos industriais naEspanha.Especificamente, o exemplo de Mondragn confirma a necessidadede vigorosa cooperao institucional em nvel local face a poltica industrialdesfavorvel ou simplesmente inefetiva. O caso tambm chama a ateno sobre

    os benefcios a serem ganhos da cooperao inter- e intrafirma e, mais precisa-mente, aponta para a significao do autogoverno como suporte destes objetivos

    [sublinhado por mim P.S.] (pp. 74-75).

    A anlise de Lauren Benton permite uma comparao entre distritos in-dustriais e complexos cooperativos. Uma diferena significativa entre eles queos primeiros so capitalistas, emboraatpicos, e os ltimos so socialistas, emsent ido estrito. Desse ponto de vista, o relacionamento intrafirmas seria comple-tamente diverso, pois nas PMEs dos distritos este relacionamento se d entreduas partes patres e empregados ao passo que nas cooperativas o relaciona-mento ocorre ent re scios do mesmo empreendimento. Mas, na realidade estadiversidade no to grande porque a distncia entre patres e empregados nasprimeiras muito menor que nas empresas tpicas e a expectativa dominantenelas que os papis sejam revertidos e muitos dos empregados mais qualifica-dos se tornem patres por sua vez, com o apoio de seus ex-empregadores. Nascooperativas de Mondragn, os gerentes so escolhidos pela Junta Governativa,esta eleita pelos scios diretamente. Os gerentes desempenham suas funes e soresponsveis perante a Junta, o que os aparta, no dia-a-dia, dos operrios de linha.

    O mais significativo na comparao no , todavia, a diversidade (em siinquestionvel), mas os elementos em comum. Tanto distritos industriais comocomplexos cooperativos constituem comunidades de empreendimentos e de tra-balhadores, unidos pela solidariedade e pela confiana mtua. o que explica aprtica da ajuda mtua em alto grau, nas duas espcies de coletividades. As coo-perativas de segundo grau de Mondragn desempenham o mesmo papel que asassociaes de firmas nos distritos industriais, mas de maneira mais radical. Nascooperativas de segundo grau, os resultados lquidos das cooperativas singularesso reunidos e repartidos de forma igual entre todas, eliminando assim qualquer

    diferena de lucratividade entre elas; pelo que sabemos, as associaes de em-pregadores dos distritos no tm esta prtica, mas no inconcebvel que pos-sam vir a adot-la.

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    15/16

    D E S E N V O L V I M E N T O C A P I T A L I S T A E D E S E N V O L V I M E N T O S O L I D R I O

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 21

    discutvel se os distritos industriais podem ou no ser considerados pro-tagonistas do desenvolvimento solidrio, que por definio se limita a modos deproduo em que no h distines de classe: a autogesto e a pequena produode mercadorias. Mas, convm lembrar que muito forte a presena docooperativismo na Terza Itlia, particularmente em Emilia-Romana, inclusivenos distritos industriais. importante estudar o relacionamento de pequenasfirmas capitalistas com cooperativas de produo dentro dos arranjos produtivoslocais, que constituem distritos industriais.

    Desenvolvimento misto

    Se a economia contempornea fosse unicamente capitalista, como Marxsups que acabaria sendo, o desenvolvimento tambm seria governado pela lgi-ca do grande capital. Se a economia no futuro se tornar completamente solidria(ou socialista), de se esperar que o desenvolvimento ser governado pela lgicada solidariedade. Mas, at o momento, a previso de Marx no se realizou. Odesenvolvimento econmico ao longo dos dois ltimos sculos no tendeu aeliminar os modos de produo no-capitalistas a pequena produo de merca-dorias, a economia social e solidria e a economia estatal e nas ltimas dcadasreforou a presena e o papel destes outros modos de produo no seio da for-mao socioeconmica dominada pelo capitalismo. O desenvolvimento vem tor-nando a economia mais mista, ou seja, uma combinao cada vez mais complexade modos de produo.

    Esse fato histrico indubitvel, mas no elimina a luta ideolgica entre osdiversos tipos de desenvolvimento. O fato de o desenvolvimento, em tempos dereestruturao, ter acentuado a liberdade do mercado em detrimento dos con-tro les dos Estados nacionais sobre a dinmica do capital no anula o outro fato,de que a revoluo microeletrnica e telemtica contribuiu para que o capitalprodutivo (no o financeiro) se descentralizasse, abrindo espao para um desen-volvimento misto de pequenas e mdias empresas e de complexos cooperativos,guiado pelos valores da solidariedade.

    No plano econmico, os diferentes modos de produo competem entre si

    mas tambm se articulam e cooperam entre si. No plano poltico e ideolgico,no entanto os antagonismos entre as duas lgicas e seus valores opostos s seacentuam. Os fruns sociais mundiais, os movimentos contra a globalizaoneoliberal, os ambientalistas, os pelos direitos humanos e os pela economia soli-dria constituem um rosrio de novas foras que lutam por uma outra econo-mia e uma outra sociedade. D iferentemente da velha esquerda, que almejavaa destruio do capitalismo mediante a ao do Estado nas mos da vanguardado proletariado, a nova esquerda almeja a destruio do capitalismo por meio daao direta no seio da sociedade civil, mediante a construo de uma economiasolidria e preservacionista e de revolues culturais diversas, das quais a femini-na parece ser a mais adiantada.

  • 8/2/2019 Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidrio_Paul Singer

    16/16

    PA U L SI N G E R

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51) 200422

    Bibliografia

    BENTON, Lauren. The Emergence of Industrial Districts in Spain: IndustrialReestructuring and Diverging National Responses. Em Pyke e Sengenberger, op. cit.

    JEANTET, Thierry. LEconomie sociale europenne ou la tentation de la dmocracie emtoutes choses...Paris, CIEM Edition, 2001.

    PYKE, Frank e SENGENBERGER, Werner (eds.). Industrial Districts and EconomicR egenerat ion ,Genebra, International Labour Studies, 1992.

    TRIGILIA, Carlo. Italian Industrial Districts: Neither Myth Nor Interlude em Pykee Sengenberger, op. cit.

    Paul Singer secretrio nacional da Economia Solidria do Ministrio do Trabalho(Braslia, DF) e professor-titular da Faculdade de Economia, Administrao e Contabi-lidade da USP. autor de vrias obras, entre elas:Desenvolvimento econmico e econo-mia urbana (Edusp), Globalizao e desemprego: diagnstico e alternativas (Contexto),

    R epensando o Socialismo: uma utopia militante (Vozes), Para entender o mundo finan-ceiro (Contexto),Introduo economia solidria (Editora Fundao Perseu Abramo)

    eA economia solidria no Brasil (Contexto, com Andr Souza).

    Texto recebido e aceito para publicao em 3 de julho de 2004.