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O desenvolvimento da afetividade: a constituição das relações de objeto Marilita Lúcia de Castro Introdução O recém-nascido olha os rostos das pessoas que se curvam sobre seu berço, já reconhece o cheiro de sua mãe, identifica sua voz, reage aos carinhos e à presença das pessoas ao seu redor. O fato é que o rosto da mãe será percebido desde o nascimento. Com 48 horas de vida [1] , ao ser colocado a 30 centímetros de uma parede com duas janelas, o bebê fixa a janela onde aparece o rosto da mãe, ainda que na outra se encontre o rosto de uma mulher com a mesma cor de cabelos, o mesmo penteado e o mesmo formato de rosto. Evidentemente a parede é vaporizada com perfume para que a criança não reconheça o cheiro da mãe. Alguns minutos após o nascimento ele vira-se espontaneamente para imagens (apresentadas a 30 centímetros) de rostos humanos. É como se estivesse predestinado a reconhecer o rosto de seus semelhantes. Este reconhecimento é inato, da mesma forma, que o esquema corporal também não seria um mero fruto da experiência [2] . O lactente do presente é visto pelos cientistas como um computador extremamente competitivo, capaz de substituições e de correlações infinitas. Após o nascimento, essas substituições sinápticas se arrumam e a perda dos neurônios se inicia [3] .

Desenvolvimento Da Afetividade-relacoes de Objeto

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  • O desenvolvimento da afetividade: aprendendo a amar

    O desenvolvimento da afetividade: a constituio das relaes de objeto

    Marilita Lcia de Castro

    Introduo

    O recm-nascido olha os rostos das pessoas que se curvam sobre seu bero, j reconhece o cheiro de sua me, identifica sua voz, reage aos carinhos e presena das pessoas ao seu redor. O fato que o rosto da me ser percebido desde o nascimento. Com 48 horas de vida [1] , ao ser colocado a 30 centmetros de uma parede com duas janelas, o beb fixa a janela onde aparece o rosto da me, ainda que na outra se encontre o rosto de uma mulher com a mesma cor de cabelos, o mesmo penteado e o mesmo formato de rosto. Evidentemente a parede vaporizada com perfume para que a criana no reconhea o cheiro da me. Alguns minutos aps o nascimento ele vira-se espontaneamente para imagens (apresentadas a 30 centmetros) de rostos humanos. como se estivesse predestinado a reconhecer o rosto de seus semelhantes. Este reconhecimento inato, da mesma forma, que o esquema corporal tambm no seria um mero fruto da experincia [2] . O lactente do presente visto pelos cientistas como um computador extremamente competitivo, capaz de substituies e de correlaes infinitas. Aps o nascimento, essas substituies sinpticas se arrumam e a perda dos neurnios se inicia [3] .

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    Seu potencial gentico humano, presente desde o nascimento, ser moldado por sua vivncia e pelas respostas que ele obter de seus prximos ao chegar ao mundo.

    Aprendendo a amar

    necessrio aprender a amar? Claro que sim. Para melhor compreender esta afirmao necessrio descrever o desenvolvimento da criana durante os primeiros anos de sua vida. Como dissemos antes, sabemos hoje que os recm-nascidos sabem muito mais do que supunha a maioria das pessoas: eles vem, ouvem e compreendem mais do que imaginamos. Mas o que que eles sabem? Segundo os grandes tericos da psicologia infantil, o recm nascido no tem conscincia de sua prpria existncia --- eu nem da existncia do mundo externo --- tu ---. Esse estado de conscincia chamado de estado autista, diferentemente do estado dualista, pois o beb ainda no capaz de estabelecer a dualidade bsica dentro da qual estamos imersos os seres humanos, a relao eu e tu ou eu e universo.

    Quando o futuro beb flutuava no ventre materno no havia diferenciao entre ele e sua me: eram um s corpo. Este estado de indiferenciao se prolongar psicologicamente no recm-nascido, que a este lhe parecer que sua solcita me uma extenso de si mesmo. Logo, a primeira tarefa com a qual se enfrenta a criana ao nascer desenvolver a conscincia de sua prpria existncia --- eu --- e a conscincia da existncia de um mundo diferente e externo.

    J vimos que os bebs so capazes, desde os primeiros dias, de reconhecer os rostos, as vozes e o odor das pessoas que lhes prestam cuidados maternos e tambm so capazes de responder a tais estmulos com gozo e emoo. Inclusive conhecem a voz de sua me antes de nascer porque a escutaram quando estavam em seu ventre. Entretanto, isto no significa que sejam capazes de saber que seus pais, os objetos ou eles prprios, existem verdadeiramente; isto , os bebs no so capazes

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    de representarem em suas mentes, as pessoas e objetos que esto fora de seu campo visual e saber que estes se encontram em algum lugar, ainda que no possa v-los. Por isso as caixas de surpresa os surpreendem. A esta capacidade de representar mentalmente o que no vemos e saber de sua existncia, Piaget chamou de noo de objeto permanente. A compreenso desta noo fundamental para explicar algumas condutas e processos do desenvolvimento que so da maior importncia. Alguns exemplos podero trazer um maior esclarecimento: quando meus filhos esto na escola e no posso v-los, mesmo assim posso afirmar sua real existncia, pois sei que esto em alguma parte; se viajar, posso recordar minha casa, minha cidade, etc. Mas quando dizemos que nos primeiros meses o beb capaz de reconhecer seus pais, mas no ter conscincia de sua real existncia, surgem vrias perguntas: Como as crianas constroem a noo de objeto permanente? Como esta noo se relaciona com o amor?

    A criana como agente de uma relao de reciprocidade

    O fator fundamental que permitir a criana construir uma imagem de si mesmo e do mundo procede das relaes que se estabelecem entre a me e o filho. Esta relao privilegiada chamada por Spitz de dilogo. Diz Spitz: O dilogo o ciclo da seqncia ao-reao-ao, dentro do marco das relaes me-beb. Esta forma muito especial de interao cria para o beb um mundo singular prprio, com um clima especial e especfico. Sendo este ciclo de ao-reao-ao o que permite ao beb transformar pouco a pouco, os estmulos sem significado em sinais significativos. Utilizaremos um ditado popular para ampliar nossa explicao. Diz o ditado: Quem no chora, no mama! Imaginemos um beb que chora porque quer companhia, tem fome ou porque se sente incmodo e no obtm qualquer resposta para seu pranto. Ser capaz de descobrir a prpria existncia e a dos outros? Claro que no. As crianas abandonadas, isto , aquelas cujas aes ---pranto, sorrisos, gestos--- no obtm respostas da parte de quem as cercam, pedem e no so atendidas.

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    Desta forma, no conseguem construir imagens de si mesmas e do mundo circundante. Entretanto, importante assinalar que to pouco o conseguem aquelas crianas que nem precisam chorar para serem alimentadas, seja porque tm mes demasiadamente solcitas, caindo na superproteo, seja porque elas utilizam uma rigidez de horrios de alimentao (por exemplo, a cada trs horas, com ou sem fome, quer o beb pea ou no), como se de mquinas se tratassem; ou porque esto muito preocupadas com o bem-estar de seus filhos. Nem o abandono, nem a superproteo conseguir fazer que a criana descubra a si mesma como indivduo. Os extremos se tocam.

    Por que nem a criana abandonada, nem a superprotegida so capazes de se desenvolver? As palavras-chaves para compreender este fenmeno so: pedir e dar. Palavras que implicam uma relao mtua e recproca na qual me e filho so agentes ativos, que provocam com seus gestos a resposta do outro. Para Fromm, a esfera mais importante do dar no se encontra nas coisas materiais, mas no domnio do especificamente humano. O que uma pessoa d a outra? D a si mesma, d o mais precioso que tem, sua prpria vida. O que no significa, necessariamente, sacrificar sua vida pelo outro, mas dar-lhe o que possui de vivo em si mesmo, sua alegria, sua tristeza, seu interesse, sua compreenso, seu conhecimento, ou seja, todas as manifestaes de vida que lhes so inerentes. Ao dar assim sua vida, enriquece o outro, reala o sentimento vital da outra pessoa, exaltando igualmente o seu. Analisemos o processo:

    # o beb realiza um gesto produtivo, chora, por exemplo;

    # sua me acude imediatamente e lhe responde: Por que Choras? O meu nenm comilo j est com fome?

    # agora o beb escuta sua me, cala e a fita;

    # sua me o tira do bero e beija: Que menino to bonito e que j vai

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    comer!

    # o beb olha seu rosto, etc.

    Ao---reao---ao; pais e filhos se comunicam, dialogam sem palavras, graas ao qual o beb descobre e estabelece os termos da relao --- eu e tu. Se o beb chora e no lhe atendem, estar perdido; e se o alimentam sem que ele o pea, tambm. Trata-se simplesmente de comunicar-se com ele, de responder a seus gestos, de que quando pea lhe dem. De outro modo no poder reconhecer-se.

    Bruno Bettelheim analisa esta questo a fundo e explica: Nossa capacidade para extrair da contigidade no tempo e no espao um sentido de causalidade nos projetou em direo aventura humana. O que nos tornou o que somos no foi apenas o reconhecimento das relaes causais, mas que isto implicava saber que a afirmao de que uma determinada seqncia de acontecimentos poderia ser modificada mediante nossa influncia.

    Quando percebemos que no podemos influenciar as coisas mais importantes que nos sucedem, quando parece que estas seguem os ditames de uma fora inexorvel, abandonamos o esforo de aprender como atuar sobre elas ou muda-las.

    Esta longa explicao nos permitir entender como se desenvolve a vida afetiva da criana em seus primeiros dezoito meses de vida. Segundo a psicanlise, a criana nasce com a capacidade potencial de amar, mas como ele no capaz de estabelecer a diferena bsica entre eu e tu, no pode ainda vincular-se afetivamente. Este momento do desenvolvimento foi chamado por Freud de narcisismo primrio [4] , porque a criana ainda no capaz de projetar seu amor no outro; entretanto, tudo muda em torno dos oito meses de vida quando o beb descobre a realidade de sua prpria existncia e dos demais. Nesta fase ele ser capaz de estabelecer laos afetivos, ele poder apaixonar-se. O

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    amor narcisista se converter em amor ao outro, um outro que obviamente ser sua me ou a pessoa que o tenha amado e cuidado de modo clido, contnuo e ntimo. Surgem para a criana, o eu e o tu, e com estes, o eu te amo.

    Sabe-se que nos primeiros meses os bebs esto biologicamente dispostos a brincar com qualquer pessoa que cuide deles e se deixaro mimar, beijar, passear, banhar, etc, por qualquer estranho; e tero prazer nisso. Entretanto, ao completar oito meses de vida, se negaro a separar-se de suas mes e se angustiaro se estiverem nos braos de outras pessoas, no porque estas lhes desagradem, mas porque quando se est apaixonado, prefere-se ficar ao lado da pessoa amada. A partir deste momento se por algum motivo, o beb separado de sua me, tal separao lhe provocar uma ansiedade tremenda, talvez pior do que a experimentada por jovens e adultos apaixonados, que perdem seus objetos de amor. A razo disso que nos bebs ainda no se desenvolveram os mecanismos de defesa do eu, que so as estratgias que nos ajudam a lidar e suportar o desprazer e a frustrao. Aprender a amar e aprender a confiar fazem com que um desenvolvimento humano adequado seja possvel.

    As investigaes clssicas

    Em 1965 Ren Spitz publicou seu importante livro, O primeiro ano de vida do beb, onde relata como descobriu que a falta de cuidados maternos, de ternura, de relaes interpessoais, de comunicao humana eram a principal causa de mortalidade entre as crianas que viviam em instituies, ainda que suas necessidades materiais fossem satisfeitas totalmente. Alm disso, este autor descreve a profunda depresso que sofrem as crianas ao serem separadas de suas mes. Por exemplo, quando a me ou a criana tem que ser hospitalizada ou quando esta criada em uma instituio onde s recebe casa, comida e alimentao, sem amor. Spitz chamou de depresso anacltica sndrome depressiva que se desenvolve na criana, nos primeiros meses de vida, aps a

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    separao brusca e prolongada de sua me ou a falta de amor, pois o hospitalismo, como foi denominado o fenmeno posteriormente, se desenvolve igualmente em filhos de mes depressivas, que no desejavam seus filhos ou que so muito ocupadas para mimar, beijar e falar com seus bebs.

    De como ficou provado que o amor no entra pelo estomago

    As pesquisas do psiclogo americano, Harry Harlow no final da dcada de cinqenta trouxeram algumas concluses a esse respeito. O Dr. Harlow criou macacos em uma situao de completo isolamento social. Quando estes animais foram colocados em contato com outros de sua espcie eram incapazes de se relacionarem com eles; ficavam em um dos cantos da sala e passavam horas em movimentos de balano repetitivo, como ocorre com os bebs que no receberam ateno particular (criados em orfanatos); no olhavam para os outros macacos e se eram tocados, se enfureciam e gritavam. Harlow pensou que ao atingirem a maturidade sexual, aqueles animais mudariam de comportamento, mas verificou que estava equivocado. Ao tentar cruza-los, verificou que os macacos da experincia eram incapazes de relacionar-se afetiva e sexualmente e que agrediam os outros de forma cruenta. Algumas das fmeas criadas em isolamento foram inseminadas artificialmente e quando pariram suas crias no as amamentaram e chegavam a agredi-las. Outro achado importante de Harlow ocorreu na experincia de criao de macacos com mes artificiais. Os macaquinhos preferiam a me almofadada (de cara sorridente) e peluda que a de arame (com uma cabea rudimentar de madeira), apesar da alimentao ser provida por ambas. Os resultados podem ser estendidos aos humanos porque so observadas as mesmas anomalias --- movimentos rtmicos repetitivos, automutilaes (morder-se), incapacidade de comunicao com os demais, etc --- nas crianas que cresceram sem cuidados maternos.

    Uma relao contnua, clida e ntima.

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    Nos anos quarenta, o psiquiatra ingls, John Bowlby, provocou uma enorme controvrsia ao declarar que a falta de amor e de cuidados maternos na criao de um indivduo fazia com que este fosse incapaz de amar pelo resto de sua vida. Diz Bowlby: o que acho essencial para a sade mental que o infante possa experimentar uma relao contnua, clida e ntima com sua me ou substituta materna permanente, na qual ambos possam encontrar satisfao e gozo. Muitos tipos de problemas psquicos e de carter podem ser atribudos tanto falta de cuidados maternos quanto descontinuidade nessa relao. As evidncias de que a ruptura dos primeiros laos afetivos a causa de problemas profundos pode ser apoiada nestas evidncias:

    1. Ao separar os infantes (nos dois primeiros anos de vida) de suas mes ou figuras maternas, provoca-se nestes um estado de terrvel ansiedade.

    2. A ansiedade resultante da separao.

    Bowlby opina que a base para o desenvolvimento humano adequado uma sensao de confiana na disponibilidade das pessoas com quem mantemos os primeiros laos afetivos, confiana que se desenvolve lentamente atravs da infncia e da adolescncia. Essa disponibilidade consiste em uma resposta constante s nossas necessidades afetivas, carcias, compreenso, companhia, comunicao e ateno.

    Leitura recomendada:

    J. Bolwby, Cuidados Maternos e Sade Mental, Terceira Edio, Editora Martins Fontes, 1995.

    C. Mathelin, O Sorriso da Gioconda: clnica psicanaltica com os bebs prematuros. Rio de Janeiro. Companhia de Freud Editora, 1999.

    R. Spitz, O Primeiro Ano de Vida. So Paulo. Martins Fontes, 1983.

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    [1] T.M. Field, D. Cohen, R. Garcia and R. Greenberg, Mother-stranger face discrimination by the newborn, in Infant Behaviour and Development, n7, 1984, pp. 19-25.

    [2] J. mehler, E. Dupoux, Natre humain, Paris, Ed. Odile Jacob, 1995.

    [3] B. de Boysson-Bardies, comment la parole vient aux enfants, Paris, Odile Jacob, 1996.

    [4] Segundo Laplanche-Pontalis, esse termo designa um estado precoce em que a criana investe toda sua libido em si mesma. J. Laplanche, B. Pontalis, Vocabulrio da Psicanlise. So Paulo. Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1985.

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