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O desenvolvimento desigual e combinado: a construção do conceito Alvaro Bianchi A lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma das faces mais conhecidas do pensamento de Trotsky. Para Nahuel Moreno (1981, p. 63), essa é “a descoberta mais importante do marxismo e da ciência moderna, como teoria que unifica as leis genéticas e estruturais”. Ernest Mandel (1980, p. 37) a define como a principal forma de aplicação, por Trotsky, da dialética à compreensão e transformação da realidade contemporânea. E Michael Löwy (1998, p. 73 e 79) considera que essa é a contribuição mais importante do revolucionário russo à teoria marxista e uma das teses marxistas mais amplamente assimiladas. Muito embora a importância dessa lei seja incontestável sua formulação explícita é tardia. Apenas em 1932, Trotsky começou a sobrepor à conhecida lei do desenvolvimento desigual uma lei do desenvolvimento combinado. O tratamento que o autor de História da Revolução Russa deu à questão após 1932 não fez referência a uma “lei do desenvolvimento desigual e combinado” e continuou sempre a escrever a respeito de duas leis. Foi apenas em 1957, ou seja, 17 anos após a morte de Trotsky, que o filósofo estadunidense George Novack publicou na revista inglesa Labour Review um ensaio no qual apresentava o conceito de “lei do desenvolvimento desigual e combinado” (cf. LEIDEN, 2007, p. 149). Novack foi, entretanto, muito além de Trotsky na apresentação desta, afirmando que ela seria uma das “leis fundamentais da história humana” (NOVACK, 1988, p. 9) e teria “raízes em acontecimentos comuns a todos os processos de crescimento, tanto na natureza como na sociedade” (idem, p. 15). [1]

Desenvolvimento desigual

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Texto de Leon Trotsky que fundamenta o desenvolvimento desigual e combinado.

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O desenvolvimento desigual e combinado:a construção do conceitoAlvaro Bianchi

A lei do desenvolvimento desigual e combinado éuma das faces mais conhecidas do pensamentode Trotsky. Para Nahuel Moreno (1981, p. 63),essa é “a descoberta mais importante domarxismo e da ciência moderna, como teoria queunifica as leis genéticas e estruturais”. ErnestMandel (1980, p. 37) a define como a principalforma de aplicação, por Trotsky, da dialética àcompreensão e transformação da realidadecontemporânea. E Michael Löwy (1998, p. 73 e79) considera que essa é a contribuição maisimportante do revolucionário russo à teoriamarxista e uma das teses marxistas maisamplamente assimiladas. Muito embora aimportância dessa lei seja incontestável suaformulação explícita é tardia. Apenas em 1932,Trotsky começou a sobrepor à conhecida lei dodesenvolv imento des igual uma le i dodesenvolvimento combinado.

O tratamento que o autor de História da Revolução Russa deu à questão após 1932 não fezreferência a uma “lei do desenvolvimento desigual e combinado” e continuou sempre a escrever arespeito de duas leis. Foi apenas em 1957, ou seja, 17 anos após a morte de Trotsky, que o filósofoestadunidense George Novack publicou na revista inglesa Labour Review um ensaio no qualapresentava o conceito de “lei do desenvolvimento desigual e combinado” (cf. LEIDEN, 2007, p.149). Novack foi, entretanto, muito além de Trotsky na apresentação desta, afirmando que ela seriauma das “leis fundamentais da história humana” (NOVACK, 1988, p. 9) e teria “raízes emacontecimentos comuns a todos os processos de crescimento, tanto na natureza como na sociedade”(idem, p. 15). [1]

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É um anacronismo concluir como fez Osvaldo Coggiola em um artigo de grandes méritos que “aelaboração da lei do desenvolvimento desigual e combinado permitiu que Trotsky previsse, com umaantecedência de pelo menos doze anos, a possibilidade de que a primeira vitória revolucionária doproletariado ocorresse na Rússia” (COGGIOLA, 2004, p. 14). Não havia lei do desenvolvimentodesigual e combinado em 1905. Certamente muitos dos elementos teóricos necessários para oenunciado da lei já se encontravam presentes. Para afirmar a existência de uma lei antes doenunciado seria necessário dizer, à maneira de Althusser, que ela se encontrava em “estado prático”e não sob a forma teórica. Foi, portanto para não incorrer em um anacronismo que procureiapresentar primeiro os fundamentos metodológicos desse conceito em “estado prático”.

É possível encontrar várias antecipações a essas leis formuladas por Trotsky no âmbito do marxismoclássico. Lenin, em sua obra Imperialismo, fase superior do capitalismo, de 1917, fez uso freqüenteda noção de desenvolvimento desigual sem, entretanto, apresentá-la como uma lei. Nesse livro,utilizava essa noção para referir-se ao ritmo diferenciado de crescimento de ramos industriais, comopor exemplo, na referência ao “desenvolvimento desigual das ferrovias” (LENIN, 1965, v. 22, p. 190)ou na afirmação de que o “desenvolvimento desigual e espasmódico de empresas individuais, ramosda indústria e países individuais é inevitável sob o capitalismo” (idem, p. 241). Já nessa últimacitação, é possível ver um uso mais amplo da noção na referência ao desenvolvimento diferenciadode cada país. Esse último sentido está a afirmação, no mesmo texto, da expansão colonial desigualentre as potências:

“A desigualdade na taxa de expansão colonial é muito grande. (…) Por mais vigoroso que tenhasido nas últimas décadas o nivelamento do mundo, o nivelamento das condições econômicas ede vida em diferentes países, como o resultado da pressão da grande indústria, do comércio edo capital financeiro, diferenças consideráveis ainda existem; e entre as seis potenciasmencionadas, vemos em primeiro lugar, jovens países capitalistas (América, Alemanha, Japão)cujo progresso tem sido extraordinariamente rápido; em segundo, países com umdesenvolvimento capitalista antigo (França e Grã-Bretanha), que ultimamente tem progredidomuito mais lentamente que os países previamente mencionados; e, em terceiro, um país que éeconomicamente mais atrasado (Rússia), onde o moderno capitalismo imperialista se encontraenvolvido, por assim dizer, por uma rede particularmente fechada de relações pré-capitalistas.”(idem, p. 258-259)

Ao final desse livro aquela noção, apresentada inicialmente de modo cauteloso, era generalizada e odesenvolvimento desigual tornava-se, para seu autor, uma característica geral do capitalismo: “Emseu conjunto, o capitalismo está crescendo muito mais rapidamente do que antes, mas essecrescimento não apenas se torna cada vez mais e mais desigual, como sua desigualdade também semanifesta, em particular, na decadência daqueles países que são mais ricos em capital (Inglaterra)”(idem, p. 300). Era, portanto, como decorrência do desenvolvimento desigual da economiacapitalista que o autor de Imperialismo, fase superior do capitalismo identificava os agudos conflitosintercapitalistas.

Rudolg Hilferding, por sua vez, em sua análise do capital financeiro destacou o caráter combinadoda expansão deste, decorrente da exportação de capital. A expansão das fronteiras do capitalismo ea mercantilização de todas as relações já tinham sido inúmeras vezes ressaltadas por Marx desde oManifesto Comunista. Mas esses fenômenos que haviam sido percebidos já na primeira metade do

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século XIX assumiam novas características no início do século XX e não foram poucos os marxistas emesmo liberais como Hobson que se dedicaram a compreender o tema. Para Hilferding essesfenômenos não apenas tinham um ritmo mais acelerado como estavam produzindo uma verdadeirarevolução no âmbito das antigas relações sociais:

“A exportação de capital, especialmente desde quando se deu em forma de capital industrial efinanceiro, acelerou enormemente a reviravolta de todas as velhas relações sociais e asubmersão do mundo no capitalismo. O desenvolvimento capitalista não se deu de modoautóctone em cada país isoladamente; pelo contrário, com o capital foram simultaneamenteimportadas produção capitalista e relações de exploração, e isso sempre no grau alcançado nopaís mais avançado. Assim como hoje uma indústria recém-criada não se desenvolve a partir deprincípios e técnicas artesanais para chegar a ser uma gigantesca empresa moderna, mas éfundada de antemão como empresa altamente capitalista, assim o capital hoje, também éimportado por um novo país com o respectivo grau de perfeição e desenvolve por isso seu efeitorevolucionário com ímpeto muito maior e em prazo muito mais curto do que exigiu, porexemplo, desenvolvimento capitalista da Holanda e da Inglaterra.” (HILFERDING, 1985, p.303.)

Lenin e Hilferding analisavam o mesmo fenômeno, o advento do imperialismo, a partir de óticasdiferentes. Por essa razão destacaram diferentes processos. Enquanto o primeiro enfatizou odesenvolvimento desigual que acarretava uma intensificação do conflito interimperialista, osegundo, escrevendo antes da Primeira Guerra Mundial, destacou como a expansão imperialistaimplicava em uma expansão das próprias relações sociais capitalistas, bem como a transformação eo caráter combinado do desenvolvimento. Seria, entretanto, injusto afirmar que Lenin não viu esseprocesso. Sua referência ao “nivelamento das condições econômicas e de vida” devido à expansão daindústria, do comércio internacional e do capital financeiro, indicam que percebeu claramente asconseqüências deste.

A apropriação da “lei do desenvolvimento desigual” pelo stalinismo, tendeu, entretanto, a apagartoda a sutileza da análise lenineana. O próprio Stalin não deixou de definir a lei a seu bel prazer,como, por exemplo, em seu relatório, de 1926 ao 7º Pleno Ampliado do Comitê Executivo daInternacional Comunista:

“A lei do desenvolvimento desigual no período do imperialismo significa o desenvolvimentoespasmódico de alguns países com relação a outros, a rápida expulsão do mercado mundial dealguns países por outros, redivisões periódicas de mundo já dividido por meio de conflitosmilitares e guerras catastróficas, a crescente profundidade e agudeza dos conflitos no campoimperialista, o enfraquecimento da frente do capitalismo mundial, a possibilidade dessa frenteser rompida pelo proletariado de países individuais e a possibilidade da vitória do socialismo empaíses isolados.” (STALIN, 1954, v. 9, p. 111. Ver, tb. v. 6, p. 97 e 416.)

A lei, como se pode ver, não era enunciada. Apenas seus resultados eram descritos. Mas aoapresentar como um dos resultados do desenvolvimento desigual a possibilidade do socialismo emum só país era estabelecida uma relação causal. De tal modo que nos texto de Stalin, a leidesenvolvimento desigual rapidamente se tornou sinônimo de socialismo em um só país, o que nãodeixava de ter como consequência a transformação deste último enunciado em uma lei.

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Essa identidade teórica entre desenvolvimento desigual e socialismo em um só país tem sua própriahistórica. Em um artigo de 1915, exaustivamente citado pela publicística stalinista, Lenin afirmouque

“o desenvolvimento econômico e político desigual é uma lei absoluta do capitalismo. Daí resultaque a vitória do socialismo é possível primeiro em alguns poucos países e, inclusive, em apenasum, considerado isoladamente. O proletariado vitorioso em um país, depois de te expropriado oscapitalistas e organizado a produção socialista se levantará contra o restante do mundoburguês, atrairá as classes oprimidas dos demais países, sublevando-as contra os opressores eintervindo, inclusive, em caso de necessidade pela força militar contra as classes exploradoras eseus Estados.” (LENIN, 1965, v. 21, p. 342).

Embora essa passagem não seja muito clara e possa despertar dúvidas, ela diz respeito não àsupremacia das relações sociais plenamente socialistas em um único país e sim à vitória dossocialistas em um país, ou seja, à ditadura do proletariado. Trotsky chamou a atenção a esserespeito, enfatizando que Lenin argumentava a respeito da possibilidade e até mesmo danecessidade da revolução socialista realizar-se em uma dimensão nacional. O próprio Stalin reforçouuma interpretação similar em uma carta a Yermakovsky, datada de outubro de 1925. Nela o já todo-poderoso secretário-geral do Partido Comunista afirmava que a “lei do desenvolvimento desigual docapitalismo e a tese concomitante de que a vitória da revolução proletária é possível em um únicopaís foram e puderam ser apresentadas por Lenin apenas no período do imperialismo.” (STALIN,1954, p. v. 7, p. 237. Grifos meus.) [2]

Não havia sentido em contrapor a ideia da vitória da revolução socialista em um único país à ideiada revolução permanente. O stalinismo fez, entretanto essa contraposição inúmeras vezes, acusandoTrotsky de ceticismo. Mas a burocracia soviética foi além desse ponto a partir de 1926 e começou adeduzir da lei do desenvolvimento desigual e combinado uma teoria do socialismo em paísesisolados. Assim, em novembro de 1926 Stalin falava que a “lei do desenvolvimento desigualdescoberta por Lenin tinha se tornado o ponto de partida para a teoria da vitória do socialismo empaíses isolados” (idem, v. 8, p. 261). E um mês depois, por ocasião da reunião do Comitê Executivoda IC à qual foi feita referência afirmava: “Lenin deduziu a possibilidade da vitória do socialismo empaíses isolados direta e imediatamente da lei do desenvolvimento desigual dos países capitalistas.”(Idem, v. 9, p. 113.)

Para a burocracia stalinista a teoria sempre esteve subjugada aos ditames da política imediata e oque era dito num ano poderia ser desdito no seguinte ao sabor da luta contra a oposição. A respostamais acabada de Trotsky a essa apropriação instrumental da lei do desenvolvimento desigual podeser encontrada em sua crítica ao projeto de programa da Internacional Comunista, publicado em1928. Essa apropriação era considerada pelo ex- comandante do Exército Vermelho como “truncadae errônea, nem marxista, nem leninista” (TROTSKY, 1988, p. 225). Trotsky não negava, entretanto, aexistência de um desenvolvimento desigual. Pelo contrário, afirmava que a grande variedade donível alcançado pelo desenvolvimento histórico das diversas partes da humanidade, constitui “aposição de partida do capitalismo” (idem, 226), a partir da qual este poderia se expandir. Aformulação de Trotsky traz temas presentes naquelas passagens de Lenin e Hilferding já citadas:

“Distinguindo-se, assim, dos sistemas econômicos que o precederam, o capitalismo tem apropriedade de procurar continuamente a expansão econômica, penetrar em novas regiões,

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vencer as diferenças econômicas, transformar as economias provinciais e nacionais, fechadasem si mesmas, em um sistema de vasos comunicantes, de reaproximar, assim, de igualar, osníveis econômicos e culturais dos países mais avançados e dos mais atrasados.” (Idem.)

Assim como Lenin, Trotsky ressaltava o “nivelamento relativo” entre os países e destacava que esseprocesso não estava isento de contradições, uma vez que o capitalismo procedia de modo anárquico,o que não deixava de estimular crescentes antagonismos e criar novas relações de desigualdadeentre regiões, países e ramos de produção. Revelavam-se, assim, no processo de acumulaçãocapitalista duas tendências e não apenas uma: “Apenas a combinação dessas duas tendênciasfundamentais, centrípeta e centrífuga, nivelamento e desigualdade, consequências da próprianatureza do capitalismo, explicam o tecido vivo do processo histórico.” (Idem.)

Tais tendências eram acentuadas pelo capital financeiro, permitindo ao capitalismo unir de modorápido e profundo os diversos agregadas nacionais e continentais, criando entre eles uma“interdependência estreita e vital uns com relação aos outros e reaproximando seus métodoseconômicos, suas formas sociais e seus níveis de desenvolvimento.” (Idem.) Era justamente essainterdependência o que impediria concluir a possibilidade do socialismo em um só país. Somente seo desenvolvimento capitalista de cada nação fosse não apenas desigual como também independente,seria possível pensar o socialismo em um único país. Mas por razões óbvias esse país não deveriaestar entre os mais atrasados e sim entre os mais desenvolvidos econômica e culturalmente (idem, p.227).

Também na análise da revolução espanhola, Trotsky afirmou a existência de tendências centrípetas ecentrífugas. Em um texto de 1931, a Espanha era caracterizada como pertencente ao grupo dospaíses atrasados da Europa, mas “seu atraso tem um caráter peculiar, determinado pelo grandepassado do país” (TROTSKY, 1977, p. 19). Era esse passado o que distinguia a península ibérica daRússia. O florescimento do comércio interno e externo a partir do século XVI fez com que a Espanhapudesse vencer em alguns momentos o isolamento feudal das províncias e o particularismo dasnacionalidades.

O “papel centralizador do capital comercial e a formação gradual da nação espanhola” estimulavamtendências centrípetas (idem). Mas o “atraso do desenvolvimento econômico da Espanha debilitouinevitavelmente as tendências centralistas inerentes ao capitalismo” (idem, p. 20). A longadecadência do comércio e da indústria das cidades que teve início já no século XVII afrouxou oslaços existentes entre as províncias e as nacionalidades dando origem a novas tendênciascentrífugas que chegaram até mesmo, a predominar sobre as forças centrípetas, comprometendo abase social do parlamentarismo espanhol. Daí o peso do governo sobre os eleitores, a dependênciadas Cortes e o caráter indispensável da monarquia que servia como elemento unificador das “classesdominantes desunidas e descentralizadas” (idem, p. 21).

Essas tendências opostas no processo histórico de desenvolvimento econômico, político e cultural docapitalismo, foram apresentadas por Trotsky como uma totalidade na qual se encerrava a própriacontradição. amálgama de tendências contrapostas. A lei do desenvolvimento combinado não estavaformulada de modo explícito nesses textos e o desenvolvimento teórico dado à questão encontrava-se ainda incompleto e mesmo aporético. Mas a exposição levada a cabo traz um elemento que éimportante destacar: a lei do desenvolvimento desigual era apresentada por Trotsky como uma leitendencial, ou seja, ela expressava a tendência existente no capitalismo às disparidades econômicas,

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políticas e culturais entre os diferentes países, setores da economia e ramos da produção. Taisdisparidades eram concebidas como decorrentes das diversas trajetórias nacionais, por um lado, e,por outro, das assimetrias próprias do processo de acumulação capitalista. Se o desenvolvimentodesigual se expressava como uma lei tendencial, então o desenvolvimento combinado que se erguiasobre ele também deveria assumir esse caráter.

Há ainda outro aspecto que merece destaque nesse momento da formulação. Lenin, que ressaltava ocaráter desigual do desenvolvimento da economia e da política, e Trotsky, que colocava ênfase naequalização dos níveis econômicos e culturais, partilhavam uma versão do marxismo que se afastavade modo decidido do economicismo. As transformações políticas e a culturais não são para ambossecundárias. Elas são relevantes para a própria dinâmica do capitalismo. Desse modo, essastransformações não são decorrência imediata ou meros efeitos dos fenômenos econômicos, como,por exemplo, na vulgar definição staliniana do desenvolvimento desigual.

Já foi visto que em Balanço e perspectivas, Trotsky evitou as armadilhas do economicismo definindoa lentidão do desenvolvimento como o “o traço essencial e mais constante da História da Rússia” edestacando o papel desempenhado pelo Estado na constituição do capitalismo nesse país. Essaapresentação da formação do capitalismo na Rússia foi retomada em sua História da revolução russasob uma fórmula mais generalizante baseada na teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Aênfase na particularidade do desenvolvimento russo aproximava Trotsky dos populistas, como vistoacima, e o afastava de muitos dos historiadores marxistas da época.

A particularidade do desenvolvimento russo revelava o caráter desigual de sua formação social. Mas,essa desigualdade não era um mero atraso cronológico que poderia ser superado com o passar dotempo. Os esquemas evolucionistas e eurocêntricos e a ideologia do progresso linear que afirmavama sucessão lógica dos modos de produção (feudalismo, capitalismo, socialismo) e das formas dapolítica (autocracia, república burguesa, ditadura do proletariado) eram rejeitados por Trotsky (cf.1950, t. I, p. 420).

A originalidade do desenvolvimento russo residia em que a via clássica de transição ao capitalismose encontrava bloqueada. Era o caráter combinado desse desenvolvimento, ou seja, sua conexão como capitalismo da Europa ocidental, o que lhe permitia aproximar-se deste por uma via alternativa. Odestino desse novo caminho não era, entretanto, a superação da desigualdade e a assimilação plenada Rússia ao capitalismo ocidental. A formação social russa amalgamava traços desse capitalismoultramoderno em relações sociais e formas políticas pré-capitalistas. O socialismo colocava-se naRússia como uma possibilidade histórica antes mesmo da realização plena do próprio capitalismo.

Para explicar esse processo, Trotsky formulou de modo explícito e coerente uma teoria dodesenvolvimento dos países periféricos, atrasados na linguagem da época. Para tal articulou a lei dodesenvolvimento desigual com uma lei do desenvolvimento combinado, que lhe permitia formular ahipótese de um país periférico “saltando” por cima de etapas históricas:

“As leis racionais da história não tem nada em comum com os esquemas pedantes. Adesigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processo histórico, se manifesta com o máximovigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o látego das necessidades externasa vida retardatária é constrangida a avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dosritmos decorre outra lei que, na ausência de uma denominação mais apropriada, chamaremos

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de lei do desenvolvimento combinado, expressando a aproximação das diferentes etapas, dacombinação das fases distintas, do amálgama das formas arcaicas com as mais modernas.”(Idem, t. I, p. 17.)

Essa foi a primeira formulação explícita da lei do desenvolvimento combinado feita por Trotsky.Poucas vezes ele voltou a enunciar a lei, mas sempre que o fez foi em ocasiões importantes, como,por exemplo, na conferência de 1932 sobre a Revolução Russa em Copenhague na qual falou de um“tipo combinado de desenvolvimento” (TROTSKY, 1989, p. 12). Também no livro A revolução traída,escrito em 1937 fez referência à lei no primeiro capítulo, no qual afirma que a “socialização dosmeios de produção tornou-se a condição necessária prévia para retirar o país da barbárie”, sendoessa a “lei do desenvolvimento combinado dos países atrasados” (TROTSKY, 1991, p. 5). O tema foiretomado em um apêndice a esse livro no qual seu autor escreveu:

“A lei do desenvolvimento desigual fez com que a contradição entre a técnica e as relações depropriedade do capitalismo arrebentasse o elo mais débil da cadeia imperialista. O capitalismorusso atrasado foi o primeiro a pagar pela bancarrota do capitalismo mundial A lei dodesenvolvimento desigual é suplementada em todo o curso da história pela lei dodesenvolvimento combinado. O colapso da burguesia na Rússia levou conduziu à ditadura doproletariado – isto é a um país atrasado a adiantar-se aos países avançados. Entretanto, oestabelecimento de formas socialistas de propriedade no país atrasado enfrentou o nívelinadequado da técnica e da cultura. Nascida da contradição entre as elevadas forças produtivasmundiais e as formas capitalistas de propriedade, a Revolução de Outubro produziu por sua veza contradição entre as reduzidas forças produtivas nacionais e as formas socialistas depropriedade.” (TROTSKY, 1991, p. 256.)

O desenvolvimento desigual dos países atrasados foi também discutido por Trotsky (1983a) noprefácio que escreveu ao livro de H. R. Isaacs, The tragedy of Chinese revolution. Trata-se de umtexto extremamente interessante no qual questões chaves para a revolução chinesa eramapresentadas. Mas particularmente importantes para a discussão que tem aqui seu lugar é otratamento dado à análise da sociedade chinesa. Em tal análise a analogia história era uma“armadilha para o espírito” para evitar essa armadilha era necessária uma “análise sociológicaconcreta” que investigasse as relações sociais e de forças entre as classes sociais (TROTSKY, 1983,150). Tal análise revelaria que a trajetória histórica da China diferia em muito de outros paísescoloniais.

Na verdade não era apenas a China que tinha um desenvolvimento particular, os “países coloniais esemicoloniais – e, portanto, atrasados – que englobam a grande parte da humanidade diferemenormemente uns dos outros nos graus de seu atraso, representando toda uma escala histórica”(idem). O desenvolvimento desses países era, entretanto, caracterizado pela “combinação dosextremos em um sentido ou outro”. Essa combinação, contudo, não apagava as particularidades decada país nem reduzia sua história a uma reprodução com atraso da história da Inglaterra ou daFrança. O desenvolvimento combinado tornava alguns traços comuns aos países atrasados, como adependência econômica ou as relações agrárias caracterizadas por formas pré-capitalistas.

Mas a existência de uma independência política, o grau de desenvolvimento econômico e político dasclasses dominantes locais, e a realização de alguma forma revolução democrática, poderiamimprimir importantes traços distintivos entre os diferentes países que partilhassem uma situação de

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dominação semelhante (idem, p. 150-151). A análise dessas particularidades se fazia ainda maisimportante para o caso da China. Suas semelhanças com o império tzarista permitiram que aexperiência da revolução russa, “sob sua forma reacionária, deformada, se tornasse um dosprincipais obstáculos” à revolução chinesa (idem, p. 156). A afirmação de um desenvolvimentocombinado não eliminava, portanto, a necessidade da análise das particularidades nacionais nemresolvia todos os problemas referentes ao caráter da revolução com a fórmula às vezessimplificadora da “revolução socialista”.

Por último, Trotsky voltou à questão, em termos muito parecidos em um importante artigo redigidoem agosto de 1939, “Três concepções da Revolução Russa” republicado, geralmente, como parte desua biografia sobre Stalin. Nesse texto, entretanto, seu autor não faz referência a uma lei, limitando-se a descrever a forma que o desenvolvimento combinado assumiu e seus efeitos sobre a sociedaderussa:

“A evolução histórica da Rússia se caracteriza acima de tudo pelo seu atraso. Um atrasohistórico não implica, entretanto, uma simples repetição da evolução dos países avançados cemou duzentos anos depois, mas engendra uma formação social completamente nova, ‘combinada’,na qual as últimas realizações da técnica e da estrutura capitalista se implantam nas relaçõessociais da barbárie feudal e pré-feudal, transforma-as e subordina-as criando assim uma relaçãooriginal. O mesmo vale para as ideias. Precisamente por causa de seu atraso histórico, a Rússiase tornou o único país europeu no qual o marxismo, como doutrina, e a social democracia, comopartido, tiveram um grande desenvolvimento antes mesmo da revolução burguesa.” (1986, p.343.)

Essa foi a última vez na qual Trotsky fez referência ao desenvolvimento desigual. Um ano depoisseria assassinado por um agente de Stalin. Entre seus papéis deixou o texto acima, publicado apenasem 1942 pela revista Fourth International.

Referências bibliográficas

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Notas:

[1] Esse tratamento comum aos processos naturais e sociais é criticável e pode levar a umanaturalização da lei. Como será visto adiante não era essa a intenção de Trotsky.

[2] O próprio Stalin chegou a levantar dúvidas sobre a possibilidade do socialismo em um só país,quando a memória de Lenin ainda estava viva e afirmar o contrário poderia ser considerado umabsurdo. Ver, por exemplo, o que escreveu em Fundamentos do leninismo, um texto de 1924: “Mas aderrocada do poder da burguesia e o estabelecimento de um poder do proletariado em um país nãosignifica ainda que a vitória completa do socialismo tenha sido atingida. Depois de consolidar seupoder e atrair os camponeses para seu caminho o proletariado do vitorioso país pode e deveconstruir uma sociedade socialista. Mas isso significa que ele possa atingir a vitória final e completado socialismo, isto é, que possa com as forças de apenas um único país finalmente consolidar osocialismo e proteger completamente o país contra intervenções e, conseqüentemente tambémcontra a restauração? Não, isso não. Para tal é necessária a vitória da revolução ao menos em váriospaíses.” (STALIN, 1954, v. 6, p. 111.)