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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA BIANCA AIRES IMBIRIBA DI MAIO BONENTE DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR UMA CRÍTICA NEGATIVA DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA Niterói (RJ) 2011

DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

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Page 1: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA

BIANCA AIRES IMBIRIBA DI MAIO BONENTE

DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA

ECONÔMICA: POR UMA CRÍTICA NEGATIVA DO

DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA

Niterói (RJ)

2011

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ii

BIANCA AIRES IMBIRIBA DI MAIO BONENTE

DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA

ECONÔMICA: POR UMA CRÍTICA NEGATIVA DO

DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Econômicas da

Universidade Federal Fluminense como parte

dos requisitos para obtenção do Grau de

Doutor em Economia.

Orientador: Prof. Dr. João Leonardo Medeiros

Niterói (RJ)

2011

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iii

BIANCA AIRES IMBIRIBA DI MAIO BONENTE

DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA

ECONÔMICA: POR UMA CRÍTICA NEGATIVA DO

DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Econômicas da

Universidade Federal Fluminense como parte

dos requisitos para obtenção do Grau de

Doutor em Economia.

Banca examinadora:

________________________________________________________

Prof. Dr. João Leonardo Medeiros (Orientador)

Faculdade de Economia - UFF

________________________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Dias Carcanholo

Faculdade de Economia - UFF

________________________________________________________

Prof. Dr. Mario Duayer

Faculdade de Economia - UFF

________________________________________________________

Prof. Dr. Niemeyer Almeida Filho

Instituto de Economia – UFU

________________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Nakatani

Departamento de Economia – UFES

Niterói (RJ)

03 de Agosto de 2011

Page 4: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

iv

B712

Bonente, Bianca Aires Imbiriba Di Maio Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista / Bianca Aires Imbiriba Di Maio Bonente ; orientador João Leonardo Medeiros. Niterói, 2011.

142 f. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade Federal

Fluminense, 2011.

1. Teoria do desenvolvimento. 2. Desenvolvimento sócio-econômico. 3. Crítica da economia. 4. Teoria marxista. I. Medeiros, João Leonardo Gomes, orientador. CDD 338.9

Page 5: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

v

Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias

perguntas, como quartos fechados e como livros

escritos em uma língua estrangeira. Não

investigue agora as respostas que não lhe podem

ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto

que se trata, de viver tudo. Viva agora as

perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um

belo dia, sem perceber, a viver as respostas.

(Rainer Maria Rilke – Cartas a um jovem poeta)

Page 6: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

vi

À Alice Helga Werner, em memória.

Page 7: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

vii

Agradecimentos

Gostaria de começar essa seção de agradecimentos com uma espécie de

autocrítica e balanço da trajetória acadêmica ao longo da qual venho perseguindo um

entendimento mais amplo da temática discutida no presente trabalho. Para aqueles que

transitam no meio acadêmico, não contarei qualquer novidade ao lembrar como minha

pesquisa foi, não raras vezes, atropelada pela necessidade de cumprir prazos (cada vez

mais estreitos) e seguir adiante na formação strictu sensu. A todos, devo ainda confessar

que dessa vez as coisas não foram tão diferentes assim, aliando-se aos prazos estreitos, a

necessidade de dar início às atividades como docente (atravessadas por aulas, reuniões,

concursos e mudanças de cidade). No entanto, diria ainda que, apesar dos contratempos

e das questões deixadas em aberto (que fazem com que compartilhe o sentimento do

jovem poeta a quem Rilke dirige suas cartas), creio finalmente ter conseguido chegar à

forma mais aproximada daquela que idealizei. A todos aqueles que contribuíram, direta

ou indiretamente, para que isso fosse possível, deixo aqui registrados os meus sinceros

agradecimentos.

Em especial, agradeço ao orientador e amigo João Leonardo, que abraçou esse

projeto com empenho e dedicação admiráveis, que esteve sempre disponível e presente

(apesar das distâncias que separam Niterói de Uberlândia, Campos e/ou Vitória),

sabendo ser duro e afável nos momentos certos. Do tempo em que trabalhamos juntos

levarei comigo muitas lições, as melhores recordações e a esperança de poder seguir

adiante na parceria.

Ao professor Marcelo Carcanholo, que carregou durante muito tempo parte da

responsabilidade por esse trabalho, respondendo formalmente como meu orientador,

sempre disposto a dialogar sobre o tema e dar valiosas críticas e sugestões. Agradeço

também ao professor Niemeyer Almeida Filho, que colaborou com esse projeto durante

todo o período do mestrado, mas especialmente como orientador da minha dissertação.

Ao professor André Guimarães, o primeiro a ter coragem de me acompanhar nessa

empreitada, ainda no período da graduação, e peça fundamental no meu retorno à

Niterói para o início do doutorado.

Apesar da impossibilidade de mencionar e prestar os devidos agradecimentos

aos demais professores que contribuíram com minha formação, gostaria de agradecer

ainda a duas pessoas muito especiais, sem as quais nada disso teria sido possível. Em

primeiro lugar, ao professor Mario Duayer, por ter iluminado meus caminhos e me

apresentado às discussões no campo da filosofia da ciência, que serviram como

fundamento para a realização desse trabalho. Finalmente, gostaria de deixar registrados

meus agradecimentos póstumos à professora Alice Werner a quem dedico este trabalho

e com quem tive a primeira oportunidade de conhecer a obra de Marx.

A todos os colegas e amigos do departamento de Economia da UFF/Campos

(sempre generosos e extremamente compreensivos diante da minha necessidade de

dedicar muito das 40 horas semanais à redação desse trabalho), do Instituto de

Economia da UFU (onde fiquei por um período breve, mas muito feliz), do Grupo de

Pesquisa Teoria Social e Crítica Ontológica e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e

Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (espaços de diálogo e aprendizado constantes).

Mais uma vez, apesar da impossibilidade de mencionar os nomes de todos aqueles que

estiveram ao meu lado e contribuíram com a realização desse projeto, gostaria de prestar

ainda meus agradecimentos especiais às amigas Lérida Povoléri e Paula Nabuco,

sempre muito presentes e fiéis.

Page 8: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

viii

Por fim, agradeço a toda a minha família (avô, avós, tios, tias, primos e primas),

em especial ao meu pai Humberto (apoio e presença constantes), à minha mãe Thereza

(exemplo de mãe, mulher e profissional, que ainda encarou nos momentos finais a árdua

tarefa de revisar todo o trabalho), à minha irmã Luciana (minha luz) e ao meu sobrinho

Theo (criança adorável). À família que adotei nos últimos anos (Eduardo, Madelaine,

Creuza, Elisa e demais membros da família Figueira), especialmente ao meu

companheiro Hugo, que esteve ao meu lado durante os últimos oito anos, me apoiando

nos momentos mais difíceis, abrindo mão das suas próprias questões para me auxiliar

com os minhas, algo que só uma pessoa com coração tão grande e generoso é capaz de

fazer. Muito obrigada!

Page 9: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

ix

Resumo

O objetivo deste trabalho é testar a hipótese de que as teorias do

desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista,

tanto no sentido de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e

apenas o capitalismo), quanto no sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma

imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Para,

primeiro, atestar e, depois, defender o nexo entre as teorias econômicas do

desenvolvimento e a reprodução da sociedade capitalista, foi empreendido um contraste

entre os termos comuns dessas teorias e os elementos que caracterizam a análise do

desenvolvimento em-si da sociedade capitalista encontrada na obra de Marx (seguindo,

é claro, a interpretação aqui defendida). O contraste evidenciou não apenas ser possível

conceber o desenvolvimento da sociedade na sua atual configuração como uma fase

historicamente contingente do desenvolvimento social em geral, mas também confirmar

a hipótese de que as teorias econômicas do desenvolvimento são manifestações teóricas

do próprio desenvolvimento social na sua atual forma.

Abstract

This work consists of an attempt to test the following hypothesis: that theories of

development are nothing but theories of capitalist development, either in the sense that

the theoretical and practical limits of their intervention is capitalism (and nothing

beyond it) and in the sense that, in doing so, they project capitalism (at least an image of

it) as a inexorable picture of the future of humanity. In order to, firstly, attest and,

secondly, maintain the connection between economic theories of development and the

reproduction of capitalist society, a contrast between the common traits of these theories

and the elements that characterize the Marxian analysis of development in itself was

undertaken. This contrast revealed that it was possible to conceive the development of

society in its current configuration as a historically contingent phase of the general

development of society. It also confirmed the hypothesis that economic theories of

development are theoretical manifestations of social development in its current form.

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x

Índice

Introdução................................................................................................................. 1

Parte I. Por uma teoria ontológica do desenvolvimento....................................... 8

Capítulo 1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade: historicidade e

desigualdade do desenvolvimento....................................................................

10

Seção 1.1. As leis gerais de desenvolvimento da sociedade........................ 10

Seção 1.2. Historicidade e desigualdade do desenvolvimento.................... 13

Seção 1.3. Linhas gerais de desenvolvimento do ser social: considerações

finais.............................................................................................................

16

Apêndice I. Esclarecimentos sobre a categoria Desenvolvimento

Desigual.......................................................................................................

21

Capítulo 2. Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica autoexpansiva,

desenvolvimento e estranhamento...................................................................

24

Seção 2.1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista......... 25

Seção 2.2. Considerações sobre o desenvolvimento capitalista e suas

contradições.................................................................................................

29

Apêndice II. Desenvolvimento capitalista e mercado mundial.............. 35

Capítulo 3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades............. 39

Seção 3.1. A assim chamada “Era de Ouro do capitalismo”....................... 40

Seção 3.2. A crise dos anos 1970 e a contra-revolução conservadora......... 48

Seção 3.3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades:

considerações finais.....................................................................................

60

Apêndice III. Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista...... 63

Parte II. Teorias do desenvolvimento: por uma crítica ontológica..................... 67

Capítulo 4. Os modelos “prototípicos” de crescimento econômico:

Harrod, Domar e Solow....................................................................................

70

Seção 4.1. Crescimento equilibrado e instabilidade nos modelos de

Harrod e Domar...........................................................................................

71

Seção 4.2. A estabilidade do crescimento no modelo de Solow................. 77

Seção 4.3. Considerações finais................................................................... 80

Capítulo 5. Teorias clássicas do desenvolvimento (i): estratégias de

industrialização para as regiões subdesenvolvidas, em geral.......................

83

Seção 5.1. Círculo vicioso da pobreza e estratégia de crescimento

equilibrado...................................................................................................

84

Seção 5.2. Causação circular acumulativa e estratégia de crescimento

desequilibrado..............................................................................................

90

Seção 5.3. Rostow e o manifesto não-comunista: uma síntese do debate?. 94

Seção 5.4. Considerações finais................................................................... 99

Page 11: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

xi

Capítulo 6. Teorias clássicas do desenvolvimento (ii): em defesa da

industrialização na América Latina................................................................

102

Seção 6.1. O “sistema centro-periferia” e a deterioração dos termos de

troca.............................................................................................................

103

Seção 6.2. Em defesa da industrialização na América Latina..................... 107

Seção 6.3. Considerações finais................................................................... 111

Capítulo 7. As tendências do debate sobre desenvolvimento no pós-1970... 114

Seção 7.1. A requalificação do debate sobre desenvolvimento................... 117

Seção 7.2. O dilema “Estado x Mercado”................................................... 123

Seção 7.3. Considerações finais................................................................... 128

Conclusão.................................................................................................................. 130

Referências................................................................................................................ 137

Page 12: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

1

Introdução

Não é de se estranhar que um autor polêmico como Marx suscite ainda hoje

tantas releituras e interpretações, dos mais variados tipos e nas mais diversas áreas,

desde aquelas decididas a apontar inconsistências e incorreções teóricas, até as que

buscam, a partir de um resgate, avançar em pontos pouco explorados pelo autor,

passando ainda pelas tentativas de sistematização (pretensamente isentas) geralmente

encontradas em manuais e/ou livros-texto. Em uma inspeção rápida desse material,

podem ser encontradas algumas leituras pertinentes (embora nem sempre corretas) e

outras insustentáveis diante de um exame cuidadoso da obra do autor. Particularmente

no que diz respeito à temática do desenvolvimento, uma leitura bastante difundida é

aquela que atribui ao autor uma noção de desenvolvimento associada ao trânsito

inexorável por etapas históricas bem definidas. De acordo com essa concepção,

portanto, Marx estaria apresentando a história humana como uma sucessão de modos de

produção (movida pelas contradições que se estabelecem entre forças produtivas e

relações de produção, ou entre base econômica e superestrutura), cujo fim, ou estágio

último, seria o comunismo (independentemente da forma como este é concebido).1

Perspectivas desse tipo buscam amparo, por exemplo, em trechos do prefácio ao

Para a Crítica da Economia Política, onde Marx (1982: 26) fala de “relações de

produção [...] que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das [...]

forças produtivas materiais”, ou ainda em trechos do conhecido prefácio à primeira

edição de O Capital, onde Marx utiliza por diversas vezes o termo desenvolvimento,

geralmente em referência aos casos Inglês e Alemão (tomados ambos, especialmente o

primeiro, como “laboratórios de investigação”). Nesse particular, Marx (2002: 16) faz

afirmações como “o país desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura

do menos desenvolvido”, ou mesmo, “uma nação deve e pode aprender de outra. [...]

não pode ela suprimir, por saltos ou por decreto, as fases naturais de seu

desenvolvimento”. (Ibid: 17-18) Nas passagens mencionadas, portanto, Marx estaria

comunicando aos conterrâneos alemães que o futuro de seu país poderia ser conhecido

diretamente pelo exame do passado de um país mais desenvolvido: a Inglaterra. Como

1 Uma síntese desta leitura, e das principais controvérsias por ela suscitada, pode ser vista em Harris

(1983).

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2

sintetizado na expressão tomada de empréstimo pelo autor das Sátiras de Horácio:

“Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur”.2

Ainda que o emprego da palavra desenvolvimento nas passagens supracitadas

tenha alimentado polêmicas, é possível encontrar inteligibilidades bastante diversas da

questão dentro do mesmo ambiente teórico. Uma interpretação particularmente

instigante encontra-se no trabalho póstumo do filósofo marxista G. Lukács (1979).

Considerando o conjunto da obra e o sentido geral da teoria social marxiana, Lukács

propõe que, com a palavra desenvolvimento, Marx tem por referência o aumento

objetivo da complexidade como elemento regulador da dinâmica de funcionamento de

objetos estruturados ao longo do tempo. (Ibid: 54) Ou seja, “uma dada estrutura

(totalidade) é objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da

mesma espécie caso seja constituída por um maior número de componentes específicos,

ou pelo mesmo número de componentes mais complexos”. (Medeiros, 2007: 45)

No caso da sociedade (abstratamente considerada), esse aumento no grau de

complexidade poderia ser traduzido no crescimento da sociabilidade em sentido

extensivo (aumento da quantidade de componentes predominantemente sociais como

elementos mediadores da vida em sociedade) e/ou intensivo (crescente complexidade

dos componentes já existentes), tendência essa que Marx costumava caracterizar como

recuo das barreiras naturais. Sobre as tendências que regulam a dinâmica de

funcionamento da sociedade, Lukács (2007: 237-238) menciona ainda o aumento das

forças produtivas do trabalho (ou seja, a diminuição do tempo de trabalho necessário à

produção e reprodução das condições de vida humana) e a formação do gênero humano,

resultado das “ligações quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as

sociedades singulares originalmente pequenas e autônomas”. (Ibid)

No caso da sociedade em forma especificamente capitalista, desenvolvimento

significa, seguindo a mesma lógica, a operação das leis que emanam da organização

própria da economia regida pelo capital em sentido extensivo (i.e., para uma porção

mais ampla do globo, submetendo uma quantidade maior de formações sociais e seres

humanos) e/ou intensivo (comandando momentos mais amplos da convivência social,

como a atividade artística, esportiva, relações afetivas etc.). O trânsito desde um estágio

mais baixo de desenvolvimento para um estágio mais alto significa, portanto, a

2 “Está rindo do quê? Em outras palavras, a fábula fala de ti”.

Page 14: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

3

predominância mais ampla da lógica capitalista na existência social (e não a passagem

do pior ao melhor, como quer que esses estados sejam definidos).

Se essa é, de fato, a maneira como Marx concebeu o desenvolvimento, então o

desenvolvimento de que fala em O Capital é o desenvolvimento do seu objeto de

análise (a sociedade capitalista, cuja dinâmica é dominada por sua economia, como

procura demonstrar a obra). Ademais, o fato de que Marx tenha procurado capturar a

essência desse desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência revela, por

um lado, que o autor tem plena consciência de que o processo de desenvolvimento

comporta histórias (i.e., trajetórias concretas, efetivas) bastante diferenciadas. Isso

porque leis de tendências não são afirmações sobre sequências regulares de eventos,

mas sim proposições sobre a capacidade causal de um determinado objeto do mundo,

que pode ser exercida sem que os fenômenos causados se manifestem (em virtude da

operação de tendências contra-restantes). Naturalmente, isso confere à análise de Marx

um caráter post festum, não preditivo. Por outro lado, a caracterização do processo de

desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência nitidamente revela o

reconhecimento do caráter não-teleológico da história em seu conjunto. Ainda que Marx

destaque a teleologia como o aspecto distintivo da práxis humana, ele simultaneamente

caracteriza a dinâmica da sociedade como o resultado da articulação espontânea, não-

teleológica, dessas práticas.3

Com essas considerações, torna-se possível retomar as passagens de Marx

citadas no início dessa introdução, especialmente aquelas que tratam da relação entre

Inglaterra e Alemanha. À luz da interpretação aqui defendida, pode-se sugerir que Marx

considerava a Alemanha um país capitalista, mas com um grau de penetração do capital

na vida social como um todo relativamente limitado em comparação com a Inglaterra.

Por esse motivo afirma que “além dos males modernos, oprime a nós alemães uma série

de males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu

séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos

atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos. Le mort saisit le vif. [O morto tolhe

o vivo]” (Marx, 2002: 16-17)

3 Em O Capital, essa diferença entre o caráter teleológico das práticas individuais e o caráter não-

teleológico do processo social em seu conjunto é salientada por diversas vezes. Um bom exemplo é a

análise da prática dos capitalistas em processo de concorrência, realizada no Capítulo X do Livro I.

Embora os capitalistas movam sua prática no sentido da extração de mais-valia extraordinária, do ponto

de vista do processo em seu conjunto o resultado de tais práticas é a redução do valor da força de

trabalho. (Marx, 2002: 368-370)

Page 15: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

4

Um indício claro desse raciocínio também pode ser encontrado na afirmação de

que a Alemanha é menos desenvolvida que a Inglaterra por não contar com uma

regulação jurídica das relações entre capital e trabalho, isto é, com uma estrutura

jurídica compatível com a produção capitalista (ou ainda, com “relações de produção”

correspondentes à “etapa determinada de desenvolvimento das [...] forças produtivas

materiais”). Mais do que isso, ao afirmar que a Alemanha se desenvolveria como a

Inglaterra, Marx não estava falando de eventos e fenômenos históricos concretos, mas

sim do surgimento, naquele país, de um terreno favorável à operação das leis

(econômicas) que caracterizam e governam a sociedade capitalista.

Na tentativa de esclarecer o motivo pelo qual julgamos necessário demonstrar

que essa é efetivamente a noção de desenvolvimento carregada por Marx, é

indispensável ainda contrastá-la com a noção de desenvolvimento convencionalmente

aceita no campo da ciência econômica. Nesse caso, observamos que o desenvolvimento

é entendido, em geral, como trânsito do “pior ao melhor”, o que envolve um juízo sobre

condições pretéritas, presentes ou futuras, realizado com base em determinados critérios

pré-estabelecidos. Ao lado dessa posição geral, está a noção de desenvolvimento como

mero desdobramento de possibilidades postas pelo presente ordenamento social,

colapsando o desenvolvimento da sociedade enquanto tal e o desenvolvimento

capitalista (o que não chega a surpreender, pois, como se sabe, para a Economia a

sociedade capitalista é o limite último de todas as teorias e práticas).

Os exemplos mais claros de conjugação das duas características acima

apresentadas são, sem sombra de dúvidas, oferecidos pelas teorias econômicas do

desenvolvimento, tomadas como objeto da presente tese. O surgimento desse conjunto

de teorias é normalmente datado do período posterior à Segunda Guerra Mundial e

marcado pelo fato de compartilharem uma mesma preocupação: explicar por que os

diferentes países sustentam trajetórias históricas de crescimento distintas e propor saídas

para os “menos favorecidos” – geralmente tratados como subdesenvolvidos.4 Como

esperamos demonstrar ao longo do trabalho, essas teorias possuem diferenças e

particularidades, tanto nos diagnósticos, quanto nas prescrições, que não podem ser

ignoradas. Ainda assim, o desenvolvimento é tratado, em geral, como a passagem de um

4 Vale notar que há uma variedade de termos e eufemismos utilizados para tratar desse grupo de países:

desde o próprio “subdesenvolvidos” até “deprimidos”, “periféricos”, “terceiro mundo” etc. Para facilitar a

exposição, adotaremos prioritariamente o termo subdesenvolvimento, a não ser quando estivermos

empregando a linguagem de um autor específico na exposição de suas ideias.

Page 16: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

5

estágio de privação material para um estado de pletora material, qualquer que seja o

critério para avaliar essa transição (pelo produto per capita, expectativa de vida, nível de

escolaridade etc.). Além disso, a formação social capitalista é tomada como um

pressuposto tanto na definição dos fins (objetivos primordiais do desenvolvimento),

quanto na definição dos meios (i.e., das estratégias e requisitos necessários a essa

passagem). Trata-se, portanto, como dito, de encarar o desenvolvimento como o eterno

desdobrar do presente e, simultaneamente, de ajuizar esse processo, explícita ou

implicitamente, como positivo.

Por que deveríamos recusar a noção de desenvolvimento veiculada pela ciência

econômica, uma noção que conduz à identificação imediata de desenvolvimento com

desenvolvimento capitalista? Pensemos por um minuto que Marx tenha razão.

Admitamos que ele esteja correto quando procura demonstrar que o capitalismo não

pode subsistir sem o exército industrial de reserva, que o capitalismo não pode

prescindir da separação dos seres humanos em classes sociais (ou seja, da

desigualdade), que nós não temos como controlar, mesmo pela ação do Estado, a

dinâmica capitalista (isto é, que estamos subordinados à possibilidade de crises e de um

uso destrutivo da natureza). Se esse argumento faz sentido, e nós estamos presos ao

desenvolvimento capitalista, então nossa única alternativa seria desenvolver uma teoria

da conformação universal, e, naturalmente, da administração da calamidade. Por outro

lado, se percebemos o desenvolvimento capitalista como momento específico de um

desenvolvimento mais amplo, então podemos ao menos nos questionar se devemos

contribuir para a explicitação das leis que respondem pelo desenvolvimento capitalista

ou se devemos, no sentido contrário, esforçar-nos por transitar para outro modo de

desenvolvimento.

Em segundo lugar, ainda partindo da premissa de que Marx tinha razão, se o

desenvolvimento capitalista envolve por necessidade mazelas sociais e ecológicas, seria

impossível que, junto às mazelas, não emergissem formas de consciência em diversos

níveis (cotidiano, filosófico, científico etc.) que se ocupam dessas mazelas, tanto no

sentido de compreender suas causas, como no sentido de tratá-las com práticas. Se as

mazelas são mazelas em algum sentido, elas reclamam remédio e as teorias que

confundem desenvolvimento capitalista e desenvolvimento enquanto tal tratam de

oferecê-los. Então, no fundo, essas teorias não são apenas teorias, são ideias necessárias

de um mundo que produz mazelas.

Page 17: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

6

Diante desse panorama geral, podemos finalmente afirmar que o objetivo deste

trabalho é testar a hipótese de que as teorias do desenvolvimento são única e

exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido de que o limite

teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e apenas o capitalismo), quanto no

sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao menos) como

figura inexorável do futuro da humanidade. Para, primeiro, atestar e, depois, defender o

nexo entre as teorias econômicas do desenvolvimento e a reprodução da sociedade

capitalista, foi empreendido um contraste entre os termos comuns dessas teorias e os

elementos que caracterizam a análise do desenvolvimento em-si da sociedade capitalista

encontrada na obra de Marx (seguindo, é claro, a interpretação aqui defendida). O

contraste evidenciou não apenas ser possível conceber o desenvolvimento da sociedade

na sua atual configuração como uma fase historicamente contingente do

desenvolvimento social em geral, mas também confirmar a hipótese de que as teorias

econômicas do desenvolvimento são manifestações teóricas do próprio

desenvolvimento social na sua atual forma.

As páginas que se seguem apresentam, em duas grandes partes, os resultados do

estudo. Na Parte I, buscamos defender a possibilidade de formulação de uma teoria do

desenvolvimento autenticamente ontológica e definir de modo mais preciso o sentido

do termo desenvolvimento dentro dessa perspectiva.5 Para tanto, essa parte encontra-se

dividida em três capítulos, nos quais buscamos progressivamente diminuir o nível de

abstração da análise: no primeiro, tratando das principais linhas de desenvolvimento da

sociedade, abstratamente considerada; no segundo, buscando a apreensão das linhas

gerais de desenvolvimento da sociedade em forma especificamente capitalista, com

especial atenção para aquelas tendências que determinam o caráter autoexpansivo dessa

formação social; no terceiro, por fim, examinando a manifestação das leis anteriormente

apresentadas em dois contextos históricos específicos (o período conhecido como “Era

de Ouro do capitalismo” e aquele posterior à crise dos anos 1970), buscando, com isso,

mostrar como a análise do desenvolvimento em-si deve envolver o reconhecimento de

que as tendências gerais são atravessadas por particularidades. A Parte I conta ainda

5 O termo ontologia, empregado por diversas vezes ao longo deste trabalho, refere-se ao conjunto de

considerações gerais sobre a realidade, sobre o ser, sobre o que existe em si, uma visão geral de mundo

enfim, que constitui o pano de fundo para a interpretação dos diferentes momentos da existência natural

e/ou social. O termo ontologia é dotado de uma “duplicidade semântica”, podendo referir-se tanto à

realidade em si mesma, quanto às considerações sobre a realidade, duplicidade que também afeta as

palavras “economia” e “história”, por exemplo.

Page 18: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

7

com três apêndices, onde buscamos explorar algumas temáticas específicas, que, ao

longo da pesquisa, apresentaram-se como complementos importantes à linha central de

argumentação, cujo eixo encontra-se presente nos capítulos.

Cumprida esta etapa, a Parte II foi dedicada à inspeção crítica das teorias

econômicas do desenvolvimento, que expressam de maneira mais clara a forma como o

desenvolvimento é geralmente abordado no âmbito da ciência econômica.

Considerando, no entanto, a proximidade inicial entre as temáticas do desenvolvimento

e do crescimento econômico (por vezes tomados como sinônimos), julgou-se prudente

iniciar a Parte II oferecendo, no quarto capítulo, um panorama geral dos modelos de

crescimento econômico no período pré-1970. Para tratar das teorias do desenvolvimento

produzidas no mesmo período (que, em virtude do “pioneirismo”, foram por nós

intituladas teorias “clássicas” do desenvolvimento), foi necessário dividi-las em dois

grandes grupos: aquelas que falam sobre as regiões subdesenvolvidas, em geral

(apresentadas no quinto capítulo) e aquelas que tratam especificamente do caso latino-

americano (apresentadas no sexto capítulo). O sétimo capítulo, por fim, busca

apresentar as principais reorientações observadas no debate sobre desenvolvimento no

período posterior à década de 1970.

Apenas para enfatizar, a inspeção crítica realizada ao longo da Parte II não tem

como objetivo avaliar se as teorias do desenvolvimento, ao interpretarem os problemas

dos países subdesenvolvidos, produzem ideias melhores ou piores, quando comparadas

umas contra as outras. Ao contrário, espera-se demonstrar, através da identificação de

elementos teóricos comuns, que as teorias sob análise encontram-se no interior do

amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir uma crítica conjunta,

fundamentada no arcabouço teórico da Parte I e apresentada na conclusão geral do

trabalho.

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Parte I. Por uma teoria ontológica do desenvolvimento

Para realizar a inspeção crítica das teorias do desenvolvimento veiculadas pela

ciência econômica, faz-se necessário, antes de tudo, esclarecer os princípios gerais que

irão nortear o presente trabalho e delimitar com precisão o sentido aqui atribuído ao

termo desenvolvimento. Organizada em três capítulos e três apêndices (nos quais são

destacados pontos específicos do argumento), a Parte I tem fundamentalmente esse

intuito. Ao longo das páginas que a compõem, pretendemos defender, em linhas gerais,

uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo

plenamente objetivo: isto é, utilizado exclusivamente para se referir às propriedades

objetivas de funcionamento do objeto examinado (independentemente da forma como se

julguem essas propriedades).

Se o objeto em questão for a sociedade (em geral e em sua forma

especificamente capitalista), é preciso, em primeiro lugar, demonstrar a historicidade e a

processualidade que caracterizam essa forma de ser. Em segundo lugar, é necessário

apreender as leis gerais de movimento da sociedade e as leis que regem o

funcionamento do modo de produção especificamente capitalista. Por fim, devem-se

conhecer as condições concretas de manifestação dessas leis, em condições históricas

específicas, e perceber como, apesar das particularidades, as determinações mais gerais

são mantidas. Nesse último caso, podemos ainda observar em que medida as mudanças

nas condições particulares contribuem para tornar o funcionamento do capitalismo mais

adequado à lógica do capital.

Para dar início ao tratamento dos pontos acima enumerados, dedicamos o

primeiro capítulo da Parte I ao resgate da descrição oferecida por Marx sobre a

sociedade em geral e à identificação de determinações que transcendem os marcos de

qualquer modo de produção específico. Ao mesmo tempo, aproveitamos a oportunidade

para expor algumas considerações preliminares, que, além de elucidarem importantes

afirmações feitas por Marx a respeito do mundo e da forma de capturá-lo no

pensamento, também permitem “limpar o terreno”, desfazendo o que parecem ser

alguns dos equívocos mais recorrentes na interpretação da teoria marxiana. O capítulo

primeiro é complementado ainda por um Apêndice, no qual realizamos alguns

esclarecimentos adicionais a respeito da categoria desenvolvimento desigual,

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particularmente importantes para estabelecer a distinção entre a perspectiva aqui

delineada e aquela defendida por grande parte das teorias de inspiração marxista.

O segundo capítulo destina-se mais pontualmente ao resgate dos elementos

indispensáveis à caracterização do sistema social vigente, tomando como base a

descrição feita por Marx, especialmente em O Capital. Considerando a impossibilidade

de refazer o longo argumento elaborado pelo autor, o capítulo terá ao menos um foco

fundamental: a demonstração de que, por sua própria constituição, a sociedade

mercantil possui como dispositivo imanente o impulso ao aumento da riqueza, ou, dito

de outra forma, que esse modo de produção possui uma dinâmica autoexpansiva. Trata-

se, mais especificamente, de demonstrar como, em sua processualidade, a dinâmica

capitalista produz crescimento contínuo da riqueza e como esse resultado vem

acompanhado do acionamento de novas contradições. Para auxiliar a compreensão

desse ponto, dedicamos o Apêndice II à apresentação de um importante elemento da

dinâmica capitalista: a tendência à formação do mercado mundial.

No terceiro e último capítulo, analisamos a dinâmica capitalista em um nível

ainda mais baixo de abstração, mostrando como as tendências gerais apresentadas no

capítulo anterior são atravessadas por determinações particulares (inclusive tendências

historicamente específicas), que influenciam a forma concreta de manifestação das leis

gerais. Para tanto, utilizamos como exemplo dois períodos históricos: o primeiro

conhecido como a “Era de Ouro” do capitalismo e aquele posterior à crise dos anos

1970. A partir do contraste entre esses dois períodos, esperamos mostrar as mudanças,

mas também as permanências, indicando como o capital modifica-se num determinado

momento para preservar sua lógica geral. Por fim, utilizamos o Apêndice III para

prestar alguns esclarecimentos sobre a complexidade da dinâmica capitalista, apontando

para o equívoco cometido por aquelas teorias que tentam explicar a dinâmica capitalista

exclusivamente a partir de uma única categoria.

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Capítulo 1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade: historicidade e

desigualdade do desenvolvimento

Na vasta produção intelectual de Marx, é perceptível a preocupação recorrente

em elucidar o modo concreto de funcionamento da sociedade, sua processualidade

histórica, suas linhas gerais de desenvolvimento. Seguindo as pistas deixadas por

Lukács (1979), filósofo que se ocupou deste aspecto da obra marxiana, momentos

fundamentais de tais argumentos podem ser explicitados, de modo a oferecer resposta a

uma série de questões pertinentes para os propósitos deste trabalho. Por exemplo, o

desenvolvimento da sociedade é governado por leis? Existe algum tipo de lei regulando

a forma como os seres humanos, nas suas atividades cotidianas, produzem e

reproduzem as condições de sua existência? Mais do que isso: existem características e

determinações desse desenvolvimento que sejam comuns a todas as épocas da produção,

independentemente das condições históricas específicas?

Respondendo afirmativamente a essas questões, o presente capítulo tem como

principal objetivo identificar justamente as leis humanas universais que caracterizam a

produção, abstraídas as formas históricas (concretas), como se manifestam (como já

indicado, esse nível de abstração será progressivamente reduzido conforme avançarmos

para os capítulos seguintes). Para tanto, utilizamos na primeira das três seções o resgate

feito por Lukács (1979, 2007) para expor, de modo sistemático, as principais tendências

que regulam o desenvolvimento do ser social. Feito isso, dedicamos a segunda seção ao

tratamento de duas temáticas extremamente importantes ao argumento do presente

trabalho: historicidade e desigualdade do desenvolvimento. Por fim, realizamos na

última seção algumas qualificações necessárias ao correto entendimento da teoria

ontológica de desenvolvimento da sociedade aqui defendida.

Seção 1.1. As leis gerais de desenvolvimento da sociedade

Tomando como base especificamente os estudos de Marx sobre a economia

(entendida aqui como a esfera de produção e reprodução da vida humana), Lukács

(2007: 238) demonstra que a linha geral de desenvolvimento da sociedade (aquela que

transcende os marcos de um modo de produção específico) é marcada por três

tendências básicas: a primeira delas apresenta-se como um constante recuo das

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barreiras naturais, a segunda na forma de um também constante aumento das forças

produtivas do trabalho, e a terceira está relacionada à conformação do gênero humano.

A primeira das tendências identificadas por Lukács na obra de Marx, o recuo das

barreiras naturais significa, por um lado, que a vida humana e social jamais pode

desvincular-se inteiramente de sua base última na natureza – trata-se, portanto, de recuo

e não de eliminação. (Lukács, 1979: 53) Por outro, essa tendência mostra que, “[...]

tanto quantitativa quanto qualitativamente, diminui de modo constante o papel do

elemento puramente natural (quer na produção, quer nos produtos)”. (Lukács, 2007:

238) Nesse sentido, observamos que “momentos decisivos da reprodução humana –

basta pensar em aspectos naturais como a nutrição ou a sexualidade – acolhem em si,

com intensidade cada vez maior, momentos sociais, pelos quais são constante e

essencialmente transformados”.6 (Ibid)

Ainda seguindo a leitura de Lukács da obra de Marx, a segunda tendência que

caracteriza a dinâmica de desenvolvimento da sociedade é a tendência ao aumento das

forças produtivas do trabalho, que se manifesta diretamente em uma diminuição do

tempo de trabalho socialmente necessário à produção de objetos e, portanto, à

reprodução dos seres humanos. Antes que conclusões equivocadas sejam extraídas

dessa afirmação, é necessário enfatizar que o enunciado “tempo de trabalho socialmente

necessário” não deve ser confundido com o enunciado da categoria “valor”. O ser

humano sempre trabalhou e sempre despendeu tempo em sua atividade produtiva, mas

só em determinadas condições sociais (aquelas postas pelo capital) o trabalho apresenta-

se de modo dominante como propriedade das coisas produzidas, como valor, e o tempo

funciona como medida dessa propriedade. Portanto, como veremos no próximo

capítulo, somente na sociedade comandada pelo capital, a redução do tempo de trabalho

socialmente necessário apresenta-se como diminuição do valor unitário das mercadorias

e constitui uma tendência dinâmica que marca a fundo a reprodução sistêmica.

Por ora, tratamos do aumento da produtividade, numa perspectiva bastante

ampla, como uma tendência ultrageral da reprodução social, que contribui para a

diversificação das necessidades sociais e das formas de práticas humanas (e até mesmo

6 Para ilustrar essa tendência da vida social de tornar-se, sempre e cada vez mais, mediada por categorias

sociais, podemos resgatar ainda uma das célebres passagens da Introdução de 1857, na qual Marx mostra

como mesmo uma atividade vital à nossa manutenção como seres naturais (o ato de alimentar-se) é

também socialmente determinada: “A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, que se

come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes”.

(Marx, 1982: 9)

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para a ampliação das possibilidades de crescimento populacional). Nas palavras da

historiadora Ellen Meiksins Wood:

Evidentemente, não se discute que numa perspectiva bastante longa o

desenvolvimento das forças produtivas materiais tenha tido o caráter geral da

evolução; mas isso significa apenas que as mudanças nas forças de produção

tendem a ser acumulativas e progressivas, que, uma vez ocorrido um avanço,

raramente ele se perde completamente, e que a regressão seja excepcional no

longo prazo. Se isso é verdade, ainda é possível caracterizar como evolutivos

e “direcionais” esses desenvolvimentos (e não teleológicos), no sentido de

que há uma tendência progressiva geral e cada desenvolvimento se faz

acompanhar de novas possibilidades e de novas necessidades. Mas isso nada

nos diz acerca do vigor, da frequência, da rapidez ou da extensão da

mudança; nem contradiz o entendimento, expresso por Marx, de que

“petrificação” tem sido mais a regra que a exceção. (Wood, 2003: 115)

Sem muitas mediações, chegamos à terceira tendência que acompanha o

desenvolvimento do ser social, na qual se expressa um novo aspecto de sua

historicidade, e que também constitui mais um progresso objetivo desse ser: a

explicitação do caráter genérico da humanidade. Sobre este ponto, é importante ter

presente, em primeiro lugar, que individualidade e gênero já aparecem como categorias

do ser natural, e que, portanto, do ponto de vista biológico, o gênero humano já existe

em si quando o ser humano separa-se objetivamente dos primatas superiores. Mas o

gênero, como relação exclusivamente natural, só pode assumir a forma de um gênero

mudo, como nota Lukács:

A relação assim surgida entre os exemplares singulares e o gênero é uma

relação puramente natural, inteiramente independente de qualquer

consciência, de qualquer objetivação da consciência: o gênero se realiza nos

exemplares singulares; e esses, em seu processo vital, realizam o gênero. É

óbvio que o gênero não pode ter nenhuma consciência; e igualmente óbvio é

que, no exemplar singular natural, não pode surgir nenhuma consciência

genérica. (Lukács, 1979: 140)

O caráter genérico da humanidade, tomada em sentido social, no entanto,

manifesta-se aos indivíduos que constituem o gênero, abrindo o caminho para a tomada

de consciência tanto da identidade genérica como da singularidade de cada indivíduo.

Mas essa tomada de consciência é, ao menos inicialmente, restringida pelo

fracionamento da humanidade em comunidades diversas e, em muitos casos, isoladas e,

pela própria divisão dos seres humanos em classes sociais, que muitas vezes leva à

negação do reconhecimento da identidade humana de camadas inteiras da população

(escravos, por exemplo). O reconhecimento do gênero humano como um problema

universal que envolve todos os seres humanos, além das fronteiras de comunidades

específicas, das classes e outras divisões possíveis (“raça”, gênero), é um fenômeno

relativamente recente, que acompanha o recuo progressivo das barreiras naturais, o

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desenvolvimento das forças produtivas e especialmente a tendência à formação do

mercado mundial. (Lukács, 2007: 238)

Assim como no caso da tendência ao aumento das forças produtivas, veremos no

próximo capítulo como a explicitação do gênero humano ganha contornos mais

definidos no modo de produção capitalista, e que, apesar do caráter de progresso

objetivo, vem acompanhado do acionamento de novas contradições. Antes disso,

seguimos na próxima seção com o tratamento de duas questões indispensáveis ao

correto entendimento da concepção de desenvolvimento aqui defendida: a historicidade

e o desenvolvimento desigual.

Seção 1.2. Historicidade e desigualdade do desenvolvimento

A respeito da historicidade, vale notar imediatamente que atribuí-la a

determinado objeto significa, antes de tudo, reconhecer seu contínuo movimento ao

longo do tempo (movimento este que não implica, necessariamente, a irreversibilidade

de processos, sejam eles físicos ou sociais). Nessa afirmação, é preciso dar especial

atenção ao uso do termo “contínuo”, pois uma das condições para que se estabeleça a

mudança de um objeto é que este continue e permaneça sendo o mesmo objeto, ainda

que tenha sofrido alterações substantivas. Só é possível, por exemplo, analisar as

modificações experimentadas por determinada espécie ao longo do tempo se esta se

sustenta como mesma espécie. O mesmo se aplica à sociedade: falar das modificações

pelas quais passou o capitalismo nos últimos anos só faz sentido na medida em que este

modo de produção continua a existir. Como nota Lukács (1979: 79): “a continuidade na

persistência, enquanto princípio de ser dos complexos em movimento, é indício de

tendências ontológicas à historicidade como princípio do próprio ser”.

Mais do que isso, a historicidade implica não apenas a permanência na

mudança, “mas também e sempre uma determinada direção na mudança, uma direção

que se expressa em transformações qualitativas de determinados complexos, tanto em-si

quanto em relação com outros complexos”. (Lukács, 1979: 79) Sem muitos rodeios,

podemos extrair daqui o entendimento correto do papel desempenhado pelos conceitos

de desenvolvimento e progresso dentro dessa formulação. Com o auxílio de Medeiros:

Os conceitos de desenvolvimento e progresso são empregados para descrever

em si mesma a direção do movimento de objetos estruturados, ou seja, para

descrever objetivamente a direção do movimento. A ideia-chave envolvida

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neste procedimento é a complexidade. Uma dada estrutura (totalidade) é

objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da

mesma espécie caso seja constituída por um maior número de componentes

específicos, ou pelo mesmo número de componentes mais complexos. Dada

esta concepção de desenvolvimento, a noção de progresso serve para

descrever a passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento para um

nível mais alto – o aumento da complexidade de objetos estruturados.

(Medeiros, 2007: 45)

No caso do ser social, identificamos ao menos três tendências (ou

desenvolvimentos) desse tipo. A crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de

trabalho necessário à reprodução humana e a constituição da consciência genérica são

expressões precisas dessa “passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento para

um nível mais alto”. Vale notar que o reconhecimento desses progressos objetivos

independe da forma como são avaliados: “Nessa constatação ontológica do progresso,

não está contido nenhum juízo de valor subjetivo. Trata-se da constatação de um estado

de coisas ontológico, independentemente de como ele seja avaliado posteriormente.

(Pode-se aprovar, deplorar, etc. o „recuo das barreiras naturais‟)”. (Lukács, 1979: 54)

A questão é que a sociedade, assim como outros objetos estruturados, fica mais

bem representada como uma totalidade, composta de complexos, complexamente

articulados, onde “todo „elemento‟, toda parte, é também [...] um todo; todo „elemento‟

é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específicas, um

complexo de forças e relações diversas que agem em conjunto”. (Ibid: 40) Se

investigamos, portanto, a relação que se estabelece entre as diferentes partes e/ou

esferas que integram uma totalidade, o que se observa é que estas partes e/ou esferas

podem possuir legalidades próprias e se comportar de maneira heterogênea: “por um

lado, complexos diferentes de uma mesma totalidade podem estar em estágios distintos

de desenvolvimento; por outro, alguns complexos podem estar contingentemente

regredindo ao invés de progredindo”. (Medeiros, 2007: 46)

Na medida em que progressos singulares, em uma ou outra esfera da vida social,

podem ser acompanhados por regressões simultâneas em outras esferas, temos de

reconhecer que todo desenvolvimento (ou progresso) que tem lugar na história do ser

social pode assumir, por necessidade (isto é, em razão da própria configuração dinâmica

do objeto), a forma de um desenvolvimento desigual. Apesar de ser por vezes associado

às diferenças na distribuição de riqueza entre as nações, trata-se aqui o desenvolvimento

desigual como uma categoria cujo alcance é mais abrangente, dentro da qual a

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desigualdade entre países pode apenas ser vista como um caso específico.7 E para

entender a profundidade dessa categoria, recorremos ao exemplo citado por Marx da

desigualdade de desenvolvimento que se estabelece entre a produção material face à

produção artística:

Em relação à arte, sabe-se que certas épocas de florescimento artístico não

estão de modo algum em conformidade com o desenvolvimento geral da

sociedade, nem, por conseguinte, com o da base material que é, de certo

modo, a ossatura da sua organização. (Marx, 1982: 20)

Na verdade, segundo o autor, não estão em conformidade e nem poderiam estar.

Tomando como ilustração a relação entre a arte grega e sociedade moderna, observa

Marx:

A intuição da natureza e as relações sociais que a imaginação grega inspira e

constitui por isso mesmo o fundamento da [mitologia] grega serão

compatíveis com as selfactor [máquinas automáticas de fiar], as estradas de

ferro, as locomotivas e o telégrafo elétrico? Quem é Vulcano ao lado de

Roberts & Cia., Júpiter em comparação com o pára-raios e Hermes em face

ao Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, governa e modela as forças da

natureza na imaginação e pela imaginação, portanto, desaparece quando essas

forças são dominadas efetivamente. O que seria da Fama ao lado de Printing

House Square? A arte grega pressupõe a mitologia grega, isto é, a elaboração

artística mas inconsciente da natureza e das próprias formas sociais pela

imaginação popular. Esse é o seu material. (Marx, 1982: 20-21)

Ainda que tenha sido muito pouco trabalhada por Marx (o conceito de

desenvolvimento desigual é apenas explicitamente abordado na Introdução de 1857, na

forma de “pontos que devem ser mencionados aqui e não devem ser esquecidos”), essa

formulação nos permite oferecer uma crítica consistente a, ao menos, duas concepções

distintas e opostas, que normalmente figuram no debate sobre o assunto. Por um lado,

tem-se a “concepção simplista e vulgarizada do progresso, que retém apenas um

resultado qualquer já quantificado do desenvolvimento (crescimento das forças

produtivas, difusão do conhecimento etc.) e, sobre essa base, decreta a existência de um

progresso generalizado”; por outro, no extremo oposto, temos a posição que, assumindo

os retrocessos como unidade de medida, nega de modo absoluto a presença de

progresso. (Lukács, 1979: 124)

É evidente que, na medida em que, em ambos os casos, momentos singulares do

processo de conjunto são amplificados e tomados como critérios únicos, as duas

concepções são equivocadas. Como ressalta Lukács:

Desigualdade do desenvolvimento significa, “simplesmente”, que a grande

linha de evolução do ser social [...] não pode se explicitar em linha reta,

7 Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento desigual, focada especialmente na distinção entre

as duas noções (a defendida no presente trabalho e aquela que trata exclusivamente da desigualdade de

desenvolvimento entre as nações), poderá ser vista no Apêndice I.

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segundo uma lógica racional qualquer, mas se move em parte por vias

travessas (deixando mesmo atrás de si alguns becos sem saída) e, em parte,

fazendo com que os complexos singulares, cujos momentos reunidos formam

o desenvolvimento global, encontrem-se individualmente numa relação de

não-correspondência. (Lukács, 1979: 134)

A compreensão deste ponto é particularmente importante para o presente

trabalho, pois as teorias do desenvolvimento não raramente incorrem em equívocos do

tipo acima enunciados. Em primeiro lugar, grande parte dessas teorias agarra-se a um

critério específico de desenvolvimento para, a partir dele, decretar “a existência de um

progresso generalizado”, desconsiderando o caráter necessariamente desigual desse

desenvolvimento. Além disso, essas teorias, em lugar de encarar o desenvolvimento

como um reconhecimento objetivo, costumam tratar o desenvolvimento como um “juízo

de valor subjetivo”. Essas e outras questões correlatas serão tratadas mais detidamente

nos próximos capítulos. Por ora, seguimos com a apresentação de mais alguns

elementos indispensáveis à caracterização da perspectiva aqui delineada.

Seção 1.3. Linhas gerais de desenvolvimento do ser social: considerações finais

Apesar de já terem sido reveladas, ao longo das seções anteriores, as principais

leis gerais de desenvolvimento da sociedade e o caráter necessariamente desigual desse

desenvolvimento, o correto entendimento da teoria sobre a sociedade aqui defendida, no

nível de abstração em que nos encontramos, depende ainda da realização de alguns

esclarecimentos adicionais. É precisamente esse o objetivo da presente seção. Ao longo

das próximas linhas, pretendemos sustentar o caráter tendencial, não-teleológico e

objetivo das leis sociais, nem sempre reconhecido por parte da literatura sobre o tema.

Em seguida, reafirmamos o caráter necessariamente post festum do conhecimento sobre

a sociedade, apontando para algumas implicações de tal atitude, tanto em termos

teóricos, quanto práticos.

Em primeiro lugar, portanto, devemos notar que as leis sociais não são tomadas

aqui como leis empíricas, ou seja, não se trata de buscar e reconhecer regularidades

(conjunções constantes) na relação entre eventos. As leis de tendência, que se referem

ao modo de agir de objetos estruturados, podem ou não se manifestar em eventos,

dependendo da força com que operam as contratendências (ou fatores contra-restantes).

Importa compreender, portanto, que o fato de uma determinada lei não se verificar em

certo momento não contradiz a existência da lei em si. Como destaca Lukács:

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[...] a tendencialidade, enquanto forma fenomênica necessária de uma lei na

totalidade concreta do ser social, é consequência inevitável do fato de que

nos encontramos aqui diante de complexos reais que interagem de modo

complexo, frequentemente passando por amplas mediações, com outros

complexos reais; a lei tem caráter tendencial porque, por sua própria

essência, é resultado desse movimento dinâmico-contraditório entre

complexos. (Lukács, 1979: 64)

Além disso, as dinâmicas e determinações anteriormente enunciadas funcionam

com relativa autonomia com referência às intenções particulares dos sujeitos em suas

ações (o resultado social do processo em si não tem uma finalidade, ou seja, é não-

teleológico).8 A dificuldade aqui reside no fato simples, embora nem sempre intuitivo,

de que, enquanto a maioria das atividades cujo conjunto compõe o movimento da

sociedade é certamente de origem teleológica, o somatório dessas atividades é feito de

conexões causais que em nenhum sentido podem ser de caráter teleológico – e, na

maioria dos casos, produz resultados inteiramente diversos das motivações iniciais.

(Lukács, 1979: 81) Apesar da impossibilidade de aprofundar esse e outros temas

relacionados, julga-se aqui relevante ao menos indicar que, desse fato fundamental,

depreende-se de imediato que os processos sociais podem ser ditos ao mesmo tempo

dependentes e independentes dos atos individuais que os produzem e reproduzem.9

A correta caracterização da teoria aqui defendida exige ainda a compreensão de

que as dinâmicas e tendências que se verificam no interior do ser social sustentam sua

objetividade, na medida em que existem e operam independentemente do conhecimento

que se tem sobre elas e a despeito dos juízos de valor formulados a seu respeito. Em

postura perfeitamente compatível com uma ontologia realista e materialista (válida para

além dos limites das ciências da sociedade), explicita-se aqui, em primeiro lugar, o

reconhecimento fundamental da distinção entre a realidade e o conhecimento da

realidade (ou ainda, nos termos de Marx, entre o concreto e o concreto pensado). Mais

do que isso, trata-se, na verdade, de reconhecer a prioridade (ontológica) da primeira

(realidade) em relação à segunda (consciência).10

Nos termos de Lukács:

8 Nas palavras de Sánchez-Vázquez (2007: 55-56): “o progresso histórico é fruto da atividade coletiva dos

homens como seres conscientes, mas não de uma atividade comum consciente”. 9 Como sintetizado por Marx em mais uma de suas célebres passagens: “Os homens fazem sua própria

história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas

com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. (Marx, 1997: 21) Sobre o tema,

conferir também Lukács (1979: 64; 2007: 236). 10

Esse é um dos aspectos mais decisivos do materialismo sustentado por Marx: “Do mesmo modo que

em toda ciência histórica e social em geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das

categorias econômicas, que o sujeito, nesse caso, a sociedade burguesa moderna, está dado tanto na

realidade efetiva como no cérebro; que as categorias exprimem portanto formas de modos de ser,

determinações de existência, frequentemente aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse

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Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria com

relação à outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir

sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível. É algo

semelhante à tese central de todo o materialismo, segundo o qual o ser tem

prioridade ontológica com relação à consciência. Do ponto de vista

ontológico, isso significa simplesmente que pode existir o ser sem a

consciência, enquanto toda consciência deve ter como pressuposto, como

fundamento, algo que é. Mas disso não deriva nenhuma hierarquia de valor

entre ser e consciência. (Lukács, 1979: 40)

Obviamente, como o próprio Lukács nos adverte na última frase citada acima,

não se pretende com isso negar a importância da consciência. Embora a consciência seja

entendida como um “produto tardio do desenvolvimento material”, não é jamais um

“produto de menor valor ontológico”. Ao contrário, afirmar que a consciência, ao

refletir a realidade, abre a possibilidade de modificá-la, significa dizer que “a

consciência tem um real poder no plano do ser e não – como se supõe a partir das [...]

visões equivocadas – que ela é carente de força”. (Lukács, 2007: 227)

Além dessa distinção fundamental entre ser e consciência, resta ainda notar que

a forma de apreender a realidade geralmente não coincide com o processo de gênese da

própria realidade, ou seja, a leitura da história caminha no sentido oposto à gênese da

própria história. Isso porque se a evolução do ser social segue a norma do aumento da

complexidade interna do ser, o processo histórico efetivo tende a transformar formas

mais simples em formas mais complexas. Quando se trata de compreender

cientificamente as categorias sociais, ao contrário, temos acesso de imediato as suas

formas mais complexas e a, partir delas, procuramos reconstituir as formações mais

simples, momentos anteriores, post festum. (Marx, 1982: 17)

Esse ponto é particularmente importante, pois, abrindo caminho para o tema do

próximo capítulo, ajuda-nos a entender um dos motivos pelos quais Marx estudou de

modo praticamente exclusivo a sociedade capitalista, mesmo quando tinha a intenção de

descobrir propriedades gerais da sociedade. A questão é que, além de as relações sociais

capitalistas constituírem o material histórico imediatamente disponível (aquele a que

temos acesso de imediato), a partir dessas relações constitui-se a forma social na qual a

linha geral de desenvolvimento manifesta-se de modo mais ampliado até o presente.

Mas é preciso prontamente salientar que assumir esse ponto de partida não implica

negar o caráter histórico da sociedade, praticando assim uma forma qualquer de

anacronismo, hipóstase e/ou naturalização. Ao contrário, Marx rejeitou explicitamente

sujeito, e que, por conseguinte, essa sociedade de maneira nenhuma se inicia, inclusive do ponto de vista

científico, somente a partir do momento em que se trata dela como tal”. (Marx, 1982: 18)

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todas as análises desse tipo (que fazem desaparecer as diferenças históricas e projetam

características específicas da sociedade burguesa para todas as formas de sociedade

precedentes), tendo sempre o cuidado de assinalar seus desdobramentos sobre a prática

social.11

Ademais, e para concluir as ressalvas, é prudente advertir que o fato de Marx ter

assumido o âmbito da economia como objeto de estudo não significa, como falam os

críticos, que sua imagem de mundo seja fundada sobre o economicismo. A resposta a

esse questionamento exige, antes de tudo, o entendimento do sentido atribuído por Marx

ao termo “econômico”: economia em Marx aparece, em termos extremamente gerais,

como a esfera de produção e reprodução da vida humana, e as categorias econômicas

como categorias dessa produção e reprodução (e é isso que torna possível uma descrição

da sociedade sobre bases materialistas). Concebida dessa forma, a economia ocupa o

posto de determinante em última instância da vida social e, assim como na relação entre

ser e consciência, aqui também podemos recorrer mais uma vez ao conceito de

prioridade ontológica:

O mesmo vale, no plano ontológico, para a prioridade da produção e da

reprodução do ser humano em relação a outras funções. Quando Engels, no

discurso pronunciado junto à tumba de Marx, fala do “fato elementar de que

os homens devem primeiro de tudo comer, beber, ter um teto e vestir-se,

antes de ocupar-se de política, de ciência, de arte, de religião, etc”, está

falando precisamente de uma relação de prioridade ontológica. (Lukács,

1979: 41)

Sobre este ponto, valeriam ao menos duas observações: afirmar a prioridade

ontológica da economia em relação às outras esferas não significa dizer que a primeira

seja necessariamente mais importante (ou seja, não implica qualquer juízo ou hierarquia

de valor); mais do que isso, não significa que as outras esferas sejam diretamente

determinadas pela economia. (Lukács, 1979: 155)

É correto, no entanto, afirmar que a peculiaridade histórica da sociedade

capitalista está diretamente associada ao fato de que a sua economia constitua mais do

que uma base. No capitalismo, a economia forma efetivamente o centro da vida social, a

partir do qual emana a dinâmica que subordina todos os demais momentos e esferas da

existência. É por esse motivo que, respeitando o caráter post festum do pensamento

social, Marx dedica-se ao estudo das relações econômicas que se afirmam em seu tempo

e que, segundo ele logo percebe, tornam a economia não apenas o momento

11

Como veremos adiante, especialmente na Parte II, a naturalização de estruturas sociais (historicamente

constituídas) é algo recorrente na ciência econômica, inclusive entre as teorias do desenvolvimento, e as

implicações não são muito diferentes das assinaladas por Marx.

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predominante do ser social, mas a principal esfera de sociabilidade. Como veremos no

próximo capítulo, esse ponto é extremamente importante para a compreensão da

dinâmica capitalista.

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21

Apêndice I. Esclarecimentos sobre a categoria Desenvolvimento Desigual

Como se tentou demonstrar ao longo do primeiro capítulo, desde a perspectiva

ontológica defendida no presente trabalho, desenvolvimento significa o reconhecimento

objetivo de um aumento no grau de complexidade dos complexos constitutivos de um

objeto estruturado. Tomando exclusivamente nossa condição de seres naturais e o

critério acima apresentado, podemos dizer, por exemplo, que mesmo o mais deplorável

dos seres humanos é mais desenvolvido que um animal de estimação (por maior que

seja a estima pelos últimos). Uma vez entendida a sociedade como uma totalidade

composta de vários complexos, complexamente articulados, o mesmo tipo de análise

pode ser a ela aplicada. E, assim como no caso anterior, proferir sentenças a respeito do

desenvolvimento da sociedade significa falar sobre o grau de

desenvolvimento/complexidade de suas esferas constitutivas: economia, política, artes,

direito, religião etc.

Também desde essa perspectiva, não é possível falar em desenvolvimento sem

levar em consideração o fato de que todo desenvolvimento é desenvolvimento desigual.

Aqui nos referimos, mais uma vez, à heterogeneidade que se estabelece entre

complexos, que, em seu desenvolvimento, comportam-se de maneira diferenciada.

Portanto, em postura compatível com as defendidas por Marx e Lukács, entendemos

que a categoria desenvolvimento desigual diz respeito à relação entre complexos e, mais

especificamente, aos graus diferentes de desenvolvimento dos complexos que compõem

uma totalidade.12

Esse não é, no entanto, o emprego mais usual da categoria. Sua versão mais

disseminada é aquela difundida, em parte, por teorias inspiradas nos trabalhos de Lênin,

Trotsky, entre outros, e na noção de desenvolvimento desigual e combinado.13

Nesses

12

Ao longo do capítulo citamos o exemplo, dado por Marx (1982: 20), da desigualdade de

desenvolvimento entre arte e economia. Podemos ainda utilizar o conceito, como sugere Marx (Ibid), para

falar da desigualdade que se estabelece entre direito e economia ou, como sugere Lukács (1979: 137),

entre música e arquitetura. Um tratamento detalhado da categoria desenvolvimento desigual e a síntese de

todos esses casos podem ser encontrados em Lukács (Ibid: 123-137). 13

Quando se trata de analisar a concepção de desenvolvimento desigual sustentada por Lênin, o texto

mais recorrentemente citado é, sem dúvidas, o livro intitulado Imperialismo, Etapa Superior do

Capitalismo (1917). Nele, no entanto, encontram-se poucas e esparsas referências ao termo, e nenhum

tipo de tratamento teórico mais refinado. Trotsky, por outro lado, faz diversas menções ao termo

(acrescido do qualificativo combinado), especialmente nos livros Balanços e Perspectivas (1906), 1905

(1909), III Internacional depois de Lênin (1928) e História da Revolução Russa (1930), mas também não

chega a debater o conceito mais extensamente. Essa tarefa coube a alguns seguidores, como Mandel

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22

autores, observamos a utilização do termo tanto para descrever o processo histórico por

meio do qual determinados países realizaram tardiamente a transição para o modo de

produção capitalista, combinando setores “modernos” e “atrasados” em seu interior,

quanto para tratar da desigualdade de desenvolvimento (econômico) entre nações.

Embora nem sempre seja feita a devida referência aos trabalhos de Lênin e

Trotsky (ou se mantenha fidelidade às suas formulações originais), a utilização da

categoria tornou-se muito comum entre autores de orientação marxista, especialmente

para abordar a questão da desigualdade entre nações. Isso pode ser comprovado a partir

da síntese formulada por Ernest Mandel:

No sentido mais geral da expressão, “desenvolvimento desigual” significa

que sociedades, países, nações desenvolvem-se segundo ritmos diferentes, de

tal modo que, em certos casos, os que começam com uma vantagem sobre os

outros podem aumentar essa vantagem, ao passo que, em outros casos, por

força dessas mesmas diferenças de ritmo de desenvolvimento, os que haviam

ficado para trás podem alcançar e ultrapassar os que dispunham de vantagem

inicial. Para ter sentido, portanto, a ideia de “desenvolvimento desigual” deve

incluir, em cada caso específico, a principal força propulsora (ou forças

propulsoras) que determina essas diferenças de ritmo de desenvolvimento.

(Mandel, 1983: 98)

Não pretendemos aqui fazer uma revisão das teorias que, de uma maneira ou de

outra, trabalham com a categoria desenvolvimento desigual no sentido acima

apresentado, mas apenas chamar atenção para alguns problemas relacionados a essa

definição. Em primeiro lugar, essas teorias utilizam uma concepção de desenvolvimento

(como crescimento da riqueza, capacidade produtiva, condições de vida da classe

trabalhadora etc.) que em muito difere daquela utilizada por Marx e Lukács

(reconhecimento objetivo da dinâmica de funcionamento da sociedade).14

Em segundo

lugar, ainda que seja possível demonstrar que o desenvolvimento desigual entre países é

efetivamente um caso de desenvolvimento desigual (no sentido empregado por Marx e

Lukács), esse seria ainda apenas um caso possível de apresentação do problema. Ou

seja, tomar essa acepção como a definição de desenvolvimento desigual seria tomar

uma instância específica como o caso geral.

Como não consta entre os objetivos do presente trabalho demonstrar a correção

ou incorreção do tratamento convencionalmente dispensado à categoria do

(1979) e Novack (2008), por exemplo, que buscaram dar um tratamento mais sistemático à noção de

desenvolvimento desigual e combinado. Sobre o tema, conferir também Löwy (1998). 14

Oferecendo um exemplo bastante emblemático, Paul Baran (1986: 47) afirma explicitamente:

“Definamos crescimento (ou desenvolvimento) econômico como o aumento, ao longo do tempo, da

produção per capita de bens materiais”, descartando ainda na sequência qualquer tentativa de associação

entre desenvolvimento e aumento de bem-estar. Uma definição similar pode ser vista também em Dobb

(1973: 14).

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23

desenvolvimento desigual (isto é, aquele que utiliza a categoria para descrever a relação

entre países capitalistas), limitamo-nos apenas a mostrar, ainda que brevemente, como o

desenvolvimento desigual é mais amplo e mais complexo do que sugere a interpretação

tradicional e o reducionismo assim implícito nessa definição da categoria. Em suma,

enfatize-se que desenvolvimento desigual, no registro marxiano, refere-se a (1) uma

disparidade no grau de desenvolvimento entre complexos integrantes de uma totalidade;

e (2) uma disparidade não acidental, mas provocada pelo próprio modo de ser da

totalidade e dos complexos (i.e., uma desigualdade causalmente determinada). Trata-se,

enfim, de uma determinação ultragenérica e que não pode ser reduzida à relação

econômica (entre setores, classes ou entre nações).

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24

Capítulo 2. Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica

autoexpansiva, desenvolvimento e estranhamento

Dando continuidade à tarefa proposta inicialmente para a Parte I do trabalho, o

presente capítulo busca contribuir para a construção de uma interpretação de mundo

alternativa àquelas representações tradicionalmente aceitas pela ciência econômica.

Para fazer uma breve recapitulação, vimos no capítulo anterior que a sociedade deve ser

entendida como uma totalidade composta de complexos (partes que também são um

todo) que, em virtude de sua própria constituição, comportam-se de maneira

heterogênea, e é justamente essa heterogeneidade dos complexos que determina o

caráter necessariamente desigual do desenvolvimento do ser social. Apesar dessa

heterogeneidade, vimos ainda ser possível identificar leis gerais de desenvolvimento da

sociedade que, apesar de seu caráter tendencial e desigual, constituem progressos

objetivos no interior desse ser.

Seguindo, portanto, o raciocínio iniciado no capítulo anterior, mas diminuindo o

nível de abstração, o presente capítulo tem como principal objetivo apresentar as linhas

gerais de desenvolvimento da sociedade especificamente capitalista.15

Mais

precisamente, esperamos com isso mostrar como a dinâmica capitalista também produz

resultados contraditórios, ainda que se reconheçam neles progressos objetivos do tipo

descrito anteriormente. Para tanto, o capítulo encontra-se dividido em duas seções: na

primeira, discutiremos as principais tendências que caracterizam a dinâmica capitalista,

sintetizada através do famoso enunciado de Marx da lei geral da acumulação

capitalista; feito isso, voltamos à temática do desenvolvimento e suas legalidades na

segunda seção.

15

Antes de prosseguir, faz-se necessário um esclarecimento a respeito da utilização do qualificativo

“geral”. Assim como as tendências expostas no primeiro capítulo, as tendências adiante examinadas são

“gerais”, na medida em que independem da forma concreta como se manifestam. Mas, ao contrário das

anteriores, não são comuns a todas as épocas da produção: são válidas para a sociedade capitalista e

apenas para ela. Como antecipado na introdução, as formas distintas de manifestação dessas leis, em

condições históricas específicas, serão objeto do próximo capítulo.

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25

Seção 2.1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista

Como se sabe, já no Livro I de O Capital, Marx cumpre a tarefa de apresentar as

leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista. Dentre as leis identificadas por

Marx, interessa-nos particularmente aquelas por intermédio das quais o autor procura

dar conta do caráter expansivo da acumulação capitalista. Ou seja, concentramo-nos

aqui na demonstração de que a produção capitalista é caracterizada, por sua própria

organização interna, por um movimento dinâmico necessariamente expansivo. São

basicamente três as tendências identificadas por Marx: (1) a tendência à concentração de

capital; (2) a tendência à centralização do capital; e (3) a tendência ao aumento da

composição do capital.

A primeira delas nada mais é do que outra forma de expressar-se a tendência à

acumulação do capital, ou seja, a sua reprodução em escala ampliada, ou, ainda, o

movimento de reaplicação da mais-valia na esfera da produção. Intitula-se tendência à

concentração, pois implica, em última instância, concentração crescente de meios de

produção e do comando sobre o trabalho nas mãos de capitalistas individuais. (Marx,

2002: 728-729) Se capital é valor que se movimenta em busca de sua valorização, a

produção capitalista só pode, por definição, ser entendida como uma produção que gira

em torno do aumento da mais-valia, da busca por essa valorização. Uma vez acumulada

a mais-valia, ampliam-se as bases para a produção de mais mais-valia, de modo que, ao

fim de cada ciclo, fica evidente a possibilidade de seu recomeço em escala ampliada.

Como “a valorização do valor só existe dentro movimento sempre renovado”, conclui

Marx (2002: 182-183): “o movimento do capital é insaciável”. Na medida em que cada

capital perfaz individualmente esse ciclo e se reproduz em escala ampliada, tem-se

como resultado o aumento do capital para o conjunto da sociedade.16

Além da tendência à concentração do capital, que trata do crescimento do capital

social realizado através do crescimento de muitos capitais individuais, destaca-se outra:

a tendência à centralização do capital. Apesar de aparecerem como tendências

articuladas que se retroalimentam, a tendência à centralização descreve o crescimento

16

Como se trata aqui de uma tendência, não significa que não possa existir, ou que jamais tenha existido

a reprodução simples; significa apenas que a reprodução em mesma escala não é, e nem poderia ser, a

regra do modo de produção capitalista: “Se a produção tem forma capitalista, também a terá a reprodução.

No modo capitalista de produção, o processo de trabalho é apenas um meio de criar valor; analogamente,

a reprodução é apenas um meio de reproduzir o valor antecipado como capital, isto é, como valor que se

expande”. (Marx, 2002: 661)

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dos capitais individuais, obtido através da centralização do comando, isto é, da

“concentração de capitais já formados, a supressão de sua autonomia individual, a

expropriação do capitalista pelo capitalista, a transformação de muitos capitais

pequenos em poucos capitais grandes”. (Marx, 2002: 729) Como o propósito da

centralização é o aumento da mais-valia, isso pode levar à acumulação, mas, na medida

em que pressupõe apenas alteração na repartição dos capitais já existentes em

funcionamento, seu campo de ação não está limitado pelo crescimento absoluto da

riqueza social – pode ocorrer, e normalmente ocorre, também em momentos de crise.

Por fim, a terceira tendência, ao contrário das anteriores, não se refere ao

tamanho do capital, mas à relação entre suas partes constitutivas. Para expressar a

dimensão útil (valor de uso) da composição do capital, Marx introduz a categoria

intitulada composição técnica do capital, determinada pela proporção em que o capital

se divide em meios de produção e força de trabalho. Do ponto de vista abstrato (valor),

tem-se a composição em valor do capital, determinada pela proporção em que o capital

se divide em constante (montante de capital adiantado em meios de produção) e variável

(montante de capital adiantado em força de trabalho). A síntese dialética de ambas,

chamada de composição orgânica do capital, expressa “a composição do capital

segundo o valor, na medida em que é determinada pela composição técnica e reflete

modificações desta”. (Marx, 2002: 715)

A tendência ao aumento da composição do capital mencionada anteriormente –

que se traduz em aumento do capital constante em relação ao capital variável, aumento

na quantidade de meios de produção que a força de trabalho é capaz de pôr em

movimento, ou ainda, substituição de trabalho vivo por trabalho objetivado – nada mais

é do que a forma de expressar-se o aumento das forças produtivas do trabalho sob o

capitalismo. Mas, na medida em que produz uma queda no valor unitário das

mercadorias e contribui para o aumento da mais-valia relativa, pode-se afirmar a

existência de uma motivação exclusivamente capitalista para aumentar a produtividade

do trabalho.

Antes de prosseguir com o argumento, é preciso aqui diferenciar essa tendência

própria (particular) da sociedade capitalista da tendência geral (universal) de aumento

das forças produtivas tratada no capítulo anterior. Vimos que o aumento da

produtividade é condição sine qua non do desenvolvimento social, porque dele depende,

por exemplo, a diversificação das práticas humanas e o próprio aumento populacional.

Page 38: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

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O capitalismo, contudo, é a única formação social até então existente em que essa

tendência universal de aumento da produtividade apresenta-se como condição

particular indispensável à sua reprodução. Ou seja, diferentemente das demais

formações sociais conhecidas, a sociedade capitalista tem o aumento da produtividade

como elemento estrutural de sua reprodução e necessariamente entra em crise caso não

se revolucionem periodicamente as condições de produção. Infere-se daí que a

tendência expansiva do capital, centrada fundamentalmente na busca da valorização,

confere ao aumento das forças produtivas uma potência sem precedentes na história da

humanidade. Ao ingressar na produção, o capital revoluciona a forma de produzir,

revoluciona o modo de fazer as coisas: transforma a produção para que essa se

transforme num meio de expansão do valor.17

Combinando as três tendências acima apresentadas, é possível vislumbrar uma

dinâmica inerente à acumulação capitalista. Em períodos de relativa estabilidade

técnica, a acumulação de capital tende a absorver mais trabalhadores, subordinando-os à

lógica capitalista e ampliando extensivamente seu raio de atuação. Mas a dinâmica de

acumulação ultrapassa, e tem de ultrapassar essa fase: “Dados os fundamentos gerais do

sistema capitalista, chega-se, sempre, no curso da acumulação, a um ponto em que o

desenvolvimento da produtividade do trabalho social se torna a mais poderosa alavanca

da acumulação”. (Marx, 2002: 725) Isso porque o aumento de produtividade permite

superar os limites encontrados pelo capital para a expansão da mais-valia com

composição técnica constante, especialmente aquele postos (i) pela impossibilidade de

se estender indefinidamente a jornada de trabalho e (ii) pelo tamanho da população

imediatamente disponível.

Acumulação de capital ocorre, portanto, combinando fases de acumulação

predominantemente extensiva (acumulação com composição constante) e fases de

acumulação predominantemente intensiva (acumulação com aumento da

produtividade): nesse processo, o capital tende a absorver trabalhadores para o campo

da produção (crescimento da proletarização) para depois torná-los redundantes. Assim,

17

Já no Manifesto Comunista, Marx e Engels reconheceram que o capital desenvolve por necessidade as

forças produtivas do trabalho: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente o

instrumental de produção e, em consequência, as relações de produção e todas as relações sociais. A

conservação inalterada do modo tradicional de produção era, ao contrário, a primeira condição de

existência de todas as classes industriais precedentes. A contínua transformação da produção, a

turbulência ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação permanentes distinguem a

era burguesa de todas as que a precederam”. (Marx e Engels, 1985: 30) Marx, naturalmente, reafirma a

importância dessa descoberta em O Capital. Cf.: Marx (2002: 551).

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28

mesmo que a demanda por trabalho aumente em termos absolutos, como tendência,

diminui em termos relativos, implicando a diminuição da participação do capital

variável na totalidade do capital. O resultado é que “a acumulação capitalista sempre

produz, e na proporção da sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora

relativamente supérflua, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do

capital, tornando-se, desse modo, excedente”. (Marx, 2002: 733) Essa população ficou

conhecida como superpopulação relativa ou exército industrial de reserva.

Apesar de tratados, no jargão econômico, como “excluídos”, é preciso notar que

a existência desses desempregados e subempregados, de trabalhadores em espera, é não

apenas resultado da dinâmica da acumulação capitalista mas também seu requisito

objetivo. Isso porque, se essa economia (não coordenada) pode crescer inesperada e

rapidamente, é necessário ter trabalhadores à disposição e em condições de trabalhar

(inclusive no que se refere à qualificação), independentemente dos limites colocados

pelo efetivo incremento populacional:

A expansão súbita e intermitente da escala de produção é condição para sua

contração súbita; esta provoca novamente aquela, mas aquela é impossível

sem material humano disponível, sem aumento dos trabalhadores,

independentemente do crescimento absoluto da população. Esse aumento é

criado pelo simples processo de “liberar” continuamente parte dos

trabalhadores, com métodos que diminuem o número dos empregados em

relação à produção aumentada. (Marx, 2002: 736)

Se o “processo de liberar continuamente parte dos trabalhadores” descrito acima,

tão indispensável à produção de riqueza, é o mesmo responsável pela produção de

pobreza, infere-se que o pauperismo é tão indispensável à acumulação quanto a própria

produção de riqueza – como diz Marx, “faz parte das despesas extras da produção

capitalista”. (Marx, 2002: 748) E assim chegamos à verdadeira lei geral da acumulação

capitalista: quanto maior a riqueza, maior tem de ser a pobreza, “[...] acumulação de

riqueza num pólo é, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, de trabalho atormentante,

de escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral, no pólo oposto, constituído

pela classe cujo produto vira capital”.18

(Ibid: 749)

Para as finalidades deste trabalho, basta que nós recuperemos, da obra de Marx,

a descrição das tendências acima selecionadas para representar, no nível de abstração

18

Para outros estudos congruentes com a perspectiva aqui apresentada, que interpretam a pobreza como

produto inerente e necessário da dinâmica capitalista, ver Mészáros (2002), Cammack (2002), Medeiros

(2007) e Duayer e Medeiros (2003).

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29

em que nos encontramos, a dinâmica que caracteriza o desenvolvimento capitalista.19

É

claro que, como pretendemos demonstrar no próximo capítulo, essas são tendências que

dependem de condições históricas concretas para se manifestar e, conforme o lócus

específico, manifestam-se de maneira diferenciada. Mas antes de transitar para a análise

da dinâmica capitalista neste nível ainda mais baixo de abstração, seguimos na próxima

seção com algumas conclusões que podem ser extraídas do estudo das leis do

desenvolvimento capitalista, vistas ainda no plano “geral”.

Seção 2.2. Considerações sobre o desenvolvimento capitalista e suas contradições

A partir do exposto acima e do resgate de alguns elementos apresentados no

capítulo anterior, podemos fazer uma série de afirmações a respeito das leis de

desenvolvimento da sociedade capitalista. Em primeiro lugar, assim como no caso das

leis gerais de desenvolvimento da sociedade, as leis especificamente capitalistas são

não-teleológicas, ou seja, os resultados aqui apresentados não são necessariamente

previstos ou intencionados pelos sujeitos em suas ações. Para entender o que está sendo

dito, sem precisar ir muito longe, basta pensar que, se a combinação dessas leis produz

uma deterioração relativa nas condições de vida da maioria da população, esse é um

resultado indesejável que as pessoas, como regra, consideram lastimável, mesmo quando

não associam este resultado ao desenvolvimento capitalista.

Em segundo lugar, na medida em que “estão em jogo fatores adversos que

estorvam e anulam o efeito da lei geral”, (Marx, 1974: 266) também as leis do

desenvolvimento capitalista possuem o caráter tendencial. Assim, ainda que a expansão

da pobreza tenha sido apresentada como resultado intrínseco à dinâmica capitalista, essa

mesma dinâmica comporta, em seu interior, a possibilidade de expansão com absorção

acelerada de força de trabalho, o que cria condições favoráveis para a redução do

desemprego, aumentos salariais, melhoras nas condições de trabalho, conquistas sociais

etc. Se “as tendências gerais e necessárias do capital devem ser distinguidas de suas

formas de manifestação”, (Marx, 2002: 367) um período de acumulação

19

Ao lado das tendências aqui mencionadas, há outras leis que são fundamentais para reconstituir o modo

de funcionamento da economia capitalista, tal como concebido por Marx. É o caso, por exemplo, da

tendência à queda da taxa de lucro. Aqui nos concentramos, no entanto, em determinações que

caracterizam a natureza expansiva e estranhada da produção capitalista. Essa análise será, entretanto,

enriquecida, à medida que o grau de abstração for reduzido, no capítulo seguinte e principalmente no

terceiro apêndice.

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30

predominantemente extensiva pode, como comprovam alguns exemplos históricos,

interromper por determinado tempo a manifestação fenomênica da lei geral.20

Em terceiro lugar, tomando o conceito de desenvolvimento/progresso

apresentado também no primeiro capítulo, temos que reconhecer que, apesar dos

resultados nefastos decorrentes da dinâmica capitalista, esta mesma dinâmica representa

um progresso objetivo na história da humanidade. Ou seja, independentemente da forma

como os sujeitos interpretam e avaliam os resultados desse processo, “a crescente

socialidade da produção se manifesta não simplesmente como aumento dos produtos,

mas também como diminuição do trabalho socialmente necessário para fabricá-los”, e

isso representa um “traço objetivamente ontológico da tendência evolutiva interna ao

ser social”. (Lukács, 1979: 82) Ao conferir ao aumento das forças produtivas um

potencial ímpar, produzindo aumentos significativos de riqueza e de entrelaçamento

entre os povos – e demonstrar a existência objetiva desta dinâmica é um dos objetivos

de Marx –, amplia-se substancialmente a possibilidade de controle coletivo sobre a vida

social. O aumento da produtividade cria a base material indispensável para livrar, ao

menos em alguma medida, a humanidade da escravidão pelo trabalho. Acentua assim a

possibilidade de a humanidade afastar-se de sua “prisão” natural, do reino de suas

necessidades. (Marx, 1974: 941) Ao exasperar esta dinâmica progressiva, o capitalismo

cria e amplia as condições materiais de emancipação humana.

A análise não pode, no entanto, esgotar-se neste ponto, pois, ao mesmo tempo

em que cria e amplia as condições da emancipação, o capital obstrui continuamente, ele

mesmo, a realização plena dessa possibilidade. Isso porque, como indicado

anteriormente, por mais que contenha em si um “desenvolvimento no sentido de níveis

superiores”, a dinâmica capitalista envolve a “ativação de contradições de tipo cada vez

mais elevado, cada vez mais fundamental”. (Lukács, 2007: 239) Conforme sintetizado

por Marx na passagem abaixo:

A barreira efetiva da produção capitalista é o próprio capital: o capital e sua

autoexpansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da

produção; a produção existe para o capital, ao invés de os meios de produção

serem apenas meio de acelerar continuamente o desenvolvimento do

20

Os anos que vão do imediato pós-guerra até meados dos anos 1970, conhecidos como a “era de ouro do

capitalismo”, talvez nos ofereçam aqui o exemplo mais emblemático. Apesar dos significativos aumentos

de produtividade, assiste-se durante este período a uma diminuição do desemprego e melhoria nas

condições de vida da população, especialmente nos países capitalistas mais afortunados. (Hobsbawm,

1995: 253pp.) O fato de que mais trabalhadores estivessem empregados e em melhores condições não

significa, no entanto, que a subordinação da classe trabalhadora ao capital tenha diminuído. Ao contrário,

o fato de mais trabalhadores estarem submetidos à relação salarial significa que o domínio do capital

aumentou extensivamente, se revestindo apenas de “formas suportáveis”. (Marx, 2002: 720-721)

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31

processo vital para a sociedade dos produtores. Os limites intransponíveis em

que se podem mover a manutenção e a expansão do valor-capital, a qual se

baseia na expropriação e empobrecimento da grande massa dos produtores,

colidem constantemente com os métodos de produção que o capital tem de

empregar para atingir seu objetivo e que visam ao aumento ilimitado da

produção, à produção como fim em si mesma, ao desenvolvimento

incondicionado das forças produtivas sociais do trabalho. O meio –

desenvolvimento ilimitado das forças produtivas sociais – em caráter

permanente conflita com o objetivo limitado, a valorização do capital

existente. Por conseguinte, se o modo capitalista de produção é um meio

histórico para desenvolver a força produtiva social e criar o mercado mundial

apropriado, é ele ao mesmo tempo a contradição permanente entre essa tarefa

histórica e as relações sociais que lhe correspondem. (Marx, 1974: 288)

Apesar de não ser a única forma de expressar-se o caráter contraditório do

desenvolvimento capitalista, utilizamos a lei geral, mais uma vez, como ilustração. Ao

final da seção anterior, vimos que o desenvolvimento capitalista, tal como concebido

por Marx, envolve, simultaneamente, empobrecimento e enriquecimento, e que, embora

o trabalho social típico da sociedade capitalista suscite um avanço técnico e científico

potencialmente enriquecedor para todos os seres humanos, isso se dá às expensas do

empobrecimento de muitos. Por um lado, analisando a questão objetivamente, desde o

ponto de vista do funcionamento sistêmico, podemos observar que, se a riqueza no

capitalismo tem caráter mercantil e, por isso, carece de realização, é contraditório que

esse mesmo sistema prive permanentemente uma parte da população da capacidade de

consumo. (Marx, 2011: 343-344) Ademais, a massa de pobres e miseráveis representa

uma ameaça à estabilidade social e política, ao menos em potencial. Por outro lado,

partindo do prisma da humanidade, da preservação da vida, da melhora e

desenvolvimento de nossa individualidade, também é contraditório que haja pobreza

numa sociedade que cria as condições materiais para eliminá-la.

No caso específico do modo de produção capitalista, essa contradição foi

reconhecida, e corretamente tratada, por diversos autores, de maneiras variadas.21

Em

comum entre eles, identificamos o entendimento de que, na análise de Marx, o

desenvolvimento não pode ser compreendido de forma unilateral, “nem como progresso

do conhecimento e da felicidade, ou como „progresso‟ da dominação e da destruição”.

(Postone, 1993: 35-36) Ao contrário, é preciso reconhecer que, no capitalismo, ao

mesmo tempo em que “a capacidade e o conhecimento da humanidade são acrescidos

enormemente”, isso ocorre “de uma forma alienada que oprime as pessoas e tende a

destruir a natureza”. (Ibid: 30)

21

Conferir, por exemplo, Lukács (2007), Hobsbawm (2009), Mészaros (2002: 39), Cammack (2002:

197), Postone (1993), Medeiros (2007) e Duayer e Medeiros (2003).

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32

Esse caráter contraditório (dialético) do desenvolvimento capitalista é

certamente um resultado da forma peculiar de articulação do trabalho nesta sociedade.

Como Marx revela ainda nos primeiros capítulos de O Capital, ao contrário de

produção diretamente social, os trabalhos privados, independentes uns dos outros,

somente atuam como parte constitutiva do trabalho social por meio da troca. Assim,

embora resulte da interação entre as ações humanas, o trabalho articula-se socialmente

constituindo uma dinâmica semi-autônoma com relação a esses agires e às suas

condições objetivas e subjetivas. Apesar de não ser essa a leitura convencional, muitos

marxistas julgam, em nosso juízo acertadamente, que o grande mérito de Marx foi

justamente ter reconhecido – e posto em primeiro plano na sua principal obra – esse

caráter estranhado ou alienado do trabalho que domina a sociedade capitalista.22

Em uma sociedade desse tipo, na qual os produtos do trabalho assumem a forma

mercadoria, o esforço de trabalho aparece, em primeiro lugar, como uma propriedade

das coisas, como valor. Além disso, o trabalho humano, materializado como

propriedade das mercadorias, autonomiza-se e subjuga seus produtores. E, na medida

em que as relações sociais entre as pessoas aparecem como relações entre coisas, o

conjunto das relações humanas aparece aos sujeitos como algo externo a eles, que os

constrange e domina. Daí a centralidade da categoria valor para a compreensão dessa

formação social. De acordo com Duayer,

A categoria valor nada mais é [...] do que a expressão social do fato de que

nesta sociedade os sujeitos são reduzidos a trabalho. O trabalho, se não é a

única forma de socialização, é a fundamental, básica, incondicional, da qual

todas as outras dependem, e sem a qual os sujeitos perdem não só a sua

sociabilidade, mas também a sua humanidade e, no limite, sua existência

física. O valor, na teoria de Marx, é esse poder exclusivo da espécie humana,

esse notável poder social de associação, o trabalho social, que, emergindo na

história nas circunstâncias em que o fez – e que poderiam ter sido outras,

quem sabe – constitui-se em poder que escapa ao controle dos sujeitos e,

mais do que isso, os subordina à sua lógica. E por isso tem de se apresentar

como valor, como poder das coisas, em lugar de força diretamente social dos

sujeitos. (Duayer, 2008: 16)

Em suma, essa sociedade, mesmo sendo resultado da articulação espontânea

entre atos teleológicos, possui uma dinâmica que escapa ao controle de, enfatize-se,

todos os sujeitos. Como Marx adverte ainda no prefácio de O Capital, os capitalistas

também se dobram à lógica de valorização, sendo impelidos, na condição de

representantes do capital, a buscar aumentos de produtividade. (Marx, 2002: 18) Por

22

Como afirma Postone (1993: 30): “[...] uma marca central do capitalismo é que as pessoas realmente

não controlam sua própria atividade produtiva ou o que elas produzem, mas são, em última instância,

dominadas pelos resultados desta atividade. Esta forma de dominação é expressa como uma contradição

entre indivíduos e sociedade e constituída como uma estrutura abstrata”.

Page 44: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

33

mais curioso que pareça, também não controlam as relações sociais em que

comparecem como representação subjetiva de uma categoria objetiva, o capital.23

Para encerrar o argumento, gostaríamos de enfatizar uma importante

característica das leis até o momento apresentadas, fundamental para a compreensão da

crítica que se pretende fazer às teorias do desenvolvimento. Como mencionado na seção

de encerramento do capítulo primeiro, na medida em que são sociais, as leis de que

tratamos aqui não são totalmente independentes da atividade humana e não podem, ao

mesmo tempo, ser diretamente criadas por ela. Assim, por aparecerem como

pressuposto da sua atividade, na forma de estruturas que condicionam a sua prática, os

sujeitos percebem essas leis como elementos da natureza, e as tomam, na consciência,

como condições naturais do seu agir. Ao assim fazê-lo, assumem necessariamente uma

postura conservadora diante do mundo, confirmando e reproduzindo na sua prática

corrente as leis pelas quais são dominados.

Essa não é, no entanto, uma exclusividade das formas de consciência cotidianas:

reflete-se também em formas científicas de consciência. Isso porque, como vimos

também no capítulo anterior, analisar cientificamente determinado objeto significa

seguir caminho oposto ao desenvolvimento histórico real: “começa-se depois do fato

consumado, quando já estão concluídos os resultados do processo de desenvolvimento”.

(Marx, 2002: 97) Quando a ciência econômica se empenha em apreender o sentido das

“formas que convertem os produtos do trabalho em mercadorias”, estas já possuem a

consistência de “formas naturais da vida social”, transistóricas e imutáveis. (Ibid)

Assim, “fórmulas que pertencem, claramente, a uma formação social em que o

processo de produção domina o homem, e não o homem o processo de produção, são

consideradas pela consciência burguesa uma necessidade tão natural quanto o próprio

trabalho produtivo”. (Ibid: 102-103)

Quando tratarmos especificamente das teorias do desenvolvimento ao longo da

próxima parte do trabalho, veremos que, ainda que sejam de diversos tipos e incorporem

23

Como afirma Mészáros (2002: 96), “O capital não é simplesmente uma „entidade material‟ [...] mas é,

em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. [...] uma estrutura

„totalizadora‟ de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar”. E segue: “O

preço a ser pago por esse incomensurável dinamismo totalizador é, paradoxalmente, a perda de controle

sobre os processos de tomada de decisão. Isto não se aplica apenas aos trabalhadores [...], mas até aos

capitalistas mais ricos, pois, não importa quantas ações controladoras eles possuam na companhia ou nas

companhias de que legalmente são donos como indivíduos particulares, seu poder de controle no conjunto

do sistema do capital é absolutamente insignificante. Eles têm de obedecer aos imperativos objetivos de

todo o sistema, exatamente como todos os outros, ou sofrer as consequências de perder o negócio”. (Ibid:

97-98)

Page 45: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

34

de maneira diferenciada os fundamentos teóricos que antecedem o nascimento desse

ramo específico, as teorias do desenvolvimento compartilham essa visão de mundo.

Como esperamos demonstrar, mesmo aquelas teorias que por vezes reconhecem o

caráter histórico, e portanto passageiro, do modo de produção capitalista, tomam essa

forma de sociabilidade, e as possibilidades postas por ela, como pressuposto de suas

formulações.

Antes de realizar a inspeção das teorias do desenvolvimento, no entanto, faz-se

necessário analisar o funcionamento da dinâmica capitalista em um nível ainda mais

baixo de abstração. Por isso, dedicamos o próximo capítulo à apresentação de alguns

exemplos históricos que nos permitam mostrar como, além das tendências gerais, o

desenvolvimento capitalista é marcado por particularidades que influenciam a forma

concreta de manifestação dessas leis gerais (ainda que, no fundo, as características mais

gerais sejam mantidas).

Page 46: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

35

Apêndice II. Desenvolvimento capitalista e mercado mundial

Dedicamos este segundo apêndice da Parte I ao tratamento de uma importante

tendência da dinâmica capitalista, mencionada ao longo dos primeiros capítulos, mas

não suficientemente tratada: a tendência à formação do mercado mundial. Ainda que

envolva uma série de temáticas e suscite discussões que fogem ao escopo do presente

trabalho, julgamos necessário resgatá-la por tratar-se de uma das tendências que

distinguem de modo mais universal a produção capitalista e por dela depender a própria

operação da dinâmica capitalista em nível global. Como pretendemos demonstrar de

modo bastante sucinto, essa tendência decorre da (e contribui para a) expansão

incessante de riqueza (característica da produção capitalista) e pode ser apresentada com

recurso a categorias simples, também enunciadas por Marx no Livro I de O Capital.

Para cumprir com esse objetivo, é fundamental reconhecer, em primeiro lugar,

que as trocas e, portanto, o mercado (lócus no qual se realiza a circulação – compra e

venda – de mercadorias) são pressuposto do capital e do capitalismo, tanto em termos

históricos, quanto (e por consequência) em termos teórico-formais. (Marx, 2002: 177)

Ao contrário do que afirmam os economistas políticos, no entanto, as trocas (e a

consequente transformação do produto do trabalho em mercadoria) também são

resultado de um processo histórico, que certamente envolve o contato entre sociedades

não-mercantis, pois a troca não poderia emergir na prática social de indivíduos imersos

em relações de produção nas quais o produto não tem a troca como meio de

distribuição. Apenas posteriormente, com o desenvolvimento das relações de comércio,

as trocas penetram no seio das comunidades e se transformam na forma dominante de

articulação entre os produtores. Por isso, podemos intuir que o comércio de longa

distância põe o comércio local e o precede historicamente.24

Do ponto de vista analítico é possível mostrar ainda que a simples articulação de

unidades produtivas pela troca coloca a necessidade da produção de riqueza material e

24

Não por acaso, as formas primitivas (ou, para usar a expressão de Marx, “antediluvianas”) de capital

são justamente aquelas que surgem na esfera da circulação, pertencem a essa esfera e nela permanecem

confinadas: capital de comércio de mercadoria (capital mercantil) e capital de comércio de dinheiro

(capital usurário). Em capítulo dedicado a “observações históricas sobre o capital mercantil”, forma mais

antiga de existência do capital, Marx (1974: 372pp.) mostra justamente (i) como este atua, nos seus

primórdios, mediando a relação entre modos de produção diversos, voltados essencialmente a produção

de valores-de-uso, (ii) como contribui para que a produção seja crescentemente orientada para a troca e

(iii) como o seu desenvolvimento é pressuposto necessário (ainda que não suficiente) da emergência e

consolidação do modo capitalista de produção.

Page 47: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

36

valor em escala crescente. Isso porque a participação na riqueza social a que se tem

acesso é uma alíquota que depende, ao menos potencialmente, da magnitude da

produção: a porção de riqueza que se pode retirar do mercado é sempre proporcional à

que nele se lança, e quanto maior a parcela da riqueza que se tem em mãos, maiores são

as chances de acessar riqueza social. E uma vez estabelecida essa dinâmica, cada

produtor tem necessariamente de buscar uma produção crescente, sob pena de ver cair

sua parcela da riqueza social (i.e., de empobrecer relativamente à riqueza total e aos

outros produtores). (Duayer e Medeiros, 2008) Esse impulso ao aumento da riqueza,

que consiste em uma das determinações mais importantes da dinâmica capitalista e já

pode ser percebido (embora não devidamente caracterizado, claro) exclusivamente a

partir da análise da esfera da circulação e do caráter mercantil da sociedade, ganha novo

ímpeto com o ingresso do capital na esfera da produção.

Nesse sentido, é preciso reconhecer, em segundo lugar, que a colonização da

esfera produtiva pelo capital e o consequente advento da produção capitalista

representam um salto qualitativo, tanto em termos do desenvolvimento das forças

produtivas, quanto do desenvolvimento das relações mercantis.25

Se capital é valor que

se movimenta em busca de sua valorização, valor que procura acrescer ao seu corpo

mais-valor, e o capitalismo é a sociedade que possui esse impulso como determinação

geral (produção moldada desde a raiz ao imperativo do crescimento da riqueza na dupla

forma que ela adquire quando destinada à troca), não fica difícil perceber como aquilo

que é inicialmente um pressuposto também se põe como resultado do próprio

desenvolvimento das relações de produção capitalistas.

Partindo, portanto, do conceito de capital, observamos, por um lado, que

mercado / comércio / circulação / relações de troca / troca são pressupostos, pois ainda

que a extração de mais-valia (trabalho excedente) ocorra na esfera da produção, ela não

dispensa, em nenhum sentido, a esfera da circulação. (Marx, 2002: 196) Isso porque, em

primeiro lugar, é na esfera da circulação que se encontram os elementos materiais

(meios de produção e força de trabalho) necessários à produção de mais-valor; e, em

segundo lugar, é na esfera da circulação que o valor produzido realiza-se como valor

25

Tomando como referência a produção capitalista no lócus clássico de sua emergência (a Inglaterra),

observamos, por exemplo, o papel desempenhado pelo capital como elemento socializador de uma

produção fracionada no campo (produção camponesa) e na cidade (produção artesanal). Tendo em vista

que a produção fracionada é limitada, por natureza, e incompatível com o impulso que emerge da simples

articulação pela troca, essa socialização se mostra indispensável ao aumento de produtividade e contribui,

em grande medida, para tornar a produção compatível com o aumento de riqueza. Sobre o tema, conferir

Marx (2002: 876; 2011: 485pp.).

Page 48: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

37

que se conserva e se expande. De acordo com os termos utilizados por Marx (2011:

328) nos rascunhos que antecedem a redação de O Capital, é como se o capital, no

momento em que deixa a forma dinheiro e assume a forma mercadoria, passasse por um

processo de desvalorização: caso o circuito interrompa-se sem a venda do produto final

(transformação de mercadoria em dinheiro), não apenas valor novo deixa de ser

acrescido, mas também se perde com isso o valor original.

Por outro lado, a circulação é posta pelo capital como resultado, sempre de modo

ampliado, pois a produção de valor em escala crescente também exige circulação em

escala crescente, fazendo com que a tendência do capital à ampliação do trabalho

excedente venha acompanhada da tendência à ampliação dos mercados. Como

explicitado por Marx, novamente, “o modo capitalista de produção supõe produção em

grande escala e necessariamente venda em grande escala [de tal forma que] o comércio

de mercadorias [...] é condição do desenvolvimento da produção capitalista e com ela se

desenvolve cada vez mais”.26

(Marx, 2000: 125)

Sendo, portanto, dotado de uma tendência à expansão imanente, o capital precisa

incorporar áreas cada vez mais extensas ao seu limite de operação; pela sua própria

natureza, precisa ir além de qualquer barreira espacial, criar condições objetivas para

ampliação das trocas e conquistar o mundo como seu mercado. (Marx, 2011: 445) E faz

isso, em parte, por meio do desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte,

realizando o que Marx chamou de aniquilação do espaço pelo tempo. Nas palavras do

autor (Ibid): “Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o

mercado em que circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior

expansão especial do mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo”.27

Nesse processo, o contato comercial de regiões nas quais o capital comanda a

produção com regiões onde ele ainda não havia penetrado abre o caminho para a

subordinação dessas últimas às primeiras. Essa expropriação dos modos de produção

pré-capitalistas ocorre, fundamentalmente, devido à maior capacidade produtiva do

capital e à operação de suas leis imanentes, e mostra como, embora não dispense outros

métodos (extraeconômicos) de subordinação, o capital contém uma arma própria,

muitíssimo potente, típica da expansão capitalista e da competição mercantil: o preço

(i.e., a maior produtividade). Na medida, portanto, em que o desenvolvimento do

26

Ver também Marx (2011: 332-333; 1974: 272; 384). 27

Um tratamento minucioso da tendência à aniquilação do espaço pelo tempo e da discussão relacionada

à produção capitalista do espaço pode ser encontrado nos trabalhos de David Harvey (1990, 2006).

Page 49: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

38

comércio (e do capital mercantil) cria sobre esses modos de produção a necessidade de

aumento das forças produtivas e estimula a ampliação da produção orientada para a

troca (e pelo valor-de-troca), desagrega as antigas relações sociais e “exerce sempre

ação mais ou menos dissolvente sobre as organizações anteriores da produção”. (Marx,

1974: 382)

Em suma, mesmo que ainda hoje se discuta o efetivo alcance da produção

capitalista no mundo, não há dúvidas de que, “pela primeira vez na história, o

capitalismo cria uma efetiva economia mundial, a ligação econômica de todas as

comunidades humanas entre si”. (Lukács, 1979: 148) De fato, não é preciso ir muito

longe para perceber como o planeta “outrora povoado por inúmeras pequenas tribos,

que frequentemente não sabiam quase nada uma da outra, ainda que fossem vizinhas”,

hoje caminha para uma unidade econômica, “uma plena e completa interdependência

mesmo entre os povos mais afastados entre si”. (Ibid: 147) Mais uma vez, essa ligação e

interdependência entre os povos representa um desenvolvimento/progresso objetivo e

amplia as possibilidades da emancipação humana (que apenas sob o modo de produção

capitalista adquire consciência genérica). Como já havia sido dito em outro momento,

no entanto, esse desenvolvimento vem acompanhado da ativação de contradições de

tipo cada vez mais elevado e/ou operação das contradições inerentes ao modo capitalista

de produção em escala ampliada.

Page 50: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

39

Capítulo 3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades

No capítulo anterior, apresentamos algumas das principais tendências que

caracterizam o desenvolvimento do modo de produção capitalista, tomando como base a

descrição feita por Marx, especialmente em O Capital. Considerando os objetivos do

presente trabalho e a impossibilidade de recompor todos os passos do argumento

elaborado pelo autor, dedicamos especial atenção àquelas tendências que, quando

articuladas, determinam o caráter necessariamente expansivo dessa formação social.

Além disso, esperamos ter demonstrado como essa dinâmica subordina crescentemente

os demais momentos da vida social e envolve uma série de contradições (como, por

exemplo, aquela explicitada no enunciado da lei geral da acumulação capitalista).

Ainda que essa análise situe-se em um nível relativamente elevado de abstração,

os elementos de que dispomos até o presente momento já permitem perceber uma

diferença substantiva entre a perspectiva aqui defendida e aquela propalada pelas teorias

do desenvolvimento. Ao proferir sentenças a respeito do desenvolvimento capitalista,

fazemos referência à sua dinâmica objetiva de funcionamento, às tendências que

regulam sua transformação ao longo do tempo, seu decurso histórico causalmente

determinado. Ou seja, ao contrário do que normalmente se afirma, o desenvolvimento

capitalista não é entendido aqui como a passagem de um estágio de privação material

(países pobres, periféricos, terceiro mundo) para o estado de pletora material (países

ricos, centrais, primeiro mundo), como quer que se meça essa transição (pelo produto

per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Falar sobre o

desenvolvimento da produção capitalista significa falar sobre a operação de suas leis em

escala global. O fato de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais apenas

comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalista, em lugar de negá-la.

É claro que, como indicado anteriormente, essas tendências manifestam-se de

maneiras distintas em condições históricas específicas, o que explicaria o fato, por

exemplo, de que o capitalismo, ao instalar-se em localidades distintas, desenvolve-se de

maneira diferenciada. Como sustentado nos capítulos precedentes, isso não exclui a

possibilidade de formular uma teoria geral do desenvolvimento da sociedade,

abstratamente considerada. Mas, na medida em que variam as condições históricas

específicas, as características nacionais, regionais, locais etc., tendências particulares se

formam e essas particularidades têm de ser levadas em conta quando se trata de analisar

Page 51: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

40

o desenvolvimento dessa formação social. Mais do que isso, essas particularidades

precisam ser levadas em consideração quando se trata de analisar criticamente as formas

de consciência produzidas sobre esse desenvolvimento no interior da ciência

econômica, pois, se as teorias sobre desenvolvimento remetem a algum contexto

particular, devem ser examinadas a partir da relação com seu referente histórico.

Nesse sentido, dedicamos este capítulo de encerramento da Parte I à

demonstração de que, além das tendências gerais indicadas nos capítulos anteriores, a

produção capitalista é caracterizada por tendências particulares, circunscritas

historicamente a condições específicas de reprodução sistêmica, que permitem delimitar

fases de seu desenvolvimento. Não se trata, com isso, de investigar a pertinência das

alegadas fases, mas apenas mostrar, através de alguns exemplos, que o desenvolvimento

capitalista é marcado por particularidades e que essas particularidades suscitam

entendimentos teóricos.

A título de ilustração, começaremos tratando aqui de um período no qual o

desenvolvimento capitalista foi claramente atravessado por determinações particulares:

o quarto de século posterior a Segunda Guerra Mundial, mais conhecido como a “Era

de Ouro” do capitalismo. É claro que não se pretende com isso recompor

detalhadamente todas as características desta época ou retratar a forma específica como

suas principais tendências atuam sobre as diferentes nações. Para os propósitos do

presente trabalho, basta que sejam resgatadas especialmente aquelas particularidades

relacionadas à manifestação fenomênica das leis gerais apresentadas no capítulo

anterior. Feito isso, dedicamos a segunda seção do capítulo ao contraste entre a “Era de

Ouro” e o período posterior à crise dos anos 1970.

Seção 3.1. A assim chamada “Era de Ouro do capitalismo”

Muitos analistas, de diversas procedências teóricas, em diversos campos do

pensamento, científico ou não, reconheceram a peculiaridade do desenvolvimento

capitalista nas aproximadamente três décadas que sucederam o pós-guerra. E a

característica desse período que imediatamente salta aos olhos, responsável em grande

medida pela invocação de um metal tão sublime como o ouro, é, sem dúvida, a forma

como a economia capitalista mundial passava por um período ímpar de expansão e

prosperidade. Como ilustram os dados abaixo:

Page 52: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

41

Entre 1950 e 1975 a renda per capita nos países em desenvolvimento teve

um aumento médio de 3% ao ano, acelerando-se de 2% na década de 1950

para 3,4% na década de 1960. Essa taxa de crescimento foi historicamente

sem precedentes nesses países e ultrapassou a que fora alcançada pelos países

desenvolvidos em sua fase de industrialização (Banco Mundial, 1978). Nos

próprios países desenvolvidos [...] o PIB e o PIB per capita cresceram quase

duas vezes mais depressa do que em qualquer período anterior desde 1820. A

produtividade do trabalho aumentou duas vezes mais depressa do que em

qualquer época, e houve uma aceleração extraordinária na taxa de

crescimento do estoque de capital. O aumento desse estoque representou uma

explosão de investimentos de duração e vigor sem precedentes históricos.

(Glyn et alli, 1990: 41-42)

Diante desses resultados, alguns chegaram a acreditar que o capitalismo havia

finalmente entrado em uma nova era de expansão ininterrupta. Como ressalta o

historiador Eric Hobsbawm (1995: 262) em sua consagrada análise sobre o século XX:

“todos os problemas que perseguiam o capitalismo em sua era da catástrofe pareceram

dissolver-se e desaparecer” e vozes mais otimistas “começaram a supor que, de algum

modo, tudo na economia iria para a frente e para o alto eternamente”. (Ibid: 254)

Segundo as previsões feitas por um destacado político britânico em 1956, tudo levava a

crer que, em cerca de cinquenta anos, a economia inglesa teria triplicado sua produção

nacional. (Crosland apud Hobsbawm, 1995: 263) Ou ainda, segundo relatório da ONU

publicado em 1972: “Não há motivo especial para duvidar que as tendências subjacentes

de crescimento no início e meados da década de 1970 continuarão em grande parte

como nas de 1960”. (Glyn et alli, 1990: 39) E sobre esta crença na possibilidade de uma

expansão contínua e sustentada, David Landes (1994: 554) declara: “essa é uma

expressão de fé, revestida da aparência de uma previsão. Mas é esse tipo de fé que ajuda

a fazer com que as previsões se realizem”.

As afirmações sobre a natureza deste período não são, no entanto, de todo

consensuais. Giovanni Arrighi (1996: 307), por exemplo, faz a seguinte avaliação: “Não

há dúvida de que, nessa época, o ritmo de expansão da economia mundial capitalista

como um todo foi excepcional, segundo os padrões históricos. Se foi também a melhor

de todas as épocas para o capitalismo histórico, de modo a justificar sua denominação

de „a idade de ouro do capitalismo‟, é uma outra questão”. Mais do que isso, em poucos

anos aquelas grandes expectativas tornaram-se verdadeiras frustrações, pois, fosse ou

não a melhor de todas as épocas, por detrás da nova roupagem o capitalismo ainda

continuava sendo o mesmo, regulado pelas mesmas determinações gerais, que

“necessariamente implicam crises, exploração, pobreza, desemprego, destruição do

meio ambiente e da natureza, entre tantas formas destrutivas”. (Antunes, 2003: 34)

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42

Conforme se entende aqui, é precisamente essa convicção, a certeza de que se

trata ainda do modo de produção capitalista, que permite observar esse período a partir

da operação das leis gerais identificadas anteriormente e, ao mesmo tempo, enxergar a

existência de particularidades. Dizer que não há qualquer diferença, como afirma David

Harvey, é o mesmo que

[...] dar ao capitalismo um tratamento anistórico, considerando-o um modo de

produção desprovido de dinâmica, quando todas as evidências (incluindo-se

aí as explicitamente arroladas por Marx) apontam para o fato de ser o

capitalismo uma força constantemente revolucionária da história mundial,

uma força que reformula de maneira perpétua o mundo, criando

configurações novas e, com frequência, sobremodo inesperadas. (Harvey,

2005: 176)

De fato, o modo de produção capitalista experimenta substantivas reorientações

no período posterior à Segunda Guerra Mundial, cujas linhas gerais se definem

aproximadamente entre 1929 e 1948. Essas reorientações que, em seu conjunto, ficaram

conhecidas como fordista-keynesianas, incluem mudanças que vão da estrutura

produtiva ao plano político-ideológico e, quando articuladas, produzem uma curiosa

combinação de crescimento da produção, crescimento da capacidade de consumo da

classe trabalhadora e manutenção de lucros altos, influenciando decisivamente a

manifestação fenomênica da lei geral da acumulação capitalista.28

Considerando os objetivos dessa seção, organizaremos nossa exposição em torno

desses dois eixos fundamentais, começando pelas mudanças no plano político-

ideológico e seguindo para as mudanças ocorridas na estrutura produtiva. Esperamos

com isso poder finalmente esclarecer os impactos dessas reformas sobre as tendências

gerais do desenvolvimento capitalista.

Sobre as mudanças no plano político-ideológico, pode-se afirmar que o primeiro

aspecto digno de nota está relacionado à substantiva perda de espaço do liberalismo

econômico e ascensão do ideário intervencionista. Essa ruptura com o liberalismo, e

posterior consolidação de um “novo padrão de gerenciamento da sociedade do capital”,

no entanto, não pode ser compreendida sem que se faça uma referência àquela que

talvez tenha sido a maior crise do modo de produção capitalista: a Grande Depressão

dos entreguerras.29

Não pretendemos, e nem mesmo seria possível, recompor o conjunto

de fatores que conduziram à crise ou apresentá-la em todos os seus detalhes, mas apenas

28

Esse mesmo argumento pode ser visto, ainda que com algumas nuanças, em Harvey (2005: 117pp.),

Bihr (1998: 35pp.) e Hobsbawm (1995: 253pp.), por exemplo. 29

Hobsbawm (1995: 99) chega a caracterizar este como “[...] o mais trágico episódio da história do

capitalismo”. Como afirma o autor: “[...] entre as guerras, a economia mundial capitalista parecia

desmoronar e ninguém sabia exatamente como se poderia recuperá-la”. (Ibid: 91)

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43

chamar atenção para a sua profundidade e “sua incrível capacidade de abalar os valores,

crenças e estruturas sociais do século XIX de forma praticamente instantânea e tão

intensamente a ponto de torná-los todos uma lembrança ameaçadora e indesejável por

cerca de cinquenta anos”. (Medeiros, 2007: 154)

Observando as estatísticas do período, percebemos que, apesar do indiscutível

impacto sobre a produção e sobre os “homens de negócios”, a crise tem uma capacidade

particular de afetar aqueles que, por pressuposto, não possuem o controle sobre os

meios de produção: a classe trabalhadora. Para estes, ou seja, para a maior parcela da

população, o principal e primeiro significado da Grande Depressão foi o desemprego

em massa, “em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais tempo do que

qualquer um já experimentara”. (Hobsbawm, 1995: 97) Como mostram os assustadores

dados sobre o comportamento do emprego: “no pior período da Depressão (1932-3),

22% a 23% da força de trabalho britânica e belga, 24% da sueca, 27% da americana,

29% da austríaca, 31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa e nada menos que 44% da

alemã não tinha emprego. [...] Não houvera nada semelhante a essa catástrofe

econômica na vida dos trabalhadores até onde qualquer um pudesse lembrar”. (Ibid)

No que diz respeito especificamente ao papel desempenhado pela crise no

descrédito sofrido pela ideologia liberal, Hobsbawm (1995: 99) sintetiza em uma única

frase: “a Grande Depressão destruiu o liberalismo econômico por meio século” e isso se

deve a pelo menos dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, depois de certo

tempo já não havia mais dúvidas de que a Grande Depressão foi em parte resultado do

fracasso das políticas de livre mercado. Voltaremos a esse argumento mais adiante,

ainda nessa seção. Por ora, basta ressaltar que, independentemente do grau de

responsabilidade sobre a crise, a aplicação do receituário tipicamente liberal também

não se mostrou capaz de oferecer uma saída à depressão.30

Em segundo lugar, como já havia sido mencionado no capítulo anterior, é

preciso lembrar que o desemprego em larga escala, e o consequente aumento da

quantidade de pobres e miseráveis, representa uma ameaça à estabilidade social e

política. Por um lado, havia a possibilidade de radicalização à direita, cujo exemplo

mais emblemático talvez fosse a Alemanha nazista, que conseguiu superar a Grande

30

Como propõe Hobsbawm (1995: 106-107): “Até onde se podia confiar nos economistas, por mais

brilhantes que fossem, quando demonstravam, com grande lucidez, que a Depressão em que eles mesmos

viviam não podia acontecer numa sociedade de livre mercado propriamente conduzida, pois (segundo

uma lei econômica com o nome de um francês do início do século XIX) não era possível nenhuma

superprodução que logo não se corrigisse?”

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44

Depressão de maneira mais rápida e mais bem-sucedida que qualquer outro país. Por

outro lado, havia a possibilidade de radicalização à esquerda: “afinal, as previsões do

próprio Marx pareciam estar concretizando-se [...] e, de maneira ainda mais

impressionante, a URSS parecia imune à catástrofe”.31

(Ibid: 111) Por fim, é preciso

lembrar que o relativo sucesso da resposta à crise alcançado nesses dois modelos

alternativos de sociedade estava ancorado no planejamento e na aberta intervenção do

Estado na economia, contribuindo, também por esse motivo, para o descrédito do

liberalismo e a crença na virtude do planejamento.

Assim, fosse para afastar o perigo de retorno à grande depressão, ou para conter

o avanço do comunismo ou do nazifacismo, consolidava-se a convicção de que um

retorno ao laissez-faire estava fora de questão. Como ressalta Hobsbawm:

É um engano supor que as pessoas jamais aprendem com a história. A

experiência do entreguerras e, sobretudo, a Grande Depressão tinham sido tão

catastróficas que ninguém podia sonhar [...] em retornar à época anterior [...].

E se a memória econômica da década de 1930 não fosse o bastante para

aguçar seu apetite por reformar o capitalismo, os riscos políticos de não fazê-

lo eram patentes para todos os que acabavam de combater a Alemanha de

Hitler, filha da Grande Depressão, e enfrentavam a perspectiva do

comunismo e do poder soviético avançando para oeste sobre as ruínas de

economias capitalistas que não funcionavam. (Hobsbawm, 1995: 266)

É nesse contexto que, com base em argumentos tanto econômicos quanto

políticos, o mercado livre é substituído pela maior intervenção do Estado na economia.

A consequência disso, na prática, é a emergência de um “capitalismo reformado”, tanto

no âmbito nacional, quanto internacional, com o propósito central de manter o

crescimento, o pleno emprego, evitar flutuações bruscas e minimizar as incertezas

inerentes ao funcionamento dos diversos mercados.

No plano internacional, a regulação do capitalismo visava basicamente

estabelecer uma nova ordem mundial que evitasse as fortes instabilidades econômicas

ocorridas no período precedente, promovendo um crescimento controlado do comércio

internacional. Os termos dessa nova ordem supranacional, estabelecidos, em linhas

gerais, na conferência de Bretton Woods (1944), eram basicamente os seguintes: (i)

criação do padrão dólar-ouro, que transforma a moeda norte-americana em moeda de

31

Ainda sobre o desempenho da URSS durante esse período, afirma Hobsbawm (1995: 100): “O trauma

da Grande Depressão foi realçado pelo fato de que um país que rompera clamorosamente com o

capitalismo pareceu imune a ela: a União Soviética. Enquanto o resto do mundo, ou pelo menos o

capitalismo liberal ocidental, estagnava, a URSS entrava numa industrialização ultra-rápida e maciça sob

seus novos Planos Quinquenais. De 1929 a 1940, a produção industrial soviética triplicou, no mínimo dos

mínimos. Subiu de 5% dos produtos manufaturados do mundo em 1929 para 18% em 1938, enquanto no

mesmo período a fatia conjunta dos EUA, Grã-Bretanha e França caía de 59% para 52% do total do

mundo. E mais, não havia desemprego”.

Page 56: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

45

curso internacional e conversível em ouro; (ii) instituição de um regime de câmbios

fixos atrelados ao padrão dólar; e (iii) a criação de organismos multilaterais como o

Banco Mundial (originalmente chamado Banco Internacional para a Reconstrução e

Desenvolvimento) e o Fundo Monetário Internacional. (Coggiola, 2002: 371)

No âmbito nacional, testemunha-se a emergência e a disseminação dos primeiros

Estados de Bem-estar Social, preocupados fundamentalmente com a administração

keynesiana da demanda agregada, provisão de serviços públicos essenciais (como

educação, saúde, transportes etc.) e universalização da seguridade social (garantindo ao

cidadão benefícios como aposentadoria, auxílio desemprego, entre outros).32

O

resultado, como confirmam diversos analistas, foi a “incomum combinação keynesiana

de crescimento econômico numa economia capitalista baseada no consumo de massa de

uma força de trabalho plenamente empregada e cada vez mais bem paga e protegida”.

(Hobsbawm, 1995: 276)

Sobre as mudanças na estrutura produtiva, observamos que o pós-guerra foi

marcado pela disseminação de dois princípios gerais de organização do trabalho,

princípios esses que começaram a ser introduzidos ainda no final do século XIX e início

do século XX. O primeiro deles, conhecido como taylorista, baseia-se na nítida

separação entre “as tarefas de concepção e execução, acompanhada de uma parcelização

das últimas, devendo cada operário, em última análise, executar apenas alguns gestos

elementares”. (Bihr, 1998: 39) O segundo, conhecido como fordista, define-se

essencialmente pela mecanização do processo de trabalho, ou seja, pela criação de “um

verdadeiro sistema de máquinas que garante a unidade (a recomposição) do processo de

trabalho parcelado, ditando a cada operário seus gestos e sua cadência (sendo sempre a

cadeia de montagem a forma extrema desse princípio)”. (Ibid) A combinação desses

dois princípios acentua as seguintes tendências: (i) a perda do controle direto sobre o

processo de produção pelo trabalhador e (ii) aumento da intensidade e produtividade do

trabalho.33

32

Apesar de trabalharmos aqui com uma definição bastante ampla de Estado de Bem-estar, existem

inúmeras controvérsias a respeito de sua origem, periodização e principais características. Para uma

exposição detalhada das diferentes interpretações, conferir Gough (1989) e Esping-Andersen (1990). 33

Uma caracterização semelhante pode ser vista em Antunes (2006: 25), que entende o fordismo,

fundamentalmente, “como a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao

longo deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da

linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo

cronômetro taylorista e da produção em série fordista; pela existência do trabalho parcelar e pela

fragmentação das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela

Page 57: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

46

Como visto no capítulo anterior, essas seriam características de um período de

acumulação predominantemente intensiva, no qual diminui a participação relativa do

capital variável na totalidade do capital. Esse mecanismo seria ainda responsável pela

produção de uma superpopulação relativa e, ao privar parte da população da capacidade

de consumo, salienta o caráter contraditório da dinâmica capitalista. Para muitos

autores, um dos elementos importantes para explicar a eclosão da crise em 1929 seria

justamente a inexistência de um aumento da demanda compatível com a expansão da

produção durante a década de 1920. Segundo Bihr (1998: 41), nessa primeira onda de

expansão dos métodos tayloristas e fordistas, a produtividade do trabalho cresceu, nas

economias capitalistas ocidentais, em média 6% ao ano, os lucros chegaram a atingir

picos históricos de 35%, enquanto o crescimento médio dos salários não ultrapassou os

2% ao ano. Ou seja:

[...] o que acontecia, como muitas vezes acontece nos booms de mercados

livres, era que, com os salários ficando para trás, os lucros cresceram

desproporcionalmente, e os prósperos obtiveram uma fatia maior do bolo

nacional. Mas como a demanda de massa não podia acompanhar a

produtividade em rápido crescimento do sistema industrial nos grandes dias

de Henry Ford, o resultado foi superprodução e especulação. Isso, por sua

vez, provocou o colapso. (Hobsbawm, 1995: 104)

No período que tratamos aqui, ao contrário, apesar dos significativos aumentos

de produtividade e utilização de técnicas cada vez mais intensivas em capital, a

velocidade de expansão da economia foi suficiente para aumentar o nível de emprego,

em termos absolutos e relativos (ao menos no “centro” do sistema capitalista e em parte

da “periferia”). Em diversos países, inclusive, o esgotamento do contingente de

trabalhadores disponíveis teve de ser compensado pela incorporação crescente de

mulheres ao mercado de trabalho, da migração interna (da zona rural para as cidades) e

até mesmo da migração estrangeira. (Hobsbawm, 1995: 262)

Além disso, o crescimento do emprego foi acompanhado por contínuos

aumentos de salário real, obtidos, em grande medida, por meio das profundas

transformações na própria relação salarial. Essas transformações incluíram o

estabelecimento de salários mínimos atrelados aos níveis de preços e produtividade da

empresa, instituição de práticas e procedimentos de negociação coletiva e crescimento

dos salários indiretos (benefícios sociais). (Bihr, 1998: 43) O resultado, em muitos

países, foi uma melhoria geral nas condições de vida da classe trabalhadora e ampliação

existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação do operário-

massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões”.

Page 58: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

47

do seu poder de compra, criando exatamente aquela compatibilidade entre produção

ampliada e a necessidade de consumo crescente não conseguida no período anterior: à

produção em massa um correspondente consumo em massa.34

É claro que a realização de lucros altos durante esse período foi essencial à

manutenção desse arranjo. Como mostram os dados apresentados por Brenner (2003:

46), a taxa média de lucro líquido do grupo de países conhecido como G7 (Estados

Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) foi de 26,2% durante o

período 1950-1970, em comparação com a taxa de 15,7% no período posterior (1970-

1973). Ou seja, o aumento dos salários não chegou a comprometer os lucros presentes

ou afetar as perspectivas futuras de lucros, pois era com base nessas expectativas que se

efetuavam os “enormes investimentos, sem os quais o espetacular crescimento da

produtividade da mão-de-obra da Era de Ouro não poderia ter ocorrido”.35

(Hobsbawm,

1995: 276)

Vale notar, no entanto, que as condições do problema são relativamente mais

complexas. Apesar de depender, em parte, da manutenção de taxas elevadas de lucro, as

possibilidades de expansão da economia capitalista não podem ser concebidas

exclusivamente em termos de uma única determinação. Partindo dos motivos

anteriormente explicitados e da análise desenvolvida por Marx especialmente nos

Livros II e III de O Capital, percebemos que a capacidade de expansão do capital

depende de inúmeros outros fatores. Voltaremos a tratar mais detalhadamente desse

assunto adiante, em Apêndice ao capítulo. Por ora, basta ressaltar que, assim como o

progresso do capital na “Era de Ouro” não pode ser explicado somente pela taxa de

lucro, também a crise da década de 1970 não pode ser entendida somente por sua queda,

como será mostrado na próxima seção.

34

Esse aumento na capacidade de consumo estendia-se, muitas vezes, inclusive para os bens de luxo:

“[...] o compromisso político de governos com o pleno emprego e – em menor medida – com redução da

desigualdade econômica, isto é, um compromisso com a seguridade social e previdenciária, pela primeira

vez proporcionou um mercado de consumo de massa para bens de luxo que agora podiam passar a ser

aceitos como necessidades. Quanto mais pobres as pessoas, maior a proporção da renda que têm de gastar

em produtos essenciais, como comida (uma observação sensata conhecida como “Lei de Engel”). Na

década de 1930, mesmo nos ricos EUA, cerca de um terço dos gastos domésticos ainda se destinava à

comida, mas no início da década de 1980 esse índice era de apenas 13%. O resto ficava disponível para

outras despesas. A Era de Ouro democratizou o mercado”. (Hobsbawm, 1995: 264) 35

O historiador Robert Brenner (2003: 47) chega mesmo a afirmar que “[...] a chave para o longo boom

pós-guerra do final da década de 1940 até inícios da de 1970 foi a trajetória da taxa de lucro. O que

propiciou a expansão econômica sem precedentes do período pós-guerra foi a capacidade das economias

capitalistas avançadas de realizarem e sustentarem altas taxas de lucro”.

Page 59: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

48

Seção 3.2. A crise dos anos 1970 e a contra-revolução conservadora

Findada a Segunda Guerra Mundial, a economia capitalista passa por um grande

ciclo expansivo fundado sobre um arranjo histórico peculiar que impediu, por certo

período, a manifestação de determinadas contradições e tendências características desse

modo de produção. Apenas para recordar, essas contradições, que tornam as crises

inerentes à dinâmica de funcionamento do capitalismo, podem ser rapidamente

apreendidas a partir da já mencionada lei geral da acumulação capitalista. Vimos ali

que, ao mesmo tempo em que produz riqueza em escala crescente, a própria dinâmica

capitalista cria obstáculos à realização dessa riqueza, na medida em que priva parcela

significativa da população da capacidade de consumo. No período tomado aqui como

objeto de estudo, no entanto, a capacidade de realização dos valores produzidos foi

garantida pela transferência de parte do excedente para a classe trabalhadora (na forma

de salários diretos e indiretos), sem que isso comprometesse a lucratividade e as

condições de valorização do valor. Nos termos de Coggiola:

Nos primeiros 20 anos de pós-guerra, apesar de uma forte expansão da

produção, a reconstituição contínua do exército de reserva industrial permitiu

a manutenção de uma taxa de mais-valia bastante elevada. Os salários reais

aumentaram com mais lentidão que a produtividade física. Os lucros seguiam

sendo elevados apesar do aumento da composição orgânica do capital. Tudo

parecia caminhar no melhor dos mundos. (Coggiola, 2002: 385)

Como dito anteriormente, não era difícil encontrar os que, durante os “anos

gloriosos”, chegaram a pensar que aquele estado de coisas seria uma tendência

estrutural do capitalismo, bastando, para tanto, que fosse garantida a aplicação das

políticas “corretas”. Economistas de orientação keynesiana e tomadores de decisão em

geral vangloriavam-se por finalmente haver encontrado a forma adequada de

gerenciamento da sociedade do capital. Mas, não tardou muito, a história encarregou-se

de demonstrar o equívoco dessa interpretação. A partir da década de 1970, a economia

mundial entra inegavelmente em uma longa fase de recessão e, na tentativa de oferecer

respostas à crise, observa-se uma série de reorientações importantes, tanto no plano

político-ideológico quanto na estrutura produtiva. Assim como no caso da “Era de

Ouro”, acredita-se aqui que essas reorientações influenciaram a forma de manifestação

das principais tendências da dinâmica capitalista e não podem ser entendidas sem que se

faça uma referência aos motivos que conduziram a economia a esse longo período de

recessão.

Page 60: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

49

Em retrospectiva, é possível afirmar que os primeiros sinais de crise já começam

a manifestar-se em meados da década de 1960, mas, “até a década de 1980 não estava

claro como as fundações da Era de Ouro haviam desmoronado irrecuperavelmente”.

(Hobsbawm, 1995: 393). Durante certo período, não havia sinais claros de catástrofe,

pois “o crescimento no mundo capitalista desenvolvido continuou, embora num ritmo

visivelmente mais lento do que durante a Era de Ouro”. (Ibid: 395). Como nos dados

apresentados por Brenner (2003: 93): a média de crescimento do produto interno bruto

(PIB) no “grupo dos sete” passou de 5,1%, no intervalo entre 1960-1969, para 3,6% em

1969-1979, 3,0% em 1979-1990 e 2,5% em 1990-1995.

Parecia, portanto, apenas uma onda de leves recessões temporárias, nada

comparáveis à Grande Depressão dos anos 1930, decorrentes, em grande medida, da

inusitada conjunção de fatores exógenos e inesperados. Ou seja, para os mais otimistas,

a economia havia saído dos trilhos devido ao “incomum acúmulo de perturbações

infelizes, sem probabilidade de se repetir na mesma escala, cujo impacto foi agravado

por alguns erros inevitáveis”. (McCracken, 1977: 14) E a mais mencionada das

“perturbações infelizes”, que normalmente ocupa papel de destaque nas explicações

sobre a crise, foi, sem dúvidas, a elevação no preço do barril de petróleo, que passou de

aproximadamente US$ 3,5 para US$ 11,5 em 1973-1974.

É claro que não duvidamos aqui do importante papel desempenhado pelo

aumento no preço do petróleo no aprofundamento da crise (e, para compreender este

ponto, basta lembrar que durante a “Era de Ouro” houve uma explosão no uso do

petróleo e derivados e que este representa ainda hoje um dos principais componentes da

matriz energética de vários países). Mais do que o aumento nos preços de um produto

específico, esse período também foi marcado por inflação generalizada que, quando

combinada com o baixo crescimento do produto, produziu um fenômeno que se tornou

quase uma marca registrada dessa crise: a estagflação.36

No entanto, diferentemente das explicações que privilegiam os choques

exógenos, entendemos que a crise é resultado do desenvolvimento das próprias tensões

36

Como mostram os dados sistematizados por Carcanholo (2010: 3): “A inflação mundial média, medida

pelos preços ao consumidor, é de 10% ao ano no período 1973-1979 e 8,1% no período 1979-1984, sendo

que em 1950-1973 havia sido de apenas 4%”. Se observarmos atentamente as médias anuais de

crescimento dos preços e do produto nos EUA e Reino Unido, por exemplo, vemos ainda que os períodos

de inflação mais acentuada coincidiram com os períodos de queda mais acentuada no produto: 1974-1975

e 1980-1981. (Banco Mundial, 2010) Analisando também a relação entre inflação e desemprego,

percebemos que, para o período 1961-1987, tanto nos EUA quanto nos países da Europa, os anos de

aumentos mais significativos da inflação foram precisamente os anos de aumento mais significativo do

desemprego. (Harvey, 2005: 141)

Page 61: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

50

internas ao modo de produção capitalista, do desenvolvimento de suas próprias

contradições; “não resulta da negação das tendências do período de expansão, mas do

seu desenvolvimento exacerbado”. (Coggiola, 2002: 385) Como indicado

anteriormente, essas contradições acabam gerando uma produção excessiva de capital

frente às suas possibilidades de valorização, e é por esse motivo que as “duas formas

clássicas de manifestação desse fenômeno no capitalismo” são “reduções das taxas de

lucro e superacumulação/superprodução de capital”. (Carcanholo, 2010: 2)

Vale notar que não são poucas as teorias, dentro e fora da tradição marxista, que

enxergam a queda na lucratividade e a superprodução como manifestações mais gerais

da incapacidade do capitalismo em manter o padrão de acumulação responsável pelo

crescimento do período anterior.37

Por vezes, no entanto, parte dessas teorias acaba, em

suas explicações sobre a dinâmica capitalista, reduzindo a complexidade do problema

ao movimento da taxa de lucro, especialmente em momentos de crise. Uma análise mais

detalhada do papel efetivo da taxa de lucro, bem como dos diversos outros fatores que

podem influenciar as condições de acumulação, será realizada adiante, em Apêndice.

Por ora, interessa-nos particularmente fazer dois registros. Em primeiro lugar, a despeito

das diferenças pontuais, concorda-se no geral que os primeiros sinais da crise começam

a manifestar-se antes mesmo de 1973 (o que nos permite com alguma facilidade

descaracterizar as explicações que tomam o choque do petróleo como ponto de partida).

Em segundo lugar, ainda que haja divergências sobre a profundidade das

reorientações experimentadas após a crise e a dimensão de suas consequências, não há

dúvidas de que as reorientações existiram e geraram impactos sobre a dinâmica

capitalista. Na medida em que a crise aparecia fundamentalmente como uma crise do

“compromisso fordista-keynesiano”, testemunha-se o declínio do keynesianismo e

ascensão do neoliberalismo e a substituição dos métodos de trabalho fordistas por

métodos mais flexíveis. Como afirma Carcanholo (2008a: 252), “reestruturação

produtiva e neoliberalismo são duas interfaces de uma mesma resposta do capital à sua

própria crise nos anos 1970” e, em linhas gerais, essas duas reorientações atuaram da

seguinte maneira:

[...] enquanto o processo de reestruturação produtiva se encarregou da

rotação do capital, o neoliberalismo, como aspecto político, ideológico e

37

No caso específico da crise dos anos 1970, destacam-se, por exemplo, aquelas interpretações veiculadas

pela Escola da Regulação (Glyn et alli, 1990), por Brenner (1999, 2003), Arrighi (1996), Harvey (2005,

2010), Antunes (2003), entre outros. Um apanhado crítico de algumas dessas teorias sobre o mundo

contemporâneo pode ser visto em Postone (2008).

Page 62: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

51

econômico, teve o papel de garantir as condições de lucratividade interna

(desregulamentação e flexibilização dos mercados – principalmente o de

trabalho) e externa (pressão por desregulamentação e abertura dos mercados

comerciais e financeiros). (Ibid)

No que tange às mudanças no plano político-ideológico, é preciso deixar claro

de antemão que o neoliberalismo surge, ainda no imediato pós-guerra, como reação

teórica e política contra o Estado intervencionista (seja em sua versão social-democrata

ou “comunista”).38

Mas como as aproximadamente três décadas da “Era de Ouro” não

ofereceram condições favoráveis à disseminação desses ideais (afinal de contas, o

capitalismo passava por uma fase de auge sem precedentes, tornando muito pouco

críveis as advertências neoliberais), “esse movimento permaneceu à margem tanto da

política, quanto da influência acadêmica até os conturbados anos da década de 1970”.

(Harvey, 2008: 31)

De acordo com o argumento neoliberal, as raízes da crise estavam

evidentemente “[...] localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de

maneira geral, no movimento operário, que havia corroído as bases da acumulação

capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão

parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais”. (Anderson,

1995: 10) Para recompor as condições de acumulação, seria necessário, portanto,

reverter este quadro, principalmente através da implementação de reformas “pró-

mercado”. Sobretudo era necessário criar um ambiente favorável aos investimentos e à

lucratividade do setor privado através da estabilização da economia, do saneamento das

contas públicas (via corte de impostos, corte de gastos, privatizações etc.) e das já

mencionadas flexibilização do mercado de trabalho, abertura comercial e a

desregulamentação e liberalização do mercado financeiro.

Diante da crise, portanto, os neoliberais viram não apenas o que julgavam ser a

comprovação de suas profecias, mas também encontraram terreno fértil para

disseminação de suas ideias e práticas. Como afirma explicitamente Milton Friedman,

definindo, ainda em 1962, as linhas gerais da agenda neoconservadora no seu

consagrado Capitalismo e Liberdade:

Somente uma crise – atual ou previsível – provoca uma real mudança.

Quando ocorre tal crise, as decisões tomadas dependem das ideias existentes

38

Vale notar que este movimento foi formado, inicialmente, por um grupo seleto de economistas,

historiadores e filósofos, defensores fervorosos do liberalismo, que se agruparam em torno de Friedrich

von Hayek para criar a Sociedade Mont Pèlerin. O nome do grupo é uma referência ao local na Suíça

onde ocorreu a primeira reunião (em 1947) e entre os mais notáveis membros destacam-se Ludwig von

Mises, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Michael Polanyi, entre outros.

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52

no momento. Esta, creio eu, é nossa função fundamental: desenvolver

alternativas para os programas existentes, conservá-las vivas e disponíveis,

até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável.

(Friedman, 1988: 7)

Segundo os registros de Naomi Klein (2008), assim poderia se resumir quase

toda a história de implementação do receituário neoliberal nas mais distintas e distantes

regiões do globo ao longo das últimas décadas. Como comprovam inúmeras

experiências posteriores à crise dos 1970, a perspectiva neoliberal encara os momentos

de crise (inclusive as grandes catástrofes) como oportunidades para atacar a esfera

pública e impor as reformas pró-mercado. Assim, argumenta a autora, enquanto

“algumas pessoas costumam estocar alimentos enlatados e água para enfrentar grandes

desastres, os seguidores de Friedman estocam ideias em defesa do livre mercado”. (Ibid:

16) Perante a instalação de uma crise, “era essencial agir rapidamente, impondo

mudanças súbitas e irreversíveis, antes que a sociedade abalada pela crise pudesse voltar

à „tirania do status quo‟”. (Ibid). É precisamente essa tática que Klein denomina

doutrina do choque.

Ainda que os países latino-americanos tenham oferecido, durante os anos 1970,

os primeiros “laboratórios” para a aplicação dessa doutrina,39

a efetiva consagração do

programa neoliberal demoraria aproximadamente uma década e não pode ser

compreendida sem que se faça referência a ao menos três eventos significativos. O

primeiro foi a eleição quase simultânea de dois governos declaradamente empenhados

em pôr em prática o programa neoliberal, em duas grandes potências mundiais: Reino

Unido e Estados Unidos. De fato, as vitórias de Margareth Thatcher em 1979 e de

Ronald Reagan no ano seguinte cumpriram um papel fundamental na penetração do

neoliberalismo na América do Norte e em quase toda a Europa ocidental. Como afirma

Anderson (1995: 12), “os anos 1980 viram o triunfo mais ou menos incontrastado da

ideologia neoliberal nessa região do capitalismo avançado”.

O segundo evento digno de nota, particularmente importante para compreender a

consolidação do neoliberalismo nas regiões “menos afortunadas”, foi a construção, no

final dos anos 1980, daquilo que ficou conhecido como Consenso de Washington. Após

39

Dentre as primeiras experiências de implementação do receituário neoliberal na América Latina,

destacam-se particularmente os casos chileno e boliviano. O primeiro é bastante emblemático não apenas

pelo pioneirismo, mas também pelo fato de comprovar que “a democracia em si mesma – como explicava

incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central do neoliberalismo”. (Anderson, 1995: 19-

20) O segundo, por sua vez, nos mostra que “há um equivalente funcional ao trauma da ditadura militar

como mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente um povo a aceitar políticas neoliberais

das mais drásticas. Este equivalente é a hiperinflação”. (Ibid: 21) Para mais sobre estas experiências

conferir Klein (2008).

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53

o fracasso das experiências neoliberais nos países da América Latina (que ainda não

haviam conseguido conter o processo inflacionário e estavam mergulhados em

gigantescas dívidas externas), membros dos organismos multilaterais, funcionários do

governo americano e economistas desses países reuniram-se para discutir e redefinir os

rumos de sua estratégia. Como resultado dessa conferência, o economista John

Williamson (1990) apresenta, de maneira bastante didática, uma lista com dez

instrumentos de política econômica considerados indispensáveis à saúde daquelas

economias e que, como disse o autor alguns anos depois, constituem “o núcleo comum

de sabedoria aceito por todos os economistas sérios”. (Williamson, 1994: 18)

A partir de então, os organismos multilaterais (especialmente FMI e Banco

Mundial) são explicitamente transformados em “centros de propagação de

implementação do „fundamentalismo do livre mercado‟ e da ortodoxia neoliberal”,

(Harvey, 2008: 38) oficialmente colonizadas pela Escola de Chicago. Ou seja, aquelas

instituições que haviam sido criadas como parte do acordo de Bretton Woods, baseadas

na convicção de que a regulação da economia deveria ir além do plano nacional,

condicionavam agora a concessão de auxílio financeiro à aplicação das reformas pró-

mercado, ampliando significativamente o poder de expansão do receituário neoliberal,

não apenas na América Latina, mas também sobre o continente africano.40

Como

sintetiza Klein:

Friedman pode ter sido contrário às duas instituições, em termos filosóficos,

mas na prática, não havia organizações mais bem posicionadas para

implementar sua teoria das crises. Quando os países mergulharam em graves

desequilíbrios nos anos 1980, não havia a quem recorrer a não ser ao Banco

Mundial e ao FMI. Ao chegarem lá, esses países deram de cara com o muro

de ortodoxia dos Garotos de Chicago, que tinham sido treinados para encarar

aquelas catástrofes econômicas não como problemas a serem resolvidos, mas

como oportunidades preciosas a serem aproveitadas para expandir as

fronteiras do livre mercado. Agora, o oportunismo das crises estava

embasando a lógica das instituições financeiras mais poderosas do mundo.

Isso representava uma traição fundamental de seus princípios fundadores.

(Klein, 2008: 196)

Por fim, mas não menos importante, destaca-se a sequência de eventos históricos

que se inicia com a queda do Muro de Berlim em 1989 e se encerra com a dissolução da

União Soviética em 1991, marcando o fim do socialismo real no Leste europeu. Esse

episódio é particularmente importante, em primeiro lugar, pois abriu um novo e

40

“O princípio era simples: os países que estavam em crise precisavam desesperadamente de ajuda

emergencial para estabilizar suas moedas. Quando a privatização e as políticas de livre-comércio são

empacotadas junto com o socorro financeiro, os países têm pouca escolha além de aceitar o pacote

completo”. (Klein, 2008: 198)

Page 65: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

54

promissor campo para a expansão da doutrina neoliberal.41

Como ressalta Anderson

(1995: 18), “os novos arquitetos das economias pós-comunistas do Leste [...] eram e são

seguidores convictos de Hayek e Friedman, com um menosprezo total pelo

keynesianismo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e, em geral, por todo

modelo dominante do capitalismo ocidental do período pós-guerra”. Seguras de seus

ideais, as novas lideranças realizaram reformas ainda mais amplas do que as feitas no

ocidente, fazendo com que se chegasse à conclusão de que “não há neoliberais mais

intransigentes no mundo do que os „reformadores‟ do Leste”. (Anderson, 1995: 18)

Além disso, embora de muitas formas as crises do Leste e do Oeste corressem

paralelas e estivessem ligadas numa única crise global, pode-se dizer que o impacto

sobre a parcela capitalista e não capitalista do mundo foi significativamente diferente:

enquanto, para os primeiros, a crise representava o triunfo do neoliberalismo sobre o

keynesianismo, para os segundos, parecia confirmar o triunfo do capitalismo (em sua

versão liberal) sobre qualquer possibilidade de um projeto alternativo de sociedade.42

Não por acaso, é desse período a disseminação das teses conservadoras sobre o fim da

história, que enxergavam na derrota do socialismo as condições para a eternização do

capitalismo.43

A partir de então, pode-se dizer que, no plano político-ideológico, “[...] o

neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente

jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus

princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas.

Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão

41

Esse entusiasmo com as oportunidades abertas pelo fim do socialismo real pode ser vista, por exemplo,

no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial publicado em 1996, inteiramente dedicado aos países que

estavam, durante aquele período, “fazendo a transição do planejamento central [...] para a economia de

mercado”. (Banco Mundial, 1996: iii) Além de realizar um primeiro balanço dos resultados dessa

transição, o relatório insiste no caráter inevitável e necessário das reformas, argumentando que, se os

benefícios não foram sentidos de imediato, tratava-se de uma questão de tempo: os resultados finais

seriam necessariamente positivos. Como afirmado explicitamente: “a clara lição das reformas executadas

nos últimos anos é a de que, independentemente do seu ponto de partida, uma reforma decisiva e

consistente dá bons resultados”. (Ibid: 9) 42

Um interessante contraponto a essa perspectiva é apresentado, por exemplo, por Robert Kurz (1993).

Partindo da análise do sistema mundial de produção de mercadorias em seu conjunto, sistema do qual os

países do Leste eram parte constitutiva, Kurz entende que, ao contrário de marcar a vitória do capitalismo

sobre o socialismo, a derrocada do Leste Europeu foi parte da própria crise do capitalismo em escala

global, que se iniciou no Terceiro Mundo, atingiu de maneira avassaladora os países do Leste Europeu e,

finalmente, penetrou no centro do “sistema mundial produtor de mercadorias”. Para mais sobre esse

argumento, conferir também Antunes (2006: 107pp.). 43

Essa tese foi disseminada, sobretudo, a partir do trabalho de Francis Fukuyama, cujas ideias centrais

foram apresentadas pela primeira vez, em 1989, em palestra proferida na Universidade de Chicago e

aprofundadas três anos depois no livro “O fim da história e o último homem”.

Page 66: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

55

abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje”. (Anderson, 1995: 18) As

consequências desse predomínio sobre a dinâmica capitalista serão analisadas mais

adiante. Por ora, vejamos como a ascensão do neoliberalismo combina-se com as

transformações na estrutura produtiva.

De acordo com a sistematização feita por Bihr (1998: 87), essa reestruturação

envolveu a incorporação de novas tecnologias, novos métodos de organização do

processo de trabalho, novos tipos de contrato de trabalho e, consequentemente, novas

formas de envolvimento e integração da força de trabalho na atividade produtiva. Em

seu conjunto, essas reestruturações deram origem a uma “nova ordem produtiva”, cujas

características básicas seriam difusão, fluidez e flexibilidade.

A primeira característica está relacionada à inversão do processo de

concentração produtiva originado pelo fordismo, que, depois de ultrapassado certo

limite, ao contrário de garantir as economias de escala previstas, passou a gerar custos

excedentes.44

Assim, assiste-se ao “enxugamento” das unidades produtivas e ao

surgimento de fábricas mais difusas, que externalizam parte das funções produtivas e/ou

administrativas, mantendo apenas uma “unidade central que coordena, planifica,

organiza a produção de toda uma rede de unidades periféricas, que podem atingir o

número de várias centenas, e até de vários milhares”.45

(Ibid: 88)

Por um lado, aproveitando a já mencionada flexibilização do mercado de

trabalho e do desmantelamento do sistema de benefícios conquistados pela classe

trabalhadora no período anterior, o esquema de “subcontratação” ou “terceirização”

possibilita a utilização de formas precarizadas de trabalho, como, por exemplo, o

trabalho em domicílio, trabalho clandestino, trabalho temporário, em tempo parcial etc.

Como destaca Harvey (2005: 145), “a subcontratação organizada abre oportunidades

para a formação de pequenos negócios e, em alguns casos, permite que sistemas mais

44

Vale notar que a “inversão do processo de concentração” aqui mencionada não significa uma inversão

da tendência à concentração de capital identificada por Marx e apresentada no capítulo anterior. Ao

contrário, os processos de difusão, fluidez e flexibilização reforçaram, em conjunto, as tendências à

concentração e centralização do capital, ainda que isso ocorra, por vezes, por meio da descentralização

das operações. Sobre o tema conferir, por exemplo, Chesnais (1996). Também é importante ressaltar que

essa “inversão” é apenas parcial, pois os processos de produção do tipo fordista continuaram a existir em

determinados setores. 45

De acordo com Antunes (2003: 50), este processo também ficou conhecido na literatura econômica

como liofilização e, em termos quantitativos, pode ser apresentado da seguinte maneira: “enquanto na

fábrica fordista aproximadamente 75% da produção era realizada no seu interior”, a nova fábrica difusa

“é responsável por somente 25% da produção, tendência que vem se intensificando ainda mais. Essa

última prioriza o que é central em sua especialidade do processo produtivo (a chamada “teoria do foco”) e

transfere a “terceiros” grande parte do que antes era produzido dentro de seu espaço produtivo”. (Ibid: 54-

55)

Page 67: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

56

antigos de trabalho doméstico, artesanal, familiar (patriarcal) e paternalista [...] revivam

e floresçam, mas agora como peças centrais, e não mais apêndices do sistema

produtivo”.46

E esse, evidentemente, é um processo que se retroalimenta: ao mesmo

tempo em que “[...] os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e

da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados e subempregados)

para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis”, a “redução do emprego

regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou

subcontratado” diminui significativamente a capacidade de mobilização e resistência da

classe trabalhadora. (Ibid: 143)

Por outro lado, beneficiando-se do processo de abertura comercial e financeira, e

da rápida redução dos custos de transporte e comunicação, a “indústria, que

tradicionalmente dependia de restrições locais no tocante a fontes de matérias-primas e

a mercados, pôde se tornar muito mais independente”. (Ibid: 156) Com isso, algumas

das atividades “externalizadas” puderam ser transferidas para as regiões onde as

legislações são mais “frouxas” e a mão-de-obra mais barata, criando condições ainda

mais favoráveis à acumulação capitalista. De acordo com o argumento desenvolvido por

Chesnais (1996), a intensificação desse processo marcaria uma fase específica da

internacionalização do capital, chamada por ele de mundialização. Nessa fase, o

investimento direto externo teria suplantado o comércio exterior como vetor principal

do processo de internacionalização, aumentando significativamente a “importância do

intercâmbio intracorporativo (40% do comércio dos EUA e do Japão), e sobretudo do

nível dos suprimentos internacionais em produtos semi-elaborados e produtos acabados,

organizados com base em terceirização internacional”. (Ibid: 26) Oferecendo um

contraponto à perspectiva veiculada pelos ideólogos da globalização, que acreditam que

esse processo é tanto inevitável quanto bom, Chesnais argumenta ainda que essas

mudanças na forma de internacionalização são fruto das próprias políticas de abertura

comercial, liberalização e desregulamentação financeira e das transformações no modo

predominante de organização do trabalho, e geram consequências trágicas sobre a classe

trabalhadora, especialmente dos países pobres, como veremos adiante.

46

Segundo as estatísticas apresentados por Harvey (2005: 144), “na Inglaterra, os „trabalhadores

flexíveis‟ aumentaram em 16 por cento, alcançando 8,1 milhões entre 1981 e 1985, enquanto os empregos

permanentes caíram em 6 por cento, ficando em 15,6 milhões. Mais ou menos no mesmo período, cerca

de um terço dos dez milhões de novos empregos criados nos EUA estavam na categoria „temporário‟”.

Page 68: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

57

O segundo processo, de aumento da fluidez, está ligado ao crescimento da

“gestão informatizada dos fluxos produtivos”, cujo objetivo central é “otimizar a

combinação, no espaço e no tempo, das matérias-primas, das energias, dos

equipamentos, dos homens, da informação etc., reduzindo ao mínimo os tempos mortos

no encadeamento das operações produtivas”. Isso assegura ao capital, “além de novos

ganhos de intensidade e de produtividade, economia de capital constante (tanto fixo

quanto circulante) por unidade produzida”. (Bihr, 1998: 89) Mas a introdução desse tipo

de tecnologia avançada, depende, em parte, também de mudanças significativas na

organização do trabalho, com o “abandono da organização do trabalho em postos fixos e

especializados”. Assim, em lugar da “relação operário especializado/máquina

especializada, célula da organização fordista”, predomina na fábrica fluida “a relação

equipe polivalente/sistema de máquinas automatizadas (e, portanto, também

polivalentes)”, onde cada trabalhador deve ser capaz de intervir em várias máquinas

diferentes ao mesmo tempo. (Ibid) As “responsabilidades de elaboração e controle de

qualidade da produção, anteriormente realizadas pela gerência científica”, são agora

“interiorizadas na própria ação dos trabalhadores”. (Antunes, 2003: 56)

Como ressalta Antunes (Ibid: 48), na medida em que este tipo de organização

exige um “trabalhador mais qualificado, participativo, polivalente, dotado de maior

realização no espaço de trabalho”, algumas leituras mais otimistas chegaram a encarar

esta como uma superação da própria contradição capital-trabalho. Esse envolvimento

maior do trabalhador no processo de trabalho, no entanto, “preserva, na essência, as

condições do trabalho alienado e estranhado”. (Ibid: 52) Mais do que isso, o processo de

produção fluido vem acompanhado de uma “intensificação da exploração do trabalho,

quer pelo fato de os operários trabalharem simultaneamente com várias máquinas

diversificadas, quer pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva”. (Ibid: 56)

Por fim, assiste-se ao processo de flexibilização da unidade produtiva, com a

substituição das economias de escala (grande marca da produção fordista de massa)

pelas economias de escopo: produção de uma variedade crescente de bens em uma

mesma linha, a preços baixos e em pequenos lotes, ajustáveis às variações na demanda,

mais flutuante e diversificada. (Harvey, 2005: 148) Essa maior flexibilidade dependia,

em grande medida, da própria existência de difusão que, como visto anteriormente, está

associada ao “afrouxamento das condições jurídicas que regem contrato de trabalho,

implicando especialmente a possibilidade de se recorrer facilmente ao trabalho em

Page 69: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

58

tempo parcial e ao trabalho temporário”. (Bihr, 1998: 92) Como reforça Bihr (Ibid):

“aqui, flexibilidade rima diretamente com instabilidade”. Além disso, o sucesso desse

tipo de produção dependia da organização mais flexível do trabalho, associada

diretamente ao aumento da fluidez também mencionado anteriormente. Por fim, a

utilização de métodos mais flexíveis esteve significativamente articulada às próprias

mudanças no mercado consumidor. Como destaca Harvey:

[...] a acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto,

por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos

os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso

implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar

a todo fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-

moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a

mercadificação de formas culturais. (Harvey, 2005: 148)

Em linhas gerais, muitas dessas características da “nova ordem produtiva” são

encaradas como assimilação e incorporação no ocidente de características próprias ao

modelo japonês de produção (também conhecido como toyotismo).47

Em seu conjunto,

essas mudanças permitiram, em certa medida, recompor as condições de acumulação

capitalista, agora apoiada fundamentalmente na “flexibilidade dos processos de

trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, [...] no

surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento

de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de

inovação comercial, tecnológica e organizacional”. (Harvey, 2005: 140)

De fato, através de todos esses mecanismos, neoliberalismo e reestruturação

produtiva criaram as condições para o surgimento de uma combinação particular das

estratégias de extração de mais-valia absoluta e relativa, fosse pelo aumento da jornada

de trabalho, aumento da intensidade, aumento da produtividade (obtidos através das

mudanças tecnológicas ou organizacionais), pelo rebaixamento do valor da força de

trabalho ou pela transferência do capital para regiões onde os salários são mais baixos.

(Ibid: 174-175) Aliado a isso, o tempo de rotação do capital – uma das variáveis-chave

da lucratividade capitalista, como pode ser visto em mais detalhes no Apêndice – foi

reduzido substancialmente.

Importante também para a acumulação de capital foi o crescimento da esfera

financeira, absorvendo grande parte do excesso de capital incapaz de se valorizar

através da produção e realização de mercadorias. Por um lado, pode-se dizer que este

47

Como ressalta Antunes (2003: 57), “o processo de ocidentalização do toyotismo mescla, portanto,

elementos presentes no Japão com práticas existentes nos novos países receptores, decorrendo daí um

processo diferenciado, particularizado e mesmo singularizado de adaptação desse receituário”.

Page 70: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

59

processo foi funcional à acumulação de capital, na medida em que possibilitou uma

aceleração das atividades produtivas, permitindo a maior acumulação global de capital,

a redução do tempo de rotação e, portanto, o aumento da taxa de lucro por período.

(Carcanholo, 2008a: 260) Por outro lado, no entanto, a expansão desenfreada de sua

lógica gerou uma série de disfuncionalidades e aumento da instabilidade, que explicam

em parte, por exemplo, o fato de a recomposição nas condições de acumulação não ter

sido acompanhada por uma recuperação no ritmo de crescimento das economias. Como

ressalta Anderson (1995: 16), “a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão

importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a

inversão especulativa do que produtiva”, de modo que,

[...] apesar de todas as novas condições institucionais criadas em favor do

capital – a taxa de acumulação, ou seja, da efetiva inversão em um parque de

equipamentos produtivos, não apenas não cresceu durante os anos 80, como

caiu em relação a seus níveis – já médios – dos anos 70. No conjunto dos

países de capitalismo avançado, as cifras são de um incremento anual de

5,5% nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que 2,9% nos anos

1980. Uma curva absolutamente descendente. (Anderson, 1995: 15-16)

Nesse quesito, portanto, os resultados foram particularmente desanimadores.

Como ressalta Anderson (1995: 15), “no final das contas, todas essas medidas haviam

sido concebidas como meios para alcançar um fim histórico, ou seja, a reanimação do

capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de crescimento estáveis, como

existiam antes da crise dos anos 1970”. No entanto, “entre os anos 1970 e 1980 não

houve nenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países

da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. Dos ritmos

apresentados durante o longo auge, nos anos 1950 e 1960, restam somente uma

lembrança distante”. (Ibid)

No que diz respeito aos impactos sobre a classe trabalhadora, pode-se dizer que

os resultados são efetivamente nefastos e não podem ser de modo algum desprezados.

Em primeiro lugar, destacam-se as já mencionadas transformações na relação salarial e

suas principais consequências: “[...] instabilidade de emprego e, portanto, de renda;

desregulamentação mais ou menos forçada de suas condições jurídicas de emprego e de

trabalho (em relação às normas legais ou convencionais); conquistas e direitos sociais

em regressão; com frequência, ausência de qualquer benefício convencional; a maior

parte do tempo, ausência de qualquer proteção e expressão sindicais”. (Bihr, 1998: 86)

Além disso, como ressalta Hobsbawm (1995: 403), “as décadas de crise começaram a

dispensar mão-de-obra em ritmo espetacular, mesmo nas indústrias visivelmente em

Page 71: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

60

expansão”, de forma que o aumento do desemprego, a princípio visto como uma

questão conjuntural, “anomalia passageira”, rapidamente se mostrou situação estrutural.

De acordo com os dados disponíveis em Brenner (2003: 93), a taxa média de

desemprego no “grupo dos sete” passou de 3,1% no período 1960-1973, para 4,9% em

1973-1979 e 6,8% em 1979-1990. Tomando a média dos países da Europa, a situação se

mostra ainda mais crítica, com a taxa de desemprego subindo de 2,3% em 1960-69, para

4,6% em 1969-1979 e 9,1% em 1979-1990.

Em uma sociedade capitalista, fundada no trabalho assalariado, essas mudanças

no “mundo do trabalho” vêm acompanhadas de uma inegável e persistente deterioração

nas condições de vida da população, que se expressa diretamente em aumento da

desigualdade de renda, pobreza, “exclusão social”, deterioração do meio ambiente etc.,

fenômenos esses reconhecidos, em alguma medida, dentro e fora do âmbito acadêmico,

por diversos comentadores, dos mais aos menos críticos.48

Conforme entendemos aqui,

esses fenômenos são um reflexo das próprias contradições inerentes ao

desenvolvimento capitalista, apresentadas no capítulo anterior e sintetizadas no

enunciado da lei geral. Ou seja, enquanto durante a “Era de Ouro” a manifestação

empírica de tendências gerais foi obstada por determinações particulares (discutidas ao

longo da primeira seção), mudanças nas próprias condições particulares no período

posterior aos anos 1970 abriram o caminho para que essas mesmas tendências gerais

predominassem na produção de eventos.

Seção 3.3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades: considerações finais

A partir do exposto acima, podemos extrair algumas conclusões importantes

para o argumento do presente trabalho. Em primeiro lugar, observamos que, se as

tendências gerais continuam em ação (ainda que atravessadas por arranjos sociais

diversos), recompor a dinâmica do desenvolvimento capitalista na transição entre

períodos distintos significa recompor as mudanças, mas também as permanências,

48

No caso específico do pensamento conservador, a preocupação crescente com as chamadas “mazelas

sociais” se evidencia, por exemplo, na proliferação de estudos e relatórios publicados pelos organismos

multilaterais, preocupados em encontrar a melhor estratégia para “atacar a pobreza” e minimizar os

crescentes danos causados ao meio ambiente, respeitando o status quo. Como ressalta Medeiros (2007:

179), “não seria exagero, de fato, retratar a circulação de estudos econômicos do „bem-estar‟ social entre

instituições e autores assumidamente conservadores no último quarto de século como uma febre

compulsiva, uma verdadeira fixação com o altruísmo”.

Page 72: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

61

demonstrando como o capital modifica-se num determinado momento para preservar

sua lógica geral. Nos termos sugeridos por Postone (2008: 94), trata-se de compreender

que a própria dinâmica capitalista produz variadas configurações históricas, que o

capitalismo “não pode ser identificado completamente com nenhuma das suas

configurações” e que a “emergência de uma nova configuração [...] envolve um

processo de mudança (nova configuração) e de continuidade (capitalismo)”. Mais do

que isso, a “dialética complexa, de mudança e reprodução, pela qual os elementos

centrais do capitalismo produzem mudança e, ao mesmo tempo, reproduzem-se” baseia-

se “na distinção entre superfície e estrutura profunda no capitalismo e torna acessível a

possibilidade de um futuro para além do capital, mesmo ao reproduzir o núcleo básico

do presente e, por meio disso, obstruir a realização do futuro”. (Ibid)

Em segundo lugar, a análise aqui sugerida nos permite afirmar, mais uma vez,

que estudar o desenvolvimento capitalista, desde uma perspectiva marxista, significa (i)

ter consciência da processualidade que caracteriza esse sistema, (ii) apreender as leis

gerais de movimento da sociedade e (iii) conhecer as condições concretas de

manifestação de tais leis. Nesse sentido, independentemente das consequências dessas

leis gerais e de suas condições concretas (sejam elas detestáveis ou adoráveis), o que

importa para a análise do desenvolvimento em si é saber se, na passagem de um período

a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos adequado à lógica

interna do capital.

Dentro dessa perspectiva, portanto, podemos dizer que o capital é tanto mais

desenvolvido, quanto mais ampla a sua atuação. Ou seja, por mais contra-intuitivo que

pareça, o fato de o capital ampliar seu alcance territorial (tendência à formação do

mercado mundial), penetrar nas mais distintas esferas da vida social (como, por

exemplo, as artes, esportes, relações familiares, de afeto etc.) e atuar em um número

maior de setores (como, por exemplo, aqueles originalmente conduzidos pelo Estado,

nos quais a lucratividade é relativamente diminuta e o retorno é mais demorado),

imprimindo, em todos esses casos, a sua lógica de funcionamento, significa que o

capital se desenvolveu. (Marx, 2011: 438pp.)

Por fim, temos clareza de que essa não é a forma como as teorias do

desenvolvimento analisam o capitalismo. Em lugar do desenvolvimento em si da

sociedade, tais teorias em geral se atêm a determinadas expressões empíricas, utilizadas

como critério para julgar o desenvolvimento capitalista como bom ou ruim. No primeiro

Page 73: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

62

caso, de julgamento positivo, as teorias aparecem não raramente como apologia do

capital. No segundo, de julgamento negativo, as teorias soam como uma denúncia sobre

o caráter desumano do capital (esquecendo, por vezes, que o capitalismo não tem

sentido humano!). Como as teorias não são inócuas, mas, ao contrário, são formas

refinadas de conceber a vida humana, formas que movem a prática social, que têm

efeitos práticos, a questão que se coloca é: como e por que tais teorias adquiriram ou

perderam legitimidade? É precisamente essa a pergunta que pretendemos responder ao

longo da próxima parte que compõe o presente trabalho.

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63

Apêndice III. Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista

Neste terceiro e último apêndice da Parte I, esperamos acrescentar alguns

elementos à análise da dinâmica do desenvolvimento capitalista, especialmente

relacionados à sua complexidade. Como buscamos demonstrar ao longo do capítulo, o

desenvolvimento capitalista é permeado por tendências particulares que influenciam a

forma concreta de manifestação das leis gerais de movimento da sociedade. Assim,

além das determinações gerais, em si complexas e por vezes contraditórias, os eventos

causados por essas determinações dependem ainda de tendências particulares, fatores

institucionais, história de cada local e cada época, tradições, costumes etc. De modo que

tomar o desenvolvimento capitalista como objeto de estudo significa, em última

instância, reconhecer a complexidade de sua dinâmica.

Essa complexidade, no entanto, nem sempre é reconhecida e corretamente

trabalhada, não sendo difícil encontrar aqueles que, independentemente de orientação

político-ideológica, analisam o desenvolvimento capitalista de maneira unidimensional.

Ao longo da próxima parte que compõe o presente trabalho, teremos a oportunidade de

verificar como esse tipo de equívoco está presente em grande parte das teorias do

desenvolvimento. Por ora, interessa-nos particularmente registrar o equívoco cometido

por aquelas teorias que tentam explicar a dinâmica capitalista, seja em seus momentos

de auge ou declínio, exclusivamente a partir da taxa de lucro.

Não pretendemos, com isso, negar a relevância da categoria. Como se sabe, a

taxa de lucro é um importante indicador de rentabilidade, revelando o grau de

valorização do capital em relação ao total antecipado, e de fato ocupa um lugar de

destaque na determinação da dinâmica capitalista, centrada fundamentalmente na

necessidade incessante de valorização do valor. No entanto, qualquer tentativa de

explicar a capacidade de expansão do capital a partir de uma relação direta e exclusiva

com a taxa de lucro é necessariamente reducionista. A expansão do valor depende de

inúmeros fatores, dos quais citaremos apenas alguns mais evidentes.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar, como advertido por Marx ainda no Livro I

de O Capital (2002: 657), que o lucro é apenas uma fração da mais-valia e que a

fragmentação da mais-valia em lucro, juros, ganhos comerciais, aluguéis, impostos etc.

influencia as condições de desenvolvimento do capital. Essa relação entre lucro e mais-

valia vai depender, entre outros fatores, da relação entre os diferentes capitalistas que

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64

exercem diferentes funções no conjunto da produção social (representantes do capital

produtivo, capital mercantil, capital usurário, proprietários de terra etc.) e da relação

desses capitalistas com o Estado, como explorado mais sistematicamente pelo autor ao

longo do Livro III.

Em segundo lugar, também devemos recordar que, além da taxa de lucro,

importa para a dinâmica capitalista a sua massa. Dessa forma, assim como um

decréscimo na taxa de mais-valia pode ser compensado pelo aumento na massa de mais-

valia (possibilitado por uma expansão extensiva do capital que supere a lógica de

acumulação intensiva), também um decréscimo na taxa de lucro pode ser compensado

por um acréscimo na massa de lucro, bastando, para tanto, que o decréscimo relativo da

parcela variável do capital total venha acompanhado de um acréscimo em termos

absolutos. (Marx, 1974: 219pp.)

Em terceiro lugar, além das massas de mais-valia e lucro produzidas por período

de rotação, importa sua massa anual, isto é, o quanto um capital é capaz de gerar de

lucro nos sucessivos períodos de rotação em que é empregado. Esse tempo de rotação

do capital, por sua vez depende tanto do tempo de produção (determinado por fatores

organizacionais e tecnológicos) quanto do tempo de circulação (determinado por

condições de oferta e demanda, pelo tamanho dos mercados, grau de desenvolvimento

dos meios de comunicação, de transporte etc.). Assim, quanto maior a velocidade de

rotação do capital, ou seja, quanto menor o tempo entre o adiantamento do capital em

forma dinheiro e seu retorno à figura primitiva, mais favoráveis as condições de

acumulação. (Ibid, 2000: 337pp.)

Por fim, além dos fatores “econômicos”, ligados fundamentalmente à produção e

circulação, há ainda a influência de fatores “extraeconômicos” sobre a acumulação de

capital, pois, como as determinações “econômicas” não existem fora do contexto social

mais amplo, as tendências que lhe são próprias em meio a esse contexto

necessariamente são atravessadas por determinações particulares e mesmo gerais não

ligadas ao campo econômico propriamente dito. Assim, além da influência de

determinações próprias à esfera econômica sobre as tendências e suas formas de

manifestação, é preciso considerar que, apesar de Marx ter centrado as atenções nos

processos de produção e circulação (abstração necessária para estudar uma sociedade

cuja dinâmica emana da economia), o fato de a economia, no capitalismo, adquirir uma

Page 76: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

65

hipertrofia não significa que não possa ser decisivamente atravessada por determinações

“extraeconômicas”.

Partindo ainda da análise da questão tal como apresentada por Marx, é preciso

deixar claro que, assim como a taxa de lucro não figura como a única categoria na

explicação da dinâmica capitalista, a sua queda não deve, tampouco, ser imediatamente

identificada com a necessidade de crises. Como Marx adverte diversas vezes ao longo

do capítulo em que trata da tendência à queda na taxa de lucro, esta queda decorre do

decréscimo relativo (e não absoluto!) da parte variável do capital em relação à parte

constante. Isso significa que “o número de trabalhadores que o capital emprega, ou seja,

a massa absoluta de trabalho que mobiliza e por conseguinte a massa absoluta de

trabalho excedente que suga, ou de mais-valia ou de lucro que produz podem portanto

crescer, e crescer de maneira contínua, apesar da queda progressiva da taxa de lucro”.

Não só podem crescer, como tendem a: “no regime de produção capitalista, isto é mais

que uma possibilidade, é uma necessidade, se abstraímos das flutuações temporárias”.

(Marx, 1974: 219)

Assim, tomando como exemplo o período posterior à crise dos anos 1970 e o

comportamento decrescente da taxa de lucro nas últimas três ou quatro décadas (em

contraponto às décadas posteriores à crise de 1929, marcadas pelo crescimento

significativo da taxa média de lucro), poderíamos ser levados a concluir (não sem

propósito) que o capitalismo vem passando por uma longa fase de estagnação. No

entanto, considerando tudo o que foi dito até o momento, também temos motivos para

acreditar que, apesar da possível compressão das taxas de lucro, as particularidade desse

período (extensamente analisadas ao longo do capítulo terceiro) possibilitaram a

redução significativa dos tempos de produção e circulação, aumentando a velocidade de

rotação do capital e, portanto, a valorização anual por unidade de capital aplicado.

Também não podemos ignorar os processos de concentração e centralização do capital e

o papel desempenhado pelo crédito durante esse período.

Enfim, não pretendemos transformar esta em uma lista interminável de

particularidades ou realizar uma análise minuciosa de todas elas. Considerando os

propósitos do presente trabalho, esperamos apenas ter chamado a atenção para a

complexidade da dinâmica capitalista, mostrando, a partir do estudo desses casos

concretos, como, além da taxa de lucro, são inúmeros os fatores que podem influenciar

o desenvolvimento capitalista e que as condições específicas desse desenvolvimento vão

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66

depender de determinações particulares, que favorecem algumas causas em detrimento

de outras.

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67

Parte II. Teorias do desenvolvimento: por uma crítica ontológica

Uma vez apresentado o sentido geral da teoria ontológica do desenvolvimento

aqui defendida, dedicamos a Parte II do presente trabalho à inspeção crítica daquelas

formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar um tratamento mais

refinado à temática: as chamadas teorias do desenvolvimento. Ainda que, passando em

revista a evolução do pensamento econômico, seja possível encontrar incontáveis

referências à questão do desenvolvimento, tomamos como ponto de partida as

formulações produzidas nos anos 1940/1950, momento no qual se registra o nascimento

da Economia do Desenvolvimento como uma disciplina relativamente autônoma e

especificamente dedicada à temática.

Como retratado anteriormente,49

esse período, que coincide com o fim da

Segunda Guerra Mundial, foi marcado por uma série de reorientações (especialmente no

plano político-ideológico) e transformações significativas na configuração mundial (em

virtude das inúmeras descolonizações e revoluções), que oferecem importante auxílio à

compreensão das principais características daquele conjunto teórico. Um aspecto

comumente ressaltado, e recorrentemente utilizado como critério para reunião dessas

teorias em um mesmo grupo, diz respeito ao fato de compartilharem todas uma mesma

preocupação: diante do reconhecimento de que os diferentes países sustentam trajetórias

históricas de crescimento distintas, as teorias do desenvolvimento são identificadas

como aquelas que se ocupam de explicar a existência dessas trajetórias particulares e

sugerir possíveis soluções para os “menos favorecidos” (ou subdesenvolvidos).

O aspecto geralmente utilizado para distinguir essas teorias, portanto, é a

preocupação com a ausência de desenvolvimento, ou seja, com o subdesenvolvimento –

termo que, como indica a própria etimologia da palavra, é normalmente utilizado para

designar uma condição de baixo grau (ou mesmo ausência) de desenvolvimento. Nesse

período, passaram a ser chamadas de subdesenvolvidas aquelas regiões materialmente

menos favorecidas (também conhecidas como Terceiro Mundo), que não foram capazes

de acompanhar determinado padrão de desenvolvimento sócio-econômico, atribuído aos

países capitalistas pioneiros no processo de industrialização (também conhecidos como

Primeiro Mundo).

49

Ver capítulo 3, seção 1.

Page 79: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

68

Apesar da diversidade de teorias que marca esse período de grande efervescência

do debate sobre desenvolvimento, algumas características gerais ainda podem ser

identificadas. Em primeiro lugar, ainda que a origem do subdesenvolvimento fosse

explicada de maneiras distintas, o desenvolvimento foi entendido predominantemente

como sinônimo de crescimento do produto (per capita), associado à crença de que o

crescimento do produto é também capaz de gerar melhores condições de vida para a

população, em geral. Em segundo lugar, ainda que não tenha havido de fato um

consenso em torno da estratégia para a superação do subdesenvolvimento (se

capitaneada pelo Estado ou deixada ao sabor das forças do mercado), a ênfase recaía,

também predominante, na necessidade de industrialização das economias ainda agrárias

ou mercantis.

Naquele contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento surgem como

formulação científica de compreensão e administração da dinâmica social capitalista,

consolidando o argumento segundo o qual, somente através deste expediente, seria

possível promover uma convergência (ou, no mínimo, uma aproximação) entre as

trajetórias de crescimento das diferentes nações (ou conjunto de nações). Como se

pretende argumentar, tratava-se de transformar o progresso presumidamente automático

que caracteriza esta sociedade num projeto presumidamente dirigido (pelo Estado).

Pode-se dizer que esta foi a visão dominante até meados dos anos 1970, quando,

acompanhando a crise econômica que se espalhou pelo mundo durante esta década e a

seguinte, a pretensão de dirigir o capitalismo entrou em colapso. Além disso, assiste-se

durante esse período à proliferação de denúncias sobre a devastação do meio ambiente

resultante do processo de industrialização e crescentes exigências de que os benefícios

do aumento da riqueza sejam apropriados e distribuídos de modo mais equitativo. Nesse

contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento vestem uma nova roupagem,

geralmente associada à incorporação de novos critérios à definição do desenvolvimento

e redefinições estratégicas. Que se trata de novas teorias, no sentido de teorias diversas,

não resta qualquer dúvida. Mas é possível e necessário indagar se essas teorias, a

despeito de sua diversidade interna e com relação ao conjunto teórico que lhe antecede,

constituem, de fato, uma novidade. Ou seja, se são novas teorias, no sentido de delinear

de fato uma nova visão de desenvolvimento (i.e., uma imagem efetivamente diferente

da sociedade em seu estágio “desenvolvido”).

Page 80: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

69

Na tentativa de responder a essas questões, a Parte II encontra-se dividida em

quatro capítulos. Considerando a estreita relação entre as temáticas do desenvolvimento

e do crescimento (especialmente no período que antecede a crise dos anos 1970), inicia-

se, no quarto capítulo, com um panorama geral dos modelos de crescimento econômico

no período pré-1970. Para tanto, utiliza-se como ilustração as formulações pioneiras de

Harrod e Domar, seguidas do contraponto sugerido por Solow. O exame das teorias

“clássicas” do desenvolvimento, produzidas no mesmo período, encontra-se no capítulo

cinco, que resgata algumas formulações (especialmente aquelas produzidas por

Rosenstein-Rodan, Nurkse, Myrdal, Hirschman e Rostow) que tratam das regiões

subdesenvolvidas, em geral; o capítulo seis resgata, ainda, formulações que tratam

especificamente do caso latino-americano (especialmente gestadas no âmbito da

CEPAL). O sétimo capítulo, por fim, busca apresentar as principais reorientações

observadas no debate sobre desenvolvimento no período posterior à década de 1970.

Em linhas gerais, espera-se ao longo desses capítulos reunir elementos comuns

que permitam comprovar que tais teorias geralmente abordam a questão do

desenvolvimento de forma maniqueísta e positiva: maniqueísta na medida em que o

desenvolvimento é lido como algo necessariamente bom e o subdesenvolvimento (ou

seja, a ausência de desenvolvimento) como algo necessariamente ruim, clivagem essa

que pressupõe a eleição ad hoc de determinados critérios (crescimento da renda per

capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.); e positiva porque a temática do

desenvolvimento sempre se refere às condições imediatamente dadas e às possibilidades

que podem se pôr (também imediatamente) a partir dessas condições (a crítica das

condições e das possibilidades não é realizada).

Page 81: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

70

Capítulo 4. Os modelos “prototípicos” de crescimento econômico:

Harrod, Domar e Solow

Quando observamos os desenvolvimentos teóricos mais significativos do

imediato pós-guerra, salta aos olhos o grande interesse dos cientistas em geral pela

temática do crescimento econômico. Isso não significa, evidentemente, que a busca

pelos determinantes do crescimento da riqueza tenha sido um tema ausente em

formulações teóricas de épocas anteriores. Se nos voltamos, por exemplo, para o

período de nascimento da ciência econômica, observamos que os primeiros economistas

clássicos estavam particularmente preocupados em compreender os principais

mecanismos de funcionamento da sociedade emergente (capitalista), que conduziam ao

nunca antes visto crescimento da riqueza e avanço das forças produtivas do trabalho.

Foram os primeiros, mas não os únicos: passando em revista a evolução da análise

econômica, encontramos inúmeras e distintas interpretações sobre os determinantes do

crescimento da riqueza (como por exemplo, aquelas oferecidas por Marshall, Keynes e

Schumpeter), algumas das quais serviram posteriormente como fundamento para as

teorias do crescimento e do desenvolvimento econômico, stricto sensu.

No entanto, ainda que tenham buscado amparo em teorizações anteriores, as

formulações sobre crescimento características do século XX estão mais intimamente

associadas, pelos motivos já apresentados, à necessidade de explicar por que os

diferentes países possuem trajetórias de crescimento distintas. Assim, ainda que não

tenham sido formuladas com o propósito de explicar as particularidades por detrás do

baixo crescimento do produto nos países pobres (ou subdesenvolvidos) – tarefa

reservada para as teorias do desenvolvimento, analisadas nos próximos capítulos –, as

teorias do crescimento também são capazes de oferecer uma resposta para a

desigualdade de renda no plano mundial.

Em segundo lugar, não podemos deixar de notar que as teorias do crescimento

produzidas durante esse período ficaram conhecidas pela formalização matemática, de

inspiração neoclássica. Assim, mesmo quando buscam inspiração em fontes diversas

(i.e. seja em Keynes ou em Ricardo), os modelos de crescimento pressupõem um modo

particular de se fazer ciência, que se tornou hegemônico na ciência econômica apenas

depois da chamada “revolução marginalista”, no final do século XIX.

Page 82: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

71

Por fim, observamos que, seguindo o mesmo critério de cientificidade, os

modelos de crescimento pretendem ser um “corpo de conhecimento sistematizado

referente ao que é”, e não um “corpo de conhecimento sistematizado relativo ao critério

do que deveria ser e referido, portanto, ao ideal como algo distinto do atual”. (Neville

Keynes, 1999: 22) No entanto, mesmo que não tenham sido formulados com conteúdo

explicitamente normativo, os modelos de crescimento podem ser (e são, geralmente)

utilizados como base para prescrições e formulação de políticas econômicas.

Na tentativa de oferecer um panorama geral dos modelos de crescimento

econômico no período pré-1970, o presente capítulo encontra-se dividido em três

seções. Na primeira, apresentamos as linhas gerais dos modelos pioneiros de Harrod e

Domar, formulados em 1939 e 1946, respectivamente. Considerando que são ambos

modelos de inspiração keynesiana, dedicamos a segunda seção à exposição do modelo

de Solow, construído em 1956 como contraponto aos modelos anteriores e tomado aqui

como representante dos modelos de inspiração neoclássica. Por fim, encerramos o

capítulo com algumas considerações gerais sobre os modelos discutidos.

Vale destacar, desde já, que não pretendemos com isso analisar os pormenores

dos modelos em questão, discutir o modo como o grau de sofisticação foi aumentando

ao longo do tempo, que hipóteses foram “relaxadas” ou abandonadas etc. Considerando

os objetivos do presente trabalho, interessa-nos mostrar, em primeiro lugar, como esses

modelos acabam por dar inteligibilidade científica a um dos principais elementos da

dinâmica capitalista (seu caráter inerentemente expansivo). Em segundo lugar,

pretendemos explicar também como, naquele contexto histórico específico, os modelos

de crescimento terminam por responder a questões levantadas pela própria dinâmica de

acumulação de capital em nível global e oferecer, a despeito da sua pretensa

neutralidade, um instrumental útil à reprodução dessa dinâmica.

Seção 4.1. Crescimento equilibrado e instabilidade nos modelos de Harrod e Domar

Como indicado anteriormente, com a presente seção buscamos apresentar as

linhas gerais dos modelos de crescimento de Harrod e Domar, cujas características

centrais encontram-se delineadas já nos artigos de 1939 (An essay in dynamic theory) e

1946 (Capital expansion, rate of growth and employment), respectivamente,

Page 83: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

72

considerados precursores nesse campo.50

Além do pioneirismo, os modelos de Harrod e

Domar ficaram conhecidos pela orientação teórica explicitamente keynesiana e pelo fato

de terem chegado a conclusões semelhantes, ainda que por caminhos diferentes e

relativamente independentes, como esperamos mostrar adiante.51

Começando com o modelo proposto por Harrod, observamos que seu objetivo

inicial era dar um tratamento dinâmico a alguns conceitos básicos e ideias-chave da

macroeconomia inaugurada por Keynes. Mais especificamente, as preocupações de

Harrod podem ser resumidas em três questões fundamentais: qual a taxa de crescimento

da renda capaz de manter a igualdade entre os planos de investimento e os planos de

poupança (condição de um equilíbrio estático) ao longo do tempo? Esse equilíbrio é

necessariamente um equilíbrio a pleno emprego dos fatores? Existe alguma garantia de

que essa taxa de crescimento, uma vez atingida, se sustente no longo prazo?

Para responder a essas questões, Harrod (1939: 14) toma como ponto de partida

três hipóteses básicas: (i) “o nível de renda de uma comunidade é o determinante mais

importante de sua oferta de poupança”; (ii) “a taxa de crescimento dessa renda é um

determinante importante da demanda por poupança”; e, (iii) “a demanda é igual à

oferta”. Em termos formais:

(i) S = sY

(ii) I = C∆Y

(iii) S = I

Onde S é a poupança, s a propensão marginal a poupar, Y o nível de renda, I o

investimento e C o incremento “de capital requerido para a produção de uma unidade de

produto adicional”.52

(Ibid: 16) A partir de uma manipulação simples das equações

acima apresentadas, chegamos à “equação fundamental” do modelo de Harrod (Ibid:

17), que apresenta a taxa garantida de crescimento (warranted rate of growth) como:

C

sGW

50

Para a apresentação das concepções de Harrod e Domar nos valemos, além dos textos originais, das

sistematizações elaboradas por Jones (1979) e Thirlwall (2005). 51

Em virtude das semelhanças entre os modelos, é bastante comum encontrar nos livros-texto de

Economia a referência a um único modelo “Harrod-Domar”. 52

De acordo com Jones (1979: 58), haveria ainda no modelo de Harrod uma hipótese sobre o

comportamento da função de produção (“do tipo proporções fixas”), a partir da qual o autor buscava

registrar a existência de certa rigidez tecnológica limitando as possibilidades de substituição entre os

fatores de produção (capital e trabalho). Em última instância, essa rigidez da relação capital-trabalho

levaria a uma rigidez da relação capital-produto “efetiva” (Cp), que, como veremos adiante, será um dos

pontos centrais da crítica de Solow ao modelo “Harrod-Domar”.

Page 84: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

73

Segundo o autor (Ibid: 16), taxa garantida (GW) deve ser entendida como “[...] a

taxa de crescimento que, caso aconteça, satisfará todas as partes envolvidas, de maneira

que não produzirão nem mais nem menos do que o montante correto”. Em outras

palavras, a taxa garantida é aquela capaz de colocar os empresários “em um estado de

espírito que os levará a tomar decisões no sentido da manutenção do mesmo ritmo de

crescimento”. No entanto, não necessariamente será essa a taxa verdadeira de

crescimento (actual rate of growth), i.e. a taxa efetivamente verificada. Utilizando o

mesmo conjunto de equações anteriormente apresentadas, Harrod define a taxa

verdadeira de crescimento (GA) como:

p

AC

sG

Onde s é a propensão marginal a poupar e Cp o incremento do estoque de capital

no período dividido pelo incremento total do produto YK , ou ainda, o incremento

de capital por unidade adicional de produto efetivamente produzido.

De acordo com essa formulação, portanto, só seria possível alcançar uma

trajetória de crescimento equilibrado quando a taxa verdadeira coincidisse com a taxa

garantida de crescimento (GA = GW).53

Como sintetizado por Jones (1979: 62-63), “se o

produto na verdade cresce à taxa garantida, então o verdadeiro estoque de capital vai ser

igual ao estoque de capital desejado e uma grande gama de hipóteses sobre as respostas

comportamentais dos empresários implica que, assim sendo, eles estariam preparados

para continuar a implementar a mesma taxa de crescimento no futuro”.

No que tange à segunda questão, Harrod afirma que a trajetória de crescimento

equilibrado não necessariamente corresponde ao pleno emprego dos fatores de

produção. Segundo Harrod (1939: 30), para que isso aconteça, é preciso não só que a

taxa verdadeira iguale-se à taxa garantida, mas também que ambas igualem-se à taxa

natural de crescimento (GN), definida como “a taxa máxima de crescimento permitida

pelo crescimento populacional, acumulação de capital, progresso tecnológico e pela

alocação das preferências entre trabalho e lazer, supondo sempre a existência de algum

53

Como advertido por Harrod (1939: 16), é preciso aqui tomar cuidado com a utilização da palavra

“equilíbrio”, pois, “ainda que cada ponto da trajetória do produto descrita por Gw seja um ponto de

equilíbrio no sentido de que os produtores, permanecendo nela, estarão satisfeitos e serão induzidos a

manter a mesma taxa de crescimento em curso, o equilíbrio é, pelas razões a serem explicadas, altamente

instável”.

Page 85: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

74

tipo de pleno emprego”. Portanto, a condição para que haja um crescimento equilibrado

com pleno emprego é:

GA = GW = GN

No entanto, ainda que a igualdade entre as taxas de crescimento verdadeira,

garantida e natural fosse possível, ela seria pouco provável. Isso porque as variáveis que

determinam as diferentes taxas de crescimento seriam reguladas por fatores distintos,

não havendo qualquer mecanismo que garantisse essa coincidência – se ela de fato se

verificasse, seria por razões meramente casuais. De acordo com Jones (1979: 65), essa

conclusão, também conhecida como primeiro problema de Harrod, pode ser entendida

como “uma versão dinâmica da alegação central keynesiana de que o equilíbrio com

desemprego é possível numa economia capitalista”.

Dando sequência ao argumento, Harrod (1939: 22) busca mostrar como, além de

pouco provável, o crescimento equilibrado a pleno emprego dos fatores é altamente

instável. Isso porque desvios da trajetória de equilíbrio (dinâmico), ao contrário de

“autocorretivos”, são “autoagravantes” (conclusão também conhecida como segundo

problema de Harrod). De acordo com o autor (Ibid), se a taxa verdadeira for menor que

a taxa garantida (GA < GW), a relação capital-produto efetiva será maior que a requerida

(Cp > C), induzindo os empresários a reduzir os investimentos, reduzindo ainda mais a

taxa de crescimento. Por outro lado, se a taxa verdadeira for maior que a taxa garantida

(GA > GW), a relação capital-produto efetiva será menor que a requerida (Cp < C),

induzindo os empresários a aumentar os investimentos, aumentando ainda mais a taxa

de crescimento. Assim, no que tange à terceira questão, ao invés da reaproximação entre

as taxas GA e GW, o que se verifica é o crescente distanciamento entre elas.

Como indicado anteriormente, Domar também chegou a conclusões similares

àquelas encontradas por Harrod, ainda que por caminhos ligeiramente diferentes.

Tomando como ponto de partida a afirmação de que determinada economia estará em

equilíbrio quando sua capacidade produtiva igualar-se à renda nacional, Domar (1946:

138) está particularmente preocupado em, aplicando os princípios da análise dinâmica,

“descobrir as condições sobre as quais esse equilíbrio pode ser mantido”, ou ainda, “a

taxa de crescimento à qual a economia deve se expandir para que se mantenha em um

estado contínuo de pleno emprego”.

Em linhas gerais, para que o nível verdadeiro da renda ou produto (Y) e o nível

máximo potencial da renda ou produto (P) permaneçam em igualdade é preciso que

Page 86: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

75

ambos cresçam à mesma taxa (∆Y e ∆P, respectivamente), definidas pelo autor da

seguinte maneira:

IP

Is

Y

1

Onde s é a propensão marginal a poupar, I o fluxo de investimento e σ a

“produtividade social potencial média do investimento” (que, como veremos adiante,

aproxima-se em certo sentido da relação capital-produto requerida (C) de Harrod).

Combinando de maneira simples as equações acima apresentadas, temos que:

Is

I

1

Ou ainda:

sI

I

Tem-se aí a “equação fundamental” do modelo de Domar. Segundo Jones (1979:

74), “se s e σ são considerados constantes, a taxa de crescimento do investimento que

vai manter a renda verdadeira igual ao nível de renda máximo potencial, é a taxa

constante proporcional sσ”. Ora, se σ (∆P/I) é o crescimento potencial do produto por

unidade de investimento, enquanto C é o número de unidades de novos investimentos

necessários para produzir uma unidade extra de produto, σ = 1/C, e a substituição

demonstra que as equações fundamentais de Harrod e Domar são formalmente iguais.

(Ibid: 75) Considerando também os termos propostos por Domar, ainda que seja

possível, não há qualquer garantia de que os investimentos cresçam efetivamente a essa

taxa.

Em suma, os modelos de Harrod e Domar ficaram conhecidos (especialmente o

primeiro) por descrever uma dinâmica tumultuada de crescimento econômico.

Elaborados sob a atmosfera de duas guerras entremeadas por uma grande depressão,

suas conclusões mostravam-se razoavelmente compatíveis com as próprias evidências

do período. Por outro lado, as experiências bem sucedidas de crescimento econômico

Page 87: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

76

que teriam lugar nas décadas posteriores seriam igualmente utilizadas por parte dos

críticos como prova da incompatibilidade entre o modelo Harrod-Domar e os “fatos”.54

Assim, como geralmente observado nas disputas teóricas internas à ciência

econômica, o critério de adequação empírica foi determinante na reorientação dos

modelos de crescimento econômico. Construídos como contraponto direto aos trabalhos

de Harrod e Domar, os principais desenvolvimentos teóricos posteriores caminharam

justamente no sentido de demonstrar que o crescimento econômico estável com pleno

emprego era não apenas possível, mas também provável.

No campo keynesiano, os esforços constituídos especialmente através dos

trabalhos de Robinson, Kaldor, Pasinetti, entre outros, concentraram-se na análise dos

fatores determinantes da formação de poupança, do ponto de vista da dinâmica

econômica. Sugeria-se que, por um lado, a poupança dependia mais dos lucros que dos

salários e que, por outro, os lucros cresciam como proporção da renda nacional em

período de expansão econômica e decresciam durante as recessões. O resultado era que

se, por exemplo, a taxa de crescimento fosse superior à garantida, a própria expansão,

na medida em que permitisse lucros maiores, favoreceria a elevação da taxa de

poupança e mudaria a própria taxa garantida de crescimento, aproximando novamente

as duas – o inverso ocorrendo caso, ao invés, a taxa natural se encontrasse aquém da

taxa garantida. (Thirlwall, 2005: 26-27)

Alternativamente, no campo neoclássico, um dos principais problemas

apontados pelos críticos foi a já mencionada hipótese de uma relação capital-produto

constante (que indicaria a impossibilidade de substituir os fatores de produção, capital e

trabalho). De acordo com esse argumento, levantado inicialmente por Solow e Swan, a

hipótese das “proporções fixas” seria não apenas incompatível com um modelo que

pretende realizar análises de longo prazo, como também seria fator determinante na

conclusão a respeito da instabilidade do crescimento. Portanto, como pretendemos

mostrar na seção seguinte, é tomando como ponto de partida a flexibilização dessa

hipótese que os modelos neoclássicos pretendem demonstrar a existência de estabilidade

no crescimento econômico.

54

De acordo com Jones, esse tipo de crítica poderia ser rebatido pela utilização do seguinte argumento:

“os problemas de Harrod não emergiram no período do pós-guerra por causa da aplicação sistemática das

políticas keynesianas de estabilização econômica”. (Jones, 1979: 79)

Page 88: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

77

Seção 4.2. A estabilidade do crescimento no modelo de Solow

Para tratar dos desenvolvimentos teóricos no campo neoclássico, tomamos como

referência a versão mais simples do modelo de Solow, apresentada em 1956 no artigo A

contribution to the theory of economic growth.55

Como indicamos ao final da seção

anterior, esse modelo toma como ponto de partida uma crítica ao modelo Harrod-

Domar, focada principalmente na hipótese das “proporções fixas”. Mesmo deixando de

lado a discussão a respeito da correção ou incorreção dessa hipótese – sob a justificativa

de que “toda teoria depende de hipóteses que não são totalmente verdadeiras” – Solow

(1956: 65) acredita que o modelo em questão também não está de acordo com a “arte de

bem teorizar” (entendida por ele como a arte de “fazer as inevitáveis hipóteses

simplificadoras de tal maneira que os resultados finais não sejam muito sensíveis”).

Segundo o autor, “a oposição fundamental entre as taxas garantida e natural de

crescimento deriva da hipótese crucial de que a produção acontece sob condições de

proporções fixas”, de tal modo que, “se essa hipótese é abandonada, a noção de „fio da

navalha‟ de crescimento instável parece ter o mesmo destino”.56

(Ibid)

Assim, tratando do mesmo conjunto de problemas levantados pelos modelos

anteriores (a busca da condição de equilíbrio dinâmico e dos mecanismos que

conduziriam a economia a tal estado), Solow (Ibid: 66) pretende formular um “modelo

de crescimento de longo prazo que aceita todas as hipóteses de Harrod-Domar, exceto

aquela de proporções fixas”. Para tanto, o modelo é construído a partir de duas equações

fundamentais: (i) uma função de produção, que apresenta os diferentes níveis de

produto compatíveis com diferentes combinações dos fatores de produção (capital e

trabalho) e (ii) uma equação que descreve a dinâmica da acumulação de capital,

determinada pelo investimento bruto e pelo do montante da depreciação ocorrido

durante o processo produtivo. Em termos formais:

(i) 1),( LKLKFY

55

No intuito de facilitar a apresentação deste modelo, utilizamos também as sínteses realizadas por Jones

(1979) e Jones (2000). 56

A noção de “fio da navalha”, utilizada por Solow (1956: 65) para descrever “a conclusão característica

e poderosa da linha de pensamento Harrod-Domar”, foi explicitamente rejeitada por Harrod (1973) anos

depois. Segundo o autor, essa nomenclatura “soa profundamente irrealista e, mesmo, um tanto ridícula”,

(Ibid: 33) sendo mais apropriada a comparação do sistema econômico com “uma bola sobre uma

declividade gramada. É necessário um chute forte para movê-la. Mas, uma vez movida, ela pode ir bem

mais longe – especialmente se a encosta é abrupta – do que um chute inicial de igual força a faria ir sobre

um campo plano”. (Ibid: 32)

Page 89: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

78

(ii) dKsYK

Onde Y é a renda, K o capital, L o trabalho, α é qualquer número entre 0 e 1,

K

é a variação no estoque de capital, s a propensão marginal a poupar e d a taxa de

depreciação do capital. Na primeira equação, um α maior ou menor nos diz se a

tecnologia utilizada é mais ou menos intensiva em capital. Na segunda equação,

observamos que quando maior o nível de investimento e quando menor a depreciação,

maior a taxa de variação do capital.

Como os fatos que o modelo de Solow busca explicar envolvem também o

produto por trabalhador ou o produto per capita (y = Y/L), podemos dividir ambos os

lados das equações (i) e (ii) por L e obter os seguintes resultados:

(iii) ky

(iv) kdnsyk

Onde n representa a taxa de crescimento da população (considerada, por

hipótese, igual à taxa de crescimento da força de trabalho), que também passa a atuar

como fator redutor da taxa de variação do estoque de capital.

Uma vez apresentadas as “equações fundamentais” do modelo, Solow afirma

que uma economia qualquer estará em equilíbrio quando o investimento per capita for

do tamanho necessário para manter constante o montante de capital por trabalhador,

compensando os efeitos negativos da depreciação e do crescimento da força de trabalho

– situação na qual a taxa de crescimento do capital per capita iguala-se a zero. Assim,

combinando as equações (iii) e (iv), e supondo a condição de equilíbrio, temos que:

(v)

1

1

*

dn

sk

Substituindo (v) na função de produção por trabalhador (iii), chegamos,

finalmente, ao produto por trabalhador na situação de equilíbrio, y*:

(vi)

1*

dn

sy

Assim construído, o modelo conduz à conclusão de que o produto per capita no

equilíbrio de longo prazo depende apenas das variáveis s, n e d e do parâmetro α. Essa

Page 90: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

79

situação de equilíbrio, na qual o montante de capital por trabalhador permanece

constante, será chamada por Solow de estado estacionário.57

A figura 8.1, baseada em

Solow (1956: 70), sintetiza as conclusões até aqui apresentadas. Sendo as curvas

expressões dos dois termos da equação (iv), o ponto (y*, k

*) denota a situação de

equilíbrio, que anula a taxa de crescimento do capital per capita.

Figura 8.1: Gráfico de Solow

Uma vez definida a condição de equilíbrio, Solow busca demonstrar a existência

de mecanismos geradores de uma tendência ao crescimento equilibrado. Analisando

graficamente, fica fácil observar que em qualquer ponto à esquerda de k* o montante de

investimento por trabalhador (representado pela curva sy) supera o decréscimo de

capital por trabalhador advindo da depreciação e do crescimento populacional

(representado pela curva (n+d)k). Essa situação implicaria, portanto, o crescimento do

capital por trabalhador (k), até o ponto em que k = k*. A situação seria inversa em

qualquer ponto à direita de k*, em que o investimento está aquém do necessário para

compensar o decréscimo de capital, determinando a redução de k novamente até o ponto

k*. Em suma, qualquer que sejam os valores iniciais das variáveis básicas do modelo, a

economia sempre se move em direção ao estado estacionário – único ponto capaz de

manter a estabilidade do crescimento.

57

Vale enfatizar: a situação descrita como estado estacionário não implica a inexistência de crescimento

econômico. Implica, sim, que o produto cresça à mesma taxa que a população, garantindo uma relação

“produto/trabalho” estável.

Page 91: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

80

Seção 4.3. Considerações finais

A partir da inspeção dos modelos de Harrod, Domar e Solow, buscamos com as

seções acima apresentar os principais elementos constitutivos dos modelos de

crescimento econômico formulados no período pré-1970. Esse exercício faz-se

necessário, pois, apesar das diferenças nada desprezíveis existentes entre os modelos de

crescimento aqui apresentados e as teorias do desenvolvimento discutidas nos três

próximos capítulos, essas formulações têm em comum o fato de serem dirigidas à

compreensão dos fatores determinantes da disparidade de renda entre os diferentes

países. Uma vez que durante o período pré-1970 o desenvolvimento das nações foi

entendido, predominantemente, como sinônimo de crescimento da renda (per capita), os

modelos de crescimento podem ser enquadrados no conjunto mais amplo de

formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar tratamento à temática

do desenvolvimento naquele contexto histórico específico.

Considerando ainda que este consiste no primeiro dos três capítulos destinados à

inspeção crítica das concepções sobre o desenvolvimento dominantes no período pré-

1970, talvez seja prudente chamar atenção, mais uma vez, para o tipo de crítica que

pretendemos realizar aqui. Dados os diferentes rumos possíveis de uma análise crítica e

o conteúdo das formulações acima apresentadas, o leitor talvez seja induzido, por

exemplo, a acreditar que temos a pretensão de partir para uma discussão sobre o caráter

restritivo das hipóteses utilizadas como fundamento dos modelos, ou ainda sobre o tipo

de método por eles empregado no estudo das relações econômicas.

Ainda que a importância de considerações desse tipo não esteja sendo colocada

em questionamento, não é esse o caminho que buscamos trilhar. Partindo da concepção

de que a autêntica crítica científica deve dirigir-se não apenas às ideias em si, mas

também às formas de existência que tornam aquelas ideias correntes e necessárias,

interessa-nos aqui fornecer elementos que permitam explicar por que, apesar de todos os

problemas relacionados à descrição da dinâmica de funcionamento da economia

sugerida pelos modelos de crescimento, aquelas são concepções atrativas, de ampla

circulação e aceitação. Para tanto, faz-se imperativo olhar não apenas para as

formulações teóricas em si, mas também para a relação dessas teorias com o modo de

produção capitalista, em geral, e com o contexto histórico em que são produzidas, em

particular.

Page 92: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

81

Falando mais diretamente sobre os modelos de crescimento, vimos nas seções

anteriores que um dos seus principais objetivos era explicar, com recurso à lógica

formal ou matemática, os fatores determinantes do crescimento da riqueza (medida pelo

crescimento do produto ou produto per capita). Isso é, indubitavelmente, apropriado

(útil até) à descrição de um modo de produção que possui como determinante central o

impulso ao aumento da riqueza (ou seja, que tem o não-crescimento como um

problema), riqueza esta homogeneizada em termos de valor (pressuposto fundamental

que torna possível o tratamento exclusivamente quantitativo das relações econômicas).

Em que pese essa nítida “adequação empírica”, a aceitação automática do

crescimento como critério central ao juízo das condições socioeconômicas dos países e

regiões deixa de lado uma questão fundamental, levantada por críticos de diversos

matizes teóricos: qual o sentido humano de tal crescimento? Como veremos no último

capítulo, a partir da crise dos anos 1970 e do reconhecimento de problemas associados

ao padrão de crescimento/desenvolvimento defendido ao longo das décadas anteriores,

questionamentos desse tipo tornaram-se ainda mais frequentes, da esquerda à direita. E

mesmo quando levantada no campo conservador – como, por exemplo, no trabalho de

Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade (2000) –, tal questionamento tem o

mérito de despertar a atenção para a possibilidade de uma existência social na qual

normalidade ou crises econômicas não sejam sinônimo de aumento ou diminuição do

produto.

Quando observamos os modelos de Harrod-Domar e Solow em conjunto, no

entanto, percebemos que ambos reduzem a condição da economia (e, por seu

intermédio, da sociedade) ao crescimento do produto; ambos concebem o crescimento

como dependente da poupança; ambos associam o crescimento do produto ao

crescimento populacional (numa reedição da lógica de Malthus e Ricardo), entre outras

semelhanças. As principais diferenças entre essas formulações residem basicamente nas

conclusões sobre o caráter estável ou não do crescimento e sobre a possibilidade de que

a economia equilibre-se ou não em condições de pleno emprego.

Em termos mais amplos, essa distinção pode ser entendida como resultado da

filiação a uma de duas posições: a posição liberal clássica, que considera que o mercado

é capaz de atingir, por si mesmo, uma situação econômica não apenas ordenada, como

produtiva, e a posição identificada com a crítica de Keynes, que nega essa possibilidade

e reclama uma participação mais ativa do Estado na vida econômica. O discurso oscila,

Page 93: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

82

então, entre a defesa, em geral implícita, do capitalismo liberal ou a defesa, em geral

aberta, do capitalismo “regulado”. Livre ou “regulado”, é sempre o capitalismo que se

projeta para o futuro. Veremos nos capítulos seguintes como as teorias do

desenvolvimento reeditam, de algum modo, esse debate pendular entre configurações

diversas da mesma formação social.

Page 94: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

83

Capítulo 5. Teorias clássicas do desenvolvimento (i): estratégias de

industrialização para as regiões subdesenvolvidas, em geral

Realizada a análise crítica dos principais modelos de crescimento, passamos

agora ao estudo das teorias clássicas do desenvolvimento, produzidas no período

imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Como indicado anteriormente, esse

período marca o nascimento de um campo relativamente autônomo dentro da ciência

econômica, também conhecido como Economia do Desenvolvimento, que,

diferentemente dos modelos de crescimento, tem por objetivo central explicar os

determinantes do subdesenvolvimento e apontar saídas para essa condição. Para além

desse aspecto geral, algumas características particulares podem ainda ser identificadas

nesse período de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento.

Como pretendemos deixar claro ao longo do presente capítulo, em primeiro

lugar, o desenvolvimento é tomado como sinônimo de aumento da riqueza, medida pela

renda per capita (acompanhado, em alguns casos, da noção de que esse aumento de

riqueza deve ser capaz de gerar melhorias nas condições de vida da população).

Consequentemente, por contraposição, o subdesenvolvimento é associado à baixa renda

per capita (e, por vezes, à incapacidade de garantir condições dignas de vida para a

população). Além disso, o que se observa nesse período é a predominância da ideia de

que o desenvolvimento deve ser promovido através da industrialização. Assim,

utilizando uma combinação de argumentos teóricos (de inspiração clássica, keynesiana

e/ou schumpeteriana) e históricos (amparados nas experiências bem sucedidas de

industrialização da Europa ocidental, Estados Unidos e União Soviética), essas teorias

procuram defender e justificar a necessidade da industrialização.

Por outro lado, as principais divergências entre as teorias clássicas do

desenvolvimento giram em torno de dois pontos fundamentais. O primeiro, diz respeito

aos determinantes do subdesenvolvimento e, portanto, à tentativa de explicar a baixa

renda per capita – nesse caso, veremos que, enquanto algumas teorias apontam a baixa

poupança e ausência de recursos como o determinante em última instância do

subdesenvolvimento, outras acreditam que se trata apenas de uma má utilização dos

recursos disponíveis. O segundo ponto refere-se à estratégia de industrialização

defendida pelas diferentes teorias (mais ou menos intensiva em capital, com ou sem

intervenção do estado, equilibrado ou desequilibrado etc.).

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84

Para dar conta de todos esses aspectos, o capítulo encontra-se divido em quatro

seções. Na primeira, tratamos de algumas teorias que explicam o subdesenvolvimento a

partir da inexistência de recursos e/ou defendem uma estratégia de crescimento

equilibrado.58

Na segunda, serão analisadas as críticas à noção de crescimento

equilibrado realizadas por Gunnar Myrdal e Albert Hirschman. A terceira seção será

dedicada exclusivamente ao trabalho de Walt Rostow, que, como pretendemos

argumentar, melhor simboliza toda esta geração de estudos. Por fim, dedicamos a seção

de encerramento do capítulo ao apontamento de algumas conclusões críticas que podem

ser extraídas da análise das teorias do desenvolvimento.

Seção 5.1. Círculo vicioso da pobreza e estratégia de crescimento equilibrado

Como indicado anteriormente, a caracterização do desenvolvimento como

crescimento da riqueza (medida pelo produto per capita), e a noção de que esse objetivo

só pode ser alcançado por meio da industrialização, é uma das principais marcas das

teorias do desenvolvimento produzidas no período anterior à crise dos anos 1970.

Dentre as contribuições mais significativas desse período, destaca-se o trabalho de

Rosenstein-Rodan, publicado em 1943, sobre os Problemas de industrialização da

Europa do leste e do sudeste. Compartilhando a definição de desenvolvimento acima

apresentada (com ênfase, inclusive, no debate sobre a convergência da riqueza

mundial), Rodan afirma que, além de interessar às “áreas deprimidas” em geral, a

industrialização desses países é conveniente para o mundo como um todo, visto ser o

único “meio para que se alcance uma distribuição de renda mais equitativa entre

diferentes partes do mundo pela elevação da renda nas regiões deprimidas a uma taxa

mais alta que nas regiões ricas”. (Rosenstein-Rodan, 2010: 265)

Além do pioneirismo e do fato de ser um dos representantes fiéis da perspectiva

dominante do período, resgatamos aqui o trabalho de Rodan por diversos outros

motivos. Em primeiro lugar, Rodan inaugura uma série de teorias que, partindo do

arcabouço teórico clássico ou keynesiano, irão caracterizar o subdesenvolvimento (e

explicar as baixas taxas de crescimento nessas regiões) a partir do “excesso de

58

A seleção dos textos a serem analisados nessa primeira seção tomou como base a famosa coletânea de

artigos organizada por Agarwala e Singh (2010), A economia do subdesenvolvimento, publicada pela

primeira vez em 1958 e que se tornou referência mundial para o debate sobre desenvolvimento.

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85

população agrária” e consequente subemprego rural. Diante dessa constatação,59

Rodan

apresenta duas soluções alternativas: (i) levar a mão-de-obra excedente até o capital

através da emigração ou (ii) levar o capital até onde há excesso de trabalho por meio da

industrialização. Considerando que ambas são equivalentes “do ponto de vista da

maximização da renda mundial” e que a primeira é difícil de realizar-se em grande

escala, “em sua maior parte o problema terá de ser resolvido pela industrialização”.

(Ibid)

Em segundo lugar, no que diz respeito à estratégia de industrialização, é bastante

emblemático que Rodan tenha escrito, ainda durante a Segunda Guerra Mundial,

especificamente sobre aqueles países situados entre a União Soviética e a Europa

Ocidental e que posteriormente passariam a compor o conjunto de “países socialistas”

(também conhecidos como Segundo Mundo). Nesse contexto, Rodan foi um dos autores

a defender explicitamente uma estratégia de desenvolvimento que se contrapõe

diretamente ao chamado “modelo russo” (ou “autárquico”) de industrialização.60

De

acordo com o autor, essa modalidade de industrialização caracteriza-se pela busca da

auto-suficiência (via integração vertical), envolvendo uma série de sacrifícios que

poderiam ser evitados caso os países optassem por uma industrialização “ajustada” à

economia mundial. Nesse caso, os países deveriam seguir os “sólidos princípios da

divisão internacional do trabalho [que] postulam técnicas intensivas de mão-de-obra –

isto é, indústrias leves para as regiões subdesenvolvidas” (Ibid: 267), suprindo o

restante das necessidades (especialmente daqueles bens produzidos por “indústrias

pesadas”) através da importação. Segundo o autor, essa estratégia de industrialização

“preservaria as vantagens da divisão internacional do trabalho, produzindo, portanto,

mais riqueza para todos ao final do processo”. (Ibid: 266)

Assim, para Rodan, a superação do subemprego rural (característico das

economias subdesenvolvidas) deve passar pela adoção de uma estratégia de

industrialização integrada, que insira a região na economia mundial, preservando as

vantagens da divisão internacional do trabalho. Além do respeito aos desígnios das

vantagens comparativas, o sucesso da estratégia depende, em primeiro lugar, do

59

Constatação empírica, tomada como hipótese inicial do trabalho. Nas palavras do autor: “As hipóteses

no caso em estudo são as seguintes: existe um „excesso de população agrária‟ na Europa do Leste e do

Sudeste, que corresponde a 20 a 25 milhões de habitantes para uma população total de 100 a 110 milhões;

ou seja, cerca de 25% da população se encontra total ou parcialmente desempregada („desemprego

disfarçado‟)”. (Rosenstein-Rodan, 2010: 265) 60

Embora não tenha sido o único. Veremos adiante o exemplo mais emblemático e explícito: Rostow e

seu manifesto não-comunista.

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86

treinamento e habilitação da mão-de-obra (que permita transformar camponeses em

trabalhadores industriais), e, em segundo lugar, do planejamento em grande escala que

possibilite a criação de um sistema de indústrias complementares (especialmente

aquelas que produzem a maioria dos bens adquiridos com salários). (Ibid: 268)

Essa estratégia de industrialização, posteriormente conhecida como estratégia de

crescimento equilibrado, teria ainda outra grande vantagem: “a criação planejada de um

sistema de indústrias complementares desse tipo reduziria o risco de insuficiência de

procura e, visto que o risco pode ser considerado um custo, reduziria os custos. É, nesse

sentido, um caso especial de „economias externas‟”.61

(Ibid: 269) Considerando que os

trabalhadores não gastam seus salários em um único produto, o emprego de toda a mão-

de-obra excedente em uma única indústria produziria um desequilíbrio nesse setor e nos

demais (excesso de oferta no primeiro e de demanda nos demais).

Tais desequilíbrios poderiam, eventualmente, ser corrigidos pelo mecanismo de

mercado (via movimento de preços, como previsto pela Lei de Say), mas poderiam ser

evitados através do investimento maciço em diversas indústrias complementares, de

modo coordenado.62

Essa coordenação faria com que o aumento da oferta em diversas

indústrias criasse sua própria demanda, promovendo “uma expansão da produção

mundial com um mínimo de perturbação do mercado internacional”. (Ibid) Como, para

Rodan, nos países subdesenvolvidos é mais fácil prever a demanda da população,

também o planejamento em larga escala seria facilitado. (Ibid)

Uma abordagem bastante similar, e, em grande medida, inspirada no antecessor,

também pode ser vista nos trabalhos de Ragnar Nurkse, que apresenta a formação de

capital como o fator capaz de diferenciar países desenvolvidos e subdesenvolvidos.63

61

Rodan (Ibid: 269) cita ainda dois outros tipos de “economias externas” que podem surgir a partir da

criação de um sistema de indústrias complementares: (i) as economias externas à firma e internas à

indústria e (ii) as economias externas à indústria. Por esse motivo, o autor ficou conhecido como um dos

primeiros a utilizar a divergência entre “retorno privado” e “retorno social” dos investimentos como

justificativa para a coordenação de projetos integrados de industrialização. Mais adiante, no entanto,

veremos como o mesmo argumento será utilizado para defender a estratégia de crescimento

desequilibrado. Uma síntese do debate pode ainda ser vista nos textos de Fleming (As economias externas

e a doutrina do crescimento equilibrado) e Scitovsky (Dois conceitos de economias externas), também

presentes na coletânea de Agarwala e Singh (2010). 62

Como aparece na sistematização realizada por Scitovsky (2010: 324): “Daí a ideia de que falta um

planejamento centralizado do investimento ou algum sistema de comunicação adicional que suplemente o

sistema de preços como dispositivo de sinalização”. 63

Ou seja, “as chamadas „áreas subdesenvolvidas‟, em confronto com as avançadas, são aquelas que se

encontram subequiparadas de capital em relação à sua população e recursos naturais”. (Nurkse, 1957: 3)

Vale notar que a palavra capital comparece na frase, e na concepção do autor em geral, no sentido

limitado (e mistificador, como demonstrou Marx) de máquinas, equipamentos e materiais indispensáveis

à produção. (Ibid: 4)

Page 98: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

87

Segundo o autor, esta formação de capital estaria sujeita à ação de forças circulares

(tanto do lado da oferta, quanto do lado da demanda) que manteriam as economias em

um “estado de equilíbrio de subdesenvolvimento”.64

Esse mecanismo, também

conhecido como círculo vicioso da pobreza, foi exemplificado por Nurkse da seguinte

maneira:

Um homem pobre não tem o bastante para comer; sendo subalimentado, sua

saúde é fraca; sendo fisicamente fraco, sua capacidade de trabalho é baixa, o

que significa que ele é pobre, o que, por sua vez, quer dizer que não tem o

bastante para comer; e assim por diante. Tal situação, transposta para o plano

mais largo de um país, pode ser resumida nesta proposição simplória: um

país é pobre porque é pobre. (Nurkse, 1957: 7)

Deixando de lado a excentricidade desse raciocínio ímpar (que, aplicado à

medicina, resultaria no diagnóstico de que um homem doente tem uma doença ou na

constatação de que um morto não está vivo!), o que efetivamente importa são as

relações de causalidade aludidas na explicação da escassez de capital. No caso de um

país, Nurkse observa que, por um lado, há baixa oferta de capital, em virtude da

“pequena capacidade de poupar, resultante do baixo nível da renda real”. Por outro, a

baixa demanda por capital, reflexo do baixo estímulo para investir, seria derivada “do

pequeno poder de compra da população, consequência de reduzida renda real”. Em

síntese, “o ponto em comum em ambos os círculos é o baixo nível de renda real”.

(Nurkse, 1957: 8)

Ainda assim, para o autor, nem tudo estaria perdido: “a constelação circular do

sistema estacionário é bastante real, mas, felizmente, o círculo não é intransponível”.

(Ibid: 14) Exatamente como na formulação de Rodan, o rompimento com o círculo

vicioso da pobreza dependeria de uma estratégia de crescimento equilibrado, também

conhecida como “grande impulso” (ou big push), possível apenas através “de uma

aplicação de capital mais ou menos sincronizada numa ampla gama de indústrias

diferentes”. (Nurkse, 2010: 278) O resultado desse investimento “sincronizado” também

seria mais ou menos o mesmo:

[...] ampliação geral do mercado e, portanto, uma saída para o impasse. Os

indivíduos que trabalham com mais e melhores equipamentos em certo

número de projetos complementares se tornam clientes mútuos. As indústrias

que abastecem o consumo das massas são em sua maioria complementares,

no sentido de que ao mesmo tempo proporcionam um mercado e se

sustentam mutuamente. Essa complementação básica resulta da diversidade

dos desejos humanos. No caso do “crescimento equilibrado”, baseia-se, em

última análise, na necessidade de uma “dieta equilibrada”. (Ibid)

64

Em relação aos fundamentos teóricos dessa formulação, o próprio Nurkse (1957: 14) faz questão de

enfatizar que o estado de equilíbrio de subdesenvolvimento seria “um tanto análogo ao „equilíbrio de

subemprego‟, cuja possibilidade nos países industrialmente avançados nos foi apontada por Keynes”.

Page 99: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

88

Ainda que semelhante na proposta, Nurkse, por um lado, acredita que a defesa

do crescimento equilibrado, ao implicar diversificação da economia doméstica, rompe

em parte com a teoria das vantagens comparativas. Por outro, este autor é bem menos

definitivo a respeito dos meios para atingir o desenvolvimento (se obtido através da

participação do Estado ou deixado ao sabor das forças do mercado, ou seja, dos

empresários). Em suas palavras: “seja o crescimento equilibrado sustentado por

planejamento governamental ou levado a cabo espontaneamente pela iniciativa privada

trata-se, no fim das contas, de uma questão de método”. (Ibid: 279) Mais que isso,

segundo Nurkse (1957: 20), “O economista, como técnico, não tem imperativos

categóricos a levantar sobre o assunto”.

Apesar da repercussão que tiveram estes primeiros trabalhos, pode-se dizer que a

ênfase no subemprego rural como característica principal do subdesenvolvimento

encontrou sua expressão mais efetiva no trabalho de Arthur Lewis, intitulado

Desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-de-obra, de 1954.65

Diferentemente dos teóricos anteriores, no entanto, Lewis é mais explícito ao afirmar

que, enquanto uma teoria inspirada no arcabouço teórico keynesiano prevê a

possibilidade de equilíbrio com subemprego dos diversos fatores de produção, em uma

situação de subdesenvolvimento somente a mão-de-obra é excedente.66

Se o contingente

populacional não oferece, portanto, nenhuma restrição objetiva ao crescimento, o

“problema do desenvolvimento econômico” estaria na “escassez de capital”.

Tomando como ponto de partida a análise de uma “economia fechada”, Lewis

procura demonstrar como o desenvolvimento, na medida em que está sujeito à

quantidade de capital disponível, depende, em última instância, da quantidade de

poupança (aceitando, em grande medida, um dos postulados que sustentam a Lei de

Say, ou seja, a ideia de que a poupança deve preceder o investimento). Nesse sentido,

Lewis define o “problema central da teoria do desenvolvimento econômico” da seguinte

maneira:

65

Assim como outros teóricos do desenvolvimento, Lewis viria a receber (25 anos após essa publicação)

o prêmio Nobel de Economia, “pela pesquisa pioneira sobre desenvolvimento econômico com particular

atenção aos problemas dos países em desenvolvimento”. (www.nobelprize.org) 66

Por esse motivo, como o próprio Lewis faz questão de enfatizar nas páginas iniciais de seu artigo, a

perspectiva por ele defendida estaria mais próxima da teoria clássica, utilizada explicitamente como

fundamento da sua formulação. Nas palavras do autor: “Este artigo foi escrito segundo a tradição clássica,

aceitando suas suposições e formulando suas questões”. (Lewis, 2010: 413) E mais adiante: “O propósito

desse artigo é, portanto, descobrir o que se pode aproveitar do marco clássico para resolver os problemas

da distribuição, acumulação e crescimento, em primeiro lugar numa economia fechada e, depois, numa

economia aberta”. (Ibid: 414)

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89

O problema central da teoria do desenvolvimento econômico é a

compreensão do processo pelo qual uma comunidade que anteriormente não

poupava nem investia mais que 4 ou 5% de sua renda nacional, ou ainda

menos, transforma-se numa economia em que a poupança voluntária se situa

por volta de 12 ou 15% da renda nacional, ou mais. Este é o problema central

porque a questão principal do desenvolvimento econômico é a rápida

acumulação de capital (incluindo aí os conhecimentos e especializações).

Nenhuma revolução “industrial” pode ser explicada (como pretendiam alguns

historiadores econômicos) enquanto não se puder explicar por que aumentou

relativamente a poupança em relação à renda nacional. (Ibid: 428)

Para que a poupança aumente, no entanto, não basta haver um aumento da renda

nacional per capita. (Ibid: 429) Isso porque, como se sabe, pouca ou nenhuma poupança

é feita pelos trabalhadores assalariados, sendo essa tarefa exclusiva dos capitalistas (e

proprietários, em geral), remunerados por lucros e rendas, e retratados como verdadeiros

heróis sociais. Sem muita cerimônia, Lewis extrai desse ponto a seguinte conclusão:

para que o problema do desenvolvimento seja resolvido, é preciso haver uma alteração

na distribuição da renda em benefício da classe poupadora (isto é, da classe capitalista)

e isso é tanto mais possível quanto menores os salários (ou seja, quanto mais os níveis

salariais de subsistência se estendem para a totalidade do sistema).

Apresentando ainda um argumento muitíssimo similar àquele defendido por

Ricardo,67

Lewis tenta mostrar como esse processo não pode prosseguir

indefinidamente. Em determinado momento, a demanda crescente por mão-de-obra

(ainda que não chegue a superar a oferta) gera uma pressão positiva sobre os salários e

uma pressão negativa sobre os lucros, ou seja, “os salários começam a subir acima do

nível de subsistência e o excedente capitalista vê-se afetado de modo desfavorável”

(Ibid: 448) e isso, na medida em que diminui o incentivo a novos investimentos, gera

problemas para o desenvolvimento da economia.

No entanto, é precisamente nesse ponto que a análise da “economia fechada”

deve, segundo Lewis, ser substituída pela “economia aberta”, a partir da qual se torna

possível vislumbrar uma saída para o problema. Isso porque “os países que atingiram a

escassez de trabalho se veem cercados por outros que têm trabalho em abundância”

(Ibid), e enquanto continuar a existir excedente de mão-de-obra disponível a salário de

subsistência, em outros países, o problema pode ser resolvido de duas formas diferentes:

67

Estamos nos referindo aqui, mais especificamente, à noção ricardiana de estado estacionário, descrita

pelo autor como a situação na qual deixa de haver incentivo a novos investimentos. No caso de Ricardo

(1996), no entanto, essa tendência está associada a duas premissas básicas: (i) a teoria malthusiana do

crescimento populacional e (ii) a ideia de que preço dos produtos agrícolas é regulado pelo trabalho

necessário à produção nas terras menos férteis. Assim, na medida em que o crescimento populacional

fosse tornando necessária a produção em terras menos férteis, geraria um aumento no preço dos alimentos

com consequente aumento de salários e queda dos lucros.

Page 101: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

90

incentivando a imigração ou exportando o capital. Após analisar as duas alternativas,

Lewis chega a uma conclusão similar àquele defendida por Rosenstein-Rodan: a

segunda solução (exportação de capital) é muito mais factível que a primeira, “visto que

os sindicatos trabalham eficientemente contra a imigração, sendo, no entanto, muito

menos eficazes no controle à exportação de capital”. (Ibid: 449)

Antecipando possíveis críticas, Lewis se apressa em afirmar que esse não é o

único fator que explica a exportação de capital: “O que dá origem à exportação de

capital não são, inevitavelmente, os lucros descendentes dentro do país, ou os salários

em elevação, mas simplesmente o fato de que os países estrangeiros possuem diferentes

recursos em diferentes graus de utilização, havendo, portanto, algumas oportunidades

rentáveis para o investimento no exterior”. (Ibid: 452) No entanto, naqueles países em

que existe escassez de trabalho, “o efeito será a redução da demanda por trabalho,

impedindo, assim, que os salários aumentem tanto como aumentariam de outro modo”.

(Ibid)

Seção 5.2. Causação circular acumulativa e estratégia de crescimento desequilibrado

A teoria do desenvolvimento acima apresentada recebeu inúmeras críticas,

dentre as quais obtiveram grande repercussão as oferecidas por Gunnar Myrdal (1957 –

Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas) e Albert Hirschman (1958 – A estratégia

de desenvolvimento econômico). O primeiro, ganhador do Nobel de economia em 1974

“pela análise penetrante da interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e

institucionais”, estava particularmente interessado em oferecer um contraponto à

concepção de circulo vicioso da pobreza formulada por Nurkse, criticando

especialmente a ideia de equilíbrio por detrás dessa formulação. Nesse sentido, Myrdal

(1972: 33) apresenta a tese da causação circular acumulativa, buscando mostrar que, se

não controlado, o processo de mudanças sociais tende a provocar desequilíbrios

crescentes.68

Começando com a defesa do caráter circular dos processos sociais, o autor

utiliza como ilustração um estudo seu sobre a situação dos negros norte-americanos. Os

leitores, naturalmente, não devem se prender aqui na explicação superficial e

68

Segundo o autor, “essa ideia contém em poucas palavras o método mais objetivo de análise da mudança

social, portanto, uma visão da teoria geral do desenvolvimento e do subdesenvolvimento pela qual todos

estamos esperando”. (Myrdal, 1972: 33)

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91

maniqueísta da condição de vida dos “negros norte-americanos”,69

mas na lógica da

analogia pretendida por Myrdal:

Em sua forma mais simples, o modelo explanatório se reduz a dois fatores: „o

preconceito do branco‟, que causa a discriminação contra os negros em vários

aspectos, e o „baixo padrão de vida da população negra‟. Esses dois fatores se

relacionam mutuamente; o baixo padrão de vida dos negros é mantido pela

discriminação dos brancos, enquanto, por outro lado, a pobreza, a ignorância,

a superstição, as más condições de habitação, as deficiências sanitárias, a

sujeira, o mau cheiro [sic], a indisciplina, a instabilidade das relações

familiares e a criminalidade dos negros estimulam e alimentam a antipatia

dos brancos. (Myrdal, 1972: 38)

Nesse aspecto, portanto, a “causação circular” não se diferencia muito da noção

de “círculo vicioso” apresentada por Nurkse: ambas explicam, no máximo, um aspecto

do processo de reprodução de condições previamente causadas (caso contrário, seria

preciso imaginar que os brancos e negros encontram-se em disparidade de condições

por sua constituição genética, isto é, brancos teriam nascido ricos e cheirosos e os

negros pobres e mau-cheirosos). No entanto, diferentemente do que foi defendido por

Nurkse, Myrdal (1972: 39) afirma que “essa „acomodação‟ estática é inteiramente

fortuita, e não provoca, absolutamente, uma posição de equilíbrio estável”. Isso porque,

Se qualquer um dos dois fatores se modificasse, haveria mudança no outro e,

também, desencadearia um processo acumulativo de interação mútua, no qual

a mudança em determinado fator seria continuamente apoiada pela reação do

outro. Assim, sucessivamente, [...] todo o sistema se moveria na direção da

mudança primária, de maneira cada vez mais ampla. Mesmo que o impulso

original cessasse, depois de algum tempo, ambos os fatores se teriam alterado

para sempre, ou, o que também poderia suceder, o processo de mudanças

recíprocas persistiria, sem possibilidade de neutralização imediata. (Ibid)

Assim, enquanto Nurkse oferece uma imagem circular do funcionamento da

economia, a imagem oferecida por Myrdal estaria mais próxima de um espiral, para

cima ou para baixo, dependendo do caráter da “mudança primária” (se positiva ou

negativa). Segundo o autor, a noção de que o processo de mudança social é acumulativo

e opera em ambas as direções faz parte da própria sabedoria popular e é utilizada, ainda

que de modo implícito, por “todo homem de negócio bem sucedido [...] na sua forma de

resolver problemas práticos; de outro modo não obteria êxito”. (Ibid: 44)

Também no campo da política econômica, os “efeitos cumulativos” deveriam ser

levados em conta e poderiam ser aproveitados em benefício público caso houvesse um

bom conhecimento da relação entre as variáveis.70

Para tanto, partindo de uma

69

Como ignorar, por exemplo, o passado escravocrata dos EUA e as escassas possibilidades de ascensão

social no capitalismo, mesmo num país conhecido por difundir ideologicamente a esperança de

enriquecimento como um seu valor fundante? 70

“Quanto mais conhecermos a maneira pela qual os diferentes fatores se inter-relacionam – os efeitos

que a mudança primária de cada fator provocará em todos os outros – mais seremos capazes de

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92

concepção particular de “ideal científico”, Myrdal (1972: 42) defende que esse

conhecimento deva assumir a forma “de um conjunto de equações quantitativas

interdependentes, que descrevessem o movimento do sistema estudado sob as várias

influências em jogo, e as mudanças internas”, ainda que uma formulação desse tipo,

“completamente quantitativa e verdadeira”, esteja além de suas pretensões.

Para dar fundamento à sua formulação, Myrdal recorre ainda aos estudos

empíricos realizados pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa

durante a década de 1950, que extraem das análises dos dados as seguintes conclusões:

(i) as desigualdades são maiores nos países ricos do que nos países pobres e (ii) as

desigualdades tendem a se tornar menores nos países ricos e maiores nos países pobres.

(Ibid: 61-62) Segundo o autor, esse fenômeno explica-se, pois, quanto mais alto o nível

de desenvolvimento de um país, mais fortes são os “efeitos positivos” e maior a

capacidade de neutralizar os “efeitos negativos”, enquanto nos países subdesenvolvidos

observa-se o contrário. Assim, a afirmação tautológica de Nurkse de que “um país é

pobre porque é pobre” teria que ser substituída pelas seguintes proposições: (i) um país

rico tende a tornar-se mais rico e (ii) um país pobre tende a tornar-se cada vez mais

pobre.

Para impedir, ainda que temporariamente, a continuidade dessa tendência, o

Estado deveria atuar através da coordenação e planejamento, proteção do mercado

interno e das indústrias nascentes etc. Além disso, os países deveriam trabalhar, sempre

que possível, para transformar seus Estados nacionais em Estados de bem-estar social.

Nas palavras do autor:

Quanto mais um Estado Nacional se transforma, efetivamente, em um

“Estado de Bem-Estar” – quanto mais se aproxima de uma democracia

perfeita, tendo à sua disposição recursos nacionais, em tal magnitude, que

seja possível o emprego, em grande escala, de políticas igualitárias, como

sacrifícios toleráveis pelas regiões e grupos cujos padrões de vida são

relativamente melhores – tanto mais fortes serão a necessidade e a capacidade

de combater as forças cegas de mercado que tendem a provocar

desigualdades regionais. Esse fato por sua vez impulsionará o

desenvolvimento econômico e assim, sucessivamente, em processo de

causação circular. (Ibid: 72)

Uma ideia semelhante pode ser encontrada no trabalho de Hirschman (1961),

que constrói seu argumento como contraponto direto à noção de crescimento

equilibrado. Para o autor, em primeiro lugar, essa perspectiva seria marcada por uma

espécie de esquizofrenia, na medida em que “combina uma atitude derrotista acerca das

estabelecer os meios de obter a maximização dos resultados de determinado esforço político, destinado a

mover e alterar o sistema social”. (Myrdal, 1972: 43)

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93

possibilidades das economias subdesenvolvidas com esperanças inteiramente fictícias

sobre o seu poder de criação”. (Ibid: 87) Em outras palavras, “se um país estivesse em

condições de aplicar a doutrina do desenvolvimento equilibrado”, investindo em uma

grande quantidade de indústrias novas ao mesmo tempo, “então, preliminarmente, não

seria um país subdesenvolvido”. (Ibid: 88)

Em segundo lugar, a teoria do crescimento equilibrado poderia ser vista, na

melhor das hipóteses, como um exercício de “estática comparativa retrospectiva”, que,

ao observar a existência de certo equilíbrio entre os diferentes setores em uma economia

desenvolvida, supõe que os setores cresceram efetivamente na mesma proporção

durante o período revisto. Para o autor, ao contrário, “o desenvolvimento equilibrado,

que se revela nos dois instantes fotográficos, tirados em dois períodos de tempo

diferentes, representa o resultado final de uma série de avanços desiguais de um setor,

seguido pelos outros setores que o procuram alcançar”. (Ibid: 102)

Assim, essa teoria não seria capaz de explicar o processo através do qual as

economias transitam do estado inicial de “equilíbrio do subdesenvolvimento” ao

“equilíbrio de desenvolvimento” nem de oferecer uma solução prática para o problema.

Como comprova a experiência (empírica), a “solução simultânea” se mostraria

“especialmente inaplicável pelo fomentador de decisões, nos países subdesenvolvidos”,

(Ibid: 9) impraticável e antieconômica, quer ou não o Governo viesse em auxílio. Sobre

esse ponto, ressalta o autor:

A última cláusula é importante, pois a doutrina do desenvolvimento

equilibrado é geralmente invocada como justificativa para o sentido de

governo centralizado e coordenador do processo de desenvolvimento. Mas tal

justificativa dificilmente convence. Uma tarefa que o empreendimento

privado ou que os valores do mercado sejam incapazes de realizar não se

torna, ipso facto, idealmente adequada à execução pelas autoridades públicas.

Temos de reconhecer que obras há que simplesmente excedem a capacidade

de um grupo social, não importa a quem sejam confiadas. O desenvolvimento

equilibrado, no sentido de desenvolvimento simultâneo, múltiplo, parece ser

uma delas. (Ibid: 90)

Na tentativa de dar fundamento a sua formulação, Hirschman (1982: 11)

procura, em primeiro lugar, generalizar o diagnóstico do subemprego como traço

característico do subdesenvolvimento, argumentando que, ao contrário do que

normalmente afirmam os teóricos do desenvolvimento, “os países subdesenvolvidos

[possuem] efetivamente reservas ocultas [...] não apenas de mão-de-obra, mas de

poupanças, capacidade empresarial e outros recursos”. Assim, se o problema não

consiste na falta de recursos, a solução não deve ser procurada na “importação” dos

recursos faltantes (seja capital, conhecimento técnico, espírito empreendedor etc.): trata-

Page 105: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

94

se, na verdade, de “provocar e mobilizar, com propósito desenvolvimentista, os recursos

e as aptidões, que se acham ocultos, dispersos ou mal empregados”. (Ibid: 1961: 19)

Para mobilizar esses recursos de forma “eficiente”, Hirschman defende, ao

contrário de Rodan e Nurkse, uma estratégia de crescimento desequilibrado, que

determine “pontos estratégicos básicos”, assinalando “prioridades de áreas ou setores ou

a modalidade de esforço de industrialização a ser conseguido”. (Ibid: 9) E, assim como

sugerido por Myrdal em sua tese da causação acumulativa, Hirschman acredita que um

impulso inicial em determinados setores tenderia a se espalhar para os demais,

produzindo “progressos adicionais”. (Ibid: 102)

Seção 5.3. Rostow e o manifesto não-comunista: uma síntese do debate?

Como indicado anteriormente, reservamos a terceira seção do presente capítulo

ao tratamento da teoria do desenvolvimento formulada por Rostow, especialmente em

seu clássico As etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não-comunista,

publicado em 1952. Essa opção justifica-se, em primeiro lugar, pelo grande número de

polêmicas suscitadas pelo trabalho, não apenas entre economistas, mas também entre

historiadores e cientistas sociais, em geral.71

Em segundo lugar, entendemos que, apesar

das inúmeras críticas, a teoria de Rostow não dista muito das anteriormente

apresentadas: sustentando uma mesma concepção de desenvolvimento, o autor

incorpora elementos da teoria do crescimento equilibrado e antecipa argumentos

posteriormente defendidos pelos teóricos do crescimento desequilibrado. Mais do que

isso, entendemos que o tratamento dado por Rostow à temática do desenvolvimento é

bastante emblemático e sintetiza a noção de toda essa geração de trabalhos produzidos

no período anterior à crise dos anos 1970.72

Em termos bastante sumários, Rostow (1974: 16) busca nesse trabalho oferecer

uma teoria geral da história, tomando como ponto de partida a observação e

generalização de diversos casos e experiências nacionais de industrialização. Com isso,

o autor chega a um conjunto de cinco etapas de desenvolvimento, dentro das quais

71

Parte das polêmicas foi sistematizada e respondida pelo autor no prefácio e no apêndice (Os críticos e

as evidências) incorporados à segunda edição do livro, dez anos depois. 72

Como pretendemos mostrar no capítulo 7, alguns aspectos da noção de desenvolvimento aqui

apresentada foram, inclusive, recentemente resgatados como base para a formulação de alternativas à

estratégia neoliberal de desenvolvimento, dominante no período pós-1970, sendo uma das mais

conhecidas tentativas de resgate aquela proposta por Ha-Joon Chang (2004) no livro Chutando a escada.

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95

qualquer formação social poderia ser enquadrada: a sociedade tradicional, as pré-

condições para o arranco, o arranco, a marcha para a maturidade, e, por fim, a era de

consumo em massa.73

De acordo com essa formulação, o subdesenvolvimento seria uma

simples imagem do passado das economias desenvolvidas, sendo o trânsito de uma

etapa a outra acessível a qualquer país que reunisse as condições necessárias para

tanto.74

Começando com a primeira etapa, Rostow define a sociedade tradicional como

“aquela cuja estrutura se expande dentro de funções de produção limitadas, baseadas em

uma ciência e tecnologia pré-newtonianas, assim como em atitudes pré-newtonianas

diante do mundo físico.” (Ibid) Porém, o ponto central capaz de caracterizar qualquer

uma destas sociedades tradicionais é o fato de estarem todas sujeitas a um teto máximo

de produção per capita – e isto se justifica pelo não conhecimento das potencialidades

que ciência e tecnologia viriam desvendar mais tarde.75

As pré-condições para o arranco são definidas como “a era de transição em que

a sociedade se prepara – ou é preparada por forças externas – para o desenvolvimento

sistemático”. (Ibid: 30) As mudanças que então operam sobre as economias decorrem

fundamentalmente da influência sobre o processo produtivo da ciência moderna em

avanço, em paralelo à expansão do mercado mundial e, consequentemente, da

concorrência internacional. Nas palavras do autor:

Dissemina-se a ideia de que não só é possível o progresso econômico, mas

também que ele é condição indispensável para uma outra finalidade

considerada benéfica: seja ela a dignidade nacional, o lucro privado, o bem-

estar geral, ou uma vida melhor para os filhos. Aparecem novos tipos de

homens de empresa – na economia privada, no governo ou em ambos –

dispostos a mobilizar economias ou a correr riscos visando ao lucro ou à

73

Com essa formulação, Rostow (Ibid: 14) pretende oferecer “uma alternativa à teoria de Karl Marx

sobre a História”, dividida em quatro etapas: o feudalismo, o capitalismo burguês, o socialismo e o

comunismo. Uma apresentação sistemática das semelhanças e diferenças entre as duas perspectivas foi

realizada pelo autor e pode ser vista no capítulo intitulado marxismo, comunismo e etapas do

desenvolvimento. 74

Embora essa supersimplificação do processo histórico, característica do etapismo defendido por

Rostow, tenha sido negada por grande parte dos teóricos do período, uma versão mais branda do etapismo

encontra-se presente, ainda que não explicitamente, em toda a teoria clássica do desenvolvimento (na

medida em que o subdesenvolvimento é encarado, em última instância, como uma etapa prévia ao

desenvolvimento). Uma apresentação crítica desse argumento pode ser vista, por exemplo, em Marini

(1992: 72). 75

“Em termos de História, pois, com o nome „sociedade tradicional‟ nós englobamos todo o mundo pré-

newtoniano; as dinastias da China; a civilização do Oriente Médio e do Mediterrâneo; o mundo da Europa

medieval. E ainda adicionamos as sociedades pós-newtonianas que, por certo tempo, permaneceram

intatas ou indiferentes à nova capacidade do homem para manipular regularmente o meio ambiente tendo

em vista seu proveito econômico”. (Rostow, 1974: 18) Nessa definição de “sociedade tradicional”,

podemos observar um exemplo claro de anacronismo, comum a diversas teorias do período, do qual

falaremos mais detalhadamente na próxima seção.

Page 107: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

96

modernização. Despontam bancos e outras instituições destinadas à

mobilização de capital. Crescem os investimentos, notadamente em

transportes, comunicações e matérias-primas em que outras nações possam

ter um interesse econômico. Alarga-se a órbita do comércio interna e

externamente. (Ibid: 19)

Porém, ressalta Rostow, muito tempo se passa até que estejam postas estas

condições, e essa lentidão deve-se ao fato de as economias permanecerem limitadas

pelos métodos tradicionais, pela estrutura social, valores e instituições políticas ainda

remanescentes do período anterior. Principalmente sobre esse aspecto político, Rostow

afirma ser imprescindível ao arranco a constituição de um Estado nacional centralizado,

“aspecto decisivo do período das precondições”. (Ibid: 20)

Terminado este estado transitório, estaria posto, portanto, o arranco, momento

“decisivo da história de uma sociedade em que o desenvolvimento passa a ser sua

condição normal”.76

(Ibid: 52) Apresentando uma noção de desenvolvimento

plenamente compatível com aquela defendida pelos demais autores do período, Rostow

(2010: 181) define esta fase como “o intervalo durante o qual a taxa de investimento

cresce de tal modo que aumenta o produto real per capita, proporcionando esse aumento

inicial transformações radicais nas técnicas de produção e na disposição dos fluxos de

renda que perpetuam a nova escala de investimentos e, assim, perpetuam também a

tendência crescente do produto per capita”. Seria, portanto, uma espécie de “revolução

industrial ligada diretamente a transformações radicais nos métodos de produção e que

obtém resultados decisivos num prazo relativamente curto”.77

(Ibid: 205)

Observamos, portanto, que assim como defendido por Lewis, Rostow (1974: 65)

acredita que o sucesso da estratégia depende não apenas do aumento da renda per

capita, mas também de uma mudança na “disposição dos fluxos de renda” em favor da

“classe poupadora”, sendo essa “uma das ideias mais antigas e básicas da Economia”.

Além disso, defendendo uma estratégia de desenvolvimento um tanto similar à

estratégia de crescimento desequilibrado, Rostow (Ibid: 55-56) insiste que o aumento

expressivo da taxa de investimento com relação ao produto nacional (até 10% do

produto nacional líquido, aproximadamente) deve ser direcionado especialmente para

alguns setores manufatureiros básicos, com elevados índices de crescimento, capazes de

76

Note-se que esta etapa, também conhecida como decolagem (ou take-off), é bastante similar ao grande

impulso (ou big push) de Nurkse: enquanto, para Nurkse, uma economia, ao libertar-se das amarras do

círculo vicioso da pobreza, ingressa em uma situação de crescimento equilibrado, para Rostow, o

estímulo que detona o arranco faz com que o crescimento passe a ser o estado normal da economia. 77

Um quadro com os registros dos períodos de decolagem de alguns países que chegaram à etapa do

crescimento auto-sustentado pode ser visto em Rostow (2010: 187; 1974: 54).

Page 108: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

97

gerar estímulos sobre os demais setores da economia. Esses setores, chamados pelo

autor de “líderes”, “devem ser tais que sua expansão e sua transformação técnica

induzam, para o aumento de sua capacidade, uma cadeia de necessidades [...] e o

potencial de novas funções de produção em outros setores, ao que a sociedade deve

responder progressiva e eficazmente”. (Ibid, 2010: 205) Em síntese:

[...] o crescimento rápido de um ou mais novos setores manufatureiros é uma

força poderosa e essencial de transformação econômica. Sua potência deriva

da multiplicidade de formas que seu impacto pode ter, desde que a sociedade

esteja disposta a responder positivamente a ele. O crescimento nesses setores,

com novas funções de produção de elevada produtividade, tende, por si

mesmo, a aumentar o produto per capita, colocando rendas em poder de

gente que não só poupa uma porção mais elevada da renda crescente como

também a empregará em investimentos altamente produtivos; estabelece uma

cadeia de demanda efetiva para outros produtos manufaturados; provoca a

necessidade de maiores áreas urbanas, que podem ter custos de capital

elevados, mas cuja população e organização de mercado contribuem para

fazer da industrialização um processo continuamente em marcha; e,

finalmente, abre um conjunto de economias externas que contribuem, em

última análise, para criar novos setores líderes quando começa a diminuir o

impulso inicial dos setores líderes na decolagem. (Ibid)

Passado esse momento, a capacidade de expansão da riqueza produzida se

tornaria mais ou menos automática e as economias poderiam seguir uma trajetória quase

natural rumo aos limites de suas potencialidades produtivas, até chegar à era do

consumo em massa: “uma fase de que os norte-americanos estão principiando a sair;

cujas alegrias, nem sempre nítidas, a Europa ocidental e o Japão estão começando a

experimentar, e com a qual a sociedade soviética está flertando meio contrafeita”.

(Rostow, 1974: 23) Nessa etapa, possível apenas depois de atingida a maturidade

tecnológica, as sociedades poderiam reconsiderar suas finalidades, valores etc., e

transferir sua atenção da “oferta para a procura, dos problemas de produção para os de

consumo e para os do bem-estar, na mais ampla acepção”. (Ibid: 96)

Em primeiro lugar, as nações poderiam aproveitar o nível elevado de recursos

para aumentar, política e/ou militarmente, seu “poderio e influência no exterior”. (Ibid)

Em segundo lugar, poderiam empregar os “poderes do Estado, inclusive o de

redistribuir a renda por meio de impostos progressivos, para alcançar objetivos humanos

e sociais (abrangendo, nisso, o lazer crescente) que o processo do mercado livre, em sua

forma menos adulterada, não conseguiu”. (Ibid: 96-97) Por fim, “a expansão dos níveis

de consumo para além das necessidades fundamentais de alimentação, habitação e

vestuário” permitiria que essas sociedades chegassem “à órbita do consumo em massa

de bens duráveis de consumo e serviços, que as economias amadurecidas do século XX

podem proporcionar”. (Ibid: 97)

Page 109: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

98

A partir daí, a questão levantada por Rostow (Ibid: 114) é a seguinte: o que

esperar para além do consumo em massa? O que aconteceria no momento em que os

indivíduos tivessem acesso a literalmente tudo o que poderiam desejar com a renda que

possuem? Que sentido dariam a suas próprias vidas? Será que a humanidade cairia “em

uma estagnação espiritual, não encontrando nenhuma aplicação digna para suas

energias, talentos, e o instinto para atingir a imortalidade?”

Tomando por referência a última questão, a resposta de Rostow é não, por

enquanto. Antes que os “habitantes de países bem governados e bem administrados”

sejam acometidos pelo tédio, os países desenvolvidos deveriam se empenhar na

resolução de dois problemas diferentes: o primeiro, relacionado à “existência de armas

modernas de destruição em massa que, se não forem domadas e controladas, poderão

solucionar este e todos os outros problemas da raça humana, de uma vez por todas”, e o

segundo, relacionado ao “fato de que toda a metade austral do globo, mais a China, está

envolvida ativamente na etapa das precondições para o arranco ou no arranco

propriamente dito”. (Ibid: 115) Assim,

Estes dois problemas – o da corrida armamentista e o das novas nações

cheias de aspirações – intimamente relacionados no mundo da diplomacia

contemporânea, apresentam, para as sociedades setentrionais tecnicamente

mais amadurecidas, uma ordem do dia das mais trabalhosas, para o que, a

despeito das doçuras dos bens duráveis de consumo dos serviços, e até

mesmo das famílias maiores, devemos voltar nossa atenção se quisermos ter

uma oportunidade de ver se poderá ser vencida a estagnação espiritual

secular – ou o tédio. (Ibid)

Observamos, portanto, que, levadas ao extremo, as projeções feitas por Rostow

para o futuro do capitalismo se aproximam significativamente daquelas realizadas por

Smith: uma vez que as nações mais pródigas são agraciadas com os benefícios do

desenvolvimento, este se espalha progressivamente para os demais, “até o dia em que

[toda a humanidade possa] partilhar as opções abertas na etapa do consumo em massa e

além dela, mas também no processo da marcha para aquela etapa”.78

(Ibid: 198) Aqui,

novamente, Rostow oferece uma versão radicalizada do ideal de desenvolvimento

compartilhado por grande parte das teorias do pós-guerra.

Como veremos no capítulo 7, a possibilidade de realização desse ideal de

sociedade, e consequente expansão do padrão de consumo norte-americano para as

78

Mesmo não havendo uma referência explícita ao trabalho de Smith, o caráter marcadamente etapista da

teoria de Rostow também pode ser visto como uma herança dos autores clássicos. Em A Riqueza das

Nações, por exemplo, tratando das despesas com a defesa nacional, Smith (1996:173pp.) apresenta e

compara a sociedade de caçadores, de pastores, de agricultores e, finalmente, a sociedade comercial. Para

mais sobre o tema, conferir ainda Brewer (2008).

Page 110: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

99

demais regiões do globo, foi questionada no próprio âmbito das teorias do

desenvolvimento (que, particularmente preocupadas com a evidente degradação

ambiental decorrente desse modelo de desenvolvimento, passaram a dar tratamento

mais sistemático a questões de cunho ecológico). Mas antes de falar sobre o surgimento

dessa e de outras novas perspectivas, encerramos o capítulo com algumas conclusões

que podem ser extraídas da análise das teorias clássicas do desenvolvimento.

Seção 5.4. Considerações finais

Vale notar de antemão que, assim como nos demais capítulos, as proposições

dessa seção conclusiva não pretendem esgotar o conjunto de considerações críticas

dirigidas às teorias aqui examinadas, sequer no que diz respeito ao argumento do

próprio trabalho. O principal, neste momento, é demonstrar que as teorias sob análise

neste capítulo encontram-se no interior do amplo conjunto de formulações ao qual se

pretende dirigir uma crítica conjunta, fundamentada no desenvolvimento teórico da

parte I e apresentada ao final do trabalho. Neste sentido, o que importa são os elementos

destacados a seguir, identificáveis, de modo diverso, nas interpretações anteriormente

apresentadas.

Em primeiro lugar, observamos que essas teorias compartilham uma mesma

concepção de desenvolvimento, entendido como sinônimo de crescimento do produto

(per capita). Considerando que o produto só adquire homogeneidade, tornando-se

passível de agregação, quando considerado em termos de valor, o desenvolvimento

significa porções crescentes de valor produzido. Como só mercadoria tem valor, essa

noção de desenvolvimento pressupõe que o produto tenha forma mercantil, ou seja,

pressupõe a mercadoria como forma elementar da riqueza.

Mais do que isso, como destacado no apêndice ao capítulo 2, a generalização da

forma mercadoria e, consequentemente, da articulação de unidades produtivas por meio

da troca coloca a necessidade da produção de riqueza material e valor em escala

crescente. As teorias do desenvolvimento, portanto, terminam por projetar sobre toda a

história e sociedades as formas de riqueza e trabalho que são historicamente específicas

do capitalismo, dando inteligibilidade científica ao impulso ao aumento da riqueza (uma

das determinações mais importantes da dinâmica capitalista).

Page 111: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

100

Em segundo lugar, observamos que essas teorias compartilham um mesmo ideal

de desenvolvimento (i.e., de crescimento do produto, associado ao aumento da

capacidade de consumo e do bem-estar da população), profundamente influenciado pelo

período de prosperidade e expansão posterior à Segunda Guerra Mundial, também

conhecido como “Era de Ouro” do capitalismo. Como discutido na primeira seção do

capítulo 3, as particularidades desse período (associadas a reorientações de cunho

político-ideológico e no âmbito da estrutura produtiva, posteriormente conhecidas como

fordista-keynesianas) permitiram aos países capitalistas desenvolvidos manter índices

elevados de crescimento do produto, da produtividade, do emprego, dos salários etc.,

garantindo melhorias nas condições de vida da população, em geral. Não é estranho,

portanto, que, diante desse contexto, tenha se disseminado entre a opinião pública, em

geral, e entre os cientistas, em particular, a crença na possibilidade de levar as condições

privilegiadas das nações mais ricas para as nações mais pobres (e que a própria

condição de pobreza tenha sido associada não ao capitalismo em si, mas a um momento

ainda não desenvolvido desse sistema).

Por fim, também não causa estranheza que o anúncio das práticas “corretas”

necessárias à realização de tal projeto fosse plenamente compatível com o (e, por vezes,

uma cópia fiel do) padrão de intervenção e planejamento adotado pelos países “bem

sucedidos”. Por mais difícil que a tarefa tenha parecido a alguns, a convicção de que

seria possível levar o conjunto de práticas “corretas” (juntamente com os recursos, em

alguns casos) para os países subdesenvolvidos pode ainda ser explicada, em parte, pelo

evidente sucesso do Plano Marshall no que tange à reconstrução da Europa Ocidental

arrasada pelas guerras.79

Ainda que o esforço de reconstrução fosse evidentemente

reconhecido como uma situação particular, acreditava-se que os países

subdesenvolvidos poderiam, ao menos, aproveitar o aparato institucional disponível e,

combinando ajuda externa e planejamento, obter o almejado crescimento da riqueza –

assim como se fez, em muitos casos. Essa tarefa mostrava-se ainda mais urgente por

causa da “ameaça” (suposta ou concreta, pouco importa) de avanço do “bloco

comunista” sobre os países que seriam objeto das políticas de desenvolvimento.

Como, de fato, a disparidade entre os níveis de desenvolvimento (tal como

definido anteriormente) das nações capitalistas tem o potencial de provocar

contraditórios e não raramente perniciosos efeitos econômicos e políticos – tais como

79

Sem falar no verdadeiro espanto provocado pela acelerada modernização da Rússia e dos demais países

que compuseram a União Soviética.

Page 112: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

101

crises econômicas internacionais, acirramento da competição, guerras, ocupação

colonialista, seria surpreendente se a consciência científica permanecesse alheia aos

problemas trazidos por tal disparidade. Num mundo em que há países considerados

pobres e outros considerados ricos, a ciência não pode se furtar a discutir por que uns

são pobres e outros ricos, nem deixar de lado a pergunta a respeito da melhor maneira

de fazer dos pobres ricos. E como visto ao longo do capítulo, a resposta oferecida pelas

teorias em análise – exatamente como a resposta das teorias apresentadas no capítulo

anterior e no que se segue – foi basicamente a seguinte: recriando nos países pobres as

estruturas das sociedades afluentes, como quer que elas sejam concebidas.

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102

Capítulo 6. Teorias clássicas do desenvolvimento (ii): em defesa da

industrialização na América Latina

Além das teorias do desenvolvimento que tratam das regiões subdesenvolvidas

em geral, apresentadas no capítulo anterior, também se destacam no período pré-1970

aquelas teorias que se dedicaram especificamente ao estudo do caso latino americano,

gestadas, em sua maioria, no âmbito da Comissão Econômica para América Latina

(CEPAL). Fundada em 1948 como uma agência regional da Organização das Nações

Unidas (ONU),80

a CEPAL tem como principal objetivo “contribuir para o

desenvolvimento econômico da América Latina, coordenar as ações destinadas a sua

promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e com as demais nações

do mundo”.81

Assim, apesar do foco na formulação de propostas que orientem os

policy-makers da região, a CEPAL terminou por produzir um entendimento particular a

respeito das causas do subdesenvolvimento, consolidado e refinado durante as décadas

seguintes, mas cujas características gerais são reveladas no seu primeiro documento de

grande repercussão: Estudio económico de la America Latina, publicado em 1949.82

Como explicitado já nas páginas iniciais desse documento, a teoria do

desenvolvimento produzida pela CEPAL, diferentemente das anteriormente

apresentadas, toma como ponto de partida uma crítica explícita à teoria ricardiana das

vantagens comparativas – utilizada, ainda hoje, como base do entendimento

convencional sobre as relações de comércio entre países. Amparados em evidências

empíricas, a CEPAL procurou demonstrar como, ao contrário de gerar benefícios para

todos, a troca entre países desenvolvidos (exportadores de manufaturas) e

subdesenvolvidos (exportadores de produtos primários) gerava resultados positivos para

os primeiros e negativos para os últimos. Nesse sentido, tanto em virtude das diferenças

na estrutura produtiva, quanto em função dos diferentes papéis desempenhados na

divisão internacional do trabalho, a CEPAL passou a chamar esses países de centrais e

periféricos, respectivamente.

80

Que no mesmo período criou Comissões Econômicas para a Europa, Ásia, Extremo Oriente e,

posteriormente, para a África. 81

Para mais informações sobre os propósitos e atividades realizadas pela CEPAL, conferir o sítio da

instituição (www.eclac.org). 82

A seção introdutória do documento, escrita por Raúl Prebisch (2000), que ganhou circulação

independente sob o título O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas

principais, tornou-se uma referência do pensamento cepalino do período e também será aqui utilizada

como base para a exposição do argumento.

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103

Apesar das inegáveis peculiaridades da teoria cepalina, destrinçadas adiante, é

possível também identificar algumas semelhanças entre o entendimento veiculado pela

instituição e aquele encontrado nas demais teorias do desenvolvimento produzidas no

imediato pós-guerra. Em primeiro lugar, observamos que a noção de desenvolvimento

compartilhada (embora nem sempre explicitada) por essas teorias é essencialmente a

mesma: aumento da renda per capita, na medida em que contribui para o aumento do

“padrão de vida das massas”, ou ainda, do “bem-estar mensurável da coletividade”.

(Prebisch, 2000: 72; 110) Também na teoria cepalina veremos como, ainda que por

motivos distintos, a promoção do desenvolvimento deve necessariamente passar pela

industrialização (tida, nesse caso, como o único mecanismo através do qual seria

possível alterar a estrutura da divisão internacional do trabalho, responsável pela

perpetuação do estado de subdesenvolvimento).

Voltado exclusivamente à apreciação crítica da teoria do desenvolvimento

formulada pela CEPAL no período pré-1970, o presente capítulo encontra-se dividido

em três seções. A seção a seguir busca esclarecer como o subdesenvolvimento é

caracterizado a partir do “sistema centro-periferia” e da tendência à “deterioração dos

termos de troca”. Na segunda, trataremos do papel desempenhado pela industrialização

na estratégia de superação do subdesenvolvimento proposta pela CEPAL. Na terceira e

última seção, resgatamos alguns pontos indispensáveis à compreensão do argumento

aqui defendido, chamando atenção, mais uma vez, para o vínculo existente entre as

teorias do desenvolvimento, o modo de produção capitalista em geral e o contexto

histórico em particular.

Seção 6.1. O “sistema centro-periferia” e a deterioração dos termos de troca

Como indicado anteriormente, o principal objetivo dos estudos pioneiros

produzidos pela CEPAL é encontrar explicações para o atraso dos países latino-

americanos, e, consequentemente, apontar a melhor forma de superá-lo. Nesse sentido,

utilizando uma metodologia de análise posteriormente conhecida como “histórico-

estruturalista”,83

a CEPAL busca explicar o subdesenvolvimento fundamentalmente a

partir do “sistema centro-periferia”, capaz de revelar não apenas as diferenças nas

83

Segundo Bielschowsky (2000: 21), este método de análise tornar-se-ia uma das marcas distintivas do

pensamento da CEPAL. Uma descrição minuciosa do estruturalismo latino-americano pode ser vista

ainda em Rodríguez (1981, 2009).

Page 115: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

104

estruturas socioeconômicas, mas também a sua perpetuação ao longo do tempo

(determinada, basicamente, pelo mecanismo de difusão do progresso técnico e de

distribuição dos ganhos desse progresso entre os diferentes países).

De acordo com essa formulação, a diferença entre economias centrais e

periféricas teria sua origem, antes de tudo, no longo processo de consolidação e

expansão do modo de produção capitalista, ocorrido, fundamentalmente, a partir da

Revolução Industrial.84

Assim, os países centrais seriam aqueles pioneiros no processo

de industrialização e incorporação das técnicas capitalistas de produção, em torno dos

quais vai se formando, progressivamente, uma periferia “vasta e heterogênea”, com

“participação escassa no aperfeiçoamento da produtividade”. (CEPAL, 2000a: 139)

Além disso, enquanto os países centrais seriam caracterizados pela grande capacidade

de absorção e difusão do progresso técnico para as mais distintas atividades, na

periferia, ao contrário, “o progresso técnico só se dá em setores exíguos de sua imensa

população, pois, em geral, penetra unicamente onde se faz necessário para produzir

alimentos e matérias-primas a custo baixo, com destino aos grandes centros

industrializados”. (Ibid)

Tanto em função da posição relativamente privilegiada de que partem os países

centrais, quanto em função do mecanismo de difusão do progresso técnico no interior

dos países, consolidam-se estruturas produtivas bastante diferentes nos países centrais e

periféricos: diversificadas e homogêneas nos primeiros e especializadas e heterogêneas

nos últimos.85

Associado a isso, assiste-se também à consolidação de uma estrutura de

divisão internacional do trabalho dentro da qual caberia “à América Latina, como parte

da periferia do sistema econômico mundial, o papel específico de produzir alimentos e

matérias-primas para os grandes centros industriais”. (Prebisch, 2000: 71)

84

Como consta no documento de 1949, a formação dos grandes centros industriais teria sido resultado de

um movimento que se iniciou “na Grã-Bretanha, prosseguiu com graus variáveis de intensidade no

continente europeu, adquiriu um impulso extraordinário nos Estados Unidos e finalmente abrangeu o

Japão, quando este país se empenhou em assimilar rapidamente os modos de produção ocidentais”.

(CEPAL, 2000a: 139) Uma análise similar sobre o marco histórico do processo desenvolvimento-

subdesenvolvimento também pode ser vista em Sunkel (1973). 85

Apenas para enfatizar, a estrutura produtiva periférica era entendida como especializada porque se

amparava, quase que exclusivamente, no setor ligado aos produtos de exportação, “com baixo grau de

diversificação e com complementariedade intersetorial e integração vertical extremamente reduzidas”.

(Bielschowsky, 2000: 32) Uma vez que apenas aquele setor (e alguns poucos a ele associados) conseguia

absorver tecnologias modernas, configurava-se igualmente uma fratura da estrutura produtiva, marcada

pela coexistência de setores modernos e atrasados, conformando a chamada heterogeneidade estrutural.

Como observam Bielschowsky (Ibid) e Rodriguez (1981: 50), no entanto, ainda que se aplique à

formulação cepalina dos anos 1950, o conceito de “heterogeneidade estrutural” só seria utilizado pela

primeira vez por Aníbal Pinto, na década de 1960.

Page 116: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

105

De acordo com a interpretação dominante, compartilhada por grande parte das

teorias do desenvolvimento e amparada, ainda que nem sempre de modo explícito, na

teoria ricardiana das vantagens comparativas, essa especialização seria benéfica para

todas as partes envolvidas. Isso porque, se cada país se especializasse naquela atividade

em que possui vantagens relativas, o comércio internacional terminaria por distribuir os

frutos do progresso técnico pelos diferentes países, de maneira equitativa, através da

queda dos preços (e correspondente aumento do poder de compra), promovendo uma

convergência da riqueza das nações.

Assim, se as variações nos preços efetivamente acompanhassem as variações de

produtividade, um aumento de produtividade mais intenso nas indústrias dos países

centrais do que nos setores primários periféricos deveria vir acompanhado de uma

queda nos preços dos produtos manufaturados superior à queda nos preços dos produtos

primários. Nesse caso, “a relação de preços entre ambos teria melhorado

persistentemente em favor dos países da periferia, à medida que se desenvolvesse a

disparidade das produtividades”, (Ibid: 80-81) indicando que, com a mesma quantidade

de produtos primários, seria possível adquirir uma quantidade maior de produtos

manufaturados. Não haveria, portanto, qualquer incentivo à industrialização na América

Latina: “antes, haveria uma perda efetiva, enquanto não se alcançasse uma eficiência

produtiva igual à dos países industrializados”. (Ibid)

No entanto, não era esse o comportamento revelado pelos dados sobre a relação

entre os preços dos produtos primários e os preços dos artigos finais da indústria,

divulgados em um dos relatórios publicados pela ONU, também em 1949, extensamente

utilizados pela CEPAL. Ao contrário da variação de preços em favor da periferia, os

dados mostraram que entre o final do século XIX e meados do século XX houve uma

variação de preços em benefício dos países centrais – fenômeno também conhecido

como deterioração dos termos de troca.86

Assim, além de não receber parte do fruto da

maior produtividade dos países centrais, os países periféricos não teriam sido capazes de

“reter para si todo o benefício do seu próprio progresso técnico, por terem tido que

ceder uma parte dele aos produtores industriais”. (CEPAL, 2000a: 143-144) De acordo

com argumento defendido pela instituição, portanto, o que se observa ao longo do

tempo é uma transferência dos ganhos de produtividade das regiões periféricas para as

86

Uma ideia muito similar foi apresentada de modo independente, também em 1949, por Hans Singer no

artigo The distribution of gains between investing and borrowing countries.

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106

regiões centrais, promovendo disparidades crescentes, ao invés de homogeneização da

riqueza mundial.

Apesar da tendência geral à deterioração dos termos de troca, também era

possível perceber que o movimento de cessão dos benefícios do progresso técnico não

seguia um padrão uniforme, mudando de direção e intensidade, em função de diversos

fatores explorados pela CEPAL ao longo do relatório. Para compreender esse ponto, no

entanto, é preciso ter em mente as já mencionadas diferenças das estruturas produtivas

centrais e periféricas, os diferentes papéis desempenhados por essas economias na

divisão internacional do trabalho e, a partir disso, observar a forma como cada uma

delas se comporta diante das flutuações cíclicas.

Como visto anteriormente, os países centrais seriam aqueles dotados de

estruturas produtivas diversificadas e homogêneas, exportadores de produtos

industrializados, e os países periféricos caracterizados pela estrutura produtiva

especializada e heterogênea e pela exportação de produtos primários. Considerando

ainda que produção industrial e primária possui efeitos dinâmicos bastante distintos –

ou seja, que o aumento da atividade industrial é capaz de fomentar a atividade primária,

enquanto o inverso não se verifica (argumento que também será utilizado na defesa da

industrialização), as fases ascendentes do ciclo, de aquecimento das atividades

econômicas no centro terminariam por aumentar a demanda por produtos primários

(alimentos e matérias-primas). Durante essa fase, portanto, o crescimento da demanda

em relação à oferta geraria uma pressão “altista” sobre preços, lucros e salários, tanto no

centro, quanto na periferia. Quando, nesse processo, o aumento dos preços dos produtos

primários superasse o aumento dos preços dos produtos finais (tendência que, de acordo

com a CEPAL, poderia ser efetivamente observada nas fases cíclicas ascendentes),

teríamos uma transferência de lucros do centro para a periferia. (Prebisch, 2000: 86)

Ainda segundo esse argumento, os desajustes nos termos de intercâmbio

aconteceriam no momento de reversão do ciclo. Isso porque, se os “preços primários

sobem com mais rapidez do que os finais na fase ascendente, [...] também descem mais

do que estes na fase descendente, de tal forma que os preços finais vão se distanciando

progressivamente dos primários através dos ciclos”. (Ibid) Tal fenômeno seria, em

termos gerais, um reflexo da rigidez à baixa dos preços dos produtos industrializados

nas fases descendentes dos ciclos, determinada, fundamentalmente, pela resistência à

queda dos salários. Essa resistência à queda dos salários, por sua vez, seria resultado do

Page 118: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

107

maior poder de organização da classe trabalhadora nos países centrais, capaz não só de

conseguir ganhos salariais significativos nas fases ascendentes, mas também de impedir

a queda do seu padrão de vida nas fases descendentes.

Na periferia, ao contrário, “a desorganização característica das massas

trabalhadoras na produção primária, especialmente na agricultura [...], impede-as de

conseguirem aumentos salariais comparáveis com os que vigoram nos países

industrializados, ou de mantê-los com amplitude similar”. (Ibid: 87) Assim,

considerando a menor resistência à contração de renda (sejam lucros ou salários) nos

países periféricos e o fato de ser a própria demanda por produtos primários dependente

da demanda por produtos industrializados, os países centrais acabariam encontrando

maior facilidade para “deslocar a pressão cíclica para a periferia, obrigando-a a contrair

sua renda mais acentuadamente do que nos centros”. (Ibid) Em suma:

[...] durante os ciclos, as relações de preços deslocam-se em favor dos

produtos primários, nas fases crescentes; mas, em geral, nas fases

decrescentes, perdem mais do que tinham ganhado durante o curso das

primeiras. Assim, ao cair a relação de preços a cada depressão, mais do que

havia melhorado na prosperidade, desenvolve-se através dos ciclos a

tendência contínua ao agravamento dos termos de intercâmbio. (CEPAL,

2000a: 157-158)

Com isso, a CEPAL acredita ter mostrado como a dinâmica do capitalismo no

plano internacional seria responsável não apenas pela produção de países ricos e países

pobres, centrais e periféricos, mas também pela perpetuação dessa desigualdade. Como

esperamos mostrar na próxima seção, no entanto, essa não seria, para a CEPAL, uma

situação de todo irremediável: a superação do subdesenvolvimento e da condição

periférica poderia, a despeito de todas as dificuldades, ser alcançada por meio da

industrialização.

Seção 6.2. Em defesa da industrialização na América Latina

Como procuramos mostrar ao longo da seção anterior, além de ressaltar os

fatores socioeconômicos inerentes às economias subdesenvolvidas, a interpretação

proposta pela CEPAL sugeria que a forma específica de inserção dessas economias no

sistema de trocas internacionais, como exportadora de produtos primários, determinava,

em última instância, sua incapacidade de reter e acumular internamente os frutos de seu

progresso técnico mantendo, assim, esses países em uma condição periférica. Diante

dessa caracterização geral, a estratégia de superação do subdesenvolvimento deveria

Page 119: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

108

passar, necessariamente, pela mudança da inserção latino-americana na divisão

internacional do trabalho, e a única forma de operar essa alteração, segundo a CEPAL,

seria através da industrialização. Nos termos de Prebisch (2000: 72): “Daí a importância

fundamental da industrialização dos novos países. Ela não constitui um fim em si, mas é

o único meio de que estes dispõem para ir captando uma parte do fruto do progresso

técnico e elevando progressivamente o padrão de vida das massas”.

Na verdade, como afirmado explicitamente pelo próprio Prebisch (1983: 1079),

anos depois, as análises realizadas durante aquele período tratavam de apresentar

justificativa teórica para o processo de industrialização já em curso em alguns países da

América Latina, estimular aqueles que ainda não haviam iniciado tal processo e oferecer

a todos um plano de ação. E esses esforços de reflexão e proposição (que davam sentido

à existência da própria CEPAL) mostravam-se tanto mais necessários, pois, ao mesmo

tempo em que a industrialização apresentava-se como uma alternativa para a promoção

do desenvolvimento na América Latina, tornavam-se cada vez mais evidentes as

dificuldades envolvidas nesse processo.

Sobre os primeiros passos no caminho da industrialização trilhados pelos países

latino-americanos, é preciso chamar atenção, em primeiro lugar, para o fato de terem

sido impulsionados, grosso modo, pelas restrições ao comércio internacional impostas

pelas duas Grandes Guerras e pela grande depressão dos anos 1930. Diante desses

eventos, portanto, países até então marcados por uma dinâmica de desenvolvimento

voltada para fora, i.e., estimulada predominantemente pelo crescimento das

exportações, foram impelidos a adotar um novo padrão de desenvolvimento voltado

para dentro, i.e., marcado pela ampliação e diversificação da atividade industrial e pelo

fortalecimento do mercado interno. Essa primeira etapa de industrialização espontânea,

resultado da reação das economias periféricas aos sucessivos desequilíbrios no balanço

de pagamentos, também ficaria conhecida como industrialização via substituição de

importações (expressão presente já nos primeiros documentos produzidos pela CEPAL,

mas consagrada a partir da publicação do trabalho de Maria da Conceição Tavares

(1973), no início dos anos 1960).

Em segundo lugar, a industrialização via substituição de importações não deve

ser confundida com um ataque à produção primária, com a busca da auto-suficiência ou

repúdio ao comércio internacional. Ao contrário, na medida em que o crescimento da

produção primária voltada para a exportação era responsável pelo fornecimento de parte

Page 120: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

109

dos recursos necessários ao crescimento da indústria, em um contexto de escassez de

divisas internacionais, o aperfeiçoamento desse setor deveria ser visto, nos termos de

Prebisch (Ibid: 73), como “uma das condições essenciais para que o desenvolvimento da

indústria [pudesse] ir cumprindo o objetivo social de elevar o padrão de vida”. Apenas

para reforçar o entendimento da perspectiva acima apresentada: “a solução não está em

crescer à custa do comércio exterior, mas em saber extrair, de um comércio exterior

cada vez maior, os elementos propulsores do desenvolvimento”. (Ibid)

Na formulação proposta por Tavares (1973: 34), a mesma questão poderia ser

colocada nos seguintes termos: ainda que o processo de industrialização tenha sido

responsável por um deslocamento do eixo dinâmico da economia – da variável exógena

“exportação”, para a variável endógena “investimento”, setor exportador e comércio

internacional continuariam a desempenhar um papel relevante, contribuindo para a

diversificação da estrutura produtiva através das importações. No entanto, de acordo

com Tavares (Ibid), seria preciso ainda chamar atenção para o caráter parcial e fechado

das transformações operadas nos países periféricos durante esse período: parcial, pois a

sobrevivência de uma “base exportadora precária e sem dinamismo” foi responsável, em

grande medida, pela manutenção do estrangulamento externo; e fechado, pois as

mudanças na divisão social do trabalho não foram em absoluto acompanhadas por

simultânea transformação na divisão internacional do trabalho. Nos termos da autora, o

processo de substituição de importações deve ser entendido, portanto, “como um

processo de desenvolvimento „parcial‟ e „fechado‟ que, respondendo às restrições do

comércio exterior, procurou repetir aceleradamente, em condições históricas distintas, a

experiência de industrialização dos países desenvolvidos”. (Ibid: 35)

Sobre esse último ponto, é importante ressaltar que o reconhecimento dos

contrastes e disparidades entre o processo tardio de industrialização na América Latina e

aquele experimentado pelos países hoje centrais, quando consolidaram suas indústrias

no final do século XIX, desempenharam um papel central na definição da estratégia de

industrialização e serviram, em conjunto com outros motivos, como amparo para a

defesa da intervenção do Estado na economia proposta pela CEPAL.

Apenas para oferecer um panorama geral, os principais contrastes e disparidades

poderiam ser agrupados em torno de um problema fundamental: a dificuldade de

incorporação das técnicas modernas de produção pelos países latino-americanos. Entre

as dificuldades mais ressaltadas nos documentos produzidos pela instituição, destaca-se,

Page 121: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

110

em primeiro lugar, aquela relacionada à escassez de poupança.87

Isso porque, enquanto

no período inicial do processo de industrialização dos países centrais a pouca

disponibilidade de recursos (determinada pela baixa renda per capita) mostrava-se

compatível com a quantidade (também baixa) de capital exigida para o emprego das

técnicas existentes, a incorporação das técnicas modernas pelos países da América

Latina, na medida em que exige uma quantidade considerável de recursos, tropeça

constantemente na escassez de poupança (decorrente do baixo nível de renda per

capita). (CEPAL, 2000a: 163)

Além disso, no caso dos países periféricos, a produção em grande escala também

esbarraria em limites impostos pelo lado da demanda. Isso porque, enquanto nos países

centrais “a renda originalmente exígua coincidiu com formas de produção de escala

proporcionalmente reduzida” – havendo tempo para que o aumento da renda

acompanhasse o aumento de produtividade e garantisse a absorção do aumento de

produção – nos países que incorporam tardiamente as técnicas industriais modernas, “a

demanda é baixa porque a produtividade é pequena, e esta o é porque a demanda exígua

se opõe, por sua vez, juntamente com outros fatores à utilização de elementos de técnica

mais avançada”.88

(Ibid: 164) Sobre o lado da demanda, poderia ser mencionado ainda o

conhecido “efeito demonstração”, que produz na população periférica o desejo de

manter um padrão de consumo equivalente ao padrão de consumo dos países centrais e

gera impactos negativos sobre a poupança e o balanço de pagamentos.

Por fim, a incorporação de técnicas modernas também esbarraria, no caso dos

países periféricos, no excesso de população. Como se sabe, o progresso técnico implica

normalmente a substituição de técnicas mais intensivas em mão-de-obra por técnicas

mais intensivas em capital (e poupadoras de mão-de-obra), tanto nos países centrais,

quanto nos países periféricos. Nos países centrais, no entanto, o florescimento das

indústrias de bens de capital acabaria servindo como “poderoso elemento de absorção

da mão-de-obra desempregada”. Como nos países periféricos geralmente o setor de bens

87

Não poderia deixar de notar com certa estranheza o fato de a CEPAL ter incorporado em sua

formulação, nesse ponto particular, um dos axiomas fundamentais de toda teoria ortodoxa: a ideia de que

o investimento tem por pressuposto a poupança. Vale ressaltar, inclusive, que esse talvez tenha sido um

dos pontos centrais da crítica dirigida por Tavares e Serra (1973: 159pp.) a Celso Furtado, evidenciado

quando afirmam que “Furtado parece ter vestido a „camisa de força‟ de um modelo neoclássico de

equilíbrio geral – elegante, mas ineficaz para explicar a dinâmica de uma economia capitalista”. 88

Essa é uma tese muito difundida a partir do trabalho clássico de Alexander Gerschenkron (1962) sobre

o perfil diferenciado dos países de industrialização retardatária. No caso da industrialização brasileira, um

estudo clássico sobre a especificidade que explica e provoca o “atraso” no processo de industrialização é

aquele oferecido por João Manuel Cardoso de Mello (1982).

Page 122: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

111

de capital é incipiente (ou inexistente), não apenas o mecanismo de absorção de mão-

de-obra deixaria de funcionar, mas também a demanda por bens de capital “passa a

provocar efeitos na economia dos centros industrializados, onde esses bens de capital

são produzidos”. (Ibid: 167) Além disso, considerando o nível baixo de salários

encontrado nos países periféricos, nem sempre a introdução da novas tecnologias se

mostraria economicamente interessante. (Ibid: 168)

Nesse sentido, ainda que a CEPAL (Ibid: 164) tenha reconhecido as vantagens

de “encontrar nos grandes centros uma técnica que custou a estes muito tempo e

sacrifício”, as inúmeras “desvantagens inerentes ao fato de acompanharem tardiamente

a evolução dos acontecimentos” tornavam a atuação deliberada do Estado na promoção

do desenvolvimento ainda mais importante no caso dos países periféricos. Além de

produzir a já mencionada deterioração dos termos de troca (responsável pela

manutenção da condição periférica), no plano internacional, o livre jogo das forças de

mercado também não seria capaz de corrigir os problemas acima enunciados. Nos

termos de Prebisch (1983: 1083), “as mudanças estruturais inerentes à industrialização

requerem racionalidade e visão de uma política governamental e investimento em

infraestrutura para acelerar o crescimento econômico, obter uma relação adequada entre

a indústria e a agricultura e outras atividades, e reduzir a vulnerabilidade externa.

Portanto, [há] fortes razões em favor do planejamento”.

Seção 6.3. Considerações finais

Uma vez apresentadas as linhas gerais da teoria do desenvolvimento produzida

no âmbito da CEPAL, dedicamos esta seção de encerramento do capítulo à indicação de

alguns elementos que permitam reunir a formulação cepalina no conjunto mais amplo

de concepções que encaram o desenvolvimento exclusivamente em termos da

reprodução, em escala universal, das relações sociais capitalistas. Iniciamos, portanto,

resgatando alguns pressupostos fundamentais compartilhados pela teoria cepalina e as

demais teorias do desenvolvimento formuladas no período: a despeito das

particularidades, compartilham todas uma mesma noção de desenvolvimento (que toma

como pressuposto a forma elementar de riqueza característica do capitalismo), uma

mesma estratégia de desenvolvimento (que toma como pressuposto o modo industrial de

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112

produzir) e um mesmo ideal de desenvolvimento (espelhado nos países capitalistas

desenvolvidos).

Com a indicação desses elementos comuns às teorias analisadas nos três últimos

capítulos, não pretendemos, no entanto, negar a existência de especificidades – sejam

elas determinadas por fatores de origem histórica, geográfica, teórica, ideológica etc. No

que diz respeito ao referente histórico-geográfico, por exemplo, vale recordar que as

reflexões produzidas pela CEPAL estavam particularmente direcionadas para a situação

dos países latino-americanos. Do mesmo modo, no que tange aos fatores teórico-

ideológicos, também não podemos deixar de reconhecer o fato de que todo o conjunto

de teorias associadas à CEPAL, ou ao estruturalismo de modo mais amplo, é construído

como crítica do ideário liberal-conservador. Nesse sentido, é preciso perceber que o

ideal de desenvolvimento projetado pela CEPAL efetivamente difere, em certos

aspectos, da imagem veiculada pelas teorias de inspiração liberal – basta lembrar, por

exemplo, a visão cepalina sobre o funcionamento do mercado no plano internacional ou

sobre a necessidade do planejamento, cientificamente amparado – e, por esse motivo,

reclama o estatuto de “teoria crítica”.

Considerando, no entanto, que a CEPAL articulava uma imagem de futuro que

tinha também como contraponto o ideal construído em torno do “socialismo realmente

existente”, não fica difícil concluir que se trata de mais uma instância de uma visão de

mundo conservadora. Enquadrando essas ideias no contexto mais amplo do mundo

bipolarizado do pós-guerra, não fica difícil perceber o papel desempenhado por parte

das comissões regionais (criadas todas naquele mesmo período) na “domesticação

ideológica” do Terceiro Mundo. (Marini, 1992: 73-74) Como já havíamos indicado, o

objetivo da CEPAL e das demais comissões era estudar os problemas específicos de

cada uma das regiões e propor políticas para a promoção do desenvolvimento

capitalista, respondendo, com isso, às inquietações provocadas pela emergência de

inúmeros novos Estados nacionais e à percepção das enormes desigualdades de renda no

plano internacional.

Portanto, o fato de se constituir como crítica do ideário liberal-conservador não

deve levar à conclusão de que as ideias cepalinas conformam uma crítica da sociedade

capitalista enquanto tal. Como já ressaltado, a crítica científica pode assumir diversas

feições e se expressar em diversos planos – sendo possível até mesmo afirmar que todas

as teorias, inclusive as mais conservadoras, constroem-se como críticas (seja do senso

Page 124: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

113

comum formado sobre um determinado objeto, seja de interpretações científicas

concorrentes). No entanto, quando nos referimos a alguma perspectiva autenticamente

“crítica” neste trabalho, tomamos por referência teorias que dirigem suas colocações

explicitamente não apenas contra outras ideias, mas também contra as formas de

existência objetiva que as reclamam como ideias correntes, necessárias.89

Se a teoria cepalina atende ao primeiro critério, pois recusa as concepções

econômicas ortodoxas e procura demonstrar sua falsidade, não se pode afirmar que

atende ao segundo, porque jamais se pergunta se as concepções ortodoxas são ou foram

concepções necessárias à reprodução do capitalismo num período determinado. Não é

por outra razão que os autores inspirados nas ideias cepalinas tomam as teorias

ortodoxas como produção científica de menor valor, mesmo quando a ortodoxia

demonstra-se de fato ortodoxa, isto é, hegemônica.

Para quem observa os dois conjuntos teóricos desde uma perspectiva externa,

entretanto, suas divergências no plano teórico, e mesmo no plano político-ideológico,

podem ser tomadas como a expressão de condições concretas da reprodução sistêmica,

que se alteram ao longo do tempo. Por isso, podem ser minimizadas, ainda que não

negligenciadas, na compreensão do processo de desenvolvimento das próprias ideias.

Essa é justamente a perspectiva assumida neste trabalho, razão pela qual julgamos

pertinente dirigir à CEPAL e ao seu antagonista direto (a explicação convencional do

desenvolvimento) uma única e mesma crítica.

89

O melhor exemplo de crítica científica autêntica, tomada como referência no presente trabalho, é

certamente aquela dirigida por Marx à ciência econômica, que aparece em diversos dos seus trabalhos,

mas ganha forma mais bem acabada em O Capital. Uma explicação sintética do caráter peculiar da crítica

de Marx pode ser encontrada em Duayer (2001).

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114

Capítulo 7. As tendências do debate sobre desenvolvimento no pós-1970

Apresentadas as principais contribuições à teoria do desenvolvimento

produzidas em seu período de nascimento e proliferação (i.e., entre as décadas de 1940

e 1960), dedicamos o presente capítulo à indicação das mudanças mais substantivas

sofridas pela temática do desenvolvimento no período posterior à década de 1970. Esse

recorte justifica-se, como já indicado, pois a crise dos anos 1970 – conhecida pela

“inusitada” combinação de estagnação (baixo crescimento) e inflação – marca uma série

de profundas transformações na economia mundial que não poderiam deixar de refletir-

se no estudo sobre desenvolvimento econômico. Como reconhecido por diversos

comentadores (e mesmo por alguns teóricos do desenvolvimento),90

a crise dos anos

1970, aliada à posterior ruína do socialismo real, refletiu-se inicialmente em uma crise

para a disciplina, seguida de substantivas reorientações.

Em primeiro lugar, a crise na disciplina assume a forma de um crescente

ceticismo quanto à possibilidade de superação do subdesenvolvimento e promoção da

tão almejada convergência da riqueza das nações. Assim, as décadas de 1960 e 1970 são

marcadas pelo surgimento de inúmeros trabalhos questionando a possibilidade de

realização do ideal de desenvolvimento compartilhado pelas concepções “clássicas” do

desenvolvimento, mesmo entre autores profundamente identificados com aquelas

teorias. No caso latino-americano, por exemplo, é bastante emblemática a inflexão

ocorrida no âmbito da CEPAL e o aparecimento do conjunto de formulações conhecido

como teorias da dependência – que, apesar da não homogeneidade, compartilham o

entendimento de que o sistema econômico mundial, por sua própria constituição, produz

desenvolvimento de alguns às custas do subdesenvolvimento de outros.91

90

Cf.: Hirschman (1982). 91

Além da saída de Prebisch, em 1963, a inflexão ocorrida no âmbito da CEPAL se faz sentir,

especialmente, nos trabalhos de Anibal Pinto (Chile, um caso de desenvolvimento frustrado, de 1962),

Celso Furtado (Subdesenvolvimento e estagnação, de 1966) e Oswaldo Sunkel (Mudança social e

frustração no Chile, de 1965), considerados representantes do debate sobre dependência formado no seio

da instituição. Para além dessas contribuições, as teorias da dependência podem ser divididas em duas

grandes vertentes: a primeira, de declarada orientação marxista, descendente direta da tradição leninista

da teoria do imperialismo, é inaugurada com os trabalhos de André Gunder Frank (Capitalismo e

Subdesenvolvimento na América Latina, de 1967), Theotonio dos Santos (A Estrutura da Dependência,

1970) e Ruy Mauro Marini (Dialética da Dependência, de 1972); e a segunda, comumente caracterizada

como a vertente weberiana da teoria da dependência, foi elaborada a partir do trabalho pioneiro de

Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de

1970). As teorias da dependência, no entanto, não serão aqui tomadas como objeto de estudo por se

proporem, ao menos na sua vertente marxista, como crítica externa das teorias de desenvolvimento

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115

Por outro lado, observa-se o surgimento de toda uma nova literatura decidida a

provar que o fracasso na promoção do desenvolvimento não deriva da impossibilidade

de realização do projeto em si, mas das estratégias adotadas para promovê-lo

(especialmente aquelas focadas na industrialização com intervenção do Estado na

economia). Na verdade, esse expediente crítico pode ser visto como reflexo de uma

mudança mais ampla no plano político-ideológico, marcada pelo enfraquecimento do

keynesianismo e ressurgimento da ideologia liberal (renovada sob a roupagem do

neoliberalismo). Nesse sentido, além da tentativa de demonstrar os equívocos das

estratégias de desenvolvimento baseadas na intervenção e no planejamento, as

principais contribuições nesse campo entendem que a resolução de problemas

característicos dos países subdesenvolvidos depende, fundamentalmente, da ampliação

da liberdade de mercado.

Finalmente, esse contexto também é marcado pelo surgimento de teorias que

acreditam que o problema do desenvolvimento não está no seu caráter “mitológico” ou

nos equívocos estratégicos, mas na própria definição de desenvolvimento. Assim,

embora diversos autores continuem a tratar o desenvolvimento econômico como

sinônimo de crescimento do produto – como pode ser visto, por exemplo, nos novos

modelos de crescimento que utilizam aparatos matemáticos e estatísticos cada vez mais

sofisticados –, ganha força durante esse período a perspectiva segundo a qual o

desenvolvimento não pode ser entendido como sinônimo de crescimento do produto.

Uma reorientação bastante significativa no debate sobre desenvolvimento,

portanto, está relacionada à alteração mais profunda na noção de desenvolvimento. Com

a constatação de que o processo de intensa industrialização do período anterior, além de

produzir evidentes danos ambientais, não foi capaz de conduzir a uma situação

considerada suficientemente igualitária e promover a desejada convergência da riqueza

das nações, novas dimensões foram sendo progressivamente incorporadas à ideia de

desenvolvimento, que se torna mais “fragmentada”: não bastaria mais falar naquele

“desenvolvimento econômico” medido somente em termos da produção nacional

(preferencialmente a produção per capita, incapaz de revelar as desigualdades

distributivas) e que teria como meta diminuir as disparidades de renda entre as nações,

mas de um desenvolvimento que é sustentável em sentido amplo, ou seja, baseado em

convencionais (i.e., daquelas formuladas no interior da ciência econômica). Investigar se essa alegação de

externalidade é justificada exigiria um trabalho à parte.

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116

uma sustentabilidade física (ecológica), econômica (de durabilidade ao longo do tempo)

e social (inclusiva).

Além da incorporação das novas temáticas (especialmente da equidade e da

sustentabilidade) no debate sobre desenvolvimento, é possível perceber também que a

derrocada do “socialismo” real fez praticamente desaparecerem as discussões sobre o

caráter histórico do capitalismo e as possibilidades de pensar o desenvolvimento para

além dos marcos desse modo de produção. O resultado é que, nas formulações mais

recentes, o grau de confiança no poder dos mercados e do Estado passa a ser o alvo

exclusivo das disputas. Ou seja, enquanto as teorias dominantes sustentam a

precedência do irrestrito funcionamento do mercado sobre o dirigismo estatal (sem

ignorar a eventual necessidade do Estado, especialmente na garantia do bom

funcionamento dos mercados), as teorias heterodoxas defendem uma participação mais

ativa do Estado (sem negar, no entanto, a importância do mercado forte). O debate,

enfim, gira em torno do grau de intervenção do Estado necessário para objetivar a

sociedade projetada pelas diferentes teorias do desenvolvimento.

Na tentativa de oferecer um panorama geral da forma como o desenvolvimento é

tratado a partir da década de 1970, o presente capítulo divide-se em duas seções. Na

primeira, serão apresentadas algumas das principais temáticas incorporadas ao debate

sobre desenvolvimento, com especial ênfase na contribuição de Amartya Sen para a

redefinição do conceito. Na segunda, trataremos das tentativas de redefinição das

estratégias de desenvolvimento centradas no debate Estado x Mercado. Para tanto,

começamos com a ofensiva neoliberal sistematizada na agenda do Consenso de

Washington, seguida de perspectivas mais “conciliadoras”, como aquelas contidas na

agenda do Pós-Consenso e da Nova CEPAL, por exemplo. Feito isso, utilizamos a

contribuição de Ha-Joon Chang como ilustração de um movimento mais recente de

surgimento de perspectivas que, partindo de uma crítica às “boas políticas” prescritas

pelo Consenso de Washington, resgatam as teorias “clássicas” do desenvolvimento e,

junto com elas, a velha noção de desenvolvimento (associada ao planejamento e

industrialização).

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117

Seção 7.1. A requalificação do debate sobre desenvolvimento

Como visto nos três capítulos anteriores, uma das principais semelhanças entre

as teorias do desenvolvimento produzidas no período pré-1970 é o fato de tomarem o

desenvolvimento como sinônimo de aumento da riqueza (medida pelo crescimento do

produto per capita) e compartilharem, de modo quase unânime, o entendimento de que

a realização desse objetivo deve passar pela industrialização das economias

subdesenvolvidas, o que quer dizer que todas aquelas colocações, a despeito de sua

diversidade, projetam para o futuro de todas as nações uma sociedade capitalista num

formato determinado. Isso não significa, evidentemente, que as teorias “clássicas” do

desenvolvimento tenham desprezado a necessidade de o crescimento econômico ser

acompanhado por uma melhoria nas condições de vida da população, por vezes

explicitamente mencionada como o objetivo último do desenvolvimento. No entanto,

considerando as experiências “bem sucedidas” dos chamados países desenvolvidos e a

disseminação da crença segundo a qual o aumento na qualidade de vida seria um

resultado quase inexorável do crescimento do produto, a renda per capita serviu durante

aqueles anos como o principal critério de mensuração e avaliação dos diferentes graus

de desenvolvimento das nações.

Diante dos resultados pouco animadores decorrentes da implementação de

estratégias de superação do subdesenvolvimento, das inúmeras denúncias sobre a

devastação do meio ambiente resultante do processo de industrialização e da

constatação de que esse processo não havia se traduzido em uma distribuição mais

equitativa da renda, assiste-se à proliferação de questionamentos sobre o caráter positivo

do processo de desenvolvimento, tal como concebido até então. Assim, especialmente

durante as décadas de 1980 e 1990, entram subitamente em cena novas formulações

argumentando que o desenvolvimento deve envolver a realização de objetivos mais

amplos, como, por exemplo, equidade, sustentabilidade, melhoria no acesso a bens

como saúde, educação etc. Essas formulações não chegam a negar a importância do

crescimento econômico para o desenvolvimento, mas tratam o primeiro como apenas

um aspecto do último (ou ainda, como condição necessária, mas não suficiente).

Uma das tentativas mais emblemáticas de redefinir a noção de desenvolvimento,

utilizada aqui para ilustrar essa importante tendência do debate no período pós-1970,

talvez tenha sido aquela promovida por Amartya Sen, laureado Nobel de Economia em

Page 129: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

118

1998. Isso porque, além da significativa produção teórica voltada à exposição do seu

enfoque das capacidades e à defesa do desenvolvimento como liberdade (cujos

contornos pretendemos delinear adiante), Sen atuou como colaborador direto do

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), sendo um dos

responsáveis pela elaboração do índice de desenvolvimento humano (IDH).

Construído com base na convicção de que desenvolvimento deve ir além do

simples aumento da renda per capita, o índice foi apresentado no primeiro Relatório de

Desenvolvimento Humano (RDH) em 1990, cuja mensagem central representa fielmente

a mudança de perspectiva característica do período: “enquanto o crescimento da

produção nacional (PIB) é absolutamente necessário para alcançar todos os objetivos

humanos essenciais, o importante é estudar como esse crescimento se traduz – ou falha

em se traduzir – em desenvolvimento humano em várias sociedades”. (PNUD, 1990: iii)

Nesse sentido, na tentativa de oferecer uma forma de mensuração do desenvolvimento

que não se restrinja apenas ao rendimento nacional per capita, mas que também

incorpore elementos relacionados às condições de vida da população, o IDH conjuga

indicadores de renda, esperança de vida e nível de escolaridade, cujos dados se

encontram disponíveis para a maioria dos países.

Como explicitamente reconhecido pelos formuladores do IDH já no momento de

sua criação, e reafirmado no balanço realizado no vigésimo RDH, publicado em 2010, a

simplicidade do novo indicador poderia ser vista, ao mesmo tempo, como uma virtude e

um defeito. Por um lado, a simplicidade do IDH poderia ser encarada como um “ponto

forte”, pois permitiria que o indicador fosse utilizado como uma alternativa ao PIB per

capita e despertasse o interesse do público em geral pelas outras variáveis analisadas ao

longo do relatório. Por outro lado, o fato de basear-se em médias nacionais tornava o

indicador insensível às assimetrias distributivas, não havendo também uma “medida

quantitativa de liberdade humana” que pudesse ser a ele incorporada. (PNUD, 2010: iv)

Nos termos de Sen (2010: vi), portanto, “os limites estreitos do IDH” não devem ser

confundidos com a “enorme amplitude da abordagem do desenvolvimento humano” ou

com a reorientação por ele proposta (ainda que, carregado de méritos, o indicador sirva

como uma boa aproximação).

Como pode ser visto, por exemplo, no artigo publicado por Sen no início dos

anos 1980 e intitulado Development: which way now?, o autor busca, por um lado,

oferecer um contraponto ao ceticismo que naquele momento declarava morta e

Page 130: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

119

enterrada a discussão sobre desenvolvimento e, por outro, opor-se àquelas perspectivas

preocupadas em retomar o debate sobre desenvolvimento exclusivamente com base em

reformulações estratégicas. Diferentemente de ambas, a formulação proposta por Sen

toma como ponto de partida uma reafirmação das principais teses e estratégias

defendidas pelas teorias “clássicas” do desenvolvimento (exercício realizado pelo autor

por meio da análise de algumas experiências concretas), acompanhada da tentativa de

agregar a essas teorias novas dimensões e responder, com isso, aos anseios de

ampliação da noção de desenvolvimento.

Nesse sentido, assim como a perspectiva defendida no RDH reafirma a

importância do crescimento econômico para o desenvolvimento (refletida na própria

manutenção da renda per capita como um dos elementos componentes do IDH), o

ponto central do argumento de Sen não consiste na negação do crescimento ou na

rejeição dos meios propostos pelas teorias “clássicas” do desenvolvimento com vistas a

esse objetivo. A “real limitação da economia do desenvolvimento tradicional” residiria,

segundo Sen (1983: 753), no “reconhecimento insuficiente de que o crescimento

econômico não é mais que um meio para outros objetivos”. Ou seja, “o ponto não é

dizer que o crescimento não importa. Ele pode ter grande relevância, mas, se tem, é por

causa de alguns benefícios a ele associados, que se realizam no processo de crescimento

econômico”. (Ibid)

De acordo com Sen (Ibid: 754), portanto, ao contrário do foco na “produção

nacional, renda agregada ou oferta de determinados produtos”, as teorias do

desenvolvimento deveriam preocupar-se com os intitulamentos [entitlements] e com as

capacidades [capabilities] geradas por esses intitulamentos. Os intitulamentos devem

ser entendidos como o “conjunto de diferentes pacotes de mercadorias que uma pessoa

pode comandar em uma sociedade, utilizando a totalidade de direitos e oportunidades

que estão diante dela”. (Ibid) O conceito de funcionamento, por sua vez, expande o

campo da avaliação do bem-estar para além dos limites da reprodução material

(economia), refletindo “as várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer

ou ter. Os funcionamentos valorizados podem variar dos elementares, como ser

adequadamente nutrido e livre de doenças evitáveis, a atividades ou estados pessoais

muito complexos, como poder participar da vida da comunidade e ter respeito próprio”.

(Sen, 2000: 95)

Page 131: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

120

As capacidades, finalmente, são entendidas como o conjunto de funcionamentos

disponíveis aos indivíduos dada a totalidade de seus recursos. Em termos mais detidos,

a capacidade de uma pessoa “consiste nas combinações alternativas de funcionamentos

cuja realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a

liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos (ou,

menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos)”. A ideia é

que, se se considerar todo o conjunto de combinações de funcionamentos disponíveis

aos indivíduos (o que Sen denomina “conjunto capacitário”), pode-se formar um juízo

dos estilos de vida à sua disposição e da liberdade que alcançaram para escolher a vida

que se deseja levar. (Sen, 2001: 80)

Em linhas gerais, portanto, a teoria do desenvolvimento proposta por Sen

defende que, ao contrário do crescimento do produto, o processo de desenvolvimento

deve envolver a ampliação das liberdades individuais (capacidades). Considerando

ainda a “relação funcional entre os intitulamentos das pessoas sobre bens e suas

capacidades, uma caracterização útil – ainda que derivada – do desenvolvimento

econômico é em termos da expansão dos intitulamentos”. (Sen, 1983: 755) Como

sistematizado, sobretudo, no ciclo de palestras proferido no Banco Mundial nos anos de

1996/1997 e posteriormente publicado no livro Desenvolvimento como liberdade, a

“expansão da liberdade é vista, por essa abordagem, como o principal fim e o principal

meio do desenvolvimento”. (Ibid, 2000: 10)

Ainda que tenham sido poucas as categorias aqui recolhidas do trabalho de Sen,

acredita-se que já são suficientes para delinear sua concepção de desenvolvimento e,

portanto, deixar clara a sua diferença em relação às teorias do desenvolvimento do

período anterior. Já as convergências entre a teoria seniana e todas as demais (abordadas

neste capítulo e nos últimos) serão tratadas no momento oportuno (i.e., na conclusão

deste capítulo e na conclusão geral do trabalho). Seria um desperdício, no entanto, se

não fossem indicados de pronto os elementos de seu raciocínio que expõe de modo

relativamente claro a perspectiva político-ideológica a que se filia.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à forma como Sen trata a relação entre as

liberdades substantivas (fins) e instrumentais (meios), é preciso notar que, assim como

os intitulamentos não significam apenas as rendas reais disponíveis para os sujeitos, a

expansão dos intitulamentos, entendida pelo autor como um dos meios para alcançar o

desenvolvimento, não deve ser confundida com a simples melhoria na distribuição de

Page 132: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

121

renda.92

Isso porque os usos que os indivíduos podem “dar a um dado pacote de

mercadorias ou, de um modo mais geral, a um dado nível de renda” são bastante

distintos e “dependem crucialmente de várias circunstâncias contingentes, tanto pessoais

como sociais”. (Ibid: 90)

De acordo com Sen, portanto, existiriam ao menos “cinco fontes distintas de

variação entre nossas rendas reais e as vantagens – o bem-estar e a liberdade – que delas

obtemos”: (i) heterogeneidades pessoais, (ii) diversidades ambientais, (iii) variações no

clima social, (iv) diferenças de perspectivas relativas, (v) distribuição na família. Em

primeiro lugar, as “heterogeneidades pessoais” seriam aquelas “características físicas

díspares relacionadas a incapacidade, doença, idade ou sexo” que fazem com que as

necessidades dos indivíduos sejam diferenciadas. As “diversidades ambientais”

incluiriam, por exemplo, “circunstâncias climáticas (variações de temperatura, níveis

pluviométricos, inundações etc.)” que também “podem influenciar o que uma pessoa

obtém de determinado nível de renda”. As “variações no clima social”, por sua vez,

incluiriam “os serviços públicos de educação” e/ou a “prevalência ou ausência de crime

e violência na localidade específica”. No que diz respeito às “diferenças de perspectivas

relativas”, Sen afirma que “as necessidades de mercadorias associadas a padrões de

comportamento estabelecidos podem variar entre comunidades, dependendo de

convenções e costumes”. Finalmente, a “distribuição na família” trataria do fato de que

“as rendas auferidas por um ou mais membros de uma família são compartilhadas por

todos – tanto por quem a ganha como por quem não a ganha”. (Sen, 2000: 90-91)

Considerando os propósitos do presente trabalho, a análise da forma como Sen

refere-se às “características distintivas dos seres humanos” (misturando diferenças

individuais e sociais) é particularmente importante, pois, como sugere Medeiros (2007:

72), é nesse momento que “Sen fornece os primeiros indícios para revelar um aspecto

marcante – e raramente explicitado – de sua abordagem: o seu caráter aistórico, restrito

ao âmbito da ordem social vigente”. Isso porque, na medida em que “características

pessoais irredutíveis (genotípicas e fenotípicas)” e “aspectos históricos (resultantes do

desenvolvimento social)” são colocados no mesmo plano (“o das diversidades dos seres

humanos, [...] como se a diversidade entre estas diversidades inexistisse ou fosse

92

Ainda que reconheça méritos nas tentativas, bastante comuns no período pós-1970, de mudar o foco

para as questões distributivas, Sen (1983: 760) entende que “suplementar dados sobre o PNB per capita

com informação sobre distribuição de renda é bastante inadequado para dar conta dos requerimentos da

análise do desenvolvimento”.

Page 133: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

122

absolutamente irrelevante”), características inerentemente sociais como, por exemplo, a

divisão de classes são naturalizadas “e a crítica dirigida a qualquer distinção herdada da

história (entre escravos e libertos, por exemplo), passa a ter o mesmo estatuto de ataques

criminosos à diversidade humana (como o nazismo e o racismo)”. (Ibid)

No que diz respeito ao caráter instrumental da liberdade (ou seja, ao fato de que

a liberdade em uma determinada dimensão, digamos política, seja meio para ampliar a

liberdade em outra dimensão, digamos econômica), Sen (Ibid: 55) lista cinco tipos

diferentes de liberdade que teriam esse caráter pronunciado: (i) liberdades políticas, (ii)

facilidades econômicas, (iii) oportunidades sociais, (iv) garantias de transparência e (v)

segurança protetora. Para os propósitos do presente argumento, concentremos as

atenções nas “facilidades econômicas”, que, segundo o autor, são “as oportunidades que

os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo,

produção ou troca”. (Ibid) Trata-se, enfim, para dizê-lo resumidamente da “liberdade de

participar irrestritamente de todos mercados”. (Medeiros, 2007: 219)

Mesmo a um leitor distraído chamaria a atenção o fato de que a liberdade de

mercados seja considerada não apenas constitutiva do desenvolvimento (liberdade), mas

um meio poderoso para alcançá-lo. Essa é sem dúvidas uma defesa do livre mercado

não apenas explícita, mas talvez ainda mais contundente do que a realizada por autores

de renome do pensamento liberal, inclusive Smith, pois, embora muitos liberais tenham

afirmado que o laissez faire é condição para alcançar o desenvolvimento (instrumento),

poucos chegaram a afirmar que ele é por si mesmo um atributo definidor da nação

desenvolvida. Trata-se, em suma, não apenas de uma proposição conservadora, mas, em

tempos neoliberais, de uma proposição radicalmente conservadora, como o autor parece

fazer questão de deixar claro na passagem abaixo:

Ser genericamente contra os mercados seria quase tão estapafúrdio quanto

ser genericamente contra a conversa entre as pessoas (ainda que certas

conversas sejam claramente infames e causem problemas a terceiros – ou até

mesmo aos próprios interlocutores). A liberdade de trocar palavras, bens ou

presentes não necessita de justificação defensiva com relação a seus efeitos

favoráveis mais distantes; essas trocas fazem parte do modo como os seres

humanos vivem e interagem na sociedade (a menos que sejam impedidos por

regulamentação ou decreto). A contribuição do mecanismo de mercado para

o crescimento econômico é obviamente importante, mas vem depois do

reconhecimento da importância direta da liberdade de troca – de palavras,

bens, presentes. (Sen, 2000: 21)

Page 134: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

123

Seção 7.2. O dilema “Estado x Mercado”

Além da tentativa de incorporar novas temáticas ao debate sobre

desenvolvimento, a década de 1970 foi marcada pela retomada da hegemonia neoliberal

nos planos teórico, político e ideológico. Como retratado anteriormente,93

o projeto

neoliberal ganha força com base no argumento de que a crise vivenciada por diversos

países nos anos 1970 tinha origem no excesso de intervenção do Estado na economia.

Assim, enquanto nos países “desenvolvidos” essa concepção traduziu-se especialmente

em um ataque ao Estado de bem-estar social e das instâncias de organização e

representação da classe trabalhadora (sindicatos e partidos de esquerda), no caso dos

países “subdesenvolvidos” o diagnóstico neoliberal entendia a crise como manifestação

da suposta falência do modelo de desenvolvimento implementado nesses países durante

os anos anteriores.

Na medida em que o debate sobre política econômica passou a ser dominado,

predominantemente, por questões de curto prazo (particularmente voltadas para a

necessidade de estabilização macroeconômica), a virada neoliberal foi repetidamente

rotulada como o “fim do debate sobre desenvolvimento”. No entanto, apesar de aparecer

inicialmente de maneira dispersa, como um simples conjunto de políticas de curto

prazo, é possível identificar no projeto neoliberal tanto um ideal de desenvolvimento,

quanto uma estratégia para alcançá-lo. Do ponto de vista do ideal de desenvolvimento,

pode-se dizer que as mudanças não foram muito significativas: assim como no caso das

teorias “clássicas”, o desenvolvimento seguia sendo encarado fundamentalmente como

sinônimo de crescimento do produto. Do ponto de vista da estratégia, no entanto,

tratava-se de resgatar “velhos” argumentos clássicos e neoclássicos em favor da

liberdade de mercado.

De modo geral, a estratégia de desenvolvimento neoliberal pode ser dividida em

três momentos de uma mesma lógica: o ponto de partida seria a estabilização

macroeconômica (primeiro momento), pré-condição para as reformas estruturais

(segundo momento), necessárias à retomada do investimento e crescimento (terceiro

momento). A estabilização seria, assim, um dos pilares da estratégia (mas não o maior,

conforme comumente se afirma) e a forma de se alcançar a estabilidade e operar a

sequência das reformas dependeriam das especificidades de cada país. No entanto, a

93

Ver capítulo 3, seção 2.

Page 135: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

124

lógica seria sempre a mesma: a estabilidade aparece como uma pré-condição para as

reformas e as reformas como uma pré-condição para a retomada do investimento e do

crescimento.

Esse projeto de desenvolvimento foi sistematizado, sobretudo, na agenda do

chamado Consenso de Washington – resultado de um encontro realizado no fim da

década de 1980 que buscava averiguar o andamento das reformas neoliberais já em

curso na América Latina e, mesmo diante dos resultados pouco animadores, enfatizar a

necessidade de dar prosseguimento a sua implementação. Embora tenha sido construído

com vistas especificamente às circunstâncias latino-americanas, o Consenso apresentava

um conjunto de reformas que se supunha necessário a quaisquer países e amplamente

aceito por todos os “economistas sérios”.94

(Williamson, 1994: 18) As reformas assim

propostas deveriam, de modo geral, estar voltadas para a abertura comercial, a

desregulamentação e liberalização do sistema financeiro e a mudança do papel do

Estado na economia. Em suma, tratava-se de implementar reformas “pró-mercado” que

garantissem a esta instituição o papel principal na alocação dos recursos econômicos.

Por isso seria necessário garantir o saneamento das contas públicas (via corte de gastos,

privatizações etc.) para criar um ambiente favorável aos investimentos e à lucratividade

do setor privado. (Williamson, 1990)

No que diz respeito ao debate sobre desenvolvimento, essa proposta recebeu

inúmeras (e acertadas) críticas, especialmente após a avaliação do desempenho

econômico dos países subdesenvolvidos na década de 1990 (conhecida, no caso latino-

americano, como a “década mais que perdida”). De um lado, parte dos críticos tentava

ressaltar a necessidade de resgatar o Estado como agente promotor do desenvolvimento,

sem com isso negar a relevância do mercado. De outro, os defensores da agenda

neoliberal tratavam de afirmar (i) a necessidade de completar as “reformas de primeira

geração” (especialmente promovendo a desregulamentação do mercado de trabalho), (ii)

a necessidade de implementar as “reformas de segunda geração” (voltadas

especialmente para o fortalecimento das instituições) e (iii) a necessidade de combinar

crescimento e equidade social.

94

Diante das controvérsias suscitadas pelo caráter pretensioso da expressão Consenso de Washington,

Williamson (2004b: 285) observa ainda que: “Um dos debatedores de meu trabalho, Richard Feinberg,

argumentou que ela deveria ter sido chamada „convergência universal‟, porque (1) a mudança no

pensamento econômico que ela resumia era de âmbito mundial, em lugar de confinado a Washington; e

(2) a extensão do acordo ficava muito aquém do consenso. É claro que Feinberg estava correto em ambos

os pontos, mas era tarde demais para mudar o nome de marca”.

Page 136: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

125

Em linhas gerais, portanto, a agenda focada especialmente nos pontos (ii) e (iii)

(também conhecida na literatura econômica sob o título de Pós-Consenso de

Washington) não propõe a reversão das reformas, mas uma espécie de gerenciamento e

direcionamento dos efeitos da abertura comercial e da liberalização financeira externa,

obtidos particularmente através do fortalecimento das instituições, necessário à

retomada do crescimento acelerado e de melhorias na distribuição de renda.95

Nas

palavras de Williamson:

Um papel importante para as instituições é perfeitamente consistente com o

mainstream econômico que coloca o papel crucial do Estado para a criação e

manutenção da infraestrutura institucional de uma economia de mercado, na

provisão de bens públicos, internalizando as externalidades e, dependendo de

visões políticas, corrigindo a distribuição de renda (observe que nenhum

desses papéis serve para racionalizar uma responsabilidade governamental a

fim de movimentar usinas siderúrgicas, geradoras de eletricidade, ou bancos).

(Williamson, 2004a: 10)

Uma postura que se pretende alternativa à proposta neoliberal foi defendida no

âmbito da CEPAL explicitamente a partir da década de 1990. Esse período ficou

conhecido por uma mudança de rumos no pensamento cepalino, desde então

identificado com a postura neoestruturalista, e que tem como marco a publicação do

documento Transformação produtiva com equidade: a tarefa prioritária do

desenvolvimento da América Latina e do Caribe nos anos noventa. Tomando como

ponto de partida a constatação de que os anos 1980 não foram muito generosos com as

economias latino-americanas e os desafios postos para a década de 1990,96

a perspectiva

neoestruturalista busca definir uma nova estratégia de desenvolvimento para a região

que se situe no meio termo entre os argumentos neoclássicos, em favor dos benefícios

advindos de uma economia de mercado, e o argumento das teorias “clássicas” do

desenvolvimento, particularmente da teoria “clássica” cepalina, em favor da adoção de

uma estratégia de desenvolvimento com recurso à intervenção do Estado na economia.

Assim, a postura adotada pela CEPAL após a década de 1990 pode ser encarada

como um exemplo de propostas conciliadoras, bastante em voga nos dias de hoje, e que

se apóiam sobre um diagnóstico de que os “novos tempos de abertura e globalização”

95

Um detalhamento das “reformas de segunda geração” constitutivas do Pós-Consenso pode ser visto em

Williamson e Kuczynski (2004). 96

Como consta no documento: “o produto real per capita no final de 1989 não retrocedeu ao que fora

registrado dez anos antes, mas ao nível de treze anos antes, e até mais do que isso, no caso de algumas

economias. Por conseguinte, os países da região estão iniciando a década de 1990 com o peso da inércia

recessiva dos anos 1980, com o passivo representado por sua dívida externa, e com a presença de uma

inadequação fundamental entre estruturas da demanda internacional e a composição das exportações

latino-americanas e caribenhas”. (CEPAL, 2000b: 889)

Page 137: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

126

não deixam espaço para pensar o desenvolvimento fora de uma economia de mercado.97

Não obstante, o mercado é também enxergado como uma instituição que, mesmo

quando funcionando em completa liberdade, pode ser pouco sensível aos chamados

“problemas sociais” (e também ambientais), sobretudo no curto prazo. Dessa forma, as

propostas neoestruturalistas (e correlatas) passam a defender a ideia de que o Estado

deveria atuar como gerenciador de políticas e reformas pró-mercado, de modo a ampliar

a concorrência, garantir a eficiência econômica e estimular a incorporação de novas

tecnologias (i.e., realizar uma transformação produtiva), e atuar como instância

responsável pela distribuição mais equitativa (e ambientalmente responsável) dos frutos

dessa transformação.

Apesar de se pretender alternativa, portanto, essa postura guarda diversas

semelhanças com a proposta neoliberal, particularmente na versão do Pós-Consenso de

Washington – quando se torna claro, mesmo para certas alas mais conservadoras, a

necessidade da atuação do Estado no gerenciamento e administração das condições de

reprodução sistêmica.98

Para encerrar a presente seção, gostaríamos de mencionar ainda um tipo de

intervenção relativamente recente que, partindo de uma crítica às “boas políticas”

prescritas pelo chamado Consenso de Washington, busca construir uma estratégia de

desenvolvimento alternativa ao projeto neoliberal através de um resgate mais incisivo

das teorias do desenvolvimento formuladas nos anos 1940/1950. Como indicado na

introdução, um exemplo bastante emblemático de reorientação nesse sentido é oferecido

pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang, especialmente no livro Chutando a

escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica – um título que alude

à expressão utilizada por Friedrich List, economista alemão do século XIX, defensor da

proteção à indústria nascente.

97

Essa seria, em parte, uma das características de inúmeras intervenções identificadas como novo-

desenvolvimentistas, que tem como fundamento a tentativa de atribuir novamente um papel mais ativo do

Estado nas estratégias de desenvolvimento, mas que, por outro lado, não consegue se desvencilhar da

retórica pró-mercado. Como pode ser visto, por exemplo, no texto de apresentação do livro Novo-

desenvolvimentismo – um projeto nacional de crescimento com equidade social: “Os termos novo-

desenvolvimentismo e neo-estruturalismo retomam a ideia da necessidade de um desenvolvimento

endógeno, mas não deixam de lado a necessidade do livre comércio para alcançar competitividade

internacional e, assim, um crescimento sustentado. Da mesma forma que a economia social de mercado, o

novo-desenvolvimentismo é um caminho do meio entre dois extremos, este entre o livre comércio

incondicional e o protecionismo econômico, aquele entre o liberalismo e o socialismo”. (Sicsú, Paula e

Michel, 2005: xxxi) 98

Para mais sobre a relação entre a também chamada Nova CEPAL e as proposições neoliberais

(geralmente negada pelos membros da instituição) conferir, por exemplo, Almeida Filho (2003),

Carcanholo (2008b) e Corrêa (2007).

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127

Com o debate pautado, mais uma vez, em evidências empíricas, autores como

Chang questionam o sucesso das políticas neoliberais na promoção do desenvolvimento

e, em movimento semelhante ao da década de 1970, atribuem aos adversários a culpa

pelo desempenho econômico pífio de parte das economias subdesenvolvidas nas últimas

décadas. Particularmente no caso de Chang, o argumento utilizado no ataque ao

liberalismo e defesa do intervencionismo também toma como base o resgate histórico

das políticas e instituições efetivamente adotadas pelos “países atualmente

desenvolvidos”, “quando se achavam em processo de desenvolvimento” (Chang, 2004:

13) – expediente analítico que, segundo Chang, seria bastante comum entre os teóricos

do desenvolvimento dos anos 1940/1950.99

De acordo com o autor, portanto, ao observar historicamente a forma como os

“países ricos enriqueceram de fato”, é possível chegar à conclusão de que “eles não

seriam o que são hoje se tivessem adotado as políticas e as instituições que agora

recomendam às nações em desenvolvimento”. (Ibid: 13) Ou seja, ao contrário do que

normalmente se afirma, “o fomento à indústria nascente [especialmente por meio de

políticas industrial, comercial e tecnológica intervencionistas] foi a chave do

desenvolvimento da maioria das nações” (Ibid: 26) – constatação essa que leva o autor a

acreditar que os “países atualmente desenvolvidos” estariam agora “„chutando a escada‟

pela qual subiram ao topo, impedindo as nações em desenvolvimento de adotarem as

políticas e instituições que eles próprios adotaram”. (Ibid)

Para utilizar a própria metáfora sugerida por Chang, não se trata de (i) questionar

a existência de uma escada (ou seja, questionar a possibilidade de se reproduzir nos

países subdesenvolvidos os padrões de desenvolvimento dos países desenvolvidos,

como presente nas formulações mais céticas) ou (ii) perguntar para onde leva a escada

(ou seja, questionar o próprio padrão de desenvolvimento dos países desenvolvidos,

movimento característico das tentativas de requalificação do debate sobre

desenvolvimento, apresentadas na seção anterior). Ao contrário, parte-se do pressuposto

de que a escada existe (“intervenção direta do Estado, sobretudo na forma de políticas

industrial, comercial e tecnológica”, ainda que não seja negada a importância, por

99

Citando autores como Lewis, Rostow, Kuznets, Gerschenkron e Hirschman, que “formularam suas

teorias dos „estágios‟ do desenvolvimento econômico com base num conhecimento profundo da história

da industrialização nos países desenvolvidos”, Chang (2004: 20) procura mostrar como uma das marcas

distintivas do período de “auge da economia do desenvolvimento” foi a proliferação de “ensaios

explicitamente destinados a transmitir aos países em desenvolvimento as lições extraídas da experiência

histórica das nações desenvolvidas” – perspectivas essas “abafadas pela predominância da economia

neoclássica, que rejeita categoricamente esse tipo de raciocínio indutivo”. (Ibid: 21)

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128

exemplo, de políticas para manutenção da estabilidade macroeconômica) (Ibid: 210) e

leva ao caminho correto (“crescimento econômico”, entendido como “a chave do

desenvolvimento econômico mais amplamente definido”) (Ibid: 24), restando aos

teóricos do desenvolvimento apenas a tarefa de colocá-la em pé novamente.

Seção 7.3. Considerações finais

Como viemos enfatizando ao longo dos capítulos que compõem a Parte II do

presente trabalho, a análise das teorias do desenvolvimento aqui realizada não tem como

objetivo avaliar os graus de correção ou incorreção dessas formulações. Mais distante

ainda de nossos objetivos está o questionamento sobre a adequação das diferentes

estratégias de desenvolvimento à realização dos ideais de desenvolvimento carregados

por essas teorias, seja nos anos 1950 ou nos dias atuais. Trata-se, na verdade, de indicar

como tanto as estratégias (meios) quanto os ideais (fins) veiculados pelas teorias do

desenvolvimento, corretos ou equivocados, respondem, em cada contexto histórico

específico, às necessidades de reprodução das relações capitalistas em nível global.

Ao longo dos três capítulos anteriores, tratamos mais detidamente das teorias do

crescimento/desenvolvimento formuladas no período de nascimento e auge da chamada

Economia do Desenvolvimento, da relação existente entre essas formulações e o

contexto no qual foram formuladas e, finalmente, da relação dessas teorias com o modo

de produção capitalista em geral. Nessa inspeção, vimos que o desenvolvimento foi

tratado durante aquele período fundamentalmente como sinônimo de crescimento do

produto, que a estratégia de desenvolvimento foi associada à industrialização das

economias subdesenvolvidas, e o ideal de desenvolvimento, inspirado nas experiências

das economias capitalistas ditas desenvolvidas.

No presente capítulo, buscamos mostrar através de alguns exemplos como o

período posterior à crise dos anos 1970 foi marcado por inúmeras tentativas de

redefinição dos objetivos e estratégias de desenvolvimento. Do ponto de vista dos

objetivos, a constatação de que o crescimento do produto vinha, não raramente,

acompanhado de efeitos perniciosos (como, por exemplo, a má distribuição de renda e a

degradação do meio ambiente), lançou sobre as teorias do desenvolvimento a

necessidade de incorporar novos critérios à definição de desenvolvimento (que

permitissem ir além do simples crescimento da renda). Ou seja, ainda que o fim da

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129

experiência do socialismo real tenha sido entendido como a prova definitiva de

superioridade do capitalismo em relação a projetos alternativos de sociedade, as teorias

do desenvolvimento permanecem desempenhando um papel importante na sustentação

da crença na possibilidade de que o desenvolvimento capitalista não submeta a maioria

da população a condições subumanas de vida e (contrariando as previsões mais

catastróficas) seja compatível com própria a manutenção da vida no planeta.

Interessante também é notar como essas mudanças na concepção de

desenvolvimento se refletem nas distintas tentativas de redefinição das estratégias de

desenvolvimento, resumidamente expressas no debate liberalismo x intervencionismo.

Ou seja, salvo raríssimas exceções, é possível perceber como as diferentes estratégias de

promoção do desenvolvimento e/ou superação do subdesenvolvimento, com maior ou

menor intervenção do Estado, com maior ou menor liberdade de mercados, acabam por

incorporar as temáticas da equidade e sustentabilidade. Como já indicado, portanto, o

debate termina girando em torno do grau de liberdade de mercado e intervenção do

Estado necessário para objetivar a sociedade projetada pelas teorias do

desenvolvimento.

Quando observamos mais atentamente os pressupostos por detrás das

formulações aqui apresentadas, no entanto, percebemos que as mudanças são menos

significativas do que parecem à primeira vista. Mesmo no caso de propostas de

reorientação consideradas “radicais”, como, por exemplo, a sugerida por Sen em seu

Desenvolvimento como liberdade, as teorias do desenvolvimento não abandonam o

critério crescimento do produto e não deixam de tratar o desenvolvimento

exclusivamente em termos da reprodução, em escala universal, das relações sociais

capitalistas. Socialmente justo, ambientalmente responsável, livre ou regulado: trata-se

apenas de projetar para o futuro configurações diversas de uma mesma formação social

(o capitalismo).

Page 141: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

130

Conclusão

Em uma passagem pouco citada do Grundrisse, Marx examina as condições

histórica e logicamente necessárias para que o capital encarregue-se de investimentos de

vulto na construção de estradas, canais, pontes etc. (obras de infraestrutura em geral),

que exigiam, até o período moderno, um esforço coletivo usualmente capitaneado pelo

Estado. Trata-se de um momento do texto, portanto, no qual Marx aborda

explicitamente a oposição entre Estado e mercado no que tange ao provimento dos

assim-chamados (atualmente) bens públicos. Tal argumento não teria nenhuma relação

com o conteúdo desse trabalho, não fosse o fato de Marx – numa colocação que

certamente surpreenderia os desavisados e despertaria a ira de posições pseudo-

dogmáticas à esquerda – ter tratado a situação em que o capital atinge condições para

dar conta do investimento em infraestrutura como uma condição de “máximo

desenvolvimento do capital”. Em suas palavras,

O máximo desenvolvimento do capital se dá quando as condições gerais do

processo de produção social não são criadas a partir da dedução da renda

social, dos impostos do Estado – em que a renda, e não o capital, aparece

como fundo de trabalho e o trabalhador, embora seja trabalhador assalariado

livre como qualquer outro, economicamente se encontra em uma outra

relação –, mas pelo capital como capital. Isso mostra, de um lado, o grau em

que o capital já submeteu a si todas as condições da produção social e, por

essa razão, de outro lado, a extensão com que a riqueza reprodutiva social

está capitalizada e todas as necessidades são satisfeitas sob a forma da

troca.100

(Marx, 2011: 439)

É nítido nesta passagem que Marx emprega o termo desenvolvimento não para

designar uma situação em que a sociedade capitalista atinge uma condição “mais

humana” ou “melhor” em qualquer sentido, mas sim para caracterizar um momento da

história dessa formação social no qual o capital adquiriu extensão e força suficientes

para dominar todos os momentos da existência social, inclusive, no caso, o provimento

de infraestrutura. Ainda que fosse – como parece ser – possível demonstrar que o

monopólio privado, capitalista, do fornecimento de bens e serviços públicos essenciais

100

Um pouco antes, no mesmo parágrafo, Marx (2011: 438) afirma ainda: “Todas as condições gerais de

produção, tais como estradas, canais etc., seja as que facilitam a circulação ou as que a tornam possível,

seja igualmente as que aumentam a força produtiva (como irrigações etc. realizadas pelos governos na

Ásia e, de resto, também na Europa), tais condições, para serem levadas a cabo pelo capital, em lugar do

governo, que representa a comunidade enquanto tal, supõem um elevado desenvolvimento da produção

fundada no capital. A desvinculação das obras públicas do Estado e sua passagem ao domínio dos

trabalhos executados pelo próprio capital indica o grau em que se constituiu a comunidade real na forma

do capital”.

Page 142: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

131

cria toda sorte de infortúnios àqueles que não podem dispensar o seu uso, ainda assim

tal situação poderia ser tida como um indício do caráter desenvolvido do capitalismo.

Nessa passagem, como em muitas outras em sua obra, Marx utiliza a categoria

desenvolvimento para tratar tanto de uma forma específica de sociedade (o capitalismo,

por exemplo), quanto de qualquer objeto portador de um processo de mudança e

permanência (ou permanência na mudança, como diria Lukács), incluindo o ser em

geral. Falar em desenvolvimento, portanto, significa antes e acima de tudo reconhecer o

processo de transformação de determinado objeto ao longo do tempo, seu movimento

para diante, sua dinâmica de funcionamento.

Esse “movimento para diante”, como se procurou demonstrar, é governado por

leis/tendências que regulam a dinâmica de funcionamento do objeto e podem ser

apreendidas cientificamente, de maneira objetiva. No caso da nossa existência como

seres naturais, por exemplo, sabe-se que (a despeito das fábulas que descrevem um

mundo no qual se pode ser eternamente jovem ou dos próprios avanços na ciência que

possibilitaram à humanidade aumentar significativamente sua expectativa de vida) essa

existência é regulada por ao menos uma determinação geral: independentemente de

classe, credo ou cor, todos devemos nascer, crescer e morrer. Por menor que seja o

desejo dos sujeitos de se render diante dessa determinação geral, essa é uma

lei/tendência que regula o nosso desenvolvimento como seres naturais e que pode ser

objetivamente reconhecida, a despeito das particularidades que fazem com que a vida de

um sujeito A seja diferente (melhor ou pior) que a vida de um B qualquer.

Essa não é, no entanto, a dinâmica que regula a nossa existência como seres

sociais. Para fazer uma brevíssima recapitulação, identificamos ao menos três

tendências que regulam o desenvolvimento da sociedade, abstratamente considerada: a

crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de trabalho necessário à produção e

reprodução das condições de vida humana e a constituição da consciência genérica. No

caso da sociedade em forma especificamente capitalista, destacamos especialmente

aquelas tendências que, quando articuladas, determinam o caráter expansivo e

contraditório dessa formação social. Como isso, procuramos mostrar que, no modo de

produção capitalista, a esfera econômica (do trabalho) apresenta-se como a principal

esfera de sociabilidade, a partir da qual emana a dinâmica (de ampliação do trabalho)

que subordina os demais momentos e esferas da existência.

Page 143: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

132

Por fim, buscamos mostrar como essas tendências gerais manifestam-se de

maneira distinta, em condições históricas distintas, tomando como exemplo dois

períodos nos quais o desenvolvimento capitalista foi claramente atravessado por

determinações particulares: as quase três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial

e os anos posteriores à década de 1970. A opção por resgatar elementos dessas duas

conjunturas não foi meramente casual: esteve também relacionada ao fato de serem

esses os períodos nos quais se registram as produções no campo das teorias do

desenvolvimento econômico (servindo, em ambos os sentidos, como bons contrastes).

Em suma, esperamos ter demonstrado, nos capítulos que conformaram a Parte I

do trabalho, que, desde uma perspectiva marxista, estudar o desenvolvimento capitalista

significa, em primeiro lugar, ter consciência da historicidade e processualidade que

caracterizam a sociedade; em segundo lugar, apreender as leis de movimento da

sociedade em geral e em sua forma especificamente capitalista; e, em terceiro lugar,

conhecer as condições concretas de manifestação dessas leis. Na análise do

desenvolvimento em-si, portanto, o importante é saber se (e de que forma), na passagem

de um período a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos

adequado à lógica interna do capital. Pode-se dizer, então, que uma sociedade capitalista

é tanto mais desenvolvida quanto mais ampla – e, considerando a sua lógica interna de

funcionamento, mais bem-sucedida – for a atuação do capital (seja em termos setoriais,

territoriais, ou em sua capacidade de penetrar nas mais distintas esferas da vida social).

Em contraponto a essa perspectiva, buscamos, ao longo da Parte II, traçar um

panorama geral do modo como a questão é encarada no campo da ciência econômica,

especialmente no interior das chamadas teorias do desenvolvimento. Nesse caso,

observamos que a análise do “desenvolvimento” envolve, recorrentemente, a eleição de

determinados critérios e parâmetros (“empiricamente observáveis”) que permitam

quantificar a condição de países ou regiões em momentos diversos de sua história. Além

disso, é normalmente com base na extrapolação de um desses critérios que se afirma ou

nega a superioridade de povos e/ou países com relação a outros. Por fim, o conceito de

“desenvolvimento” é tratado, via de regra, como um juízo de valor subjetivo: ou seja, o

“desenvolvimento” é visto como algo bom, viável e desejável (e que, portanto, deve ser

promovido) e a sua ausência como algo ruim (e que, seguindo a mesma lógica, deve ser

superado).

Page 144: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

133

Tomando como ponto de partida o período de surgimento e proliferação das

teorias do desenvolvimento, vimos como o critério central utilizado na comparação

entre distintos graus de “desenvolvimento” (ou “subdesenvolvimento”, por

contraposição) foi predominantemente o aumento da riqueza, medido pelo crescimento

do produto per capita. Por esse motivo, a inspeção crítica desse conjunto de teorias

iniciou pelos chamados modelos de crescimento, que, a seu modo, estiveram

preocupados com os determinantes do crescimento do produto ou da renda (oferecendo

uma explicação possível para a desigualdade de renda no plano mundial), expressando

de maneira bastante emblemática a orientação geral do período.

No caso das teorias do desenvolvimento propriamente ditas, mais focadas na

tentativa de explicar as particularidades por detrás do baixo crescimento do produto nos

países subdesenvolvidos e mais explicitamente propositivas, vimos como, além da

associação do “desenvolvimento” ao crescimento do produto, as estratégias para a

promoção do “desenvolvimento” (ou superação do “subdesenvolvimento”) estiveram

associadas predominantemente à industrialização. A despeito das especificidades – que

impuseram, inclusive, a divisão dessas teorias “clássicas” do desenvolvimento em dois

grandes grupos (aquelas que tratam das regiões “subdesenvolvidas” em geral e aquelas

que tratam particularmente do caso latino-americano) –, podemos perceber que todas

compartilham, em linhas gerais, as características acima apresentadas.

Já no período posterior à década de 1970, vimos como, diante da crise e do

reconhecimento cada vez mais amplo de “efeitos colaterais” (sobre a natureza ou sobre

os seres humanos) associados ao crescimento do produto, as teorias reagiram pela

incorporação de novos critérios à definição de “desenvolvimento” (ainda que o

crescimento do produto não tenha sido totalmente abandonado). Essa “mudança” na

concepção de desenvolvimento (que talvez fique mais bem caracterizada como

“ampliação”) também se refletiu nas tentativas de redefinição de estratégias para a

promoção do “desenvolvimento” (ainda que o centro das controvérsias tenha sido a

participação do Estado na economia).

Diante dessa caracterização geral, portanto, não podemos deixar de reconhecer

que uma das dificuldades de tomar as teorias do desenvolvimento como objeto de

estudo reside justamente na diversidade de formulações, seja essa diversidade

determinada pelo fato de terem sido produzidas em contextos históricos muito distintos

ou pelo fato de carregarem consigo orientações teóricas diversas (liberal, keynesiana,

Page 145: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

134

schumpeteriana etc.). Essa diversidade, como se buscou ressaltar ao longo da Parte II,

também se manifesta de variadas maneiras, seja (i) na noção de desenvolvimento, (ii) no

ideal de desenvolvimento ou (iii) na estratégia de desenvolvimento.

No entanto, a inspeção crítica dessas teorias demonstrou-se capaz de revelar que

todas, sem qualquer exceção digna de nota, tomam o capitalismo como pressuposto de

suas formulações. Considerando, por exemplo, a convergência em torno da redução do

desenvolvimento ao “crescimento do produto”, só episodicamente rompida, fica

bastante nítido o modo como as teorias do desenvolvimento projetam sobre o passado e

sobre o futuro as formas de riqueza e trabalho que são específicas do capitalismo, sem

jamais indagar quais são os pressupostos objetivos de um trabalho que adquire esse

caráter de permanente expansão. Com isso, as teorias não apenas naturalizam processos

históricos altamente complexos, não apenas se apresentam como instrumentos a serviço

dessa história “naturalizada”, mas também, ao lhe fornecer inteligibilidade, comparecem

objetivamente como formas de consciência indispensáveis à sua reprodução.

Comparecem, portanto, como a ciência deste desenvolvimento.

Mesmo as teorias usualmente encaradas como teorias “críticas” (ou seja, aquelas

capazes de reconhecer problemas associados à dinâmica capitalista, especialmente seu

caráter “desumano”), acabam por admitir acriticamente os limites impostos ao exercício

teórico e prático pelo objeto, em sua forma imediatamente dada. Nesse caso,

percebemos que, apesar da preocupação “humanitária” assegurar um acento crítico,

essas teorias hipostasiam a forma de trabalho correspondente a essa forma de sociedade

e podem, na melhor das hipóteses, almejar uma “organização mais „humana‟ do

trabalho no capitalismo”. (Duayer, 2010: 2) Em síntese, para empregar a expressão

difundida por Duayer, podemos dizer que se trata, quando muito, de uma crítica

positiva. Nas palavras do autor:

A crítica positiva, como se sabe, toma o mundo tal como ele se apresenta

como um dado insuperável, incontornável. E é nesse quadro de um mundo

por princípio inalterável em sua estrutura e constituição essencial que a

crítica positiva comparece, primeiro descrevendo o mundo – positivamente –

e, segundo, em conformidade com tal descrição, prescrevendo as atitudes e

práticas possíveis dos sujeitos. E a crítica positiva, é preciso não se iludir,

pode ser de fato crítica à sua maneira. Pode se insurgir sinceramente contra as

infâmias desse mundo incontornável. E mobiliza instrumentos teóricos

sempre mais sofisticados para consertar os erros do mundo, ou para

desentortar o mundo, como imaginava fazer Quixote. E arregimenta paixões,

sinceras paixões, sem as quais tais instrumentos restariam inertes, para a

reparação do mundo. Todavia, recorde-se, a crítica positiva e as práticas que

alimenta são sempre prisioneiras desse mundo, do mundo imediato,

anistórico. (Duayer, 2010: 7)

Page 146: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

135

No caso de Marx, bem ao contrário, percebemos que a crítica dirigida ao

capitalismo pode ser mais bem caracterizada como uma crítica negativa: “crítica do

trabalho no capitalismo, crítica do trabalho como atividade socialmente mediadora, ou

seja, crítica da sociabilidade fundada no trabalho”.101

(Duayer, 2010: 7) Em outras

palavras, trata-se de uma crítica que reconhece, desde o início, o caráter histórico do seu

objeto de estudo. De uma crítica que indaga sobre as condições históricas que fizeram

emergir esse objeto. Uma crítica que procura, na organização interna do objeto, na

forma como ele veio a se constituir estruturalmente, as condições do seu

desenvolvimento no tempo e no espaço. Uma crítica que, por fim, expressa esse

movimento causalmente determinado em leis de tendência.

Uma crítica como essa não tem qualquer compromisso a priori com o seu objeto

de estudo, a sociedade capitalista, pois não o toma por antecipação como uma forma de

existência insuperável, que, portanto, deve ser reparada ou amparada a qualquer custo

quando sua linha evolutiva geral demonstra-se desumana (ou ameaçadora em termos

ecológicos). Ao contrário, justamente por não perder de vista a transitoriedade histórica

possível dessa formação social, por um lado, e por demonstrar o caráter necessário de

sua desumanidade, por outro, é que pode converter o conhecimento de suas leis de

tendência numa proposta de práxis orientada em favor da transição concreta para uma

sociedade dotada de outra dinâmica evolutiva, de outra linha de desenvolvimento

interno. Esse nexo entre a crítica social de Marx e a sua proposta de práxis

transformadora é enfatizado na passagem de Postone, que nos permitimos citar

extensamente abaixo:

[...] a análise de Marx implica uma idéia de superação do capitalismo que não

acarreta nem a afirmação sem crítica de que a produção industrial seja

condição de progresso humano, nem a rejeição romântica do progresso

tecnológico per si. Ao sugerir que o potencial do sistema de produção

desenvolvido sob o capitalismo poderia ser usado para transformar o próprio

sistema, a análise de Marx supera a oposição entre essas instâncias e mostra

que cada uma significa um momento de um desenvolvimento histórico muito

mais complexo para se constituir a totalidade. Isto é, a abordagem de Marx

abrange a oposição entre a fé no progresso linear e sua rejeição romântica,

como expressando uma antinomia histórica que, em ambos os termos, é

característica da época capitalista. Mais abrangentemente, sua teoria crítica

não defende nem a simples conservação, nem a destruição daquilo que foi

historicamente constituído no capitalismo. Ao contrário, sua teoria mostra a

possibilidade de que, o que foi constituído de forma alienada, seja apropriado

101

Postone (993: 63-64) também reconheceu e salientou a negatividade da crítica de Marx: “Ao formular

uma crítica do trabalho no capitalismo tomando como base da análise sua especificidade histórica, Marx

transformou a natureza da crítica social baseada na teoria do valor trabalho de uma crítica “positiva” em

uma crítica “negativa” [...] – aquela que critica o que é sob as bases do que poderia ser – que aponta para

a possibilidade de outra formação social”.

Page 147: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

136

e, em consequência disso, fundamentalmente transformado. (Postone, 1993:

36)

Se, enfim, o esforço empreendido neste trabalho é capaz de confirmar a hipótese

de que as concepções autointituladas “teorias do desenvolvimento” constituem a ciência

da preservação do desenvolvimento capitalista, por outro lado, o mesmo esforço parece

ser capaz de demonstrar que a intervenção crítica de Marx rompe com o vínculo entre

produção teórica e prática conservadora não por se tornar mais “ideológica”, menos

científica. Justo ao contrário, esse vínculo é rompido porque a teoria marxiana consegue

projetar seu olhar para além dos determinantes imediatos de seu objeto e encarar seu

desenvolvimento como aquilo que efetivamente é: a expressão do modo de

funcionamento de um objeto dinâmico.

Por isso, podemos concluir esse trabalho com uma constatação que, embora

evidente, raramente é trazida à consciência e/ou devidamente enfatizada: se há um autor

que escreveu uma autêntica teoria do desenvolvimento capitalista, esse autor foi Marx;

se há uma obra que fala do desenvolvimento capitalista, essa obra é O Capital. Isso,

aliás, Marx fez questão de patentear já no prefácio da primeira edição, que citamos na

introdução e recordamos novamente neste encerramento: “o objetivo final desta obra é

descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna”. (Marx, 2002: 18) Se

Marx descobriu ou não essa lei, isso é uma questão que estará sempre em aberto. Mas

que Marx procurou descobri-la, não é, de fato, possível negar.

Page 148: DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA ECONÔMICA: POR …

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