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MAGRA E FELIZ: LIÇÕES DE BELEZA DA REVISTA SOU MAIS EU! Danielle Corrêa Sarraf Universidade Federal do Pará Instituto de Ciências Biológicas Sandra Nazaré Dias Bastos Universidade Federal do Pará IECOS Campus de Bragança ([email protected]) Desfiando as teias da pesquisa Há muito se discute que o corpo humano estudado na escola pouco tem a ver com o corpo que circula dentro dela. Os documentos oficiais que norteiam a educação brasileira são claros ao apartar o corpo de sua dimensão cultural ao enfatizarem que o ensino deve dirigir-se para o reconhecimento do próprio corpo (em sua anatomia e fisiologia) e dos “hábitos saudáveis” que devem ser dispensados para garantir qualidade de vida e responsabilidade em relação à saúde individual e coletiva (BRASIL, 1998). Trivelato (2005) contribui com essa discussão ao nos perguntar sobre “Que ser humano cabe no ensino de biologia?Nas palavras da autora: O ser humano cabe, no ensino, apenas aos pedaços. Nas séries iniciais ele entra dividido em cabeça, tronco e membros. Mais adiante, o lugar do corpo humano é o lugar dos sistemas, em que cabe apenas um sistema por vez: o digestivo, o circulatório, o reprodutor, o respiratório... No ensino médio, o corpo humano se “espreme” nas células e se estudam as funções celulares e moleculares, que já não são exclusivas do corpo humano, mas universais para os seres vivos. Parece que ao avançarmos na escolaridade, avançamos também na fragmentação desse corpo”. Convém destacar que, se por um lado a escola nos mostra o corpo fragmentado, fora do contexto cultural e histórico, pelos meios de comunicação em massa temos acesso a corpos vivos, pulsantes e acima de tudo desejáveis. Celebridades femininas, magras e brancas estampam as capas de revistas nos ensinando quais são as “nossas” necessidades, projetos, desejos e o que é preciso almejar em nome de uma suposta "felicidade" (BRAGA, 2009). Sobre isso Fischer diz que: “se atentarmos bem para o modo como são elaborados inúmeros produtos midiáticos, há um sem-número de técnicas através das quais se propõe a todos nós que façamos minuciosas operações sobre nosso corpo, sobre nossos modos de ser, sobre as atitudes a assumir” (FISCHER, 2002, p. 156). Diante disso é

Desfiando as teias da pesquisa - 7º Seminário Brasileiro ... · Nas páginas da revista vemos circular as representações do corpo feminino tido como ... medir, avaliar, hierarquizar,

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MAGRA E FELIZ: LIÇÕES DE BELEZA DA REVISTA SOU MAIS EU!

Danielle Corrêa Sarraf

Universidade Federal do Pará – Instituto de Ciências Biológicas

Sandra Nazaré Dias Bastos

Universidade Federal do Pará – IECOS – Campus de Bragança ([email protected])

Desfiando as teias da pesquisa

Há muito se discute que o corpo humano estudado na escola pouco tem a ver com

o corpo que circula dentro dela. Os documentos oficiais que norteiam a educação

brasileira são claros ao apartar o corpo de sua dimensão cultural ao enfatizarem que o

ensino deve dirigir-se para o reconhecimento do próprio corpo (em sua anatomia e

fisiologia) e dos “hábitos saudáveis” que devem ser dispensados para garantir qualidade

de vida e responsabilidade em relação à saúde individual e coletiva (BRASIL, 1998).

Trivelato (2005) contribui com essa discussão ao nos perguntar sobre “Que ser humano

cabe no ensino de biologia?” Nas palavras da autora:

O ser humano cabe, no ensino, apenas aos pedaços. Nas séries iniciais ele

entra dividido em cabeça, tronco e membros. Mais adiante, o lugar do corpo

humano é o lugar dos sistemas, em que cabe apenas um sistema por vez: o

digestivo, o circulatório, o reprodutor, o respiratório... No ensino médio, o

corpo humano se “espreme” nas células e se estudam as funções celulares e

moleculares, que já não são exclusivas do corpo humano, mas universais para

os seres vivos. Parece que ao avançarmos na escolaridade, avançamos

também na fragmentação desse corpo”.

Convém destacar que, se por um lado a escola nos mostra o corpo fragmentado,

fora do contexto cultural e histórico, pelos meios de comunicação em massa temos

acesso a corpos vivos, pulsantes e acima de tudo desejáveis. Celebridades femininas,

magras e brancas estampam as capas de revistas nos ensinando quais são as “nossas”

necessidades, projetos, desejos e o que é preciso almejar em nome de uma suposta

"felicidade" (BRAGA, 2009).

Sobre isso Fischer diz que: “se atentarmos bem para o modo como são elaborados

inúmeros produtos midiáticos, há um sem-número de técnicas através das quais se

propõe a todos nós que façamos minuciosas operações sobre nosso corpo, sobre nossos

modos de ser, sobre as atitudes a assumir” (FISCHER, 2002, p. 156). Diante disso é

necessário “ampliar nossa compreensão sobre as formas concretas com que somos

diariamente informados, os modos como nossas emoções são mobilizadas” e como

construímos sentidos por meio de diferentes artefatos midiáticos que nos ensinam

comportamentos, valores, sentimentos e prazeres. Diante dessas questões e, como

professoras de ciências e biologia, tomamos como objeto de estudo os enunciados

midiáticos que prescrevem normas para um determinado tipo de corpo feminino, que é

adjetivado como belo e saudável, e nessa condição aciona maneiras uniformes de agir,

pensar, vestir, desejar...

Caminhos metodológicos e corpus da pesquisa

No caminho de pinçar os discursos sobre o corpo feminino belo e perfeito nosso

trabalho tomou como corpus empírico sete edições contínuas da revista semanal Sou

mais Eu!1. A revista tem circulação nacional, com tiragem de 91.958 exemplares, sendo

vendida ao preço de dois reais e cinquenta centavos. São 19 seções voltadas para o

público feminino, “especificamente da classe C”, que trazem matérias e reportagens que

ensinam a montar um negócio em casa, cuidados com a pele e cabelos, culinária,

horóscopo, relacionamentos, entre tantos outros temas que pretensamente são

relacionados ao “universo feminino”. A matéria em destaque é anunciada na capa da

revista e aborda, invariavelmente, como é possível alcançar o corpo perfeito a partir do

“relato de experiências de pessoas comuns”. Como ressalta o editorial a principal

“missão” da revista é servir de “palco para que essas pessoas contem suas histórias

extraordinárias” e com isso mudar a vida de outras pessoas.

Diante disso, nosso trabalho focaliza a seção “dieta da capa”, de onde

selecionamos os enunciados que prescrevem os cuidados com o corpo feminino visando

torná-lo: belo, atraente, saudável, desejável, poderoso, independente e acima de tudo,

feliz! Destacamos, no entanto, que ao levantar tais questões não pretendemos criticar o

que está posto, mas identificar e problematizar as verdades que a revista veicula e os

efeitos de verdade que produz para discutir como esses enunciados nos ensinam formas

desejáveis de ser.

1 As revistas analisadas correspondem aos números 409, 410, 411, 412, 413, 414 e 415 referentes aos

meses de setembro e outubro do ano de 2014. A revista Sou Mais Eu! é uma publicação da Editora Caras.

Biopoder e normalização: o corpo perfeito ao alcance de qualquer uma

Nas páginas da revista vemos circular as representações do corpo feminino tido

como ideal: magreza e beleza são apresentadas como sinônimos e com um corpo assim

a mulher consegue alcançar seus ideais, sua saúde, um bom emprego, e quase sempre, o

grande amor de sua vida. O corpo gordo é desvinculado da imagem de beleza e,

portanto, do poder de atratividade e incitação do desejo sexual masculino. Para serem

belas e atraentes é preciso se livrar da carga extra de gordura que carregam em seus

corpos (NOVAES, 2010, p. 66), e para isso elas generosamente nos ensinam algumas

lições a partir de suas histórias de superação que servirão de “inspiração para a mudança

de vida de milhares de pessoas”.

Michel Foucault chama de “bio-história” às pressões por meio das quais os

movimentos da vida e os processos da história interferem entre si, nesse contexto, um

mecanismo de saber-poder, que ele denomina de ‘biopolítica’, faz com que a vida e seus

mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, funcionando como agente de

transformação da vida humana. Nas palavras do autor:

Esse poder (biopoder) que tem a tarefa de se encarregar da vida tem também

a necessidade de mecanismos contínuos não só reguladores como corretivos.

Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de

distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder dessa

natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se

manifestar em seu fausto mortífero; não tem que traçar a linha que separa os

súditos obedientes dos inimigos do soberano, opera distribuições em torno da

norma (FOUCAULT, 1998, p. 134).

E a norma é tanto aquilo que se pode aplicar a um corpo que se deseja disciplinar

como a uma população que se deseja regulamentar. A sociedade de normalização é uma

sociedade onde se cruzam a norma disciplinar e a norma da regulamentação (DANNER,

2010). E é nesse contexto que a revista Sou Mais Eu! se inscreve como mais uma, entre

tantas outras tecnologias educativas que investem sobre o corpo determinando o que é

bom para a sua saúde, para o seu bom funcionamento, suas condições de vida,

determinando com isso o espaço e a forma de sua existência (FOUCAULT, 1998).

As garotas da capa

Na maioria das revistas femininas o corpo gordo e opulento, embora não apareça

nas imagens, acaba ganhando contornos (sempre indesejáveis) através de seu

silenciamento, pois é justamente por não se falar dele ou mostrá-lo que ele se constrói:

um corpo antítese daquilo que se afirma o tempo todo (FIGUEIRA, 2013, p. 133).

Em Sou mais Eu! o corpo gordo ganha a capa da revista. Lá ele pode ser visto

desengonçado e muitas vezes “mal” vestido com roupas largas e ultrapassadas. Ao seu

lado, outro corpo aparece em maior destaque, esguio e delicado, vestido com roupas

modernas e graciosas aparece inevitavelmente sorrindo: “olhe no que me transformei”

parece dizer (Figura 1).

No mais famoso estilo “antes e depois” as imagens do corpo magro sinalizam a

evolução, ou uma espécie de aperfeiçoamento do corpo gordo. Ele materializa-se ali

como modelo de beleza, saúde e felicidade a ser atingido. Aparecendo dessa forma, não

é difícil atribuirmos ao corpo gordo adjetivos como feio, indesejável e até mesmo

doente (MARTINS e COSTA, 2009).

Nesse contexto, Novaes (2010) alerta que o corpo tomou conta do nosso

imaginário de forma nunca antes vista. Conquista práticas e discursos, define normas de

comportamentos, regula nossas práticas cotidianas e determina padrões de inclusão e

Figura 1 – Capas da revista Sou Mais Eu!

exclusão social e é assim que a gordura se torna associada à feiura e se constitui como

uma das mais presentes formas de exclusão social feminina.

Assim, a normalização disciplinar demarca a fronteira entre o normal e o anormal

impondo um modelo ótimo que é construído em função de um determinado resultado. O

próximo passo desse processo é procurar tornar as pessoas (seus gestos e atos) conforme

esses modelos, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma

e o anormal quem não é (FOUCAULT, 2008, p. 75).

As “histórias inspiradoras” disponibilizadas pela revista oferecem as prescrições

que, se forem seguidas, proporcionarão a muitas mulheres a garantia de uma vida

melhor. A transformação é o fio condutor das recomendações: no caminho de alcançar

ideal há também a promessa de uma vida mais longa e saudável. Vemos aí uma teia de

discursos e representações que autorregulam o indivíduo tornando-o, muitas vezes,

vigia de si próprio. É preciso fechar a boca, trabalhar o corpo, ter força de vontade. A

ênfase na liberdade do corpo, com sua possibilidade de exposição e desnudamento nos

espaços públicos, caminha passo a passo com a valorização dos corpos “enxutos”. Aí o

excesso, mais que rejeitado, é visto, muitas vezes, como displicência e falta de cuidado

(GOELLNER, 2013, p. 40-41). Mas que lições essas garotas da capa tem a nos ensinar?

Lição 1: o corpo desejável é, acima de tudo, um corpo magro!

As histórias são estruturadas em três momentos. No primeiro as mulheres narram

a insatisfação com o corpo, os constrangimentos que suportam e o sofrimento causado

por desafiarem os padrões estéticos ditos “normais”. As mulheres estão infelizes e a

autoestima inexiste e a primeira lição que nos ensinam é que o corpo desejável é, acima

de tudo, um corpo magro!

“Nossa, ela não cabe nas roupas” [...] “Nossa, como você engordou”. Na

turma, eu era conhecida como “a Camila Gordinha”, mas nunca tive

coragem de dizer a eles o quanto esse apelido machucava (Camila Cristina

Fernando Menchini, edição 412, 9 de outubro de 2014, p.9. Grifos nossos).

“Ela não vai caber nesse carrinho”. Eu estava em um parque de diversões,

na fila da montanha-russa, e ouvi o cunhado de uma amiga fazer esse

comentário sobre mim. Não falei nada na hora, fingi que não escutei. Quando

chegou minha vez, rezei muito para conseguir entrar no brinquedo. Fiquei

meio espremida, mas deu certo. Só que nem me diverti, de tão encanada.

(Juliana Rodrigues Ramalho, edição 415, 30 de outubro de 2014, p. 8. Grifos

nossos).

Quando conheci o Fábio, meu atual marido, em 2010, eu estava em forma

[...]. Depois que nos casamos, mostrei minhas fotos com 96 kg e ele ficou em

choque. Falou que nunca teria casado comigo se me conhecesse enorme

daquele jeito. [...] Aí, quando engravidei da nossa filha, tive uma depressão

durante a gestação, descontei tudo na comida e engordei novamente: cheguei

aos 89 kg! Pra piorar, me desentendi com o Fábio e ele me deixou. Queria

meu marido de volta, mas lembrava o tempo todo que ele não gostava de

mim gorda (Regiane Marchetti, edição 410, 25 de setembro de 2014, p.8.

Grifos nossos).

Para essas mulheres o excesso de peso as desvia das normas de um corpo

desejável, ao mesmo tempo em que as aproxima de um corpo que incomoda, que não

cabe nos espaços, um corpo doente e que é incapaz de suscitar desejo no outro. Todos

esses efeitos evidenciam a exclusão imposta para quem não corresponde ao padrão

corporal tido como ideal. Em uma sociedade imagética, em que o sujeito é definido por

sua aparência, não há como desconsiderar o sofrimento psíquico decorrente de todas as

regulamentações e limitações que incidem sobre o corpo, principalmente o feminino

(NOVAES, 2011).

Para Mary del Priore vivemos em uma época na qual a lipofobia impera e

queremos, a todo custo, nos livrar da gordura que um dia nos salvou da extinção

(FREIRE, 2011, p. 471). Nos dias atuais obesidade e flacidez muscular são indicadores

de falta de controle, força de vontade ou de determinação (PEGORARO e FREITAS,

2011). Do direito à saúde passamos à “obrigação de sermos magras, belas e jovens para

sermos felizes”, e assim, se toma a magreza como virtude, substitui-se a necessidade

que havia no passado, de confessar os pecados morais cometidos pela via da

sexualidade, pela obrigatoriedade de subir na balança para prestar contas ao social e a si

(FREIRE, 2011, p. 471).

A mulher que não cuida do seu corpo está sujeita a uma série de punições: a perda

do marido, de sua autoestima, do amor próprio, do respeito por si, do respeito dos

outros. E o que é isso senão a morte social provocada pela exclusão de determinados

grupos e pela rejeição do outro? Como explica Foucault, tirar a vida não está apenas

relacionado ao assassínio direto, mas também a fatores indiretos que podem provocar,

por exemplo, a morte política e social pela rejeição ou pela expulsão de uma pessoa de

seus grupos sociais (FOUCAULT, 1999, p. 36)

Se as narrativas enfocam inicialmente momentos de perda e desamparo, logo em

seguida as histórias descrevem o momento da virada, da tomada de consciência de que é

preciso, de alguma forma, agir. É o marco para a mudança de atitudes e

consequentemente da mudança de vida.

No dia do episódio no parque de diversões, assim que chequei em casa, fui

pra frente do espelho e comecei a me enxergar como os outros me

enxergam. [...] Foi assim que, finalmente, acordei para a minha nova

vida: era hora de parar de me esconder e batalhar por uma vida melhor!

(Juliana Rodrigues Ramalho, edição 415, 30 de outubro de 2014, p. 9. Grifos

nossos).

[...]. As outras mulheres estavam lindas, com vestidos da moda. Nossa, me

senti a pior pessoa do mundo... Fiquei tão arrasada que lá mesmo decidi:

“Chega, não dá mais”![...]. (Daiane Cristina Geraldo Frisão, edição 409, 18

de setembro de 2014, p. 8. Grifos nossos).

“Decidi recuperar meu corpo e meu casamento”. Eu queria muito voltar a

ser a Regiane por quem o Fábio se apaixonou. [...] decidi que ia fazer tudo

que estivesse ao meu alcance para ser magra novamente [...] (Regiane

Marchetti, edição 410, 25 de setembro de 2014, p.8. Grifos nossos).

Para Jandrey (2014, p. 110) “cuidar de nossos corpos tem se tornado um processo

massificado e, ao mesmo tempo, individualizado de gestão e administração da chamada

‘vida saudável’”. Todavia, os cuidados pretendidos e almejados remetem somente a

corpos magros e esguios, pois o corpo gordo é uma espécie de derrota do corpo pelo

próprio corpo (SANT’ANNA 2013).

E é a vitória sobre esse corpo indesejado que aparece no final de cada uma das

narrativas. No final feliz, o corpo gordo é eliminado e em seu lugar um corpo novo (e

finalmente feliz!) surge:

Mas hoje olho no espelho e reconheço a mulher que eu vejo! Minha

aparência e minha autoestima estão a mil! [...] Agora tenho certeza de que

sou a pessoa por quem meu marido se encantou. (Regiane Marchetti, edição

410, 25 de setembro de 2014, p.9. Grifos nossos).

Hoje sou mais autoconfiante e faço amizades com facilidade porque ganhei

uma vida social de verdade. Vivo saindo para me divertir. [...] Sinto que

nasci de novo. E eu amo essa nova Cíntia! (Cíntia Cristina dos Reis, ed.

411, 2 de outubro de 2014, p. 7. Grifos nossos).

[...] Agora não tenho mais por que me esconder. Pelo contrário: amo sair

porque recebo um montão de elogios! Tô podendo! [...] Perdi peso e ganhei

amor-próprio (Juliana Rodrigues Ramalho, edição 415, 30 de outubro de

2014, p. 9. Grifos nossos).

É pela morte do anormal que a vida em geral se torna mais sadia e mais pura

(FOUCAULT, 1999, p. 305). O corpo que renasce completamente diferente, é o corpo

que traz a felicidade e a realização dos sonhos: um corpo que cabe dentro das roupas,

que sai para as baladas e que provoca desejos.

Se, historicamente as mulheres preocupavam-se com sua beleza, hoje elas são

responsáveis por garanti-la. De dever social (se conseguir, melhor) a beleza tornou-se

obrigação moral (se realmente eu quiser, eu consigo!). O fracasso não se deve a sua

impossibilidade mais ampla, mas a uma incapacidade individual (NOVAES, 2011).

Lição 2: Seja forte: com força de vontade se consegue qualquer coisa, até

emagrecer!

O caminho para conseguir o corpo perfeito envolve dificuldades e dietas

restritivas que podem ser associadas à rotina de exercícios físicos. As garotas da capa

ensinam seus segredos e compartilham as receitas de sucos que “atacam as gordurinhas

da barriga”, de “bolachinhas caseiras que bloqueiam a gordura”, da água

“emagrecedora com gengibre e limão para queimar as gordurinhas” ou ainda

descrevem os aplicativos de celular para ajudar nos exercícios físicos. Cada uma delas

tem uma receita especial e infalível para atingir o corpo perfeito.

Por coincidência, nessa época, vi na TV uma reportagem falando de um

aplicativo para celular gratuito que ajuda a perder peso e fazer dieta. [...] O

app calcula o nosso peso ideal, dá dicas de exercícios e alimentação, avisa a

cada três horas que é hora de comer... Amei!

Tive que usar a criatividade e improvisar os exercícios. [...] No começo

era bem difícil, mas hoje dou pelo menos 500 pulos por vez. [...] Além disso,

amarro sacos de feijão na panturrilha e fico subindo e descendo as

escadas. A gente faz o que pode né? (Regiane Marchetti, edição 410, 25 de

setembro de 2014, p.9. Grifos nossos).

O primeiro passo foi fechar a boca. [...] As quantidades no prato passaram

a ser bem menores. Passei a beber 2 litros de água por dia e comecei a me

policiar para comer a cada três horas. Mas eu ainda sentia aquela vontade

louca de comer doce, [...] Mas descobri a salvação na internet: as

bolachinhas caseiras, feitas com aveia, mel e uva-passa (Daiane Cristina

Geraldo Frisão, edição 409, 18 de setembro de 2014, p. 9. Grifos nossos).

Segundo Figueira de todas as práticas autorreguladoras destinadas à aquisição da

beleza, a alimentação tem um grande destaque visto que a todo momento nos são

apresentadas milhares de possibilidades de consumo de alimentos. O autor chama a

atenção para o volume de textos e imagens (em uma revista destinada ao público

adolescente) que fornecem dicas, recomendações, conselhos sobre como cuidar do

corpo tendo como objetivo torná-lo magro e em forma em uma obsessão pela magreza e

uma quase maníaca rejeição à obesidade (FIGUEIRA, 2013, p. 133).

As frases proferidas por essas mulheres funcionam como elementos estímulo que

reforçam positivamente que as pessoas gordas persistam em suas dietas e/ou rotinas de

exercícios, vendendo muito bem a ideia do corpo magro como ideal a ser atingido ao

mesmo tempo em que reforçam a representação social do gordo como um imperfeito

que deve ser reeducado de forma eficiente. Nesse sentido, nada espelha melhor a moral

do culto ao corpo do que a disciplina, a perseverança e a obstinação. (NOVAES, 2010,

p. 65-66).

Esse incentivo também aparece materializado em números que estampam a capa

das revistas. Eles anunciam o quanto de peso foi perdido com a dieta indicada para

aquela semana e quanto tempo se leva para alcançar o corpo ideal. (Figura 2).

Figura 2 – Os números da capa

Sobre essa questão Novaes (2011) afirma que muitas mulheres tratam seu corpo

com profunda tirania, privando-o de alimentos, mortificando-os em cirurgias

“corretivas”, ou submetendo-os a exercícios físicos torturantes e, não por acaso, o termo

frequentemente empregado para esse disciplinamento do corpo é “malhar”, como se faz

com o ferro. A dor e a frustração deixam de ser indicativos de limites inerentes à

experiência humana e passam a ser insuficiência daquele sujeito. Difunde-se com isso a

ideia de que a imagem ideal está disponível para todos, a um mínimo de esforço. A não

concretização desse modelo decorrerá exclusivamente de uma incapacidade individual.

A lógica das práticas corporais, que associa o prazer à saúde, à vitalidade e à

beleza, promete eliminar a inquietude que o olhar do outro provoca, por meio do

esforço, da determinação e da disciplina, apontando todo o tempo para a

responsabilidade do sujeito (NOVAES, 2011, p. 494).

Lição 3: As medidas do corpo perfeito

A beleza se constitui a partir de um aparato discursivo baseado nas medidas

corporais e não é de hoje que elas têm servido de parâmetro para a classificação das

pessoas conferindo-lhes diferentes lugares sociais. Se no passado o tamanho do cérebro

era relacionado ao nível de inteligência, a forma do rosto e a cor da pele determinavam

a aptidão para o trabalho intelectual ou braçal e o tamanho e forma das mãos

possibilitava a identificação de traços de violência ou loucura (GOELLNER, 2005) hoje

os diâmetros da cintura, quadril e busto aliado ao peso e a altura podem indicar se

estamos dentro do “peso ideal” ou não.

Sobre essa questão Pegoraro e Freitas (2011) reiteram o papel que a mídia assume

nesse contexto ao colocar circulação discursos que associam o conceito de felicidade ao

de beleza e este com o de magreza: “ser magra, é ser bela e, portanto feliz”. Quem está

fora das medidas, está fora do padrão o que provoca o sentimento de inadequação.

No caso das garotas da capa outra unidade de medida, que não é corporal, é

adicionada à receita de sucesso: o tempo. Perder peso e reduzir medidas, com o mínimo

de esforço e em curto espaço de tempo parece ser a principal regra de convencimento.

Mas em quanto tempo (ou com a perda de quantos quilos) se tem o corpo ideal?

Todo meu esforço valeu a pena: em seis meses, emagreci 25 kg na raça. [...]

Para me incentivar, o Fábio decidiu que também ia participar da minha

reeducação alimentar. Meu amor emagreceu 11 kg e perdeu a

barriguinha. (Regiane Marchetti, edição 410, 25 de setembro de 2014, p.9.

Grifos nossos).

Foram oito meses de muita força de vontade para eliminar 37 kg, sem

remédio nem cirurgia! Fiquei tão orgulhosa... Mas ainda não atingi meu

objetivo, não: há um mês, procurei uma nutri para me ajudar com os 5 kg

restantes. Mesmo assim, já me sinto outra mulher (Juliana Rodrigues

Ramalho, edição 415, 30 de outubro de 2014, p. 9. Grifos nossos).

O caminho foi longo: um ano e quatro meses de batalha. Desde o começo,

acreditei que conseguiria. “Eu posso!” era a frase que me acompanhava. Essa

autoconfiança foi essencial para que atingisse meu objetivo. [...] Foi assim

que consegui eliminar 67 kg e 76 cm de circunferência abdominal!

(Camila Carla de Carvalho, edição 414, 23 de outubro de 2014, p. 11-12.

Grifos nossos).

Os números representam a coroação do esforço empregado nas dietas e exercícios:

o tanto que perderam de seus excessos corporais. Sant’Anna nos alerta que a luta contra

a obesidade assumiu a forma de uma guerra generalizada, na qual um diversificado

exército (composto por médicos, psicólogos, famílias, educadores, meios de

comunicação de massa, entre tantas outras instituições) tende a ser convocado. Nessa

guerra a demanda é que o obeso se regenere, uma vez que a obesidade é vista como uma

incontrolável degeneração. O que se espera é ele passe por uma espécie de conversão

por meio da qual ele modificaria radicalmente o seu corpo (SANT’ANNA, 2013, p.

263).

Jandrey (2014) reitera ainda que esses discursos se transformam em práticas que

deverão ser adotadas em nome de um corpo saudável que se sustenta sobre concepções

idealizadas de um “sujeito saudável”, único e estável. Alguém com capacidade de que

alguém/algo o instrua e modele. O processo disciplinar que molda o corpo se caracteriza

por analisar e decompor os indivíduos, classificando-os em função de objetivos

determinados, estabelecendo um padrão a ser seguido através do adestramento

progressivo do corpo (FOUCAULT, 2008).

Considerações finais

Mary Del Priori anuncia que “longe vão os dias em que “vastas e ostensivas

ancas” eram “insígnias aristocráticas” que qualificam uma mulher mais feminina,

desejável e fecunda”. Nessa conformação anatômica, sua função biológica e ao mesmo

tempo sagrada que era “reproduzir, procriar, perpetuar” estava garantida, pois a mulher

“descadeirada” era vista como a deficiente de corpo (Del Priori, 2010, p. 9). Nesse

sentido é pertinente perguntarmos: em que momento o peso corporal entrou na pauta

das preocupações humanas?

Sant’Anna (2013) explica que a preocupação com o peso passou a fazer parte da

rotina das pessoas nos últimos quarenta anos e com isso a obesidade passou a ser

considerada não só como doença, mas como doença grave (SANT’ANNA, 2013, p.

264). Nesse contexto as prescrições para uma vida mais saudável são dadas a conhecer

em diversas materialidades, principalmente as midiáticas, que pautadas pelas

orientações de uma “alimentação saudável” passam a integrar práticas das quais

devemos lançar mão para nos construirmos como sujeitos que têm cuidados adequados

com o corpo, que gostam de si mesmos, que se cuidam e estão, invariavelmente, atentos

(SOUZA e CAMARGO, 2014, p. 111).

Esses enunciados conferem aos indivíduos a responsabilidade pela ‘boa’

administração de seu corpo, buscando, o máximo possível, adequá-lo a tais normas,

caso contrário, esse indivíduo será visto como desleixado, relapso, cujo caminho será a

gradativa degenerescência. Assim, não basta conservar o corpo, mas se torna necessário

preservá-lo jovem, magro, liso e definido (SOUZA e CAMARGO, 2014, p. 125).

As histórias selecionadas nesse trabalho, embora enfoquem pessoas diferentes,

trazem em comum recomendações relacionadas aos cuidados com o corpo: perder peso,

fazer exercícios e ter uma dieta equilibrada são os passos necessários para uma vida dita

melhor. Discursos como estes invadem nossas vidas cotidianas acionando em nós

vontades, desejos, metas a serem cumpridas, padrões de beleza e saúde a serem

alcançados. Daí pensarmos com Fischer (2002) que a mídia, em seus diferentes

suportes, é um campo extremamente poderoso na produção e circulação de valores,

concepções e representações nos ensinando o que devemos fazer com nosso corpo, de

que modo deve ser feita nossa alimentação, qual biotipo é mais desejado.

Dentro desse contexto, a revista Sou mais Eu! é mais um suporte, entre tantos

outros, onde esses discursos são dados a conhecer. É preciso que estejamos atentos a

outras pedagogias culturais que, além da escola, nos ensinam a conhecer e interpretar

nossos corpos, o que significa entender que a cultura tem um papel constitutivo

fundamental em nossas subjetividades (PEGORARO e FREITAS, 2011).

Referências bibliográficas

BRAGA, Adriana. Corpo, Mídia e Cultura. Razón y Palabra. Número 69, 2009.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:

ciências naturais / Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1998.

DANNER, Fernando. O Sentido da Biopolítica em Michel Foucault. Revista Estudos

Filosóficos (versão eletrônica). nº 4 /2010.

DEL PRIORE, Mary. Apresentação. In: NOVAES, Joana de Vilhena. Com que corpo

eu vou?: Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e popular. Rio

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