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Desidério Murcho Do Sentimento Trágico da Vida, de Miguel De Unamuno Tradução de Maria do Carmo Silva Quarteto, 2001, 239 pp. Comprar Miguel Unamuno (1864-1936) nasceu em Bilbao e ensinou filosofia e grego em Salamanca. Originalmente publicada em 1913, Do Sentimento Trágico da Vida é uma obra de filosofia no espírito despreocupado, negligente e cheio de referências "eruditas" da melhor (?) tradição existencialista francesa. Só que é anterior a essa tradição: Unamuno é considerado um precursor do existencialismo, a par de Kierkegaard. Em consequência, não estamos perante uma obra em que abunde a subtileza e as ideias interessantes. Tudo se parece resumir a três ou quatro ideias simplistas que dificilmente conseguem conviver em paz juntas. Mas a coerência é algo que não interessa a um existencialista. Isso é apenas uma forma redutora de olhar para a realidade. A ideia fundamental de Unamuno é a ideia existencialista típica: fora com a ideia de humanidade, com os seres humanos em geral, com a Humanidade abstracta. O que conta são as pessoas concretas. Este princípio pouco prometedor poderia ser interessante se ele mostrasse, por exemplo, que alguns filósofos se deixaram confundir só porque usaram palavras como "humanidade". Mas não é nada disso que ele faz; limita-se a dizer que é mau pensar em termos gerais. O problema que preocupa Unamuno é a morte. Ele sabe que vai morrer e é incapaz de acreditar no catolicismo, que chegou a colocar as suas obras no Index, e quer encontrar um paliativo que lhe acalme a alma atormentada de ateu religioso. Quer um sentido para a sua vida. Como acontece tantas vezes com estas pessoas, voltam-se para a arte, sem perceberem que estão assim a prostituir a arte, que aparece como um paliativo para as dores de alma. Neste caso, Unamuno volta- se para Dom Quixote, que persegue fantasias, mas insiste em segui-las porque isso dá estilo e não lhe ocorreu nada de melhor para fazer. De modo que Unamuno começa por afirmar o primado do homem concreto e acaba por nos dizer que as pessoas em geral devem ter como modelo uma personagem de ficção, que é tudo menos concreta. O homem concreto entretanto está esquecido no primeiro capítulo. A condição trágica do ser humano, perdão, do homem concreto (e é claro que ele se esqueceu das mulheres, que talvez não tenham direito a ser concretas) é estar perante a morte e o nada, é estar perante o sem sentido. Esta também não é uma ideia muito subtil. Se nada tem sentido, os seres humanos não vivem uma condição objectivamente trágica. Mas se não é objectivamente trágica, não é trágica de todo, apenas parece trágica quando nos colocamos de um certo ponto de vista. Mas tanto podemos colocar-nos desse ponto de

Desidério Murcho

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Desidério Murcho Do Sentimento Trágico da Vida, de Miguel De Unamuno Tradução de Maria do Carmo Silva Quarteto, 2001, 239 pp. Comprar

Miguel Unamuno (1864-1936) nasceu em Bilbao e ensinou filosofia e grego em Salamanca. Originalmente publicada em 1913, Do Sentimento Trágico da Vida é uma obra de filosofia no espírito despreocupado, negligente e cheio de referências "eruditas" da melhor (?) tradição existencialista francesa. Só que é anterior a essa tradição: Unamuno é considerado um precursor do existencialismo, a par de Kierkegaard. Em consequência, não estamos perante uma obra em que abunde a subtileza e as ideias interessantes. Tudo se parece resumir a três ou quatro ideias simplistas que dificilmente conseguem conviver em paz juntas. Mas a coerência é algo que não interessa a um existencialista. Isso é apenas uma forma redutora de olhar para a realidade.

A ideia fundamental de Unamuno é a ideia existencialista típica: fora com a ideia de humanidade, com os seres humanos em geral, com a Humanidade abstracta. O que conta são as pessoas concretas. Este princípio pouco prometedor poderia ser interessante se ele mostrasse, por exemplo, que alguns filósofos se deixaram confundir só porque usaram palavras como "humanidade". Mas não é nada disso que ele faz; limita-se a dizer que é mau pensar em termos gerais.

O problema que preocupa Unamuno é a morte. Ele sabe que vai morrer e é incapaz de acreditar no catolicismo, que chegou a colocar as suas obras no Index, e quer encontrar um paliativo que lhe acalme a alma atormentada de ateu religioso. Quer um sentido para a sua vida. Como acontece tantas vezes com estas pessoas, voltam-se para a arte, sem perceberem que estão assim a prostituir a arte, que aparece como um paliativo para as dores de alma. Neste caso, Unamuno volta-se para Dom Quixote, que persegue fantasias, mas insiste em segui-las porque isso dá estilo e não lhe ocorreu nada de melhor para fazer. De modo que Unamuno começa por afirmar o primado do homem concreto e acaba por nos dizer que as pessoas em geral devem ter como modelo uma personagem de ficção, que é tudo menos concreta. O homem concreto entretanto está esquecido no primeiro capítulo.

A condição trágica do ser humano, perdão, do homem concreto (e é claro que ele se esqueceu das mulheres, que talvez não tenham direito a ser concretas) é estar perante a morte e o nada, é estar perante o sem sentido. Esta também não é uma ideia muito subtil. Se nada tem sentido, os seres humanos não vivem uma condição objectivamente trágica. Mas se não é objectivamente trágica, não é trágica de todo, apenas parece trágica quando nos colocamos de um certo ponto de vista. Mas tanto podemos colocar-nos desse ponto de

vista e ler o livro de Unamuno, como ignorá-lo e fazer algum bem a algumas pessoas concretas à nossa volta.

É claro que estes comentários são tontos. Afinal, são apenas o produto de alguém que pensa com cuidado, em vez desentir com a sua subjectividade a tragédia de Quixote. Abaixo a razão, grita Unamuno, viva a subjectividade e o sentir. Mas depois, quando a polícia política o forçou a abandonar a reitoria da Universidade, por corajosamente não esconder o seu anti-fascismo, terá gritado: "Podes ter a força das armas, mas eu tenho a força da razão!" E neste grito Unamuno refuta-se definitivamente. Na realidade concreta da vivência humana, é a razão, objectiva e universal, que é aliada de Unamuno, e não a subjectividade particular do fascista que lhe poderia ter retorquido: "Abaixo a razão! Abaixo a objectividade! Eu AMO o Facho!" E é assim que um mar de filosofia simplista se refuta na realidade da vida, que essa própria filosofia tanto glorificou. Não há nada mais humano do que tentar compreender objectivamente a realidade e não há maior monumento erguido por mão humana do que precisamente o que Unamuno queria destruir: a racionalidade. Desidério Murcho [email protected] Texto publicado na revista Livros (n.º 22, Julho 2001)