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127 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 13 • dezembro 2000 • semestral IMAGEM Design grÆfico & pós-modernidade RESUMO Neste artigo é feita uma breve recapitulação das origens e desdobramentos da estética modernista nas artes visuais e no design para ser esboçado após um pequeno histórico do design pós-moderno. Observa-se então que um estilo muito utilizado no design atual lembra a estética visual do palimpsesto, pela sobreposição deliberada de várias camadas semi-trans- parentes de elementos visuais. A intenção dos designers pa- rece ser a de querer pluralizar cada vez mais a leitura de suas peças, propondo a significação como um jogo de ilimi- tadas possibilidades de realização. ABSTRACT This article presents a brief summay on the origins of the modernist aesthetics in the visual arts and in graphic design in order to sketch, afterwards, a short historical account of postmodern design. It is pointed out then that there is a recurrent postmodern design style which exploits a visual aesthetic which resembles that of palimpsests, for it uses several overlapping, transparent layers of heteroge- neous signs in its layouts. The goal of that style seems to be to draw the viewer into a hermeneutic game of unlimited possibilities of interpretation which precludes the possibility of “easy” readings. PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) - Design gráfico (graphic design) - Pós-modernismo (postmodernism) - Estética visual (visual aesthetics) Flávio Vinicius Cauduro PhD em Comunicação Gráfica, University of Reading, UK Prof. do Programa de Pós-graduação da FAMECOS/PUCRS Introduçªo AS NOVAS TECNOLOGIAS DIGITAIS e de comunica- ção estão cada vez mais nos habituando a conviver com a pós-modernidade, essa era da pluralidade, da fragmentação, da hetero- geneidade, da complexidade, das contradi- ções insolúveis, das incertezas e das indecidi- bilidades, das simulações, da transitorieda- de, da globalidade. E a prática do design grá- fico, assim como a das artes visuais, tem apresentado importantes mudanças estéticas, como conseqüência da relatividade e varie- dade de estilos das manifestações visuais da nova era, que ironizam e rejeitam razões, prioridades e premissas supostamente uni- versais dos modernistas. Após pouco mais de um século de pro- postas gráficas modernistas, começamos a perceber que o pós-modernismo no design não é resultado de decisões tão arbitrárias ou anárquicas como possa parecer, pois também apresenta algumas características estéticas re- correntes, que podem eventualmente nos ajudar a mais facilmente reconhecer e melhor entender suas manifestações. Como sabemos, o período que vai do Renascimento ao século XIX caracterizou-se pela busca da estética realista nas artes em geral. Com o advento e desenvolvimento da fotografia, as artes visuais entraram em crise, crise esta que deu origem ao modernismo, movimento constituído por uma série de rupturas e inovações que procuraram libertar as artes da retórica do ilusionismo realista. A partir dos impressionistas, os artistas visuais começam a procurar novas possibilidades de representação que não sejam fundadas no na- turalismo acadêmico. A arte em geral rebela-se contra os câno- nes clássicos, torna-se radicalmente moderna, inventiva, estranha às tradições e ao senso co- mum. Começa a trilhar um novo caminho, que basicamente rejeita a história e as con- venções, procurando romper com as normas consolidadas para reinventar constantemente

Design gráfico & pós-modernidade

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127Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 13 • dezembro 2000 • semestral

IMAGEM

Design gráfico &pós-modernidadeRESUMONeste artigo é feita uma breve recapitulação das origens edesdobramentos da estética modernista nas artes visuais eno design para ser esboçado após um pequeno histórico dodesign pós-moderno. Observa-se então que um estilo muitoutilizado no design atual lembra a estética visual do palimpsesto,pela sobreposição deliberada de várias camadas semi-trans-parentes de elementos visuais. A intenção dos designers pa-rece ser a de querer pluralizar cada vez mais a leitura desuas peças, propondo a significação como um jogo de ilimi-tadas possibilidades de realização.

ABSTRACTThis article presents a brief summay on the origins of themodernist aesthetics in the visual arts and in graphicdesign in order to sketch, afterwards, a short historicalaccount of postmodern design. It is pointed out then thatthere is a recurrent postmodern design style which exploitsa visual aesthetic which resembles that of palimpsests, forit uses several overlapping, transparent layers of heteroge-neous signs in its layouts. The goal of that style seems to beto draw the viewer into a hermeneutic game of unlimitedpossibilities of interpretation which precludes the possibilityof “easy” readings.

PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS)- Design gráfico (graphic design)- Pós-modernismo (postmodernism)- Estética visual (visual aesthetics)

Flávio Vinicius CauduroPhD em Comunicação Gráfica, University of Reading, UKProf. do Programa de Pós-graduação da FAMECOS/PUCRS

Introdução

AS NOVAS TECNOLOGIAS DIGITAIS e de comunica-ção estão cada vez mais nos habituando aconviver com a pós-modernidade, essa erada pluralidade, da fragmentação, da hetero-geneidade, da complexidade, das contradi-ções insolúveis, das incertezas e das indecidi-bilidades, das simulações, da transitorieda-de, da globalidade. E a prática do design grá-fico, assim como a das artes visuais, temapresentado importantes mudanças estéticas,como conseqüência da relatividade e varie-dade de estilos das manifestações visuais danova era, que ironizam e rejeitam razões,prioridades e premissas supostamente uni-versais dos modernistas.

Após pouco mais de um século de pro-postas gráficas modernistas, começamos aperceber que o pós-modernismo no designnão é resultado de decisões tão arbitrárias ouanárquicas como possa parecer, pois tambémapresenta algumas características estéticas re-correntes, que podem eventualmente nosajudar a mais facilmente reconhecer e melhorentender suas manifestações.

Como sabemos, o período que vai doRenascimento ao século XIX caracterizou-sepela busca da estética realista nas artes emgeral. Com o advento e desenvolvimento dafotografia, as artes visuais entraram em crise,crise esta que deu origem ao modernismo,movimento constituído por uma série derupturas e inovações que procuraram libertaras artes da retórica do ilusionismo realista. Apartir dos impressionistas, os artistas visuaiscomeçam a procurar novas possibilidades derepresentação que não sejam fundadas no na-turalismo acadêmico.

A arte em geral rebela-se contra os câno-nes clássicos, torna-se radicalmente moderna,inventiva, estranha às tradições e ao senso co-mum. Começa a trilhar um novo caminho,que basicamente rejeita a história e as con-venções, procurando romper com as normasconsolidadas para reinventar constantemente

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novas regras, tentando tornar-se uma práticaautônoma, individualista e redentora, quevaloriza antes de tudo a singularuidade dogênio artístico. O artista acredita no progres-so, torna-se um incansável pesquisador depossibilidades sempre inéditas de represen-tação, cultivando uma constante insatisfaçãocom o presente e o status quo estético de suaépoca. A arte moderna passa a valorizar apercepção rápida, efêmera, fugaz, e a utilizarvastas manchas de cores, em detrimento daperspectiva e dos volumes definidos (impres-sionismo). Também começa a cultivar o gostopela assimetria, pela estilização, pela geome-trização das formas naturais, pelo decorativoe pelo ritmado (art nouveau). Tendo desco-berto o prazer da transgressâo estética, aoflertar com impulsos subconscientes reprimi-dos via manifestações cromáticas selvagens(fauvismo), as artes plásticas direcionam-segradualmente à abstração, a transgressão má-xima ao realismo.

Alguns de seus artistas embriagam-secom a potência e velocidade das novas tecno-logias mecânicas e elétricas, fruindo prazero-samente a caótica mistura de seus ruídos,seus odores, seus movimentos (futurismo). Asrepresentações visuais tornam-se ilógicas ecaóticas, fazendo do deboche ao racionalismoe à ordem acadêmica sua estratégia criativamáxima, chegando a contestar a própria no-ção de arte como criação excepcional única,quando promoverm objetos seriados do coti-diano à condição de obras artísticas dignasde exibição e admiração em museus (dadaís-mo). Mais tarde as artes visuais tentarão sub-verter a razão convencional apelando para aimprevisibilidade e produtividade do in-consciente, procurando livres associações deformas, de caráter poético e onírico, e a trans-gressão deliberada de códigos convencionaisde representações ditas civilizadas (surrealismo).

A nova arte ultrapassa todos os limitesdo senso comum, rompe com as molduras,desce dos pedestais e tira partido dos impre-vistos e acasos do cotidiano fragmentado,através de proposições cada vez mais cho-cantes para os conservadores. Os idealistasainda procuram valorizar a razão do ser, seu

gênio criador, o sujeito metafísico que vivetrágicamente sua extrema sensibilidade àquestões de ordem política, social, sexual emoral, extravasando essa melancolia emcomposições figurativas místicas e visionári-as, de atmosfera densa e carregada, mas querenunciam à toda ilusão tridimensional (sim-bolismo e expressionismo).

Com o cubismo, o racionalismo geome-trizante finaliza a desconstrução da figuraçãorealista, fragmentando-a para depois remon-tá-la através de uma lógica espaço-temporalrelativista. Temas simples e banais do cotidi-ano são valorizados, para fácil identificaçãodos vestígios que restam das formas. Sãotambém exploradas colagens, que reintrodu-zem fragmentos da realidade material nasrepresentações artísticas, para mitigar a ari-dez de suaus formas abstratas. Essa correnteanalítica continua a procurar formas e corescada vez mais puras e não-objetivas, comoque tentando reconstruir a realidade segun-do parâmetros mais científicos, mais mate-máticos (suprematismo e construtivismo). Oauge desse puritanismo visual é alcançadocom as formas programadas e calculadas dasobras dos holandeses modernistas, calcadasno dualismo intrínseco do ângulo reto, noelementarismo da linha reta e na pureza dascores primárias (neo-plasticismo e De Stijl). Essaarte torna-se dogmática, obcecada com o alinha-mento visual, com a precisão geométrica dassuas representações, e com a pureza dos espa-ços em branco, como que procurando penitenci-ar-se das formas sensuais, luxuriantes e deca-dentes do barroco de tempos passados.

Na arquitetura, a ornamentação já haviase tornado um crime (Adolf Loss) e a simplici-dade das formas geométricas passara a ser asua principal inspiração (Le Corbusier).

O ascetismo formal predomina nas ar-tes visuais, e na visão de certos idealistaspassa a ter como missão redimir os objetosindustriais de seus excessos extravagantes,reprimindo ímpetos decorativos e o paganis-mo das soluções espontâneas e intuitivas.Sob o pontificado de um inspirado arquiteto(Walter Gropius), surge uma nova religião, odesign, a arte utilitária redentora, que se pro-

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põe a civilizar a indústria primitiva, educan-do-a para a apreciação e produção da boaforma estética.

Ao mesmo tempo, graças à influênciados formalistas russos (Kandisnky, El Lissitsky,Malevitch, Rodchenko), as artes visuais atingemrapidamente seu nível mais ótico, mais abs-trato, sem referências externas. Os artistasmodernos, da segunda década do século emdiante, almejam tornar as artes visuais umaciência da percepção visual (Mondrian), de-senvolvendo trabalhos ora líricos e metafóri-cos, como os realizados pela música, ora ob-jetivos e concretos, como os da arquitetura. Aarte moderna abstrata passa a valorizar oprocesso criador mais que as suas obras (arteconcreta, Theo van Doesburg), abrindo caminhopara o surgimento, da segunda metade doséculo em diante, para a Arte Minimalista, aOp-Art e a Arte Cinética, precursoras da ArteCibernética e da Arte Digital dos anos 60.

Muitos tendem a ver as artes em geralcomo sendo simplesmente a resultante da di-alética científica entre o impulso formador eas leis da física, procurando resolver os con-flitos entre o contínuo e o descontínuo, o pre-ciso e o impreciso, o limitado e o ilimitado, odeterminístico e o aleatório (Albers, Max Bill).As novas correntes das artes visuais vão ad-quirindo um caráter cada vez mais pragmáti-co, ao serem exportadas para o continenteamericano, e onde seus praticantes tentam li-bertar novamente a visualidade de qualquercálculo premeditado ou filiação histórica,através do expressionismo intuitivo e sub-consciente (action painting, tachismo). Tudo épossível, a criação torna-se sinônimo de im-provisação, o signo precede seu referente, oícone inventa seu objeto, e o índice gestual éo que vale, pois é o que garante a autoria.

Foi-se toda e qualquer possibilidade defiguração, a pintura torna-se finalmente umapura abstração. A produção do sentido daobra artística é responsabilidade delegadaagora ao espectador. O artista produz, en-quanto o público interpreta e dá sentido aoque sente e vê. Pluralizam-se os significados,aumentam as incertezas e as dúvidas. As ar-tes visuais propõem-se como um jogo semió-

tico que requer a participação constante dopúblico para tornarem-se significantes.

O caráter lúdico nas artes é o que dáinício à fase pós-moderna e que,a partir dosanos 60, abriga três principais temas, segun-do Frederico Morais (1977): Objeto, Conceitoe Corpo. O Objeto de consumo de massa dasociedade industrial, o objet-trouvé, o ready-made, é o ícone privilegiado pela Pop Art. OConceito, por sua vez, privilegia a idéia comoarte, usando meios de comunicação de massacomo suporte e mediação, dando origem àarte conceitual (Sol Lewitt). O Corpo, por outrolado, torna-se meio de expressão e fundamentode toda expressão simbólica, amalgamando aarte com processos vitais, em performances des-tinadas à divulgação por impressos, filme e ví-deos, revivendo práticas e rituais ancestrais,como a das tatuagens, maquilagens, travestis-mos e escarificações (Body-art).

Os museus e galerias tornam-se obsole-tos, seu papel agora é limitado ao registro deeventos e atividades considerados como ar-tísticos e que acontecem geralmente fora desuas sedes (happenings, performances).

As questões que a arte pós-modernaatual propõe estão focalizadas nos modos emeios de representação que constituem asnossas experiências de realidade e formam asnossas identidades. As teorias pós-estrutura-listas e desconstrucionistas desestabilizamtoda e qualquer definição que ainda preten-da caracterizar a essência do sujeito ou daarte, enquanto que as práticas de representa-ção apoiadas nas novas tecnologias videoci-nefotográfica e de simulação digital vão ga-nhando cada vez mais espaço. A realidade setorna cada vez mais virtual, enquanto a iden-tidade do sujeito é considerada agora imagi-nária, plural, contraditória e cambiante. A ge-ometrização das formas e as grids urbanísticas etipográficas são agora símbolos abominados dedominação ideológica e controle social.

O shopping center e a experiência doconsumo de massa tornam-se referentes pri-vilegiados da arte da simulação, do espaçofabricado da fantasia, seja ele físico ou digital(Disney, Las Vegas, Internet). Consumir é si-nônimo agora de lazer, uma atividade esca-

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pista prazerosa. Somos todos voyeurs e turis-tas do contemporâneo, professando a religiãodo consumo incessante (nem que seja apenaspelos olhar). O desejo nos mantém em movi-mento e sequiosos por novidades, mas, comoele nunca é satisfeito, nos mantém reféns dascomodidades que instaladas em nossos ima-ginários.

Não admira, portanto, que as estratégi-as retóricas assumidas pela arte de resistên-cia sejam a pluralidade, a ironia, o pastiche, aparódia, o plágio, a heterogeneidade, a frag-mentação, o excesso, o jogo, a interatividadee a participação, a intertextualidade, a brico-lagem, o kitsch.

Acabaram-se as metanarrativas, os câ-nones, as utopias compartilhadas, os valorestradicionais. Sobraram as realidades simula-das do virtual digital, as fantasias alucinantesdo imaginário, o mundo das representaçõessegmentadas, onde tudo tende a ser persona-lizado, possível e reversível, e cada vez me-nos consensual, interditado ou linear. É claroque todas essas mudanças de perspectivaque experimentamos atualmente estão trans-formando, os valores e as estéticas que infor-mam nossas vidas assim como a prática atualdo design.

O design modernista

A Bauhaus, como sabemos, foi o movimentoartístico que mais influência teve na socieda-de moderna, em termos de abrangência e du-ração, ao pregar a estetização calculada dosobjetos produzidos em escala industrial. ABauhaus se propôs a absolver o consumo demassa, consagrando-o como uma atividadelógica de fruição artística e intrínseca à socia-bilidade moderna. Naquela escola, subsidia-da pelo Estado alemão, predominavam ocultivo à ordem e ao racionalismo, à clareza eà harmonia, como um contraponto à emoção,à anarquia, ao caos e à desestabilização dostatus quo, que eram estimulados pelos movi-mentos sociais revolucionários surgidos du-rante e após a I Guerra Mundial.

A escola suíça, que viria a suceder a

Bauhaus após a II Guerra, refinou e reprimiumais ainda quaisquer subjetivismos, regiona-lismos ou ‘estilismos kitsch’ que ameaçassemcontaminar as formas ascéticas do designpropagadas pelos racionalistas alemães.

O trabalho de muitos designers tipográ-ficos europeus, por exemplo, é caracterizadoainda hoje por manipulações mínimas de ta-manho, cor, textura e posições espaciais nosimpressos. Porque, segundo a tradição mini-malista, menos é sempre mais. Sendo modernis-tas e suíços exemplares (precisos e dogmáti-cos) seus designers maiores (Emil Ruder, Ar-min Hoffman, Josef Müller-Brockman) prega-vam a superioridade universal de suas solu-ções gráficas restritivas, rigidamente contro-ladas pelo grid system e vestidas uniforme-mente pelas famílias Futura, Helvetica e Uni-vers. Este estilo veio a ser conhecido nosanos 60 e 70 sob a denominação de Internatio-nal Style, sendo adotado por quase todas asgrandes empresas multinacionais, em seusprogramas de identidade visual corporativa,assim como por grandes editoras de livroscientíficos, técnicos e artísticos.

Essas soluções minimalistas dos funcio-nalistas suíços eram repetidas incessante-mente, tornando-se em breve uma fórmulafacilmente copiada por qualquer designer,independendo de seu talento, gosto ou prefe-rencias. Em breve, as ‘programações visuais’que essas fórmulas mecanicistas geravam tor-naram-se muito facilmente previsíveis, abor-recidas e desinteressantes, sendo praticamen-te invisíveis após algum tempo. Isso era, naverdade, a conseqüência lógica e inevitáveldo seu princípio maior: form follows function.Se a função de um determinado gênero de im-presso é basicamente sempre a mesma, segue-se que não há porque fazer maiores alteraçõesnas formas já consagradas para aquele gênero -como no caso de programas de sinalização visu-al ambiental ou de programação visual de em-balagens farmacêuticas, por exemplo.

Embora um dia pudessem ter sido iné-ditas e não-redundantes, essas soluções pa-dronizadas e repetitivas eram camisas de for-ça para designers criativos. A hegemonia doestilo internacional, devida à sua divulgação

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programada em todas e quaisquer peças decomunicação das grandes corporações, pro-pagadas incessantemente e em escala global,desestimulava a emergencia de estilos alter-nativos. Era muito fácil, comoda e rentável aadoção desse estilo suíço, e os clientes senti-am-se muito seguros em seguí-lo. Qualquerempresa, por menor que fosse, podia igualar-se a IBM ou a Bayer, em termos da aparênciavisual de seus impressos ou embalagens.

Para os modernos funcionalistas, por-tanto, a tipografia continuava a ser uma mo-dalidade de escrita, um processo de codifica-ção da fala, otimizado para a fácil produção edifusão de impressos em larga escala de in-formações alfanuméricas. Para isso ela utili-zava o alfabeto greco-romano simplificado,seus símbolos sendo realizados no caracterís-tico estilo ‘sem serifa’ e ‘monolinear’. A tipo-grafia idealizada por eles materializava oscritérios maiores de legibilidade, uniformi-dade de traço, discrição e redundância deforma.

As vertentes do design pós-moderno

A monotonia e pasteurização do design oci-dental só vai começar a ser contestada a par-tir da metade dos anos 60, quando algunsjovens designers suíços, como Odermatt &Tissi em Zurique, Wolfgang Weingart emBasle, entre outros, começam a propor alter-nativas não-dogmáticas, mais descontraídas(retorno à ornamentação, ao simbolismo, aohumor e à improvisação) para fugir da esteri-lidade das formas modernistas.

O pós-modernismo no design é uma re-ação intuitiva da nova geração de designersaos excessos racionalistas e positivistas dosprogramadores visuais dos pós-guerra. Influ-enciados pelas novas e espontâneas formasde viver pregada pelos existencialistas e beat-niks dos anos 50, e pelos hippies dos anos 60,que enfatizam costumes e modos de vidaainda mais radicais, pregando a vida em co-munidades rurais, a prática do amor livre e oconsumo de drogas leves, surge o movimen-to psicodélico no design americano de contra-

cultura. Esse estilo poderia ser consideradocomo uma apropriação e radicalização da OpArt da época pelos jovens rebeldes. Ao mes-mo tempo, estilos antigos de vestimentas epenteados são revividos, a história passa aser reciclada, e o progresso material e finan-ceiro é desprezado.

Esse clima de descontração e euforiados anos 60 acaba por solapar o ascetismoracionalista herdado dos funcionalistas Bau-hausianos, valorizando cada vez mais o in-conformismo, a intuição e o subjetivismo.

O Push Pin Studio, de Milton Glazer eSeymour Chwast, em New York, marca épo-ca com o revivalismo dos estilos Vitoriano,Art Nouveau e Art Déco agregados a um es-tilo psicodélico e eclético. Ao mesmo tempo,o estilo tipográfico autoproclamado expressi-onista de Herb Lubalin passa a fundir tiposcom pictogramas, em suas soluções metafóri-cas inspiradas no vernacular norteamericano.

Philip Meggs, na 2a. edição de seu co-nhecido livro A History of Graphic Design(1992), vê quatro principais vertentes alimen-tando a corrente pós-modernista no designgráfico, a saber:

a) a rebeldia da New Wave Typography dosnovos designers suíços, liderados por Wolf-gang Weingart. Rosemarie Tissi e SiegfriedOdermatt, que procuravam reintroduzir maisconotações simbólicas, subjetividade e acasonos trabalhos neutralistas da escola suíça, eque, através dos trabalhos de April Greimane Dan Friedman, ex-alunos da Escola de De-sign de Basel, teve rápida e ampla divulga-ção nos EUA, a partir dos anos 70;

b) os maneirismos exuberantes e as idiosin-crasias exóticas dos designers do GrupoMemphis de Milão, de William Longhouserna costa leste dos EUA, e dos designers dacosta oeste dos EUA, principalmente de SanFrancisco, a partir da década de 80;

c) o movimento Retro, que através de um esti-lo eclético e excêntrico, revive ou reinventasoluções vernaculares e modernistas euro-péias e norteamericanas do período entre-

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guerras (baseadas em grande parte na ArtDécodaquele período), como se observa nostrabalhos de Neville Brody para as revistasThe Face e Arena, também na década de 80;

d) e a revolução digital, originada pelo apa-recimento do computador gráfico pessoalMcintosh, a partir de 1984, que reviveu oconstrutivismo no design e que passou a re-interpretar todos os outros estilos da épocaatravés dos bitmaps e das curvas vetoriais,tendo como figuras de destaque os própriosdesigners da interface da Apple, Susan Karee Bill Adkins, a dupla da Émigré, ZuzanaLicko e Rudy VanderLans, e, novamente,April Greiman.

Merece ainda menção a radicalizaçãodo design gráfico proposta pelos trabalhos“irracionais” de David Carson, na década de90, através de revistas de surf e de rock music,e que parece querer fundamentar a prática dodesign no fim do milênio em bases dadaístase anarquistas.

Essa corrente mais recente, que derivade Carson, parece ser ainda a tendência do-minante atual, pois se observa que uma dascaracterísticas recorrentes do design de pontaproduzido nas Américas e na Europa, é o res-surgimento de trabalhos mais “artísticos”,isto é, mais ambíguos e paradoxais, commais ruídos e interferências, menos “neu-tros”, menos “funcionalistas”, em suma, me-nos óbvios, o que é conseguido através dautilização de layouts mais complexos, hete-rogêneos e espontâneos.

Essa mudança ideológica no design nosúltimos 25 anos (e que vai do racionalismomais extremado ao caos mais radical) pareceter sido devido também, conforme relatam El-len Lupton & J. Abott Miller (1996: 8), à gradualpopularização nas escolas de design america-nas das teorias pós-estruturalistas de signifi-cação (Derrida, Barthes, Lacan) em conjuntocom as teorizações sobre a arquitetura verna-cular americana, de origem comercial, pro-postas por Robert Venturi e Denise Scott-Bro-wn, em Learning from Las Vegas (1972) assimcomo devida aos trabalhos visuais do movi-

mento Pop Art (Andy Warhol, Roy Lichtensteine Robert Rauschemberg, entre outros).

O encontro do espírito de rebeldia daépoca com as teorias desconstrucionistas pro-duziu então os primeiros teóricos do designpós-moderno nos EUA, na Cranbrook Acade-my of Art, em Michigan. A partir de 1978, soba liderança de Katherine McCoy, os desig-ners que lá estudam começaram a propagaras novas tendências desconstrucionistas atra-vés de posters e catálogos que confundiampropositadamente a clássica distinção entretexto e ilustração, procurando produzir, porestratégias visuais sutís, uma leitura ambí-gua dos traços impressos. Ao mesmo tempo,a grid foi flexibilizada ou até ignorada, e ouso de elementos gráficos ‘inúteis’ foi incenti-vado, visando o enriquecimento das possibi-lidades expressivas e interpretativas tantodos designers como dos leitores (Lupton &Miller 1996: 7-9).

Então, a partir da década de 70, a comu-nicação visual praticada nos EUA passou aser encarada pelos designers cada vez menoscomo uma prática tecnicista de “transmissãode sentido”, para ser cada vez mais concebi-da como um jogo, como uma prática retórica,probabilística e estimulante de formulaçãode mensagens hipotéticamente eficazes (Cau-duro 1990). Com isso os projetos de designpassaram a ser menos calculistas e mais ins-tintivos, muitas vezes irônicos, quase sempreprovocantes e muito criativos. Essa tendên-cia foi gradualmente se espalhando pelomundo ocidental, principalmente por permi-tir um maior flexibilidade de estilo, um me-lhor aproveitamento da cultura visual local euma maior contribuição da improvisação dodesigner, características estas que eram repri-midas pelo estilo modernista até então domi-nante (Cauduro 1998).

Segundo o novo paradigma da semióti-ca pós-estruturalista, a recepção de mensa-gens passa a ser um jogo hermenêutico, cujosresultados poderão ser profetizados apenascom sofrível grau de acerto, pois os sentidosproduzidos sempre variam de acordo com asidiosincrasias e particularidades do sujeitopredicante.

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Caberia, pois, ao designer, descobrir es-tratégias que permitissem suas audiênciasparticipar desse constante jogo interpretativode uma maneira prazerosa e cativante, semque a abertura dessas leituras resultassenuma anarquia semântica ou total relativis-mo de sentido.

Investigando essa hipótese com maisatenção, tenho observado que uma das estra-tégias que o design pós-moderno utiliza(conscientemente ou não) para induzir o su-jeito a participar desse jogo interpretativo, é autilização do que tenho chamado de “estéticavisual do palimpsesto” na articulação dossignificantes das mensagens visuais (Fig.1).Esse recurso não permite que se esgotem aspossibilidades de geração de sentido, e as-sim mantem prêsa a atenção dos sujeitos in-terpretantes por muito tempo (mesmo que odesigner procure privilegiar a produção decertos sentidos mais que de outros).

Palimpsestos

Pela definição do dicionário Aurélio, palimp-sesto é um “antigo material de escrita ... usa-do, em razão de sua escassez ou alto preço,duas ou três vezes, mediante raspagem dotexto anterior”, ou ainda, manuscrito “sobcujo texto se descobre ... a escrita ou escritasanteriores” (Fig. 2).

O American Heritage Dictionary acres-centa, na sua definição, que o palimpsesto éum documento sobre cuja superfície se escre-veu várias vezes, “muitas vezes deixando vi-síveis traços imperfeitamente apagados deescritos anteriores, que se constituem em im-portante fonte de recuperação de obras literá-rias perdidas da antigüidade clássica”.

Segundo o historiador Wilson Martins(1996: 59-68), os primeiros suportes utiliza-dos pela escrita humana foram de origem mi-neral: a pedra (desenhos pré-históricos em ca-vernas, as tábuas dos10 Mandamentos, asinscrições Maias), o mármore (inscrições tu-mulares e cívicas Greco-Romanas), a argila(tabuinhas gravadas e cozidas das bibliotecasda Mesopotâmia) e diversos metais (bronze e

chumbo, em algumas ocasiões excepcionaisouro e prata, gravados por estiletes ou fundi-dos). Esses suportes são utilizados aindahoje, em aplicações desde as mais banais atéas mais nobres. Muitas vezes esses suportesapresentam sobreposição de mensagens, porestarem em locais privilegiados e muito dis-putados, dando origem a palimpsestos quese apresentam como verdadeiros murais.

Lembremos aquí a prática tão atual dosgraffitti - escritas em muros, em paredes deedifícios, em vagões de metrô e em outrosveículos públicos, realizadas através de pin-tura spray ou a pincel, ou mesmo riscadas ouentalhadas, e que, ao compartilharem mensa-gens diversas, dão origem a palimpsestos ver-naculares muito interessantes, já documenta-dos por várias publicações que enfatizam suarica plasticidade e originalidade.

Fig 1: Detalhe de anúncio dos cigarros FREE (1995)

Fig. 2: Detalhe de palimpsesto do século IV (Martins1996: 67)

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Temos também as pinturas murais plane-jadas com muito cuidado, do tipo tromp l’oeil,presentes notadamente em Los Angeles e Lon-dres, e que geralmente se constituem em casosextremos de escrita palimpsestica, pois visam aapresentação de mensagens deliberadamenteambíguas e paradoxais aos espectadores, porconfudirem habilmente figura e fundo e pro-blematizarem a diferença entre representaçãoe suporte em suas imagens.

Nesses casos, uma das escritas é geradapelas formas, aberturas e texturas originais dosuporte utilizado (muro, fachada, parede), a ou-tra sendo uma pintura, geralmente hiper-realis-ta, superposta ao suporte. Dependendo da dis-tância entre o observador e o suporte, predomi-nará a leitura da pintura ou do seu suporte(Fig. 3).

Do reino vegetal, foram e ainda são uti-lizadas madeiras, sob a forma de tabletas enta-lhadas, ou recobertas por fina camada de cêrapara serem riscadas por estiletes; também fo-ram utilizadas folhas de palmeiras, folhas de oli-veira, o papiro, assim como, até hoje, tambémsão empregados panos, sedas e o familiar papel.

Um tipo de palimpsesto vegetal corri-queiro, gerado sobre papel diariamente nasgráficas, são as chamadas maculaturas, provasde várias impressões diferentes, sobrepostas,obtidas quando se efetuam ajustes de posi-ção e de entintamento de chapas litográficas,utilizando várias vezes as mesmas folhas depapel. Dependendo da sorte, das cores e dasformas dos elementos gráficos presentes nasartefinais, os resultados podem ser muio in-teressantes (Fig. 4).

Fig. 3: Steve McQueen, Kent Twitchell, Los Angeles, 1971,(Levick & Young 1988: 113)

Vários designers já tiraram partido dariqueza plástica gerada ao acaso por essas fo-lhas de ajuste (que podem até justificar o esti-lo neo-dadaísta de muitos designers atuais).

Outro tipo interessante de palimpsesto

Fig. 4: Um exemplo de maculatura onde se sobrepõem ti-pos e fotos (detalhe).

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que se pode observar em papel é aquele re-sultante da sobreposição de vários cartazesrasgados, ou de seus resíduos, em muros eoutdoors, efeito esse explorado nos anos 60pelo artista pop italiano Mimmo Rotella, as-sim como por muitos fotógrafos (Fig. 5).Também poderíamos considerar certos bati-ks tingidos mais de uma vez, assim comomoldes de costura com vários feitios super-postos, outros tantos exemplos atuais de pa-limpsestos do tipo vegetal.

nômico, do reino animal, e que foi o suportemais empregado na escrita, tanto na Antigui-dade como na Idade Média. Era uma mem-brana produzida a partir de peles de vitela, ca-bra, carneiro ou ovelha. Essas peles eram amo-lecidas em cal, raspadas e polidas até apre-sentarem uma superfície fina, lisa e sem fa-lhas, resistente ao manuseio, que fosse ade-quada para ser utilizada como suporte paramanuscritos ou para encadernações. Mais tar-de o pergaminho de pele animal passou a sersubstituído pelo pergaminho vegetal obtidocom a celulose pura (pergaminho-papel), bemmais barato.

O pergaminho, até a invenção do papel,era o suporte mais adequado para a escritade documentos filosóficos, legais ou religio-sos, por ser muito durável, mas era um bemque foi se tornando progressivamente escas-so, com a proliferação das cópias de manus-critos importantes pelos mosteiros. Essa cir-cunstância deu origem ao aparecimento dospalimpsestos propriamente ditos, como já ob-servamos, e que resultavam da tentativa dereaproveitamento de antigos pergaminhosconsiderados de menor importância.

O palimpsesto, que significa “raspado denovo” em grego, era portanto um pergami-nho reciclado. O processo de apagamento, pordescoloramento e raspagem da escrita anteri-or, geralmente não se dava perfeitamente eela reaparecia, ainda que mais fraca, sob anova escrita, como uma escrita fantasma. Es-clarece ainda Martins que:

“Pensou-se durante muito tempo queesse hábito [de reciclar pergaminhos]resultava das intenções piedosas dosmonges copistas, que apagavam tex-tos pagãos para inscrever em lugardeles orações e meditações religiosas.Mas, verificou-se posteriormente quenão só o palimpsesto existe desde amais remota antiguidade, como aindainúmeras orações e trechos religiosostinham sido raspados em benefício daliteratura profana... . Em qualquer doscasos, é possível ler, com o auxílio derecursos modernos, o texto primitivo

Fig. 5: Marilyn, décollage, Mimmo Rotella, 1963.

Na pintura também podemos ter o“efeito palimpsesto”, chamado de velatura, eque é produzido de maneira intencional, re-cobrindo figuras ou manchas já pintadas comuma leve mão de tinta de outra cor, de ma-neira a deixar transparecer o que está por bai-xo – efeito de véu, onde formas e cores sãomais sugeridas do que mostradas abertamen-te).

Para substituir o papiro, raro e caro, foiinventado o pergaminho, um pouco mais eco-

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[ou textos anteriores], que se desta-ca[m] com maior ou menor clarezasob a ação de reagentes químicos.”(Martins 1996: 67)

Alguns palimpsestos foram recicladosmais de uma vez, acumulando vestígios deescritas de várias épocas, o que os tornamainda mais valiosos. Muitos manuscritos im-portantes, como os dos Evangelhos, da Ilía-da, e mesmo científicos, tem sido recupera-dos de palimpsestos mal apagados. Um pa-limpsesto que se tornou muito famoso foiaquele achado em Constantinopla em 1906, eque continha sob uma coleção de orações otexto completo em grego de diversos e im-portantes escritos matemáticos de Arquime-des (Quinion 1998).

A metáfora do palimpsesto na signi-ficação

Na semiótica pós-estruturalista, o conceitodo palimpsesto está presente na noção da es-crita mental (arche-écriture), desenvolvida porDerrida e inspirada em Freud – escrita essaque alimenta a produção de sentido atravésda diferenciação espacial e temporal entreseus traços mnemônicos e cujo estudo Derri-da chamou de gramatologia (Derrida 1967/1976).

Harland (1987) nos oferece a seguinteversão para a gramatologia de Derrida, e quepoderá ser bastante útil para entender a me-táfora do palimpsesto implícita naquela teoria:

“Derrida deriva sua teoria da ‘arque-escrita’ a partir de Freud, especial-mente do ensaio de Freud entitulado‘Nota sobre o Tablete de Escrita Mági-co’ [“A note upon the ‘Mystic WritingPad’”, em Freud 1925/1984: 429-434].Neste ensaio, Freud compara o apara-to psíquico ao Tablete de Escrita Mís-tico (ou Mágico), que ainda hoje évendido como um brinquedo novida-de para crianças. O tablete é feito deuma folha transparente de celulóide

que recobre uma folha de papel não-absorvente que por sua vez recobreuma base encerada. Um estilete, aopressionar o celulóide, pressiona opapel contra a base encerada, e esseúltimo contato faz com que a cor escu-ra da base transpareça como uma es-crita no papel levemente colorido decima. Tal escrita não está realmentedepositada no papel, e pode ser feitadesaparecer simplesmente levantandoe separando o papel da base. Contu-do, como observou Freud, a base en-cerada ainda retém a marca inscritapelo estilete, mesmo quando o escritojá não é mais visível. Nesse aspecto, abase pode ser comparada ao inconsci-ente da mente, que retém o que elenão percebe, e o papel (com o celulói-de) pode ser comparado ao sistemade consciência-percepção, que por suavez transmite [e conscientiza] aquiloque não retém.”

Por sua vez, David Harvey (1989/1998:53) nota que o pensamento pós-estruturalistade Derrida, ao contrário do consensualista/modernista de Saussure, considera instável aligação entre o significante (ou meio) e o sig-nificado (ou mensagem), isto é, em contínuadifférance ou scorregamento. Por isso, diz Har-vey, o movimento desconstrucionista é umpoderoso estímulo para os modos de pensarpós-modernos: a vida cultural é vista comouma série de textos em intersecção com ou-tros textos, produzindo mais textos. Assim,continua Harvey, não se pode dominar o sen-tido de um texto, porque o perpétuo entrete-cer de textos e sentidos está fora do nossocontrole (porque produzida no inconsciente)– a significação opera através de nós, em am-bos os sentidos da palavra.

Não admira portanto, continua Harvey(1989/1998: 55), que Derrida considere a cola-gem/montagem a modalidade primária dodiscurso pós-moderno. A heterogeneidadeque caracteriza as produções pós-modernis-tas estimula os receptores de um texto ouimagem a produzir significações instáveis, o

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que faz com que a produção de sentidos sub-jetivos para os artefatos culturais seja atribui-ção tanto de autores/produtores como de lei-tores/consumidores:

“... o produtor cultural só cria matéri-as primas (fragmentos e elementos),deixando aberta aos consumidores arecombinação desses elementos damaneira que eles quiserem.” (Harvey1989/1998: 55)

Portanto, não é por acidente que a esté-tica do palimpsesto é privilegiada pelas artese pelo design na era pós-moderna. Eles sealimentam da anarquia, da fragmentação, dainstabilidade, da heterogeneidade, da recicla-gem de memórias e textos descontextualiza-dos, descontínuos – traços típicos da escritapalimpsestica – procurando uma maior ri-queza nas significações geradas nas interpre-tações das audiências, que procuram fazersentido (signum facere) dessas combinações“irracionais”. Esse tipo de visualidade pós-moderna estaria como que procurando emu-lar os modos primários de significação do in-consciente, o deslocamento e a condensação,identificados por Freud em sonhos e chistos.

O termo palimpsesto também apareceatualmente para designar fragmentos ou ruínasarquitetônicas que mostram traços de umaconfiguração ou estrutura anterior (e que ain-da pode ser detectada), por estar imersa emum contexto visual mais recente e completa-mente diverso. O termo se aplica ao modotípico de estruturação do tecido urbano con-temporâneo, porque aí encontramos com fre-qüência “formas passadas superpostas umasàs outras” (Harvey 1989/1998: 69).

A estética do palimpsesto na visuali-dade recente

Podemos identificar a estética visual do palimp-sesto claramente cultivada nos trabalhos seri-gráficos de Robert Rauschenberg realizados apartir de 1962, após sua fase tridimensionalde combine painting (Lippard 1966:24). Coinci-

dentemente, ele é considerado por muitoscríticos como sendo um dos principais expo-entes da pop art e um dos precursores maisnotáveis do pós-modernismo (Harland 1989/1998: 58). Entre os seus primeiros trabalhosseguindo essa linha estética, destacamos Es-tate e Overdrive, ambos de 1963, em óleo eserigrafia fotográfica sobre tela, e os notóriosPersimon e Tracer, na mesma técnica, ambosde 1964, e com muitos elementos figurativosem comum.

Para David Harvey, Rauschenberg,“um dos pioneiros do movimento pós-mo-derno”, se destaca por reproduzir, em vez deproduzir suas imagens através do “confisco,citação, retirada, acumulação e repetição deimagens já existentes”, o que faz com que “aaura modernista do artista como produtor édispensada” (Harvey 1998: 58). Ou seja, eleinaugura a era das assemblages visuais, utili-zando elementos figurativos pré-existentes(de maneira análoga às montagens dos ready-made de Duchamp). Significativamente, Raus-chenberg continua utilizando ainda hoje amesma estética do palimpsesto em seus tra-

Fig. 6: Estate, Robert Rauschenberg, 1963.

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balhos, agora aliando fotografia com proces-samento digital de imagens, como na série detrabalhos de 1996 entitulada Anagram.

A estética visual do palimpsesto tam-bém é encontrada na arquitetura pós-moder-na. Segundo Harvey, “o desconstrutivismo ...concebe o prédio não como um todo unifica-do, mas como ‘textos’ e partes disparatadosque permanecem distintos e não alinhados,sem adquirir sentido de unidade, e que são,portanto, suscetíveis de várias leituras ‘assi-métricas e irreconciliáveis’ ” (p. 95), o que re-força a idéia de que “a ... [nossa] situaçãoPós-Moderna permite... [nossa] sensibilidadeser uma composição de sensibilidades pré-vias, um palimpsesto ...” como poderíamosacrescentar, citando Jenks (1987: 56).

Margot Lovejoy, por sua vez, afirmaque o pós-modernismo levou os artistas a co-meçarem a ver o mundo como “uma experi-ência de seqüências continuamente cambian-tes, juxtaposições e deposições em camadas,como parte de uma estrutura decentrada[sem lógica] de associações”(Lovejoy 1997:69), o que também é uma outra maneira, per-feitamente adequada, de caracterizar a pre-sença da estética visual do palimpsesto nas artesvisuais.

dio Dumbar, David Carson, só para citar osnomes dos pioneiros mais conhecidos.

Também vamos encontrar essa estéticpresente em sites de designers, de artistas ede empresas de comunicação visual, comopodemos constatar pelas ilustrações do livroWeb Design: The Next Generation (1998).

Poderíamos alongar ainda mais o pre-sente estudo, mostrando a presença da estéti-ca visual pós-moderna do palimpsesto emoutras práticas visuais, tais como fotografia,história em quadrinhos, videoclips e filmes,para confirmar que essa é uma estética típicae onipresente da visualidade pós-moderna.Mas o importante, nos parece, é termos podi-do identificar essa nova estética, que está en-riquecendo nossa percepção visual e, tomara,valorizando cada vez mais nosso imaginário,por estimular significativamente nossa parti-cipação na construção da realidade ■

Fig. 7: Página da Razorfish Subnetwork, por ThomasMueller, em http://www.rsub.com (acessado em janeiro2000).

No design gráfico, propriamente dito,também podemos encontrar esta estética visualdo palimpsesto sendo empregada, desde há al-gum tempo, nos trabalhos de WolfgangWeingart, April Greiman, Neville Brody, Stu-

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