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CEAN – Centro de Ensino Médio Asa Norte Estratificação Social (Classe, Gênero e Etnia) Apostila de Sociologia 3º Ano – 1º Bimestre

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CEAN – Centro de Ensino Médio Asa Norte

Estratificação Social (Classe, Gênero e Etnia) Apostila de Sociologia3º Ano – 1º Bimestre

Professora: Mariana Létti

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Minorias Sociais

A questão da Igualdade e da Diferença

A complexa questão da igualdade não é uma idéia facilmente aceitável na cultura humana. Estabelecer diferenças parece ter sido sempre uma tendência da humanidade para, por meio delas, procurar definir a essência humana e a razão de sua existência. Foi a partir do Cristianismo que emergiu na sociedade a noção de igualdade. O princípio de que todxs, sem exceção, somos filhxs de Deus era absolutamente novo num mundo que procurava sempre identificar um único e verdadeiro povo escolhido. Concebida a idéia da igualdade original, a ela associou-se a idéia de bondade, caridade e vontade divina. Nos séculos seguintes essa idéia de igualdade entre os seres humanos foi se desenvolvendo e se firmando. Os filósofos da Ilustração1 procuravam descobrir novos aspectos dessa igualdade – vontade, liberdade e, enfim, igualdade jurídica e civil. Sempre mais no discurso que na ação, reconheceu-se que todas as pessoas têm direito à justiça, ao trabalho, à liberdade e assim por diante.

O Modo de Produção Capitalista, responsável por inúmeras novas diferenças entre os seres humanos, desenvolveu, por outro lado, a indústria de massa, geradora de grande homogeneização no mundo, diluindo diferenças e padronizando estilos de vida e consumo. Associada ao marketing e aos meios de comunicação, a globalização, no século XX, é uma tendência.

Porém, na atual sociedade que se massifica, se padroniza e se assemelha, surgiram grupos que começaram a se distinguir do conjunto da população. Em primeiro lugar, porque essa sociedade passou a abrigar em seu interior, em um mesmo espaço geográfico, pessoas provenientes das mais diferentes culturas, das mais diversas partes do mundo e de condição social cada vez mais díspar. Todas elas competindo pelo mercado de trabalho e por bens que nunca parecem aumentar na mesma proporção que o número de consumidorxs. Os

1 Movimento filosófico e social que ocorreu nos séculos XVII/XVIII e teve como origem o Renascimento. Seus maiores expoentes foram René Descartes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke e Adam Smith.

grupos passaram a concorrer e a desenvolver extrema rivalidade e a se opor: mulheres e homens, negrxs e brancxs, nativxs e estrangeirxs, homossexuais e heterossexuais, orientais e ocidentais etc. Cada um desses setores da população procurou definir sua própria história, criou suas justificativas e elaborou formas de organização em um prol de reivindicações. Cada um deles, no esforço de criar e afirmar sua própria identidade, imprimiu diferenças marcantes na realidade social. Os movimentos étnicos, raciais, sexuais, entre outros, disfarçando a padronização da sociedade, deram à noção de cidadania um novo sentido.

Dessa forma podemos perceber que o coletivo encobre as diferenças e discriminações, passa por cima de perseguições e injustiças, cuja superação torna necessária uma ação particular, dirigida e organizada. Diante desses particularismos nenhuma teoria ou projeto político que tentasse representar toda a sociedade poderia contentar estes grupos que se sentem especialmente excluídos de certos benefícios sociais. As soluções que se pretendem globais descontentam esses grupos que buscam formas próprias de pensamento e atuação. Enfim, saem das sombras as diferença e as particularidades. Membros de uma mesma categoria unem-se, denunciam, reivindicam, ocupam espaços e acabam, algumas vezes, por mudar certas formas de comportamento e por denunciar antigos preconceitos. Diante de sua força estes grupos passam do discurso à ação política, reafirmando o princípio da diferenciação como base de uma sociedade que só aparentemente se homogeneíza.

O conceito de Minoria Social

O princípio da maioria como uma força política nasceu com a democracia grega, na qual os sistemas de votação direta submetiam a aprovação das leis ao referendo da maioria numérica de cidadãos – gregos, homens, patrícios, livres. A maioria correspondia a essa superioridade numérica dentre os cidadãos que legitimava politicamente as decisões da Assembléia. Expressava a vontade de uma elite e não os anseios majoritários da população como um todo. Assim, aos poucos, a “maioria” deixou de representar uma quantidade para expressar um princípio de força política: é majoritária a decisão que representa a vontade das elites e dos governos instituídos. Em

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oposição, minoritárias são as reivindicações que representam justamente os grupos que não estão no poder, não conseguem aprovar seus projetos e nem transformar em leis seus anseios. Ou seja, estão em posição de não dominância e são, recorrentemente, vítimas de discriminação. É por isso que, por exemplo, as questões relacionadas às mulheres são minoritárias, apesar de as mulheres representarem quantitativamente mais da metade da população do mundo. Elas são minoritárias diante das forças políticas em ação – têm menos representatividade nas instituições decisivas de exercício do poder. Esse princípio, pelo qual a maioria é identificada com as forças políticas dominantes e a quantidade passa a significar poder, tem contrapartida no desenvolvimento das ciências sociais que, muitas vezes, associam o comportamento dominante ao princípio de normalidade. Para Durkheim, por exemplo, o que caracteriza o fato social é a sua generalidade, isto é, a recorrência ou forte incidência de um traço cultural. Assim, por oposição, o que é raro ou discordante é associado à anormalidade. Atualmente, com a multiplicidade dos “casos desviantes” e com a complexidade da vida social, fica cada vez mais difícil estabelecer maiorias reais. Predomina assim o uso político ou ideológico desse conceito. Hoje já se reconhece que em “casos desviantes” estão muitas vezes manifestas tendências sociais emergentes. Representam aspectos importantes da vida social, sintomas de transformações que podem ser vislumbrados pelx cientista social.

Desconsideradas pelas teorias, pelos levantamentos estatísticos, pelos interesses políticos e ideológicos, as minorias hoje saem a campo. A sociologia, por sua vez, tem se voltado para a estes grupos a fim de estudá-los e assim multiplicam os trabalhos de pesquisa que têm por objeto os sujeitos que compõe estas minorias. Desse modo, a postura que vê com irrelevância as questões minoritárias tende a perder adeptos. Atualmente, entende-se por maioria ou minoria a capacidade de certos grupos sociais fazerem pressão e obterem sucesso em suas reivindicações. É a força da ação política que torna as questões majoritárias ou minoritárias. A formação e a organização política das minorias foram revertendo esta tendência, assim como foram criando condições para a emergência de uma nova forma política: a democracia participativa. Em vez de confiarem na ação dxs políticxs que xs representam, xs cidadãs/ãos partem para a ação

concreta, organizando inúmeros movimentos e associações pelo mundo, que nada têm de minoritários, quer em termos numéricos, quer na sua capacidade de mobilização política. As minorias se tornam então força política e também, por conseqüência, objeto das ciências sociais e humanas. Assim, ocorre hoje em dia o advento de novos modelos explicativos e novas metodologias de pesquisa, relação diversa com as demais ciências da sociedade e diferentes objetos para a análise científica.

Estigmas em relação às pessoas que compõe um grupo minoritário específico.

O estigma e a discriminação são processos de desvalorização dos sujeitos que produzem iniqüidades sociais e reforçam aquelas já existentes. O estigma pode ser dividido, em termos gerais, em duas categorias relacionadas: o estigma sentido e o estigma sofrido. Estigma sentido é a percepção de depreciação e/ou exclusão pelo indivíduo que vive com alguma característica ou condição socialmente desvalorizada, o que acarreta sentimentos prejudiciais como vergonha, medo, ansiedade, depressão. Por estigma sofrido nos referimos às ações, atitudes ou omissões concretas que provocam danos ou limitam benefícios às pessoas estigmatizadas. Em poucas palavras, o estigma sofrido é a discriminação negativa, caracterizada como crime no plano jurídico nacional e internacional.

A força dos sentimentos estigmatizantes e seu impacto no modo de vida das pessoas talvez repouse no reconhecimento, por si mesmo e pelxs outrxs, de que sua condição poderá ser alvo de preconceito e eventual discriminação, de agressão aberta à sua integridade física e mental. A nossa socialização histórico-cultural em todos os preconceitos faz com que as pessoas que sofrem preconceito percebam, de forma antecipada e internalizada, eventuais situações em que podem ser estigmatizadas. Antecipando possíveis discriminações, algumas interdições passam a ser corriqueiras. Pode haver restrições de situações cotidianas como ir a escola, trabalhar, freqüentar serviços

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de saúde, praticar esportes e freqüentar festas ou outros espaços de lazer. Isso faz com que as pessoas mudem drasticamente suas vidas, restringindo, às vezes ativamente, sua participação afetiva e social em suas famílias e comunidades, deixando de usufruir de seus legítimos direitos como ser humano e como cidadã/ão.

A luta contra o estigma é uma luta dolorosa, desgastante e diária, que é (re)feita com toda a gama de recursos e depende de um conjunto de fatores. Há uma maior facilidade para esse enfrentamento entre aquelxs que vivem numa condição de cidadania mais plena (xs de maior renda, escolaridade e acesso à justiça). Mas mesmo entre xs desfavorecidxs vão se criando pequenas, mas importantes, estratégias de “sobrevivência” ao estigma que não devem ser desprezadas ou desconsideradas. Viver livre do estigma e de qualquer tipo de discriminação é um direito humano básico que deve ser respeitado.

Preconceito e Discriminação

Preconceitos são crenças a respeito de membros de um grupo étnico identificados segundo suas qualidades indesejáveis. Pense em epítetos étnicos, e as conotações que carregam, como claros indicadores de crenças preconceituosas - "nego", "baiano", "japa" e assim vai. Crenças preconceituosas são, portanto, uma parte notável da cultura de todas as sociedades.

A discriminação é o tratamento diferencial dos outros por causa de sua etnia, e, mais particularmente, é a negação aos membros de um grupo étnico à igualdade de acesso aos recursos de valor - habitação, empregos, educação, renda, poder e prestígio. O preconceito alimenta a discriminação; e atos de discriminação são freqüentemente justificados por preconceitos. Ainda, a interdependência entre o preconceito e a discriminação é geralmente difícil de discernir. Por exemplo, em um estudo clássico durante a ascensão do preconceito contra os asiáticos no período anterior à Segunda Guerra Mundial (La Piere, 1934), proprietários de hotel foram questionados se eles alugariam quartos para um "asiático", e uma alta proporção indicou que eles não alugariam; contudo, quando um casal asiático era mandado para um hotel, lhes era dado um quarto.

Esse tipo de ruptura entre o preconceito e a discriminação levou Robert Merton (1949) a distinguir dentre: 1) x "sempre liberal", que não é preconceituosx e não discrimina; 2) x "liberal relutante", que não é preconceituosx, mas em resposta às pressões sociais discriminará; 3) x "tímido intolerante", que é preconceituosx mas em resposta às pressões sociais não discriminará; e 4) x "sempre intolerante", que é preconceituosx e discrimina.

Você poderia agora se perguntar: e eu sou qual? A resposta é provavelmente mais complicada do que a tipologia de Merton. Você pode possuir alguns preconceitos, mas tentar não discriminar por causa deles. E você pode inadvertidamente discriminar sem preconceito ou por causa de preconceitos não reconhecidos.

Enquanto o preconceito individual e os atos isolados de discriminação são interessantes para observar e pensar, especialmente com respeito aos nossos próprios pensamentos e necessidades, o que é sociologicamente mais interessante é a discriminação institucionalizada, na qual há um padrão consistente e penetrante de discriminação legitimado por crenças culturais ou preconceitos, e construído dentro das estruturas de uma sociedade.

Às vezes, a discriminação institucionalizada pode ser explícita e óbvia como tem sido o caso dos negros durante e depois da escravidão, pois aqui há uma clara negação de acesso à cidadania, como direito a voto, empregos, educação, saúde e habitação que era legitimado pelas crenças altamente preconceituosas. Isto é, a discriminação institucionalizada é mais sutil e complicada. Por exemplo, os negros hoje sofrem nas favelas, que servem como reduto de crimes e drogas por causa da herança passada de discriminação, mas eles são acusados por muitos brancos de não querer escapar dessas condições; além disso, são vistos como pessoas que têm tratamento preferencial para empregos e universidades. O resultado final é que muitos negros permanecem pobres, sujeitos a preconceitos como "pobre preguiçoso, dependente da previdência social", que não merece assistência; tais preconceitos são então usados para legitimar as reduções da assistência pública ao mesmo tempo que encorajam a

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discriminação da sociedade. Você pode possuir esses preconceitos mais sutis e complicados, mas deveria reconhecê-los na sociedade.

Desigualdades: Classe, Etnia e Gênero(Jonathan H. Turner)

Algumas pessoas conseguem mais do que outras nas sociedades - mais dinheiro, mais prestígio, mais poder, mais vida, e mais de tudo aquilo que os homens valorizam. Tais desigualdades criam divisões na sociedade - divisões com respeito à idade, sexo, riqueza, poder e outros recursos. Aquelxs no topo nessas divisões querem manter sua vantagem e privilégio; aquelxs no nível inferior querem mais e devem viver em um estado constante de raiva e frustração. Isso é verdade, pois imagine o que uma pessoa pobre deve estar pensando; ela está sonhando com o que poderia ou ela está com raiva de não poder ter. Assim, a desigualdade é uma máquina que produz tensão nas sociedades humanas. É a fonte de energia por trás dos movimentos sociais, protestos, tumultos e revoluções. As sociedades podem, por um período de tempo, abafar essas forças separatistas, mas, se as severas desigualdades persistem, a tensão e o conflito pontuarão e, às vezes, dominarão a vida social.

Quando algumas categorias sociais conseguem obter mais do que é valorizado em uma sociedade do que outras categorias, existe um sistema de desigualdade. Pois recursos valorizados - poder, riqueza material, prestígio e honra, saúde, diplomas e outros - são raramente distribuídos igualmente. Algumas pessoas conseguem mais do que outras, e suas respectivas partes de recursos ajudam a manter sua distinção e visibilidade como uma categoria. Os homens e as mulheres, por exemplo, são "diferentes" não apenas por causa de sua biologia, mas também por causa de suas diferentes "fatias" de recursos, os quais aumentam ou pelo menos confirmam suas diferenças biológicas. Os grupos étnicos são "diferentes" não apenas por causa de suas tradições culturais, mas também por causa de suas variáveis fatias do "bolo de recursos". Trabalhadorxs não qualificadxs são distintxs dxs trabalhadorxs de escritório qualificadxs, não apenas por causa da natureza de seu trabalho, mas também porque recebem diferentes quantidades de recursos importantes.

Você é bastante consciente dessas divisões em uma sociedade, é claro. Compreende a frustração e a raiva daqueles grupos étnicos que não têm muito, e, se você é parte de um grupo diferente, evita lugares onde será diferenciado. Se é uma mulher, você sente uma raiva interior diante das vantagens que os homens têm no mercado de trabalho e nas áreas de prestígio e poder; e, se é um homem, você sabe que a mudança na divisão de recursos está ocorrendo e que você terá que compartilhar empregos, riqueza, prestígio e autoridade mais eqüitativamente com as mulheres. E, quando você encontra indivíduos de uma classe social diferente, há uma tensão por trás da jocosidade que decorre do fato de que um de vocês tem mais do que o outro. Desigualdades, então, são uma importante dinâmica em qualquer sociedade; portanto, elas são dignas de um estudo mais detalhado.

Estratificação de ClasseO que é Estratificação?

Estratificação é um termo geral usado para descrever uma sociedade que: 1) distribui renda, poder, prestígio e outros recursos de valor para seus membros desigualmente; e 2) cria classes distintas de membros, que são cultural, comportamental e organizacionalmente diferentes. O nível de estratificação é determinado por quão desigualmente os recursos são distribuídos, quão distintas as classes sociais são, quanta mobilidade ocorre entre as classes, e quão permanentes são as classes. Um sistema de castas como o da índia é um sistema em que há um alto nível de estratificação, porque as pessoas nascem em uma classe ou "casta", que recebe partes de recursos largamente diferentes em relação às outras castas e da qual é difícil, se não impossível, mudar-se. Um sistema de classes aberto, como nas democracias ocidentais, é um sistema em que as fronteiras de classe são vagas e mutáveis e existe alguma mobilidade entre as classes. De fato, como membro de uma sociedade com um sistema de classe mais aberto, você está agora trabalhando para melhorar de

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classe em relação a esta que foi dada a você pela sua família, ou você está tentando se agarrar a uma certa classe social. E você trabalha arduamente na escola e se preocupa com seu desempenho, porque sabe que seus diplomas determinarão, em grande parte, seu emprego, renda, prestígio e poder na sociedade. Os interesses são altos, e é por isso que as faculdades e universidades são lugares tensos e sérios apesar da aparente frivolidade.

Estudando a Estratificação

A estratificação é uma dinâmica central nas sociedades humanas, por essa razão ela é estudada desde o início da sociologia. Vejamos, então, como os sociólogos têm buscado conceituar a estratificação, começando pelas teorias de Karl Marx e Max Weber.

A Estratificação na Obra de Karl Marx

Marx apresentou uma simples, e talvez simples demais, teoria da estratificação (Marx e Engels, 1848). Na visão de Marx, aqueles indivíduos que possuem os meios de produção em uma sociedade - isto é, os recursos e capital usados para produzir mercadorias e utilidades – são capazes de controlar o centro de poder, os símbolos culturais, as atividades de trabalho e os estilos de vida dos outros. Há, então, em todas as sociedades uma tensão básica entre proprietárixs e não-proprietárixs - ou camponesxs e senhor, ou capitalistas e trabalhadorxs, pois aqueles que possuem ou controlam os meios de produção têm poder, sendo capazes de manipular os símbolos culturais, através da criação de ideologias que justifiquem seu poder e privilégios enquanto negam as reivindicações dos outros de propriedade e poder. E, se necessário for, elxs podem fisicamente coagir e reprimir aquelxs que desafiam seu controle. Ainda, Marx argumentava que essa "luta de classes" entre aquelxs que detêm e xs que não detêm os meios de produção e, conseqüentemente, o poder, criaria inevitavelmente as condições para uma revolução por parte destxs últimxs.

A luta de classes deveria se tornar um conflito aberto e levar à redistribuição dos recursos e alterar a natureza do sistema de classes (nesse sentido, na utopia de Marx, acabariam todas as distinções entre

as classes e as formas de exploração)? Para Marx, a resposta era esta: aquelxs que possuíssem e controlassem os meios de produção estariam “plantando o germe de sua própria destruição”, ao criar condições que possibilitassem ás/aos menos privilegiadxs, antes de mais nada, tornarem-se conscientes de seus próprios interesses na redistribuição da propriedade e poder e, em segundo lugar, tornarem-se politicamente aptxs para mudar o sistema (Marx e Engels, 1848). Por exemplo, em sua análise do capitalismo, Marx (1867) via xs donxs dos meios de produção – burguesia - motivadxs pela competição umas/uns com xs outrxs na perseguição de lucros e agindo de forma que aumentariam a consciência dxs trabalhadorxs - proletariado -, possibilitando- lhes assim ver seus verdadeiros interesses claramente, apesar do véu ideológico propagado pelxs capitalistas, e organizar o poder para realizar seus interesses mudando a sociedade. Por exemplo, os burgueses eram motivados pela competição para concentrar trabalho nas cidades e fábricas, tornando xs trabalhadorxs apêndices alienados das máquinas, rompendo suas rotinas e vidas através de demissões, e xs forçando a viver na sujeira, mantendo os salários o mais baixo possível (Marx e Engels, 1848). Sob essas condições, xs trabalhadorxs poderiam se conscientizar das injustiças e começar a quebrar as ideologias da burguesia (afinal, Karl Marx via o Manifesto Comunista escrito por ele e por F. Engels como a desmistificação decisiva da ideologia da burguesia). Então, uma vez que xs trabalhadorxs eram conscientes de seus verdadeiros interesses, elxs poderiam se organizar e tomar o poder da burguesia.

Segundo Marx, a estratificação deve ser entendida em termos de organização

econômica especialmente

no tocante às pessoas que

detêm os meios de produção. Aquelxs que possuem e controlam a propriedade, especialmente

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os meios de produção, têm poder de controle sobre as vidas das classes desfavorecidas. A estratificação de classe inexoravelmente gera a luta de classes, que se torna o ponto de partida fundamental para os conflitos que redistribuem dinheiro e propriedade. A grande revolução do proletariado não varreu o mundo industrial, e onde essa revolução realmente ocorreu ela foi iniciada pelxs trabalhadorxs rurais mais do que pelo proletariado urbano e criou, com dificuldade, uma sociedade sem classes.

A Estratificação na Obra de Max Weber

Weber (1922) foi um eterno crítico de Marx, mas ele também propunha uma teoria da estratificação. A principal diferença entre eles era que Weber via a estratificação com multidimensional. Desigualdade gira em torno de três dimensões: classes, grupos de status e partidos. Classes são criadas pelo relacionamento das pessoas com os mercados - para empregos e renda, para comprar bens de consumo e para criar um nível de bem-estar material. Essa noção é semelhante às idéias de Marx sobre as classes serem determinadas pela relação de seus membros e os meios de produção, mas é diferente no seu reconhecimento de que muitas classes distintas podem existir e que a posse de propriedade é apenas uma base para gerar uma classe social. A sociedade, entretanto, não polariza inevitavelmente entre o "ter" e o "não ter"; pode-se revelar um sistema de classe mais estruturado e variado.

Partidos são organizações de poder, mas, ao contrário de Marx, estes não sustentam uma relação direta com a propriedade e os meios de produção Membros de uma sociedade podem ter poder sem grandes propriedades, e vice-versa; e poder é geralmente usado para outras finalidades que os objetivos das classes burguesas.

Grupos de status são categorias sociais e relações entre aquelxs que partilham símbolos culturais semelhantes, gostos, perspectivas e estilos de vida e que, como conseqüência, podem desfrutar de certo nível de consideração, honra e prestígio. Embora os grupos de status possam refletir partes diferentes de propriedade ou poder entre seus membros, eles são uma base independente da estratificação. Assim para Weber, a estratificação envolve mais do que hierarquias de

classes que refletem a ordem econômica; a estratificação também gira em torno de hierarquias de poder participação em grupos de status.

Além disso, ao analisar o conflito, a teoria de Weber é semelhante a de Marx. Pode haver constantes conflitos dentro e entre diferentes classes, partidos e grupos de status, mas, quando surgem grandes conflitos em toda a sociedade, eles são o resultado de: 1) uma alta correlação entre associação em classes, partidos e grupos de status (isto é, elites em um são também elites nos dois outros); 2) grande descontinuidade nos recursos entre aqueles que estão nos níveis alto e baixo nessas hierarquias consolidadas; e 3) pouca chance ou oportunidade de mobilidade ascendente nessas três hierarquias. Quando todas essas condições vigoram, pode surgir umx líder carismáticx para articular uma ideologia revolucionária e mobilizar xs oprimidxs para o conflito visando à redistribuição de propriedade, poder e prestígio.

Aqui Weber soa como Marx, mas com algumas observações importantes. Primeiramente, alta correlação entre os membros de classes, de grupos de status e de partidos não é inevitável, como Marx teria afirmado, tampouco sempre ocorre uma grande descontinuidade na divisão de recursos ou baixas taxas de mobilidade social. Em segundo lugar, mesmo quando todas as condições estão presentes - alta correlação entre os membros, grande descontinuidade, e baixa mobilidade - não necessariamente se sucede uma revolução, pois a oportunidade e a casualidade - determinam se um líder carismático pode surgir e ser bem-sucedido.

A Estratificação para Davis e Moore

Marx e Weber, viam a estratificação como criadora de tensões e, pelo menos potencialmente, como produtora de conflito entre aqueles indivíduos com diferentes partes dos recursos. Há, entretanto, outra maneira de observar a estratificação: como uma força integradora da sociedade. Para Kingsley Davis e Wilbert Moore (1945), bem como para outros funcionalistas, as desigualdades podem ser relacionadas às críticas necessidades funcionais ou condições na sociedade.

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A famosa e sempre criticada "hipótese de Davis e Moore" argumenta que, se um status em uma sociedade tem uma função importante e difícil de ser ocupado em razão exigências de qualificação, receberá maiores recursos - dinheiro, poder e influência, e prestígio (Davis e Moore, 1945). Ambas as condições do status - importância funcional e dificuldade em preenchê-la - devem estar presentes. Por exemplo, o status do lixeiro é funcionalmente importante (basta imaginar um mundo sem lixeiros) mas não é qualificado e é fácil de preencher; portanto, não receberá muitos recursos. Em contraste, ser médicx é um status importante funcionalmente além de especializado, e daí, de acordo com a hipótese de Davis-Moore, deve ser altamente recompensada. Desigualdade é, portanto, uma forma de motivar as pessoas qualificadas a passar pelo treinamento e sacrifício necessários para fazer um trabalho funcionalmente importante e especializado em uma sociedade.

Teorias funcionalistas têm, entretanto, tido críticas contundentes por uma falha óbvia: elas fazem as desigualdades existentes parecerem corretas e legítimas, como se aquelas com mais recursos sempre fossem dignos destes, devido a sua importância funcional e especialização. De fato, os críticos argumentam que as pessoas ganham recursos por sorte, abuso de poder, corrupção, tradição e outros processos que têm pouco a ver com importância funcional ou talento (Tumin, 1953, 1967).

A Estratificação para Lenski

Algumas teorias mais recentes têm tentado entender a estratificação em uma perspectiva histórica mais a longo prazo, voltando aos caçadores e coletores, e, daí, a compreensão das sociedades mais complexas. A teoria de Gerhard Lenski (1966) argumenta que a estratificação é o resultado da produção econômica crescente, que gera um excedente de riqueza além das necessidades de subsistência. À medida que o excedente cresce, a capacidade de manter indivíduos não-produtivos aumenta; alguns são capazes de usar o poder para usurpar esse excedente, criando, assim, privilégios para eles mesmos. Assim, o privilégio e o poder estão ligados: aqueles com riqueza podem usar o poder para aumentar sua riqueza; e, do outro lado dessa equação, aqueles com poder podem usá-lo para gerar

excedente, ganhando riqueza e prestígio. Mas com a industrialização esse processo histórico a longo prazo é reversível, pelo menos até certo ponto, por exemplo, se aqueles sem privilégio começam a se mobilizar e se opor ao uso abusivo de poder e concentração do excedente econômico (muito como Marx poderia ter previsto), eles podem forçar a organização do poder a ser mais democrática, geralmente sem uma grande revolução (como Marx não poderia ter previsto). O resultado leva a uma redistribuição de riqueza através de um sistema de imposto progressivo que estabelece impostos mais altos para os ricos (ou pelo menos tenta fazê-lo, embora os ricos sempre tentem esquivar-se dessa carga). A arrecadação desses impostos é então usada para prover educação, saúde, bem-estar e oportunidades de emprego para os menos

privilegiados. Mas esse processo é lento porque as pessoas lutam contra os impostos e manipulam a opinião pública para convencer os menos privilegiados de que os altos impostos de fato não lhes são interessantes. Se pensar sobre sua própria hostilidade ou a de seus pais aos impostos, você pode ver quão bem-sucedida essa manipulação tem sido.

Formação de Classes

Quantas classes há na sociedade - isto é, pessoas que dividem uma dada fatia da torta de dinheiro e prestígio e que, desta forma, revelam características comuns?

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Quão claras são as fronteiras? Quanta mobilidade de classe para classe ocorre durante uma, ou entre gerações? E quão duradouras são as classes? Algumas das respostas a essas perguntas são mais fáceis do que outras. Vamos tomá-las em ordem.

Quantas classes existem? A resposta depende da nossa sintonia com a realidade. Uma aproximação irregular distinguiria o seguinte: elite (ricos, poderosos e prestigiosos), muito ricos (riqueza acumulada e prestígio de profissões de alta renda ou empresas), profissionais executivos de classe média-alta (profissionais com alto salário ou pessoas de negócios bem sucedidas que acumularam alguma riqueza), sólida classe média administrativa (renda respeitável, alguma riqueza em fundo de pensão e participação de lucros da empresa), classe média mais baixa (renda modesta, poucos bens acumulados, talvez participação de lucros da empresa), classe trabalhadora alta (renda respeitável, alguma riqueza em fundos de pensão e participação de lucros da empresa), operárixs de classe média (renda modesta, poucos bens acumulados), e os pobres (renda baixa, desempregados, "desempregáveis" sem qualquer auxílio). Como importante observação, esta última classe, de pessoas pobres, é a maior do mundo.

Uma pesquisa divulgada pelo jornal “O Globo”, em 2006, afirma que a riqueza está fortemente concentrada na América do Norte, na Europa e nos países de alta renda da Ásia e do Pacífico. Os moradores desses países detêm juntos quase 90 por cento do total da riqueza do planeta'', disse a pesquisa.

“Nós calculamos que os 2 por cento dos adultos mais ricos do mundo possuem mais da metade da riqueza global enquanto os 50 por cento mais pobres, 1 por cento”, disse Anthony Shorrocks, diretor do instituto.

As diferenças nessas classes giram em torno de diversos fatores. Um deles é se o trabalho é manual (operárixs) ou não manual (intelectual); esse fator é muito importante, e podemos sempre observar facilmente as diferenças na conduta, no estilo de vida e em outras características das pessoas do setor administrativo e da linha de produção. Outro ponto de corte é o nível de renda e a capacidade de acumular bens de sua própria renda; as pessoas que têm bens, agem e pensam diferentemente do que as que não têm. E quanto menos

dinheiro você tem, maior é a diferença entre você e os que têm alguns bens. Uma última fronteira é quanto poder e prestígio você tem, como resultado de sua renda ou natureza de seu trabalho. Pessoas com poder e prestígio agem e pensam diferentemente dos que não têm esses bens.

Essas fronteiras de classe são vagas, indicando que não há qualquer divisão ou rígida descontinuidade entre elas. Voltando à questão da mobilidade social, há possibilidades de mobilidade entre essas classes, mas não há grandes saltos. Estatisticamente, é mais provável que você mude para a classe mais próxima - ou acima ou abaixo. Se começar pela média baixa, você pode esperar mudar para a média sólida, ou mudar para um emprego operário mais alto. Se começar nas classes operárias, você pode mudar com a aquisição de diplomas para as classes médias. Mas, se a economia está em recessão e se o governo corta gastos, então é provável que você permaneça onde começou ou que até mesmo desça a escada da estratificação. A maioria dxs brasileirxs permanece em uma classe social durante toda a sua vida; e, se elxs mudam, não é para muito longe - apesar de muito discurso sobre aquelxs que passaram de muito pobres a ricxs.

Estratificação de GêneroSexo e Gênero

Em todas as sociedades, os indivíduos categorizam-se uns ao outros como masculino ou feminino e, com base nessa distinção, as crenças culturais e normas indicam quais status os homens e as mulheres deveriam ocupar e como elxs deveriam desempenhar os papéis associados com esses status. Tem havido no curso da evolução humana enorme variação no que é definido como adequado aos homens e às mulheres, um fato que indica que

distinções entre os sexos são mais socioculturais do que biológicas. Esse processo de definir culturalmente status e papéis adequados para cada sexo é denominado de diferenciação de gênero; e esse conceito

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deveria ser distinto da diferenciação sexual, que denota as diferenças biológicas entre homens e mulheres.

As duas noções, de sexo e gênero, entretanto, não são tão facilmente separadas porque muito do que a população costuma ver como tendências "naturais", biológicas, dos sexos é culturalmente definido e reforçado através de sanções. As únicas diferenças biológicas claras entre os homens e as mulheres são diferenças geneticamente causadas nas secreções hormonais e seus efeitos no desenvolvimento dos órgãos sexuais e outras características anatômicas (estrutura óssea, percentual de camada de gordura e musculatura). Pode haver outras diferenças fundamentadas geneticamente, mas não há evidências claras para essas. Além disso, até mesmo as diferenças mais inequívocas tornam-se tão elaboradas e impregnadas por crenças culturais e normas, e por papéis sociais e práticas dentro de estruturas sociais, que tornam obscura a fronteira entre o sexo e o gênero.

A base da noção de sexo socialmente construída é bastante ilustrada por casos nos quais a identidade sexual biológica é ambígua. Por exemplo, em um estudo, crianças que nasceram com os órgãos de ambos os sexos (antigamente chamadas de hermafroditas, atualmente chamadas de intersexuais) empregaram as características sexuais - atitudes, comportamento e preferências sexuais - que refletiram sua socialização pelos pais, tanto masculinos quanto femininos (Ellis, 1945; Money ê Ehrhardt, 1972). Em outro caso elucidativo, uma garota jovem que tinha os órgãos sexuais externos de uma mulher e que fora criada como mulher, sofreu uma mudança de voz na puberdade; um exame médico mais detalhado revelou que "ela era "XY", ou seja, um homem. Informada disso, ela "foi para casa, jogou fora suas roupas de moça e tornou-se um garoto, começando imediatamente a se comportar como os outros garotos" (Reynolds, 1976).

Ou seja, o gênero é mais determinante do que o sexo quando pensamos em assumir papéis. Um indivíduo pode ter nascido do sexo feminino e optar, posteriormente, pelo gênero feminino se tornando, portanto, uma mulher. Outro ponto importante é distinguir gênero de orientação sexual. Embora existam várias orientações sexuais, as mais conhecidas são: homossexuais, heterossexuais e bissexuais. A orientação sexual (e não opção sexual) não é determinada pelo sexo

nem pelo gênero. O que determina o seu sexo são suas características biológicas; seu gênero é determinado pelas suas características culturais e sociais; sua orientação sexual se define para qual gênero você tem sua afetividade direcionada.

De um ponto de vista sociológico, então, é melhor nos concentrarmos nos processos de gênero, ou aquelas causas culturais e sociais que afetam os status e os papéis desempenhados por todos na sociedade. Vamos nos concentrar na estratificação de gênero porque esse é o tópico que diretamente afeta tudo em nossas vidas.

A Dinâmica da Estratificação de Gênero

Quando as posições ocupadas por homens e mulheres implicam diferentes quantidades de renda, poder, prestígio e outros recursos de valor, um sistema de estratificação de gênero pode ser considerado existente. Desde que os homens abandonaram a caça e a colheita entre 12 mil a 18 mil anos atrás, a estratificação de gênero existe em todas as sociedades conhecidas. E esse sistema tem favorecido homens, que têm a maior probabilidade em ocupar posições e desempenhar papéis que trazem mais poder, riqueza material e prestígio. Como devemos explicar essa situação?

Teorias funcionalistas buscariam responder essa questão enfatizando que uma divisão de trabalho com base no sexo era mais plausível do que qualquer alternativa para preencher necessidades de sobrevivência de populações humanas primitivas. É mais eficiente, e daí mais adequado, para uma sociedade simples ter mulheres para desempenhar as atividades em torno da educação da criança e afazeres domésticos, enquanto os homens saem para caçar por "esporte" e, mais tarde, lutar em conflitos, pois as mulheres devem parir e amamentar as crianças, e suas atividades domésticas pareceriam fluir "naturalmente"

partindo desse "fato" biológico da vida humana. Em contraste, os homens não podem amamentar

uma criança e são, na média, cerca de 15% a 20% maiores do que as mulheres e, assim, é mais "natural" para eles deixarem os acampamentos para caçar e desempenhar outras tarefas que não podem ser feitas por mulheres que amamentam. Uma vez que essa divisão de trabalho

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existia, tornou-se cada vez mais elaborada e expandida, trazendo desigualdade entre os sexos.

Esse argumento é seriamente falho. Primeiro, as mulheres em muitas sociedades tradicionais fazem a maioria do trabalho pesado e criam os filhos. Ora, uma vez que o modo de vida nômade de caça e coleta foi abandonado e as pessoas se fixaram, por que os homens não poderiam fazer o mesmo e usar seus talentos para criarem filhos e desempenharem tarefas domésticas? Segundo, se os papéis das mulheres são tão funcionalmente importantes, por que elas continuam possuindo menos prestígio, poder e riqueza agora que a era de caça e coleta é passado? Assim, precisamos observar melhor para um entendimento mais completo de como persistiu a estratificação de gênero.

Uma análise possível está na teoria de conflito em que a ênfase é dada ao poder. Porque os homens são um tanto maiores e mais fortes do que as mulheres, pelo menos na média, eles têm usado essa capacidade como coerção para criar e sustentar um sistema de estratificação com base no gênero. Assim, ao longo da história, os homens e as mulheres têm competido por recursos escassos, com os homens no final das contas mantendo uma decisiva vantagem através da coerção. A coerção básica envolvida, é claro, tornou-se mascarada por crenças culturais e normas que fazem parecer "natural" que os homens devam dominar o acesso a recursos de valor.

Apenas na história bem recente essa máscara cultural foi tirada, levando a um movimento social crescente em grande parte do mundo industrial para remodelar a desigualdade entre os homens e as mulheres. Mas ainda há forças poderosas que funcionam para sustentar a estratificação de gênero.

Em um nível cultural as crenças trabalharam contra as mulheres, enfatizando seu caráter doméstico e nutricional (Turner, 1977). Tais crenças foram traduzidas em expectativas normativas sobre as próprias posições (doméstica) e comportamentos de papéis (passivo, nutricional) para as mulheres. Tais símbolos culturais persistem porque xs jovens são socializados por suas famílias, escolas, companheirxs e a mídia para aceitá-lxs.

Quando nasce um bebê, seu sexo é a primeira coisa que os pais desejam saber porque define como eles reagirão à criança e o que eles esperarão dela. As meninas, por exemplo, serão encaminhadas em uma

conduta "suave", os meninos em uma "dura" com comportamento mais agressivo; as meninas serão estimuladas a brincar adotando papéis "femininos" (mãe, enfermeira e dona de casa), ao passo que os meninos serão estimulados a adotar papéis "masculinos". Com essa canalização de papéis nas brincadeiras, são comunicadas as definições do que significa ser masculino e feminino.

Essas mensagens sutis sobre a masculinidade e feminilidade são reforçadas por interações e experiências iguais nas escolas. Em geral, os meninos são estimulados a praticar esportes competitivos, que envolvam agressividade e contato físico ao passo que, apesar de algumas mudanças, as meninas são estimuladas a praticar esportes menos competitivos e menos físicos ou, ainda mais significativamente, papéis de observador/torcedor, em que elas são meros suplementos às atividades masculinas. Interações com iguais reforçam essas diferenças na escola e socialização familiar, como faz a mídia (livros e televisão). O resultado final, como enfatizariam as teorias interacionistas é que os meninos e as meninas (e mais tarde os homens e as mulheres) vêm a definir-se em termos masculino e feminino e buscar status nas estruturas sociais que reforcem essas definições.

Assim, apesar da considerável publicidade feita para mudar os "papéis sexuais", os homens ainda controlam os status de alta renda, de alto poder e de alto prestígio; e eles ainda são capazes de ser evasivos a muito trabalho doméstico, mesmo quando suas esposas trabalham fora. Como isso é possível? A resposta reside na socialização dos homens e das mulheres dentro de crenças sobre feminilidade e masculinidade, e em práticas discriminatórias nos mercados de trabalho. Estas são causas sutis, mas seus efeitos são profundos.

Há, entretanto, sinais de mudança. As mulheres agora estão assegurando, em números dramaticamente crescentes, grau de escolaridade em campos tradicionalmente dominados por homens - administração de empresas, ciência da computação, odontologia, engenharia, direito e medicina. Além disso, leis anti-discriminação têm reduzido a discriminação contra as mulheres em empregos operários dominados pelos homens, embora os homens ainda tenham essas posições de forma esmagadora. Há também sinais de crescimento da participação das mulheres na política. Temos, pela primeira vez na história do Brasil, uma presidenta! Os efeitos a longo prazo dessas mudanças, sem dúvida, alterarão as crenças culturais sobre os papéis

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adequados tanto para as mulheres quanto para os homens, ao mesmo tempo mudando as divisões do trabalho doméstico. Mas estas serão mudanças relativamente lentas porque os velhos sistemas de símbolos culturais, práticas de socialização, práticas de emprego informais e atividade política são difíceis de alterar.

A estratificação de gênero é sustentada por ciclos que se reforçam mutuamente. As mulheres são identificáveis; apresentam ameaças à dominação masculina de papéis sociais-chave; são sujeitas a crenças preconceituosas sobre sua formação "biológica"; estão expostas a uma longa lista de práticas discriminatórias. E crenças e comportamentos são sustentados pela socialização diferenciada. Como tais ciclos devem ser quebrados? O impulso mais importante tem sido a participação crescente das mulheres na força de trabalho, em que elas garantem, uma vez que" ganham o seu pão", recurso que lhes dá poder para redefinir a identidade de gênero e mudar um pouco a divisão do trabalho doméstico. Por sua vez, a raiva crescente das mulheres, conjugada com o grande tamanho de sua população, levou-as a mobilizações para mudar as crenças preconceituosas (sobre a natureza das mulheres e suas qualidades) e iniciar ação política para reduzir a discriminação.

Estratificação ÉtnicaEntrelaçada com a estratificação de classe está a desigualdade

étnica. Isto é, algumas pessoas de um grupo étnico particular podem também ser membros de classes sociais específicas. E, uma vez que muitos dos grupos étnicos estão entre as classes sociais mais baixas, não é surpreendente que o conflito de classes possa se tornar sobrecarregado de antagonismos étnicos entre aquelxs que têm e aquelxs que querem recursos.

Você pode perceber esse fato todo dia, quando se encontra e lida com pessoas de diferentes grupos étnicos. Você pode se ver como uma pessoa tolerante e honesta e, apesar de não poder ajudar, você sente uma tensão sutil entre você e os membros de outros grupos étnicos. Essa tensão não é apenas o resultado de diferenças culturais (isto é, línguas e crenças), variações no comportamento (estilos de

discurso, maneiras de conduzir-se) e diferenças organizacionais (padrões diversos afiliação), é também o resultado de diferenças no dinheiro, poder e prestígio, que se associam com essas diferenças culturais, comportamentais e organizacionais. Se você está em baixa nessas diferenças graças ao passado histórico de seu grupo étnico, você pode mostrar uma hostilidade sutil e carregar um peso no seu ombro; se estiver em alta, você percebe essa hostilidade e talvez negue sentir certo receio.

Raça e Etnia

O termo raça é usado para denotar aquilo que percebemos como diferenças biológicas: cor da pele e características faciais, por exemplo. Mas queremos dizer mais do que apenas biologia; pois, se não o fizéssemos, faríamos distinções raciais entre as raças superiores e inferiores, as raças de olhos azuis e castanhos, e outras diferenças biológicas. De fato, nunca deveríamos usar o termo "grupo racial", porque não tem base científica. Onde, por exemplo, é a linha de corte em termos de biologia entre ser "negrx" "brancx", "asiáticx"?

Quando usamos o termo "raça", então realmente queremos dizer etnia, ou aquelas diferenças comportamentais, culturais e organizacionais que nos permitem categorizar os membros de uma população como distinta (Turner e Aguirre, 1994). Ainda, quando as distinções étnicas são associadas com características biológicas superficiais como cor de pele ou formato do olho, elas se tornam convenientes "marcas" de etnia. E geralmente se tornam uma base para preconceito e discriminação elevados, que, por sua vez, aumentam a estratificação étnica, ou a alocação desproporcional de variadas populações étnicas em classes sociais específicas.

Dinâmica da Estratificação Étnica

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A dinâmica central da estratificação étnica é, portanto, a discriminação por um ou mais grupos étnicos contra grupos étnicos definidos. Mas essa simples observação pede importantes perguntas: como uma população étnica vem a ter poder para discriminar? E por que seus membros querem discriminar? A resposta a essas perguntas nos força a examinar a correlação entre várias causas importantes: 1) os recursos relativos de grupos étnicos; 2) a identificação de grupos étnicos

como os alvos de discriminação; 3) o nível e o tipo de discriminação; 4) o grau de ameaça apresentado por um grupo étnico para outro; e 5) a intensidade das crenças preconceituosas. Vamos analisar cada uma dessas causas.

Recursos Relativos

Grupos étnicos possuem diferentes quantidades de recursos - dinheiro, poder, prestígio, qualificações para trabalhar e diplomas. Essas diferenças são, é claro, o resultado de discriminação passada, e assim, uma vez que um grupo está em decadência, é geralmente difícil para seus membros superar os efeitos da discriminação passada - como é o caso a muitxs afro-brasileirxs e índixs nos Brasil hoje. Diferenças de posses de recursos devem-se também a outras causas - por exemplo, a história de uma população étnica em uma outra sociedade e o perfil demográfico daqueles membros que migram para outra sociedade.

Em termos gerais, quanto mais recursos um grupo étnico tem, mais apto ele está para reprimir os efeitos das tentativas discriminatórias por um grupo dominante. Assim, quando xs negrxs vieram para o Brasil como escravxs, tinham poucos recursos para romper com sua continuada escravização, ao passo que hoje muitxs imigrantes asiáticxs e indianxs chegam com dinheiro, qualificações, empresas familiares, associações de crédito entre companheirxs

étnicos, e diplomas que são usados para ter acesso aos recursos de valor, até mesmo diante da discriminação. Ao ser capaz de assegurar o acesso aos recursos - isto é, empregos profissionais e negócios em família bem-sucedidos -, elxs podem eventualmente vir a adquirir outros recursos, tais como habitação em bairros de imigrantes e poder político comunitário (Turner e Bonacich, 1980). Em contraste, aquelxs que têm poucos recursos financeiros, educacionais ou políticos estão menos aptxs para começar este processo de encadeamento de recursos. Muitxs afro-brasileirxs e índixs estão nessa condição de carência de uma base de recurso inicial com a qual superar a herança da discriminação passada bem como a persistência da discriminação sutil, informal do presente.

Identificação

Para ser um alvo de discriminação, você deve ser visível e distinto de alguma forma. Se os membros de um grupo étnico parecem diferentes em termos de características biológicas superficiais, tais como cor da pele e traços faciais, eles são alvos mais fáceis de discriminação. Assim, é mais fácil "mirar" os escuros de pele e os asiáticos do que outros grupos étnicos. Os grupos étnicos brancos no Brasil, por exemplo, tiveram uma grande vantagem sobre outros grupos étnicos porque eles puderam aprender português e misturar-se dentro da população em uma ou duas gerações. Em contrapartida, xs afro-brasileirxs distinguem-se, tornando-se, assim, vítimas fáceis de discriminação.

Características culturais tais como a língua e as crenças religiosas, formas de comportamento e de organização dentro de tipos diferentes de grupos podem também transformar as pessoas em alvos, especialmente se associadas com alguma distinção física. Uma vez que o grupo é a vítima da discriminação, a distinção biológica é mantida devido ao casamento endogâmico e à reprodução, ao mesmo tempo em que os padrões culturais, comportamentais e organizacionais distintos são

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sustentados por altas taxas de interação intragrupal e formação de grupos em bairros específicos e como forma de defesa contra uma sociedade na qual não se sente bem-vindo. O resultado irônico, é claro, são os grupos étnicos permanecerem facilmente identificáveis e, daí, serem alvos de discriminação futura. Esse círculo pode tornar-se verdadeiramente vicioso, especialmente para os grupos étnicos que têm poucos recursos além do seu empenho para repelir as conseqüências da discriminação. Não deveria ser surpreendente, portanto, que os grupos étnicos no Brasil, que são facilmente identificáveis, que perderam a maioria de seus recursos financeiros ou nunca os tiveram, que tiveram sua herança cultural despojada, e que possuem poucas estruturas organizacionais nas quais se refugiar, tenham maior probabilidade de permanecer nesse círculo vicioso.

O Nível e o Tipo de Discriminação

O nível de discriminação tem variado enormemente na história das sociedades humanas, desde o genocídio, em que grupos étnicos foram aniquilados, à expulsão e, quando essas formas extremas de discriminação não são possíveis, através da segregação em uma favela e em um restrito campo de empregos. Xs judias/judeus na Alemanha, xs índixs no continente americano foram vítimas de genocídios. E, mais recentemente, as políticas de "limpeza étnica" dxs sérvixs, na antiga Iugoslávia, são ainda outro exemplo de genocídio em um território. Mais comum, entretanto, é a discriminação que envolve a segregação física e o isolamento econômico de um grupo. Isto só é possível, quando os membros de uma população permanecem "diferentes" e identificáveis.

Um tipo de minoria étnica é a classe mais baixa. Neste caso números desproporcionais de uma população estão isolados em favelas e pressionados nos serviços menos pagos, de tal forma que estão nas classes pobres de uma sociedade - como se nota na sociedade brasileira. Outro fato da minoria étnica criado pela discriminação é a minoria intermediária, em que os membros são segregados, mas, ao mesmo tempo, possibilitados de ocupar uma estreita cadeia de posições econômicas empresariais e profissionais que lhes dão alguma riqueza.

No Brasil, a desigualdade social das "minorias" étnicas, de gênero e idade não está apenas circunscrita pelas relações econômicas, mas também pela discriminação que reforça processo de empobrecimento. Ultimamente, há um movimento gerado nas entranhas da sociedade para diminuir ou suavizar as relações preconceituosas contra a mulher, a criança, x idosx e x negrx. Suas conquistas estão demarcadas nas legislações sociais, a partir da Constituição de 1988.

O que determina que tipo de minoria um grupo étnico se tornará? Uma importante condição são os recursos - dinheiro, tecnologia empresarial, diplomas - que uma população pode ter. Quando os grupos étnicos têm alguns recursos, eles podem mais prontamente transformar-se em minorias intermediárias e desfrutar de um estilo de vida mais classe média. Mas os recursos não são o único fator; outro é o tamanho absoluto de uma população étnica. Uma minoria com recursos pode mais facilmente encontrar nichos intermediários do que uma grande, pela simples razão de que não há posições de pequenos negócios suficientes para uma população grande. Uma grande população étnica, portanto, será empurrada para classes mais baixas, especialmente se seus recursos forem limitados e, como conseqüência, suas possibilidades para repelir a discriminação forem menores. Xs negrxs têm sofrido esse fato: elxs são um grupo grande demais para ocupar o espaço de uma minoria intermediária, e têm recursos insuficientes para superar a discriminação (Turner e Bonacich, 1980). Na realidade, o que freqüentemente acontece é que os membros de uma grande minoria que pode dispor de recursos, isto é, diplomas, transferem-se para a classe média, deixando para trás seus companheiros étnicos.

Grau de Ameaça

Grande ou pequeno, por que um grupo se daria ao trabalho de discriminar? Os indivíduos são apenas brutos que não gostam de pessoas que parecem e agem diferentemente? Parte da resposta a essa segunda pergunta pode ser sim, mas uma parte mais significante é que a discriminação é alimentada por medos reais ou imaginários. Se um grupo étnico se vir ameaçado por outro, ele discriminará. A base da ameaça pode variar - perda de empregos ou dos altos salários porque

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xs outrxs trabalharão por menos, perda de tradições culturais, perda de poder político, perda de bairros e habitação, e assim por diante. Quando uma população se sente econômica, social e politicamente ameaçada, ela discrimina, e, quanto mais ameaçada se sente, mais intensa e severa é a discriminação.

Crenças Preconceituosas

Quando amedrontadas, as pessoas constroem estereótipos negativos sobre aquelxs que apresentam ou, mais usualmente, são vistxs como se apresentassem uma ameaça (Feagin, 1991). Quanto maior o medo, mais negativos os estereótipos. Xs negrxs brasileirxs, por exemplo, tiveram que suportar estereótipos incrivelmente viciosos tais como: inferiores, infantilizadxs, sexualmente agressivxs e assim por diante.

No Brasil o que se escuta é que "negro parado é suspeito, correndo é culpado". X negrx, x índix, a mulher e xs nordestinxs foram durante muito tempo consideradxs, e em muitos sentidos continuam a ser, infantis, ignorantes, atrasadxs, preguiçosxs, inferiores.

Estereótipos negativos escalam medos, que, por sua vez, justificam uma discriminação mais intensa. Assim, as crenças culturais são uma importante dinâmica porque elas codificam o sentimento de ameaça de um grupo e, ao mesmo tempo, levam adiante esse sentimento de ameaça legitimando atos de discriminação.

Ações Afirmativas(Luiz Fernando Martins da Silva)

Originariamente, as ações afirmativas foram implementadas pelo governo dos Estados Unidos da América, a partir de meados do século XX, mormente com a promulgação das leis dos direitos civis (1964), e atingirem o seu ápice após intensa pressão dos grupos organizados da sociedade civil, especialmente os denominados “movimentos negros”, de variada forma de autuação, capitaneados por lideranças como Martin Luther King e Malcon X, ou grupos radicais como os "Panteras Negras", na luta pelos direitos civis dos afro-

americanos. Daí esse conceito influenciou a Europa, onde tomou o nome de discriminação positiva.

Em função das continuadas reivindicações e concernentes ao princípio moral fundamental da não discriminação, os argumentos jurídicos combinados com o movimento social foram capazes de efetuar profunda mudança nas leis e atitudes norte-americanas. Em 1957, 1960, 1964 e 1965, o Congresso dos EUA promulgou leis dos direitos civis. As ações afirmativas requeriam que os empregadores tomassem medidas para acabar com as práticas discriminatórias da política de pessoal e dali em diante adotar todas as decisões sobre emprego numa base neutra em relação à raça.

Estas medidas incluíam a eliminação do quase nepotismo das redes de recrutamento, a eliminação de qualquer inclinação racial nos testes para emprego, a busca de empregados qualificados tanto em comunidades negras quanto brancas e, de um modo geral, a colocação das oportunidades de emprego e promoção ao alcance dos candidatos negros. Também requeriam que fossem tomadas medidas compensatórias para aqueles contra os quais os empregadores tivessem feito discriminação, por meio da concessão de empregos ou promoções ou ainda indenizações. As políticas de ação afirmativa foram implementadas no âmbito do mercado de trabalho, na educação superior e nos contratos governamentais.

Ellis Cashmore, em seu Dicionário de relações étnicas e raciais, no verbete referente à ação afirmativa, diz que essa “visa ir além da tentativa de garantir igualdade de oportunidades individuais ao tornar crime a discriminação, e tem como beneficiários os membros de grupos que enfrentam preconceitos”.

Joaquim B. Barbosa Gomes, membro do Ministério Público Federal brasileiro, observa que as ações afirmativas “Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade”.

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O filósofo Renato Janine Ribeiro, ao analisar a implementação de cotas no Brasil entende que estas – se as medidas forem temporárias e bem orientadas -, como correção de rota, são "um dos melhores meios, mas não necessariamente o único, ou sequer o melhor em si – apenas o melhor num arsenal de meios não revolucionários".

 O Sistema de Cotas

As cotas são uma segunda etapa das ações afirmativas. Constatada nos EUA a ineficácia dos procedimentos clássicos de combate à discriminação, deu-se início a um processo de alteração conceitual das ações afirmativas, que passou a ser associado à idéia, mais ousada, de realização da igualdade de oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes de minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições educacionais. Data também desse período a vinculação entre ação afirmativa e o alcance de certas metas estatísticas concernentes à presença de negros e mulheres num determinado setor do mercado de trabalho ou numa determinada instituição de ensino.

Mas vale ainda dizer que, além do sistema de cotas, há outras opções que podem ser consideradas para a efetivação das ações afirmativas: o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor privado). De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da tradição brasileira, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico.

Porém, alerta o citado Joaquim B. Barbosa Gomes que falta ao Direito brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo, deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal.

O fato é que o racismo antinegro existente no Brasil foi dissimulado pelo mito da democracia racial, acabando por inviabilizar também o entendimento jurídico do problema. No Brasil, o racismo

desenvolveu-se de modo diferente que em outros lugares, como nos EUA e África do Sul, por exemplo. Está presente nas práticas sociais e nos discursos, mas sem ser reconhecido pelo sistema jurídico e sendo negado pelo discurso não racialista da nacionalidade.

O Estado liberal que se implantaria em decorrência do advento da Independência (1822), garante, a um só tempo, as liberdades individuais dos senhores e das classes dominantes e a continuidade da escravidão. Depois da abolição, em 1888, tal dualidade de tratamento diante da lei estende-se ao sistema de clientelismo e ao colonato, que substituiu a escravidão. Ou seja, as liberdades e os direitos individuais constitucionalmente outorgados não são garantidos na prática social; as práticas de discriminação e de desigualdade de tratamento continuam sendo a regra das relações sociais. Mas, por outro lado, as elites brasileiras tiveram problemas em aceitar integralmente o racismo como doutrina e acabaram por rejeitá-lo por completo, transformando o não racialismo e a miscigenação cultural e biológica em ideais nacionais, que procuram integrar todos os indivíduos no Estado Nação. Em vista disso, xs brancxs, no Brasil, foram definidos da maneira a mais inclusiva possível, de modo a abarcar todos xs mestiçxs mais próximxs das características somáticas européias, e mesmo, no extremo, a incluir todxs que usufruem dos privilégios da cidadania.

A exclusão dx afro-brasileirx tem sido debatida em diversas análises de natureza sociológica e antropológica, e é até mesmo constatável a partir da simples visualização de dados estatísticos (indicadores sócio-econômicos do IPEA, IBGE, PNUD-ONU etc).

Algumas conclusões de relatórios das organizações acima citadas descrevem a clara posição de inferioridade dx afro-brasileirx no mercado de trabalho e na educação. As análises estatísticas das relações raciais no Brasil ratificam o quanto o escravismo influenciou na estratificação social, sobretudo na concentração racial da riqueza.

Por isso, as ações afirmativas e as cotas são dois dos principais meios que podem ser utilizados como instrumentos capazes de propiciar mobilidade social à/ao afro-brasileirx, afim de integrá-lx econômica e socialmente aos demais membros da sociedade inclusiva, sem esquecer outras formas mais fecundas de obter justiça social. Porém, é preciso lembrar que essas propostas deverão vir acompanhadas de outras medidas de cunho social, tais como:

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melhorias na qualidade do ensino público fundamental; políticas de redistribuição de renda; reforma tributária; reforma agrária etc.

Exercícios1) Segundo Turner, em torno do que gira a desigualdade em uma

sociedade?2) Como ocorre a estratificação de classe?3) O grau de estratificação está relacionado ao nível de desigualdade,

à distinção entre as classes em nível de mobilidade entre as classes e à durabilidade das classes.

4) Você é a favor das cotas para estudantes de escolas públicas nas universidades? Por quê?

5) Existem várias propostas para o estudo da estratificação. Aponte 4.6) Defina etnia e estratificação étnica.7) Segundo Turner, qual o embasamento da discriminação e do

preconceito étnico? 8) Pesquise e escreva em seu caderno algumas diferenças entre a

prática do preconceito étnico no Brasil e nos Estados Unidos.9) Você é a favor das cotas para negros na UnB? Por quê?10) Pesquise e escreva a opinião de pelos menos 2 estudiosos sobre as

cotas para negros nas universidades. Um estudioso que argumente contra e um que argumente a favor.

11) Defina gênero e estratificação de gênero.12) Segundo Turner, o que sustenta a estratificação de gênero?13) Você acredita que ainda hoje exista preconceito contra as

mulheres? Por quê?14) O que são ações afirmativas? Para que elas servem? Dê 3

exemplos.15) Dê 1 exemplo de ação afirmativa que você é a favor e um exemplo

que você seja contra. Justifique.16) Escreva um pequeno texto que mostre a relação entre a abolição da

escravidão no Brasil, o racismo e a fome atual.

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