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Desing Para Um Mundo Complexo - RafaelCardoso

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    A multiplicidade de significados A linguagem das formas A persistncia dos artefatos Ciclo de vida do artefato

    CAPTULO 3

    Caiu na rede, pixel:desafios do admirvel mundo virtualA paisagem deslizante da rede A modernidade em redes Informao e navegao.A malha fina da visualidade

    CONCLUSO

    Novos valores para o design (e seu aprendizado)

    Abaixo o ensino! Viva o aprendizado! O designer pensante

    255 Notas

    AgradecimentosUm apelo leitura ( guisa de prefcio)

    INTRODUO

    Os propsitos do design no cenrio atual

    Do mundo real ao mundo complexo Adequao e forma Compresso e complexidade

    CAPTULO 1

    Contexto, memria, identidade:o objeto situado no tempo-espaoA imobilidade das coisasFatores condicionantes do significadoMemria, identidade e design

    CAPTULO 2

    A vida e a fala das formas: significao como processo dinmicoFormas, funes e valoresO que dizem as aparncias

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  • Para Anders Michelsen e Victor Margolin.Thank you both for proving that design is something worth thinking about.

    Our most refined theories, our most elaborate descriptions are but crude and barbarous simplifications of a reality that is, in every smallest sample, infinitely complex.[Aldous Huxley, 1930]

  • AGRADECIMENTOS

    Este livro nasceu de um curso ministrado sucessivamente no Rio de Janeiro (Polo de Pensamento Contemporneo), em So Paulo (Centro Universitrio Maria Antonia/ usp), na Cidade do Mxico (Universidad Autonoma Metropoli- tana-Xochimilco), no Recife (Centro de Design do Recife) e em So Lus (Universidade Federal do Maranho) entre 2007 e 2009. Em cada uma dessas ocasies, seu contedo sofreu transformaes, recebeu acrscimos, perdeu excessos e, de modo geral, foi ganhando em qualidade e fluidez.

    Embora seja impossvel citar todos por nome, preciso agradecer em primeiro lugar aos participantes e alunos, que contriburam de modo essencial para o amadurecimento das reflexes aqui apresentadas. Em especial, devo muito s pessoas de quem partiram os convites, as quais no mediram esforos para viabilizar esses cursos, muitas vezes superando obstculos considerveis. Agradeo a Eucana Ferraz, Tnia Rivitti, Alejandro Tapia, Renata Gamelo e Raquel Gomes Noronha, assim como s suas respectivas equipes de trabalho. Graas ao seu incentivo e empenho, as ideias que constituem o presente volume puderam ser pensadas e discutidas.

    Partes deste livro contaram com a leitura perspicaz de Andr Stolarski e Mauro Pinheiro. Ambos ajudaram na

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    correo de erros e no apuro dos conceitos. Sem sua colaborao, generosa e desinteressada, essas pginas conteriam mais deficincias do que as que ainda conseguiram resistir aos seus bons conselhos. Agradeo tambm as ideias trocadas informalmente com amigos, muitas vezes sem que soubessem que estavam sendo explorados para tal finalidade, bem como as contribuies pontuais de dados ou referncias precisas. Entre outros, cabe citar Alfredo Jefferson de Oliveira, Amador Perez, Baro di Sarno, Beatriz Russo, Fernando Betim Paes Leme, Heleno Bernardi, Joo de Souza Leite, Joaquim Maral Ferreira de Andrade, Julieta Sobral, Lauro Cavalcanti, Marina Boechat, Otoni Mesquita, Rico Lins, Roberto Conduru, Srgio Bruno Martins, Vanessa Espnola, Vera Damzio.

    Nenhum livro se faz sozinho. Desejo agradecer a toda a equipe da Cosac Naify - em especial, Elaine Ramos - por acreditar no projeto e por ajudar a transform-lo em realidade editorial. Estendo esse reconhecimento aos meus colegas de conselho editorial da rea de design, agradecendo a confiana depositada em mim.

    Um agradecimento de todo o corao a Patricia Breves, minha mulher, por conversas e confidncias, apoio e amor, por tudo e mais um pouco.

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  • UM APELO LEITURA ( GUISA DE PREFCIO)

    Este livro no tem prefcio. No que o assunto no merea. mesmo por opo. Vivemos em tempos apressados. As pessoas correm freneticamente de um lado para o outro, realizam ao mesmo tempo mltiplas tarefas, mantm virtualmente centenas de amizades que no do conta de cultivar no dia a dia, acabam por se comunicar por contraes menores do que monosslabos: blz, rsrs, abs. Nesse contexto, quem tem tempo para ler prefcios? Skip intro um dos comandos mais teis do mundo de hoje, visto que devia ser desnecessrio dizer que no h tempo a perder com firulas. Portanto, vamos logo ao assunto, sem mais demora. Antes, porm, peo a licena do estimado leitor para massagear um pouco seu ego.

    S de ter este livro em mos, caro leitor, voc j demonstrou ser uma pessoa fora do comum. No escrevo isto apenas por oportunismo, para induzi-lo a ler mais um pouco e, quem sabe, comprar o livro (por isso tambm, claro), mas antes para constatar uma verdade preocupante.

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    O fato que hoje relativamente poucas pessoas se dispem a ler um livro. Em plena era da informao, o real conhecimento comea a cair em desuso. Por esse simples motivo, o mundo caminha clere para a ignorncia e, da, para o medo, o fanatismo e a destruio dos valores culturais mais importantes dos ltimos sculos. Novos "tempos de grossura (no dizer de Lina Bo Bardi) parecem nos aguardar, logo adiante, e lutar contra isso o dever de toda pessoa que pensa.

    O conflito entre informao demais e conhecimento de menos uma das condies paradoxais dos tempos em que vivemos. Est longe de ser o nico. A medida que o mundo vai ficando mais complexo, parece que as pessoas se dispem cada vez menos a tentar fazer sentido das coisas. Resignar-se com a mediocridade reinante o primeiro passo para a morte da cultura que temos em comum. Fica aqui um apelo, portanto, leitura: ilustre-se, caro leitor, e voc far do mundo um lugar melhor.

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  • Pode algo ser belo para qualquer outro propsito a no ser aquele para o qual belo que seja usado? [Scrates, cerca de 400 anos antes da era crist.]1

    DO "MUNDO REAL AO MUNDO COMPLEXO

    O design nasceu com o firme propsito de pr ordem na baguna do mundo industrial. Entre meados do sculo XVIII e fins do sculo XIX - o perodo que corresponde, grosso modo, ao surgimento do sistema de fbricas em boa parte da Europa e dos Estados Unidos - houve um aumento estonteante da oferta de bens de consumo, combinado com queda concomitante do seu custo, ambos provocados por mudanas de organizao e tecnologia produtivas, sistemas de transporte e distribuio. Nunca antes na histria da humanidade, tantas pessoas haviam tido a oportunidade de comprar tantas coisas. Era a infncia da sociedade de consumo. Para muitos observadores, poca, o processo teria gerado um declnio preocupante da qualidade e da beleza dos produtos. Certa ou errada (o que bem mais provvel), essa percepo serviu de estmulo para a ao. Entraram em campo artistas e arquitetos, reformadores e burocratas, governos, industriais, associaes comerciais e profissionais, museus e

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  • instituies de ensino, com o intuito de melhorar o gosto da populao e a configurao das mercadorias que lhes eram oferecidas. As atividades de projetar e fabricar artefatos, exercidas h muito em relativo silncio, migraram para o centro dos debates polticos, econmicos e sociais.

    Entre 1850 e 1930, aproximadamente, trs geraes de novos profissionais - alguns j apelidados de designers - dedicaram seus esforos imensa tarefa de conformar a estrutura e a aparncia dos artefatos de modo que ficassem mais atraentes e eficientes. Sua meta era nada menos do que reconfigurar o mundo, com conforto e bem-estar para todos. Seu lema era adequao dos objetos ao seu propsito: fitness for purpose, em ingls, ou Zweckmssigkeit, em alemo (as primeiras grandes discusses sobre o tema foram conduzidas em alemo e ingls). Mais ou menos ao final desse perodo, por volta da dcada de 1930, popularizou-se o mote mais conhecido entre ns: a forma segue a funo, frase condensada de um enunciado distante do arquiteto americano Louis Sullivan.2 A viso de que forma e funo seriam o cerne das preocupaes do designer persistiu por bastante tempo. Em mbito internacional, ela comeou a ser questionada na dcada de 1960, paralelamente ao surgimento da contracultura. No Brasil, ela permaneceu dominante at a dcada de 1980, apesar dos esforos de alguns rebeldes. At hoje, perdura o vcio entre designers

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    e arquitetos brasileiros de falar em funcionalidade - termo equivocado em suas premissas, como veremos adiante, no segundo captulo deste livro.

    Para realizar o ideal de adequao ao propsito, preciso ter de antemo uma noo mais ou menos coerente de qual propsito se quer cumprir. O mundo mudou bas- tamte desde a dcada de 1960, e podemos afirmar seguramente que grande parte dos propsitos de hoje j no so os de ento. Nos anos 1960, o paradigma de fabricao industrial ainda era a produo em massa: tudo igual em grandes quantidades para todos. Hoje, a indstria caminha a olhos vistos em direo produo flexvel, com cada vez mais setores buscando segmentar e adaptar seus produtos para atender demanda por diferenciao. Nos anos 1960, o mundo estava dividido entre direita e esquerda, com a democracia liberal acuada pelo comunismo sovitico. Hoje, o liberalismo econmico domina um mundo globalizado, ao ponto paradoxal de poder impor a democracia pela fora, quando do seu interesse. Nos anos 1960, quase no existiam computadores, muito menos internet e toda a cultura digital sustentada por ela. Precisa dizer mais? Talvez falte um ltimo exemplo incontornvel: nos anos 1960, poucas pessoas pensavam em responsabilidade ambiental. Atualmente...

    Quando o designer americano Victor Papanek publicou, em 1971, Design for the Real World [Design para o

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  • mundo real], o paradigma j havia mudado. Esse livro tinha por inteno conclamar os designers a sair do ar condicionado de seus escritrios envidraados e olhar sua volta, projetando solues para o mundo real, que se desintegrava em fome e misria, conflitos raciais e protestos polticos, guerras civis e lutas de independncia, guerras quentes e Guerra Fria, uma corrida armamentista nuclear que ameaava destruir atodos, e uma crise ambiental que se anunciava pela primeira vez por dados oficiais da onu. O captulo inicial do livro, intitulado O que design?, ataca de frente o lema a forma segue a funo:

    Em termos semnticos, todas essas afirmaes desde Horatio Greenough [escultor americano do sculo XIX, que escreveu textos precursores sobre as relaes entre forma e funo dos edifcios] at a Bauhaus alem so desprovidas de sentido. A concepo de que aquilo que funciona bem ter necessariamente uma boa aparncia serviu de desculpa dbil para todo o mobilirio e os utenslios estreis, com cara hospitalar, dos anos 1920 e 1930.

    O polemista prossegue, apontando um conflito entre a chamada esttica da mquina e as necessidades humanas:

    Le style international [estilo internacional] e die neue Sach- lichkeit [nova objetividade] deixaram-nos completamente

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    na mo em matria de valores humanos. A casa como la machine habiter [mquina de morar], de Le Corbusier, e as casas caixote desenvolvidas pelo movimento holands De Stijl refletem uma perverso da esttica e da utilidade.3

    Ao acusar a ausncia de valores humanos no dogma modernista, o proftico Papanek substitua funo social por funcionalidade como centro do seu pensamento sobre design. Como resultado, o livro tornou-se best-seller mundial, e encontra eco at hoje em qualquer discusso sobre design e sustentabilidade. Os projetos de produto citados por Papanek (por exemplo, um aparelho de rdio construdo a partir de lata velha e cera) so facilmente ridicularizados, por conta da evoluo tecnolgica desde os anos 1970.0 fato de haver quem ataque a obra por esse ngulo, inteiramente tangencial discusso proposta, demonstra o quanto ela ainda incomoda.

    O presente livro tem a inteno de retomar a discusso do ponto em que ela foi deixada por Papanek. O ttulo Design para um mundo complexo homenagem e reviso crtica, a um s tempo. O mundo real de Papanek j no o mesmo: sobretudo, porque a exploso do meio digital nos ltimos 25 anos tem transformado de modo profundo a paisagem econmica, poltica, social e cultural. A era da informao chegou para todos - por meio de mudanas essenciais em sistemas de fabricao, distribuio

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  • e finanas - e no somente para quem tem computador pessoal em casa. A medida que o mundo virtual aumenta em abrangncia, a realidade parece desmanchar-se no ar. Em uma palavra, o imaterial passou a ser o fator decisivo em quase todos os domnios, mormente numa rea como o design. No que o mundo real tenha deixado de existir! Os problemas apontados por Papanek, de misria e explorao, violncia e degradao, so mais reais do que nunca. Alis, se examinarmos os dados estatsticos, muitos deles esto piores do que quatro dcadas atrs. Apenas foi acrescentada realidade material uma camada a mais, que tudo envolve e tudo permeia.

    A medicina fornece uma boa analogia para compreender essa situao: conheciam-se as doenas do cncer, desde muito, e era possvel trat-las at certo ponto. Porm, com os avanos em pesquisas genticas das ltimas dcadas, surgiram ferramentas de diagnstico e tratamento que mudaram completamente o panorama do campo e a compreenso da doena. O mesmo ocorre em outras reas, de modo menos perceptvel, mas no menos im- pactante. Atualmente, por meio da imensa disseminao da informao, vem sendo acrescida uma conscincia dos mecanismos invisveis que regem o velho e mau mundo real. Os antigos problemas passam a ser dimensionados de modo mais complexo; e, muitas vezes, descobrimos que os adversrios mais temidos do passado eram apenas ms

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    caras ou figuras de papelo - falsos marcadores de uma paisagem cuja artificialidade se revela de repente, como num filme em que o enquadramento da cmera aberto para mostrar que tudo no passava de cenrio e trucagem.

    Hoje, comea a ser possvel considerar em sua totalidade problemas antes inconcebveis para a mente humana. Outra analogia edificante vem tambm do campo mdico ou, melhor dizendo, da sade pblica: a incrvel virada nas polticas antitabagistas ao longo dos ltimos trinta anos. Enquanto os governos acreditavam que a indstria de tabaco lhes rendia dividendos, por meio dos altos impostos pagos, o antitabagismo ficou restrito a grupos minoritrios da sociedade civil. A partir do momento que os clculos oficiais demonstraram que se gastava mais com o tratamento de fumantes em hospitais pblicos do que se arrecadava com impostos sobre cigarros, a mar poltica virou completamente; hoje, o antitabagismo uma causa abraada pelo setor pblico em muitos pases. Com a disponibilidade de informaes cada vez mais completas e a possibilidade de process-las eficientemente, descobrimos que questes aparentemente simples so mais complexas do que se imaginava.

    Do mesmo modo, clculos de impacto ambiental ou de logstica integrada levam em conta quantidade e variedade estarrecedora de dados. Em termos de impacto ambiental, o que melhor: garrafas retornveis de cerveja

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  • e refrigerantes (cascos) ou as descartveis (one-way)? A primeira vista, a resposta parece bvia. Como os cascos so reutilizados, eles sofrem menos descarte e geram menos lixo. Seriam, portanto, muito menos poluentes. Porm, ao abordar a mesma questo, um engenheiro ambiental perguntar quanto combustvel gasto no transporte. Enquanto as garrafas one-way so transportadas em uma nica direo, da fbrica para o depsito e de l para o ponto de venda, os cascos precisam fazer o caminho de volta, o que implica o dobro de gasto de combustvel. Ser que a economia de vidro compensa o dispndio de combustvel? Depende de vrios fatores, inclusive da distncia transportada e do tipo de combustvel usado. O engenheiro perguntar, em seguida, sobre os mtodos empregados para lavar as garrafas retornveis. Dependendo da quantidade de gua gasta e de detergente vertido no meio ambiente, concebvel que o retornvel acabe imprimindo uma "pegada ambiental mais profunda do que o descartvel. Ou no! Quem quiser a resposta exata, que pergunte a um engenheiro ambiental.

    O primeiro resultado de tanta informao a ansiedade. Poderia ser o mote dos nossos tempos a expresso inglesa, too much information!, empregada coloquialmente para protestar quando algum nos revela algo que no queremos saber. Diante do tamanho do esforo necessrio para dimensionar um problema em toda

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    sua complexidade, qualquer um pode se sentir pequeno. bom que seja assim, pois os designers precisam se libertar do legado profissional que os estimula a trabalharem isoladamente, de modo autoral, como se um bom designer fosse capaz de resolver tudo sozinho. No mundo complexo em que vivemos, as melhores solues costumam vir do trabalho em equipe e em redes. Como veremos adiante, no terceiro captulo, o mundo atual um sistema de redes interligadas; e a maior rede de todas a informao. Ignorar esse fato, ou posicionar-se contra ele de modo reativo, serve apenas para minar qualquer possibilidade de mudar o sistema. Hoje em dia, no h como ser contra o sistema, pois construmos um mundo em que quase nada existe fora do domnio do artificial (no sentido daquilo que oposto ao natural). Poucos anos atrs, um comercial de banco colocava muito-bem o dilema da contemporaneidade ao afirmar: Nos anos 1960, queriam derrubar o sistema. Hoje, o sistema cai um minutinho, e a gente fica revoltado.4

    Uma questo que o excesso de informao torna ines- capvel atende pelo nome de globalizao. A toda hora, ouve-se falar em globalizao, muitas vezes para exigir algum posicionamento a favor ou contra. Do ponto de vista histrico, ser contra a globalizao como ser contra a modernidade, ou o capitalismo, ou o sistema. O fato de algum se opor a essas coisas no quer dizer que elas vo

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  • deixar de existir. Globalizao no algo que aconteceu de vinte ou trinta anos para c; uma transformao que vem se processando de modo gradativo h sculos, mas que s ficou aparente em tempos recentes, quando os dados comearam a ser cruzados.

    No fundo, tudo depende do que entendido pelo termo. Costumamos subsumir na nica palavra globalizao um imenso e emaranhado processo de unificao e consolidao de sistemas - comercial, financeiro, jurdico; de normas tcnicas, transportes, comunicaes; de costumes, aparncias e ideias que o fenmeno mais impactante do mundo moderno. O resultado que a palavra quer dizer tudo e nada, ao mesmo tempo. Quando se fala em globalizao neste livro, a referncia a esse longo processo histrico, que vem ocorrendo com progressiva acelerao desde a poca dos chamados "descobrimentos por navegadores europeus em fins do sculo xv, e no a qualquer um dos agentes ou partidos envolvidos nas lutas polticas atuais. O pano de fundo que rene as partes muito diversas do presente livro essa to falada globalizao, naquilo que ela tange o design, principalmente no que se refere unificao de sistema de fabricao, distribuio e consumo, desde meados do sculo xix. Contudo, no d para reduzir a questo a uma definio simples. Globalizao um assunto complexo, e complexidade o fio da meada que conduzir nossa discusso.

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    A complexidade vem se tornando tema cada vez mais estudado, principalmente nas reas de informtica e computao, teoria da informao e dos sistemas. As definies so muitas, mas a maioria concorda que a complexidade de um sistema est ligada ao grau de dificuldade de prever as inter-relaes potenciais entre suas partes. O presente livro no tem por propsito contribuir para a discusso da complexidade em nvel avanado, pois essa tarefa fica muito alm da capacidade do autor.6 Por complexidade, entende-se aqui um sistema composto de muitos elementos, camadas e estruturas, cujas inter-relaes condicionam e redefinem continuamente o funcionamento do todo. Algo como uma metrpole, que constituda por diversos sistemas interligados e incontveis elementos, numa relao intrincada de vaivm, sobe e desce, criao e destruio contnuas, sem que se saiba onde ela comea ou termina, e sem que ela venha a se extinguir nunca. Embora toda cidade tenha um carter, nenhuma sujeito pensante; e, embora cada uma tenha uma vida, no necessariamente ter de enfrentar a morte. A cidade entidade, microcosmo do mundo complexo que se quer analisar aqui. O verbo analisar pressupe que se aborde o assunto por partes. Voltemos, ento, ao comeo da conversa: o propsito de pr ordem na baguna do mundo industrial e a adequao do design como instrumento para tanto.

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  • ADEQUAO E FORMA

    Conforme se disse, o pensamento sobre design que surgiu da primeira fase da industrializao tinha a adequao ao propsito como regra norteadora para a configurao dos objetos. um belo ideal, pelo menos to antigo quanto o dito de Scrates, citado em epgrafe a esta introduo. A pergunta do grande filsofo mais manhosa do que pode parecer primeira vista. Lendo-a com cuidado, comeamos a dimensionar a profundidade do problema. Scrates no diz que alguma coisa bela porque adequada ao seu propsito, o que equivaleria a dizer que a boa forma aquela sugerida pela funo do objeto. (Essa ideia guiou o chamado pensamento funcionalista, por muitas dcadas.) Antes, ele diz que nada pode ser belo a no ser para o propsito para o qual belo que seja usado - ou seja, aquele propsito para o qual bem adaptado. Caso seja aplicada a outro propsito que no o seu, a coisa deixa de ser bela. Portanto, a nfase da frase recai sobre o uso, e no sobre a forma. Isso muito significativo, pois desloca a discusso dos objetos para as pessoas. Alis, a pergunta socrtica nem versa necessariamente sobre artefatos materiais. Bastante ambguo, o algo da frase pode muito bem se referir a uma fala, a um costume, a um comportamento ou, at mesmo, a uma condio.

    Como o autor do presente livro no possui conhecimento suficiente de filosofia, e muito menos de grego an

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    tigo, para aprofundar a leitura de Scrates, vamos partir para a evoluo mais recente da ideia de adequao ao propsito. Em alemo de hoje, Zweckmssigkeit quer dizer adequao, convenincia, funcionalidade. O termo tem sua origem no livro Crtica da faculdade do juzo (1790), do filsofo Immanuel Kant. Zweck, em alemo, significa propsito, fim, finalidade; e o adjetivo mssig, moderado, mdico, na medida. Literalmente, portanto, Zweckmssigkeit quer dizer a condio de estar na medida do propsito. Tirando proveito da incrvel capacidade da lngua alem de criar novos sentidos a partir da juno de palavras, Kant introduziu como parte de sua discusso do conceito da beleza a ideia de conformidade a fins - ou, traduzido de modo mais preciso, adequao ao propsito.6 O termo foi retomado por outros autores contemporneos que discutiam esttica, como Friedrich Wilhelm Schelling e August Schlegel; e sua aplicao mais especfica arquitetura foi desenvolvida por Karl Friedrich Schinkel, um dos maiores arquitetos europeus do incio do sculo xix. Para Schinkel, adequao ao propsito era 0 princpio bsico de toda construo e o grau de sua expresso material definia o valor artstico de um edifcio.7

    Vamos pensar melhor sobre essa ltima ideia. Como assim, grau de expresso material? Adequao ao propsito um conceito abstrato, algo compreendido pela

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  • mente. possvel que os conceitos encontrem expresso material: ou seja, que possam ser percebidos pelos sentidos fsicos, como viso, audio, tato? Examinemos alguns exemplos. Temos o costume de dizer que uma roupa elegante, que um carro luxuoso, que um prdio imponente. Nesses exemplos, estamos claramente atribuindo valores conceituais ao objeto a partir da associao com seus usos e usurios ou a partir da comparao com outros artefatos da mesma categoria. Atribumos uma qualidade ao objeto que, no fundo, no deriva dele, mas de nosso repertrio cultural e pressupostos. A prova dos nove est no fato de que, com a passagem do tempo, a mesma roupa elegante pode passar a ser percebida como cafona; o carro luxuoso, como pobre; o prdio imponente, como decadente. De modo bastante diverso, podemos dizer que o cabo de um martelo encaixa bem na mo, que um ambiente aconchegante, que a mancha de texto de uma pgina agradvel vista. Tais atribuies de valor remetem a experincias corporais e tendem, por conseguinte, a permanecer estveis no tempo. Elas derivam no de processos de associao e comparao, mas da sensao fsica de conforto e bem-estar, que advm do uso e no passa necessariamente por qualquer tipo de reflexo. Valores desse tipo podem ser medidos e avaliados, de modo mais ou menos acertado, num laboratrio de ergonomia.8

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    Os conceitos so passveis de expresso material, mas em graus variveis. Quanto mais simples e direto o conceito - ou seja, quanto mais enraizado estiver numa experincia emocional clara - maior ser a facilidade de compreend-lo. Diferentemente de bom, gostoso ou

    aconchegante, todavia, adequao ao propsito um conceito bem complexo. De que maneira possvel olhar para um artefato e afirmar que ele adequado ao propsito? Isso no seria um juzo que depende, necessariamente, de usar o objeto, de test-lo em diversas situaes ao longo do tempo? No entanto, quase toda a discusso sobre a funcionalidade no sculo XX partiu da premissa oculta de que se pode julgar a adequao do objeto apenas ao examin-lo com o olhar. Para os designers ligados ao movimento funcionalista, bastava um rpido olhar (muito rpido mesmo, no caso dos seguidores da teoria da Gestalt) para determinar se um objeto era ou no funcional. Tal qual a mulher de Jlio Csar na clebre mxima, ao objeto funcionalista no bastava ser funcional, devia parecer funcional. Muitos artefatos do sculo XIX que funcionavam bem eram rejeitados pelos funcionalistas por serem ornamentados. Ao longo do perodo modernista, prevaleceu a ideia, inteiramente desprovida de fundamento, de que ornamento se contrape a funcionalidade.9

    A ideia de que a aparncia, ou a configurao visual, de um artefato seja capaz de expressar conceitos complexos

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  • como, por exemplo, sua adequao a um determinado propsito uma das grandes questes permanentes do design, da arquitetura e da arte. Olhamos para uma mesa e asseveramos que ela slida ou, com inteno quase idntica, que ela tem solidez. Que ela slida, e no lquida ou gasosa, evidente. No disso que estamos falando. Em um nvel, trata-se de uma suposio de que ela seja bem construda: slida, no sentido de no ser frgil. Em outro nvel, contudo, quando nos referimos solidez da mesa, expomos tambm um juzo de valor. E tambm a uma solidez moral que fazemos referncia, do mesmo modo metafrico que falamos da solidez de uma empresa ou do carter de uma pessoa. A pergunta : como se opera esse processo de transpor qualidades perceptveis visualmente para juzos conceituais de valor? Formulada de maneira mais simples, porm mais passvel de gerar interpretaes confusas: de que modo as formas expressam significados? No por ser questo de difcil resposta que devemos descart-la, pois seu dimensionamento muito importante para compreendermos o papel do design no mundo. Insistamos, mesmo que a resposta seja parcial, mesmo que no exista resposta, mesmo que seja apenas para formularmos melhor as perguntas.10

    A no ser que se tenha uma definio muito precisa daquilo que se entende por forma, um enunciado como a forma segue a funo no quer dizer nada. Nas discus

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    ses desse tema em Lngua Portuguesa, grande o perigo de tropear na multiplicidade de significados contidos na palavra forma. E um termo escorregadio em muitos idiomas, e com boa razo; porm, nas lnguas latinas, ele possui uma falta de especificidade especialmente problemtica. Entre ns, no h o costume de distinguir o aspecto da

    forma - referente aparncia e superfcie - daquele que se refere volumetria e ao contorno (o qual, em ingls, corresponderia palavra shape). Os equivalentes mais prximos em portugus seriam configurao, palavra tambm ambgua, e vulto, raramente empregada com esse sentido. Para avanar na discusso da forma, preciso desmembrar o termo e considerar seus significados um a um. Claramente, forma abrange pel menos trs aspectos interligados, que possuem diferenas importantes entre si: l) aparncia: o aspecto perceptvel por uma visada ou olhar; 2) configurao: no sentido composicional, de arranjo das partes; 3) estrutura: referente dimenso construtiva ou constitutiva. Os trs aspectos se entrelaam e formam um conjunto inseparvel, mas que no pode ser apreciado plenamente de um nico ponto de vista. Para compreender a forma, precisamos dar algumas voltas.

    Faamos o exerccio de imaginar um artefato qualquer. Agora, como se faz para transmitir a compreenso perfeita de sua forma apenas pela viso? Em se tratando de um objeto com o qual o espectador j tenha familia

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  • ridade - digamos, por exemplo, uma caneca - basta uma fotografia. O resto, ele completa a partir da experincia prvia com outros objetos da mesma categoria. Mas, e se o objeto desconhecido e peculiar? E se, para aumentar o desafio, um objeto grande ou complexo demais para caber numa nica fotografia? Digamos, por exemplo, que um arquiteto esteja diante do Taj Mahal, na ndia, e queira explicar a forma do edifcio para seu scio no Brasil. Pelo sistema mais consagrado de representao tcnica pelo desenho - a projeo ortogrfica - sero necessrias pelo menos trs imagens para traduzir plenamente aquilo que resumimos na palavra forma. A elevao (vista de frente) suficiente para dar ao observador uma ideia da aparncia do objeto em questo. Com o acrscimo da planta (vista de cima), ele passa a dimensionar o arranjo interno do objeto arquitetnico. Juntando a essas duas o corte (vista lateral), o observador ter uma noo total do objeto. Na verdade, mais ou menos completa, porque existem ainda outros aspectos da forma, tais quais cor e textura, escala e tamanho, posio e contexto, sentido espacial e de movimento, que s podem ser compreendidos por experincia direta, ou ento pelo adendo de outros meios de representao.

    Essa compreenso complexa de forma, como algo de dimenses mltiplas e interdependentes, torna possvel uma discusso mais precisa de como uma forma

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    poderia traduzir o conceito de adequao ao propsito. Voltemos ao arquiteto Schinkel, e seu entendimento de Zweckmssigkeit. Para algum interessado em investigar os princpios da arquitetura grega antiga, como ele, fazia total sentido pensar na expresso material da adequao ao propsito. A gerao de arquitetos de que ele fez parte, os chamados neoclssicos, buscava inspirao na Antiguidade greco-romana e enxergava nas formas de suas construes qualidades de fora, harmonia e beleza. Atribuam essas qualidades aos princpios construtivos que podiam ser depreendidos da aparncia e da estrutura dos edifcios, tais quais: propores regulares, repetio de volumes geomtricos, simetria, subordinao do detalhe ao todo, e assim por diante. Para eles, era evidente que a questo girava em torno da relao da aparncia externa com a estrutura interna. Forma seria o resultado de uma tenso entre interno e externo, construo e expresso. A boa forma seria aquela que conseguisse externar, de modo feliz e harmnico, o significado interior, o qual derivava de premissas que podiam ser concebidas, mas no vistas. Schinkel caracterizou como tectnica a dinmica dessa inter-relao.11

    O termo tectnica foi mais elaborado, em seguida, por Karl Btticher, um discpulo de Schinkel, que desenvolveu o conceito como teoria. Segundo sua concepo, expressa inicialmente em 1844, a noo de tectnica se

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  • ria til para explicar a relao entre a forma essencial do edifcio (Kernform, ou literalmente, forma-gro) e sua forma artstica (Kunstform). O primeiro termo, Kernform, referia-se a algo invisvel, forma interior e oculta do objeto. O segundo termo, Kunstform, remetia sua aparncia externa. A palavra tectnica exprimiria a tenso dialtica entre esses dois aspectos da forma, referindo-se ao modo como a aparncia traduz a essncia.12 Para Btticher, as formas deviam obedecer ao material e estrutura e, ao mesmo tempo, demonstrar seu sistema e sua operao. Poucos anos depois, outro arquiteto alemo, Gottfried Semper, refinou ainda mais a noo de tectnica, empurrando-a para o centro dos debates sobre arquitetura em seu livro Der Stil in den technischen und tektonischen Knsten [O estilo nas artes tcnicas e tectnicas], de 1860. Para Semper, cada tipo de material demandava tcnicas especficas (por exemplo, modelagem para a cermica, carpintaria para a madeira, tecelagem para as fibras); e as formas finais seriam a expresso de como a tcnica incide sobre o material. Embora Semper tenha partido de termos ligeiramente diferentes dos de Btticher - Werkform (forma operacional) e Kunstform (forma artstica) -, a palavra

    tectnica continuava a ser empregada para explicar a dinmica dialtica do processo de significao formal.13

    A importncia do conceito de tectnica reside exatamente naquilo em que ele desloca a discusso da forma

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    em si, esttica, para sua capacidade de expressar qualidades dinmicas, enraizadas em processos. Forma no um quantum estvel, eterno e inaltervel desde sempre, mas o fruto de uma transformao. Quando se compreende a lgica segundo a qual as formas so constitudas, compreende-se tambm que elas so passveis de mudana e de adquirirem novos significados. No caso dos edifcios, por exemplo, a tenso entre estrutura e aparncia constante. Quando se preserva a fachada de um prdio antigo, mas altera-se completamente sua planta e sua disposio interior, a forma continua a mesma? Por meio do uso e do envelhecimento, os objetos arquitetnicos sofrem frequentemente transformaes importantes. O que ontem era banco, hoje virou centro cultural; o cinema vira igreja, e assim por diante. E claro que a mudana de uso no altera a forma, forosamente. Mas, ser que a forma do edifcio continua a expressar os mesmos significados, independentemente de seu uso? Em alguns casos, o edifcio que simbolizava modernidade, meio sculo atrs, hoje uma velharia em runas; enquanto uma modesta casa de famlia de cem anos atrs hoje valorizada como patrimnio histrico. Deixemos para aprofundar essa questo mais adiante, no primeiro captulo.

    As formas dos artefatos no possuem um significado fixo, mas antes so expressivas de um processo de significao - ou seja, a troca entre aquilo que est embutido em

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  • sua materialidade e aquilo que pode ser depreendido delas por nossa experincia. Por um lado, as formas concretizam os conceitos por trs de sua criao. Para empregar um termo corrente hoje, os artefatos obedecem a uma

    lgica construtiva, a qual a soma das ideias contidas em seu projeto com seus materiais e condies de fabricao. Por outro lado, formas e artefatos so passveis de adaptao pelo uso e sujeitos a mudanas de percepo pelo juzo. Quando um garfo antigo de prata entortado e soldado nas pontas para fazer uma pulseira, algo importante ocorre em termos de significao. Embora ele no deixe de ser reconhecvel como garfo, ele j no serve para seu uso original e nunca mais ser visto como apenas um talher. Se o processo envolve alguma distoro maior de sua configurao (por exemplo, alisamento da superfcie), e no apenas de sua estrutura (a ao de en- tort-lo, no caso), a descaracterizao formal poder ser ainda mais drstica. Tais transformaes e usos hbridos so extremamente reveladores da natureza profunda da relao entre forma e significado. Consideraremos isso mais detidamente no segundo captulo.

    O que muitas vezes nos escapa, por conta da relativa brevidade de nossa existncia humana, o quanto os artefatos se transformam no tempo e, o que ainda mais difcil de dimensionar, o quanto os tempos mudam. Quando a pintura mural da Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, ter

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    minou de ser restaurada em 1999, aps 21 anos de trabalho, surgiu uma controvrsia internacional com relao interveno realizada. Segundo alguns especialistas, as cores e as formas teriam sido gravemente alteradas pelos restauradores, prejudicando a apreenso correta da obra. Os restauradores, por sua vez, contestaram isso, alegando terem devolvido a pintura a algo prximo ao seu estado original. Considerando que o artista concluiu o trabalho em 1498 e que, nos quinhentos e poucos anos desde ento, o local sofreu infiltraes, invases e at bombardeio, e que a pintura fora sujeitada a pelo menos trs restauraes anteriores, fica muito difcil determinar qual teria sido sua aparncia primitiva. Mesmo que a conhecssemos, por meio de algum registro paralelo (no caso, existem cpias contemporneas), ser que teramos a capacidade de compreender exatamente o que o artista quis dizer quando a pintou? Ser que teramos olhos para ver o que os espectadores viram poca? A melhor resposta que temos, em termos histricos, no. O olhar tambm sujeito a transformaes no tempo, e aquilo que depreendemos do objeto visto necessariamente condicionado pelas premissas de quem enxerga e de como se d a situao do ato de ver. Ou seja, o olhar uma construo social e cultural, circunscrito pela especificidade histrica do seu contexto.14

    Por tudo que se pode observar e deduzir sobre a histria do olhar, recuperar o modo de ver de outra poca

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  • tarefa das mais difceis. Os tempos mudam, e muda com eles o significado das coisas que parecem fixas. No mundo de hoje, onde o tempo parece andar cada vez mais depressa, os significados ficam ainda menos estveis. Determinar o significado de um artefato atualmente tarefa to escorregadia quanto atirar numa lebre correndo em zigue-zague a partir de um carro desgovernado que transita por uma ponte mvel. O tiro certeiro depende do clculo preciso e instantneo de todas as foras, velocidades e movimentos. Se essa comparao parece remeter ao mundo dos desenhos animados e dos videogames, no toa. A abrangncia crescente do mundo virtual e seu impacto sobre a visualidade - por meio de processos de manipulao, simulao e emulao - tende a redefinir todos os parmetros para a discusso da forma. sobre este admirvel mundo novo, e ainda relativamente desconhecido, que ir versar o terceiro captulo deste livro.

    COMPRESSO E COMPLEXIDADE

    Nos ltimos cinquenta anos, vm ocorrendo mudanas importantes na maneira como experimentamos tempo e espao. Escrevendo em 1989, o gegrafo britnico David Harvey props a noo de uma compresso do tempo-

    -espao que estaria afetando as percepes culturais desde os anos 1960, constituindo abase daquilo que ele batizou de condio ps-moderna.15 Dentre as caractersti

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    cas mais marcantes dessa compresso estaria a perturbao de uma srie de relaes de significado antes consideradas estveis. Quando Harvey escreveu esse texto, possvel que ele o tenha feito com uma mquina de escrever. Na melhor das hipteses tecnolgicas, ele o digitou em computador pessoal operaeionalizado por uma das duas ento novas plataformas amigveis, ou seja, providas de interface grfica: o sistema Mac OS, introduzido em 1984, ou seu concorrente Windows, de 1985. possvel que seu computador ainda no possusse nem HD, operando a partir da insero contnua de muitos disquetes. E certo que ele no dispunha de acesso a internet. No ano em que o livro foi publicado, inventava-se a world wide web (www), face pblica da internet, cujo uso s viria a se tornar corrente cinco ou seis anos depois.

    Se em 1989, ano da queda do Muro de Berlim e da introduo da www, a tal compresso tempo-espao j era um fenmeno identificvel, o que se pode dizer dos vinte e poucos anos desde ento? As pessoas que nasceram aps essa data cresceram acostumadas a fazer muitas coisas ao mesmo tempo (o chamado multitasking) e a participar de vrios fruns simultaneamente (por meio datelepresena). Se eu falo ao celular (a segunda gerao de telefonia mvel, digital, foi introduzida em 1991) com um amigo na mesma cidade, enquanto digito uma mensagem eletrnica para outro amigo do outro lado do mundo,

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  • provvel que as duas comunicaes decorram mais ou menos dentro do mesmo parmetro de instantaneidade. O que no impede que eu fique impaciente se algo der errado. Posso fotografar um incidente com meu celular e, usando o mesmo aparelho, postar a imagem na rede quase imediatamente. A possibilidade de realizar transies muito rpidas entre material e imaterial um dos fenmenos mais marcantes da atualidade. Em alguns casos, a agilidade com que o imaterial pode ser capturado e transmitido torna suprflua sua materializao. o caso das fotografias digitais, que so cada vez mais clicadas, porm menos impressas.

    Qual o impacto dessas transformaes mltiplas e rpidas sobre um campo como o design, tradicionalmente pautado pela fabricao de artefatos materiais? Entra em questo a relao entre materialidade e imaterialidade, coisa e no coisa.16 No deixa de ser um desdobramento previsvel da velha ciso entre forma e informao, dobradinha reconhecida nos meios de design h muitas dcadas. Afinal, um dos primeiros escritrios de design no Brasil chamava-se, justamente, forminform (com f minsculo, e sem espao), o que demonstra o quanto o con- tinuum entre coisa e no coisa sempre foi questo preponderante para quem pensa o objeto em sua dimenso industrial. E curioso observar que, no exato momento em que alguns artistas brasileiros teorizavam o no objeto,

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    no final dos anos 1950, em funo da arte concreta, os debates sobre design passavam para uma esfera de ao organizada pela sociedade civil. Ainda falta analisar com profundidade esse momento histrico, e os muitos desdobramentos de um radical questionamento conceituai da forma que redundou, paradoxalmente, num formalismo que at hoje enreda muitas manifestaes de arte, design e at poesia.17

    Talvez a principal lio para o design - plenamente recebida e assimilada na prtica dos designers brasileiros nos ltimos vinte anos - seja a de que no existem receitas formais capazes de equacionar os desafios da atualidade. No so determinados esquemas de cores e fontes, propores e diagramas, e muito menos encan- taes como a forma segue a funo, que resolvero os imensos desafios do mundo complexo em que estamos inseridos. Seria cmico sugerir, ao projetar um eletrodomstico, que despoj-lo de ornamento mais importante do que minimizar seu impacto ambiental. Seria cruel, quase obsceno, propor que arejar a mancha de texto de uma pgina uma boa maneira de tornar a leitura mais acessvel, num pas onde no se l por opo e falta de opo. Parecem caricaturas maldosas, exageradas a ponto de se tornarem irrelevantes, mas estas so afirmaes no muito distantes de um raciocnio que ainda prevalece em muitas faculdades de design. A concluso deste

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  • livro traz algumas consideraes sobre o ensino, fundamentadas em anos de prtica pedaggica e passagens por diversas escolas que pretendem formar designers no Brasil. Precisamos urgentemente rever nosso ensino de design, para que ele recupere um pouco do atraso considervel que o separa do meio profissional, do mercado de trabalho, das indstrias e das reais condies de vida em nosso pas. Diferentemente de meio sculo atrs, quando as novas escolas de design se propunham a ser laboratrio de inovao e pensamento, a universidade hoje o elo mais fraco da complexa cadeia produtiva de design.

    Resumindo o cenrio atual, pode-se dizer que as perspectivas so boas porque os desafios so enormes. H trabalho, e muito, para quem tiver disposio e imaginao para se lanar a novas empreitadas. Primeiro passo: abdicar da premissa de que os problemas so simples. Se voc tem uma resposta pronta, provvel que no tenha entendido direito a pergunta. Aprofundar a anlise do problema, antes de propor solues, uma velha e boa mxima das metodologias de projeto que ainda retm toda a sua validade. Segundo passo: abdicar da premissa de que os problemas so insolveis. Uma das grandes vantagens de reconhecer a complexidade do mundo compreender que todas as partes so interligadas. Sendo assim, as aes de cada um juntam-se s aes de outros para formar movimentos que esto alm da capacidade

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    individual de qualquer uma de suas partes componentes. No responsabilidade dos designers salvar o mundo, como clamavam as vozes profticas dos anos i960 e 1970, at porque a crescente complexidade dos problemas demanda solues coletivas. De todo modo, ningum sabe exatamente o que quer dizer salvar o mundo hoje em dia. Caso voc tenha a resposta pronta, volte para o primeiro passo, acima.

    Reconhecer a complexidade do sistema j um grande avano. Se todos adquirirem alguma conscincia do tamanho e do intricado das relaes que regem o mundo hoje, ser possvel caminhar coletivamente em direo a um objetivo, seja qual for. O grande inimigo sempre a ignorncia, e as ideias preconcebidas que derivam da falta de exerccio do pensamento. Enquanto uns separam vidros e latinhas para reciclar, outros despejam toneladas de esgoto ao mar - isto, numa mesma cidade, quando no no mesmo bairro ou condomnio. Enquanto uns se recusam a comer carne, por estima vida em todas as suas formas, outros despejam toneladas de explosivos sobre populaes inteiras - isto, muitas vezes, com origem num mesmo pas ou cultura. Enquanto uns negociam aumentos salariais ou reduo da jornada de trabalho, outros empregam multides de trabalhadores em regime de quase escravido, do outro lado do planeta, para suprir o apetite insacivel por mercadorias baratas. So compa-

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  • raes injustas? Conexes despropositadas? Em termos histricos, o grande trabalho do design tem sido ajustar conexes entre coisas que antes eram desconexas. Hoje, chamamos isso de projetar interfaces. Trata-se, contudo, de um processo bem maior e mais abrangente do que imagina o projetista sentado sua estao de trabalho. A parte de cada um entender sua parte no todo.

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  • Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas so elas mesmas e no outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relao a elas. [Mareei Proust, Em busca do tempo perdido, 1913 .]1S

    A IMOBILIDADE DAS COISAS

    Temos o costume de dividir os artefatos em duas categorias: mveis e imveis. Essa diviso, aceita a ponto de nem pararmos para pensar nela, est na base da separao que o senso comum faz entre arquitetura e design, entre outras coisas. Mas, ser que existem mesmo objetos imveis?

    (Repare que no estamos falando de objetos naturais. E bom introduzir logo a distino entre objeto e artefato, que ser importante ao longo deste livro. Uma montanha, uma pedra ou uma rvore so objetos, mas no artefatos. Artefato um objeto feito pela incidncia da ao humana sobre a matria-prima: em outras palavras, por meio da fabricao. Sua raiz etimolgica est no latim artefac- tus, feito com arte; e ela est na origem do termo artificial, ou seja: tudo aquilo que no natural.)

    Feito o parntese, voltemos pergunta, devidamente reformulada: ser que existem mesmo artefatos imveis?

    Pelo senso comum em que se emprega o termo, claro que existem! E s abrir o jornal aos domingos e ver os

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  • classificados anunciando centenas de imveis para vender e alugar. No resta dvida de que tais imveis diferem, no sentido econmico, de outros bens, chamados mveis. E igualmente evidente que um imvel dificilmente deslocado do seu lugar, fisicamente. Embora seja at possvel transportar uma casa ou alguns edifcios de um ponto para outro, isso to inesperado que representa aquele tipo clebre de exceo que confirma a regra. Porm, vamos considerar a questo de modo menos literal e menos restrito. Mesmo que aceitemos que os imveis so geralmente fixos no espao, ser que eles detm a mesma imobilidade no tempo? Ou seja, ser que existem artefatos que permanecem estveis, inclumes, diante da passagem dos anos? De imediato, vm mente construes muito antigas, como as pirmides do Egito ou as muitas runas de civilizaes passadas. por a mesmo que precisamos pensar. Se quisermos questionar a imobilidade dos artefatos, bom que comecemos por aqueles que permanecem h mais tempo entre ns.

    No caso brasileiro, um imvel bem antigo a construo conhecida hoje como os Arcos da Lapa. Famoso carto-postal do Rio de Janeiro, os Arcos foram construdos por volta de 1740 para levarem gua de sua fonte na Mata Atlntica, no bairro conhecido como Silvestre, at o atual Largo da Carioca, no velho centro da cidade. L, a gua desembocava em uma grande estrutura, hoje des

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    truda: um chafariz com dezesseis bicas para abastecer as necessidades da populao. Originalmente, portanto, os Arcos foram concebidos como aqueduto. Como sabe qualquer pessoa que j visitou o Rio, hoje servem como viaduto - caminho para o pitoresco bondinho que conduz seus passageiros para o bairro de Santa Teresa, passando por cima dos Arcos. De aqueduto para viaduto: uma mudana e tanto de funo! Essa transio ocorreu no ano de 1896, quando a antiga estrutura do aqueduto, cado em desuso, foi aproveitada para colocar os trilhos do ento novssimo bonde eltrico.

    Muito bem, argumentaro os recalcitrantes: o artefato foi desviado de sua funo original, mas nem por isso deixou de ser o que era. Chame-se ele de aqueduto ou viaduto, continua a ser a mesma estrutura de pedra e cal, com as mesmas propriedades fsicas e linhas construtivas. Conforme a famosa frase de Shakespeare, em Romeu e Julieta:

    se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume. A rosa e o perfume, talvez. Quanto ao texto de Shakespeare (mal transposto do ingls elisabetano para o portugus moderno), os Arcos da Lapa e todos os outros objetos mediados por qualquer sistema simblico certamente que no! No caso, a mudana de nome indicativa de uma transformao mais profunda, que afeta at mesmo a estrutura de pedra e cal. Tudo aquilo que parece, aos nossos sentidos, slido e imutvel - como as construes

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  • muito antigas, por exemplo - quase sempre desmancha nos ares do tempo. Mostre-me um edifcio novo, diz o historiador, e eu lhe mostrarei o princpio de uma runa.

    Detemo-nos mais um pouco sobre o exemplo dos Arcos da Lapa, bastante instrutivo. O que podemos descobrir sobre esse artefato, somente pelo olhar? Quem se posta diante dele, e toma distncia para observ-lo por inteiro, depreende certas concluses inescapveis: grande, imponente, slido, regular em suas propores. Tais qualidades podem parecer permanentes, imutveis; contudo, seria to surpreendente assim descobrir que no o so? Basta investigar um pouquinho a histria dos Arcos para saber que todas as qualidades aqui citadas so relativas. E grande? Pois saiba que j foi maior. Tanto no sentido concreto - uma pequena parte da estrutura original foi demolida pelas sucessivas reformas urbanas que levaram ao desmonte do Morro de Santo Antnio e construo do viaduto rodovirio vizinho - quanto no sentido figurado - a construo de vrios prdios muito altos no entorno do monumento acabou por apequenar os Arcos. E imponente? J o foi bem mais, ao longo dos sculos distantes em que reinou absoluto como maior edificao da cidade. J o foi menos, tambm, durante o perodo em que se viu engolido, praticamente, pelo bairro da Lapa que cresceu ao seu redor. Durante a maior parte dos sculos xix e XX, nem sequer era possvel postar-se

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  • diante do monumento e observ-lo por inteiro, por conta do grande nmero de edifcios que se aglomeravam ao seu redor, de ambos os lados.

    At ai, tudo bem, ainda insistiro alguns. Grande e imponente so juzos relativos, que s existem por comparao. E quanto s qualidades fsicas do artefato? No h dvida de que ele seja slido e regular. Ser que no? Talvez surpreenda saber que as duas fileiras de arcadas, uma encimando ordeiramente a outra, deram lugar a dois imensos arcos, abertos respectivamente nos sculos XIX e XX para acomodar a passagem de ruas mais largas. A existncia desses arcos maiores, durante dcadas, pe em questo a percepo que temos da solidez e da regularidade do monumento. No mnimo, essas intervenes ocorridas relativizam a impresso de permanncia. O fato de que, hoje restaurado, ele tenha alguma semelhana com sua feio original no anula as transformaes sofridas. Mudar de volta , mesmo assim, mudar. Alis, este o dilema mais profundo do campo da conservao-restaurao: a plena conscincia de que o passado no se recupera.

    Quando falamos na feio original dos Arcos, referimo-nos exatamente a qu? Ningum que vivo hoje pde observar o local cem ou duzentos ou trezentos anos atrs. Os mais velhos entre ns talvez se recordem dos Arcos como eles aparecem na capa do disco O famoso Trio de Ouro, de 1955, onde ainda se v um dos grandes arcos, pos-

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  • teriormente restaurado. Na memria dessas pessoas, a feio original dos Arcos era essa, diferente da aparncia atual. Ser que podemos qualificar como original aquilo que apenas uma etapa transitria de um longo processo de existncia? Certamente que no. Precisamos recorrer ento aos historiadores, e estes recorrem, por sua vez, s fontes histricas - evidncias e vestgios capazes de nos informar sobre aquilo que no tivemos ocasio de presenciar. Por meio da pesquisa, reza o senso comum, podemos chegar a um consenso sobre como teriam sido os Arcos em seu momento de origem. At certo ponto, isso verdade. Sobretudo, quando se enfatiza a importncia da palavra consenso. O problema que as fontes histricas so diversas, dispersas e precisam ser encontradas, compiladas e interpretadas. No um processo simples ou autoe- vidente; e s quem entende muito pouco do assunto acha que a histria algo conclusivo ou irrefutvel.

    Vamos s fontes. Sabe-se, a partir dos documentos escritos, que os Arcos de hoje nem sequer correspondem construo inicial. Um primeiro aqueduto, inaugurado sob o governo de Ayres de Saldanha (1719-25), teria seguido traado um pouco diferente, mas foi rapidamente suplantado pela estrutura que ainda sobrevive, inaugurada sob o governo de Gomes Freire de Andrade (1733-63). Em matria de fontes visuais, uma das imagens mais antigas de que temos conhecimento o quadro hoje nomeado

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  • Vista da Lagoa do Boqueiro e do aqueduto de Santa Teresa ( direita), provavelmente de autoria de Leandro Joaquim e pintado por volta de 1790.19 Considerando-o um documento visual produzido por um artista contemporneo poca da construo original, podemos tom-lo como ponto de partida para analisar as muitas diferenas entre o artefato que conhecemos e as transformaes pelas quais passou. Comparada a uma fotografia atual, a imagem traz duas informaes surpreendentes relativas s caractersticas fsicas dos Arcos. A primeira a confirmao de que o traado, as propores e a volumetria atuais correspondem, grosso modo, ao que aparece no quadro antigo. A segunda que os Arcos no necessariamente foram sempre de cor branca. Comea o jogo dos sete erros.

    Ser que os Arcos eram marrons originalmente? Ser que podemos confiar no quadro como fonte de informao? Afinal, o pintor pode ter optado pela cor marrom por motivos outros alm da preciso topogrfica. Digamos, por exemplo, que seu compromisso maior fosse com o equilbrio cromtico da composio. Para sanar esse tipo de dvida, os historiadores costumam recorrer comparao entre fontes de uma mesma poca, Outra imagem bem antiga dos Arcos uma aquarela do ingls William Alexander, The Aqueduct at Rio de Janeiro, de 1792, no qual o monumento aparece com cor acinzentada. Em seguida, essa aquarela foi usada como

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  • modelo para uma gravura em que o aqueduto representado branco, a qual saiu publicada em livro em 1806.20 Essa gravura, por sua vez, deu origem a uma srie de cpias em que os Arcos aparecem ora brancos, ora acinzentados, ora amarronzados. O fato de os gravadores responsveis por essas reprodues nunca terem visitado o Rio de Janeiro, mas apenas visto representaes de sua paisagem, contribuiu para aumentar o nvel de discrepncia. Numa poca em que poucas pessoas viajavam e no existia fotografia, eram bem diferentes as exigncias com relao verossimilhana das imagens. J nas muitas representaes dos Arcos geradas aps a dcada de 1840, o monumento costuma aparecer branco ou branco acinzentado.

    Nota-se, de imediato, que limitado o grau de confiabilidade que podemos atribuir a uma fonte qualquer. Mesmo as fotografias mostram apenas aquilo que est dentro do campo visual recortado por seu enquadramento, e so to sujeitas manipulao quanto qualquer desenho ou pintura. Mas, o que isso nos diz sobre a tal imobilidade dos objetos, questo que deu origem a toda essa discusso? A essa altura, os leitores de ndole mais prtica devem achar que estamos fugindo do assunto. Tais escorregadelas de sentido e deslizamentos de significado no seriam problema restrito ao mundo das representaes visuais? Apenas mais um sintoma daquilo

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    que o pintor Ren Magritte chamava de a traio das imagens? Se os Arcos um dia foram marrons ou cinzas, e veio algum e os pintou de branco, que diferena isso faz? Eles no continuam a ser os mesmos, independentemente da cor?

    A mudana de cor - ou pelo menos de sua representao - reflete outra transformao bem mais importante: a do modo como o objeto percebido por seus usurios. Em uma palavra, a experincia do artefato. Nas imagens produzidas para um pblico estrangeiro que provavelmente nunca veria o lugar, a cor do monumento era apenas um detalhe subordinado no todo da composio. No tinha maior importncia, portanto, para a fruio daquela imagem e para a compreenso de seu sentido maior. Ser que isso faz diferena para a apreenso direta do artefato, em primeira mo? Formulada a pergunta de modo diverso, a imagem que se faz do objeto afeta a compreenso do seu sentido? No mundo moderno, regido por mdias e sistemas de comunicao, a resposta s pode ser sim.

    Quantos lugares, coisas, situaes, at pessoas, so conhecidos prioritariamente por meio de imagens? Vale exemplificar, por questo de clareza. Quantos leitores deste livro j observaram lees selvagens na natureza, j caminharam pelo topo da muralha da China ou j pilotaram um carro de Frmula 1? Poucos. No entanto, todos certamente possuem uma imagem mental dessas experincias.

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  • Isso significativo. Alm do mais, o contexto em que se adquiriu essa imagem mental (no cinema, lendo um livro, vendo televiso) no deixa de ser uma experincia tambm, de outra natureza, bastante distinta da vivncia imediata. No dia em que surgir uma oportunidade de concretizar, ao vivo, qualquer uma dessas aventuras, a experincia direta ser colorida - ou seja, mediada - pela imagem mental preexistente. Quando se pensa que a maioria das pessoas que tm conhecimento dos Arcos - ou de qualquer outro artefato, por sinal - o tm por vias indiretas, tem-se a dimenso da devida importncia das imagens.

    Mesmo para quem s tem conhecimento direto de um artefato, sem mediao (se que isso ainda possvel), a experincia do objeto sempre delimitada por costumes e convenes. Voltemos s imagens. Existe mais um fator decisivo, pelo menos, a ser depreendido da comparao entre aquela atribuda a Leandro Joaquim e aquela feita por William Alexander. Na primeira, os Arcos aparecem vistos de frente, com o Convento de Santa Teresa esquerda; na segunda, por de trs, com o mesmo convento direita. A definio de frente e fundo, esquerda e direita, relativa, evidentemente. No existe nada na natureza que defina um lado do objeto como sendo prioritrio em relao aos outros. A noo de posio est no olhar do observador, que, portanto, definida por sua formao cultural. Nenhum carioca, se perguntado, hesitar em

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    responder que a frente dos Arcos aquele aspecto que aparece na figura da pgina 53. Numa cultura formada, historicamente, a partir da chegada terra pelo mar, o olhar para a paisagem tende a se dirigir nesse mesmo sentido: do litoral para o interior. Assim, a perspectiva frontal dos Arcos definida por um observador hipottico que se posta de costas para o mar, olhando para a cidade. O pintor brasileiro do primeiro quadro sabia disso, mesmo que intuitivamente, e escolheu o ponto de vista que fundaria a tradio iconogrfica de representar os Arcos a partir do atual Largo da Lapa. Foi preciso um olhar forasteiro, no comprometido com a cultura local, para inaugurar a inverso dessa perspectiva.

    FATORES CONDICIONANTES DO SIGNIFICADO

    Vamos tentar pr um pouco de ordem nesta discusso, antes que ela se desdobre irremediavelmente em muitas outras. Tocamos, at agora, em seis fatores que condicionam o significado do artefato, possuindo a capacidade de modificar a suposta imobilidade ou fixidez de sua natureza essencial (o que os filsofos chamariam de sua ontologia). Trs desses fatores esto ligados situao material do objeto, e trs outros esto ligados percepo que se faz dele. Os da primeira categoria so: uso, entorno e durao. Os da segunda categoria so: ponto de vista,

    discurso e experincia. A rigor, arbitrria a diviso

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  • desses fatores em duas categorias, pois eles incidem uns sobre os outros de modo complexo, gerando o quantum eminentemente fluido e instvel que entendemos como significado. Contudo, para fins didticos, h sentido em desmembr-los e considerar um de cada vez. Antes disso, cabe ressaltar um ponto que deveria ser autoevidente: significado, em ltima instncia, reside unicamente na percepo dos usurios (sendo quem faz, o autor ou criador, considerado usurio tambm). Sem um sujeito capaz de atribuir significado, o objeto no quer dizer nada; ele apenas . A apreenso de todos os fatores citados deriva da relao entre usurios e artefatos, numa troca de informaes e atribuies que se processa de modo contnuo. Em ltima instncia, a comunidade que determina o que o artefato quer dizer.

    O impacto do fator uso fica muito claro no exemplo dos Arcos. Quando o artefato deixou de ser aqueduto e passou a ser usado como viaduto, essa mudana alterou de modo importante seu significado, at mesmo em termos formais. E notvel o fascnio que a viso do bonde passando por cima dos Arcos tem exercido sobre artistas, fotgrafos e cineastas, gerando inmeras representaes desse tema. Nas imagens geradas por processos manuais, como desenho ou pintura, revela-se uma tendncia de exagerar o tamanho do bonde, atribuindo-lhe importncia visual maior do que aquela que

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    corresponderia s propores fsicas exatas. No caso do bonde passando por cima dos Arcos, equilibrado vertiginosamente sobre o caminho alto e estreito, o inusitado do uso surpreende, pesa e acaba por colorir as percepes. Uso uma palavra que abrange as noes interligadas de operacionalidade, funcionamento e aproveitamento. Nesse sentido, aproxima-se da palavra funo, comumente empregada para descrever o papel a ser desempenhado por um artefato nas relaes sociais. Contudo, a palavra uso mais adequada, porque no pressupe que um artefato qualquer tenha uma nica vocao, como frequentemente o caso quando se fala em sua funo. Conforme veremos mais adiante, no terceiro captulo, quase sempre mais correto falar em funes do que em funo.

    O impacto do entorno sobre o significado do artefato talvez seja menos explcito. No exemplo dos Arcos, mesmo que a estrutura e a aparncia do monumento tenham permanecido estveis por longos perodos, tudo sua volta mudou. Os registros visuais mais antigos evidenciam que existe desde muito o hbito de construir outros edifcios em torno do aqueduto. J nas primeiras dcadas do sculo XIX, aglomeravam-se ali, de ambos os lados, bom nmero de casas, conforme indicam uma srie de imagens conhecidas. O bairro da Lapa foi crescendo, crescendo; e, ao final do sculo XIX, no resta dvida de que os atuais

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  • Arcos se encontravam rodeados de um casario denso e compacto, o qual se aproximava o mximo possvel do antigo aqueduto e, em alguns casos, chegava a se apoiar nele, tirando proveito estrutural de sua solidez construtiva.

    Na dcada de 1940, esse casario havia atingido tamanha densidade, com o aparecimento dos primeiros edifcios altos, que comeava mesmo a ofuscar o velho viaduto. Os registros fotogrficos que possumos dessa poca so invariavelmente tirados dos morros vizinhos ou de outro ponto distante, pois no existia mais a possibilidade de descortinar a construo inteira a partir do nvel do cho. O resultado que o artefato, antes monumental e imponente, como aparece nas representaes antigas, passou a ser percebido por golpes de vista fragmentados, ou seja, como menos do que sua totalidade. Um registro inusitado de sua aparncia nessa poca, ao nvel do cho, o cenrio da pea Feira livre, de 1941, em que a imagem cenogrfica dos Arcos aparece comprimida entre prdios e barracas, mais fragmento do que monumento.21

    A partir dos anos 1950, esse processo comeou a se inverter. A derrubada sucessiva de quarteires inteiros - primeiramente, do lado de trs e, depois, frente - devolveu os vazios ao espao em torno dos Arcos, retomando um pouco a antiga monumentalidade. Na dcada de 1970, com a reabertura do Largo da Lapa, completou-se o ciclo de bota-abaixo, culminando em um retorno parcial si-

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  • tuao de duzentos anos antes. Quase por paradoxo, j que no era essa a inteno, a destruio do tecido urbano resultou na recuperao de uma qualidade originria perdida ao longo dos sculos. Ao compararmos a imagem atribuda a Leandro Joaquim com a vista que se tem hoje dos Arcos, surpreendente constatar que voltou a existir a ampla perspectiva descortinada sobre o monumento, e que essa continuidade se fez por meio de tantas e to drsticas mudanas na paisagem.

    Todas essas transformaes, ligadas no somente ao uso e ao entorno, mas tambm prpria condio fsica do artefato (estado de conservao), esto relacionadas com o terceiro fator citado: durao. Para entender o significado de um artefato com qualquer profundidade preciso saber o que j se passou com ele ou, no caso de um artefato mvel, por onde ele passou.22 A existncia de qualquer objeto decorre dentro de um ciclo de vida que comporta desde sua criao at sua destruio. Quanto mais tempo ele consegue resistir - ou seja, manter-se ntegro e reconhecvel - maior ser a chance de incidirem sobre ele mudanas de uso e de entorno. Alguns artefatos, como os Arcos, sobrevivem por muito mais tempo do que seus criadores e fabricantes e esto sujeitos, portanto, atribuio de significados por geraes sucessivas de usurios, cujas opinies e juzos podem variar imensamente. Quem observa hoje o velho monumento e

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    o aprecia como patrimnio histrico no compartilha quase nada com os olhares lanados sobre ele no momento de sua inaugurao.

    Os juzos dos usurios nos remetem segunda categoria de fatores condicionadores do significado. O primeiro deles ponto de vista. J se falou sobre a percepo cultural que leva as pessoas a acharem que esto frente ou atrs do artefato. Claramente, essa uma questo de ponto de vista: ou seja, literalmente, o local onde o observador se posta para olhar o objeto. A rigor, em termos lgicos, qualquer ponto de vista igualmente plausvel e importante para a compreenso do artefato. Porm, se algum for ao museu e quiser ver somente os versos dos quadros, isso percebido como estranho. O fato que elegemos perspectivas melhores ou piores, corretas ou erradas, e formamos uma hierarquia de modos de ver. Essas hierarquias so constitudas culturalmente, ao longo dos anos. Um dos principais desafios das artes visuais o de formar, deformar e transformar o olhar. No caso dos Arcos, o ponto de vista escolhido capaz de alterar profundamente o significado do artefato. A vista de quem passa por cima do monumento, no bonde, bem diversa da de quem passa por baixo, a p; e essa mudana de perspectiva modifica de modo significativo a experincia que se tem. Importa muito se o objeto visto de longe ou de perto, de cima ou de baixo, no todo ou em parte. Sempre que se investiga

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  • o significado de um artefato, preciso perguntar: quem olha? A partir de onde? Procurando o qu?

    O fator discurso refere-se ao modo como o ponto de vista de cada um encontra sua traduo para outros. Se eu for uma pessoa muito independente, posso descobrir por conta prpria o ponto de vista que me convm, mas como fao para comunicar essa minha preferncia a outras pessoas com as quais, porventura, eu queira dividir minha experincia? Torna-se necessrio representar a experincia por meio de linguagens (verbais, visuais ou outras), e as representaes necessariamente agregam sentidos e afetam a compreenso do artefato. Vimos, no caso do desenho de William Alexander e suas cpias, como as imagens podem gerar outras imagens, formando cadeias de enunciados que se perpetuam quase sem se reportarem mais, de modo direto, ao artefato que deu origem ao processo. Quem se der ao trabalho de juntar os enunciados gerados, ter uma noo do repertrio discursivo que cerca o objeto.

    Hoje, mais do que nunca, na chamada era da informao, praticamente impossvel chegar a qualquer objeto sem passar antes pelo repertrio - ou seja, sem alguma noo dos discursos que moldam seu significado e uma ideia preconcebida de como ser sua experincia. Qual foi a ltima vez que voc, leitor, assistiu a um filme sem nenhuma noo do que se tratava? Sem saber o nome do diretor ou de um ator, sem ter lido uma sinopse ou crtica,

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    sem ter inspecionado o cartaz do filme, sem saber sequer o ttulo ou o gnero em que se enquadrava? O discurso circundante quase sempre um patamar de acesso necessrio para chegar a um objeto qualquer. Numa sociedade em que as informaes so onipresentes, a prpria independncia do ponto de vista s pode ser conquistada pelo muito conhecimento dos discursos que cercam a situao, e nunca por sua ausncia. Mesmo assim, trata-se de uma independncia relativa.

    O ltimo fator citado, experincia, o mais resistente a todas essas influncias externas. Quando se fala em experincia, a referncia aquilo que ntimo e imediato na relao de cada um com o artefato em mos. Afinal, se acho os Arcos bonitos ou feios, graciosos ou lgubres, ou outra coisa qualquer, isso corresponde a uma vibrao interna que, em algum nvel, s minha. Agora, essa relao ntima e imediata necessariamente condicionada por todas as outras experincias antecedentes que fazem com que eu seja eu - includas a minhas experincias anteriores com o mesmo artefato. Se gosto de histria e arquitetura, por exemplo, se conheo outros aquedutos antigos, em outros lugares, provvel que eu tenha uma predisposio para olhar e experimentar os Arcos de modo diverso de quem no se interessa por nada disso. Se conheo os Arcos de longa data, se estou acostumado a passar por eles diariamente e conheo-os intimamente,

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  • de todos os pontos de vista possveis e por meio de muitos discursos acumulados e sobrepostos, minha experincia do artefato ser muito diferente da experincia de quem olha para o objeto pela primeira vez. Por todos esses motivos, e outros ainda, a experincia um dos fatores mais determinantes do significado.

    Foi dito anteriormente que artificial a diviso desses fatores em categorias, que todos operam juntos, incidindo um sobre o outro. Sem dvida, isso verdade. A separao deles apenas um exerccio reflexivo, com a finalidade didtica de enfatizar a importncia de cada aspecto subjacente quilo que entendemos como significado. A interdependncia deles fica ainda mais clara quando introduzimos um ltimo fator que incide sobre todos os outros, modificando-lhes e alterando qualitativamente sua percepo. Este fator o tempo, sua decorrncia e devir. Com a passagem do tempo, surge o propsito, que o uso mutvel transformado em qualidade estvel. Com a passagem do tempo, surge a histria, que a durao mutvel transformada em qualidade estvel. Com a passagem do tempo, surge a permanncia, que o entorno mutvel transformado em qualidade estvel. Com a passagem do tempo, surge a ateno, que o ponto de vista mutvel transformado em qualidade estvel. Com a passagem do tempo, surge a consagrao, que o discurso mutvel transformado em qualidade estvel. Com a passagem do

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    tempo, surge a memria, que a experincia mutvel transformada em qualidade estvel. O que importa lembrar que tudo passvel de mudana no tempo - inclusive os significados que associamos a qualquer objeto.

    Se algo to slido e imvel quanto os Arcos da Lapa est sujeito a tantas transformaes e alteraes de significado, o que dizer de objetos mais efmeros? O que ocorre com os artefatos comuns que nos cercam o tempo todo, que entram e saem de nossas vidas com tamanha rapidez que s vezes sua existncia passa despercebida? O que acontece com as coisas depois que so descartadas por ns? Esses temas sero discutidos em maior profundidade no prximo captulo. Por enquanto, basta enfatizar que nenhum artefato possui significado estvel e imutvel. A primeira revista em quadrinhos do Homem-Aranha, vendida em 1963 para crianas nos Estados Unidos por 12 centavos, hoje virou relquia preciosa, disputada por colecionadores que pagam at 100 mil dlares por um exemplar em perfeito estado. As muitas imagens de Lnin produzidas durante e aps a Revoluo Russa, como expresso de fervor revolucionrio e poder proletrio, foram aos poucos se transformando em smbolos de opresso e tirania, at serem derrubadas e destrudas pelo prprio povo russo quando do fim da Unio Sovitica. Hoje, so colecionadas avidamente e vendidas no mercado de leiles dos pases que um dia foram os inimigos do marxismo-

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  • -leninismo. As roupas que algum veste numa foto da dcada de 1980, as quais eram ento o auge da moda, hoje causam constrangimento e, s vezes, suscitam da prpria pessoa retratada uma exclamao do tipo: como eu pude usar isso algum dia?. Entretanto, em algum lugar do planeta, um jovem fashion designer sonha precisamente em ressuscitar polainas coloridas e ombreiras gigantes como o novo must da temporada. Assim caminha a humanidade, e seus projetos.

    MEMRIA, IDENTIDADE E DESIGN

    Quando se discute o significado dos artefatos, comum recorrer experincia do usurio como uma espcie de prova dos nove. At certo ponto, a experincia pode ser observada em situaes controladas, testada em laboratrios e quantificada em dados e tabelas, o que sempre reconfortante para as pessoas que buscam certezas. Acontece que nada que valha a pena ser estudado to simples assim. Conforme vimos no exemplo dos Arcos da Lapa, so inmeras as experincias que podem ser suscitadas por um nico artefato; e so vrios os fatores que condicionam como ser constitudo o significado. Alm do mais, a experincia direta apenas uma parte de nosso conhecimento e compreenso dos objetos.

    Se voc est em determinado ambiente, engajado em determinada atividade - digamos, em casa, lendo este livro

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    por definio, voc no est vivenciando todos os outros ambientes de que tem conhecimento nem realizando todas as outras atividades que poderia exercer. Contudo, mesmo estando presa a um ponto determinado do tempo-

    -espao, em termos perceptivos, nossa organizao mental permite que tenhamos conscincia de outras experincias do que aquela que est presente e imediata. Em meio leitura do livro, o leitor pode se distrair ao lembrar a pessoa amada, ou de uma mensalidade que tem de pagar. A bagagem que possumos de vivncias, obtidas diretamente ou por emprstimo, colore nossa percepo e define o modo como processamos qualquer experincia atual. Tanto que, o que dor e sofrimento para alguns, prazer para outros, e vice-versa. Para uns, ler este livro uma obrigao chata, que os subtrai de outras atividades; para outros, uma fuga deliciosa dos problemas e do cotidiano.

    A maioria das experincias que temos ao nosso dispor no acessada a qualquer momento pelos sentidos, mas por meio da memria. A capacidade de lembrar o que j se viveu ou aprendeu e relacionar isso com a situao presente o mais importante mecanismo de constituio e preservao da identidade de cada um. Veja o exemplo trgico das pessoas que sofrem de alguma doena degenerativa que afeta a memria: mesmo tendo os cinco sentidos operantes, uma pessoa sem acesso memria torna-se incapaz de se relacionar com o mundo, podendo chegar

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  • ao ponto de no garantir a sobrevivncia fsica sem cuidados externos. Um exemplo banal do contrrio, da fora da memria, est na capacidade que tem a maioria de ns de caminhar por nossa prpria casa no escuro da noite, sem nem ao menos tatear as paredes. Mesmo diante da privao dos sentidos, aquilo que apelidamos de memria corporal garante o sucesso da empreitada. Reza o dito popular que recordar viver, e podemos afirmar o inverso: que viver , em grande parte, um processo de recordar. Memria e experincia esto intimamente relacionadas, uma alimentando e constituindo a outra.23

    Memria a experincia deslocada do seu ponto de partida na vivncia imediata. Como o momento atual passageiro, desmanchando-se numa sucesso de outros momentos, outras vivncias, quase tudo que somos e pensamos depende da memria. Porm, a memria coisa notoriamente escorregadia. No calor de uma discusso, o interlocutor frequentemente distorce o que foi dito h poucos instantes, lembrando errado o que o outro disse, ou at mesmo as prprias palavras. Eu no falei isso!

    Falou sim! Uma pessoa sai de casa com pressa, tranca a porta, entra no carro e, um minuto depois, se pergunta: ser que tranquei a porta? Algum vai a uma exposio e v ali uma obra de que gosta (algo memorvel). No ms seguinte, v outra obra do mesmo artista em outra exposio. Dois anos depois, ao comentar o traba-

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    lho daquele artista, situa as duas obras juntas, como se tivessem constado da mesma exposio, e se surpreende sinceramente ao ver comprovado que nunca estiveram. A memria falha. Diferentemente daquilo que chamamos de memria nos computadores - a qual corresponde, na verdade, capacidade de armazenamento e recuperao de dados -, a memria humana no um banco de informaes no qual depositamos experincias para depois as retirarmos intactas. At existe a possibilidade de trazer mente, com total exatido, algo que vimos ou ouvimos; mas o fenmeno da memria fotogrfica (ou melhor, eidtica) to raro e excepcional que pe em relevo o quo imprecisa costuma ser a memria humana.

    Mais do que a simples ao de recuperar uma vivncia, a memria um processo de reconstituio do passado pelo confronto com o presente e pela comparao com outras experincias paralelas. Algum pode se lembrar de uma experincia que nunca teve - a chamada sndro- me da falsa memria - ou pode misturar suas prprias vivncias com as de outras pessoas e com informaes adquiridas por meios indiretos (conversas, leituras, mdias audiovisuais). A memria mais construda do que acessada, e sempre impressiona a capacidade humana de lembrar o que quer e de esquecer o que no quer. H controvrsias quanto s memrias, especialmente quando elas so coletivas e no individuais. No de surpreen

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  • der, portanto, que as pessoas recorram aos objetos como suportes de memria. Os artefatos servem tanto de ponto de partida para as lembranas como para encerrar litgios. Nada melhor do que um vestgio material do fato - uma prova, no sentido policial - para estabelecer que algo tenha acontecido de um jeito e no de outro.

    Os artefatos so constantemente arregimentados com o propsito explcito de atiar a memria ou de preservar uma recordao: dirios, agendas e bilhetinhos; souvenirs de viagem; brindes e prendas distribudos em festas e eventos; cartes comerciais e de visita, santinhos e fili- petas; relquias de famlia. H todo um vasto universo de objetos pertencentes s categorias de mementos e memorabilia, que acabam passando das gavetas, armrios e estantes de cada um para brechs, sebos e antiqurios, e da para arquivos, museus e bibliotecas, que so os grandes repositrios das fontes documentais das quais extrada nossa histria. Os artefatos mais comumente usados em nossa sociedade para preservar e atestar memrias so as fotografias. A medida que as tecnologias digitais vo facilitando e barateando cada vez mais a produo de imagens, aumenta em progresso geomtrica o recurso ao registro fotogrfico como sistema de preservao e constituio da memria. Em algumas situaes - festas e viagens, por exemplo - h quem passe quase tanto tempo a fotografar quanto a fruir diretamente a atividade, o que

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    equivale a transformar o processo de registro em substituto da vivncia, e no mais simples suporte para a memria.

    Que os artefatos fazem lembrar simples de constatar. Basta mostrar para algum acima dos trinta anos algum objeto relacionado sua infncia - balas e confeitos costumam ser bons para esse objetivo - para arrancar suspiros saudosos e comentrios que comeam com no meu tempo... Mesmo os mais jovens no so imunes nostalgia. E bastante difundido o mito segundo o qual as coisas teriam sido mais simples e mais bem-ordenadas no passado.O mesmo filtro mental que faz com que as pessoas se lembrem mais do que agradvel e esqueam o desagradvel acaba por gerar uma reverncia coletiva pelo passado, percebido como algo reconfortante. So expresses corriqueiras: os anos dourados, nos bons tempos, ramos felizes e no sabamos. O interessante, do ponto de vista comercial, que a nostalgia vende produtos. No somente as antiguidades, que valem muito exatamente por conta da histria que carregam, mas tambm produtos novos com uma roupagem passadista - o chamado retr.

    Hoje, possvel comprar grande variedade de produtos novos com cara antiga, desde mveis e eletrodomsticos at automveis projetados para remeter a padres estilsticos passados, como o caso do Volkswagen Novo Beetle ou do Chrysler PT Cruiser, sucessos de vendas nos anos 2000. At mesmo artefatos cuja tecnologia no exis-

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  • tia no passado so disponibilizados em estilo retr - por exemplo, aparelhos para reproduo de arquivos digitais musicais que imitam a forma de equipamentos sonoros mais antigos. No mundo da moda, ento, o retr um fenmeno incontornvel. Quanto mais se revive o passado estilstico nas roupas mais as pocas e os estilos acabam por se confundir.

    Vistos lado a lado, o tnis retr imitando um modelo dos anos 1970, com materiais e tecnologia atuais, nem parece tanto assim com o original que o inspirou. Embora cite elementos morfolgicos associados ao modelo mais antigo, o tnis novo indubitavelmente um produto da era atual. Os ciclos retr vo se acelerando e, portanto, se embolando. O recente revival dos anos 1980 cita elementos que, por sua vez, j eram, em sua poca, um revival das dcadas de 1950 e 1960. Assim, determinadas peas de vesturio (por exemplo, cala Capri, tnis Ali Star) entram e saem de moda ciclicamente. Em alguns casos, a velocidade desse entra e sai tamanha que j no se sabe onde termina um revival e comea outro. Tais artefatos acabam sendo apelidados de clssicos, e as revistas informam que eles nunca saem da moda, o que uma contradio lgica, visto que a moda se baseia exatamente no princpio da mudana rpida e contnua de juzos estticos.

    Na atual condio ps-moderna, as noes de tempo e histria so fluidas. Pela natureza autofgica com que

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  • os ciclos de retr e revival se retroalimentam, o consumo de artefatos e comportamentos processa-se hoje numa espcie de no tempo, ou tempo em suspenso, em que todas as pocas passadas convivem em simultaneidade com o contemporneo. Nada mais atual do que constituir a prpria identidade por meio da combinao estratgica de referncias diversas ao passado - tatuagem dos anos 1990, roupa dos anos 1980, msica dos anos 1970, filosofia dos anos 1960, penteado dos anos 1950, quadrinhos dos anos 1940, e assim por diante -, numa colagem contnua e sempre em mutao. A prpria atitude de hibridizao temporal para construir um composto contemporneo a reproduo involuntria - um revival intelectual, por assim dizer - do ecletismo que dominou o pensamento arquitetnico ocidental na passagem do sculo XIX para o sculo XX. O nico parmetro que se mantm atual - de ponta - a tecnologia, que percebida como um avano constante e inexorvel, puxando todo o resto para um futuro incerto. Para eterna frustrao dos ecologistas mais radicais, quase ningum busca recuar no tempo tecnolgico para um passado de menos megabytes e menos me- gapixels. Nosso saudosismo tem esse limite.

    Surge a pergunta: h algo condenvel em tudo isso? Superado o fetiche modernista com o progresso e o novo,

    o que tem de mais em conjugar estilos passados com a tecnologia presente? No seria o melhor dos mundos

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    a possibilidade de ter um aparelho qualquer com altssimo desempenho combinado com a aparncia que me agrada, seja qual for? Se eu quero uma geladeira vermelha, de contornos arredondados, no direito meu? E se ela tem um motor silencioso, compatvel com as normas ambientais mais avanadas, no isso prefervel a um aparelho velho, original dos anos 1950, que consome mais energia e emite gases poluentes? A resposta sim, evidentemente. No h nada de errado, em termos ticos, com qualquer escolha esttica. A rigor, gosto no uma questo moral. Na verdade, a postura mix and match, de livre combinao de elementos, que rege a atualidade reveladora de algo mais profundo nas relaes entre forma e aparncia, uso e experincia. O papel da memria na constituio das aparncias no se restringe busca autoconsciente do retr. As formas novas sempre tm suas razes fincadas em outras antigas. Nada vem do nada.

    Em seu livro fundamental Objetos do desejo, Adrian Forty elabora uma anlise do modo que as novas tecnologias vo adquirindo uma cara reconhecvel pela configurao formal dos produtos. O exemplo citado por ele o rdio. A aparncia externa dos primeiros aparelhos correspondia sua estrutura interna - ou seja, os rdios eram nus, sem invlucro ou casca. Aos poucos, foram sendo desenvolvidas solues formais para encapsular o mecanismo, seguindo tendncias que o autor caracteriza

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  • como constantes na histria do design.24 Intrigante constatar, conforme salienta Forty, que uma das primeiras reaes dos designers ao depararem com um desafio tecnolgico completamente novo recorrer a formas antigas para lhes dar alguma roupagem. E tpico da psicologia humana esse recurso memria e ao familiar - ao passado reconfortante - como antdoto ao terror que o novo pode inspirar. Com a introduo de diversas tecnologias ao longo da era industrial, tornou-se bastante conhecido esse padro de vestir, ou revestir, o elemento radicalmente novo por aproximao com o que j existe. Em termos morfolgicos, os computadores de mesa (personal computers) da dcada de 1980 parecem um televisor (monitor) atrelado a uma mquina de escrever (teclado). Para resolver os elementos realmente novos - processador, placas, disco rgido - a soluo encontrada pelos fabricantes da poca foi esconder tudo dentro de uma caixa neutra, geralmente bege ou cinza. Somente com a evoluo para o formato notebook, os computadores pessoais comearam a encontrar uma morfologia prpria, distinta de outras mquinas antecessoras.

    No somente nos aparelhos oriundos de novas tecnologias que a remisso ao passado se faz presente. Qual-

    quer objeto projetado tem recurso necessariamente a um repertrio existente, pois o projetista est imerso num

    caldo cultural que inclui todas as influncias s quais j

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    foi exposto, filtrados por sua memria. Os cartazes criados por Shepard Fairey para a campanha de Barack Oba- ma presidncia dos Estados Unidos em 2008, possuem um ar decididamente retr, embora no remetam a uma fonte precisa. O fato de que uma estilizao passadista foi escolhida para traduzir visualmente conceitos como

    esperana, progresso e at mudana indicativo do grau de complexidade existente hoje na relao entre passado e presente, memria e identidade. Visualmente, pelo menos, a mudana defendida pela campanha de Obama era um retorno estilizado ao passado.

    No design grfico, muito evidente o papel da linguagem e do repertrio; mas os mesmos princpios regem qualquer atividade de criao e projeto, seja de uma aeronave, um liquidificador ou uma fotografia. O ser humano pensa sempre por meio das linguagens que tem disposio, e estas so codificadas pelo acmulo de atividade antecedente naquele domnio. E impossvel articular pensamentos fora do domnio de uma linguagem - aquilo que o filsofo Vilm Flusser batizou de conversao geral ou

    lngua ampliada, abrangendo, alm da linguagem verbal, a msica, a plstica e a imagtica.25 Do mesmo modo que escritores escrevem frases novas num idioma que aprenderam a falar, o designer projeta formas numa linguagem que j existia quando ele veio ao mundo. As coisas materiais falam de si em termos prprios sua configurao.

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  • O repertrio formal define os parmetros dentro dos quais possvel pensar o novo. E o peso da tradio, que o historiador da arte Norman Bryson contrape ao desejo como os dois poios delimitadores de qualquer processo artstico ou inventivo.26 O que pesa mais na criao: tradio ou desejo, informao ou inovao? A pergunta capciosa, e a resposta bem mais escorregadia do que se pode imaginar primeira vista. Na verdade, a relao cclica: a novidade de hoje representando amanh a carga acumulada do passado, os tesouros de um passado remoto servindo de ponto de partida para a ruptura radical com o presente. O mais difcil permanecer imvel. As vezes, preciso mudar muito para continuar sendo o mesmo.

    Uma boa ilustrao desse princpio est nas identidades corporativas. Empresas com histria comercial relativamente longa costumam passar por um processo peridico de redesenho de suas marcas. No Brasil, o caso da Light S.A., empresa fornecedora de eletricidade no Rio de Janeiro,