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DESMISTIFICANDO O IMPLANTE COCLEAR: ESTUDO DE CASO ACERCA DA IMPORTÂNCIA DA LIBRAS EM
SURDOS IMPLANTADOS1
Crisiane Bez Batti Universidade Federal de Santa Catarina
Fabíola Sucupira Ferreira Sell
Universidade do Estado de Santa Catarina
RESUMO O objetivo dessa pesquisa é desmistificar alguns discursos acerca do implante coclear (IC). O IC é apontado por muitos especialistas como a “solução para o problema” da surdez, uma medida que busca preencher a falta, a necessidade de audição. No entanto, para a maioria da comunidade surda representa a necessidade de ouvintizar o surdo. Segundo alguns autores, é importante atentar não apenas para as promessas de benefícios como também para as limitações que o implante pode promover a nível econômico, físico, emocional e social. Diante desse panorama, a Libras continua sendo a principal maneira de permitir que o sujeito surdo, sem sofrimento físico, se desenvolva em sua integralidade como ser humano. Palavras-chave: Surdez. Libras. Implante coclear.
ABSTRACT The goal of this research is to demystify some discourses about cochlear implant (CI). The CI is pointed out by many experts as the “solution to the problem” of deafness, a measure that seeks to fill the gap, the need for hearing. Nevertheless, for most of the deaf community it represents the need to force the deaf to become a hearing person. According to some authors, it is important to pay attention not only to the promises of benefits but also to the limitations that the implant can promote economically, physically, emotionally and socially. Given this panorama, Libras (Brazilian Sign Language) remains the main way to allow the deaf subject, without physical suffering, to develop in his/her integrality as a human being. Keywords: Deafness. Libras (Brazilian Sign Language). Cochlear implant.
INTRODUÇÃO
O implante coclear2 é apontado por muitos especialistas como a “solução para
o problema” da surdez. Muitos surdos, crianças e adultos, com diferentes graus de
surdez e históricos diversos são submetidos todos os anos a essa cirurgia com o
objetivo de “ouvir” e falar, mas, principalmente, para suprir as demandas de uma
sociedade normalizadora.
Posto isso, o presente artigo visa desmistificar os benefícios que envolvem a
opção do IC, através de uma revisão bibliográfica, trazendo alguns excertos de
4
pesquisas científicas e relatos de educadores e surdos que experenciaram a
cirurgia. Tal revisão se embasou principalmente em autores como Lane (1992),
Peixoto (2012), Rezende (2012), Silva (2016) e Toscano (2005). Dentro dessa
perspectiva, analisamos brevemente os discursos pró e contra o IC, bem como de
onde se originam esses discursos – sua motivação social e econômica. Também
utilizamos o relato da experiência de uma surda implantada como estudo de caso3,
fonte de dados e comparações com as pesquisas bibliográficas realizadas.
IMPLANTE COCLEAR – DEFINIÇÃO
Antes de nos aprofundarmos nas questões sociais e políticas referentes ao
implante, é necessário entender como funciona essa cirurgia. O IC atua para
estimular eletricamente as células ciliadas presentes na cóclea. Essas células são
responsáveis por levar as informações auditivas até o cérebro. Oliveira (2005)
explica:
(...) qualquer tipo de estimulação nas vias nervosas dos órgãos sensoriais é percebida pelo córtex cerebral como sensação do órgão sensorial específico. Com base neste princípio fisiológico, as pesquisas se desenvolveram no sentido de substituir o mecanismo de audição normal provocando estimulação elétrica direta nos neurônios auditivos ganglionares remanescentes dentro do modíolo da cóclea. (OLIVEIRA, 2005, p. 262).
Para alguns profissionais da área da saúde, o IC é uma medida que busca
preencher a falta, a necessidade de audição. No entanto, para alguns membros da
comunidade surda, a concepção do implante é diferente, considerando-o como uma
forma de normalização do surdo, como em Rezende (2012, p. 36), a qual afirma que
“implante coclear é um aparelho que tem o intuito de consertar o ouvido defeituoso
do surdo, trazendo uma possível audição de forma robotizada. Além disso, exige
intensa reabilitação fonoaudiológica pós-cirurgia pois é preciso exercício para
perceber e entender o som”.
Percebe-se que as opiniões se dividem em relação à efetividade IC bem
como da real natureza da sua disseminação como solução final para combater a
5
surdez. Antes de adentrarmos nessa discussão, compartilhamos a experiência
pessoal de Crisiane Bez Batti com o IC com o intuito de mostrar essa questão
através de outro prisma, o que justifica em grande parte nosso interesse em realizar
esse artigo.
RELATO DE EXPERIÊNCIA PESSOAL DE CRISIANE BEZ BATTI
Minha vida toda é repleta de desafios, dificuldades, obstáculos. Mas também
é marcada por superação – a superação da padronização, da normalização, exigida
pela família e sociedade por meio do oralismo. Não sei ao certo se minha surdez foi
de nascença ou se perdi a audição gradualmente. O que me recordo é que quando
eu era pequena, para minha família o mais importante era que eu ouvisse e falasse,
meu aprendizado de maneira geral não era algo tão visado.
Quando entre os 3 e 4 anos eu aprendi a falar “mãe” (e tratava todos por essa
única palavra), minha vó acreditou que a simpatia havia funcionado. Foi somente
aos 4 anos que comecei um tratamento fonoaudiológico. Até os 6 anos ainda não
havia compreendido que eu era surda – e o que isso significava – porque minha
própria família não aceitava a surdez e colocava a culpa da maneira como eu me
desenvolvia em função do meu temperamento e personalidade. Nessa idade eu
comecei a frequentar o pré-escolar. Sentia-me diferente das outras crianças, mas
não entendia o porquê. As crianças riam de mim e falavam muito, coisa que eu não
conseguia fazer. Eu via as crianças brincando e não interagia. Sentia raiva e por isso
era agressiva com meus colegas e costumava ter um comportamento intempestivo
também com os objetos. Costumeiramente por conta disso eu era castigada dentro e
fora da escola.
Durante esse tempo, fui colocada para sentar no canto da sala. Passei mais
de um ano na mesma série e meus colegas sempre eram recompensados com um
“mini lápis” – algo que eu nunca ganhei. Os anos foram se passando e entre
algumas consultas em hospitais e exames de audiometria se concluiu que eu não
era surda, que meu comportamento era puramente psicológico. Durante todo esse
tempo minha família não teve entendimento de que eu era de fato SURDA.
6
Fui aprender a ler com 11 a 12 anos de idade, com uma professora que se
importou comigo e me ajudou a aprender as palavras, me dando o primeiro impulso
para ser autodidata. Mesmo assim nesses anos, costumava copiar dos meus
colegas as atividades e os trabalhos que o professor passava. Desde essa época eu
sentia falta de identificação, me senti inferior, sentia algo errado, algo diferente, mas
não sabia o que, esse foi o momento de minha vida em que me percebi diferente
das outras crianças. Nessa época minha família começou a aceitar que de fato eu
era surda – mas não tocavam no assunto.
Conheci meu esposo aos 22 anos. Até essa idade eu fingia que era ouvinte,
tentava falar, mas não entendia muito do que eu falava – eu repetia o que eu via,
mas, no geral me calava. Meu esposo foi a pessoa que mais me tratou bem e que
tentou me compreender e de certa maneira me reeducar. Algo que até aquele
momento eu não havia tido a oportunidade através de outras pessoas. Comecei um
tratamento mais sério e regular de fonoaudiologia e a usar aparelho – mas não me
adaptei. O aparelho tinha um ruído perturbador, me sentia muito agitada e
temperamental. Acomodei-me como deficiente. Costumava tocar meu marido e as
pessoas perto da garganta para sentir as vibrações e entender melhor o que a
pessoa estava falando. Mas fazer isso me incomodava, me sentia estranha.
Ter meu primeiro filho me fez sentir mais força e vontade de mudar certas
coisas. Eu queria escutar o choro do meu filho, ser um exemplo para ele, alguém em
quem ele pudesse se espelhar. Fiz tratamento fonoaudiológico com mais afinco e
determinação como eu nunca havia feito antes, troquei de aparelho algumas vezes
até me sentir mais confortável. Nesse ínterim um familiar do meu esposo me disse
que eu era a vergonha da família porque além de não saber falar português, ser
surda, eu era a única sem estudo. Senti-me afrontada e desafiada a provar a minha
capacidade. Comecei a estudar no CEJA – Centro de Educação de Jovens e
Adultos e em seguida ingressei no curso de Pedagogia.
Durante o curso eu continuei a fazer o que havia feito em toda minha vida
escolar – copiava, decorava e nem sempre entendia todos os conceitos abordados.
No entanto, havia alguns profissionais docentes que me auxiliavam, mas em
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nenhum momento a universidade ou eu mesma entendi que necessitava de algum
auxílio profissional extra integralmente.
Meu primeiro contato com a Libras foi em uma disciplina que tivemos; meu
professor falou a respeito da surdez. Fui apontada como surda e não gostei. Para
mim, ser deficiente era mais ameno que ser chamada de surda – afinal eu “falava” e
usava aparelho. A disciplina não me ajudou a me identificar com o ser surdo ou com
o idioma. No ano seguinte surgiu um curso de Libras e eu fui fazer com o intuito de
computar horas para atividades complementares. Nesse curso o professor mostrou
um vídeo em que aparecia um menino que através do IC havia sido curado da
surdez – começou a falar, a interagir – a ser “normal”. Pensei que era a minha saída.
O professor disse que seria meu milagre pessoal. Recebi um folder e todas as
informações dele.
Um amigo pessoal de meu marido que era médico esclareceu que nem todos
os surdos conseguem escutar com implante coclear, e que o implante feito
tardiamente era ainda mais arriscado. Mesmo assim, por confiar no que eu havia
visto no vídeo e no que o professor havia falado, fui até o médico que realizava o
implante e ele me disse que eu tinha 100% de probabilidade de voltar a escutar
totalmente. Fiz a cirurgia e compreendi que tudo o que eu pensava que eu escutava
até aquele momento na verdade era vibração e não escutava o som. Depois de um
mês de implantação chegou o momento de ligar os aparelhos. Para mim foi confuso
e também devastador – eu odiei a minha voz e em contrapartida passei a escutar
sons que não sabia identificar. Comecei a fazer o tratamento fonoaudiológico e a me
adaptar com os sons e as vozes. Escutava chiado todos os dias e era muito
perturbador e só depois de muito tempo percebi que era o barulho do mar.
Depois de um tempo me adaptando, fui convidada por uma colega da
faculdade a fazer novos cursos na FCEE para complementar nossas atividades. Mas
quando comecei a ter as aulas eu entendi pela primeira vez o universo do idioma. A
identificação que eu senti foi muito forte e comecei a compreender os conceitos que
eu repetia automaticamente, mas não entendia. Conheci outros surdos, outras
pessoas que haviam passado por situações afins a minha. Entendi por fim que a
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Libras era algo novo, mas, também, me abraçava de um jeito que o português não
havia feito. Sempre deveria ter sido minha primeira língua, já que sou surda.
Aos poucos fui me embrenhando nos novos significados, compreendendo
coisas, conceitos, pessoas, que até aquele momento não tinham sentido. E
gradativamente fui entendendo e assimilando uma nova identidade – a surda. Um
encontro entre meus pares. Infelizmente, não me foram oportunizados o acesso e o
contato com essa língua na tenra idade.
É inegável que o implante coclear me proporcionou ALGUM acesso a sons
que antes eu não tinha – porque ele faz os sons serem mais nítidos que o aparelho
normal. Mas continua sendo mecânico, tem suas limitações e consequências. Às
vezes me sinto desorientada, com dores no pescoço e cabeça e alguns desmaios –
mesmo sendo algo avançado é um corpo estranho que está conectado à sua
cabeça. Também o que me foi prometido – o acesso a conceitos e significados não
veio automaticamente com ele. O abismo conceitual é imenso. A desculpa do
médico é que como o implante foi tardio meu cérebro não codifica as palavras, ou
seja, eu não crio links entre o que eu escuto e o que eu costumava ler labialmente.
Sinto-me limitada em atividades simples, fico constrangida quando vou ao
cabeleireiro. Fazer qualquer penteado, lavagem ou uso de secador requer muitos
cuidados por parte da profissional. No caso dos penteados, muitas vezes os
grampos precisam ficar de um lado da cabeça que não possam ser puxados pelo
imã do implante. Esses procedimentos que no geral causam prazer a maioria das
mulheres, para mim são desconfortáveis e até dolorosos porque a pele da região do
implante fica muito sensível. O implante externo é facilmente removível. Então
muitas vezes em lugares com metais, como as barras de um barco ou segurar uma
sombrinha pode me fazer perder o implante por distração porque ele é puxado pelo
metal. Vale lembrar que o implante é caríssimo e perdê-lo é muito fácil. Usar bonés,
óculos de sol e tiaras ficou quase impossível.4
Hoje, depois de todas essas experiências eu compreendo que a comunidade
surda é fundamental na minha vida, ela me possibilita a construção do meu ideal do
futuro, redefinindo minha voz e atitude em relação às dificuldades, desafios e
obstáculos. Revolucionou meus anseios, minha visão da conscientização dos meus
9
direitos, seja como cidadã plena, seja pelos direitos linguísticos, culturais da
comunidade surda para que mudem esses tabus e a padronização atual sobre o
sujeito surdo.
Esses sentimentos trouxeram a inquietação dessa luta, para que os meus
pares surdos possam viver com mais dignidade, que não se sintam deficientes,
incapazes e necessitados de uma educação especial, e sim como sujeitos surdos,
que tem identidades surdas e culturais, como diz Laborit (1994, s/p), “recuso-me a
ser considerada excepcional, deficiente. Não sou. Sou surda. Para mim, a língua de
sinais corresponde a minha voz, e meus olhos são meus ouvidos. Sinceramente
nada me falta, é a sociedade quem me torna excepcional. ”
Hoje, incluída nessa luta, como surda e como presidente de uma associação
de surdos da minha cidade, vejo o quanto precisamos desmistificar os discursos de
normalização e compreender o universo da surdez em toda sua riqueza e
possibilidades nelas existentes.
DESCONSTRUINDO ALGUNS CONCEITOS A RESPEITO DO IMPLANTE
COCLEAR
O IC é um dispositivo conhecido como ouvido biônico, que tem como objetivo
proporcionar sensação auditiva, é uma invenção da medicina a fim de que os surdos
se assemelhem aos ouvintes ou seja, tem o intuito de substituir o ouvido humano. A
maioria das páginas médicas que oferecem o implante, listam os resultados
positivos do procedimento5.
A questão é que independentemente da decisão pessoal de implantar-se ou
não, ou dos possíveis benefícios, pouco se fala das limitações e de outros
problemas de saúde que podem ser consequências diretas dessa operação. Por
exemplo, o artigo contido no site Direito de ouvir especifica algumas limitações:
sempre avisar o radiologista a respeito do implante ao fazer o exame porque o
implante “pode ser atraído violentamente pelo aparelho de ressonância magnética
podendo levar a complicações graves”; o aparelho deve estar desligado no pouso ou
decolagem de aeronaves já que “pode interferir nos aparelhos de controle da
10
aeronave”; é necessário andar com o comprovante de implantação para apresentar
em qualquer lugar que tenha um sistema detector de metais, uma vez que “sempre
irão disparar” quando um implantado passe por eles; não se manter perto de
aparelhos como monitor de computador, televisores ou micro-ondas posto que
alteram “a qualidade sonora ou interferem na transmissão de dados entre as
unidades interna e externa”; entre outros.
Fica claro que o implante impõe certas limitações que de alguma maneira não
são tão amplamente divulgadas. No entanto, os problemas mais sérios são os que
podem afetar diretamente a saúde do individuo. Segundo estudos médicos
realizados por Cohen et al. (apud PEIXOTO, 2012, P.02) o indivíduo implantado
pode ter “reações adversas” ao aparelho, “complicações cirúrgicas”, “necrose, (...)
paresia facial temporária, meningite, infeção da sutura (...) vertigem prolongada e
severa”. O mesmo estudo (PEIXOTO, 2012, p.02) frisa que “embora a taxa de
complicações esteja a diminuir com a melhoria dos aparelhos e da técnica cirúrgica,
estas continuam a existir”.
Além dessas alterações, segundo Abramides (2009, p.18) há também
evidências clínicas de que IC é capaz de interferir na função vestibular. O tipo de
alteração funcional é balizado por fatores anatômicos, pela predisposição individual
ao padrão de estímulo produzido pelo IC e ainda pela capacidade plástica do
sistema neural de cada indivíduo. Infelizmente, essas informações não estão
constantes na maioria dos folders médicos que chegam às mãos das famílias de
surdos e dos próprios surdos.
Além disso, alguns pesquisadores, como Lane (1992, p.51,53) apontam para
outra questão: a tomada de decisão com relação ao Implante Coclear não prioriza o
sujeito surdo, mas os interesses econômicos de ouvintes envolvidos na discussão.
Para o autor, as relações humanas nos bastidores do Implante Coclear estão
estabelecidas a partir das vantagens econômicas para os ouvintes. Partindo desse
pressuposto, podemos também analisar que a alternativa do IC não somente tem
suas consequências físicas, seu viés capitalista, como também não está ao alcance
de todos. Sobre isso, Toscano (2005, p.585) pontua:
11
Entretanto, é importante a conscientização de que toda esta tecnologia disponível não é de acesso a toda a população surda, especialmente considerando-se nossa realidade social, cultural e econômica. Além do mais, ainda que toda essa tecnologia fosse acessível, ela por si não garante o desenvolvimento linguístico, identificatório e cultural do sujeito surdo. (TOSCANO, 2005, P.585)
Paralelo a esses fatores, existe outra questão
persistente no que tange a quem pode ser beneficiado pelo implante, o que envolve
a idade e o grau de surdez. Grande parte dos Implantes são indicados para crianças
de até 2 anos de idade. No entanto, a decisão dos pais em implantar a criança surda
de tenra idade deve levar em conta não somente as promessas de “cura”, mas,
principalmente, todos os desdobramentos resultantes dessa cirurgia. Aferindo que a
criança com menos de dois anos de idade ainda não possui a aquisição da
linguagem oral formada, qual a garantia de que ela vai adquirir uma linguagem plena
após ser implantada? Uma vez que a criança não pode dar seu assentimento de
forma consciente, implantá-la para fins de investigação significa impor o altruísmo à
outra pessoa, o que é incompatível com o respeito [...] (op. cit. p. 208).
Nessa linha de raciocínio, segundo Pontin (2014), esta engenharia biológica
experimentada nos surdos, recorre à relação do biopoder6, desconsiderando a
diversidade cultural. Contudo, pesquisadores do Implante Coclear, alertam sobre
os riscos e confirmam a carência de pesquisas que abonem o procedimento. Com
relação aos riscos cirúrgicos Lane (1992, p.195) denuncia que “de acordo com um
relatório, cerca de uma em trinta crianças implantadas desenvolve complicações tais
como dores, infecções, hemorragias ou cicatrização lenta da ferida e danos no nervo
facial no decurso da cirurgia”.
As pesquisas mostram que o IC traz mais benefícios em pessoas que
adquiriram a linguagem de maneira natural e mais tarde se tornaram surdas, e assim
optaram pelo IC. Mesmo dessa forma na maioria dos casos, nem tudo que é
prometido nas consultas médicas antes do IC se efetivam depois da implantação.
Alguns surdos e estudiosos da área como Rezende e Lane manifestam também
preocupação com a perda da identidade cultural que o IC ocasiona ao surdo. Isso
porque entendem que a cirurgia invade o indivíduo implantado roubando-lhe a sua
identidade e imponde-lhe uma nova. Na sua obra, A máscara da inocência, Lane
12
(1992), reflete sobre as relações entre ouvintes e surdos buscando examinar os
princípios que unificam essas relações e qual é a finalidade delas. Para ele, os
surdos são pessoas que se beneficiam da comunicação gestual em substituição à
audição e à fala como principal meio para conhecer o mundo. Bolsanello (2012, p.
06) aclara ainda que “a história das relações entre ouvintes e surdos é marcada por
uma tentativa, por parte do grupo ouvinte, de impedir o uso de línguas gestuais pela
comunidade surda e de imposição o uso de línguas de modalidade oral-auditiva”.
Embora muitos pensem que o Implante coclear seja o caminho para uma vida mais
satisfatória existe outro caminho que envolve uma experiência linguística
diferenciada – a Libras.
A IMPORTÂNCIA DA LIBRAS NO DESENVOLVIMENTO DO SUJEITO SURDO
Diante dessa necessidade de normalizar o surdo, de fazê-lo ouvinte, um
movimento contrário se reforça – o do surdo que não somente se aceita como tal,
como também o que abraça como língua a Libras. Muitos estudos têm apoiado o
desenvolvimento de surdos que se utilizam da Libras como equitativo ao
desenvolvimento de um ouvinte que utiliza sua língua oral. Quando utilizada de
maneira expressiva na vida do surdo, pode conduzi-lo ao desenvolvimento pleno.
Harrison (2000, p.119) refere que essa língua fornece a oportunidade ao surdo de
ter acesso à aquisição de linguagem e de conhecimento de mundo e de si mesmo.
Segundo Toscano (2005, p.593), quando o surdo se aceita não como deficiente, ou
seja, como sujeito incompleto ante a sociedade, mas sim como um cidadão que tem
apenas uma modalidade de comunicação distinta – o sofrimento psíquico e sua
evolução enquanto pessoa e profissional são notáveis.
O que não acontece quando, no afã de fazerem os surdos escutarem a todo
custo, muitos têm limitado a chance de tais surdos se desenvolverem em todas suas
potencialidades – ocasionando indivíduos divisos – sem identidade, que não
escutam bem, não falam bem, não se comunicam bem e automaticamente não
conseguem sentir-se parte de uma comunidade. Toscano (2005, p.593) explica que
“quando o sujeito surdo é levado a conviver apenas com uma comunidade ouvinte,
13
sem contato com outros surdos, sua surdez tende a ser ocultada e depreciada. O
estigma de deficiente agrava-se a cada dificuldade que essa pessoa irá encontrar
para se igualar com o ouvinte.”
A Libras se constitui um sistema linguístico complexo, reconhecida como
Língua natural e por isso mesmo capaz de ser adquirida de forma natural quando se
tem contato com ela (Cf. CRUZ e FINGER, 2013, p.389). Por conta disso, mesmo
quando os surdos são implantados – sendo crianças ou adultos – seu uso é
premente para a reabilitação linguística inclusive auxiliando na real compreensão da
oralidade. Nesse sentido, algumas pesquisas realizadas com crianças surdas
implantadas podem nos fornecer um panorama factível do por que a Libras é
imprescindível.
A pesquisa realizada por Lillo-Martin, e pelas co-pesquisadoras Chen-Pichler
e Müller de Quadros chamada “Desenvolvimento bilíngue bimodal”, aponta que
restringir o acesso à língua de sinais para crianças surdas implantadas pode
significar prejuízo para seu desenvolvimento linguístico oral. A pesquisa se focou em
realizar testes com pseudopalavras e pseudosinais. O objetivo era perceber se as
crianças surdas implantadas conseguiriam reproduzi-los adequadamente. Os
resultados são bem impressionantes, uma vez que, ainda que não tenham acesso a
língua de sinais, é nessa modalidade linguística que os resultados são melhores (Cf.
QUADROS; CRUZ; PIZZIO, 2012, p.217).
Teoricamente, uma criança implantada deveria ter mais facilidade com
palavras em português, porque de alguma maneira está recebendo o input sonoro.
Mas o que acontece na prática é o contrário. Essas crianças apresentam mais
facilidade na língua de sinais – a que estão restritas. Isso ratifica que mesmo para
crianças com IC, o canal viso gestual ainda é o que lhe permite melhor absorção e
aquisição linguística. Restringir o acesso das crianças surdas com IC à Libras
ocasiona uma série de atrasos linguísticos. (Cf. QUADROS; CRUZ; PIZZIO, 2012,
p.218).
Interessante notar que ao contrário da crença de alguns profissionais da
saúde e até de familiares de que quando uma criança com IC acessa um idioma
sinalizado automaticamente regredirá no aprendizado do idioma oral – o que
14
acontece segundo essas pesquisas é o contrário. O fato de não acessarem uma
língua que lhes é mais confortável para aprender, lhes prejudica no aprendizado de
quaisquer outras línguas, inclusive as de modalidade oral. Por conta disso é
importante mudar a postura em relação ao uso de Libras por crianças implantadas,
uma vez que “crianças surdas com acesso irrestrito à Libras que recebem implantes
cocleares precocemente e que realizam o acompanhamento fonoaudiológico, podem
apresentar desempenho muito semelhante às crianças ouvintes bilíngues bimodais”.
Adquirir a língua de sinais pode “contribuir para o desenvolvimento geral da criança
e para o sucesso na aquisição da língua oral”. (QUADROS; CRUZ; PIZZIO, 2012,
p.219)
Assim, quando existe o acesso da criança implantada a uma língua por um
canal que lhe seja possível pode significar a diferença entre se desenvolver
linguisticamente ou não. É válido ressaltar que a mesma pesquisa esclarece que o
IC deveria ser realizado o mais precocemente possível para que houvesse a
possibilidade de desenvolvimento da língua oral, uma vez que quanto maior o tempo
de exposição ao input linguístico, maior a possibilidade de aquisição. No entanto,
observa-se que nem sempre é o que acontece. Crianças recebem implantes
tardiamente e durante todo o tempo em que esperam por um IC, muitas vezes são
privadas de outra modalidade linguística que lhes seja possível.
Segundo Cruz e Finger (2012, p 389), essa privação é um fator “ainda mais
determinante do nível de (in)sucesso obtido, impedindo que criança inicie o processo
de aquisição da linguagem no período esperado e que tenha oportunidade de
desenvolver-se linguisticamente de forma adequada e esperada como a maioria das
crianças”. Quando há o acesso a uma língua de sinais em crianças implantadas
precocemente, “reduzem-se as possibilidades de privação linguística e de atraso no
processo de aquisição da linguagem” e as mesmas “têm a oportunidade de adquirir
a língua de forma natural e de utilizá-la naturalmente com seus pais e familiares
desde tenra idade”. (CRUZ E FINGER, 2012, p.389)
Neste sentido, Góes (1999) afirma que a língua de sinais será necessária
para que haja condições mais propícias à expansão das relações interpessoais,
constituindo o funcionamento cognitivo e afetivo, promovendo a constituição da
15
subjetividade. Conforme Toscano (2005) explana muito claramente, o surdo
necessita de uma língua que possibilite a integração ao seu meio, no qual seja
capaz de compreender o que está ao seu redor, significar suas experiências, em vez
de uma língua que o torne um ser apto para reproduzir um número restrito de
palavras e frases feitas, que para ele não terão nenhum significado comunicativo,
restringindo sua potencialidade para construir e utilizar a linguagem no processo
dialógico. Posto isso, a Libras atende a essas necessidades tanto para crianças
como para adultos surdos implantados que através dela não somente desenvolvem-
se linguística e cognitivamente, mas de forma preponderante na sua construção
humana; que é constante, mutável e se estabelece através do uso de uma língua no
decurso de nossas relações interpessoais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O IC surgiu como uma proposta de superação da surdez, por meio de uma
técnica cirúrgica. Muitas promessas são feitas ao surdo que se propõe a fazer a
cirurgia. Os benefícios listados são inúmeros, mas o principal se relaciona a ouvir e
falar “normalmente”. Como se percebeu através dessa breve pesquisa bibliográfica,
ainda não há nada concludente que prove o quão benéfico é o IC. Mas o que já é
comprovado, embora não amplamente difundido, é que o IC traz uma série de
limitações e muitas delas físicas.
Segundo os vários autores vistos, como Lane (1992), Peixoto (2012),
Rezende (2012), Silva (2016) e Toscano (2005), os fatores que impõe o IC como
uma cura para a surdez vão muito além de fatores médicos, tem a ver com a visão
social do que é a normalidade e do comércio em volta das cirurgias e aparelhos. O
IC não garante que o sujeito surdo adquira a língua oral e, o mais importante – que
se desenvolva linguística e cognitivamente. É importante que os surdos e seus
familiares sejam devidamente informados de todos os riscos envolvendo a cirurgia,
para que não sejam lesados com falsas promessas, bem como que se compreenda
que existe vida sem o IC. Uma vida produtiva, progressiva – se o surdo tiver acesso
a um idioma – a Libras - que o ajude a significar o mundo e desenvolver sua
16
habilidade cognitiva. A Libras é uma língua completa que favorece o seu acesso a
conceitos e conhecimentos que se fazem necessários para sua interação com o
outro e o meio em que vive, e assim suas dúvidas e temores perante o mundo
podem diminuir.
Partindo da experiência de uma surda com IC compartilhada nesse artigo, é
possível perceber as implicações positivas que o contato com a Libras produziu em
sua vida, como sua visão de mundo se agrandou significativamente e como seu
domínio conceitual e reflexivo/crítico foi especialmente beneficiado por conta de tal
aquisição. Há muito mais a se aprender do que o que pode estar contido dentro de
um modelo fechado e ouvintista. O surdo pode ser muito mais do que “ouvinte”.
Pode ser ele mesmo. Com sua língua, com sua cultura, com sua própria maneira de
“ouvir” o mundo.
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1 Este artigo foi desenvolvido com base no trabalho apresentado para conclusão do Curso de Especialização em Libras (Língua Brasileira de Sinais) da Faculdade Capivari – FUCAP como requisito parcial à obtenção do título de especialista em Libras, orientado pela Prof.ª Drª. Fabiola Sucupira Ferreira Sell. 2 Nesse artigo abreviamos para IC. 3 Embora use algumas referências a respeito da relação entre Libras e crianças surdas com IC, o foco desse artigo é analisar os desdobramentos linguísticos que se estabelecem com surdos adultos tardiamente implantados. 4 É possível citar outras situações cotidianas que se tornam complicadas, como ir ao banco, Certa vez passando pela porta giratória do banco fui bloqueada e como estava sem a carteirinha que comprovasse que realmente sou implantada não pude entrar. Como o implante coclear contém um imã, é preciso tomar cuidado ao ficar perto de metais, inclusive da porta do carro. Em um lugar com muitas pessoas, eu não escuto nada claramente – para todos os efeitos eu continuo SURDA. 5 O Portal do Otorrino, por exemplo, elenca: 1. Capacidade de perceber sons do ambiente. 2. Melhora da compreensão da fala com leitura labial. 3. Compreensão da fala sem leitura labial. 4. Melhora da percepção e da qualidade da própria voz. 5. Capacidade de falar ao telefone. 6.Prazer em ouvir música 6 “(...) investe no corpo individual para que este se insira no coletivo chamado população (...) poder sobre a vida da população que tem como objetivo administrar e regular a vida do corpo social.” (PONTIN, 2014, P.18,30)