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DEUS e deus · 2018. 8. 31. · DEUS e deus Oferta Andarei mil léguas E terei dado apenas um passo. Arrancarei o coração, Empunhando-o como um archote E terei ofertado muito pouco

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DEUS e deus

Oferta Andarei mil léguas E terei dado apenas um passo. Arrancarei o coração, Empunhando-o como um archote E terei ofertado muito pouco. Direi todas as palavras sábias Em todas as línguas sabidas E minha língua ainda será fraca. Escreverei poemas a granel Pondo neles minha luz mais recôndita E minha arte permanecerá obtusa. Depois de haver cumprido todos os deveres Ao final do dia, serei ainda a serva inútil. Pois quanto mais Te busco Mais percebo a lonjura do caminho, Quanto mais me delicio ante teus olhos próximos Mais me acabrunha a distância de Ti! Faze-me propício cada momento hoje Assim como cada trecho do eterno depois, Para a farta semeadura do Teu Reino E para a quieta adoração de Tua essência!

Sumário Quando deus dá errado

1 - Quando deus morre ... 17

(0 vazio do mundo) • A metafísica do nada

• Onde Deus se insinua

2 - Quando deus se ausenta. 31

(0 vazio do cotidiano) • Deus como objeto de consumo

• Deus reencontrado

3 - Quando deus tiraniza 45

(0 vazio do fanatismo) • O poder divino

4 - Quando deus se pulveriza 53

(0 vazio dos falsos deuses ) • O deus institucional

• O deus ideológico

• O deus do mercado

• Deus dá esperança

Deus como Ele é

5 - Deus está na origem .. 73

• Criacionismo e evolucionismo

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• A origem do mal

6 - Deus dá sentido ....... 85

• A racionalidade do sentido

• A subjetividade do sentido

• O sentido histórico

• O sentido da eternidade

7 - Deus se põe como fim 99

• A finalidade do ser no devir

• As finalidades equivocadas

8 - Deus habita em presença 109

• A natureza

• O outro

• Nosso melhor Eu

• A oraçáo e o Outro absoluto

9 — Deus se faz medida.. ,....123

• Critérios do bem, do verdadeiro e do belo

• Há um mal em nós?

10 — Deus se dá em amor. 139

• Pessoas mais perto de Deus

• Como amar a Deus

• Como Deus se manifesta em nós

Primeira palavra Deus pode ser a maior resposta, o sentido último, a meta mais alta. Pode ser nosso alvo

de perfeição e nosso aconchego mais próximo. Mas também pode se tomar um vazio, quando se ausenta de nossa filosofia, quando contraria nossos desejos desordenados, quando se faz um tirano à nossa miopia.

Porém não é Deus que se retira ou usa maldosamente seu poder infinito. Não é Deus que se opõe à nossa felicidade. Ele está, Ele é, como uma rocha, lembrando a imagem dos salmos. Sua bondade é constante, sua constância épe feita. Somos nós que imaginamos nos ausentar de seu olhar, somos nós que lhe emprestamos nossa tirania e somos nós que ainda não aprendemos onde está a felicidade.

Este livro pretende mergulhar o leitor numa meditação sobre Deus. Não é um tratado teológico, mas talvez uma teologia poética, sem abandono da racionalidade.

A razão hoje anda com má reputação porque em seu nome cometeram-se abusos de estreiteza e reducionismo da realidade. Mas também, como veremos, por interesse daqueles que querem tomar todas as coisas obscuras e sem sentido, pulverizadas e nadificadas. E preciso rea- bilitá-la, pois trata-se de um presente divino à criatura e ainda

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é ela o maior antídoto contra o fanatismo, que nada mais é que irracionalismo. A emoção não se opõe à razão, nem tampouco a apreensão poética da realidade. Ao

contrário, a melhor harmonia entre o sentimento, a beleza e a racionalidade é o que nos leva mais perto da verdade e da perfeição.

Por isso, para falar de Deus, com reverência e com fidelidade à sua obra em nós, é preciso ajustar a razão, afinar o senso estético e deixar-se tomar pela sublime emoção de tocá-lo com os olhos da alma.

Será tudo isto rematada pretensão| Mas afinal, sou criatura, herdeira, filha... Se posso meditar em Deus e nEle falar, se posso alcançá-lo na beleza de sua criação, se posso racionalizar suas leis e se posso senti-lo bem perto, acariciando meu coração — éporque Ele assim o quis, assim me fez e assim o permite.

Começarei pelo hoje, para chegar ao sempre. Na primeira parte do livro, constato o desencanto do mundo atual e todas as doenças por que deus passa, desde a sua negação até ao seu inchaço nas malhas do fanatismo. Então uso deus em minúscula, pois quando desconhecido, renegado ou abusado, não se trata do Deus verdadeiro, mas apenas um seu espantalho.

Na segunda parte, elevo-me a esse único Deus e procuro apalpá-lo por dentro e por fora, por todos os lados — na sua imanência, quando presente em tudo e em todos e na sua transcendência, quando em sua essência existe além, acima e adiante de tudo e de todos.

Que fontes me inspiram? Elas estão citadas em todas as partes do livro. Como o leitor verá, muitas tradições estão presentes. Não podemos recusar nenhuma experiência sincera de Deus, nenhuma abordagem elevada a Seu respeito. Minha convicção particular, filosófica e religiosa, é espírita, nutre-se em Allan Kardec. Portanto, faço uma leitura específica do cristianismo. Mas aqui não se trata de especificidade e sim de universalidade. Sempre me identifiquei com vivências religiosas as mais diversas. Um poema sufi, um trecho do Bhagavad Gita, um salmo bíblico, uma trova popular, um negro spiritual — todas essas formas de expressão humana estão relacionadas a experiências pessoais e coletivas, culturais e históricas de uma só realidade. Deus se mostra em todas elas e em outras tantas.

Seria reduzir demais a Sua altura achar que Ele aceitasse o louvor e a gratidão apenas de um grupo ou de uma igreja, de uma corrente ou de uma seita. Seria limitar demais a capacidade humana de senti-Lo se apenas uma vertente religiosa, um culto específico devesse possuir o caminho de acesso a Ele.

Por tudo isso, para melhor falar de Deus, vamos bus- cá-Lo, onde quer que seja. A certeza de que Ele está sempre em toda parte conforta nossa alma e nos alimenta nesta busca. A autora

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Quando deus dá errado 1- Quando deus morre (0 vazio do mundo)

Deus não pode morrer, porque um de seus atributos é justamente o de ser

eterno. A mortalidade não pertence à natureza divina. Entretanto, no final do

século XIX, um louco, num livro escrito por um filósofo que de fato morreu louco —

o alemão Friedrich Nietzsche — declarou a morte de deus. E até hoje, muita gente

acreditou nesta morte, a civilização se perturbou com essa declaração, lançada a

esmo, sem justificativa ou motivo, pois a filosofia nietzscheana é feita de

aforismos, sem lógica ou argumentação, pois que abole a razão como categoria

confiável.

Não foi apenas Nietzsche que matou deus. Feuerbach, Marx, Freud e tantas

outras mentes brilhantes, enraizadas no século XIX, retiraram deus do mundo, da

história e da alma. Consideraram deus uma invenção humana, uma alienação, uma

ilusão.

O que ocorre, porém, quando deus é dado como morto, quando se quer afastá-lo

da compreensão das coisas? Aí Nietzsche, o chamado filósofo do martelo, é sem

dúvida o mais coerente com o ateísmo radical que professa: tira-se deus, tira-se o

fundamento e a inteligibilidade do universo. Tudo se torna caótico, sem sentido,

sem rumo, sem legalidade cósmica, sem medida... E perfeitamente coerente ao

mesmo tempo negar deus e negar a razão, e, ao mesmo tempo, desqualificar a

ciência e a filosofia, a moral dos valores universais e as religiões. Tudo o que

explica a realidade supõe uma inteligência por trás da razão de ser das coisas.

Mesmo que se negue a existência desse ser por trás dos seres, aqueles que

acreditam em conceitos como organização do universo, inteligibilidade do real,

finalismo das leis naturais, estão, ainda que inconscientemente, supondo uma causa

inteligente, uma origem pensante...

A ciência materialista, por isso, é ingênua, ao se supor na salvaguarda do

ateísmo. E Nietzsche, pelo mesmo motivo, é mais coerente em sua loucura: sem

deus, não há sentido, não há razão, não há ciência, não há nem mesmo filosofia.

Assim, a declaração nietzscheana da morte de deus desencadeou no mundo um

processo de morte generalizada. Hoje se fala em morte da história, morte da

ciência, morte da filosofia e do próprio sujeito. O que é isso? E que se arrancando

a base, a finalidade e a razão, consequentemente, desmancham-se as ferramentas

que supunham conhecer a realidade e o próprio conhecedor e ator da vida — o ser

humano. A crise do conhecimento, a crise de valores, a crise da ciência, a crise das

utopias (embora algumas se considerassem ateias guardavam sabores metafísicos)

— e todas as crises possíveis, assumidas hoje e que enchemas mentes e os livros

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de perplexidades sem resposta, é uma crise da ausência de deus.

Se tudo é casual e incerto, se não existe nenhuma previsibilidade finalista na

natureza, se nada parece ter um sentido, estamos pendurados no vácuo — in-

sustentavelmente leves, como diz Milan Kundera, já no título de sua obra A insustentável leveza do ser, um dos clássicos sintomáticos da literatura

contemporânea.

Mas como podemos conhecer um mundo caótico, como podemos agir neste

mundo, como podemos nos orientar no labirinto dos interesses pessoais e de

grupos, dos desejos multifacetados, dos fatos sem nexo, que nem sabemos se sáo

mesmo fatos ou apenas interpretações subjetivas (como diria Nietzsche, não há

fatos, apenas interpretações)? Como ter esperança e vontade de nos

encaminharmos para algum ideal de humanidade melhor, de mundo melhor, de

metas históricas a serem construídas, se a força das circunstâncias aleatórias

escapa de nossos dedos incertos e tudo não passa de um jogo de representações

simbólicas?

Essa é a sensação do momento em que estamos mergulhados. É claro que a

grande massa humana não partilha desse niilismo consumado (segundo expressão

de Gianni Vattimo, um dos representantes do pós-modernismo em pauta). Grande

parte da humanidade continua a crer em alguma forma de divindade, que sustenta

suas esperanças cotidianas. E a própria ciência tradicional, com seu ateísmo

presumido, ou pelo menos agnosticismo assumido, continua agindo como se o

universo tivesse uma ordem — senão ela não seria capaz de produzir uma

tecnologia que funcionasse. Quando um avião sobe e voa, quando um foguete chega

a Marte, quando um cirurgião cura uma pessoa, mesmo quando uma bomba atômica

mata milhares - a ciência nada mais faz que obedecer a leis naturais, para que os

inventos humanos funcionem. Se tudo fosse tão caótico e imprevisível, nada

funcionaria com certeza. E verdade que essa obediência às leis da física, da

matemática, da química ou da anatomia pode estar associada à desobediência a

outras leis — leis de fraternidade, de igualdade, de justiça... Mas esta é outra

questão, de que adiante falaremos.

A metafísica do nada É impossível ao ser humano escapar da metafísica, do além do sensível, do

conceito, da abstração, da ideia... Os cientificistas do século XIX deram prova

disso: ao negar deus ou qualquer transcendência, adotaram algum elemento

metafísico para substituir o deus morto ou a alma perdida. Por exemplo, Marx e

Engels. Ateus, anti-essencialistas, no entanto, usavam a ideia da dialética, para

explicar a realidade histórica — uma dialética imanente na história, é verdade,

mas como conceito herdado de Hegel, a dialética é uma espécie de racionalidade

histórica, um sentido, que tem um finalismo... Trata-se assim de uma estrutura do

real, uma leitura além do sensível, metafísica.

Freud é outro exemplo. O médico austríaco pretendeu abolir a alma imortal,

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uma essência humana além da matéria. Entretanto, a ideia do inconsciente não se

encaixa apenas na estrutura física do cérebro. A relação entre ego e superego, o

papel do inconsciente na vida psíquica do indivíduo - são também uma leitura

estrutural da psique humana, além dos neurônios e das sinapses cerebrais.

Poderíamos citar uma dezena de outros casos neste sentido. Por isso, aliás, que

os pós-modernos se põem à vontade para desconstruir o pensamento positivista do

século XIX, já que seus representantes não foram suficientemente fortes para

destruir todas as essências metafísicas.

Mas será que os niilistas consumados, a que se refere Vattimo, estão realmente

a salvo da metafísica? Veremos que não. Quando os contemporâneos se referem ao

nada, ao caos, ao vazio — ainda estão usando ideias, fazendo leituras abstratas e

metafísicas do real. Substituir deus pelo caos primogênito, o ser pelo náo-ser ou

pelo devir, a alma pelo vazio — é apenas inverter o pólo de visão das coisas.

Estamos lidando com algo ainda menos ponderável que os elementos da metafísica

clássica — porque é um algo irracional, menos demonstrável que as ideias de Deus,

de alma e de sentido.

No próprio Nietzsche, o pai do niilismo contemporâneo, há conceitos

unificadores e essencialistas, como a vontade de poder que caracteriza o ser

humano ou a lei do eterno retorno, que no fundo retoma a dialética hegeliana de

alternância de ser e náo-ser, no eterno devir... Por mais que se martele o real, nem

Nietzsche escapou de alguma forma de espírito.

Prova de que o nada se trata de um conceito metafísico (embora

auto-contraditório), está no fato de que os místicos de todos os tempos e de

várias tradições religiosas se referiram a Deus como um vazio. A sensação

nadificante do ser minúsculo diante do Ser maiusculo é muito forte nas correntes

místicas. Ao mesmo tempo, a ideia de um absoluto vazio também é recorrente.

No budismo, também há um processo de esvaziamento do eu e do cosmos.

Assim, o que caracteriza o niilismo não é o abandono de espiritualidade e de

metafísica, mas o abandono de categorias racionais para medir a realidade e a

sensação de esvaziamento de si. Anulação do eu, enquanto ser racional, ativo e

pleno. Anulação da divindade, enquanto Ser originário - por isso, o budismo é a

única religião sem deus, embora nem todos assim a considerem. Gandhi, por

exemplo, não aceitava a versão ateia do budismo.

Tanto no niilismo materialista, quanto no niilismo espiritualista, há o perigo da

inatividade, da impotência humana e portanto da passividade religiosa ou política.

Se nada somos, não podemos agir. Se não há razão para nos orientar, não há mais

parâmetros demonstráveis.

Assim o nada assume a forma de uma ameaça, é como um machado pendurado

sobre nossas cabeças, pronto a ceifar nossas esperanças, nossos ideais e mesmo a

nossa identidade individual e coletiva.

O esvaziamento, no caminho místico, pode ser parte de um processo para

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atingir a plenitude. Podemos esvaziar a alma de pensamentos contraditórios, de

ilusões vãs, para nos sentirmos preenchidos por Deus. Podemos abolir nosso ego,

nos desapegarmos das ilusões, como quer a tradição budista, para alcançarmos

algo que é essencial — a iluminação, o estado de buda — que é uma espécie de

deificação.

Mas o nada não pode ser finalidade, não pode ser origem, não pode ser

permanência. A simples formulação dessa ideia embaraça a mente e provoca uma

angústia nauseante. Não é à toa que Sartre foi ao mesmo tempo autor de O Ser e o Nada e de A Náusea. E justamente essa a sensação mais forte do mundo

contemporâneo.

Uma ausência de sentido, uma falta de perspectiva, uma sensação de

impotência diante do real'^ eis o que caracteriza nossa época. E isso porque o nada

assombra o mundo.

Lembro do livro e do filme História sem fim de Michael Ende, onde o problema a

ser resolvido por uma criança era salvar o mundo do nada, que estava devorando a

fantasia e a capacidade de sonhar do ser humano. Nada mais verdadeiro.

Esse monstro obscuro é fator de desagregação da consciência, da unidade do

real, da perspectiva histórica, da esperança de dias melhores para a humanidade.

Quando tudo se nadifica, nada sobra.

Onde Deus se insinua Entretanto, mesmo onde e quando mais se nega deus, Deus se manifesta,

escondido dos olhos que o querem abolir. Mesmo neste mundo de perplexidades

niilistas, há sintomas de esperança e indícios de ações produtivas, de pessoas que

acreditam no futuro. Vejamos como ideias e projetos despontam anunciando

promissoras notícias, mas como a morte de deus acaba por torná-los

desenraizados.

A consciência ecológica brota como um ramo verde em nossos tempos. Até há

pouco na história, ainda náo compreendíamos a Terra como nossa morada celeste,

azul, semeada de verde, que precisa de cuidados carinhosos, para náo se exaurir,

ferida e explorada. Da Terra como nossa casa, uma só habitação, organicamente

ligada, podemos passar facilmente à sensação de ser a humanidade uma só família,

interdependente, rica e plural, mas fundamentalmente igualitária.

A ideia de unidade, de organicidade se transfere também para o conhecimento.

Como tudo se interliga na realidade, tudo deve se interligar no conhecimento.

Essas são intuições, conceitos, projetos que aparecem neste início de milênio, mas

foram anunciados pelo grande e esquecido educador checo Jan Amos Comenius, no

século XVII, já no seu tempo pacifista, ecumênico e idealizador da pansofia, a

sabedoria do todo e da pampaedia, o ensino do todo.

Mas a questão é que hoje, ao contrário do que era para Comenius, sem a origem

divina, o universo não tem unidade, é caótico, por isso toda unidade proposta do

conhecimento tenderá a ser uma unidade forçada. Sem a presença divina, a

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natureza pode ser bela, útil e necessária à nossa sobrevivência, mas está longe de

ter a sacralidade inviolável que tem, se compreendida como criação. O ecólogo

mais elevado é Francisco de Assis, com seus louvores poéticos ao irmão sol, à irmã

lua, à irmã terra, nossa mãe. A natureza esvaziada de deus pode até desencadear

um respeito intelectual às suas leis, mas não um vínculo de reverência religiosa.

E estranho por isso falar em religação de saberes, se o universo está

fragmentado pelo caos. É estranho falar no planeta como nossa casa e na

humanidade como família, se tudo está vazio de alma, de raiz e de seiva...

Outra grande conquista de nossos tempos é a noção dos direitos humanos. Há

declarações internacionais e nacionais que reconhecem princípios universais de

respeito à dignidade do homem, à sua vida, à sua integridade física e moral, e a

outros direitos fundamentais de todo ser humano. Mas como pode haver princípios

unificadores reais se não há um parâmetro de justiça que se sobreponha às leis

locais, históricas, inventadas pelo homem? A noção de direitos humanos, embora

laicizada e esvaziada de menções religiosas, está fortemente enraizada no direito

natural, que deriva da ideia de uma natureza humana, dada, acima das

circunstâncias históricas, uma instância que iguala todos os seres, porque há neles

algo superior à animalidade que determina a lei do mais forte. E necessária uma

justiça que esteja além da história, numa fonte transcendente, embora seja ao

mesmo tempo descoberta e experimentada historicamente. Senão, os direitos

humanos não passam de boas, mas fracas, intenções.

Todas as propostas mais belas, todas as ideias mais emancipadoras, todas as

utopias mais esperançosas, todas as militâncias mais humanitárias tornam-se

meramente uti-litárias, enfraquecidas e facilmente abafadas pelos totalitarismos

ou pelos interesses monetários, se não se sustentam numa garantia do Absoluto,

numa visão sólida de que Deus paira como sustentáculo eterno de uma realidade

essencialmente boa, de que tais projetos e atitudes são pálidas manifestações.

É que graças a Deus, o ser humano nem sempre é completamente coerente.

Achando que podem dispensar deus, mas acreditando ainda no homem e lutando

pelo respeito à vida e pela melhoria do mundo, muitos estão na verdade a Seu

serviço, porque quando se sentem inflamados de amor à humanidade, estão

cumprindo Seu maior mandamento; quando veneram a natureza, estão em sintonia

com Sua obra e quando se empenham por um planeta melhor, estão trabalhando

pelo estabelecimento do Seu Reino na terra. Por isso que há ateus, embebidos de

fervor religioso por causas humanistas e dignas.

Mesmo quando deus morre, Deus renasce em toda parte, sobretudo no coração

humano.

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2 Quando deus se ausenta (0 vazio do cotidiano)

O vazio que se deu pela morte de deus, no pano de fundo filosófico de nossa

era, se reflete no dia a dia, com uma forte sensação de ausência. Pela primeira vez

na história da humanidade, há um grande contingente de pessoas, embora não seja

a maioria, que não tem deus no seu cotidiano. Há aquelas que negam a existência de

um deus e há outras, que acreditam vagamente em algo, mas sua vida diária está

muito distanciada de qualquer vivência religiosa.

O que significa isso na prática? O primeiro efeito é a falta de esperança. Não

digo uma esperança tola, feita de uma expectativa meramente material, mas de

uma esperança de base, aquela que nunca morre, aquela que, segundo a mitologia

grega, foi um presente divino aos homens, a última dádiva que sobrou na caixa de

Pandora.

Sem deus, não há nenhuma garantia de algum dia haver justiça aqui ou em

qualquer parte. Sem deus, não há nenhum fundamento de crença irrestrita do bem.

Sem deus, não há amanhãs necessariamente promissores.

E o cotidiano, com isso, se esgota na canseira do trabalho, tão escravizante

neste contexto neo-liberal, se desfaz no desencanto das relações

desencontradas, tão próprias de um mundo de tempo corrido e sem espaço para o

cultivo de si e do outro.Que fazer com um dia a dia estafante, solitário, se não há

a possibilidade de um diálogo com um Ser que está perto e que aconchega a alma;

se não há a carícia de uma presença, enchendo o coração de conforto e paz? Que

fazer senão desmontar as relações, se não podemos enxergar a presença divina

que nos indica a bondade essencial do outro, e portanto uma permanente

esperança de atingi-la pelo amor? Que fazer senão desconfiar sempre, fechar-se

ainda mais, se não há um deus em todos os seres, que nos torna fundamentalmente

próximos, irmãos, familiares humanos?

Acordar a cada manhã e não ter a quem pedir um dia pacífico e útil; ver a glória

da luz matinal e não ter a quem agradecer a beleza que nossos olhos avistam e que

nossa alma bebe... Olhar à noite as estrelas, se a poluição o permitir, e não ter a

quem confidenciar sobre as dores sentidas e sobre as esperanças acesas!

Sofrer uma perda, uma tragédia, um problema e não poder orar, para buscar

uma força recôndita, um conforto supremo, uma bússola de inspiração! E para

quem se foi, o nada; e para a tragédia, apenas a pílula anti-depressiva.

Não é à toa que a depressão é o mal do momento. Ora, poderão dizer, mesmo as

pessoas que têm fé se encontram em estados depressivos: mas a fé pessoal

esmaece diante do nada ameaçador que paira na sociedade. É tão difícil manter a

fé, como chama que ilumina, quando nos expomos permanentemente aos ventos

enregelantes do nosso tempo!

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Deus tem de ser cultivado a cada instante, para nascer em nós a cada pedra que

encontrarmos. O seu cultivo deve ser desde a prece sem palavras, que o olhar

eleva ao infinito, até às orações coletivas, partilhadas com outros de nossa fé. E

melhor ainda será cultivado, quando pudermos orar em conjunto com pessoas de

diferentes formas de fé — feito que apenas se esboça em nossos dias.

Dizia que é inédito na história humana essa ausência de deus no cotidiano. Em

todas as sociedades antigas, as divindades estavam presentes em cada passo do

desdobrar do tempo. Os ritos de passagem eram oficiados pelos deuses, as

mudanças das estações eram regidas por eles. Na sociedade que se fundou a partir

do cristianismo, Deus era cultuado a cada instante. Os dias eram nomeados

segundo as festas santas, as horas eram marcadas pelas orações.

Não se trata de fazer uma apologia nostálgica do passado, pois sabemos todos

o quanto de opressão podia haver num deus que era obrigatório, monopolizador e

institucionalizado. Apenas é preciso demonstrar o contraste com o nosso mundo.

Hoje, na sociedade capitalista, os dias são contados pelas datas de pagamento

do nosso salário e das múltiplas e opressoras obrigações financeiras, impostos,

taxas, para que possamos minimamente sobreviver com dignidade. (Os que estão

fora deste calendário se encontram na miséria e na exclusão.) As horas do dia são

vendidas às empresas ou aos governos, para funções cada vez mais polivalentes e

estafantes e cada vez menos remuneradas.

O tempo contemporâneo avança e nos espreme sempre mais numa luta

desesperada para nos mantermos no mercado de trabalho, com cada vez menos

espaço para nós mesmos, para quem amamos e para a presença de Deus.

Mesmo nos momentos do ano em que ainda subsistem festas religiosas — em

nossa sociedade de origem cristã, como a Páscoa ou o Natal — somos tomados por

um vazio completo de religiosidade. Porque essas são agora festas futilizadas por

coelhinhos, chocolates, papai-noel, compras, enfeites bregas e quase não há mais

nenhum resquício da verdadeira origem e significado destas celebrações.

E certo que tanto nesta sociedade global como na específica de cada país,

subsistem paralelamente comunidades que vivem ainda com as marcas

significativas da religiosidade cotidiana. Os judeus praticantes, por exemplo, em

seu Ionque Pur ou em sua Páscoa, os muçulmanos em seu Ramadã e preces e jejuns

e mesmo os milhões que frequentam as igrejas cristãs, simultaneamente em que

tem de viver no mundo das datas de salário e contas a pagar, reservam partes de

suas vidas para Deus, cada qual à sua maneira. (Mas veremos mais adiante, como

esse deus pode se desviar de novo para a tirania do passado.)

Deus como objeto de consumo A ausência de deus é tão insuportável para as criaturas humanas, justamente

porque são criaturas, que quando nos deparamos com este vácuo aberto na vida, no

cotidiano, na alma, procuramos preenchê-lo de qualquer modo. E numa sociedade

onde tudo se vende e tudo se compra Ho alívio em anti-depressivos, a fuga da

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realidade pelas drogas, o corpo e o desejo, o sonho e a fantasia — também

compramos e vendemos deus.

Não é um fenômeno novo este. As religiões sempre mantiveram relações

mercadológicas com a divindade. Há dois mil anos, um dos poucos atos de forte

indignação de Jesus foi justamente contra os vendilhões do templo. Observando o

comércio das coisas santas, o rabi judeu adotou uma atitude pouco habitual para

seu temperamento doce: expulsou os mercadores a chicotadas, derrubando mesas

e soltando pombas que seriam vendidas para os sacrifícios.

O movimento da Reforma, primeiro com seu antecessor Jan Huss, depois com

Lutero, ocasionou-se sobretudo como rebelião contra o comércio das indulgências,

praticado pelos papas medievais.

Em tempos épicos, porém, os abusos se davam de forma ostensiva, provocando

reações fortes das grandes almas. Francisco de Assis conduziu sua própria vida

como um libelo contra os interesses econômicos do clero.

Hoje, tudo se faz de forma descomprometida, light, quase natural. É que nunca

vivemos num período em que o mercado se tornasse tão soberano e onipresente na

vida humana. É natural que a religião também se transforme em mercadoria.

Entramos numa livraria e podemos comprar deus em doses dietéticas, em

uvrinhos de espiritualidade rala, inconsistente, facilmente consumível. Claro

que, em meio ao aluvião de inutilidades místicas, pin- çamos um ou outro título,

cujo autor vivência uma verdadeira experiência espiritual. Mas a maioria não

passa de fraude, de consolo vazio, para recuperar deu: de forma a não implicar

nenhum comprometiment mais profundo — e isso se faz em todas as corrente

remetendo-se às mais diversas tradições do Ocidente e do Oriente ou de

preferência misturando-as todas numa salada mística.

Bugigangas espirituais provocam a ilusão da presença de deus no cotidiano.

Pensamos nos agarrar a um amuleto, a um cristal, a uma mandala, a santinhos, como

se a sacralidade pudesse estar contida em objetos descartáveis, produzidos para

venda.

Mas deus não se torna consumo apenas nesta feira de livros e de objetos sem

conteúdo. Deus pode ser comercializado em qualquer templo, em qualquer lugar

sagrado.

Quando a religião se torna meio de vida e enriquecimento dos que se dizem

donos de um poder sagrado, quando promessas destes são oferecidas a troco de

dízimos e contribuições — então deus se faz barganha. E os fieis o compram,

porque têm saudades da presença divina, mas a querem de forma fácil, submissa

aos que o comercializam — estes garantem a eficácia salvadora da mercadoria. E

assim como compramos segurança, alimento e satisfação para o corpo, adquirimos

o mesmo para a alma, de forma rápida e sem esforço pessoal. Ao contrário, quando

a religião é vivida verdadeiramente é sempre exigente em relação ao engajamento,

ao compromisso, ao empenho do adepto.

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É como se por um instante, abandonássemos a azáfama de nosso cotidiano e

fôssemos rapidamente garantir a sobrevivência de nossa alma. Cumprida, sem

muita adesão interior, essa necessidade premente, voltamos logo às nossas

ambições terrenas e aos nossos caprichos cotidianos, aliviados por já termos nos

desobrigado de nossos deveres espirituais.

A ausência de deus, pois, no cotidiano deste mundo pós-moderno, acaba

trazendo ao cenário da vida humana um deus pasteurizado, vendável, que pouco dá

e pouco exige, porque esperamos mais do mercado do que de deus e nos damos mais

à luta pela sobrevivência, mas também pelo supérfluo, do que à luta pelo Reino de

Deus. Esquecemo-nos daquele conselho do Cristo: “procurai em primeiro lugar o

Reino de Deus e sua justiça e todo o resto vos será acrescentado”.

Deus reencontrado Mas como quando deus morre, Deus renasce; quando deus se ausenta, Deus

volta, porque de fato nunca se ausentou.

A própria sensação de ausência, desconforto e carência espiritual demonstra

que Deus está aqui, pois é justamente a sua presença que nos chama a

reencontrá-lo se o mandamos embora. O incômodo do vazio busca preenchimento.

Se sentimos o vazio é porque algo deveria estar lá.

Mesmo em meio a todo superficialismo que muitas vezes assume a fé

pós-moderna, Deus ainda se manifesta com força.

Depois de nos afastarmos, o motivo mais frequente de reencontro com Deus é

a dor. No momento em que nos defrontamos com o desespero, com a perda, com o

desamparo, a alma grita por Deus. Mesmo aqueles que O haviam esquecido, apelam

para Ele. É que a dor pede alívio, requer entendimento de seu sentido, clama por

socorro. Nem sempre os recursos humanos são suficientes para mitigar a dor.

Sobretudo as dores da alma têm paroxismos que nenhum ser humano é capaz de

curar. E preciso então recorrer ao poder supremo.

Dirão os ateus que na hora do desamparo, a pessoa fraqueja e se apega a essa

muleta divina, quando deveria permanecer suficientemente forte para não se

render à necessidade de consolo e sentido.

Mas a verdade é que a dor irrompe em nossas vidas como um chamado para

acordarmos para outra realidade. Ela vem, nos sacode, nos despoja de ilusões,

preconceitos, ambições e nos deixa nus diante de nós mesmos. Somos então

obrigados a nos reconheceriamos como seres carentes da divindade, como filhos

que precisam de um pai e de uma máe, e Deus oferece a proteção paterna e o

aconchego materno.

E verdade que a dor pode causar revolta, ao invés de um pedido contrito de

ajuda. Entretanto, sem que muitas vezes o saiba, o ser humano que se rebela está

ainda se relacionando com Deus. Pois a revolta pressupõe alguém contra quem se

revoltar. Se tudo fosse obra do acaso e da má sorte, a revolta não teria razão de

ser. Revoltar-se é achar que há uma vontade querendo aquilo que não queremos

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aceitar.

A revolta é como uma crise de adolescente, como se ficássemos de birra com

Deus. A alma que se rebela mostra-se imatura, pois não consegue apreender o

caráter pedagógico do sofrimento, não é capaz de notar em si mesmo a causa que

atraiu a dor, como um remédio para problemas seus, que de outra forma

permaneceriam pesando em sua personalidade.

A dor, quando aceita — e aceitação não é passividade, mas atitude de superação

serena e ativa - é capaz de deslocar nossa perspectiva de vida, mudar a visão a

respeito de nós mesmos e nos tornar mais fortes, mais serenos e mais próximos de

Deus. Sobretudo a dor pode nos arrancar aquilo que mais nos distancia de Deus: o

orgulho. E que ela expõe a nossa fragilidade, o nosso desamparo de criaturas

terrenas... e não sobra mais vontade de ser melhor que o outro, de se sobrepor, de

oprimir...

Mas não é apenas a dor que pode trazer Deus de volta para nossas vidas. A

busca sincera de respostas pode colocar o ser humano na trilha desse reencontro.

Nesse sentido, a liberdade e a disponibilidade vigentes são favoráveis a um

reencontro mais sólido com Deus.

Apesar da multiplicidade de experiências religiosas ocas, porque

comercializadas, há o contraponto de que Deus não é mais apenas um deus imposto

por uma tradição, que se é obrigado a acatar. Podemos nos engajar livremente

numa jornada espiritual séria, que pode resultar numa vivência religiosa muito mais

sentida, pensada e comprometida, porque escolhida com profundidade. Podemos

aliás examinar diversas tradições, comparar, vislumbrar a unidade divina por trás

das diversas faces com que Deus se mostra. A possibilidade de conhecer

diferentes formas de fé pode despertar em nós uma fé mais profunda, menos

exclusivista, mais universal e mais unida a todos os seres humanos.

Por outro lado, por causa das críticas a deus, feitas desde poucos séculos,

podemos agora reassumir Deus mais firmemente, porque despojado dos

apetrechos inúteis que os críticos nos fizeram o favor de arrancar. Assim, os

ateus nos prestaram um bom serviço e a ausência de deus no mundo serve para nos

recolocar no caminho de um Deus mais real. Foram pessoas de fé verdadeira, mas

também descrentes que apontaram os absurdos que historicamente atribuímos a

deus. Quanto da negação de deus não é provocada justamente por uma ideia

capenga de deus?

Por isso, não nos impressionemos se deus morre ou se deus se retira, porque

Deus volta depois mais puro e mais próximo.

3 Quando deus tiraniza (O vazio do fanatismo)

A morte e a ausência de deus no mundo em parte pode ser explicada pela

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presença de um deus absurdo, aterrorizante, imprevisível. Alguns dos que

mataram deus, fizeram-no movidos por uma ira santa, inconformados com a tirania

de um juiz implacável e sombrio, que condena e exclui. Mas Deus não é responsável

por esse deus que faz um reinado de decretos aleatórios e crueis.

Desde sempre emprestamos a deus nossos piores defeitos. Na Antiguidade, os

deuses tinham todos os vícios humanos em escala cósmica. Enciumavam- se,

apaixonavam-se, praticavam incestos, estupros, violências, tinham predileções

gratuitas e caprichos inexplicáveis. Os próprios flagelos da natureza, fenômenos

naturais, eram manifestações de ira ou de punição divinas. Os seres humanos

viviam à mercê de seres despóticos.

Com o advento do monoteísmo, poderia se supor que deus se elevasse em

estatura. Mas isso não se deu de imediato e nem de forma constante. No Velho

Testamento, encontramos alguns atributos divinos de grande envergadura, como

justiça, fidelidade, poder... Mas Jeová ainda mostra traços tirânicos

impressionantes. Tem amor exclusivo pelo seu povo — o que limita o universalismo

que queiramos ver no monoteísmo judeu. Em numerosas passagens da Bíblia, encontramos um deus guerreiro, ciumento e vingativo. E Senhor a quem se deve

mais temer do que amar.

É verdade que no mesmo Velho Testamento também se anuncia uma outra

compreensão de Deus. No decálogo, a recomendação é de amá-lo; nos salmos,

vêmo-Lo como rocha, como pastor, como hospedeiro acolhedor; em Isaías,

sentimos a sua misericórdia num Seu enviado que sofre por nós e prepara uma era

em que o cordeiro e o leão habitarão em conjunto...

Essa dualidade na visão de Deus lê-se também no Alcorão. O Deus

misericordioso, cheio de dádivas e de justiça aparece ao lado do deus irado,

guerreiro e cheio de anátemas. Parece em ambos os casos, que Deus salta dos

livros sagrados, mas as tintas humanas o encobrem, o desgastam, o traem.

Os dois livros sagrados e antigos menos contraditórios neste sentido são o

Novo Testamento e o Bhagavad Gita. Jesus inaugura a concepção de Deus- Pai,

revelando-o tão próximo, tão acolhedor, tão perfeito e acima das paixões

humanas, que nenhum outro deus se lhe assemelha. Já no livro hindu, vemos um

Deus imanente e transcendente, universal e íntimo, ordenador e mantenedor de

todas as coisas, também forma suprema de perfeição...

Ainda assim, aparecem a estranha frase de condenação eterna na boca de

Jesus, a ideia da divisão das castas na boca de Krishna ou a insistência da palavra

castigo no Evangelho segundo o Espiritismo. Enquanto não tivermos uma leitura ao mesmo tempo de fé e de crítica dos livros

sagrados, não seremos capazes de apreender Deus em suas páginas. Deus de fato

se manifesta em todas as revelações, mas o homem anuvia todas elas, porque

sempre há inúmeras intermediações humanas - desde os profetas que as recebem

até os tradutores sucessivos de todas as épocas... Mesmo porque muitos

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reveladores nada escreveram. Palavras semeadas no vento foram colhidas por

ouvidos humanos. Assim, tudo é sagrado e tudo é questionável. Mas não é difícil

separar uma coisa da outra. O que é bom, belo, perfeito, amoroso, justo, sublime é

de Deus. O que não é, é do homem.

A origem das querelas e intolerâncias religiosas é justamente a ideia de que a

nossa religião é inquestionável, perfeita e todas as outras são errôneas. Do nosso

lado, a verdade divina absoluta, do outro a mentira humana absoluta. Quem quer

que pense ou sinta isso, revela-se longe de Deus. Como poderia Deus estar com uma

parte de suas criaturas e não com as outras? Como poderia Deus ter se revelado a

um povo, a uma cultura, em uma época e não a outros povos, a outras culturas, em

outras épocas? Como poderia caber tanta parcialidade no Ser supremo?

Por isso, toda religião deverá tender para o universalismo, porque mais

verdadeira religião é aquela que considera Deus presente em todos os seres

humanos e todos os seres humanos habitados por Ele...

O poder divino A maior dificuldade para o ser limitado e imperfeito é alcançar a ideia de um

poder que é supremo, mas não humilha; é presente em todas as coisas, mas não

oprime; é absoluto, mas não anula a subjetividade do homem...

Os poderes do mundo são mesquinhos, tirânicos, interesseiros... exercem-se na

política, no conhecimento, na sexualidade, na economia... há sempre opressores e

oprimidos, numa dualidade cômoda, sado-masoquista, com vantagens mútuas e

arranjos patológicos.

Em sua obra genial O medo à liberdade e em outros livros seus, Erich Fromm

desenvolve uma teoria para explicar o desejo de submissão e masoquismo das

massas humanas e ao mesmo tempo o desejo de mando e sadismo de alguns.

Segundo o pensador judeu alemão, que faz com isso brilhante análise do nazismo, o

processo de individuação da pessoa humana (tanto do ponto de vista de sua vida

pessoal, quando no desenrolar histórico) gera angústia e insegurança. Para ganhar

autonomia, o ser tem que se destacar da máe, do clá, da coletividade, do rebanho,

para agir, pensar e sentir por si... Essa conquista pode provocar a sensação de

solidão e ele busca compensar essa sensação, com formas patológicas de relação

amorosa, social ou política. Quando nos submetemos ou nos apossamos de alguém,

perdemos nosso eu, o outro se perde, fundimo-nos num todo e não há mais

liberdade, mas há a ilusão de que não estamos sós.

Esse mesmo desejo masoquista de submissão humilhante aparece em algumas

manifestações religiosas, em que deus se alteia como tirano vulgar. Quando o culto

a deus não engrandece o homem e a mulher, mas os deprecia, os apequena, os

macera, estamos diante de um deus sádico, que não ama suas criaturas.

O problema é que todo masoquista pode revelar seu lado sádico: então o

indivíduo que se anula diante de um deus despótico poderá usar do mesmo

despotismo para com o próximo. Aliás, ele só projeta um deus com tais traços,

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porque ele mesmo | assim. Desse modelo de relação religiosa é que nascem os

inquisidores, os guerreiros de guerras santas, os fanáticos de todos os matizes...

Esta descrição, porém, não resume toda a questão. Há um instinto natural de

adoração à divindade, fonte permanente da religiosidade humana, que nos faz

sentir pequenos diante do infinito. E portanto óbvia uma relação desigual entre o

absoluto e o relativo, entre o Criador e a criatura. Este instinto porém não pode se

inchar a ponto de perdermos o amor a nós mesmos — já que o próprio Cristo

ensinou-nos a amar o outro como a nós próprios. Se somos criaturas divinas, como

podemos deixar de amar Deus em nós?

Há por outro lado complexas sensações de culpa que levam o ser humano a uma

vontade de auto-pu- nição. Parece que a consciência pede alívio num castigo que

nós mesmos desejamos. Atribuímos assim a deus o papel de torturador e

carcereiro. Como a nossa justiça é mais vingança do que justiça, projetamos um

deus que castiga cruelmente, inclusive a nós mesmos, porque somos incapazes de

entender e praticar conosco e com o próximo o perdão divino.

Já dissemos que a dor tem um caráter pedagógico, e o objetivo da educação não

é castigar, mas ensinar. A dor não é condição, não é finalidade: a única vontade de

Deus a nosso respeito é de que sejamos bons e felizes. Não pode ser diferente.

Quando imaginamos um deus que nos quer fazer sofrer, passamos a nos comprazer

com o sofrimento do outro; quando projetamos um deus policialesco, que está à

espreita a cada minuto, para nos apanhar em falta, tornamo-nos juízes implacáveis

do próximo... Quando vemos em toda parte culpa e castigo, ao invés de erro e

aprendizagem, tentativa e experiência, assumimos uma amargura existencial que

nada tem a ver com a alegria e o amor transbordante de sentir Deus dentro si.

O perfil do homem e da mulher fanáticos é justamente o de crer num deus

autoritário, distante e cruel. Os fenômenos de fundamentalismo religioso por isso

deveriam em primeiro lugar ser analisados a partir da sua concepção de deus. As

personalidades iluminadas numa vivência ética e religiosa autêntica e serena

mostram intimidade com um Deus de bondade e compaixão e se sentem tomados

por uma benevolência amorosa por todas as criaturas.

O poder divino é diferente dos poderes que conhecemos, pois é o poder do

amor. Não se impõe, não anula, não tiraniza, mas respeita nossa liberdade,

empenha-se por nossa felicidade, visita-nos, convida- nos, fala-nos por todos os

meios, de forma doce e profunda, sem ferir nossa iniciativa.

O poder de Deus se faz na abundância de vida, na pujança da natureza, na

oferenda permanente de graça e beleza, de oportunidade e aprendizado, de

caminho e de bem...Deus não se vinga, não se ira, não castiga, não machuca, porque

não usa seu poder como forma de nos condicionar à obediência de sua Lei. Ele não

quer servos robotizados, que agem segundo um condicionamento externo. Quer

filhos voluntários, que tomem posse de sua herança. Por isso, usa seu amor

convidativo e vital para nos despertar a vontade de partilhar esta herança de

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filhos seus, de protagonistas de um universo em permanente criação e

transformação, em que podemos exercer também nosso poder de amor!

4-Quando deus se pulveriza (O vazio do falsos deuses)

O ser humano precisa exercitar seu instinto de adoração, pois tem imanente

em si o desejo de alcançar o perfeito, de tocar o absoluto, de ver a Deus. Mas

muitas vezes, este ímpeto, que pode nos levar ao infinito, se desfoca e atinge um

alvo indigno, menor, sem sentido. E quando usamos substitutivos para a divindade.

Elegemos deuses, pequenos, passageiros, humanos ou meras representações,

para entronizar nossa idolatria. Aparecem os simulacros de deus, espantalhos a

quem passamos a dedicar nossa veneração. Há para isso, pessoas que gostam de

assumir a posição de deuses ou ajudam em sua fabricação, por interesse, desejo

de poder ou patologia pessoal.

Desde sempre praticamos esse desvio de criar deuses humanos e o mais forte

indício histórico se encontra já na Antiguidade, com os soberanos deifi- cados.

Entre eles, os mais antigos conhecidos, os faraós, que possuíam todas as terras,

todos os súditos e distribuíam a graça do pão àqueles mesmos que o produziam.

Um ser humano deificado geralmente apresenta traços espalhafatosos, cheios

de aparatos e sinais — desde os faraós até os ídolos de rock o demonstram. Não

podem ser vistos como iguais aos outros, nem na aparência. Precisam se

abrilhantar artificialmente, o que os torna frequentemente bizarros.

Mesmo toda a majestade arquitetônica das pirâmides ou toda a luxúria das

sedas de um sátrapa oriental não escondem um exagero que fere o bom senso

estético e uma justa medida moral. Há algo de ridículo numa tumba gigantesca ou

num trono altíssimo, em que um mero ser humano seja cultuado.

E o sentimento de igualdade essencial entre todos os homens e mulheres que

nos faz ver este ridículo. Por isso a idolatria sempre se enraíza na falta de auto-

estima de alguns, aliada ao personalismo patológico de outros.

Entretanto, não são apenas nos ídolos humanos que projetamos nossa sede de

Deus. Desde a época do bezerro de ouro, que tanta indignação causou a Moisés,

também transformamos objetos e mais tarde, instituições e ideologias em deuses,

a que nos agarramos com desespero e fanatismo.

O deus institucional A tendência a transformar instituições e ideologias humanas em instâncias

absolutas também remonta à Antiguidade e continua sendo recorrente em nossa

história mais recente. O Império romano, com a divinização de César, deu lugar à

Igreja Católica, que passou a ser considerada na Idade Média, a representação

divina no mundo, de forma exclusivista, fanática e violenta. Fora de sua instância

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absolutista, não havia salvação nem na terra nem no além. A submissão voluntária

ou compulsória das consciências era condição de segurança física e espiritual do

ser individual.

A partir da oficialização da Igreja com o Imperador Constantino, os cristãos

passaram de perseguidos a perseguidores. Só para citar um exemplo, depois do

Concílio de Niceia, aliás convocado por Constantino, que pôs fim a uma disputa

sobre a natureza apenas humana ou também divina de Jesus, posições

representadas respectivamente por Arius e Atanásio, foi determinado o

banimento de Arius e decretado que se alguém fosse encontrado com um livro de

sua autoria, seria executado.

A multiplicidade de interpretações em torno da mensagem de Jesus,

consideradas pela Igreja como heréticas, (e foi demonstrado que qualquer um

podia ser suspeito de heresia) foi abafada a ferro e fogo com o uso frequente da

força e da humilhação da autonomia de julgamento. A Inquisição com seus

horrores foi o ápice deste processo.

Não se pode porém colocar na conta da religião e muito menos do cristianismo

ou de Deus este desvio monstruoso. No século XX, os Estados totalitários,

esvaziados de deus, mas assumindo um poder absoluto, fizeram o mesmo,

demonstrando com isso que o problema está no ser humano.

Querem alguns atribuir este comportamento a uma forma de apreensão

religiosa do mundo, como se fosse intrínseco ao modo de sentir sob a ótica

religiosa (mesmo se tratarmos de uma religiosidade laica) o elemento dogmático e

o totalitarismo institucional. Não é verdade. Aqueles que vivenciaram mais

profundamente Deus, foram na maior parte das vezes avessos às instituições e até

perseguidos por elas. Místicos como Mestre Eckart e Teresa d’Ávila tiveram

problemas com a intolerância religiosa. Al Hallaj, o grande poeta místico sufi,

morreu martirizado, condenado pelo islamismo oficial. Francisco de Assis

entregou ainda em vida a direção da ordem que fundara, por discordar dos rumos

institucionalistas que a Igreja lhe imprimira. Gandhi declarava-se ao mesmo tempo

hindu, muçulmano, budista, judeu e cristão, recusando o exclusivismo dos de sua

religião e morreu assassinado justamente por um fanático hindu.

Quando Deus de fato se revela ao ser humano, este é capaz de ver o quanto as

instituições O traem, O reduzem, O renegam. Nas instituições, estabelece- se a

hierarquia humana, a vontade de cargos, as disputas políticas e esvai-se a essência

divina. Segundo seu biógrafo, Tomas de Celano, Francisco de Assis teria dito que:

“para a alma, o cargo é um perigo, o louvor um precipício...”

Por que então tantas pessoas se aninham nas instituições, tornando-as

instâncias supremas de autoridade e poder? E pela segurança que elas oferecem.

Quem manda exerce seu gosto de domínio, quem obedece garante seu desejo de

segurança, sem o risco da escolha e da decisão. As instituições se tornam assim

instrumentos das ambições pessoais de alguns e porto seguro de comodismo para

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outros. Renuncia- seprópria consciência para se obter domínio ou se ganhar

conforto. Iludem-se os que se submetem que estão cumprindo mandamentos

divinos e alcançarão a salvação, justamente na renúncia à sua liberdade.

Ocorre que o Deus verdadeiro nos dá autonomia, porque assim nos fez.

Autonomia pede força de decisão e oferece consequente responsabilidade. As

instituições, quanto maiores, mais complexas e com mais interesses a defender,

mais amarram as pessoas em tramas de poder, conflitos e servidão e menos

permitem o frescor da naturalidade e da liberdade, dois dons divinos às suas

criaturas. Quanto mais institucional o ser humano se torna, mais afastado de

Deus, pois mais a instituição passa a absorver sua mente, sua vida, seu trabalho,

seu modo de estar no mundo.

O ser, com seus talentos singulares, com sua missão existencial específica, com

sua subjetividade necessária — enfim o ser individual, como morada da divindade

— se instrumentaliza na instituição. As instituições são criadas para se porem a

serviço do homem, mas depois crescem, se tornam complexas, e o homem passa a

ser seu escravo. Acaba-se a relação ser humano com ser humano, para tudo ser

intermediado por cargos e regras. O fluxo natural de sentimento e

companheirismo é substituído por mecanismos frios e coercitivos para fazer a

máquina funcionar. E todos acham natural que assim seja, porque vendem a alma à

Igreja, ao Estado, à empresa.. .quem não se enquadra, é excomungado, preso,

exilado, despedido... A instituição é impiedosa: ou a pessoa se submete, humilha a

capacidade de julgar e decidir por si, obedece ordens, ou está fora.

Que diferença da divindade, que nos quer justamente livres, exercitando nossa

vontade de criar e dt ser!

O deus ideológico Não é apenas a uma estrutura institucional que as consciências se rendem,

renunciando à sua autonomia de julgamento e de ação. Há idolatrias mais

sutis.Sáo aquelas em que as mentes se devotam ardorosamente a uma visáo de

mundo, com exclusão fanática de todas as outras.

Trata-se geralmente de sistemas de pensamento fechados, dogmáticos, que

carregam em seu próprio discurso o selo da intolerância. Podem esses sistemas

inclusive servir de justificação ideológica às instituições autoritárias. Assim, por

exemplo, o discurso comunista por trás do Estado soviético; o discurso nazista,

por trás do Terceiro Reich; o discurso teo- crático, por trás da Igreja

inquisitorial; o discurso cientificista, por trás do academicismo vazio ou do

tecnicismo mecânico.

O que caracteriza a ideologia deificada, esteja ela atrelada a uma instituição

ou não, é que seus adeptos desejam aplicá-la a tudo e a todos, com exclusão de

qualquer outra abordagem. A entronização da ciência, por exemplo, faz o indivíduo

desprezar outras percepções da realidade. O dogmatismo marxista quer explicar

qualquer fenômeno social, cultural, religioso, político, pelas leis do materialismo

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histórico... Por mais absurdo que possa parecer, o próprio relativismo pode ser

absolutizado, de forma a se tornar obsessivo. O pós-moderno é prova disto. O

dogma é o nada, o vazio, a desconstrução.

A ideologia mitificada é um pensamento fechado em si mesmo, que não permite

diálogo. Não importaque seja um pensamento teísta, panteísta ou ateu. O

resultado é sempre a dissociação das criaturas entre si, em territórios ideológicos

incomunicáveis.

Nesse sentido, o instrumento da dialética é útil (embora os adeptos da

dialética nem sempre pensem e ajam dialeticamente), pois mostra que as

contradições fazem parte da realidade e que a verdade do sim não é

necessariamente excludente da verdade do não, mas pode haver uma síntese entre

as duas posições.

O entendimento de Deus (e sobretudo o amor a Deus) está em oposição a todo

dogmatismo parcial da realidade, apesar de em nome de deus, terem se já

instalado no mundo tantas instituições e tantas ideologias deificadas. Deus é

múltiplo uno, presente em todos os aspectos do real. E como Deus está também

dentro de cada ser humano; cada qual pode experimentá-lo de uma forma, com o

filtro de seus condicionamentos culturais, de sua história de vida, de sua

singularidade. As diversas concepções de Deus enriquecem a nossa abordagem

coletiva de Deus. A experiência do outro completa a minha, assim como uma visão

científica da realidade não precisa excluir a vivência da revelação. Da mesma

forma, a história apreendida por Marx não precisa necessariamente abolir uma

concepção cristã ou budista...

Pietro Ubaldi, um místico médium, fala em A grande Síntese de: “um Deus sem

limites, que tudo62compreende, estreita e domina, até mesmo as aparências dos

contrários, aos quais encaminha para suas finalidades supremas”.

Isso não significa que achar Deus é mergulhar num caldo de conceitos

contraditórios, costurando uma colcha de retalhos religiosos, filosóficos, sociais...

Não é pegar um pedacinho de cada verdade e gerar um frankenstein. O ser humano

embebido na presença divina é capaz de enxergar uma unidade fundamental, que

escapa às divisões sectárias das ideologias, sem perder-se num amontoado de

ideias discrepantes. Ele é aberto, percebe o todo, mas não se ilude com os enganos

que todas as doutrinas possuem.

0 deus do mercado Se houve várias instituições deificadas com substratos ideológicos que

procuraram justificar essa dei- ficação, em quase todas elas havia uma parte de

verdade, uma parte de ideal, uma parte de humanismo. A Igreja, com todos os seus

abusos, sempre teve como pano de fundo a inspiração da mensagem de Jesus e, por

isso, de dentro dela mesma, sempre brotaram as críticas e as propostas de

reforma e mudança. Em nome de uma mensagem traída, critica-se a instituição

estabelecida. O mesmo se deu com o Estado – fosse de direita ou de esquerda. O

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Estado surgiu de um discurso de serviço ao povo, de cidadania, de bem-estar da

coletividade. As revoluções sempre foram feitas em nome mesmo do discurso que

embasa a existência do Estado. Explicitamente, nenhum Estado é fundado para

servir apenas à classe dominante ou aos governantes (embora na prática é isso que

aconteça). Mas em nome do povo, pode-se pretender reverter o processo de abuso

do poder e estabelecer um parâmetro mais ético de governo (apesar de

anarquistas como eu duvidarem da possibilidade de um aparato tão poderoso

voluntariamente ser colocado a serviço real da população).

Tudo isso, porém, é diferente do deus atual: o mercado. Neste, não existe

nenhum discurso subjacente de ética, que possa ser resgatado. Não houve um

propósito inicial de serviço ao ser humano, que se pudesse dizer traído. A meta do

sistema capitalista — também absoluto, ideologicamente justificado como única

possível verdade, sobretudo depois da queda do sistema comunista — é

simplesmente o lucro. O ser humano é necessariamente instrumentalizado.

O deus do mercado é panteísta: está em toda parte, tem tentáculos em todos

os setores e o ser humano perde a individualidade, para nele se integrar. Deve

sacrificar seus sonhos pessoais, sua vida familiar, sua vocação, seu julgamento

crítico, para manter o que há de mais valor: o emprego ou, cada vez mais, o

trabalho esporádico, terceirizado, sem garantia alguma.

Os valores estéticos, os valores morais, os valores religiosos, a criatividade, a

afetividade — tudo deve ser deposto no altar do mercado — pois só tem valor o

que vende. A pessoa não tem valor em si. Os princípios não têm valor.

A ideologia, também absoluta, que domina esse cenário é a do neo-liberalismo.

Esta ideologia, como todas as outras, é excludente de qualquer ponto de vista.

Segundo ela, está determinada a morte do socialismo, do anarquismo e de qualquer

utopia de um mundo mais justo; a morte da história e do sujeito que faz a história;

pois há um determinismo imutável de que as forças do mercado movem o mundo e

nada mais pode trazer progresso e felicidade aos seres humanos que o sistema

capitalista (embora a maior parte fique à margem destes benefícios, pois é um

sistema, que agora globalizado, é completamente excludente não só de classes

sociais, mas de povos e até de continentes inteiros).

Cinicamente, este discurso tem como ponta de lança a ideia maravilhosa da

liberdade. Mas Hitler também falava em liberdade e sabemos em que ele

acreditava. O ser humano que precisa se submeter a qualquer constrangimento de

sua consciência e a qualquer condição física e moral de trabalho, para sobreviver,

não é livre. A sociedade que recebe notícias pasteurizadas dos meios de

comunicação, que são regidos por interesses econômicos e não mais por ideais

políticos e sociais, não é uma sociedade livre. Os países, submetidos à exploração

imperialista das grandes potências (sobretudo do maior império de todos, o do tio

Sam), não são países livres. Nem mesmo o mercado é livre, pois é regido por

monopólios, cada vez mais poderosos.

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O deus do mercado é portanto onipotente? Pretende ser, pois ele até se

pessoaliza. Assim anunciam as manchetes: “o mercado fica nervoso”, “o mercado

reage bem”, “o mercado se agita”, “ o mercado se acalma”. Um deusinho tirânico,

caprichoso, imprevisível, tão irracional, quanto as filosofias pós-mo- dernas, que

abolem a categoria da razão e ao mesmo tempo desprezam os projetos de

emancipação do ser humano, considerados como ilusões iluministas.

Mas este deus, na verdade, é muito fraco. Só subsiste, porque as pessoas

acreditam nele. Primeiro, porque se trata de uma representação, ele sim, ilusório,

pois não se assenta em realidades palpáveis: o dinheiro movimentado não existe de

fato, as flutuações do mercado dependem de fatores predominantemente

psicológicos.

É verdade que ele também se mantém à força das armas dos grandes impérios.

Mas os grandes impérios precisam de força de trabalho, precisam de mercadorias,

precisam de matéria prima, precisam de consumidores... A não-colaboração, o

excelente método inaugurado por Mahatma Gandhi e ainda tão pouco

experimentado, seria o mais eficaz para nos livrarmos desse deus do mercado e de

seus sacerdotes armados, que mais recentemente, com a atual ditadura norte-

americana, resolveu relembrar outro deus tirânico, o do fundamentalismo, para

referendá-lo.

Deus dá esperança Aquilo mesmo que é o mais absurdo neste deus do mercado, a ausência nele de

qualquer bem, qualquer princípio, qualquer valor — é também o seu calcanhar de

Aquiles. E que com esse deus não estabelecemos um vínculo afetivo. A Igreja dos

inquisidores era a “santa madre Igreja”, o Estado totalitário soviético encarnava a

força dos camaradas revolucionários.

O mercado é impessoal, não representa nada simpático, nada acolhedor, nada que

nos inspire qualquer idealismo. Ele não precisa torturar, não precisa usar de vigias,

de espiões a cada esquina, não precisa ameaçar de morte, mas também não angaria

adesãoentusiástica, náo faz alguém dar a vida por ele. É o deus mais esvaziado de

Deus que até agora houve na história humana. Por isso, náo será difícil matá-lo.

Não sentiremos remorso, não sentiremos conflito de consciência, porque não há

parcela de verdade nele.

Esse deus usa de hipnose coletiva, através da mídia, não para angariar adeptos,

mas apenas para anestesiar as consciências e encher o ser humano de desejos

inúteis. São eles, aliás, que o sustentam. Bastará um despertar da alma, bastará

que se sinta o quanto esse deus é árido, para que sem demora nos libertemos dele.

Exatamente pela ausência completa de nobreza divina nesse deusinho, é que

Deus de fato fica mais perto de nós. Precisamos o quanto antes reencontrá- Lo,

pois só hEle está a esperança de um mundo mais fraterno e menos mercadológico.

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3 Deus como Ele é

5-Deus está na origem Nossa alma perde o fôlego, nossa mente se perturba, quando pensamos numa

Causa que não teve causa, numa Origem que não teve origem, num Criador que não

foi criado. Seres finitos e mortais, somos tomados de perplexidade quando nos

defrontamos com o eterno, com o que sempre existiu e não cessará de existir. E

não pode haver Deus sujeito a tempo e espaço. Se imaginarmos qualquer limite a

Deus, ele não será Deus.

Da mesma forma, quanto mais recuemos na origem das coisas, não importa qual

teoria a ciência adote ou venha a adotar no futuro a respeito da formação das

galáxias e dos sistemas cósmicos, sempre haverá a necessidade de supormos uma

causa primeira, uma inteligência inicial, um impulso primordial.

A necessidade de um poder legislador, organizador e mantenedor do universo é

de uma lógica ina- pelável. Não haveria nenhuma estabilidade possível, nenhuma

ciência coerente, nenhuma tecnologia que funcionasse, sem um fundamento de

verdade palpável, de verdade objetiva, de harmonia cósmica. A inteligibilidade que

achamos no mundo está lá, não é invenção nossa, como querem os nihilistas. Senão,

nada do que fazemos funcionaria. Viveríamos mergulhados num mundo sem nexo,

sem sentido, sem previsibilidade alguma.A dificuldade que temos de conceber um

ser originário de todas as coisas está conectada ao nosso hábito de

antropomorfismo. Se pensarmos num velhinho de barbas brancas que arranca o

universo do nada, num passe de mágica, obviamente rejeitaremos tal deus, pois que

já passamos da fase das mitologias antropomórficas.

Mas, por outro lado, nada mais difícil do que conceber Deus. Podemos saber que

o universo precisa de uma causa originária, podemos entender que se trata de uma

inteligência pura, um Ser supremo, o Ser dos seres, mas como Ele é, o que Ele é,

quem Ele é... é quase impossível dizê-lo. Tanto é verdade que os que melhor

descreveram Deus, mostraram-nO através de uma vivência, que revelava a Sua

presença neles ou, se usaram de palavras, adotaram metáforas, analogias, poesia

mística...

Não é que a ideia de Deus seja irracional, muito pelo contrário, é a que melhor

se ajusta à realidade. Basta observar, por exemplo, a perfeita estrutura de um

corpo humano. Uma evolução cega, sem planejamento inteligente, não poderia ter

aperfeiçoado os corpos a tal ponto de alcançar a beleza, a funcionalidade e

harmonia de todas as células e órgãos, que compõem a estrutura física do homem e

da mulher.

Mas para falar dessa razão suprema, que empresta inteligibilidade a todas as

coisas, a nossa razão é pobre, as nossas palavras sáo ralas. O mais próximo que

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podemos chegar da compreensão de Deus é pelo amor - por isso já na fundação do

monoteísmo judaico, o primeiro mandamento reza: amar a Deus sobre todas as

coisas. Só pelo amor a Deus, podemos amar a nós mesmos, seus herdeiros; o

próximo, nosso irmão; a natureza, sua obra; e abarcar a sua paternidade universal.

Criacionismo e evolucionismo Eis uma polêmica que já tem 150 anos e que atormenta ainda muitas almas. Uma

polêmica inútil, pelo radicalismo de ambas as partes: da ciência materialista e do

fúndamentalismo religioso. Acontece que nem a ciência precisa ser materialista,

nem a religião, funda- mentalista. E Deus pode estar presente em ambas as formas

de apreender a realidade, que é una, animada pela seiva divina.

A evolução das espécies é um fato. Temos registros fósseis dos animais

pré-históricos, dos homens pré-históricos, que realmente eram fisicamente mais

primitivos do que o homem contemporâneo.

Basta visitar um bom museu de história natural, para saber que a história de

Adão e Eva é um relato simbólico, com múltiplos e ricos significados, menos seu

significado literal.

Mas o fato das investigações científicas apontarem dados de evolução

biológica das espécies e propor hipóteses de que o próprio ser humano tenha

evoluído de formas inferiores — não exclui necessariamente a ideia de Deus.

Muito ao contrário. Ela se torna ainda mais lógica. Claro que se acaba com uma

concepção estreita de deus, esta de considerá-lo um deusinho mágico, que

passeava pelos jardins do Éden e resolveu criar o homem do barro da terra e a

mulher de sua costela. Se ampliarmos essa história numa interpretação

metafórica, teremos a ideia da evolução: o corpo humano nasce da evolução

terrestre, mas tem o sopro divino, que lhe dá a essência da alma. Mas quem deu o

impulso da evolução, senão a divindade? E quem lhe assoprou a alma, senão Deus?

Aliás, a adoção de uma interpretação materialista do evolucionismo foi uma

opção ideológica (e não científica) e faz parte de um processo de silencia- mento

histórico das ideias espiritualistas, que atingiu muitas personalidades e

investigações, desde o século XIX. Uma delas, relacionada justamente à questão

do evolucionismo, foi Russel Wallace.

Este cientista inglês, que tem uma obra múltipla, desde livros sobre socialismo,

agricultura, filosofia espiritualista, até história natural e biologia... viajou, como

Darwin, pelo mundo, pesquisando floras e faunas dos continentes e chegou à teoria

da evolução ao mesmo tempo que aquele. Wallace enviou, entretanto, os resultados

da pesquisa ao colega, que estava na Inglaterra, enquanto ainda viajava. Qual não

foi o espanto de Charles Darwin ao ver anos de trabalho seu perdidos porque outra

pessoa havia chegado ao mesmo resultado que ele. Diante do impasse ético, que

gerou várias cartas de Darwin, os amigos deste decidiram enviar à Academia, os

dois trabalhos - de Wallace e de Darwin — ao mesmo tempo. Por que hoje, então,

todos conhecemos Darwin e quase ninguém ouve falar de Wallace? Porque Darwin

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optou pelo ateísmo e Wallace não dispensou Deus de um mundo em evolução.

Dedicou-se depois ao estudo dos chamados fenômenos psíquicos e tornou-se

espiritualista. Aprofundou-se então p preconceito em relação ao seu nome.

Há fatores políticos que também influenciam esta disputa. Na teoria

darwinista, o processo de seleção natural se dá pela lei do mais forte. As espécies

mais capazes vão eliminando as mais fracas. Em consequ- ência, Darwin era

partidário ardoroso da eugenia. Isso está de excelente formato para o

capitalismo, onde é lícito massacrar o outro para que “vença o melhor”. A ideia

repulsiva da eugenia não foi apenas utilizada por Hitler, mas tem forte influência

nos Estados Unidos.

Wallace, ao contrário, era socialista e acreditava que a evolução se dava pela

cooperação.

No campo da filosofia, temos o esquecido Henri Bergson, que também partilhou

a ideia de um evo- lucionismo espiritualista e exerceu influência sobre o grande

teólogo católico Teilhard de Chardin, que sofreu por parte dos religiosos quase o

mesmo olvido que os cientistas votaram a Russel Wallace. Num sistema de

pensamento de grande beleza poética e alto alcance epistemológico, Chardin

desvendou Deus como aquele Ser que desencadeia um processo de

aperfeiçoamento permanente, desde as formas mais simples de vida até as altas

manifestações da inteligência e do amor.

Mas antes de Wallace, Bergson e Chardin, houve outro menosprezado na

história da ideias, que defendeu um evolucionismo cósmico, com a ideia de Deus,

como criador dos seres em constante aperfeiçoamento e da própria lei da

evolução: Allan Kardec.

Em todos esses pensadores, não há a mínima negação de Deus, mas a sua

exaltação, a ampliação de seu conceito, um louvor implícito da sua grandeza. Não se

trata de um deus que criou do nada um mundo acabado, estático. Trata-se de um

Deus que criou um mundo em permanente ascensão, um universo dinâmico, vivo, que

Ele sustenta, governa e conduz para sempre maior perfeição. Nesse universo, o

mal é temporário, o erro é aprendizagem, a dor é pedagógica e tudo se encaminha

para o melhor.

E mais: Deus não criou em algum ponto da eternidade e se recolheu numa

inércia divina. Como de sua essência o ato criador, Ele cria permanentemente.

Essa ideia combina com o nascimento perene de novos mundos, novas galáxias,

novos universos... com o processo de vida e morte universal, que hoje identificamos

na realidade cósmica.

Entretanto, há que se tomar um cuidado com as teorias evolucionistas que

abarcam Deus. É o perigo da panteização da divindade, quando alguns pensadores a

incluem no próprio processo de evolução. Ou seja, um deus que não é perfeito, mas

está se fazendo através de um processo cósmico, de devir permanente. Assim

teoriza Hegel e podemos dizer que Bergson também entra algumas vezes por esse

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viés.

Compreender a imanência de Deus em toda parte e sobretudo na lei da evolução

não significa sujeitá-lo a essa lei. Se a lei tem uma origem divina, o legislador está

além de sua própria lei. O deus desfeito no todo é imperfeito e, portanto, não é

deus. O deus panteiza- do se pulveriza sem identidade própria. Quando não existe

diferenciação entre deus e a natureza, entre deus e o universo, entre deus e suas

criaturas, então deus quase não existe.

A origem do mal Uma questão que naturalmente se apresenta ao espirito, quando discutimos a

existência de Deus e seu papel na criação, é de onde vem o mal. Alguns negam Deus,

por causa do mal e outros não Lhe reconhecem os atributos de bondade e

perfeição, por causa dos terríveis males que vemos no mundo.

Pode-se dizer que há dois tipos de males - os que são naturais, sem a

participação humana e os que sáo provocados pelo homem. Os que são naturais -

como flagelos da natureza, doença, morte — fazem parte da condição da vida e se

os entendermos como integrantes de um processo vital, de renovação, em que

morte e renascimento têm papel essencial, não os consideraremos um mal, apesar

do sofrimento que podem nos causar individualmente.

O outro tipo de mal — esse o pior dos dois - é o provocado pelo próprio homem:

as guerras, os massacres, todas as formas de violência, de abuso do poder, a

tremenda injustiça que permeia as relações humanas, a agressão à natureza...

Os céticos costumam então perguntar: por que Deus permite tais

barbaridades? Se é onipotente, por que não impede tantos abusos, tanto

sofrimento, tanto sacrifício? Podemos argumentar que um dos valores máximos da

criação é a liberdade. Deus não quer escravos, que pratiquem o bem por coerção,

quer filhos livres. E a liberdade permite o erro, o desvio, o sofrimento...Mas

também permite a aprendizagem de que o bem vale mais que o mal, que no bem há

felicidade, vida e plenitude e no mal, há tragédia, sofrimento e morte...

E que na perspectiva da eternidade, o mal é passageiro, a aprendizagem

dolorosa é pontual — tudo passa, porque tudo caminha para a ascensão, para maior

perfeição, para retornar ao ponto de origem — que é Deus.

Poderão os relativistas da escola de Nietzsche, que escreveu Para Além do Bem e do Mal, acusar esse arrazoado de maniqueísta. E verdade que existe um grau de

relatividade naquilo que consideramos mal... e um grau de relatividade no que

chamamos de bem. Mas se negarmos que matar, desrespeitar a vida, ferir a

dignidade humana, excluir pessoas de seus direitos, sejam males, então nada mais

podemos fazer em favor da felicidade e do bem-estar da humanidade. Se não

houver nenhum parâmetro, não há motivos para lutar. Por outro lado, se não

considerarmos a solidariedade, o amor, o respeito, a justiça, como valores

positivos, absolutos, então não há nenhuma esperança mais.

Deus é portanto a fonte de todo o bem, o criador de tudo o que existe, a origem

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suprema do universo, a causa das causas, o absoluto e o incriado. Qualquer mal que

possamos conceber ou praticar náo chega a interferir na grandiosidade da obra

divina. E apenas motivo de desgosto para nós mesmos.

Causa Viemos do teu regaço , Para ti voltaremos E em cada passo Continuamos em ti. Es causa passada Es origem presente,

És sentido aqui.

6 Deus dá sentido Porque é causa, Deus dá sentido a tudo o que existe. A presença de Deus dá

sentido à vida. A vida sem sentido | um arrastar-se sem rumo, mas Deus sustenta

a vida, sendo causa e finalidade, essênciapermanência e nos entrega a

possibilidade de um projeto existencial, que apesar de ser escolha e construção

nossa, brota da sua presença em nós.

A sede de sentido, título aliás de uma obra de Victor Frankl, um dos poucos

teóricos da psicologia, que trata da questão de Deus, faz parte intrínseca da

natureza humana. Muitos explicam a existência das religiões em todas as culturas

da história, como tentativas de emprestar sentido à vida.

A questão está justamente aí. Trata-se de uma tentativa de dar sentido ao que

não tem sentido nem razão ou trata-se de achar um sentido que está lá, oculto,

latente? Alguns pensadores das academias atuais, que viram ser impossível apagar

do coração humano a dimensão religiosa, a vontade de sentido e a ânsia por Deus,

resolveram admitir a necessidade da religião, mas o fazem desta forma: é a busca

de um sentido, para o que não tem sentido. É a categoria do imaginário, conferindo

uma coerência ao que é caótico e sem explicação. Em outras palavras, por mais

benigna e desejável que seja a ideia e a sensação de sentido, não passa de uma

ilusão. Ilusão tolerável e compreensível, dadas as carências humanas, mas de que

naturalmente os sábios, que habitam certos castelos teóricos, prescindem em sua

superioridade.

A busca de sentido, porém, é imanente no ser humano. Da mitologia antiga às

teorias científicas, a humanidade está sempre procurando um porquê e um para

quê.

A ideia de sentido está ligada à inteligibilidade, a algum tipo de lógica

intrínseca das coisas. Significa que nem tudo é aleatório, caóuco, inexplicável, mas

é possível achar um fio de entendimento nos fenômenos existenciais, naturais,

cósmicos... Também do ponto de vista da subjetividade, é possível achar-se,

fundamentar-se e projetar-se para uma meta.

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A racionalidade do sentido Poderíamos dizer que há duas espécies de lógica que percorrem as filosofias

ocidental e oriental. Chamemo-las de lógica do ser e lógica do devir. A lógica do ser

afirma aquilo que é. Quando Yaweh diz a Moisés: “eu sou aquele que sou” está se

mostrando como identidade absoluta, como Ser supremo. Dai deriva a ideia da

nossa identidade individual: embora sejamos de modo relativo ao absoluto divino,

podemos afirmar a nossa identidade, do contrário não poderia haver uma relação

do eu com o Tu supremo. Esta é a tradição judaico-cristã, mas também a tradição

platônica e aristotélica. No Oriente, temos tal afirmação na filosofia

confiicionista.

Nesta lógica, há uma forte sensação de estabilidade, de permanência e solidez.

A lógica do devir — que pode ser ou não evolu- cionista, porque há também o

devir do eterno retorno - apreende aquilo que está sendo, num processo de

mutação permanente, de modo que nada se pode afirmar como ser, mas apenas

como devir. £ a velha história de Heráclito, de que jamais pomos os pés duas vezes

no mesmo rio. No Oriente, a tradição tao- ísta é talvez uma das mais aparentadas

com essa ideia. Na filosofia ocidental mais recente, foi Hegel quem retomou essa

concepção, com a sua dialética aplicada à história.

Tem-se aí uma impressão de impermanência e de fluidez.

Entretanto, as duas formas de lógica não são incompatíveis entre si, como os

partidários de uma ou de outra costumam pensar. Aliás, se nos fecharmos em

apenas uma delas, tenderemos a posições dogmáticas. A lógica do ser por si só é

incapaz de assumir as contradições e de encará-las de forma natural e positiva. É

uma lógica que sozinha pode nos dar uma visão muito estática do universo.

Por outro lado, a lógica do devir pode caminhar facilmente para um

desmanchar-se do ser, para um esgarçar-se completo da realidade. Na própria

doutrina de Hegel, existe uma semente de nihilismo, porque há um momento no

processo dialético em que o ser vai para o não-ser, para depois tornar a ser. É

verdade que podemos aplicar a imagem à semente que morre para renascer árvore

e a todos os processos de vida e morte que fazem parte do devir das coisas.

Mas para que a realidade — que tem um aspecto de impermanência e mutação,

de dinâmica e de processo — tenha um sentido, preciso haver uma instância

imutável, permanente, que entreteça a inteligibilidade do devir. Esta instância é

Deus. Ele é o Ser que não está sujeito ao devir. Se não houver um Ser que está

acima do devir, tudo se desfaz no caos.

Por isso, muitas são as experiências religiosas das mais diversas culturas que

tratam o mundo como im- permanente e ilusório e fincam o sentido e a plenitude da

existência no encontro com o Ser absoluto.

O problema da lógica do ser é quando se tomam por imutáveis outras instâncias

ontológicas que não seja Deus e o problema da lógica do devir é quando se submete

a própria divindade a uma impermanência que lhe arranca a estatura de absoluto.

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Assim, podemos dizer que o sentido supremo da vida é Deus. Mas existem

sentidos provisórios, relativos, que podem ser necessários e bons.

A subjetividade do sentido A maneira de cada ser individual dar significado e conteúdo emocional, racional

e existencial à dimensão divina em sua vida é o sentido que cada um encontra para

si mesmo.

Há infinitos caminhos para o ser humano realizar a presença de Deus em si e no

mundo. A arte, a ciência, a militância social, a vida em família, a dedicação ao

trabalho manual, o exercício honesto e humilde da liderança, a escrita, a

comunicação, a vida religiosa, as vocações mais diversas, desde que úteis,

construtivas e boas para quem as segue e para a humanidade podem ser

manifestações do Criador através de suas criaturas. E essa manifestação enche a

vida de sentido, mostrando como possuímos uma vocação máxima: a de sermos

filhos e herdeiros de Deus. Se estivermos em consonância com o sentido que Ele

imprime ao universo — que é sempre um sentido de generosidade, amor e

crescimento — sentimo-nos plenos. As frustrações e os empecilhos podem ser

circunstanciais, mas o lastro existencial jamais é de desespero e angústia.

Na subjetividade do sentido podem estar as mais diversas doutrinas

filosóficas e religiosas, científicas ou sociais — e mesmo que sejam doutrinas que

aparentemente neguem a existência de Deus, se produzem um sentido denso e

positivo, altruísta e abnegado, ainda aí há uma presença divina.

Pode-se observar isso em grandes personalidades que, seja por

condicionamento ideológico de uma época histórica, seja pela revolta contra a

imposição que as instituições religiosas sempre fizeram, ou ainda pelo ceticismo

aprendido com as ciências experimentais, adotaram o ateísmo militante ou o

materialismo dogmático, mas têm na vida um sentido de serviço ao próximo e até

uma vocação para o martírio que só uma imanência divina pode explicar. Porque se

tudo de fato se acabasse e náo houvesse nenhum sentido em nada, para que viver e

morrer por uma causa humanitária e doar-se sem reservas para o outro? Qual a

garantia e, mesmo, a esperança de uma vitória do bem, se tudo é tão aleatório e

incerto?

Não é à toa que muitos analisaram os aspectos religiosos e mesmo proféticos

das teorias e das militâncias socialistas e anarquistas.

sentido histórico A descoberta da história não é tanto grega, é muito mais de origem judaica e,

depois, cristã. Entenda-se não a história como narrativa de uma sucessão temporal

de fatos, mas como sentido coletivo e temporalidade causal. Não importa a

interpretação que possamos dar à Bíblia, mas trata-se de um relato (ou vários

relatos) que entendem a história como um suceder de eventos em que a interação

entre a liberdade humana e a intervenção divina faz um sentido, empresta uma

inteligibilidade ao tempo.

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Com o advento da mensagem cristã, este sentido se dilata. A vinda de Jesus em

si mesma representa o cumprimento de uma promessa histórica e seu anúncio do

Reino é uma ideia tão fecunda que múltiplos movimentos e doutrinas sociais,

religiosas e políticas - dos milenarismos aos socialismos — ganharam ímpeto nesses

dois mil anos, inspiradas pela busca do Reino, ora entendido como realização

íntima, ora como concretização histórica.

Desde o medieval Gioachino di Fiore, lido pelos espirituais franciscanos — a ala

mais à esquerda do franciscanismo nascente — ou por Colombo, o descobridor,

(inebriado pela busca do paraíso na terra, apesar da contaminação de suas

ambições pessoais por riqueza e glória); passando por Thomas Morus e Campanella,

com a Utopia e a Cidade do Sol, as projeções do Reino se afastavam temporal e

espacialmente da história, mas serviam de guia e meta, de inspiração e sonho para

o futuro.

Laicizadas depois, já desde o texto de Kant sobre a Paz Perpétua até o paraíso

comunista de Marx ou o Estado positivo de Comte, ainda permaneceu a ideia de que

a história iria chegar a algum lugar melhor, a alguma concretização feliz, o que

entreteceu a esperança e encheu de sentido o presente de então.

E verdade que há também a utopia negativa, aquela que prega o fim do mundo de

forma trágica e sombria, com um terrível julgamento divino, acompanhado de

trombetas sonoras ou, mais recentemente, com guerras de extermínio em massa...

Mas ainda aí, no pensamento religioso, há a redenção além, na eternidade.

O pensamento pós-moderno, porém, assim como considera uma ilusão a ideia de

sentido pessoal, também considera que qualquer sentido histórico, qualquer

finalismo, por mais tênue e por mais aparentado apenas com uma esperança, é

ingenuidade metafísica, porque assim como a vida individual, a vida coletiva não

tem sentido. E puro jogo de circunstâncias cegas, aleatórias, que não se pode

delinear com racionalidade. E se enxergamos qualquer racionalidade, trata-se de

uma projeção nossa, de um olhar que deseja ver sentido.

Eis uma explicação que não explica, apenas complica. De onde tiraríamos esta

vontade permanente de sentido, senão de uma intuição, de uma apreensão do

próprio sentido? Se fôssemos resultado sem nexo do caótico acaso, como teríamos

tanto senso de inteligibilidade?

É certo que o momento de agora, de crises tantas, pode sugerir o retrocesso, o

caos, a irracionalidade e, mais, pode parecer que tudo o que imaginamos de

progresso não tenha sido mais do que uma ilusão da belle époque. E que as crises

obscurecem a visão, perdemos a noção de continuidade, quando estamos

mergulhados numa época de aprendizado dolorido. Mas para tomarmos consciência

dos males que nos assombram, precisávamos esgotar as ilusões a respeito, pecando

e, pelo excesso de mal, nos enjoarmos...

A agressão à natureza desencadeou a consciência ecológica; a terrível exclusão

de classes e povos inteiros dos bens necessários a uma vida digna deverá

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despertar a rejeição do sistema econômico vigente; o paroxismo da violência entre

as nações acordará o desejo de paz. Como diz a música de Gil: “uma bomba sobre o

Japão fez nascer o Japão da paz”.

Então, o sentido histórico das tragédias torna-se compreensível na medida que

elas são aprendizagem coletiva. A meta de melhoria e da vinda do Reino se integra

com a lentidão da liberdade humana de aprender a buscar o Reino, onde ele está,

no coração fraterno, na justiça entre todos, na paz universal.

O sentido de eternidade Sob qualquer perspectiva — do ser ou do devir, do pessoal ou do coletivo — o

sentido da vida só pode se ancorar na eternidade. Seja a eternidade após vários

ciclos reencarnatórios, portanto múltiplas inserções no tempo, seja a eternidade

da ressurreição no final dos tempos, seja a eternidade do nirvana ou qualquer

outra forma com que se nos apresente o eterno. Na contingência da nossa finitude

humana, é difícil enxergar com olhos de eternidade... Allan Kardec usava a

metáfora da montanha. É preciso subir e olhar o vale de cima e as coisas do

cotidiano tomam a sua dimensão correta, pequenas, passageiras. Quando as

olhamos de baixo nos parecem assustadoras.

Sob a ótica da eternidade, toda tragédia se desfaz, todo erro se esvai... Deus

está lá, garantindo a felicidade, o crescimento, a harmonia de todas as coisas.

A noção de eternidade é o que nos remete para além dos limites do espaço e do

tempo e nos faz entrever que as piores facetas da realidade são tão efêmeras

como uma tempestade de verão. É o olhar de Platão para fora da caverna. Na

dimensão que nos limita, tudo são sombras; saindo fora do tempo, o sol de Deus

ilumina e nos faz enxergar a eterna beleza do ser e do devir.

Não | todos os dias que conseguimos, e não são todas as pessoas que já

aprenderam, a elevar a vista para fora da caverna e sentir o brisa do absoluto e da

eternidade. Mas a oração, o bem praticado, a vivência do amor podem nos dar esse

relance e então tudo faz tanto sentido, que mal podemos expressá-lo.

Minha vida se dobra sobre o solo se desdobra ao infinito, espalho-a de um materno colo espelho-a de um céu bendito ' A vida, que sempre me é dada é a vida que nunca mais se enfada, pois agora a vida já sei. A vida, o semen de anjo, o broto da divindade, a vida germina em mim e habito a fácil verdade de uma vida e de todas as vidas sem jamais fim... A vida que agradeço é sempre a que mereço é sempre a que teço e já não meço seu preço. Só posso dela semear meu verso, só quero vê-la de frente e de verso, só devo preenchê-la com o universo.

7-Deus se põe como fim Todo o ser vivo busca o bem-estar.

Todo ser humano busca a felicidade. Mas no bem-estar de que os próprios

animais precisam, existem elementos que estio além das necessidades meramente

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físicas. Muitos demonstram alegria e satisfação não apenas quando os

alimentamos, mas também quando lhes damos carinho.

Elementos imponderáveis, não físicos, fazem parte das necessidades

essenciais dos seres vivos, pois até as plantas reagem a um tratamento amoroso, a

uma música suave.

Ora, isso é ainda mais evidente no ser humano, pois tudo o que é considerado

como felicidade imediata, material, está longe de preencher as carências

essenciais de uma pessoa. Basta constatar como tanta gente rica, jovem, bonita e

instruída se mergulha em depressões e procura algo além.

A busca da felicidade pode ser descrita como a grande epopeia humana, e ela

está conectada estreitamente com a ideia de sentido.

Tolstoi, o grande sábio russo, viveu uma crise que ilustra bem a questão. Atingiu

a maturidade, com tudo o que se pode humanamente almejar: rico, com uma família

estruturada, bem posto na aristocracia da sociedade em que vivia, escritor genial

e de sucesso.

De repente, sentiu um grande vazio e quase foi levado ao suicídio. Não se sentia

pleno, feliz.

A solução da crise para Tolstoi foi uma busca espiritual intensa, com o encontro

afinal de uma vivência despojada, autêntica e sentida do Evangelho de Jesus.

Achou sentido, finalidade existencial — pois passou a lutar por uma sociedade mais

justa, dedicando-se aos camponeses — aconchegou-se a Deus e pacificou-se.

Isso não significa que tenha escapado de todos os tormentos e contrariedades

da vida. Tinha por exemplo uma esposa que não compreendeu e não aceitou sua nova

jornada, viu amigos próximos e familiares perseguidos pela polícia czarista por

seguirem suas doutrinas de anarquismo e resistência passiva - que depois

inspirariam Gandhi; sofria com os conflitos sociais e a miséria do povo.

Outros grandes espíritos que atingiram um estado elevado de pacificação

interna, de entrega a Deus e de realização moral não deixaram igualmente de

experimentar as contingências depressivas de situações externas e internas.

Lembremos Francisco de Assis, em sua dor, por ver a ordem que criara, ameaçada

pela burocracia da Igreja e até o próprio Cristo, chorando no horto, pedindo que

aquele cálice se afastasse.

Isso tudo significa que a felicidade não está na posse do que é efêmero, porque

esta felicidade logo seesvai e mesmo quando presente, pode trazer à alma um

vazio. Porém mesmo a mais verdadeira felicidade - a da realização de si, da

comunhão com Deus e da perfeição possível —ainda pode se cobrir de sombras na

terra.

Embora aspirando os ares do eterno, o aqui e o agora podem estar cheios de

temporalidades angustiantes, mesmo para aquele que consegue elevar a vista

acima delas.

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A finalidade do ser no devir Dizia o grande teólogo sufi Al-Ghazzâli em seu Alquimia da Felicidade “que o

homem não foi criado por brincadeira ou ao acaso, mas feito prodigiosamente e

para um grande fim. Embora ele não seja da eternidade, vive para sempre; e ainda

que seu corpo seja insignificante e terrestre, seu espírito é sublime e divino”.

Neste pequeno trecho, está descrito que a finalidade do homem se deve à sua

origem, que a eternidade é sua destinação, que sua herança é divina, portanto o

“grande fim” só pode estar projetado em Deus.

Este desejo imanente e universal de felicidade, que não se contenta com o

efêmero, que não se aplaca com os bens da terra e nem mesmo se extingue com os

bens espirituais desfrutáveis no mundo, significa assim que a finalidade do ser

humano está sempre além, estendendo-se na eternidade.

O ser que permanece o mesmo em sua identidade, mas que está imerso no devir,

está sempre buscando algo a mais. Nenhuma satisfação lhe serve completamente,

nenhuma finalidade atingida lhe parece um ponto final.

Se esta ânsia implacável nunca se satisfaz e se toda realização parece parcial é

que existe um pólo que nos atrái sempre além; uma medida absoluta, que nos torna

sempre relativos.

Jesus expressou isso quando disse: “sede perfeitos como vosso Pai celestial é

perfeito”. A perfeição divina é justamente o que nos chama, o que nos inspira

adoração e o desejo de atingi-la, sem porém, jamais alcançá-la.

Muitas tradições religiosas mostram, entretanto, que esse impulso presente

nos seres humanos é a presença divina em nós. Ou seja, o que nos empurra para

cima, parte de dentro de nós.

Por isso, o mesmo Mestre que nos convidou à perfeição, também disse: “O Reino

de Deus está dentro de vós”. Não por acaso, a jornada espiritual deTolstoi

desembocou nesta constatação — que se tornou o título de uma obra sua.Assim,

como já anunciavam Platão e Aristóteles e depois, Agostinho e Tomás de Aquino,

existe uma natureza moral do ser e só ao cumpri-la, encontramos a felicidade. Mas

como nessa natureza está um germe de perfeição, ela nunca se satisfaz

plenamente, porque, pelo menos, neste contexto existencial em que nos

encontramos, nunca avistamos a perfeição.

A felicidade, assim, nos parece uma meta que estamos sempre buscando, sem

nunca atingi-la, exatamente porque ela pressupõe o perfeito e o eterno e apenas

em Deus existe a perfeição e a eternidade.

Assim Deus se põe como finalidade suprema, como alvo desta perene busca

humana por felicidade.

As finalidades equivocadas Uma das principais fontes de infelicidade e não realização da natureza humana

está em supor a felicidade em finalidades que são apenas meios.

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A finalidade verdadeira é essa que se põe como meta não alcançável, pelo menos

no curto espaço de uma vida terrestre, porque se trata de uma finalidade que nos

move para além de nós mesmos, que nos projeta para a transcendência.

Se, ao invés, trabalharmos por finalidades relativas, como se fossem absolutas

e portadoras de felicidade, então nos deparamos com a frustração e o fracasso.

O dinheiro, o prazer sexual, o poder, a fama sáo exemplos de finalidades

equivocadas se forem postas como fins e não como meios. Os meios sáo

estratégias, mais úteis ou menos úteis, descartáveis ou até prejudiciais,

dependendo das circunstâncias, para se chegar a um fim mais alto.

O dinheiro pode ser um instrumento proveitoso de atuação humanitária,

cultural, mas pode haver vidas, projetos ou circunstâncias em que o despoja-

mento e a pobreza sejam os meios para se atingir a finalidade maior. O mesmo se

dá com o prazer sexual — ele pode ser elemento essencial numa relação de amor,

saudável e produtiva em que o ser humano se realize, mas pode haver existências

ou períodos existenciais, em que tenhamos de procurar a sublimação dos impulsos

básicos.

Mais uma vez, Jesus nos ensina com precisão: “procurai em primeiro lugar o

Reino de Deus e sua justiça e todo o resto vos será acrescentado”. Com dinheiro ou

na pobreza, célebres ou anônimos, em companhia de alguém ou castos, o que deve

nos mover são valores imperecíveis, aqueles que nem as traças roem e nem os

ladrões alcançam. Se valores de justiça e de amor, de serviço desinteressado e

doação ao próximo, de paz de consciência e bem-estar espiritual estiverem sólidos

dentro de nós, teremos a felicidade possível deste mundo, que nada poderá nos

arrancar. Como dizia Sócrates, aqueles que não sabem disso, aqueles que buscam a

satisfação imediata são ignorantes dos verdadeiros bens. O ambicioso, o

narcisista, o tirano, que estão sempre à cata de sensações e prazeres, em

detrimento de si mesmo e do próximo, ainda não entenderam que estão pondo a

felicidade exatamente ali, onde ela não pode estar, pois a felicidade verdadeira

deve ser indestrutível, durável e não sujeita às oscilações das circunstâncias.

Onde estão o prazer que não se acaba, a fama que não pode resvalar para o

esquecimento, o poder que não se perde, os bens materiais que não são instáveis?

Entretanto, podemos nos perguntar: não temos a liberdade de escolher

finalidades mais fáceis, conquistas mais próximas do que esta, de uma estabilidade

de virtude e espiritualidade, que se projeta para a transcendência? Sem dúvida,

sempre somos livres para colocar o coração nos tesouros que nos apeteçam.

Rousseau porém nos alertava que a única liberdade que não temos é a de sermos

diferentes do que somos. Ou seja, termos uma natureza moral diversa da que

possuímos — que nos faz felizes, sendo justos, que nós rói a consciência, sendo

injustos. E mais, ter uma natureza que não deseje a imortalidade, que não se

projete na transcendência, porque essa natureza é intrínseca a todas as criaturas

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humanas.

Nessa natureza, reside a divindade em nós. Ela é própria da nossa essência, do

espírito que habita este corpo e que anseia por seu destino eterno.

Quem sou eu? Sou centelha, que se esguelha para brilhar mais alto . Sou o quç ainda falto para me desabrochar Sou desejo de ser mais sou busca de alcançar sou projeto de ser paz... Sou ânsia de algo infinito, herdeira de um Deus bendito que me chama sem cessar. :: Sou um eco de passado em saudades resguardado em meu ôlhâr! Sou um futuro lançado o presente a 'eritfélaçar

Sou o que sou para sempre pois Deus me fez imortal Mas sou permanente projeto inextinguível trajeto a ser mais belo ideal.

8 Deus habita em presença Deus, como O descrevem e experimentam pessoas das mais diferentes

tradições religiosas de todas as épocas, náo é um Ser distante, escondido e

inacessível aos seres humanos. Ele está aqui, agora, em toda parte, em todas as

suas criaturas. Este é o aspecto imanente de Deus. Ter a percepção desta

presença é a fonte da maior felicidade possível de se conceber neste mundo.

Nem sempre, porém, as pessoas se dão conta de que estão diante da presença

divina. São tantos os caminhos pelos quais podemos saborear a imanência de Deus

em nós e em todas as coisas que nos circundam, que seria impossível falar sobre

todos eles. Mas descrevamos algumas vivências, de que não podemos separar a

expressão poética. A personagem da cientista ateia, representada por Jodie

Foster, no filme Contato, ao viajar pelas estrelas, não encontrava outra maneira de

descrever tanta beleza que não fosse pela poesia.

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A natureza O astrônomo Camille Flammarion escreveu no virar do século XIX e XX uma

obra com o título Deus na Natureza, em que através da contemplação dos mundos

e das estrelas, da beleza que se espraia no universo, chega a uma apreensão de

Deus, como origem, mantenedor e presença permanente. Flammarion nada mais

fazia do que repetir a percepção de seus antecessores, com os quais aliás nasceu a

ciência moderna, os grandes astrônomos e filósofos Johannes Kepler, Giordano

Bruno e Galileu Galilei, que se embeveciam ao contemplar o cosmos, percebendo

nas leis que descobriam e na beleza que avistavam a presença de um Deus cósmico.

E sempre possível repetir essa experiência através de uma análise científica da

natureza. Mais proximamente de nós, Max Planck e Albert Einstein, dois dos mais

importantes físicos da nossa era, também tinham essa apreensão. O cientista não

está necessariamente distante do místico. Isaac Newton ou Theilhard de Chardin

que o digam.

Porém, o mais frequente para as pessoas que não lidam com a natureza através

da ótica da Ciência, é sentir nela a presença de Deus de maneira mais imediata,

sem intermediação da racionalidade. Um pôr de sol no mar ou nas montanhas, uma

brisa que nos refresque a fronte, um bosque de árvores frondosas, as cores

fulgurantes de uma flor — tudo isso pode subitamente nos transportar para uma

sensação de presença e de densidade espiritual dificilmente descritível.

Uma fonte de alívio e de poesia, de paz e de dilatação espiritual é o contato com

a natureza. Não é à toa que as pessoas vivem dilaceradas, angustiadas e

estressadas em megalópolis cinzentas, onde o concreto asfixia o verde e onde a

poluição agride o azul do céu. O distanciamento da natureza provoca um

distanciamento de si mesmo e da possibilidade de encontrar Deus na simplicidade

e naturalidade das coisas.

E possível também sentir Deus no amor devotado dos animais. Observando uma

gatinha ou uma ca- delinha cuidando zelosamente dos filhotes ou constatando a

fidelidade e a proteção que certos animais têm para conosco, é fácil experimentar

aí uma presença divina. Aliás, como os animais não vivem no plano da liberdade, mas

no condicionamento instintivo, embora revelem sem dúvida um princípio de

individualidade e fortes sentimentos, eles não traem a imanência divina, como nós,

seres humanos, traímos, pelo uso rebelde de nossa vontade livre.

Sabe-se que o animal mata para comer, procura a sua sobrevivência, mas está

longe de qualquer ímpeto de crueldade e sadismo. E que no reino animal, não há a

consciência do bem e do mal, há apenas a obediência natural ao instinto e o instinto

é justamente a voz de Deus. O instinto de sobrevivência, que mantém a vida, o

instinto de reprodução que gera a vida, o instinto de maternidade e paternidade,

que protege a vida - são formas de imanência divina. Embora esses instintos

possam assumir formas agressivas e destrutivas, sempre ficam dentro dos limites

da defesa e da sobrevivência.

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O homem também têm instintos que compartilha com seus irmãos animais, pois

está nele a mesma voz poderosa que lhe garante a vida e a perpetua, que o impele à

reprodução e à sociabilidade.

Mas o homem vive no reino da liberdade de escolha e pode escolher contrariar,

desvirtuar, inchar, desconhecer ou sublimar seus instintos, elevando-os acima da

mera animalidade. Contraria-os, quando massacra sadicamente os de sua espécie,

quando negligencia a maternidade e a paternidade, abandonando filhos ou

violentando-os; desvirtua-os quando usa o instinto de reprodução para agredir e

abusar, quando transforma seu instinto de sobrevivência em egoísmo voraz...

Sublima-os quando faz de seu instinto de sociabiudade um cântico de fraternidade

e doação; quando estetiza em obras primas de poesia e música a fusão entre dois

seres que se amam; quando estende o amor paterno e materno em acolhimento a

milhares de outros seres humanos.

0 outro Por tudo isso, o santuário mais provável para encontrar Deus é o coração

humano. Em nossas relações mais próximas, sentimos a presença de Deus. No olhar

vivo dos filhos, no regaço da mulher ou do homem amado, no abraço dos melhores

amigos... Deus nos fala, nos afaga e nos abençoa.

Pestalozzi, o pedagogo que mais enfatizou o papel do amor na educação,

afirmava que a origem da ideia da Providência Divina está na relação da criança

commãe. O colo protetor e aconchegante desperta a sensação de que existe uma

Providência amorosa e segura, que nos ampara.

Pode-se alegar aqui a contraposição de um nihi- lista como Sartre que dizia que

o outro é o inferno. As relações desencontradas, conflituosas, angustiantes que

conhecemos no mundo não parecem traduzir nenhum conforto divino, mas antes

confirmar a ideia de Sartre. Até mesmo mães renegam seu papel de providência

junto aos filhos.

Não se pode, porém, negar o conceito de saúde, só porque existem epidemias e

endemias de relações patológicas em todos os níveis. A simples existência de

pessoas comuns que têm relações saudáveis e confortadoras e de pessoas de

excepcional elevação moral que são vertente de amor e doação para muitos nos

garante essa possibilidade de encontrarmos a imanência divina no outro.

A negação disso que é o desvio e não a regra. A mãe que desama e abandona ou

a pessoa que não consegue estabelecer uma integração afetiva com ninguém são

exceções. Vivemos, porém, no reino da mídia sombriamente espalhafatosa, que nos

mostra apenas o que é violência e aberração.

Além disso, no mundo contemporâneo há um estímulo social ao egoísmo e às

relações descartáveis, pois a essência do sistema econômico e político em que

vivemos é a competição entre indivíduos e grupos e o consumo rápido de objetos e

pessoas. Nesse contexto, obviamente as relações humanas se tornam mais difíceis

e angustiantes.

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Nosso melhor Eu Não percebemos Deus, entretanto, nem nas mais belas manifestações da

natureza, nem no próximo que mais se desvela por nós, se não estivermos abertos

para esta percepção. E abrir-se para esta apreensão significa descobrir Deus em

nós mesmos. Se não estivermos conectados internamente com Ele, não haverá

conexão externa que consiga nos fazer percebê-Lo.

É verdade que um estímulo de fora, como um poderoso gesto de amor, uma cena

de beleza cósmica ou o exemplo de uma vida santa podem nos fazer sentir num

segundo a presença divina. Mas como podemos passar por tudo isso, de forma

indiferente e sem conferir nenhuma significação, quer dizer que depende de uma

disposição interna o fato da motivação externa fazer efeito.

A predisposição interior existe em todos os seres humanos, pois é justamente

a imanência de Deus no homem que faz com que ele tenha a capacidade de senti-Lo.

Mas às vezes está soterrada embaixo de entulhos vários: paixões, viciações,

condicionamentos, preconceitos embutidos pela educação e toda a parafernália de

negatividades adquiridas no sistema atual de vida...E preciso fazer uma limpeza

nos porões da alma, escavar fundo, para deixar que a água da fonte divina brote

pura dentro de nós. Essa escavação não é tarefa fácil, não se dá de momento. São necessárias

paciência, persistência, coragem e sobretudo honestidade. Quando nos

enxergamos tal qual somos, com nossas imperfeições e potencialidades, então

conseguimos abrir caminho interno para Deus. Auto-análise sem escândalo, mas

com firmeza, para uma auto-educação. A crise interna é imprescindível para a

pacificação. E como diz Gilberto Gil em sua música:

“Se eu quiser falar com Deus, tenho que me ver tristonho, tenho que me achar medonho e apesar de um mal tamanho, alegrar meu coração. ”

Quando conseguimos deixar algum pedaço de terreno livre, a fonte brota e nos

vivifica. Encontramo- nos com Deus em nosso mais profundo eu. Ele está lá dentro.

Há algo de divino em nós e saboreá-lo não nos torna soberbos e altivos, mas

humildes e ternos, porque sentimos que é uma presença que nos ultrapassa, pois é

o Ser originário, a quem tudo devemos, e nosso fim, a que aspiramos com todas as

forças.

A oração e o Outro absoluto Deus está em nós, mas nós não somos Deus. Pensar isso seria narcisismo

doentio, pois o impulso natural de adoração e reverência tem necessariamente de

estar dirigido a Alguém que é além de nós mesmos.

Por isso, uma das melhores maneiras de se experimentar Deus é através da oração.

Nesse diálogo com o grande Outro, que é a mais universal e mais antiga forma de

culto à divindade que conhecemos, deparamo-nos com um Ser que nos transcende

completamente, cuja presença sentimos em nós, mas que está muito além da nossa

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pequenez.

A oração pode começar no gesto, pode se manifestar com o corpo, quando

alguém se ajoelha ou se prostra ou usa de danças rituais para louvar a Deus. Pode

também se vestir de palavras, sejam elas em forma de preces conhecidas,

consagradas, que levam uma carga de emoção coletiva, pela partilha das orações

com outros da mesma comunidade religiosa, ou em palavras livres, espontâneas,

que escapem da alma com fervor.

Talvez, porém, a oração mais alta, mais perto de Deus é a que elevamos sem

nenhuma imagem material e mental, indo além das palavras e da linguagem humana.

Não será isto que Jesus chamou de adorar a Deus em espírito e verdade? Não será

superar todas as formas, todas as limitações das palavras, para se deixar invadir

por um sentimento de reverência profunda, de gratidão transbordante e de

felicidade plena?

A motivação de estado de oração íntima pode aparecer em alguma dessas

sensações discutidas acima: na contemplação da natureza, no amor de outro ser

humano, na imersão em si mesmo. Mas esse momento é quando escapamos da visão

da imanência de Deus em todas as coisas, para lançarmos a alma na transcendência,

para comungarmos com o Outro, que é Ser distinto de nós, acima da Criação,

porque origem e finalidade, Pai e Criador. Quanto mais a alma avança em sua jornada espiritual, esse estado de oração

deve ir se tornando cada vez mais frequente e possivelmente os grandes espíritos

que atingiram mais plena comunhão com Deus neste mundo, depois de mais ou

menos lutas internas, tornaram este estado algo permanente. Quando Francisco

de Assis se eleva acima das depressões causadas pelos antagonismos dentro de

sua ordem e passa pela experiência dos estigmas, certamente se projetou neste

estado de alma de euforia divina, de que vieram as sublimes palavras do Cântico do Sol.

E fácil constatar que vivemos num momento da história, que expulsa a presença

divina, abafa-a com um alarido alienante. Não há tempo para orar, a natureza é

agredida, corremos insanamente, sem atenção para com o próximo e sem ouvirmos

a nós mesmos. Saborear Deus pressupõe uma abertura de olhos espirituais, uma

pausa para respirar a eternidade, um aconchegar-se à sua obra em qualquer

parte...Fazer silêncio dentro e fora de nós, para que a sutil presença se manifeste,

inundando-nos de paz. Quando Quando meus olhos se perdem das coisas e andam ao vento, cravo a mente no que não passa e me contento. Quando minhas mãos se despregam de mim, repletas de coração, não há mais corpos que me separem e os homens são o que são. Quando minha alma se aquieta num mínimo verde ramo, Deus farfalha entre as folhagens e O amo.

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E quando o meu pensamento se embriaga de remotas estrelas, transfiguro-me em azul e sei que um dia hei de revê-las. E no vento que passa e que fica e no amor que me vivifica e no verde que ao sol estala e no azul que o cosmos exala se espraia uma alma infinita... No átomo, Deus se agita, num átimo, Deus governa, no íntimo, Deus palpita

9-Deus se faz medida Ou tudo relativo e vivemos pendurados no vácuo do nada ou há uma medida

absoluta, uma fonte suprema de valores. Ou náo há bonito nem feio, certo nem

errado, bom nem mau, justo nem injusto ou há uma beleza completa, uma verdade

sem mescla, um bem inteiro, uma justiça perfeita. Esse absoluto é que torna todo

o resto relativo, mas sem esse parâmetro, qualquer valor se desmonta.

Platão disse bem em seu livro As Leis que Deus é a medida de todas as coisas.

Mas é preciso entender o que é essa medida absoluta, porque já tantas distorções

sofreu essa ideia, gerando autoritarismo e usurpação, que se torna até

problemático afirmá-la, sobretudo num mundo que se assume absolutamente

relativista (e essa contradição há de fato — o relativo é que se tornou absoluto e

também se faz autoritário).

Pela lógica mais elementar, é fácil entender que se podemos ter uma escala de

valores e dizer que algo é mais justo ou menos justo, melhor ou pior, é preciso que

haja uma ideia de justiça e de bem, para fazermos essa apreciação. Uma ideia

assim, para se por como medida, não pode emanar de um indivíduo ou de uma

coletividade, pois o ser humano — e ninguém discordará — está sempre sujeito ao

erro.

Ao mesmo tempo, essa ideia de absoluto é uma evidência da existência de Deus,

como bem demonstrou Descartes. Para o filósofo racionalista, a própria

capacidade que o ser humano apresenta, sendo imperfeito e finito, de conceber o

perfeito e o infinito, nos faz entrever que não poderia ser algo inventado pela

nossa imaginação. A presença da ideia de Deus é a marca de Deus em nós.

Esse parâmetro absoluto faz parte estrutural da consciência, haja vista a

universalidade da ideia de Deus nos seres humanos. Mesmo quando certos

indivíduos isoladamente a negam e conseguem contagiar culturalmente alguns

outros (porque o ateísmo jamais é um fenômeno de massa), o absoluto aparece sob

outras roupagens, rebaixado de sua transcendência cósmica e se encarna num

Estado totalitário, numa ideologia autoritária ou mesmo, como vemos hoje, no

marcado divinizado, tomado como parâmetro único de comportamento moral e

atuação existencial...

O deslocamento da medida absoluta para encarnações negativas no mundo não é

o único desvio da ideia. Há também o uso indevido do conceito de uma medida

suprema, quando algum ser humano ou alguma instituição se arroga o direito e a

exclusividade de interpretar deus, impondo-se como intermediação necessária

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entre os homens e um ser superior. Não é entáo mais Deus que é o absoluto, mas

uma dada interpretação de deus, uma determinada manifestação religiosa,

cultural, institucional, portanto humana e relativa, que se torna a medida de todas

as coisas.

A única maneira realmente saudável e liber tad ora de tratarmos o absoluto é

compreendermos que ele está presente em todas as criaturas e, ao mesmo tempo,

ninguém pode possuí-lo com exclusivismo.

Se assim é, todas as compreensões e vivências de Deus se equivalem? Podemos

ter alguma medida ou apreciação de melhores ou piores interpretações do Ser

Supremo ou todas são identicamente válidas? Alguém que comete massacres em

nome de Deus se equivale a alguém que dedica a sua vida ao bem do próximo?

Aí entra a categorização do absoluto. Deus não é simplesmente um absoluto

abstrato, mas uma absoluto de perfeição: o que inclui o caráter de verdade, de

bondade e de beleza. Quem mata, trapaceia, esquarteja e quem estetiza a

violência e a mentira não pode estar impregnado do absoluto divino, mesmo que

faça tudo isso em nome de Deus.

Entretanto, as categorias de verdade, bem e beleza podem não explicar muito,

porque ainda nos parecem abstrações. Pilatos perguntou a Jesus o que era a

verdade. Jesus emudeceu, porque não podia explicá-la em palavras e porque

certamente era uma encarnação viva da verdade divina. A verdade estava ali,

diante de Pilatos e ele não a alcançava e ainda indagava por ela. Por outro lado, por

que teria ele perguntado isso justamente a Jesus se de alguma forma não intuísse

(ainda que negasse) que Cristo tinha algo a ver com a verdade?

Conceitos como a verdade, o bem e a beleza tem sido objeto das mais diversas

investigações filosóficas e discussões teológicas no decorrer dos séculos, gerando

diversas correntes de ideias e diferentes movimentos estéticos. Mas a

universalidade da investigação e, mesmo quando determinados pensadores ou

artistas negam a existência de tais instâncias num plano absoluto, a própria

história dessa busca humana indica que há algo real que está sendo buscado.

Critérios do bem, do verdadeiro, do belo Platão foi um dos filósofos que deu uma contribuição bastante significativa a

respeito dessa questão e influenciou toda a filosofia ocidental posterior. Para ele,

o bem, a verdade e a beleza são uma e a mesma coisa. Ou seja, o que é verdadeiro

é belo e bom, o que é belo é bom e verdadeiro e vice-versa. O entrelaçamento

necessário dessas categorias nos leva para mais perto da sua apreensão e portanto

da percepção da divindade.

O que se pretende belo, mas fere o bem, pode ser considerado feio. O que se

arroga como verdadeiro, mas tem traços de crueldade, pode ser visto como falso.

Portanto, a mais alta medida de Deus é o bem. Não é | toa que Agostinho o chamava

de Sumo Bem.

Mas haverá um critério universal de bem, que qualquer ser humano possa

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apreciar e alcançar — além dos interesses pessoais, dos relativismos culturais, dos

condicionamentos históricos? Ou seja, esse Sumo Bem pode realmente ser

compreendido ou, ao menos, intuído, sentido pelo ser humano imperfeito e tão

sujeito ao engano?

Aliás, trata-se do bem para quem? Há propostas de bem comum, por exemplo,

que sacrificam o bem individual — e podem gerar o totalitarismo, que anula a

pessoa humana. Há outras que zelam pelo bem próprio, em detrimento do bem do

outro — o que é sempre egoísmo. Que bem então pode ser considerado sempre

válido? Que bem no mundo refletirá o Bem absoluto?

Se consideramos Deus, o Sumo Bem, como nossa origem, como Criador e

Ordenador de todas as coisas, sabemos que Ele tudo criou para o bem e depositou

em nós — que somos sua imagem e semelhança, omo ensina a Bíblia — uma semente

divina do bem. Por isso temos a capacidade de senti-lo e reconhecê- lo, de

concebê-lo e praticá-lo.

Quando nos desembaraçamos dos sofismas que inventamos para justificar

interesses mesquinhos, paixões desordenadas, desejos desencontrados e ouvimos

a voz íntima da consciência, a nossa alma profunda e divina, sabemos que o nosso

bem é o bem de todos e o bem da humanidade inteira é o nosso bem e que o bem

sempre leva à felicidade, à realização plena de nós mesmos, sem exclusão de

nenhum outro ser.

O bem é o sim à vida, o amor altruísta, a generosidade, a fraternidade, a

compaixão, a criatividade para o belo e verdadeiro, útil e nobre... Todos sabemos

disso. As crianças são capazes de formular tais ideias com espontaneidade e

precisão, porque ainda estão na posse de sua inocência original, mais próximas da

presença divina nelas... Muitos adultos, porém, já obstruíram o canal de

comunicação consigo mesmos, pois criaram complexos raciocínios, que lhes

impedem de ver a clareza e a simplicidade do bem.

A fonte desse bem é o Ser Supremo, mas ele se esconde também no ser

humano. Só podemos chegar perto de Deus, reverenciando-o em nosso próximo e

em nós mesmos, valorizando a dignidade do homem e amando a grande família

humana, indistintamente.

E é por isso que o reconhecimento sentido do Bem Supremo jamais poderá nos

levar a ferir alguém em seu nome, pois o vemos refletido em todas as criaturas.

Como se conjuga, porém, esse bem com os critérios de belo e verdadeiro?

Para Sócrates e Platão, assim como o Bem, o Belo § o Verdadeiro pertencem a

uma só instância ontológica, o ser humano virtuoso é quem melhor conhece a

verdade e mais se aproxima da concepção do belo. O filósofo, o amante da

sabedoria só o é verdadeiramente, se for também santo. Isso se dá porque a

virtude está relacionada com um abandono de ilusões materiais (isso é muito bem

ilustrado no mito da caverna). O ser humano que é capaz de enxergar a vida fora

da caverna, não submetido aos instintos e à predominância da visão condicionada

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aos vícios, é capaz de ver melhor a realidade.

Com Aristóteles, cria-se a cisão entre Ciência e Ética. Embora o discípulo de

Platão seja um dos pais da Ética ocidental e a relacione com o cumprimento da

natureza humana e a consequente felicidade, ele não vincula necessariamente o

conhecimento à virtude, pois o conhecimento é justamente o da matéria, do

funcionamento do mundo físico. Platão considerava este mundo apenas um reflexo

imperfeito do mundo das ideias.Isso nos remete a uma reflexão importante: se

considerarmos o conhecimento como sendo mais verdadeiro se levar em conta o

aspecto ético da realidade — humanizamos a Ciência e só a usaremos com fins

benéficos para a humanidade.

Assim também a Arte. Não que devamos fazer dela liçõezinhas fechadas de

moral... Mas se ela estiver a serviço do ser humano e de sua felicidade e não

vendida para interesses subalternos, a serviço de instintos destrutivos, teremos

uma Arte mais bela (embora os gritos de revolta que tal assertiva possa causar,

pelos movimentos estéticos do último século, que aboliram a categoria do belo).

O problema é que a objetividade do conceito de bem, assim como do conceito

de beleza e verdade, foi violentamente quebrada pelo relativismo contemporâneo.

E fato que esses conceitos foram muitas vezes tidos como pretensamente

objetivos e não passavam de concepções pessoais ou de grupos, que as impunham a

outros, de forma autoritária.

Mas se entendermos esses conceitos, um dependente do outro, projetados

para o Absoluto, mas sem que nenhum ser humano possa se arrogar a sua posse; se

todos nós nos colocarmos como buscado- res do bem, da verdade e do belo, para

realizá-los no mundo, dentro de nossas limitações, com humildade e compromisso,

desaparece o perigo do absolutismo, da prepotência e da imposição.

Há um mal em nós? Uma das grandes questões de muitas filosofias e de quase todas as religiões é

a ideia do mal. Se temos uma semente do bem dentro de nós, também possuímos

algo de mal? Existe uma raiz maligna dentro do ser humano? De onde vem a

crueldade de que tantas pessoas são capazes?

O fato de haver pessoas que desconhecem o bem dentro de si e não o cultivam

no trato com a vida e com o semelhante só evidencia que há entulhos encobrindo a

fonte do bem nelas, postos talvez pela educação mal conduzida, pela liberdade mal

interpretada, por circunstâncias mais ou menos atenuantes? Ou há algo de

essencialmente mau no homem?

Platão, por exemplo, que acreditava plenamente no poder da educação, diz que

“...é pela inépcia dos que o educaram que o malvado se torna malvado.” Já toda a

tradição cristã está fbrtemente marcada pela ideia do pecado original, que seria

uma fonte inata de corrupção, herdada do primeiro pai, Adão.

Uma intensa discussão no século IV a esse respeito, entre Pelágio e Agostinho,

resultou na vitória teológica deste último, sendo o outro condenado e banido do

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Império Romano, por pregar que o ser humano teria capacidade de atingir a

perfeição, pois não estaria tão irremediavelmente contaminado pelo pecado

original. Já Agostinho, que foi um dos criadores da doutrina da predestinação

(aquela depois fortalecida por Calvino) de que Deus já escolheu seus eleitos e os

salva através da graça, não achava que o esforço humano era suficiente para

atingir o bem e que a perfeição seria algo inalcançável por pecadores como nós.

Aparentemente, esse conceito está mais de acordo com a humildade cristã, de

dependência da criatura em relação ao Criador — mas é um conceito pessimista

que resultou muitas vezes em autoritarismo e até crueldade. Se o homem é

pecador, precisamos vigiá-lo, puni-lo, não confiamos que possa ser livre e dirigir-se

a si mesmo. Ele precisa estar sempre submetido e submisso, pois sua razão, sua

capacidade de julgamento, está obscurecida pelo pecado. Não é à toa que,

infelizmente, encontramos em Agostinho, as primeiras justificativas teológicas

para a perseguição aos hereges — o que mais tarde se solidificaria na tragédia da

Inquisição.

O movimento de emancipação do homem que começou no Renascimento e se

estendeu ao Iluminismo, não foi uma negação do cristianismo. Ao contrário, foi o

resgate de um cristianismo, diríamos, mais pela- giano. A ideia de que a razão

humana é uma instância de julgamento confiável radica-se no princípio de que ela é

um reflexo da razão divina. O humanismo cristão, esse que valoriza a dignidade do

ser, como templo da divindade, é uma visão que ressalta nossa herança divina, em

detrimento da ideia de pecado. Depois, esse humanismo se tornou ateu, mas ainda

guardando, sem saber ou confessar, sua dívida para com o cristianismo.

Mesmo em Agostinho ou em Paulo (o verdadeiro autor da ideia do pecado

original — transplantado por ele do judaísmo para o cristianismo) existe uma

ambiguidade a respeito. Ao mesmo tempo que Paulo ressalta a herança do pecado,

diz que somos “herdeiros de Deus e co-herdeiros do Cristo”. E Agostinho afirmava

que “não é da natureza da alma o vício, mas contra ela.”

E foi justamente o próprio Agostinho que deu uma. das maiores contribuições

ao conceito de mal. Para ele, o mal não é substancial, não existe como essência, em

oposição a Deus, que é o Bem absoluto. O mal é a ausência do bem.

Então, poderíamos dizer, que o homem se torna mau quando deixa de assumir

sua herança divina, quando nega a si mesmo, ignorando sua própria essência,

quando foge da presença de Deus em si mesmo.

Sócrates categorizava o mal como ignorância. 0 homem mau ignora onde reside

a felicidade - no bem — e a procura em lugares errados: na satisfação de suas

paixões, no poder, no vício...

Assim, constatamos que a medida absoluta está refletida em nós, mas se

podemos ignorá-la, negá-la e até violá-la, significa que a medida de Deus, embora

presente em nosso íntimo, nos ultrapassa completamente e funciona como

parâmetro supremo, alvo e pólo de atração.

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Itatiaia Já é noite, ao pé ida serra e as árvores estão quietas, mas é leve a escuridão...

Difunde-se sobre a terra o azul de estreias alertas ,

e o Teu sopro amansa o chão. .. Posso abraçar o: silêncio e quase posso tocar-Te. ó imanente nos montes! Das coisas vêm-me Um incenso de sutilezas da arte com que espraias horizontes! E Te revelas tão manso numa clareira da mata num piscar de luz profundo,

que por um átimo alcanço toda a verdade barata das pequenezas do mundo... Ah! Como a vida ressumbra eternidade e beleza!

Nem a noite é triste e tensa... - Há clarões entre a penumbra,

há doçura na aspereza,

não há mal

que o bem não vença!

10 -Deus se dá em amor Definitivamente não podemos compreender Deus. Podemos rodeá-lo de

palavras, podemos invocá-lo, adorá-lo em prece e demonstrar sua existência em mil

raciocínios. Podemos louvá-lo em prosa e verso e até tocá-lo pelas descobertas da

ciência e pelas investigações da filosofia. Mas algo nos falta para que o alcancemos

inteiro. Não podemos encarcerá-lo em nossos restritos conceitos, porque Ele

transborda sempre, além das meras palavras.

Entretanto, podemos amá-lo, isto sim. Podemos chegar mais perto de

compreendê-lo através do amor com que nos ama e do amor com que o amamos.

A primeira manifestação de seu amor é a nossa própria existência. Somos,

porque Ele nos fez ser.

A segunda prova de que nos ama infinitamente é que poderia nos ter criado

jungidos obrigatoriamente à sua Vontade soberana, mas nos entregou a liberdade

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de escolha, incluindo a liberdade de negá-lo, de ferir suas leis e de nos recusarmos

a assumir, pelo menos temporariamente, a herança que nos deixou.

O terceiro indício de seu amor é que nos fez nascer neste universo com um

único propósito: o de sermos felizes, se usarmos a nossa liberdade para

procurarmos a união com Ele. Pois se Ele nos ama, também nos quer, embora não

precise de nós para ser, porque já é absoluto e completo. Então depositou em

nosso íntimo uma saudade do lar celeste, uma vontade profunda de alcançá-lo. Essa

busca é o sentido da vida, o vetor que move as almas em direção ao infinito.

Podemos preencher páginas e páginas descrevendo esse amor divino por nós,

mas só saberemos do que se trata se o sentirmos. Não é algo que se apreenda

apenas pela razão, mas deve ser experimentado pelo coração.

Por isso, Deus não é uma força impessoal, permeando o universo — uma energia

cósmica diluída no todo, sem identidade e sem nome. Ele é um Ser, com vontade e

sentimento — embora sua vontade seja sempre lei e seu sentimento seja sempre

amor.

E um Ser, com quem podemos nos relacionar, conversando, orando, meditando

e, sobretudo, amando- o pura e simplesmente. Ele tem uma face, mas não é

corporal; Ele é pessoa, mas não física; Ele nos ama a cada um, a cada um conhece,

porque é autor de nossa individualidade e origem de nosso destino e está mais

próximo de nós do que nós mesmos.

Deus é Pai e é Mãe. Se no universo nos deparamos com o princípio masculino e

feminino — com a força, a virilidade e a razão e com a bondade, o acolhimento e o

perdão — então no Ser supremo, os dois princípios se conjugam e se unem.

Náo é à toa que Jesus nos ensinou a chamá-lo de Pai e todas as religiões sempre

tiveram divindades femininas - essa é a leitura de que Deus abarca o ying e oyang,

porque os dois princípios vieram d’EIe e nEle se unificam.

Deus tem uma face de justiça e majestade e uma face de misericórdia e

doçura. Mas sua justiça não é opressora e sua doçura náo é fraqueza.

Pessoas mais perto de Deus Outra maneira de Deus mostrar seu amor por nósatravés de seres humanos que

atingiram um grau de intimidade com Ele, que conseguem manifestar dons divinos e

oferecê-los aos semelhantes. O conceito budista é o de seres que atingiram a

iluminação e que voltam por compaixão para ajudar os homens a se libertarem do

sofrimento; o conceito católico é o da santidade, e os santos têm o poder de

intercessão em favor das criaturas; o conceito espírita é o de espírito evoluído,

que tem a função de educar amorosamente os que ainda estão em atraso...

Seja como se interprete, há pessoas que, por sua estatura espiritual, podem

servir de apoio a outras tantas, inspirar multidões a buscar Deus, mudar o rumo

da história de um povo ou de toda a humanida-de. Justamente essas pessoas,

embora estejam ligadas a um dado momento histórico e a uma determinada cultura, alcançam uma dimensão de universalidade e são mensagens vivas de

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Deus ao mundo.

A infinita compaixão de Buda, a sabedoria serena e humanista de Confúcio,

a missão divina de Jesus, a entrega absoluta de Francisco de Assis, a

originalíssima vivência de Gandhi — citando apenas alguns pouquíssimos — são

exemplos disso. Entre menos conhecidos e desconhecidos, há outros tantos que se fazem luz

no caminho de seus irmãos. Podemos ter mesmo entre nossos parentes e amigos,

pessoas que sejam tão conscientes e amorosas, que façam uma entrega tão

completa de sua vida e de seu coração aos que lhes partilham a existência, que

sentimos em sua presença, uma centelha divina. Entretanto, é justo questionar como distinguir aqueles que realmente

espalham uma ação benéfica e se fazem mensageiros de Deus daqueles que se arrogam representantes de deus e não o são, o que a Bíblia chama de falsos

profetas. E preciso precaver-se deles, pois o que os verdadeiros profetas nos fazem de bem, os falsos podem nos afastar seriamente do caminho.

Quem realmente está em contato com Deus, manifesta seu amor compassivo e

terno e o amor é feito de respeito e cuidado pelo outro. O falso profeta mostra

sempre laivos de autoritarismo, de dureza de alma, de imposição fanática.

Quem sente Deus, sente-se pequeno, embora seja grande. Quem cultua o deus

da vaidade é mesquinho e quer se mostrar grande. Portanto, o homem ou a mulher

de Deus caminham no mundo com simplicidade, autenticidade e despojamento de

si. O falso profeta quer ser cultuado e exibe aparatos artificiais.

Quem está em Deus é livre e deixa os outros livres. Age pelo impulso do amor,

da generosidade, sem se apegar a regrinhas de comportamento obtuso. O falso

profeta gosta de impor regras e mandamentos, quer obediência e submissão. Por

isso, os grandes espíritos, de todas as religiões, sempre se acomodaram mal com as

instituições religiosas, fechadas e cheias de regras impostas.

Quem transmite Deus em seus atos e palavras é doce sem servilismo e

hipocrisia, é enérgico quando necessário, sem autoritarismo. O falso profeta pode

ter voz excessivamente melosa, beirando a falsidade ou sua firmeza pode ser dura

demais, chegando à tirania.

Quem vivência Deus serve ao próximo por ideal, desinteressadamente. E claro que,

como ser humano, precisa sobreviver dignamente, atuar no mundo com os

instrumentos do mundo. O falso profeta calculaperdas e danos, é interessado

financeiramente ou busca fama, prestígio, reconhecimento e poder. Precisamos ter lucidez para perceber Deus nas pessoas que de fato estão

perto d’EIe e ter espírito crítico para notar os exploradores de deus, os capangas da religião, que esfacelam os ideais mais nobres por seu farisaísmo, fanatismo e

desejo de poder sobre o próximo. Nossa lucidez aumenta na medida que sentimos

Deus por nós mesmos e reconhecemos como seu amor se manifesta no mundo.

Como amar a Deus|

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Para conhecermos mais Deus, é preciso amá-lo. O primeiro mandamento mosaico assim recomenda: amá-lo sobre todas as

coisas, de todo o coração, de todo o entendimento.

Mas que caminho é esse de amar a Deus? Como podemos nós, imperfeitos e

relativos, manifestar amor à Perfeição absoluta? Como diria Agostinho, temos de

amá-lo, não para acrescentar alguma coisa a Ele, mas para que nós sejamos mais felizes, mais plenos, realizemos melhor nossa natureza divina, assumamos nossa

herança de filhos.

Essa escavação interna para fazer brotar Deus dentro de nós é uma forma de amor a Ele, mas se de fato conseguirmos fazê-lo, imediatamente esse amor se expande para fora, em direção do outro, abrangendo a natureza e todas as obras da Criação.

Amar a Deus é conectar-se com a mais viva realidade, a mais profunda essência,

o mais íntimo de tudo, dentro e fora de nós.

Os antigos celtas formulavam sua sabedoria em forma de tríades e muitos

pensadores depois, como os educadores Comenius e Pestalozzi, também usaram

desse recurso. Assim resumimos aqui em três tríades, como se ama a Deus:

• Amando a si mesmo, amando os seres humanosdedicando-se ao bem de

todos.

| Contemplando a natureza, integrando-se nela e protegendo a vida em todos os

reinos.

• Buscando a perfeição no pensamento, nas palavras e nas ações, agindo com

desprendimento e sa- bendo-se sempre em busca.

Como Deus se manifesta em nós? Quando fazemos esse movimento interno de amor a Deus, Ele nos devolve, Ele

se mostra, Ele responde. Ele destila em nosso coração a perfeita alegria. Imersos

nesse júbilo, o que nos circunda também se ilumina e sentimo-nos circundados pelo

infinito.

O infinito nos aconchega, porque Deus nele habita, porque Deus nele é.

A doçura que nos empresta envolve tudo o que vemos. Ainda que na paisagem, à

beira da estrada, haja feiúras, nada nos rasga a harmonia. As cores do crepúsculo

tomam até o asfalto. Tudo tem aroma divino. O próprio ar tem sabor de graça.

Ele nos empresta novos olhos e com eles as contrariedades da vida se

apequenam e todos os seres humanos se transfiguram. Enxergamos Deus neles e os

amamos por Deus. No momento em que a presença divina nos invade, nossa alma se

enche de mel e temos ímpetos de abraçá-los, de transfundir para todas as

pessoas, mesmo a mais remota ou a mais endurecida, a presença divina em nós.

Queremos transbordar nossos dons para brilhar nas trevas do mundo, mas

sabemos que esse dons d’Ele provêm e nada nos podemos atribuir, porque a nossa

própria existência deve ser atribuída a Ele.

Apenas proclamamos essas quatro letrinhas — Deus, que por pura convenção

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humana, denominam a divindade, podemos nos dilatar no tempo e no espaço. Apenas

O chamamos e sentimo-nos nos aquietar. E então, inundados por sua força,

podemos suportar a dor com paciência, encarar a morte de frente e singrar a vida

com novo ímpeto.Na sua companhia, podemos penetrar as cavernas obscuras da

natureza humana, sem nojo, sem tédio, sem medo. Porque abaixo de todas as

crostas, vemos a pérola oculta, o diamante bruto, a centelha nunca ausente do seu

amor!

Sentimos Deus como Pai, porque Ele fecunda o universo a cada instante nos

turbilhões de estrelas e de mundos, sustentando e governando a vida... Mas nosso

Pai, porque nos fez herdeiros de sóis e planetas e nos faz depositários de dons,

com que devemos criar mais dons e ainda nos empresta o próprio poder de criar!

Sentimos Deus como Mãe, porque n Ele não gerados nossos sonhos, porque Ele

acalenta amorosamente toda a multidão de seres no infinito. Dá aconchego aos

vermes e aos homens, às flores e aos anjos, aos átomos e aos sóis! N’Ele tudo se

move, se regenera, se multiplica, se procria, se unifica.

Mas por mais que cheguemos perto d’Ele, por mais que sejamos um com Ele,

Deus sempre nos ultrapassa, sempre está além, Ser dos seres, Causa das causas,

Pai, Mãe, Criador, a quem devemos nosso ser e nosso existir, a quem buscamos aqui

e na eternidade. Deus

0 Senhor onipotente

em que se aninha a minha alma,

pequenina e reverente!

Tu que impregnas o todo De elã, de amor e de calma! 0 Senhor onipresente Que meu ser em si pressente, Deus que acolhe e dá guarida, Fonte amiga de clemência Tu que derramas a vida E nela assopras consciência! Senhor de toda a justiça, E mais do que justo, bom, Que em meu coração atiça A fome da perfeição,

A sede de amor eterno De amor fluido e fraterno E o ímpeto de ascensão! Sustentas verso e reverso

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Deste cálido universo Teu hálito em extensão! Ó Senhor onisciente, Suave, forte e amoroso, Criaste-nos para o gozo De santas felicidades!

Tu és pai de humanidades. Governo da criação, Bem supremo de atração Por quem suspiro saudades! O Senhor, que eu não compreendo, Humildemente desvendo A tua presença em mim! Diriges-me a consciência, Habitas a minha essência, O Pai de estrelas sem fim! Filha e serva que te adora, Ontem, hoje, aqui e agora, Amanhã e etemamente,

Quero herdar o teu amor Cumprir meu ser transcendente E na alegria e na dor Pertencer-te fielmente!