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157 157 157 157 157 Devoções Marianas, espaços sagrados Devoções Marianas, espaços sagrados Devoções Marianas, espaços sagrados Devoções Marianas, espaços sagrados Devoções Marianas, espaços sagrados e temporalidade: percursos atuais da e temporalidade: percursos atuais da e temporalidade: percursos atuais da e temporalidade: percursos atuais da e temporalidade: percursos atuais da devoção popular no Brasil* devoção popular no Brasil* devoção popular no Brasil* devoção popular no Brasil* devoção popular no Brasil* André Luiz da Silva O movimento católico de devoção à Mãe Peregrina de Schoenstatt é organizado e difundido por uma congregação mariana de origem ale- mã, que reúne diversos institutos seculares e movimentos divididos em ligas segundo o sexo, a idade, a natureza eclesiástica e o estado civil 1 . A campanha da Mãe Peregrina, especificamente, é uma atividade voltada às famílias e consiste em fazer circular uma capelinha com a estampa da Mãe Rainha, Três Vezes Admirável de Schoenstatt (uma pintura de Maria segurando o Menino Jesus). Partindo de uma coordenação jun- to a santuários localizados nos Institutos seculares de leigas consagra- das, a estrutura do movimento contém uma coordenação diocesana e outra municipal; deste nível a estrutura se ramifica através de coorde- nações paroquiais e setoriais até chegar à figura do(a) zelador(a), a pri- meira liderança do movimento, responsável por reunir trinta famílias em sua rua ou bairro que desejam receber a visita mensal - com dia e hora marcados - de uma capelinha. A ligação com a paróquia em que moram os devotos e devotas efetiva-se pela obrigação de conseguir jun- to ao pároco uma autorização para a realização da devoção nas casas e a celebração de uma missa mensal em intenção das famílias devotas. Além do vínculo e da participação do pároco local, as famílias recebem orientação da coordenação regional do movimento por meio de visi- tas regulares das Irmãs que sugerem e verificam se uma série de precei- tos rituais e morais está sendo cumprida pelos zeladores e famílias da Campanha. No entanto, o que se verifica ao comparar algumas paró- * Trabalho apresentado no seminário temático "Religiões Populares" nas "XII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina" da Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul, realizadas em São Paulo entre 16 e 19 de outubro de 2003. Agra- deço à FAPESP pelo financiamento à pesquisa que dá base a este texto. 1 De modo geral, na América Latina. Schoenstatt pode ser definido como um movimento religioso católico de classe média/média-alta.

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Devoções Marianas, espaços sagradose temporalidade: percursos atuais dadevoção popular no Brasil

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Devoções Marianas, espaços sagradosDevoções Marianas, espaços sagradosDevoções Marianas, espaços sagradosDevoções Marianas, espaços sagradosDevoções Marianas, espaços sagradose temporalidade: percursos atuais dae temporalidade: percursos atuais dae temporalidade: percursos atuais dae temporalidade: percursos atuais dae temporalidade: percursos atuais da

devoção popular no Brasil*devoção popular no Brasil*devoção popular no Brasil*devoção popular no Brasil*devoção popular no Brasil*

André Luiz da Silva

O movimento católico de devoção à Mãe Peregrina de Schoenstatt éorganizado e difundido por uma congregação mariana de origem ale-mã, que reúne diversos institutos seculares e movimentos divididos emligas segundo o sexo, a idade, a natureza eclesiástica e o estado civil1. Acampanha da Mãe Peregrina, especificamente, é uma atividade voltadaàs famílias e consiste em fazer circular uma capelinha com a estampada Mãe Rainha, Três Vezes Admirável de Schoenstatt (uma pintura deMaria segurando o Menino Jesus). Partindo de uma coordenação jun-to a santuários localizados nos Institutos seculares de leigas consagra-das, a estrutura do movimento contém uma coordenação diocesana eoutra municipal; deste nível a estrutura se ramifica através de coorde-nações paroquiais e setoriais até chegar à figura do(a) zelador(a), a pri-meira liderança do movimento, responsável por reunir trinta famíliasem sua rua ou bairro que desejam receber a visita mensal - com dia ehora marcados - de uma capelinha. A ligação com a paróquia em quemoram os devotos e devotas efetiva-se pela obrigação de conseguir jun-to ao pároco uma autorização para a realização da devoção nas casase a celebração de uma missa mensal em intenção das famílias devotas.Além do vínculo e da participação do pároco local, as famílias recebemorientação da coordenação regional do movimento por meio de visi-tas regulares das Irmãs que sugerem e verificam se uma série de precei-tos rituais e morais está sendo cumprida pelos zeladores e famílias daCampanha. No entanto, o que se verifica ao comparar algumas paró-

* Trabalho apresentado no seminário temático "Religiões Populares" nas "XII Jornadassobre Alternativas Religiosas na América Latina" da Associação de Cientistas Sociais daReligião do Mercosul, realizadas em São Paulo entre 16 e 19 de outubro de 2003. Agra-deço à FAPESP pelo financiamento à pesquisa que dá base a este texto.1De modo geral, na América Latina. Schoenstatt pode ser definido como um movimentoreligioso católico de classe média/média-alta.

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quias de diferentes dioceses é que existem muitas maneiras de combi-nação das duas presenças institucionais, que vão desde a integração efe-tiva dentro dos projetos pastorais das dioceses, das paróquias e domovimento de Schoenstatt, até a quase ausência completa da paróquiae diocese, bem como dos organizadores institucionais do movimento.Este último é o caso dos grupos de devotas da Mãe Peregrina que pes-quisei na cidade de Ubatuba, estado de São Paulo, Brasil2. Ali o clero,apesar de aceitar e autorizar a vinda das primeiras capelinhas, atuou nosentido de organizar uma devoção paralela e concorrente. O pároco queconcedeu as primeiras autorizações criou uma devoção ao ImaculadoCoração de Maria seguindo a mesma estrutura, depois que conheceu eobservou a aceitação da Mãe Peregrina. Pelo menos no início, o páro-co que "criou" a nova devoção aproveitou para oferecer a sua própriadevoção às devotas que vinham lhe pedir a autorização exigida pelomovimento da Mãe Peregrina. Atualmente, existem três capelinhas daMãe Peregrina na cidade e outras dezesseis capelinhas do ImaculadoCoração de Maria que são controladas pela paróquia (cf. SILVA, 2003).

Considerando a possibilidade de manutenção e desenvolvimen-to autônomo da devoção à Mãe Peregrina na cidade de Ubatuba,gostaria de sugerir algumas idéias a respeito dos caminhos que adevoção popular aos santos vem trilhando atualmente, e de que for-ma estes percursos modificam as representações sobre espaço sagra-do e combinam, no presente, religiosidades inscritas em intervalosde tempo distintos. A minha hipótese é que as categorias de espaçosagrado e de tempo sagrado são reformuladas pela cultura popularno atual contexto de compressão tempo-espacial, num esforço deprodução de táticas de consumo das experiências e crenças moder-nas. Porém, as novas modalidades de crenças só podem ser signifi-cadas enquanto registros de continuidades que carregam a sançãodos costumes tradicionais como parâmetros de veracidade3. Neste

2Balneário turístico do litoral norte do estado de São Paulo, Brasil. Esta cidade foi mar-cada por um crescimento populacional intenso em função do fluxo imigratório de me-ados da década de 80 até meados da década seguinte, momento em que também chegaà cidade a campanha da Mãe Peregrina, trazida por uma devota oriunda da cidade deAtibaia, estado de São Paulo, onde se encontra um Santuário de Schoenstatt.3Não me detenho aqui na explicitação de alguns conceitos chaves na formulação do texto;quanto às noções de estratégia e tática de consumo sigo a leitura de Certeau (1994), jápara a sugestão de continuidade e de veracidade das práticas atuais tomo emprestadasas idéias de Hobsbawm & Ranger (1984). A definição da realidade atual como compres-são tempo-espacial pode ser encontrada em Giddens (1991) ou em Balandier (1999) con-forme a discussão que realizo a seguir.

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sentido, a análise das devoções aos santos pode, de modo particu-lar, reconhecer a presença simultânea e complementar de diversostempos da religiosidade popular.

Os santuários tradicionaisOs santuários tradicionaisOs santuários tradicionaisOs santuários tradicionaisOs santuários tradicionais

Os santuários católicos tradicionais apresentam-se como espa-ços especiais que oferecem a vivência de um tempo sagrado. Nes-te aspecto inscrevem-se como expressões vinculadas ao simbolis-mo do Centro do Mundo, enquanto demarcador espacial e orde-nador das sociedades de "culturas tradicionais", conforme a carac-terização de Eliade (1992, p. 40-59). Como lembra Eliade, os luga-res sacralizados operam uma ruptura de nível, abrem uma comu-nicação entre o Céu e a Terra, realizam a presença do sagrado pormeio de rituais e símbolos - no caso dos santuários católicos, asaparições hierofânicas ou as relíquias de santo significam ao de-voto uma presença real do sagrado.

Com relação ás relíquias propriamente, Peter Brown apresentaum magnífico estudo do movimento do sagrado fixo ao sagrado di-fuso, do ponto de vista interno à lógica da crença cristã-católica. Oautor descreve como as representações do espaço sagrado acompa-nharam a expansão do cristianismo. Os primeiros cultos cristãosdos mártires e santos, que ocorriam nos túmulos da cidade Santa,deram lugar à difusão das relíquias (isto é, restos mortais) de san-tos, depois que os árabes retomaram o controle de Jerusalém. Porsua vez, a circulação de relíquias de mão em mão se mostrou impra-ticável depois que o catolicismo adquiriu expansão universal, fatoque obrigou a fixação das relíquias nos santuários, e em contrapar-tida difundiu-se a circulação distendida de imagens de santos e már-tires como alternativa às relíquias (cf. BROWN, 1981). Esta pode-ria ser uma explicação para o fenômeno que estou considerandoneste texto. Porém, é necessário ressaltar que a circulação tradicio-nal de imagens de santos (estatuetas ou estampas) somente faz sen-tido se estiver vinculado à posse pelo fiel e a um santuário no qualo objeto foi abençoado pela intercessão de símbolos e rituais presen-tes naqueles espaços sagrados. O que tentarei mostrar é que a cir-culação atual de imagens religiosas ocorre distendida de qualquerreferência a santuários, ou quando há alguma referência ela acon-tece num quadro de vinculação vazio de sentidos.

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A idéia de um espaço sagrado4, separado das demais esferas davida cotidiana, ordenador do mundo e orientador de condutas, as-sociado aos santuários, remete nossa atenção para o dado da mo-bilidade do devoto. Como se sabe, o caráter extraordinário das ro-marias à casa do santo padroeiro opera uma classificação dos espa-ços e também dos tempos experimentados pelo fiel. A observaçãode práticas religiosas tradicionais do catolicismo nos ajuda a en-tender os sentidos da peregrinação ou romaria - a visita do fiel aosantuário do padroeiro. Os elementos envolvidos nesta "aventura"(os seus sacrifícios) e os circuitos estabelecidos pelos fiéis atribuema eficácia da peregrinação em favor do peregrino. A mobilidade ope-ra a força simbólica do devoto (cf. TURNER & TURNER, 1978).

Portanto, nesta forma de representação do sagrado, o fiel utili-za um mapa mental de ordenação do cosmos cujos pontos prin-cipais de referência são fixos, e sua mobilidade por entre estes pon-tos forma, por assim dizer, uma rede de proteção divina, represen-tada por um sistema de trocas cujo sentido é estabelecido por suacirculação ritual e periódica por estes centros sagrados. Essa re-presentação do mundo simbólico pode ser definida como a repre-sentação do catolicismo popular ou como uma religiosidade pré-moderna, se considerarmos que sua estruturação ocorreu no ini-cio da Era Cristã (cf. TURNER & TURNER, 1978 e BROWN, 1981).

Esta religiosidade forjada num mundo pré-moderno é vigenteainda hoje, muito mais no Brasil onde as distinções entre o moder-no e o arcaico são difíceis e imprecisas, por se relacionarem nãonum registro de exclusão, mas sim de complementaridade. Osexemplos de santuários e de cidades sagradas que atraem multi-dões são infindáveis, apenas a título de registro lembramos a ci-dade de Roma, os santuários de Lourdes, na França, Nossa Senho-ra Aparecida e Bom Jesus da Lapa, no Brasil. Mas é inegável que osimbolismo do Centro do Mundo, demarcador espacial e ordena-dor das sociedades tradicionais, presente ainda hoje em algumasmanifestações culturais e religiosas, vem sendo alterado nos con-textos mais urbanizados do Brasil.

4Utilizo "sagrado" para qualificar o espaço atribuindo um significado que o transportepara a esfera simbólica e o separe das demais esferas da vida cotidiana, como por exem-plo, as esferas política e econômica (cf. ROSENDAHL, 1996, p. 11-12). A sacralizaçãodo espaço e a polaridade entre espaço sagrado e espaço profano, ordena o mundo dofiel e, portanto, orienta sua conduta cotidiana.

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No caso dos cultos aos santos, essa transformação representa aemergência de uma nova forma de se relacionar com os santos dedevoção. Essa nova maneira, por um lado não se caracteriza pelarelação necessária com o espaço sagrado do santuário, por outrolado, estabelece formas alternativas de experiência do simbolismosagrado. Antes de apresentar estas novas maneiras de relação comos santos e com Nossa Senhora especificamente, gostaria de regis-trar algumas características da vida atual que prefiro definir comosupermodernidade ou sobremodernidade, para permanecer no re-gistro do excesso de modernidade que acredito estarmos vivendo.Neste sentido, partilho das visões de Giddens (1991), Balandier(1999) e Augé (1994) que acreditam que vivemos não numa épocapós-moderna, mas num momento em que as conseqüências da mo-dernidade (a individualização, a mobilidade, a efemeridade, a refle-xividade, a comunicação de massa e a não-interação social, entreoutras experiências) têm sido levadas ao extremo.

Registros da sobremodernidade na rel igião e nosRegistros da sobremodernidade na rel igião e nosRegistros da sobremodernidade na rel igião e nosRegistros da sobremodernidade na rel igião e nosRegistros da sobremodernidade na rel igião e nosespaços sagradosespaços sagradosespaços sagradosespaços sagradosespaços sagrados

Num ensaio sobre as novas religiosidades e a natureza dos fun-damentalismos contemporâneos Balandier nos mostra a inscriçãodas crenças atuais e o diálogo que estabelecem com o "espírito" se-cularizado de nosso tempo. Ele afirma que vivemos na era dos ex-cessos, tudo aquilo que a modernidade inaugurou seria hoje viven-ciado ao extremo: o enfraquecimento das instituições tradicionais,a fragmentação do social, as relações midiatizadas, a oferta diver-sificada e acessível de crenças e a mobilidade das referências da vidaao lado de uma expansão do sagrado para fora da esfera da reli-gião (fenômeno que ele entende como secularização). Todas essasexperiências abrem a possibilidade da apropriação individual eautônoma do sagrado (a privatização da religião) que acaba porgerar uma certa relação distante e tênue com a instituição eclesi-ástica. Há, enfim, uma abundância e uma instabilidade do imagi-nário religioso e dos sistemas simbólicos completamente acessíveispor meio da mass media (cf. BALANDIER, 1999, p. 164-165, in pas-sin). O enfraquecimento das instituições tradicionais ligado à mo-bilidade das referências da vida transforma o ato de crer: ele "nãose fixa mais de forma durável, [antes] alia-se ao movimento; não

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fornece mais respostas definitivas, mas não desaparece" (Idem, p.167). A relatividade das situações existenciais permite ao crenteavaliar suas crenças na medida das necessidades do cotidiano e dasquestões imediatas (cf. Idem, p. 165).

As grandes instituições tradicionais como a Igreja detinham opoder de estabelecer verdades e de dar sentido à vida, e faziam issoatravés das grandes narrativas que constituem seu corpo de cren-ças religiosas. Atacadas por todos os lados pela dúvida racionalmoderna, elas se vêm num complexo jogo de combate àquilo que serefere ao moderno, e ao mesmo tempo precisam utilizar-se de recur-sos da modernidade para tentarem se reproduzir enquanto referên-cias concretas de condutas e identidades (cf. BALANDIER, 2001). Osimpasses deste jogo abrem espaços para as manifestações locais,para as pequenas narrativas de identidade - apropriações autôno-mas e sincréticas das crenças institucionalizadas e midiatizadas -,sempre instáveis e múltiplas (cf. AGIER, 2001, p. 10).

Neste contexto tenso onde o global midiatizado encontra-se como local é que se criam os novos sentidos das devoções populares. Atensão do atual contexto cultural, segundo Agier (2001, p. 19), "...con-siste em colocar em relação, por um lado, imaginários locais que de-vem sempre acomodar a densidade dos lugares, de suas sociabilida-des, de suas memórias, e, por outro, as técnicas, os conjuntos de ima-gens e os discursos da rede global que, por sua vez, circulam pratica-mente sem obstáculo, despojados de todo enraizamento histórico."

É por meio de um mecanismo de interação deste tipo que assis-timos a proliferação de devoções como a de Santo Expedito, porexemplo. Seus devotos, para cumprir o contra-dom de uma graçaalcançada não seguem mais até algum santuário, mas fazem uso detécnicas de comunicação de massa e de imagens do mundo da pro-paganda, como as faixas de agradecimento expostas pelas esquinasdas cidades. Por meio destes recursos, principalmente pelo uso dosprogramas de televisão das empresas católicas de radiodifusão, asdevoções marianas, novas e antigas, vêm sendo divulgadas por agen-tes eclesiásticos e leigos. Nenhuma novidade neste uso, a inovaçãofica por conta da diversidade da oferta e também pela forma de con-sumo dos fiéis que está se tornando cada vez mais autônoma e dis-tante da instituição. Outra observação importante é que essa mo-dificação também acaba realizando transformações em devoçõesque não estão expostas e dispostas na mídia. Para permanecer no

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campo das devoções marianas eu lembro o caso da Nossa Senhorade Piedade dos Gerais - MG que tem se difundido pelo país e peloexterior utilizando a mediação dos carismáticos católicos, capazesde articular comunidades locais para receber a visita das videntes deMinas Gerais. Acredito que estes novos rituais fazem parte de umconjunto de apropriações do universo popular sobre as novas ex-periências religiosas da sobremodernidade.

Alguns percursos contemporâneos da devoção àAlguns percursos contemporâneos da devoção àAlguns percursos contemporâneos da devoção àAlguns percursos contemporâneos da devoção àAlguns percursos contemporâneos da devoção àVirgem MariaVirgem MariaVirgem MariaVirgem MariaVirgem Maria

Através das aparições contemporâneas da Virgem Maria pode-remos estabelecer um modelo que representa o padrão que o cul-to a Maria, de um modo geral, vem tomando nos últimos tempos.Defendemos que muitos elementos do modelo que opera no casodos cultos em torno das aparições repercutem nos outros gruposde devoção a Nossa Senhora. Ou seja, acreditamos que muitos dosvalores e práticas rituais presentes nos contextos das apariçõestambém alteram as demais formas de culto mariano, como é ocaso da Campanha da Mãe Peregrina.

As aparições definitivamente não são fenômenos só do passado. Arecente onda de aparições de Nossa Senhora e de imagens de NossaSenhora vem comprovar os estudos que afirmam que as aparições sãoatuais e possuem forte apelo religioso, principalmente quando veicu-lados pela mídia ou por grupos organizados com ampla inserção ter-ritorial e social. Steil (1995, p. 546) defende que se pode "situar as apa-rições de Nossa Senhora como parte de um processo mais abrangentede 're-encantamento' do mundo moderno, inscrevendo-se no limiarentre uma tradição católica de longa duração e uma nova corrente deespiritualidade que se afirma à margem da instituição." A tradiçãocatólica milenar refere-se aos elementos bíblicos do Apocalipse de SãoJoão. Já a nova espiritualidade diz respeito ao que, em outro trabalhosobre o tema, Steil (2001) denominou de internalização do "self sagra-do"5 , que está fortemente associado à espiritualidade da Renovação

5A internalização ou interiorização do self sagrado indica que o sagrado não se apresentaobjetivamente como um outro exterior, que se apresenta em sua corporeidade e transmi-te ao "vidente" (o que vê) uma mensagem; mas sim na própria consciência do indivíduo,muitas vezes se confunde com o próprio indivíduo, não se caracterizando, pois, como vi-dência, mas sim como uma "locução interior", conforme uma categoria utilizada pelospróprios carismáticos (cf. STEIL, 2001, p. 130).

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Carismática Católica (RCC). Para examinar de perto esta alteração deparadigma no culto de aparição, talvez seja importante analisar rapi-damente o desenvolvimento diacrônico de um caso específico.

Do local ao global: Maria em Piedade dos GeraisDo local ao global: Maria em Piedade dos GeraisDo local ao global: Maria em Piedade dos GeraisDo local ao global: Maria em Piedade dos GeraisDo local ao global: Maria em Piedade dos Gerais

A aparição de Maria em Piedade dos Gerais, estado de Minas Ge-rais, Brasil, inicia-se em 1987, com a vidência de três meninas queliam em uníssono as mensagens que a Virgem escrevia com uma va-rinha no céu. Estas mensagens se reportavam aos trabalhadores ru-rais da região, e conclamavam para que eles se preparassem para obreve advento de um mundo melhor. Passados alguns meses da pri-meira aparição, formou-se no local uma comunidade com algumasdezenas de pessoas que abandonaram tudo o que faziam para aten-der ao chamado da Virgem. A partir deste momento, as mensagensse alteram e voltam-se para a estruturação deste grupo. As mensa-gens passaram a ocorrer várias vezes ao dia, se dirigiam a pessoasespecíficas, duravam até horas e tratavam dos mínimos detalhes dasrelações e atividades cotidianas. Mas nos finais de semana, quandoromeiros das cidades vizinhas começaram a chegar no local, as men-sagens se modificaram e passaram a conter informações mais gené-ricas e subjetivas, porém preservavam o tema da salvação e da cons-trução de um mundo melhor (cf. ALMEIDA, 2001)6 .

Passados outros tantos meses, instalam-se na comunidade gruposurbanos que vinham freqüentando assiduamente o local. De um lado,vieram pobres e marginalizados das cidades, de outro, pessoas da classemédia e média alta. Desta classe mais abastada, a maioria era formadapor carismáticos. Esta diversidade, étnica, social, moral e até mesmoreligiosa trouxe enormes desafios para a comunidade do local da apa-rição, relativamente homogênea até então. Uma das alterações mais sig-nificativas ocorreu no fenômeno da aparição propriamente dito. Asmensagens passaram a ser transmitidas essencialmente por uma úni-ca vidente. Apesar de todo o grupo de videntes ver a Virgem, somente

6Observa-se claramente nestas mensagens uma oposição radical com relação às mensa-gens européias no que diz respeito ao conteúdo das mesmas. Os segredos característi-cos das aparições européias de Fátima a Medjugorje estão associados a catástrofes imi-nentes e ao fim dos tempos (cf. STEIL 1995), porém, as mensagens de Piedade possuemum caráter revolucionário de glórias para os marginalizados do local: o advento da BoaNova do reino de Deus para os oprimidos, tema afinado ao pensamento libertador dasCEBs - uma das expressões religiosas vivenciadas naquele contexto (ALMEIDA, 2001).

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uma passou a retransmiti-la. E lentamente foi ocorrendo uma transfor-mação do self divinizado do fenômeno, as mensagens foram se deslo-cando do "ela" para o "eu". A vidente principal, a mensageira, foi deixan-do de ditar a mensagem que via, para transmiti-la na primeira pessoa,à maneira da locução interior. Essa transformação possibilitou não sóa proliferação da vidência entre vários membros do grupo, como tam-bém a extrapolação do fenômeno para fora do "lugar sagrado". A men-sageira passou a receber a mensagem em locais independentes do con-texto inicial, ampliando significativamente o público atingido pelasmensagens. Neste momento as mensagens passaram a se dirigir à "hu-manidade", despersonificando seus receptores. Na mesma ocasião,quando as mensagens eram dirigidas para a heterogênea comunidadedo santuário que se criou, tornaram-se inconclusas ("façam o que osseus corações mandarem", "acontecerá o que Deus quiser"), abrindomargem para diferentes interpretações subjetivas, respondendo, destaforma, às mais diferentes aspirações reunidas no local.

Para Steil (2001, p. 125-132) é exatamente a presença dos carismá-ticos no contexto das aparições o que vai caracterizar e diferenciaras aparições contemporâneas. A partir de Medjugorje as aparições(eventos localizados) perdem o monopólio clerical da mediação como universal. A presença dos carismáticos enquanto mediadores en-tre o local e o universal re-configura os aspectos das aparições. Epara poderem circular no mercado globalizado dos bens simbólicos,pela via dos carismáticos, uma das transformações que ocorre nasaparições é exatamente a interiorização do self sagrado, ou seja, nosnovos fenômenos de aparições, as profecias (elemento comum en-tre as aparições e os ritos carismáticos) se deslocam do ritual da vi-dência para a experiência das locuções interiores. Porém, esse pro-cesso de mudança cultural ocorre na via contrária. Isto é, nos con-textos carismáticos de locuções interiores, o self sagrado se deslocada figura do Espírito Santo para Maria. Em outras palavras, há umduplo mimetismo no qual Maria se subjetiva, manifestando-se di-retamente e intimamente na consciência individual dos "videntes",ao mesmo tempo em que o Espírito Santo que fala à consciência docarismático vem sendo substituído pela figura de Maria7. Essa con-7A presença de estudos sobre os carismáticos católicos aqui ocorre dentro de um qua-dro de argumentos que apresento para ilustrar o caráter singular da religiosidade nomundo contemporâneo. Ao contrário do desenvolvimento das aparições de Piedade dosGerais e de Taquari, o movimento de Schoenstatt em Ubatuba, até o momento final dapesquisa, não estava ligado ao carismatismo.

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fluência com nítida valorização da locução interior, segundo Steil,corresponde "a uma tendência mais geral da religião na condi-ção pós-moderna", marcada pela reflexividade entre tradição ea inovação e expressa, entendemos, pela privatização da expe-riência religiosa.

Essa dimensão da subjetividade e da reflexividade, presente nacondição pós-moderna da religião, demonstraria a leitura que a tra-dição vem fazendo das novas formas de expressão religiosa.

Outro aspecto de diferenciação observado por Steil (2001,p. 132-133) é que nas aparições anteriores a Medjugorje os ri-tuais e mensagens se mostravam chaves de leitura da culturae da estrutura social das comunidades locais, hoje as apariçõesjá não representam mais uma realidade anterior. As comuni-dades formadas pelas aparições reúnem a mais expressiva al-teridade contemporânea: diferentes pessoas vindas dos maisdiferentes lugares.

Agora, portanto, as pessoas que se agrupam em função dasaparições são instruídas na vivência dos rituais, passam a seorganizar e pautam as suas vidas em função da criação de umself coletivo - ou um novo mundo, tido como dado - que forne-cerá os modelos de organização da vida e do culto. "...De modoque, mais do que revelar comunidades referidas a um espaçomaterial, as aparições contemporâneas estão criando comuni-dades rituais que, ao se depreenderem da paisagem local, aca-bam inserindo-se na extensa rede de referência do movimentocarismático...". Esse processo pode ser observado tanto na apa-rição de Taquari, RS, estudada por Steil (2001), como em Pieda-de dos Gerais (ALMEIDA, 2001).

Vejamos de que forma ocorrem as relações entre estes doisgêneros católicos de religião (o catolicismo popular das apari-ções e o catolicismo de massas da RCC). No estudo sobre asaparições marianas, Steil destaca o que ele já havia observadoem outro contexto de religiosidade popular (STEIL, 1996).

Ele afirma que há uma disputa, no campo dos sentidos e dasestratégias dos grupos mediadores envolvidos no fenômeno(clero e carismáticos), em busca de legitimidade e hegemonia.Conforme estes dois grupos se relacionam, isto é, disputam enegociam significados e rituais, troca de favores e espaços de

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atuação, a abrangência do evento será maior ou menor, tantona sociedade local quanto entre os peregrinos (Idem, 2001)8.

Considerando o estudo da Mãe Peregrina em Ubatuba (SILVA,2003), talvez devêssemos nos perguntar se estas características desubjetivação, reflexividade e desterritorialização, destacadas porSteil (e também por Almeida) não ultrapassam tanto o contexto dasaparições contemporâneas quanto a RCC. Ao concordar com Steil(2001) a respeito da condição pós-moderna (ou sobremoderna,como prefiro chamar) da religião - de todas as religiões e não umaem específico - como sendo a radicalização da subjetividade, da que-bra do monopólio da produção dos bens religiosos e da reflexivida-de cultural, sinto-me autorizado a transferir suas observações a res-peito das relações entre o carismatismo católico e as aparições ma-rianas para as redes de devoção da Mãe Peregrina que estudei.

De volta às capelinhas de UbatubaDe volta às capelinhas de UbatubaDe volta às capelinhas de UbatubaDe volta às capelinhas de UbatubaDe volta às capelinhas de Ubatuba

As duas devoções marianas que pesquisei divergem uma da ou-tra, primeiramente, com relação às imagens que são contidas pelascapelinhas. Como foi dito acima, a devoção à Mãe Peregrina temuma estampa do século XIX de Maria com o menino Jesus. Diver-samente, a outra capelinha criada pelo clero tem uma estatueta doImaculado Coração de Maria, e é conhecida por capelinha do Ima-culado Coração de Maria. As duas também divergem quanto à for-ma de introdução na paróquia, que é o lócus da pesquisa. A primei-ra, a da Mãe Peregrina, chegou à cidade através de uma leiga, mora-dora recente da paróquia. A segunda chegou depois e pelas mãos do

8Falando a respeito dos empreendimentos identitários no mundo globalizado e da rela-ção entre repertórios culturais disponíveis globalmente, Agier apresenta-nos um qua-dro das disputas e diálogos dos atores mediadores das escalas local e global pelo senti-do dos fenômenos culturais. O fato de os agentes locais terem que inscrever suas cria-ções dentro de retóricas globais extremamente simplificadas e dualistas reflete a existên-cia de "... um contexto novo para a criação de sentido, a partir de uma certa dissociaçãoentre os lugares, as identidades e as culturas. Uma relação desleal se estabelece, então,em uma instância intermediária de criação entre o repertório global, cujo alcance pra-ticamente não encontra barreiras materiais, e as realidades locais afetadas pelas tensõessociais, as exclusões e outras fontes de interrogações identitárias. O que a análise perce-be como intervalo de ajuste, um momento pouco nítido e misturado entre constrangi-mentos de múltiplas escalas, é um tempo de morte do sentido. É nesse intervalo contur-bado que se desenvolvem os conflitos e as negociações entre os atores, os aprendizados,as tentativas de tradução e de diálogo. É aí, nesse nível intermediário de criação que, fi-nalmente, se pode produzir sentido, ao fim de uma alquimia entre discursos e símbolosde inspirações heterogêneas" (AGIER, 2001, p. 21 - grifos no original).

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pároco da época. O fato de o clero ter passado a praticamente rene-gar a Campanha da Mãe Peregrina, ao mesmo tempo em que o gru-po teve cortado o seu vínculo com a coordenação regional do mo-vimento (em função da ausência da leiga que levou a Campanha àcidade), abriu a possibilidade de um desenvolvimento anônimo eautônomo da devoção. É neste sentido que afirmo que a devoçãooriginariamente elitizada e clericalizada foi reapropriada por umgrupo de devotas populares9. Meu objetivo esteve centrado na ten-tativa de perceber os ethos religiosos encerrados nesses símbolosmarianos, principalmente, na capelinha da Mãe Peregrina de umbairro específico da cidade (Perequê-Açu), porque considero que,neste caso, esta devoção ganha sentidos específicos de novos modosde viver o catolicismo devocional tradicional (cf. SILVA, 2003)10.

As católicas que entrevistei possuem inúmeras representaçõesmateriais de santos, incluindo variadas imagens marianas11. Mas,a despeito da presença permanente destas imagens, a "visita" men-sal da Mãe Peregrina opera uma transformação do espaço domés-tico num santuário particular - um "espaço sagrado" - concomi-tante com um sentimento de que há estreitas relações com o san-tuário original de Schoenstatt 12. Como vimos, a devoção consisteem cuidar por um dia inteiro, todos os meses do ano, de uma ca-pelinha que circula entre trinta famílias.

Os relatos sobre o que acontece e o que as devotas fazem no diada visita da Mãe Peregrina parecem deixar claro o caráter detransformação que a capelinha aciona quando visita as casas, além

9Entendo devoção popular no estrito sentido de uma devoção que se apresenta em opo-sição á forma ortodoxa de devoção aos santos.10Aqui não me detenho no conflito em si e nem em seus motivos. Dado a limitação deespaço me permito referenciar aos interessados a dissertação acima citada (SILVA, 2003).11No caso de Ubatuba, as participantes da devoção são na sua maioria mulheres perten-centes à classe média, média baixa. Temos aquelas que têm uma intensa participação navida paroquial até católicas não praticantes. A maioria das senhoras que entrevistamosparticipa efetivamente da vida comunitária da igreja (SILVA, 2003).12Essas relações se estabelecem não pelo lado da devota ou de sua atenção, mas pela at-enção que ela imagina que as guardiãs do santuário devotam a sua família naquele dia.Em substituição à peregrinação dos devotos até o santuário do padroeiro, temos a pere-grinação da imagem do santo (e de Maria) pelas casas dos fiéis. Há que se destacar tam-bém o fato de as capelinhas de Schoenstatt não retornarem ao santuário de origem. Nocaso de muitas imagens de santo ou de Nossa Senhora que peregrinam pelas comuni-dades e pelas casas dos devotos, ocorre um retorno periódico ao santuário de origem,preservando, desta forma, um forte vínculo simbólico com o espaço sagrado.

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de apresentar um sentimento de eleição e regozijo para as mulhe-res, pelo fato de terem sido convidadas para receber Nossa Senho-ra. Para as devotas da Mãe Peregrina, a visita mensal da capelinhainstala ou aumenta a consagração do espaço doméstico transfor-mando-o num santuário "privado", que inaugura um tempo sagra-do e transforma os lares. Não importa o fato de Maria já estar pre-sente no local, através das imagens de outras invocações, a passa-gem da Mãe Peregrina transforma a casa em um santuário priva-do, inaugura um tempo sagrado, cheio de graças para a devota eos seus. Segundo a visão de uma devota, Maria traz uma forçamuito grande nesta peregrinação, ela realiza uma grande transfor-mação nos lares que visita. Criando assim uma ocasião especial,para agradecer e pedir as graças da Mãe de Jesus. A produção sim-bólica de um santuário familiar abre a possibilidade para experi-ências religiosas que não são vivenciadas nos serviços paroquiais.

Estes simbolismos verificados na devoção à Mãe Peregrina reme-tem-se à noção desenvolvida por Eliade sobre o "lugar santo" provi-sório: um espaço provisoriamente consagrado e "cosmizado", atravésde símbolos e rituais (cf. ELIADE, 1992). Porém, esta noção de um es-paço provisoriamente consagrado contém um dado não desenvolvi-do por Eliade, que é a experiência do tempo sagrado provisório. Nasculturas tradicionais a revelação do sagrado dá-se espacialmente naprojeção de um ponto fixo. Da mesma forma, o lugar santo inaugu-ra um tempo sagrado, o tempo mítico provisório. Mas este tempoprovisório não é propriamente efêmero, possui uma duração relati-vamente longa - um período ritual, cosmologicamente definido.

Em oposição, no mundo atual, assistimos à aceleração do tem-po que interfere até mesmo na definição dos usos dos espaços emgeral. No mundo urbano, encontramos utilizações efêmeras dosespaços, utilizações de curtíssimo prazo e mesmo utilizações dis-tintas - algumas vezes opostas - do mesmo espaço, conforme o pe-ríodo observado (cf. ABUMANSSUR, 2001, p. 214). Um dos locaismais dinâmicos são os espaços de utilização informal: pontos decomércio ambulante, por exemplo, tornam-se locais de prostitui-ção no período noturno. As concepções de tempo e espaço sagra-do foram alteradas pela modernidade. Os cinemas tornam-se tem-plos, ou mais revelador: alugam-se espaços de atividade profanapara a instalação de templos religiosos. A casa, no bojo da secu-larização religiosa, perdeu muito do caráter santo que a caracte-

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rizava nas culturas tradicionais, aquele caráter ainda permanece,mas agora de forma residual ou descontínua.

Neste ponto, as observações de Steil sobre as aparições marianas en-contram um lastro muito apropriado. Atualmente, segundo este autor,o espaço deixa de existir enquanto mediação para o sagrado cedendolugar aos mensageiros do sagrado (videntes e acrescentaria as imagens)que ultrapassam a referência espacial e inserem o sagrado "...numa ex-tensa rede de comunidades organizadas muito mais como movimentodo que como circunscrições geográficas..." (2001, p. 133). Assim, em opo-sição a um Centro sagrado, o santuário, criam-se espaços provisoria-mente consagrados para a manifestação das divindades.

Parece-me que a idéia de que a Mãe Peregrina constrói a sua eficá-cia simbólica na circulação entre as famílias e com isso torna-se umlugar de autoprodução religiosa, que resiste (mas não "compete") aomonopólio de bens religiosos (sacramentos como mediação do mun-do material e espiritual) representados pela Igreja católica instituci-onal, a torna uma modalidade de devoção emblemática que se mos-tra afinada com nosso tempo e afinada com a vivência dos católicosurbanos porque requer pouco tempo, permite um culto mais parti-cularizado e liberado, pouco ou nenhum compromisso com serviçoscomunitários ou paroquiais. Ao mesmo tempo, esta é uma experiên-cia religiosa profunda pelo fato da pessoa ser convidada por uma ze-ladora para fazer parte da devoção, o que, na acepção das entrevista-das, corresponde a receber a graça de ser escolhida pela própria MãePeregrina 13. Gerando assim um sentimento de valorização da singu-laridade, tão renegada pela "sociedade de massas" - lugar mais comumda sociabilidade dos tempos atuais. A construção deste espaço de re-ligiosidade sugere que a visão religiosa "alternativa" das devotas - emrelação à visão oficial - não as coloca em oposição direta ao pároco.

13O sentimento moral de eleição, construtor de transformações e significações identitá-rias, constitui-se num dos pólos da força simbólica do movimento. Este sentimento en-contra lastro na opinião de que é Maria que quer circular, sendo as pessoas meros ins-trumentos desta "vontade divina". Uma devota da Mãe Peregrina lembra, reproduzindoo discurso institucional, que a "missão" de Maria é caminhar. Foi assim desde a concep-ção de seu divino filho, quando ela se dirigiu para a casa de sua prima Isabel. Receber avisita de Maria, neste sentido, torna a devota equivalente à Isabel. Fazendo uma com-paração desta experiência com a que o fiel vivencia quando visita o santuário de seupadroeiro(a) e traz para casa sua imagem, percebemos logo os contrastes. Nesta última,foi o fiel quem trouxe - ou no caso muito comum de ele ter ganhado a imagem, ela foidoada por outra pessoa, "normal" como ele. No movimento da Mãe Peregrina, é a pró-pria divindade que escolhe as famílias por onde ela quer se deslocar.

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Em outras palavras, como vem ocorrendo em Ubatuba, essa devo-ção permite um culto mais individualizado, livre das amarras severasda burocracia paroquial e do compromisso sócio-comunitário, queabre a possibilidade das devotas construírem sua relação com Nos-sa Senhora segundo seus costumes tradicionais (de intimidade comentidades sagradas e o reconhecimento das mesmas) e com a indepen-dência que o espaço doméstico estabelece em relação à paróquia.

Mas o que difere a prática de prestar culto individual a uma ca-pelinha de Maria do hábito tradicional de entronizar em casa a ima-gem do santuário e do padroeiro trazidos da romaria? No caso dasdevoções tradicionais, Beozzo (1977, p. 752) afirma que "as oraçõesem família perante o seu santo e a reprodução do santuário man-têm vivo o laço religioso do devoto com o seu santuário". O mesmonão ocorre com a Mãe Peregrina. Primeiro, porque na maioria doscasos, nem se conhece o santuário original. Em segundo lugar, por-que a eficácia simbólica desta devoção está no fato de, justamente,não ser o devoto que peregrina, mas sim a Virgem Maria. A trans-formação da residência num santuário e a obrigação de aumentaras graças, isto é, a força simbólica do santuário irradiador, garanteo poder de intercessão da Mãe Peregrina. É enfim, a rede que as de-votas formam que estabelece a relação de forças simbólicas que aju-dam a dar sentido ao catolicismo cotidiano que elas vivenciam. Ofato de se envolver com um objeto sagrado de devoção, que não lhepertence efetivamente, de maneira particular e/ou familiar - mas quedo mesmo modo não é da paróquia - oferece um sentimento, aomesmo tempo de posse, de eleição, de participação em alguma coi-sa que a ultrapassa, de familiaridade com algo importante porqueé universal (ao menos supralocal e não paroquial).

Diferentemente, no caso das devoções tradicionais aos santos,percebe-se que o sentido e a ordenação do mundo cotidiano sãogarantidos pela formação da rede de santos de um devoto em par-ticular, através da soma de seus poderes, ou melhor, através daaglutinação da especialidade de cada um dos santos cultuados.

As constatações acima são importantes, pois pressupõem que aspráticas de culto aos santos não são residuais ou reminiscências dopassado, mas, ao contrário, constituem práticas fundamentais docatolicismo contemporâneo. As práticas autônomas de culto aossantos demonstram, ainda, que estes símbolos reproduzem-se con-

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forme o movimento dos grupos, das redes ou categorias de pesso-as representadas pelos santos ou associações (ZALUAR, 1983, p. 64).

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Ao estudar as devoções marianas num contexto paroquial e co-tidiano, identifiquei processos distintos daqueles verificados nosgrandes rituais que reúnem romeiros nos santuários, ou nos even-tos extraordinários das aparições marianas bastante recorrenteshoje em dia.

A principal constatação é que em contextos cotidianos a dinâ-mica de apropriação e re-apropriação de práticas devocionais po-pulares e institucionais segue os mesmos princípios, e sofre asmesmas influências dos ritos extraordinários, contudo, as relaçõesentre os pólos oficiais e não-oficiais da religião não ocorrem comotentativas de diálogo ou de disputa pelos sentidos. Ao menos emUbatuba, o que percebi foi um movimento no sentido de acomo-dar, na medida do possível, representações, rituais e símbolos ins-critos em diferentes períodos, tanto da vida dos devotos como davida da Igreja.

Os sentimentos e práticas do culto a Nossa Senhora levantadosna etnografia me levaram à constatação de que o culto aos santos,de um modo geral, vem passando por um processo de atualizaçãoda produção e do consumo que não tem representado uma secu-larização da crença religiosa, no sentido da racionalização da fé,como era de se esperar, segundo os estudos clássicos das ciênciassociais da religião. Esta atualização tem se caracterizado, menospelas dicotomias moderno e arcaico ou racional e irracional (má-gico), e mais pela criação de espaços alternativos e complementa-res de exercício da crença. Sendo tais espaços nitidamente indivi-dualizados e individualizantes.

Neste sentido, esta atualização significa um esforço de continui-dade, talvez uma re-emergência da tradição, uma vez que o cultoprivado (familiar) aos santos era uma das características do cato-licismo devocional ibérico instalado no Brasil, e alterado pelosencontros e embates com as culturas indígenas e africanas. Mas,não se trata simplesmente de uma cópia, de uma transposição, afi-nal, o espaço comunitário e sagrado de vivência da fé - as capelas,os santuários, as associações leigas - também foi simbolicamente

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transformado. Não é uma cópia porque, da mesma forma, as re-ferências coletivas desta fé individualizada14 apresentam-se pormeio da mass media e não por meio de esquemas locais e contex-tos regionais muito mais densos e envolventes para o indivíduo.

14Não podemos esquecer que as práticas culturais, por mais idiossincráticas que possamparecer, sempre têm ancoradouro nas teias de significados tecidas pelo grupo social.

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