Dez Qualidades da Agricultura Familiar

8/13/2019 Dez Qualidades da Agricultura Familiar

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n. 1 Fevereiro de 2014CADERNOS DE DEBATE

JAN DOUWE VAN DER PLOEG


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ISSN: 1807-491X

Revista Agriculturas: experincias em agroecologia

Nmero Extra

Revista Agriculturas: experincias em agroecologia um projeto editorial daAS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia integrado AgriCultures Network

EXPERINCIAS EM AGROECOLOGIA

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EQUIPE EXECUTIVA

Editor Paulo Petersen

Produo Executiva Adriana Galvo Freire

Traduo Flvia Londres e Paulo PetersenCopidesque Rosa L. Peralta

Foto da capa Andr Telles

Fotos do texto Andr Telles e Xirumba

Projeto grco e diagramao I Gracci Comunicao e Design

Impresso: Gol Grca

Tiragem: 2.000


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Dez qualidades da agricultura familiar

Apresentao

Osculo 20, particularmente aps a Segunda Guerra Mundial, as-sistiu inaugurao do perodo dagrande acelerao, uma faseda histria ambiental planetria marcada pelo aumento verti-

ginoso do consumo e da degradao de bens naturais. Por meio desse processo

avassalador resultante da disseminao global da civilizao industrial e da explosodemogrca, a humanidade converteu-se em uma fora geolgica com capacida-de de desequilibrar dinmicas ecolgicas do planeta. Para dar visibilidade a esseexperimento sem controledesencadeado pela convergncia entre a globalizao daracionalidade econmica comandada pelo capital e a crescente capacidade tecno-lgica de transformao do mundo natural, membros da comunidade cientca tmdefendido a ideia de que adentramos a era geolgica do antropoceno.

O carter antropognico das mudanas climticas globais apenas uma das

evidncias desse fenmeno emergente, cujas consequncias sobre a ecosfera e inevitavelmente o futuro da humanidade apenas comeam a ser perscrutadas.Tambm so cada vez mais frequentes e incisivos os alertas emitidos por organis-mos multilaterais e prestigiosas instituies acadmicas de todo o mundo de quecaminharemos celeremente para o colapso da civilizao moderna caso no sejamreformulados os fundamentos socioculturais, tcnicos e econmicos que regulamo metabolismo socioecolgico das atuais sociedades i.e.: as trocas materiais eenergticas estabelecidas com a natureza para que as sociedades funcionem.

Com o ttulo Despertar antes que seja tarde, o mais recente relatrio da Con-

ferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento (Unctad, na siglaem ingls) faz um chamamento emergencial ao. Segundo esse extenso e inquie-tante documento, a agricultura moderna se posiciona no centro do cenrio da criseecolgica mundial, exercendo o duplo papel de algoz e de vtima. Essa bivalnciaexplica-se pelo fato de que as monoculturas industrializadas e os mercados alimen-tares globalizados guram como as principais atividades econmicas geradoras dadegradao ambiental e das mudanas climticas ao mesmo tempo em que so asmais vulnerveis aos efeitos desses fenmenos.

Outras dimenses desse intrincado crculo vicioso estabelecido entre aeconomia e a ecologia dos sistemas agroalimentares so abordadas em outrosdocumentos ociais que ressaltam o fato de que a acentuao de desigualdades


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sociais e de agudas privaes humanas, como a fome e a subnutrio, decorrem, emgrande medida e contraditoriamente, da disseminao em larga escala do modeloindustrial de produo e abastecimento alimentar. Anal, embora h mais de cin-co dcadas ele venha sendo anunciado com a promessa de prover prosperidadeeconmica no mundo rural e assegurar alimentao farta e barata para a crescente

populao humana, os dados concretos revelam justamente o oposto.Diante de um contexto mundial em que o nmero de famintos e subnutridos

se iguala ao de pessoas sujeitas epidemia de sobrepeso e obesidade muitofrequentemente tambm acompanhada de subnutrio , a insegurana alimentare nutricional desponta como o elo mais evidente na articulao entre a crise eco-nmico-social e a crise ecolgico-climtica. Nesse sentido, a presena da fome emmeio abundncia de produo alimentar indica a existncia de uma nica crise,de carter sistmico, complexo e multidimensional, que no encontrar solues

estruturais no mesmo receiturio do produtivismo economicista que baliza a ela-borao de polticas agrrias e agrcolas nos ltimos 50 anos.

O equacionamento das mltiplas dimenses dessa crise sistmica cobra aimplementao de polticas voltadas a transformar radicalmente a estrutura e ofuncionamento dos modernos sistemas agroalimentares. Felizmente, as inspiraesempricas para a orientao dessas polticas proliferam em todos os quadrantes, emparalelo e como resposta ao avano da agricultura industrial comandada pelos mer-cados globais. Elas resultam de criativas dinmicas sociais locais que refundamentama agricultura na natureza e na sociedade do entorno guiadas pelo propsito de au-mentar os nveis de renda e as margens de autonomia tcnica, econmica e polticacom relao s corporaes do agronegcio.

H dez anos, a revistaAgriculturas: experincias em agroecologiadivulga inicia-tivas dessa natureza sistematizadas no Brasil e no exterior. Apesar da enorme di-versidade de situaes socioambientais em que so realizadas e do varivel graude amadurecimento das mesmas, o conjunto dos artigos publicados inequvocoquanto superioridade tcnica, econmica, ambiental e social do paradigma agroe-colgico quando comparado com o da modernizao agrcola. Outro aspecto de-

terminante nas experincias veiculadas na revista vem do fato de que elas estosocialmente enraizadas em ambientes culturais que reproduzem modos de produ-o e de vida congruentes com os princpios de gesto tcnica dos ecossistemasagrcolas postulados pela cincia da Agroecologia. Embora altamente diversicadosentre si, gerando assim mltiplas signicaes identitrias, esses ambientes culturaispodem ser genericamente reconhecidos como o mundo da agricultura familiar.

O texto de Jan Douwe van der Ploeg que ora apresentamos nos introduznesse mundo de difcil compreenso para uma sociedade que sucumbiu ao do-

mnio paradigmtico das teorias sociolgicas, econmicas e agronmicas da mo-dernizao agrcola. Ao apresentar dez qualidades da agricultura familiar, o autorsintetiza o potencial multifuncional que ela pode desenvolver a m de contribuir


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para a superao de signicativos dilemas civilizacionais que emergem com a erado antropoceno.

Embora amplamente demonstrado ao redor do planeta, esse potencial vemsendo largamente desperdiado por polticas estatais desenhadas para favorecer adinmica expansiva da agricultura patronal. Diante desse contexto, em que as pers-pectivas e ideologias ligadas ao industrialismo e s economias de escala imperam,a armao das virtuosidades inscritas nas dez qualidades da agricultura familiarapresenta-se como enorme desao terico e poltico. nesse sentido que deve-mos louvar a iniciativa da Organizao das Naes Unidas (ONU) de declarar 2014como o Ano Internacional da Agricultura Familiar.

No entanto, como o prprio autor alerta, a efetivao das qualidades poten-ciais da agricultura familiar tambm tem sido bloqueada por polticas especcaspara esse segmento social, sempre que as mesmas so desenhadas com o objetivo

de induzir reconverso tcnica e produtiva dos estabelecimentos familiares se-gundo padres empresariais de gesto econmica. Ao promoverem esse modelooperacional de desenvolvimento agrcola, os governos acabam por favorecer a su-bordinao da agricultura familiar lgica do capital industrial e nanceiro, transfor-mando-a em mera fornecedora de mo de obra para o agronegcio.

Como concluso, o texto deixa claro que as dez qualidades s podero servalorizadas e desenvolvidas com a criao de condies objetivas para que a agri-cultura familiar coloque em prtica e aprimore continuamente o modo campons

de produo e de vida inscrito nas memrias bioculturais de suas comunidades.Nesse sentido, surge o conceito de recampesinizao do mundo rural, que sintetizaa ideia de um projeto estratgico de cunho social, cultural, econmico, ambientale poltico que assume uma dimenso quantitativa e outra qualitativa. Do ponto devista quantitativo, a recampesinizao signica a democratizao do acesso aos bensnaturais, a comear pela terra, para a criao e a multiplicao de novos estabele-cimentos familiares. Qualitativamente, signica a reterritorializao da agriculturafamiliar, ou seja, o desenvolvimento de agroecossistemas essencialmente fundamen-tados nos uxos ecolgicos e econmicos estabelecidos com a natureza e com asociedade nos territrios onde a agricultura familiar vive e produz.

Por m, Ploeg assevera que a agricultura familiar s poder desenvolver suasqualidades intrnsecas em benefcio das sociedades contemporneas ao se tornarmais camponesa e menos empresarial. Sendo assim, o Ano Internacional da Agricul-tura Familiar apresenta-se como oportunidade mpar para a defesa do projeto derecampesinizao em suas dimenses quantitativa e qualitativa, que correspondem,respectivamente, a duas bandeiras de luta de movimentos sociais do campo noBrasil: a reforma agrria e a Agroecologia.

Paulo Petersen

Coordenador-Executivo da AS-PTAEditor da Revista Agriculturas


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Dez qualidades da

agricultura familiarJan Douwe van der Ploeg

O que a agricultura familiar?

Aagricultura familiar um desses fenmenos que as sociedades oci-dentais tm cada vez mais diculdade de compreender. Isso se devea muitas razes. Entre elas, est o fato de que a agricultura familiar se contrape concepo burocrtica, aos protocolos formalizados e lgica industrial quedominam cada vez mais nossas sociedades. Isso faz com que ela seja vista, deum lado, como arcaica e anrquica, mas, por outro lado e ao mesmo tempo ,emirja como algo atrativo e sedutor.

A agricultura familiar tambm difcil de ser compreendida por ser, emessncia, um fenmeno complexo e multidimensional. Identico neste texto dezqualidades da agricultura familiar. Elas nem sempre esto presentes ao mesmotempo em todas as situaes. A questo mais importante a ser assinalada quea realidade da agricultura familiar muito mais rica do que os dois aspectosindividuais que so mais comumente utilizados para descrev-la: que a famlia

proprietria da terra e que o trabalho realizado pelos seus membros.

A agricultura familiar tambm no se dene somente pelo tamanho do es-tabelecimento, como quando falamos da agricultura de pequena escala, mas simpela forma com que as pessoas cultivam e vivem. por isso que a agriculturafamiliar tambm considerada uma forma de vida.

O equilbrio entre o estabelecimento e a famlia

Passemos ento a analisar de perto as dez qualidades. Em primeiro lugar,a agricultura familiar tem o controle sobre os principais recursos (1)


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que utiliza em seu estabelecimento. Isso inclui a terra, mas tambm os animais,os cultivos, o material gentico, a casa, as construes, o maquinrio e, em umsentido mais amplo, o conhecimento que especica como todos esses recursospodem ser utilizados e combinados entre si. A integrao ativa na vida comunit-ria e o acesso aos mercados, bem como a participao em cooperativas, tambm

representam importantes recursos.

Os agricultores familiares no utilizam esses recursos para obter lucros,mas para ganhar a vida, ou seja, para obter nveis de renda que lhes proporcionemuma vida digna e, se possvel, permitam que faam investimentos para o contnuodesenvolvimento do estabelecimento.

Alm disso, o estabelecimento familiar onde a famlia investe a maior par-te de sua fora de trabalho (2), o que o torna um lugar de autoemprego e deprogresso para a famlia. por meio da dedicao, da paixo e do trabalho duro da

famlia que o estabelecimento se desenvolve e a qualidade de vida aprimorada.

O estabelecimento satisfaz mltiplas necessidades da famlia, enquanto a fa-mlia administra as potencialidades e as limitaes do estabelecimento, alm deprover os meios para o seu funcionamento. Esse nexo entre a famlia e oestabelecimento (3) central nas decises relacionadas ao desenvolvimento doprprio estabelecimento. Cada estabelecimento possui seus equilbrios especcos,por exemplo, entre as bocas que tem que alimentar e as mos com que conta pararealizar o trabalho. Esses equilbrios unem a famlia ao estabelecimento e tornam

cada estabelecimento familiar uma constelao nica.

Unindo passado, presente e futuro

Para compreender a agricultura familiar, devemos considerar tambm as-pectos que envolvem mais do que a propriedade e o trabalho. Os estabeleci-mentos familiares proporcionam famlia agricultora uma parte ou

a totalidade de sua renda e dos alimentos consumidos (4).Cumpreressaltar que ter o controle sobre a qualidade dos alimentos de produo pr-

pria e estar conante de que no esto contaminados um aspecto cada vezmais importante e valorizado pelos agricultores de todo o mundo. No entanto, oestabelecimento familiar no s um lugar de produo (5). tambmo lar da famlia agricultora. o local a que pertencem as pessoas, alm de ser olugar que lhes proporciona abrigo. Em suma, o lugar onde a famlia vive e ondeas crianas crescem.

A agricultura familiar parte de um uxo que une passado, pre -

sente e futuro (6), o que signica que cada estabelecimento familiar possui uma

histria cheia de memrias. Signica tambm que os pais trabalham para lhos elhas. Querem dar gerao seguinte um ponto de partida slido, dentro ou fora


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da agricultura. E, por ser o resultado do trabalho e da dedicao dessa geraoe das geraes anteriores, o estabelecimento familiar normalmente fonte deorgulho. Da porque a raiva pode sobrevir quando outros tentam prejudicar oumesmo destruir o estabelecimento construdo em conjunto, pela famlia.

O estabelecimento familiar o local onde experincias so acu-

muladas (7), onde o aprendizado tem lugar e onde o conhecimento transmi-tido gerao seguinte de maneira sutil, porm determinada. Frequentemente,o estabelecimento familiar congura um elo em redes de relacionamento maisamplas nas quais circulam novas ideias, prticas, sementes, etc.

Conexo com seu entorno

O estabelecimento familiar no s uma empresa econmica centrada prin-

cipal ou unicamente na produo de renda, mas sim um lugar onde as conexescom o entorno e a cultura so importantes. A famlia agricultora parte de umacomunidade rural mais ampla e, s vezes, integra redes de relacionamento que seestendem para as cidades. Nesse sentido, o estabelecimento familiar um


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lugar onde se vivencia e se preserva a cultura (8), podendo assim ser consi-derado um patrimnio cultural.

A famlia e o estabelecimento so tambm partes integrantes da

economia rural (9): esto vinculados localidade e so portadores dos cdigosculturais da comunidade qual pertencem. Dessa forma, as famlias agricultorascontribuem para fortalecer a economia rural local, pois na comunidade ondecompram, gastam e participam de outras atividades econmicas.

De forma equivalente, o estabelecimento familiar faz parte da pai-sagem rural (10). Nele, pode-se trabalhar com a natureza, em vez de contraela, ao se valer dos processos e dos equilbrios ecolgicos (em vez de interrom-p-los) e preservar a beleza e a integridade das paisagens. Quando a agriculturafamiliar trabalha com a natureza, contribui localmente para a conservao dabiodiversidade e para a luta contra as mudanas climticas globais. Seu trabalho

implica uma interao contnua e direta com a natureza viva uma caractersticaaltamente valorizada pelos prprios agricultores.

Liberdade e autonomia

O estabelecimento familiar uma instituio atrativa, j que proporcionauma relativa autonomia famlia agricultora, que ali busca alcanar uma duplaliberdade: estar livre derelaes de explorao exercidas por agentes externose estar livre parafazer as coisas sua maneira.

O estabelecimento

familiar

Vinculapassado,

presente efuturo

Lugar deapren iza o;

constru o econhecimento

Parte ativada economia

rural

Mantm vivaa cultura

Conectado paisagem rural,

seu meioambiente

Prov a maiorparte da forade trabalho

Nexo entre afamlia e o

estabelecimento

Prov renda,alimentos e

nutrio

Lar da famlia;lugar de

pertencimento

Controlaseus principais

recursos


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Em sntese, a agricultura familiar representa a unicao entre o trabalhomanual e a atividade mental, entre o trabalho e a vida, bem como entre a produ-o e o desenvolvimento. uma instituio que pode seguir produzindo em umambiente capitalista adverso, da mesma forma que as bactrias anaerbicas socapazes de sobreviver em um ambiente sem oxignio (agradeo a Ral Paz, da

Argentina, que cunhou essa bela metfora).

Por que a agricultura familiar importante?

A agricultura familiar carrega a promessa de criar prticas agrcolas alta-mente produtivas, sustentveis, simples, exveis, inovadoras e dinmicas. Tendoem conta todas essas caractersticas, a agricultura familiar pode contribuir signi-cativamente para a soberania e segurana alimentar e nutricional. Ela pode for-talecer o desenvolvimento econmico de diversas maneiras, criando empregos e

gerando renda. Pode elevar o grau de resilincia econmica, ecolgica e social dascomunidades rurais. Pode tambm gerar postos de trabalho atrativos para grandeparte da sociedade, assim contribuindo consideravelmente para a emancipaode suas parcelas mais oprimidas. A agricultura familiar pode ainda favorecer amanuteno de belas paisagens e da biodiversidade.


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Ameaas externas

Apesar de todas essas promessas potenciais da agricultura familiar, elas po-dem ser inviabilizadas, j que, nos dias atuais, as famlias agricultoras vm sendopressionadas por todos os lados, cando cada vez mais empobrecidas.

As diculdades enfrentadas assumem diferentes formas: quando os pre-os de venda dos alimentos esto baixos, os custos de produo esto altos; avolatilidade dos mercados agrcolas impede qualquer planejamento em longoprazo; o acesso aos mercados est cada vez mais bloqueado; as polticas agr-colas desconsideram as principais demandas e caractersticas dos agricultoresfamiliares; terra e gua so massivamente griladas e controladas por grandesgrupos do capital.

Enm, o conjunto dessas circunstncias torna impossvel que a agricultura

familiar oferea contribuies positivas para a sociedade, levando inclusive dra-mtica situao de hoje encontrarmos muitas terras de agricultores familiaresociosas. No plano macro, talvez o melhor indicador do contexto adverso atualseja o fato de que 70% dos pobres do mundo fazem parte da populao rural.

Ameaas internas

H tambm ameaas internas. Hoje em dia, est na moda falar da necessi-dade de fazer com que a agricultura familiar se torne um negcio, o que signica

orient-la para a obteno de lucros. Alguns chegam a argumentar que essa seriaa nica maneira de manter os jovens na agricultura. Segundo esse ponto de vista,a agricultura familiar deve ser menos camponesae mais empresarial. Para tanto, aagricultura familiar nos pases do Sul deve passar por um processo de moderni-zao similar ao que ocorreu nos pases do Norte.

De fato, parte da agricultura familiar europeia tornou-se mais empresarial.Entretanto, esse processo fez com que os estabelecimentos familiares tenham seconvertido em meros provedores de mo de obra, em detrimento de todas as

demais caractersticas positivas mencionadas anteriormente. Assim, no plano for-mal, esses estabelecimentos empresariais permanecem como estabelecimentosfamiliares, mas substancialmente so muito diferentes.

Uma diferena importante que os verdadeiros estabelecimentos fami-liares crescem e se desenvolvem por meio da gesto inteligente dos recursosnaturais, econmicos e humanos, bem como pelo aprendizado intergeracio-nal. J os estabelecimentos empresariais crescem principalmente ao assumir ocontrole de outros estabelecimentos familiares. Essa tendncia a ingressar emtrajetrias empresariais uma grande ameaa para a continuidade e a virtuo-sidade da agricultura familiar, mas lamentavelmente algo que assistimos emquase todos os lugares.


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Recampesinizao

No entanto, existem importantes tendncias que correm em sentido con-trrio. Muitos estabelecimentos familiares esto se fortalecendo e incrementan-do sua renda com o emprego de princpios agroecolgicos, com a participaoem novas atividades econmicas ou com a produo de novos produtos e aprestao de novos servios que so em geral distribudos e oferecidos atravsde novos mercados, socialmente construdos.

Analiticamente, essas novas estratgias se denem como formas de recam-pesinizao, que buscam restaurar a natureza camponesa da agricultura ao forta-


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lecer o estabelecimento familiar. A recampesinizao , portanto, uma forma dedefender e fortalecer a agricultura familiar.

O que deve ser feito?

O ambiente poltico extremamente importante para o destino da agri-cultura familiar. Embora ela possa sobreviver em contextos muito adversos, con-dies favorveis podem ajud-la a atingir o seu potencial mximo. Essa pre-cisamente a razo pela qual so to importantes as aes de Estado, dos frunsmultilaterais como a Organizao das Naes Unidas para Alimentao e Agri-cultura (FAO, na sigla em ingls), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrcola(Fida) e outras organizaes da ONU , mas tambm dos partidos polticos, dosmovimentos sociais e da sociedade civil em seu conjunto.

As polticas pblicas, por sua vez, podem fazer com que sejam garantidosos direitos dos agricultores familiares e que sejam realizados investimentos su-cientes em infraestrutura, pesquisa e extenso, educao, abertura de canaisde mercado, seguridade social, sade, entre outras reas. Isso proporciona aosagricultores familiares a segurana para investir em seus prprios futuros, comorecentemente rearmou o prestigiado Painel de Alto Nvel de Especialistas em Segu-rana Alimentar e Nutricional.

O fortalecimento das organizaes e dos movimentos rurais , igualmente,uma medida de suma importncia. Devemos ter em mente que a agricultura fa-

miliar, onde quer que se encontre, est tentando descobrir e desenvolver novasrespostas para situaes difceis. Portanto, a identicao de iniciativas exitosas,construdas com base em prticas inovadoras, a sua disseminao para outroslugares e outras famlias agricultoras, bem como a sua articulao em processosdinmicos de transio devem ser temas centrais da nossa agenda. Em suma: hmuito a ser feito. A boa notcia que cada passo nesse sentido, no importa oquo pequeno, ser sempre til.

Jan Douwe van der PloegProfessor de Sociologia Rural,

Universidade de Wageningen, Holanda, eUniversidade Agrcola da China

[email protected]


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Agriculturas: cadernos para debate

Os textos publicados na coleoAgriculturas: cadernospara Debateoferecem anlises e pontos de vista

crticos sobre as atuais tendncias do desenvolvimento

rural, situando a agricultura familiar e a agroecologiano contexto das lutas contemporneas porsustentabilidade ambiental e equidade social.


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