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Filtro Filtro Dezembro de 2018 ANO I Nº 07 Compilações Selecionadas 15 de Dezembro de 2018 50 ANOS DO AI-5 Carta de Direitos Humanos completa 70 anos em momento de incertezas ENTENDA POR QUE ELE REPRESENTOU A RADICALIZAÇÃO DA DITADURA PAG. 08 PAG. 04 Eleanor Roosevelt exibe cartaz contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949).

Dezembro de 2018 Filtr Setembro de 20ooANO I Nº 0518...divulgação das denúncias, o Ministério Público (MP) de Goiás organizou uma força-tarefa para receber e apurar novas acusações

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FiltroSetembro de 2018

ANO I Nº 05

FiltroDezembro de 2018

ANO I Nº 07

Compilações Selecionadas

15 de Dezembro de 2018

50 ANOS DO AI-5

Carta de Direitos Humanos completa70 anos em momento de incertezas

ENTENDA POR QUE ELE REPRESENTOU A RADICALIZAÇÃO DA DITADURA

PAG. 08

PAG. 04

Eleanor Roosevelt exibe cartaz contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949).

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“Para aqueles cujas vidas foram tocadas por ele, João de Deus é um homem simples, com um dom, que trabalha incansavelmente para cumprir sua missão espiritual, apesar dos detratores.” Assim Oprah Winfrey resumiu o personagem em um programa dedicado ao bra-sileiro. Deslumbrada com as cirurgias espiritu-ais supostamente capazes de curar doenças como câncer, artrite e cegueira, Oprah decre-tou: “Todos estamos aqui (nesta vida) para reco-nhecer que, em algum nível, nenhum de nós é quem aparenta ser. Estamos vestindo fantasias de seres humanos”. A apresentadora americana, uma das personalidades mais influentes dos Estados Unidos, fazia referência às “forças ocul-tas” que nos movem. A definição, porém, ganha nova interpretação à luz das mais de 200 acusa-ções de abuso sexual contra o médium que transformou Abadiânia, no interior de Goiás, no berço de seu império curandeiro. Talvez João de Deus não seja quem Oprah pensava. Não só Oprah, aliás. Entre as celebridades que

já chancelaram os poderes do médium estão nomes como Luís Roberto Barroso, Xuxa, Dilma Rousseff, Lula, Naomi Campbell e Bruna Lombardi.Na semana passada, o jornal O Globo e o pro-grama Conversa com Bial revelaram depoi-mentos de 12 mulheres que sustentam ter sido abusadas pelo líder em seu centro espiritual, a Casa Dom Inácio de Loyola, procurada por milhares de pessoas semanalmente. Após a divulgação das denúncias, o Ministério Público (MP) de Goiás organizou uma força-tarefa para receber e apurar novas acusações. Em dois dias, colheu 206 relatos de mulheres diferentes, duas delas estrangeiras e as outras residentes em dez estados brasileiros. O MP pediu a prisão do médium. A Justiça não havia decidido a respei-to até a conclusão desta edição. Na maioria dos casos que já vieram a público, o manus operan-di descrito é semelhante: o médium pede para ficar a sós com a paciente que o procura em busca de um milagre — físico ou espiritual — e,

sem ninguém mais presente em sua sala de “ci-rurgia”, acaricia as partes íntimas das mulheres e as obriga a tocá-lo, sempre alegando tratar-se de uma necessária “limpeza”. Em busca de cura, encurraladas pelo homem mais poderoso de Abadiânia, celebridade internacional com influência entre os poderosos, essas mulheres dizem ter sido penetradas, tocadas, lambidas e obrigadas a masturbar João Teixeira de Faria, hoje com 76 anos, num comportamento repeti-do que pode ter passado décadas impune. Foi a holandesa Zahira Lieneke, de 34 anos, quem deu início à onda de denúncias: em maio deste ano, publicou um texto em inglês no Facebook em que contava um episódio de 2014: “Ele me puxou para o banheiro, enfiou a língua em minha boca. Me virou. Puxou as minhas calças e enfiou”. Demorou alguns meses para o depoi-mento ecoar. Em setembro, acusações de abuso sexual contra outro guru nacional, Prem Baba, deram força à história de Lieneke, compartilha-da por brasileiras em grupos feministas na rede social. Outras vítimas, então, decidiram falar.Ainda em setembro, com alguns desses depoi-mentos em mãos, a repórter Helena Borges pro-curou o médium para ouvir sua versão. A res-posta veio por meio de sua assessoria de imprensa: “A situação trazida, além de ser fan-tasiosa, é lamentável, uma vez que João é uma pessoa de índole ilibada. (...) A imprensa preci-sa, antes de acusar, ter provas”. O líder espiritu-al passa então a questionar as fontes, “vazias e sem credibilidade”, e as razões pelas quais não o denunciaram antes à polícia ou ao MP. As víti-mas explicam com uma palavra: medo. O “sim-ples fazendeiro”, com um par de anos de ensino formal e que se dizia capaz de curas, como já descrevia Oprah, tinha não só o “poder espiritu-al” em suas mãos como toda a pequena Abadiâ-nia — para dizer o mínimo. A apresentadora, por sinal, tirou os vídeos de seu canal do You-Tube na terça-feira 11. No início deste ano, uma das filhas do médium entrou com um processo acusando o pai de estupro continuado. Os abu-sos teriam começado quando Dalva Teixeira ainda era uma criança.N a última quarta-feira 12, João de Deus apare-ceu pela primeira vez em público depois das denúncias. “Agradeço a Deus por estar aqui. Ainda sou irmão de Deus. Quero cumprir a lei brasileira. Estou nas mãos da lei. João de Deus ainda está vivo”, afirmou aos fiéis reunidos na Casa Dom Inácio de Loyola. Na saída, disse aos jornalistas: “Sou inocente. Vou provar minha inocência”. Entre os mais próximos, há quem acredite em sua inocência. Assessora de João de Deus há seis anos, Edna Gomes disse que o patrão é vítima de uma conspiração. “(O líder) está triste e abatido e chora várias vezes, indig-nado com toda essa situação. Não podem des-truir sua reputação com inverdades. Mas hoje, com essa coisa feminista, um homem não pode nem paquerar uma mulher, porque pode confi-gurar assédio. É muito difícil a forma como você lida hoje, no século XXI.”

DESTAQUE DA SEMANA

FiltroEditor: Luiz Sergio Castro

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Assessora de Bolsonaro era personal trainer decelebridades e atendia em horário de expedientePor Andréia Sadi e Marcelo Parreira – G1

Às cinco da tarde do último dia 20 de abril, atletas e celebridades se reuniram para a ina-uguração da clínica do Dr. Márcio Tannure,

chefe do departamento médico do Flamengo e especialista em medicina esportiva. Entre os con-vidados, o meia Diego, o ex-jogador Zico e o sam-bista Dudu Nobre.

Um dos destaques da nova clínica era o equipa-mento de eletroestimulação muscular e, para mos-trar como ele funciona, estava ali a personal trainer Nat Queiroz, representando a equipe de Chico Sal-gado, treinador de celebridades. A mesma Nat apa-rece em fotos publicadas em redes sociais por artistas como Bruno Gagliasso e Bruna Marquezi-ne.

Nat Queiroz também atende por Nathalia Melo de Queiroz, que entre dezembro de 2016 e outubro deste ano, era secretária parlamentar lotada no gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputa-dos. A informação de que ela atuava como personal trainer ao mesmo tempo em que estava lotada nos gabinetes foi divulgada pelo site o Antagonista e pela Folha de São Paulo.

O nome de Nathalia se tornou público após ela aparecer no relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que apontou uma movimentação atípica na conta do pai dela, Fabrí-cio José de Queiroz. Fabrício foi motorista do gabi-nete de Flávio Bolsonaro até o último mês de outu-bro.

De acordo com o relatório, Nathalia, que tam-bém trabalhava no gabinete de Flávio Bolsonaro, tinha uma renda mensal de R$ 10.502,00 e transfe-riu, no intervalo de 13 meses, R$ 84.110,00 para uma conta do pai. As informações do Antagonista e da Folha de São Paulo foram confirmadas pelo blog, que obteve mais detalhes.

Em abril, mês da inauguração da clínica, ela ocupava no gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados um posto nível SP 20, o que lhe garantia uma renda bruta mensal de R$ 10.088,42, com rendimentos líquidos de R$ 7.733,21.

A função exige pelo menos 40 horas semanais de trabalho, atuando em questões como redação de correspondência, discurso e pareceres do parla-mentar, serviços de secretaria e datilográficos, pesquisas e "atividades fins inerentes ao respectivo gabinete".

O trabalho pode ser feito no estado de onde vem o parlamentar, mas sua frequência é atestada pelo gabinete.

Em entrevista coletiva no último domingo (9), o

presidente eleito foi perguntado sobre a função de Nathalia no gabinete e reagiu com irritação. "Ah, pelo amor de Deus! Pergunta para o chefe de gabi-nete. Eu tenho 15 funcionários comigo", afirmou na ocasião.

O blog conversou com clientes e empregadores da personal trainer, no Rio de Janeiro. Todos disse-ram não saber que ela ocupava um cargo no gabi-nete - alguns até se mostraram chocados com a informação.

Uma cliente que pediu para não ser identificada confirmou ter sido atendida por Nathalia em horá-rio comercial durante algum tempo em 2017 - ela já era secretária parlamentar de Jair Bolsonaro naquele ano. Os atendimentos ocorriam entre 8 e 10 da manhã, mesmo em dias úteis.

Há fotos de Nathalia treinando com clientes no calçadão da praia em redes sociais. Recente-mente, Nathalia apagou seu perfil no Instagram.

A personal trainer também aparece em vídeos do aplicativo BTFit, da academia Bodytech, com instru-ções visuais para exer-cícios físicos.

De acordo com o Bruno Franco, CEO do

BTFit, "Nathalia Queiroz foi uma figurante contra-tada pela produtora que atendia ao BTFIT. As par-ticipações dela foram esporádicas em nossas aulas. Ratificando, ela teve a participação efetivada nos vídeos institucionais através da produtora contra-tada para realizar as filmagens".

Na época em que o vídeo foi publicado, Natha-lia ainda era lotada no gabinete de Flavio Bolsona-ro, na Assembleia Legislativa do Rio. A Bodytech também confirmou que, entre 2011 e 2012, Natha-lia trabalhou como recepcionista em uma das uni-dades da academia no Rio de Janeiro. Na época, ela já estava lotada no gabinete da Assembleia Legis-lativa do Rio de Janeiro.

Assista o vídeo clicando na imagem abaixo.

Nathalia Queiroz (Imagem: Redes Sociais)

Bruno Gagliasso exibiu os músculos com Nathalia Queiroz

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Por Alessandro Meiguins - AH

Mais que uma mera lei, o Ato Institucio-nal Número 5 praticamente decretou um outro tipo de governo

O documento era pequeno. Com quatro páginas e 12 artigos, era possível lê-lo em menos de cinco minutos. Foi discutido em poucas horas e teve apenas um voto contra. Ao ser assinado, mudou a face do Brasil e o mer-gulhou nas trevas. O Ato Institucional número 5 (AI-5) foi aprovado em uma reunião do Conselho de Seguran-ça Nacional, comandada pelo presidente do país, o marechal Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968. Foi um fecho autoritário para um ano em que o sonho de liberdade soprou como nunca: as lutas estudantis vira-ram de cabeça para baixo cidades do Brasil e do mundo.

A ideia era colocar "a imaginação no poder", como dizia um lema da época. Para os mais politizados, o objetivo era provocar "um, dois, três, mil Vietnãs, que o imperialismo será derrotado". Na França, as agitações tiveram seu peso, e Charles de Gaulle quase foi depos-to. Nos Estados Unidos, o presidente americano Lyndon Johnson perdeu força e desistiu da reeleição.

No Brasil foi diferente. Militares reprimiram com violência as manifestações contrárias ao regime, fos-sem greves, passeatas ou manifestações culturais. Mata-ram estudantes. Invadiram teatros. E, quando o ano estava para terminar, editaram o AI-5. O novo tempo nem havia começado e já terminava, abatido com um só golpe.

Durante a reunião de aprovação do texto, realizada numa sexta-feira 13, houve certo constrangimento quando o vice-presidente, Pedro Aleixo, tomou a pala-vra para expor suas idéias na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 13 de dezembro de 1968. Da boca para fora, o encontro marcado pelo presidente Costa e Silva tinha dois objetivos: expor o conteúdo do Ato Institucional número 5 ao ministério e, em seguida, votar para aprová-lo ou não. A verdade é que a voz

moderada do vice foi vencida antes mesmo do encon-tro. Ele fazia parte da minúscula ala liberal do governo que propôs um "estado de sítio" para contornar a crise que os militares radicais criaram com a Câmara dos Deputados. Mas Costa e Silva convocara a reunião com um plano fechado em mente: aprovar o AI-5.

"Ou a revolução continua ou a revolução se desagre-ga", disse no começo do encontro. Naquele momento, o Ato já estava pronto e mimeografado. Havia sido deci-dido um pouco antes, pela manhã, em uma reunião fechada do presidente com o alto comando militar. Costa e Silva deu uma cópia a cada um dos ministros. Depois de um breve discurso, ofereceu 20 minutos para que pensassem e se retirou. Na volta, deu a palavra a todos. Magalhães Pinto, então ministro das Relações Exteriores, observou que estavam criando uma ditadu-ra, mas não se opôs.

Delfim Netto, da Fazenda, pediu que os poderes do presidente fossem ainda mais estendidos, sobretudo em matéria econômica. Jarbas Passarinho, do Trabalho, também usou a expressão "ditadura" para descrever do que se tratava, mas completou: "Às favas, neste momento, todos os escrúpulos da consciência". Os ministros militares deram apoio sem pestanejar. Aleixo não foi categórico, mas mostrou discordância. Quando terminou seu pronunciamento, os membros do Conse-lho pediam: "Ato! Ato! Ato". "Bom, já que vocês acham que é o Ato, então será o Ato", disse o marechal Costa e Silva. "Peço a Deus que não venha me conven-cer amanhã de que ele [Aleixo] é que estava certo", fina-lizou, dando o AI-5 por aprovado.

Luta armada cresciaO ato foi a resposta do governo para a pressão que

sofria pela democratização do país, que cresceu durante 1968. E também às ações da esquerda armada, que ganharam corpo e audácia. Significou a vitória da linha dura militar, que queria atacar com mais violência na repressão, nem que para isso fosse preciso passar por

cima do presidente."O Costa e Silva estava sob cerco virtual. Os chefes

militares foram taxativos: ou se aprovava o AI-5 ou as Forças Armadas não teriam como garantir a segurança nacional interna", relata Jarbas Passarinho, ex-ministro de Costa e Silva e um dos integrantes da equipe que assinou o AI-5. "'Se o chefe vacila, ultrapassemos o chefe', era o que falavam", nas palavras de Passarinho. Como se tornou usual dizer, o AI-5 representou um golpe dentro do golpe. Para quem queria ampliar os porões da ditadura, foi entendido como uma licença para matar.

O clima de radicalização cresceu durante todo o ano, mas a justificativa de que os radicais precisavam para endurecer foi um discurso de apenas cinco minutos. No dia 2 de setembro de 1968, na Câmara, o deputado Már-cio Moreira Alves, do MDB, espinafrou os militares e perguntou: "Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?". Marcito, como era conhecido, tinha autoridade para desafiar os radicais: havia denunciado e provado dezenas de casos de tortura ocorridos na época de Castello Branco. Seu discurso foi mimeografado e distribuído em todos os quarteis.

Um detalhe aparentemente banal, mas que soou especialmente provocativo, era que Moreira Alves pedia o boicote às paradas militares que aconteceriam em menos de uma semana, numa convocação "às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cade-tes e freqüentam os jovens oficiais".

Quem mais criou caso foi o grupo de radicais enca-beçado pelo ministro Lyra Tavares. Ele encaminhou um ofício ao presidente, mostrando-se indignado. Jayme Portella, chefe do Gabinete Militar, dedicou-se à cons-trução da crise. O governo aceitou as provocações e solicitou à Câmara dos Deputados uma licença para processar Moreira Alves, que, como deputado, tinha o que se chama de imunidade parlamentar.

Continua...

50 ANOS DO AI-5ENTENDA POR QUE ELE REPRESENTOU A RADICALIZAÇÃO DA DITADURA

DITADURA

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Filtro 05

Rota de colisãoTudo não passava de manobra para colocar governo e

Câmara em rota de colisão. Nos bastidores, oficiais enco-rajaram parlamentares a votar contra a autorização para o processo, como relatou o general Golbery do Couto e Silva ao embaixador americano John Tuthill, que depois reportou a conversa a Washington. "Quanto mais as coisas piorarem, melhor para nós e nossos objetivos", teria ouvi-do Golbery do grupo.

O esboço do AI-5 foi rabiscado na véspera, ainda antes da decisão da Câmara. Para não ser surpreendido, explica-ria o autor, o próprio presidente Costa e Silva. Naquele momento, a votação para o pedido de licença para proces-sar Moreira Alves estava em curso. No final do dia, as coisas definitivamente pioraram. A Câmara manteve a imunidade. A noite foi dura para Costa e Silva. Dezenas de generais o procuraram para exigir uma retaliação. No Palácio da Guanabara, o clima era de incerteza e medo de que um golpe pudesse acontecer a a qualquer instante.

Na manhã do dia 13, em uma solenidade na Escola Naval que ocorreu antes da reunião do Conselho de Segu-rança Nacional, quem estava presente soube que "a deci-são era para valer". Era uma senha. Significava que o presidente cedera à linha dura, e o país estava prestes a viver seus anos de chumbo. O Ato Institucional já estava decidido.

O AI-5 tinha um texto curto porque, pelo seu espírito, nem precisaria descer a detalhes. Na prática, dava carta branca aos dirigentes militares e atropelava o direito dos cidadãos. Com ele, o governo pôde "cassar mandatos ele-tivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, proibir manifestações sobre assuntos políticos, suspender o habe-as corpus em crimes contra a segurança nacional", num resumo feito pelo sociólogo Marcelo Ridenti, autor do livro .O Fantasma da Revolução Brasileira

Segundo o ex-ministro Jarbas Passarinho, o AI-5 era um mal necessário, uma licença jurídica "apenas para a linha dura conseguir seu objetivo, o de prender os comu-nistas". Ele dá um exemplo de como a ordem legal anteri-or dificultava o combate aos grupos armados de esquerda, que praticavam até atos terroristas, isto é, usavam violên-cia contra alvos civis. Em abril de 1964, a polícia havia prendido Carlos Marighella, integrante do Partido Comu-nista. Dias depois, teve que soltá-lo, porque Marighella conseguiu um habeas corpus, mandado judicial que bene-ficia alguém que esteja sob ameaça de sofrer coação ou detenção de forma ilegal ou abusiva. O ex-preso viveria na clandestinidade e se tornaria um dos adversários mais temidos do regime.

Presos sem contato"Os militares só conseguiram atacar com o amparo do

AI-5", explica Passarinho. Atacar é bem a palavra. Logo depois da edição do ato, começaram as prisões em série. Nos primeiros dois meses, houve a cassação ou suspensão de direitos de 441 cidadãos, segundo o historiador Tho-mas Skidmore. No início de 1969, estabeleceu-se que os responsáveis pela segurança nacional podiam prender quem quisessem por 60 dias, sendo que dez deles em regi-me incomunicável, isto é, sem que familiares ou advoga-dos soubessem que a pessoa fora presa. Era o cheque em branco que os porões queriam para tornar a tortura uma "técnica" regular nas investigações.

A censura tornou-se implacável. Passou a proibir músi-cas, peças de teatro e filmes. Nos jornais, censores analisa-vam o conteúdo de tudo o que seria publi-cado no dia seguinte, vetando notícias de prisões, torturas ou desapa-recimentos. "Por algum tempo, não seria tolerada qual-quer oposição ao governo, nem mesmo a do moderado MDB", relata Marcelo Ridenti. "Era a época do slogan oficial "Brasil, ame-o ou deixe-o"", diz o sociólogo, relembrando a frase que sugeria que nenhuma discordân-cia seria admitida.

O AI-5 contribuiu para engrossar a luta armada contra o regime. Grupos que já praticavam ações violentas, como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popu-lar Revolucionária (VPR), concluíram que não havia outro caminho a não ser acirrar o combate. Mas outros setores, que antes relutavam a pegar em armas, passaram a não ver outro modo de combater a ditadura. Criou-se um círculo vicioso. Quanto mais atentados, mais dura ficava a repressão.

Os efeitos do AI-5 foram ainda mais profundos por conta do afastamento do general Costa e Silva, em 1969. O presidente se rendeu à linha dura no final de 1968, mas

no ano seguinte tinha planos de trilhar um caminho mais suave. Ele preparava outra Constituição, que estava sendo escrita por representantes liberais do governo, Miguel Reale, Hélio Beltrão e Pedro Aleixo, vice-presidente da República. "Basta de cassações", disse, na época, a Jarbas Passarinho. A intenção de Costa e Silva era colocar a nova Constituição em vigor em 1º de setembro e, no dia 7, con-vocar o Congresso de volta aos trabalhos. Dias antes, no entanto, o presidente foi vítima de uma isquemia cerebral. Os primeiros sinais apareceram em 27 de agosto. Mais dois dias, e o marechal ficou mudo e com o braço direito paralisado.

Costa e Silva foi afastado do governo e, com ele, o esboço do que poderia ser uma liberalização do regime. Começa então, às pressas, os arranjos para tratar de sua sucessão. O ministro e general Jayme Portella patrocina a criação de uma Junta Militar provisória, para evitar que assumisse o vice, Pedro Aleixo, persona non grata entre os radicais desde que, por linhas tortas, se posicionou contra o AI-5. A junta promulga uma nova Constituição, que incorpora o AI-5. O Congresso é reaberto apenas para referendar o candidato do regime à Presidência da Repú-blica, o general Emílio Garrastazu Medici, representante da linha dura.

Estava garantida a continuidade do AI-5, que vigorou por dez anos e 18 dias. O governo de Medici se caracteri-zou pela eliminação física da oposição armada. "A tortura foi seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o AI-5 libertou das amarras da legalidade", diz Elio Gaspari, no livro A Ditadura Escancarada.

Protesto contra a ditadura Reprodução

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FiltroO6

POR AFONSO BENITES - EL PAIS

O “pedágio” ou “mensalinho” que alguns políticos cobram de seus funcionários comissionados é ilegal, mas é mais

comum do que se imagina. Desde o início dos anos 2000 são noticiados casos em vários Estados, o que já rendeu cassação de um parlamentar e o res-sarcimento de recursos ao erário. Na prática, fun-ciona assim: um profissional é nomeado como assessor em um gabinete e recebe um salário de, por exemplo, 2.000 reais. No mesmo dia em que esse valor cai em sua conta corrente, ele é obriga-do a devolver parte dessa remuneração (de 10% a 70%) para alguma pessoa de confiança do parla-mentar. Em geral, há um pacto de silêncio entre as partes: o assessor quer manter o emprego e depen-de do político que confisca parte do seu rendimen-to.

O tema voltou à tona por causa do caso de Fabrício José Carlos de Queiroz, ex-assessor do deputado estadual e senador eleito Flávio Bolso-naro (PSL-RJ). Queiroz foi flagrado pelo Conse-lho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) movimentando 1,2 milhão de reais – valor cinco vezes superior a sua renda anual – , recebendo depósitos de ao menos nove servidores da Assem-bleia Legislativa do Rio de Janeiro em datas próxi-mas aos pagamentos de salários e transferindo 24.000 reais para Michele Bolsonaro, mulher do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL). Por ora, nenhum dos Bolsonaro é investigado com relação ao caso e os políticos negam ter cometido qual-quer irregularidade. Em privado, no entanto, os investigadores trabalham com a hipótese de que haja um esquema semelhante ao "pedágio". As suspeitas em torno do gabinete de Flávio Bolsona-ro cresceram ainda mais com reportagem do Jor-nal Nacional, que mostrou que um servidor que fez uma transferência a Queiroz passou em Portu-gal mais da metade do tempo em que trabalhava para o filho mais velho de Bolsonaro.

A reportagem fez um breve levantamento em promotorias estaduais e encontrou que, de 2002 para cá, ao menos seis vereadores e dois deputados estaduais de São Paulo foram investigados por reterem parte dos salários de seus auxiliares. No Mato Grosso, um vereador foi cassado por essa razão. E no Rio Grande do Norte, outro sofreu uma sanção pública. A prática ilegal é tamanha que, nas últimas semanas, a Assembleia Legislativa de São Paulo promoveu uma aula para deputados recém-eleitos na qual alertava os parlamentares para os riscos criminais de se reter os salários de seus ser-vidores. Eleita a deputada estadual mais votada do país, a advogada Janaína Paschoal (PSL-SP) reve-lou em seu Twitter parte da explanação feita por um servidor da Corregedoria da Assembleia. Ela disse, por exemplo, que dificilmente essa prática será coibida porque quem tem mais condições de denunciar o crime, o funcionário que paga esse pedágio, acaba sendo punido juntamente com o parlamentar que o contratou. “Um sistema só fun-ciona quando há incentivos ao comportamento lícito! Punir o funcionário incentiva o comporta-mento ilícito”, afirmou a futura deputada, uma aliada dos Bolsonaro.

Um dos relatos recentes mais famosos do pedá-gio pago por assessores envolve o ex-vereador e humorista Marquito (PTB-SP), suspeito de aboca-nhar até 70% dos vencimentos de seus funcionári-os. Houve ainda duas vereadoras Lenice Lemos (DEM-SP) e Claudete Alves (PT-SP) que foram condenadas a devolverem cerca de 300.000 reais aos cofres públicos. A derrota nas urnas, contudo, foram as maiores punições dadas a esses políticos três políticos. Nenhum deles conseguiu se reele-ger desde que as suspeitas contra eles vieram à tona.

Quais são os próximos passos?No momento, o caso do ex-assessor de Flávio

Bolsonaro está nas mãos do Ministério Público do Rio, que tem nas mãos dados de movimentações

atípicas de um grupo de servidores de vários parti-dos. Caso isso se desdobre em alguma alguma investigação formal contra Flávio, há a possibili-dade de o processo mudar de mãos pela segunda vez e subir vários degraus na escala judicial. Salta-ria do Ministério Público do Rio de Janeiro para a Procuradoria Geral da República. A razão é que a partir de 1º de fevereiro Flávio ocupará uma das 81 cadeiras do Senado Federal.

O tema não é consenso entre operadores do dire-ito porque, em maio, o Supremo Tribunal Federal alterou o seu entendimento sobre a extensão do foro privilegiado para políticos. Na ocasião, os ministros concluíram que só responderão proces-sos nas instâncias superiores caso tenham cometi-do o delito durante o cumprimento do mandato. Um exemplo, se um deputado empossado em 2019 estiver sendo processado por estelionato cometido em 2018, enquanto ainda não era parla-mentar, ele será julgado no primeiro grau. No caso específico de Flávio (caso ele se torne investiga-do), sua esfera de julgamento seria o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que é a quem os deputa-dos estaduais se reportam em casos criminais. Nesse meio tempo, antes possivelmente de que o processo tenha algum andamento efetivo, todos os suspeitos acabam beneficiados pelo recesso foren-se do Judiciário fluminense. Os principais servi-ços desse poder estarão suspensos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro de 2019.

Impacto no SenadoEnquanto as desconfianças em torno do primo-

gênito de Bolsonaro alimentam os opositores, que batizaram o caso de “Bolsogate”, a família ficou quase uma semana retraída, sem dar declarações a jornalistas. O silêncio foi quebrado na noite de quarta-feira pelo presidente eleito, que se mani-festou por meio de uma transmissão ao vivo pelo seu perfil no Facebook, e por Flávio, que enviou uma nota à imprensa para se justificar. Afirmou Jair Bolsonaro: "Se algo estiver errado, seja comi-go, com meu filho ou com o (ex-assessor) Quei-roz, que paguemos a conta deste erro, porque nós não podemos comungar com o erro de ninguém".

Enquanto Flávio disse que não fez nada de erra-do, lamentou que seu ex-assessor tenha decidido falar apenas com o Ministério Público, queixou-se da cobertura midiática que pouco destaca o envol-vimento de funcionários de parlamentares de outros partidos, como o PSOL, e disse que tem pressa que tudo seja esclarecido. “A mídia está fazendo uma força descomunal para desconstruir minha reputação e tentar atingir Jair Bolsonaro. Não acreditem nesse enredo absurdo que mídia criou para tentar manipular a opinião pública”.

Mesmo que não haja qualquer impacto legal, o caso pode ter custo político alto para Flávio Bolso-naro. Articulando para evitar que Renan Calheiros (MDB-AL) seja eleito presidente do Senado, Flá-vio recebeu recentemente um recado do alagoano: caso ele insista nesse veto, Calheiros poderia apre-sentar seu caso no Conselho de Ética da Casa como quebra de decoro parlamentar. Ainda assim, Flávio e outros apoiadores de Bolsonaro já decla-raram que tentarão barrar a candidatura de Calhei-ros. ̈ ¨¨

Confisco de salário, a ilegal práticadisseminada nos Legislativos brasileiros'Pedágio' pago por servidores a políticos já levou a cassação no Mato Grosso.Tema voltou à tona em caso que envolve ex-assessor de Flávio Bolsonaro, que nega acusação

Flávio Bolsonaro durante a diplomação de Jair Bolsonaro no TSE.

RACHID

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Filtro 07

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, acusa os adversários políti-cos e os Estados Unidos de promove-

rem uma "guerra econômica" contra seu governo. Em nota oficial divulgada na segun-da-feira, a Goodyear disse ter "tomado a difí-cil decisão de parar de produzir pneus" na Venezuela, segundo a agência de notícias Reu-ters.

"Nosso objetivo era manter as operações, mas as condições econômicas e as sanções dos Estados Unidos tornaram isto impossí-vel", diz a empresa. A companhia disse ainda que estava no processo de pagar os direitos trabalhistas dos empregados, o que incluía a entrega de pneus.

Mas por que funcionários aceitariam rece-ber esse produto em vez de dinheiro?

Mercado negroPor causa da prolongada crise econômica

na Venezuela, há escassez de diversos produ-tos básicos no país- de medicamentos e ali-mentos a itens de higiene.

Nesse contexto, pneus de boa qualidade têm alto valor no mercado negro.

Com a desvalorização contínua da moeda

venezuelana em relação ao dólar, pode ser mais vantajoso receber esse produto do que dinheiro vivo.

Os funcionários da Goodyear foram cha-mados à fábrica da empresa, a cerca de 150 km de Caracas, capital venezuelana, para rece-ber a notificação de encerramento das ativida-des.

No mesmo dia, foram informados que rece-beriam os 10 pneus como parte da compensa-ção. Até quinta (6), a Goodyear fabricava entre mil e duas mil unidades diárias, o que representa 10% de sua capacidade.

ÊxodoO caso da Goodyear é o mais recente de

uma série de empresas multinacionais que saíram da Venezuela. Já deixaram o país a Kel-logg (alimentos), a Kimberley Clark (higiene pessoal) e várias linhas aéreas.

Os problemas econômicos na Venezuela começaram em 2013, com a queda no preço do petróleo no mercado internacional, mas o agravamento da crise, a partir de 2014, é atri-buída, em grande parte, à má gestão do gover-no de Nicolás Maduro.

Com a queda de receitas gerada pela redu-

ção do valor do petróleo, o governo começou a compensar o déficit imprimindo dinheiro, o que gerou a hiperinflação atual, segundo o correspondente da BBC News na Venezuela, Guillermo D. Olmo.

Com a erosão do poder de compra das pes-soas, empresas se viram obrigadas pelo governo a aumentar os salários dos funcioná-rios. A situação se agravou com sanções eco-nômicas impostas pelos Estados Unidos à Venezuela, o que dificultou a importação de produtos necessários para a operação indus-trial no país.

A margem de lucro das companhias se redu-ziu a tal ponto que, para muitas, deixou de fazer sentido manter operações na Venezuela. Estima-se que 2,3 milhões de pessoas tenham deixado o país desde 2014. Cortes de energia elétrica e episódios de escassez de alimentos e remédios são comuns.

O governo Donald Trump também escalou as sanções a dezenas de autoridades e empre-sários venezuelanos, inclusive no alto escalão do governo.

Washington acusa essas pessoas de corrup-ção, tráfico de drogas e abusos de direitos humanos, o que eles negam.¨¨¨

Goodyear deixa a Venezuela epagar funcionários com pneusOs empregados da fabricante americana de pneus Goodyear vão receber dez pneus cada um como parte do pagamento dos seus direitos trabalhistas. A empresa está encerrando suas ope-rações na Venezuela.

Pneus atingem um preço elevado no mercado paralelo da Venezuela

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FiltroO8

Em 10 de dezembro de 1948, a Organização das Nações Unidas promulgava a Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos (DUDH). Era

uma resposta imediata às atrocidades cometidas nas duas guerras mundiais, mas não só isso. Era o estabele-cimento de um ideário arduamente construído durante pelo menos 2.500 anos visando a garantir para qual-quer ser humano, em qualquer país e sob quaisquer circunstâncias, condições mínimas de sobrevivência e crescimento em ambiente de respeito e paz, igualdade e liberdade.

O caráter universal constituiu-se numa das princi-pais novidades do documento, além da abrangência de sua temática, uma vez que países individualmente já haviam emitido peças de princípios ou textos legais firmando direitos fundamentais inerentes à condição humana. O caso mais célebre é o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, firmada em outubro de 1789 pela França revolucionária.

Com um preâmbulo e 30 artigos que tratam de ques-tões como a liberdade, a igualdade, a dignidade, a ali-mentação, a moradia, o ensino, a DUDH é hoje o docu-mento mais traduzido no mundo — já alcança 500 idiomas e dialetos. Tanto inspirou outros documentos internacionais e sistemas com o mesmo fim quanto penetrou nas constituições de novos e velhos países por meio do instituto dos princípios e direitos funda-mentais. Na Constituição brasileira de 1946, os direi-tos fundamentais já eram consignados, mas é na Carta de 1988 que se assinala a “prevalência dos direitos humanos”.

Adotada numa perspectiva internacionalista, multi-lateral, a DUDH, conforme vários observadores, cele-bra sete décadas sob a turbulência do ressurgimento de tendências políticas e culturais que renegam os direi-tos humanos em várias partes do globo.

Por ocasião do Dia Mundial da Paz, em 21 de setembro, a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azou-lay, alertou para “a proliferação do populismo e do extremismo, que constituem um obstáculo aos ideais de paz e direitos universais”.

— A paz será imperfeita e frágil, a menos que todos se beneficiem dela. Os direitos humanos são universa-is ou não são — enfatizou a chefe da UNESCO.

Ecoou assim o pressuposto estabelecido por aquele que é considerado o artífice da universalidade da carta,

o representante francês na comissão que redigiu a declaração, Renê Cassin: a paz internacional só seria possível se os direitos humanos fossem igualmente respeitados em toda parte.

O clamor por esses direitos, portanto, não cessa. E cada vez mais se articula em ações de governos, de organismos como a Anistia Internacional, de organiza-ções não governamentais e da sociedade civil. Contu-do, o questionamento aos ditames desse estatuto, que antes poucos ousavam contestar, cria uma atmosfera de incerteza e, por vezes de pessimismo. Esse senti-mento não é meramente uma manifestação de subjeti-vidade: informe da ONU Brasil dá conta de que 87 mil mulheres no mundo foram vítimas de homicídio em 2017. Desse grupo, aproximadamente 50 mil — ou 58% — foram mortas por parceiros íntimos ou paren-tes. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) vê estagnação de progressos para proteger as mulheres no ambiente doméstico.

— Embora a vasta maioria das vítimas de homicí-dio seja de homens, as mulheres continuam a pagar o preço mais alto como resultado da desigualdade e dis-criminação de gênero e estereótipos negativos — declarou o chefe do organismo internacional, Yury Fedotov.

A senadora Regina Sousa (PT-PI), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Partici-

pativa (CDH) do Senado, considera lamentável que o mundo não tenha dado passos importantes durante 70 anos.

— A confusão da concepção de direitos humanos foi proposital. A elite mundial e a brasileira colocaram na cabeça das pessoas que direitos humanos são direi-tos de bandidos. E não é [assim]. São direitos das pes-soas a moradia, a saúde, a educação, o transporte, cida-des feitas pensando nas pessoas, direito da população negra contra o racismo, direito de não ser escravizado, direitos da população LGBT de não ser morta. Mesmo o bandido tem lá os seus direitos, merece tratamento decente — avaliou a senadora depois de anunciar para a tarde desta segunda-feira (10) uma audiência pública com representantes de várias categorias que atuam nessa seara.

Enquanto casos de escravidão são flagrados próxi-mos à capital do Brasil, continua envolto em mistério o assassinato de uma vereadora do Rio de Janeiro e defensora dos direitos humanos que atuava o em áreas controladas pelo narcotráfico e as milícias. Os motivos e os autores do crime não foram até agora esclarecidos. A provável execução de Marielle Franco causou indig-nação em todo o mundo e motivou declarações do pró-prio Papa Francisco. Nove meses depois de sua ocor-rência, a Anistia Internacional reclama a solução para o caso, assim como a presidente da CDH.

«Vamos agir juntos para promover e defender os direitos humanos para todos, em nome da paz duradoura para todos. A paz cria raízes quando as pessoas vivem livres da fome, da pobreza e da opressão. Eu encorajo vocês a se manifestarem: pela igualdade de gênero, por sociedades inclusi-vas, por ações climáticas. Façam a sua parte na escola, no trabalho, em casa. Cada passo conta. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco fundador e um guia que deve assegurar o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável».

António Guterres, secretário-geral da ONU

Carta de Direitos Humanos completa70 anos em momento de incertezas

Eleanor Roosevelt exibe cartaz contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949).

António Guterres

DIREITOS HUMANOS

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Filtro 09

Dalva Teixeira, de 49 anos, filha de João Teixeira de Farias — médium conhecido como João de Deus —,

afirmou em entrevista à revista "Veja" que foi abusada pelo pai pela primeira vez aos 10 anos. No relato, que será publicado na edição desta semana da revista, Dalva conta que, na ocasião, o pai a mandou ficar nua e passou o pênis por todo seu corpo. Os abusos acontece-ram até seus 14 anos, quando ficou grávida de um funcionário de João e foi espancada pelo médium, a quem chama de "monstro", por conta disso.

Os primeiros relatos de que João de Deus teria abusado sexualmente de fiéis foram revelados pelo GLOBO e pelo programa “Conversa com Bial”, da TV Globo, no últi-mo sábado. Desde então, mais de 300 mulhe-res denunciaram o médium ao Ministério Público. Ele nega as acusações.

— Ele me levou para o quarto dele, tirou minha roupa toda e eu achei aquilo estranho. Aí eu perguntei: o que você está fazendo? E ele disse: o pai vai fazer um trabalho espiritu-al com você com Dom Inácio de Loyola, aí ele pegou, ficou pelado, se despiu todo e come-çou a passar o pênis dele no meu corpo todo.

Aí ele pegou e foi. Aí eu falei: "ai, está me machucando", e ele em cima de mim. E eu: "está me sufocando". Aí eu peguei e saí cor-rendo — relatou Dalva.

De acordo com ela, na ocasião, João de Deus estava brigado há três dias com a mulher e chegou da fazenda com uma vela. Então pediu que a filha marcasse a vela com a unha e disse: "o pai vai ter que ficar com você até que o fogo chegue nessa marca, porque eu vou fazer um trabalho espiritual com você". A então mulher de João de Deus estava na casa quando o abuso aconteceu.

A filha do médium revelou que os abusos aconteciam em casa, no carro, nos passeios que faziam em família e em quartos da resi-

dência de amigos.Segundo Dalva, os abusos duraram até

seus 14 anos, quando ela engravidou de um homem que trabalhava para o pai e foi espan-cada por ele:

— Meu pai descobriu que eu estava grávi-da, me bateu muito, com vara de ferrão, com aquele negócio de laçar boi que tem uma bola de cimento na ponta. Aí falou que eu não ia casar. Me bateu muito, eu fui para o hospital muito machucada, fora de si — relatou Dalva a "Veja" — Aí eu saí do hospital e fui para casa da minha tia acompanhada de enfermei-ra, porque eu estava sangrando pela vagina, porque estava grávida. Ele pisou muito na minha barriga. Ele falava: "eu vou te matar, eu vou te matar, você está grávida".

Com fala simples, cometendo por vezes erros de português, mas com relatos precisos, Dalva contou que essa relação de abuso e vio-lência a marcaram para o resto de sua vida:

— Descontei tudo na bebida, na droga. Entrei nessa por desespero, mágoa, sofrimen-to, porque o pai que conheci com quase 10 anos não foi um pai. Foi minha destruição.¨

dos 10 aos 14 anos de idade pelo pai

IMPOSIÇÃO - Dalva, em entrevista: coagida a gravar um vídeo de retratação (Jefferson Coppola/VEJA)FON

FONTE: O GLOBO / VEJA

Filha de João de Deus diz que foi abusadaDENÚNCIA

DEFESA - O médium na quarta-feira 12: “Quero cumprir a lei brasileira”

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Filtro10

POR BREILLER PIRES - EL PAIS

Há duas décadas, Eduardo Esídio recebeu o diag-nóstico que poderia ter encerrado precoce-mente sua carreira no futebol. Teste de HIV:

positivo. Até então, ele se preparava para o maior desa-fio da trajetória como jogador. Havia sido contratado pelo clube mais popular do Peru, que amargava um jejum de cinco anos sem títulos nacionais. Mas o sonho do atacante de triunfar no estrangeiro esbarrou no preconceito. Ao saber do resultado do exame, o Universitario o dispensou antes mesmo da estreia. Dirigentes não queriam contar com “um doente” no time.

Conhecido como Lica, nascido em Santa Rita do Passa Quatro, no interior paulista, o canhoto Eduardo Esídio rodou por clubes pequenos do Brasil até receber uma proposta do não menos modesto Alcides Vigo, da capital peruana. No primeiro semestre em Lima, não evitou o rebaixamento da equipe para a segunda divi-são, mas os seis gols que marcou foram suficientes para chamar a atenção do maior campeão do país, o Club Universitario de Deportes. Naquela altura, já tinha 27 anos e encarava a mudança como a chance de ouro de sua carreira.

Passou por uma bateria de exames médicos antes da pré-temporada. Quando vivia a expectativa pelo início dos treinos, recebeu a notícia, em 15 de janeiro de 1998, de que o clube havia feito, sem ele saber, um teste de HIV com suas amostras de sangue. A contra-prova detectou sorologia reagente para o vírus. O ata-cante entrou em desespero. Pegou o primeiro voo rumo ao Brasil. Durante a viagem, desejou várias vezes que o avião caísse, para acabar logo com o pesa-delo.

Antes de chegar a Santa Rita do Passa Quatro, um dirigente do Universitario vazou a informação de que Eduardo Esídio “estava doente, tinha Aids”, segundo suas palavras, que rapidamente correram o noticiário. A família de Lica ficou sabendo do diagnóstico pela televisão, da forma mais sensacionalista possível. O pai, Adão Esídio, passou mal. Todavia, ao recobrar os sentidos, deu apoio para que o filho superasse a adver-

sidade e seguisse no futebol. Lica, então, realizou exa-mes mais detalhados, que constataram que ele era por-tador assintomático do HIV. Não tinha Aids, como havia dito o cartola de seu clube, tampouco manifesta-va qualquer sintoma que o impedisse de jogar.

Decidiu voltar ao Peru. No entanto, ao se reapre-sentar no Universitario, descobriu que o presidente Alfredo González havia rescindido seu contrato. Nessa época, o HIV ainda era um mito que causava assombro no Peru do ditador Alberto Fujimori. Em 15 anos, desde 1983, o país tinha contabilizado mais de 8.000 infecções pelo vírus. O índice de mortalidade dos casos que evoluíam para a Aids era um dos maio-res da América Latina. Para evitar uma epidemia, o Governo peruano baixou em 1996 uma lei federal que, além de focar na prevenção, impedia que pessoas diag-nosticadas com HIV fossem demitidas do trabalho.

Baseado na legislação, Eduardo Esídio acionou a Justiça para restabelecer o vínculo com o Universita-rio. Foram três meses de batalha nos tribunais até o clube ser obrigado a readmiti-lo. Porém, o caminho aos gramados não seria fácil. A Federação Peruana relutava em registrar seu contrato. Havia resistência até mesmo dentro do próprio elenco dos cremas. “Se-ria melhor ele ter ficado no Brasil. Os jogadores estão com medo”, afirmou o diretor de futebol Miguel Silva, referindo-se aos atletas que tinham receio em dividir o vestiário com Lica por causa do HIV. Aos companhei-ros, o atacante não cansava de repetir: “Eu tenho um vírus no meu corpo, mas não sou doente”.

Graças à intervenção do técnico argentino Osvaldo Piazza, que defendia a integração de Lica e pregava que, independentemente do rótulo de portador do HIV, deveriam tratá-lo como um ser humano, o brasileiro conseguiu a aceitação dos colegas. Mas a Federação Peruana só concordou em inscrevê-lo após a apresen-tação de laudos médicos, um deles assinados pelo ministro da Saúde, Marino Costa, atestando que a pre-sença do atacante em campo não exporia outros joga-dores ao risco de infecção pelo vírus. Assim, ele final-mente estreou pela La U no fim de abril de 98, sob holofotes da mídia que o chamava de “Magic Johnson do futebol”.

Sete anos antes, o astro do basquete norte-americano havia declarado ser soropositivo em um pronunciamento à imprensa. Na mesma temporada, Johnson disputou o Jogo das Estrelas à revelia de vári-os jogadores da NBA, que temiam ser infectados pelo HIV com um possível corte ou sangramento provoca-do durante a partida. Ele ainda ganhou a medalha de ouro na Olimpíada de 1992, em Barcelona, com o Dream Team dos Estados Unidos. Mas sua carreira nas quadras acabou interrompida devido à crescente obje-ção das equipes rivais.

Lica viveu situação semelhante no Peru. Juan Car-los Oblitas, lenda do futebol local e então treinador da seleção, era um dos principais opositores à participa-ção do brasileiro na liga peruana. Dizia abertamente que “se fosse jogador, jamais dividiria uma bola de cabeça com Esídio”. Nas entrevistas depois dos jogos, o atacante não era questionado sobre gols e desempe-nho, mas sim sobre a suposta “doença” que o acompa-nhava. “Não tenho vergonha de dizer que sou soropo-sitivo. Essa não é uma cruz que eu vou carregar”, reba-tia.

Recordista de gols e símbolo no enfrentamento ao preconceito

Médicos do clube e até autoridades em saúde peru-anas o desaconselhavam a seguir jogando. Considera-vam sua aventura pelo esporte de alto rendimento um risco para ele e para os adversários. Esídio se lembrou da história de um atacante que seu primo Nilson Piruli-to, ex-jogador com passagens por grandes times brasi-leiros, enfrentara no início dos anos 90. Gérson, golea-dor que despontou no Atlético-MG e foi campeão da Copa do Brasil com o Internacional, também era por-tador do HIV. Morreu aos 28 anos, em 1994, abando-nado pelo clube colorado após o diagnóstico. Lica estava determinado a não ter o mesmo destino de Magic Johnson, muito menos o de Gérson. Com o vírus controlado, Esídio, evangélico convicto, se ape-gava apenas à fé. “Deus me faz sentir uma pessoa nor-mal.”

Continua...

Lica, de excluído por ser portador dovirus HIV a maior goleador da AméricaBrasileiro brilhou no futebol peruano depois de ser diagnosticado com o vírus.

VIRUS HIV

Lica foi o primeiro jogador com HIV a atuar no futebol profissional. GETTY IMAGE

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Filtro 11

Logo no primeiro ano em ação pelo Uni-versitario, foi o artilheiro, com 25 gols, da campanha que levou o clube ao título nacio-nal. Havia perdido muitos amigos durante sua jornada, que se afastaram depois de saber sobre o HIV, mas ganhou a admiração incon-dicional da maior torcida do Peru. Na Copa Libertadores de 1999, entretanto, voltou a ser discriminado. Em um jogo contra a Uni-versidad Católica, em Santiago, Esídio se chocou pelo alto com um zagueiro e ambos começaram a sangrar. Embora seja bastante improvável o risco de contágio pelo vírus em ocasiões como essas, jogadores chilenos exi-giram ao árbitro que o brasileiro fosse retira-do da partida. Antes do Universitario enfren-tar o Vélez Sarsfield, da Argentina, pelas oitavas de final, o lateral Federico Domín-guez demonstrou o descontentamento de seu time. “Não somos contra os portadores [do HIV], mas é muito difícil enfrentar um deles no futebol profissional. E se houver um cho-que e ele sangrar de novo?”

Contrariando prognósticos e preconcei-tos, Lica festejou seu casamento no mesmo ano em que se sagrou bicampeão pelo Uni-versitario. A temporada seguinte seria o ápice da carreira. Além do tricampeonato, ele anotou 37 gols, um recorde no país e na Amé-rica. Em 2000, somente Jardel, do Porto, mar-cou mais vezes (38) que ele em ligas nacio-nais de primeira divisão. Consagrado, Esídio se transferiu para o Alianza Lima, rival da La U, onde voltou a conquistar o título peruano, dessa vez ao lado do ex-são-paulino Palhi-nha e sob o comando do técnico Paulo Autu-

ori, no ano do centenário do clube. Sua últi-ma temporada como jogador foi em 2006, defendendo o União Barbarense na segunda divisão paulista.

Hoje, aos 48 anos, Eduardo Esídio vive em Santa Rita do Passa Quatro com a filha e a mulher, Soraya. Ele não fala sobre o vírus. Prefere exaltar as glórias que viveu no Peru. “Fiz história e fui muito feliz por lá. Sou grato ao povo peruano, que me acolheu como se eu tivesse nascido no país”, diz. Seu recor-de só foi quebrado no início de novembro

deste ano - o argentino Emanuel Herrera fez 39 gols pelo Sporting Cristal. De qualquer forma, o nome de Esídio permanece marcado como o primeiro jogador com HIV a atuar profissionalmente no futebol. E, como o próprio Ministério da Saúde peruano reco-nheceu, a imagem do goleador abraçado por crianças e reverenciado por torcedores de todo o país mostrou que o estigma de “doen-tes” que ronda os portadores do vírus é uma cruz que eles não devem carregar.

Esídio bateu o recorde de gols no Campeonato Peruano em 2000. GETTY IMAGES

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Filtro12

Dona de uma personalidade enigmática e de uma linguagem poética e inovadora, auto-ra foi reconhecida como uma das mais

importantes literatas do século XX e forjou para si uma lenda que segue atual

“Não escrevo para agradar ninguém”, repetiu Cla-rice Lispector inúmeras vezes, sempre que alguém se queixava de não entender o que ela queria dizer em suas obras. Jamais se importou com o que pensariam, especialmente depois que um jornal de Pernambuco rejeitou os contos que, ainda menina, enviava à seção de ficção infantil da publicação. Porque, enquanto as outras crianças enviavam textos narrativos, os seus continham apenas “sensações”.

Sempre teve certeza de que se dedicaria a escrever, e de fato atuou não só como escritora, mas também como jornalista, escrevendo artigos de opinião, de cozinha e de moda. Lispector desejava ser considera-da uma mulher normal, e aparentemente era, como mãe de dois filhos, esposa e cidadã de classe média. Entretanto, destacava-se em tudo, porque não era normal em nada do que fazia, e sim uma artista genial, impossível de enquadrar, reconhecida em seus círcu-los íntimos e nos ambientes literários do Brasil, mas quase nada no exterior, apesar de ter viajado muito durante seu pouco mais de meio século de vida.

Clarice Lispector é considerada, junto com Gui-marães Rosa, a grande escritora brasileira da segunda metade do século XX, graças ao seu estilo, entre a poesia e a prosa. Uma marca que enchia os detalhes cotidianos de espiritualidade e que se caracterizava por utilizar a primeira pessoa na narrativa. Não se parecia com ninguém, e sua visão não recorda nenhum movimento, embora pertença à terceira fase do modernismo brasileiro, da chamada Geração de 45.

Chaya Pinkhasovna Lispector foi o nome que rece-beu ao nascer, em 10 de dezembro de 1920, na locali-

dade ucraniana de Chetchelnik. De origem judaica, foi a terceira filha de Pinkhas e Mania. Seu nascimen-to motivou uma pausa no caminho de fuga da família numa época de fome, caos e perseguição racial. Seu avô foi assassinado, sua mãe foi estuprada, e seu pai foi exilado, sem dinheiro, para o outro lado do mun-do.

No ano seguinte ao nascimento de Clarice, toda a família fugiu dos pogroms antissemitas, primeiro para a Moldávia e Romênia, e mais tarde, em 1922, para Maceió, onde alguns parentes já estavam. Ao chegar ao Brasil, todos adotaram nomes portugueses: Pinkhas se tornou Pedro, Mania virou Marieta, e Chaya recebeu seu novo nome de Clarice.

A mãe dela, que tinha sido estuprada durante a Primeira Guerra Mundial e contraíra sífilis, morreu 10 anos depois. Havia no Leste Europeu a crença popular de que uma gravidez poderia curar uma mulher afetada por essa doença venérea, mas não foi o caso. Clarice nasceu desse afã de salvá-la, e desde muito pequena soube da sua origem, daí o sentimento de culpa ter marcado também sua vida e sua criativi-dade como escritora.

No Brasil, seu pai, um homem inteligente e liberal, sobrevivia vendendo roupas e mal conseguia susten-tar a família. Mas ele estava decidido a mostrar ao mundo quem eram suas filhas. Quando Clarice tinha cinco anos, a família se mudou para o Recife, e aos 10 foi para o Rio. Graças a esse empenho do chefe da família, Clarice continuou sua educação até muito além do que era habitual mesmo para as meninas eco-nomicamente mais favorecidas, entrando num dos redutos da elite, a Faculdade de Direito da Universi-dade do Brasil. Ali, na escola de leis, não havia jude-us, e só três mulheres.

Mas seus estudos de Direito deixaram poucas mar-cas na futura escritora, porque seu sonho ela perse-guia nas redações dos jornais da então capital brasile-

ira, onde sua beleza e seu brilhantismo já deslumbra-vam, com seus traços asiáticos, as maçãs do rosto salientes e os olhos um pouco rasgados. Era, além disso, uma jovem culta, que conhecia e lia com assi-duidade os autores nacionais e estrangeiros de maior relevância, como Machado de Assis, Rachel de Quei-roz, Eça de Queiroz, Jorge Amado e Fiodor Dostoi-evski.

Em 25 de maio de 1940 publicou sua primeira his-tória conhecida, O Triunfo. Três meses depois, seu pai morreu, com apenas 55 anos, de modo que antes dos 20 anos Clarice já era órfã. Aos 21 anos publicou Perto do Coração Selvagem, obra que escrevera aos 19 e que lhe valeu o prêmio Graça Aranha de melhor romance.

Em 1943, Clarice Lispector se casou com um homem católico, algo raro naquele momento no Bra-sil. Tratava-se do diplomata Maury Gurgel Valente, que ela conheceu enquanto estudava Direito. No final daquele ano, o casal começou a viajar, por isso em pouco tempo ela não só tinha deixado a sua família, a sua comunidade étnica e seu país, mas também sua profissão, o jornalismo, no qual tinha uma reputação em alta.

Durante 15 anos, até que se separaram, em 1959, Clarice levou uma vida tediosa de esposa perfeita, mas sempre saudosa do Brasil. Sua primeira viagem foi a Nápoles em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, como voluntária em hospitais para ajudar pracinhas brasileiros feridos. Em 1946 publicou seu segundo romance, O Lustre, e nos cinco anos seguin-tes a escritora viajou inumeráveis vezes da Inglaterra a Paris, até que, finalmente, a família se instalou em Berna, onde nasceu seu filho, Pedro.

Continua...

INQUALIFICÁVEL NO ESTILO E NA FORMA

A escritora Clarice Lispector

CLARICE LISPECTOR, A ESCRITORALITERATURA BRASILEIRA

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Filtro 13

Clarice nunca encontrou seu lugar fora do Brasil e era propensa à depressão, mas na verdade foi graças a seu marido que conseguiu escrever, já que sua origem imigrante a tornou menos permeável às ideias da soci-edade brasileira, e seu casamento foi um passo à fren-te em termos econômicos, porque nunca foi rica, mas tampouco teve que trabalhar em nada além de escre-ver. Era esposa e mãe, mas tinha ajuda em tempo inte-gral para se dedicar a escrever, e podia fazê-lo num cômodo só para si.

Os temas tradicionais e cotidianos que tinham a ver com as mulheres, a maternidade, o cuidado com casa e os filhos – tudo isso já havia sido escrito antes, mas ninguém escrevera como ela. Talvez essa necessidade de ir além tenha significado para Clarice um novo idioma, com uma gramática estranha, que talvez possa ser atribuída à influência do misticismo judaico que seu pai lhe ensinou. Mas outra parte de sua estra-nheza no estilo e na forma podem decorrer da sua necessidade de inventar e transmitir sensações além dos fatos. Quem lê suas histórias do começo ao fim se vê afetado por uma busca linguística incessante e uma instabilidade gramatical que impedem uma leitura muito veloz e que às até dificulta uma compreensão imediata.

Em 1949 Clarice Lispector publica A Cidade Sitia-da. Começa a escrever contos, e em 1952 publica Alguns Contos. Viaja com seu marido aos Estados Unidos, onde nasce seu segundo filho, Paulo, em 1953. Um ano depois, em 1954, saiu a primeira tradu-ção de um livro dela, , em Perto do Coração Selvagemfrancês, com capa de Henri Matisse.

Em 1959, separou-se do marido diplomata e retor-nou ao Rio de Janeiro, onde retomou a atividade jor-nalística para conseguir o dinheiro necessário para viver de maneira independente. Um ano depois publi-cou , um livro de contos aplaudido Laços de Famíliapela crítica, e um ano mais tarde o romance A Maçã no Escuro, depois levado ao teatro. Em 1963 publicou aquela que é considerada sua maior obra, A Paixão Segundo G.H., escrita em poucos meses.

A Paixão Segundo G.H. relata a vivência de uma mulher que um dia encontra uma barata no armário do quarto da empregada. A protagonista não pode evitar ficar paralisada pela contemplação desse inseto, que está preso na porta e que, apesar da repulsa que lhe causa, ela continua olhando obsessivamente, até fazer dessa experiência o estopim de uma renovação vital.

No final da década de 60, Clarice publicou no Jornal do Brasil alguns artigos mais pessoais nos quais se retratava de maneira íntima e que fizeram dela um nome popular, a tal ponto que seu cão Ulisses, que aparecia nesses relatos, se tornou uma lenda na cidade, como um dos poucos elos com a realidade

brasileira, já que ela praticamente não falava de temas locais ou nacionais.

Mas a escritora continuou sendo um enigma inex-pugnável, que respondia com monossílabos à impren-sa ou não se apresentava nas entrevistas, o que tam-bém aumentou sua lenda de artista e quase de mito. Como se sua ansiedade e tendência à depressão fos-sem pouco, um fato intensificou essa parte de sua personalidade. Em 1966, a escritora dormiu com um cigarro aceso, e seu quarto ficou destruído. Ela sofreu queimaduras em grande parte de seu corpo e passou vários meses internada. Sua mão direita, muito afeta-da, quase teve que ser amputada e jamais recuperou a mobilidade anterior. O acidente afetou seu estado de ânimo, e as cicatrizes e marcas no corpo lhe causaram contínuas depressões.

Entretanto, Clarice já tinha um reconhecimento global por sua trajetória, razão pela qual entre o final dos anos 60 e começo dos 70 ela se dedicou a publicar livros infantis e algumas traduções de obras estrangei-ras, que reuniu com palestras e conferências em várias universidades do Brasil. Seu último livro, A Hora da Estrela, é um volume que escreveu no verso de che-ques e em maços de cigarro. Tem menos de 100 pági-nas e fala de uma moça que, assim como ela anos antes, migra do Nordeste para o Rio.

Clarice Lispector morreu na capital fluminense em 9 de dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos, vítima de um câncer. Sua despedida no hospi-tal, a uma enfermeira, foi: “Morre meu personagem!”, talvez a melhor definição de sua literatura. Foi enter-

rada dois dias depois no cemitério do Caju, pelo rito judaico ortodoxo, envolta em linho branco. Sua lápi-de, simples, leva seu nome hebraico: Chaya Bat Pink-has, que significa “Chaya, filha de Pinkhas”.

Seu estranho nome estrangeiro, que sempre tinha sido um tema de especulação constante durante sua vida, virou lenda após sua morte. Os críticos haviam sugerido que até poderia ser um pseudônimo, enquan-to outros se perguntaram em mais de uma ocasião se era um homem. No fundo, tudo reflete a inquietação de que ela era algo diferente do que parecia e do que era conhecido até então.

Nas 85 histórias que escreveu, Clarice Lispectorsempre evocou, em primeiro lugar, a própria escritora, ela mesma. Desde sua primeira história, publicada aos 19 anos, até a última, encontrada depois de sua morte, há uma vida de experimentação através de diferentes estilos e experiências que nem todos entendem: até mesmo alguns brasileiros cultos se viram desconcer-tados pelo ardor que inspira, sem serem capazes de compreender o que escreve.

Mas a arte de convida sempre a Clarice Lispectorquerer conhecer a mulher, e através de suas histórias se pode rastrear sua vida artística, da promessa da ado-lescência e da maturidade assegurada, até chegar à proximidade inexorável da morte.

POR ALBERTO LÓPEZFONTE: EL PAIS

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Filtro14

Por Edison Veiga - BBC News Brasil

Essa alta velocidade de aceleração dos ata-ques que cria as forças de alto impacto é necessária para seus comportamentos preda-

tórios e defensivos", escreveu o entomologista Andrew Suarez, professor de biologia animal da Universidade de Illinois, em estudo publicado no periódico científico Royal Society Open Science. "Essas formigas são fascinantes. Suas mandíbulas são muito incomuns."

"Mesmo entre formigas que amplificam o alcan-ce de suas mandíbulas, as drácula são únicas: em vez de usar três partes diferentes para a mola, o trin-co e o braço da alavanca, todas essas três partes são combinadas na estrutura da mandíbula", explica o pesquisador Adrian Smith, do Museu de Ciências Naturais da Carolina do Norte e da Universidade Estadual da Carolina do Norte, coautor do estudo. O movimento é semelhante ao de um estalar de dedos humanos.

Segundo os estudiosos, as formigas drácula usam

esse movimento brusco para atacar artrópodes, ator-doando-os e esmagando-os. Os bichos mortos são levados para o ninho, onde servem de alimento para as larvas. Os cientistas até prepararam um vídeo que mostra o bicho em ação.

MétodoOs pesquisadores usaram câmeras de vídeo para

conseguir identificar e medir o movimento das formigas drácula.

"Outros cientistas já haviam descrito o mecanis-mo, mas antes ninguém sabia a velocidade desse movimento", conta o pesquisador Fredrick Larabee, do Museu Nacional Smithsoniano de História Natu-ral.

"Tivemos de utilizar câmeras incrivelmente rápi-das para captar todo o movimento. Também usamos tecnologia de raio-X para ver a anatomia dessas for-migas e entender melhor como o movimento funci-ona."

Em seguida, os pesquisadores criaram modelos de computador para testar como cada elemento da estrutura mandibular do bicho afetava a composição do movimento. "Concluímos que estávamos diante do mais rápido movimento já conhecido feito por um animal", disse Larabee.

Ao comparar com outras espéci-es de formigas, os pesquisadores perceberam que a drácula evoluiu de uma maneira diferente, em que pequenas mudanças no formato da mandíbula acabaram fazendo com que ela pudesse agir como uma mola.

Agora os cientistas querem ana-lisar como essas formigas usam tais propriedades no dia a dia, ou seja, em sua vida natural. Ainda não se

sabe exatamente como elas capturam suas presas e defendem seus ninhos, por exemplo, mas se acredita que as mandíbulas extremamente ágeis tenham papel fundamental nisso.

O soco do camarãoO comportamento da formiga drácula faz lem-

brar o observado pelo camarão mantis, um animal marinho conhecido por espancar a presa antes do abate.

Trata-se de um crustáceo, também conhecido como tamarutaca, lagosta-boxeadora, lacraia-do-mar ou camarão-louva-a-deus-palhaço. Uma das suas espécies, o Odontodactylus scyllarus, dá um "soco" que chega a 80 quilômetros por hora.

Assim, o bicho consegue, por exemplo, quebrar a carapaça de um caranguejo - e garantir uma boa jan-ta. O crustáceo habita a região do Indo-Pacífico, de Guam até a África Oriental.

Recentemente, também utilizando câmeras de alta precisão, um grupo de cientistas conseguiu ana-lisar e medir esse curioso movimento. O trabalho foi publicado pelo periódico iScience em outubro.

Imagine uma mordida dada com velocidade de 320 quilômetros por hora. Pois esta é a potência das mandíbulas da formiga drácula, nome popular da Mystrium camillae, um inseto que vive no Sudeste Asiático e na Oceania. Trata-se do movimento animal mais rápido já registra-do no planeta. É 5 mil vezes mais rápido do que uma piscada de olhos humanos.

A incrível formiga drácula, que tem as mandíbulas mais potentes do mundo animal

MANDÍBULA DA FORMIGA DRÁCULA (MYSTRIUM CAMILLAE)

Fredrick Larabee, pesquisador de pós-doutorado no Museu Nacional Smithsoniano de História Natural, é um dos autores do estudo sobre a espécie

CIÊNCIA

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Filtro 15

HELOISA MENDONÇA – El Pais

Com uma pistola e muita munição, atirador esperou pacientemente até começar a matança. "Por que na igreja?", se pergun-

tam na cidade. A polícia ainda não tem respostas"O que faz uma pessoa começar a atirar dentro de

uma igreja, um lugar para se estar em paz?", se per-guntava Caroline Mott, de 28 anos, diante de uma das portas, ainda com vestígios de sangue, da Catedral Metropolitana de Campinas, palco do ataque de um atirador que deixou quatro mortos e quatro feridos na tarde desta terça-feira –um deles em estado grave. O rastro de morte e pavor havia sido deixado horas antes por Euler Grandolpho. O homem de 49 anos, um recluso morador do município vizinho de Valinhos, deixou sua casa por volta do meio dia. Percorreu os 11 km que separam a cidade de Campinas de ônibus, car-regando uma mochila com duas armas e quatro cartu-chos de munição. Estava decidido a destroçar a vida de vários fiéis e o fez. O que a polícia ainda não sabe é o porquê.

A missa das 12h15 já tinha terminado. Grandolpho estava pacientemente sentado em um dos largos ban-cos da catedral do século XIX. Então levantou-se e começou os disparos. Cerca de 20 pessoas ainda fazi-am suas orações no momento que o ataque começou. "Percebi que no meio da igreja um rapaz se posicio-nou de frente a um casal e começou a atirar à queima-roupa. A minha reação, assim como a de vários que estavam lá dentro foi sair correndo. Tudo foi muito rápido", diz o aposentado Pedro Rodrigues, de 66 anos.

Durante a ação, o atirador recarregou uma vez a pistola, cujo pente tinha capacidade para 11 balas. Em seguida, disparou mais dez vezes e se suicidou, com a última bala, numa tragédia em parte capturada pela câmera do circuito interno da catedral, instalada num ângulo alto da nave central, a contraluz. Grandolpho só parou de atirar quando policiais, PMs e da Guarda Municipal que estavam nas redondezas, escutaram os disparos e entraram na catedral para confrontá-lo. O atirador acabou sendo ferido na lateral do corpo, na altura do abdômen, e depois resolveu atirar contra a própria cabeça, caindo próximo ao altar. “Sem a inter-venção da polícia, a matança seria maior”, disse o delegado.

Um Brasil em choque tomou ciência de um inusual tipo de barbárie irracional até mesmo para um país que possui um catálogo longo de barbáries. Enquanto o ataque ganhava o noticiário e corria ainda mais rápi-do com fotos e primeiras impressões no WhatsApp, tomava forma também a inevitável discussão sobre a

natureza do tiroteio e o papel das armas nele, o que deve seguir nos próximos dias. A tragédia ocorre em meio ao debate sobre a ampliação do porte da posse de armas no território brasileiro, uma forte bandeira do presidente eleito Jair Bolsonaro. Na igreja, a polícia encontrou duas armas – uma pistola 9 mm e um revól-ver 38 –, ambas como a numeração raspada, um indí-cio de que podem ter sido adquiridas ilegalmente. Com mais armas na mão se aumenta a possibilidade de um rompante louco como esse?

Não escaparam da fúria armada de Grandolpho Sidnei Vitor Monteiro, de 39 anos, José Eudes Gonza-ga, de 68 anos, Cristofer Gonçalves dos Santos,38, e Elpídio Alves Coutinho. Morreram ainda na igreja. Outras quatro pessoas foram baleadas e encaminha-das ao hospital Mário Gatti e ao Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp. Duas delas receberam alta nesta terça.

O prefeito de Campinas, Jona Donizette, decretou luto oficial de três dias na cidade, que viu outra chaci-na, de uma família inteira, acontecer há dois anos. Dessa vez, a matança foi no coração de Campinas. A agitada Praça José Bonifácio, em frente à catedral, foi tomada pelo medo e o corre-corre. O som de uma série de tiros ecoou e fez quem passava por ali correr auto-maticamente para um lugar mais seguro, uma loja, um banco ou padaria. "Aqui estava muito cheio, era na hora do almoço. E, de repente, todo mundo saiu cor-rendo, escutei uns 20 tiros. Vi um homem saindo total-mente ensanguentado da porta da igreja. Nunca tinha visto algo assim antes, o pânico tomou conta desse lugar", conta Daiane, funcionária de uma banca de revistas da praça.

Durante toda a tarde, o local se encheu de curiosos que se concentravam perto da escadaria da igreja, que precisou ser isolada pela perícia. A corretora de imó-veis Vanda Cordeiro buscava mais notícias sobre o episódio. Frequentadora da igreja há mais de 30 anos, ela tinha planejado ir à missa das 12h15 para depois se confessar, mas não chegou a tempo. "A verdade é que

tenho agora que agradecer a Deus por esse livramento e, também, por ter livrado a minha filha da morte. Ela estava na missa, mas conseguiu fugir sem ser ferida. Ela me ligou apavorada contando que um homem armado estava atirando, um horror", explicava Corde-iro, que fazia questão de mostrar os áudios de celular que recebeu de pessoas que estavam dentro da igreja. Um deles era o de Daniele Coutinho, que escutou do atirador uma ameaça macabra: ou se afastava, ou mor-reria ali mesmo, com um tiro na cabeça.

No fim da tarde, quando os primeiros corpos come-çaram a ser removidos da catedral, dezenas de passan-tes começaram a se aglomerar novamente. Conversa-vam e tentavam se aproximar da cena do crime e tam-bém reviviam a ação, uma e outra vez, nas telas dos celulares. Muitas faziam especulações sobre o motivo de crime e mostravam as fotos de vítimas feridas e do atirador morto caído próximo ao altar. "A gente recebe toda hora essas fotos por Whatsapp. Parece que ele entrou na igreja para matar a mulher e o amante. Esse foi o primeiro casal que ele matou", especulava uma comerciante.

A polícia, no entanto, ainda não tem pistas sobre a motivação do crime. O delegado José Henrique Ven-tura afirmou apenas que já foi apurado pela Polícia Civil que o atirador chegou a fazer tratamento de depressão. Em um primeiro momento, a polícia afir-mou que Grandolpho era analista de sistema. Depois emergiu a informação de que ele teria se formado em publicidade. Consta que ele foi aprovado no concurso de auxiliar de promotoria do Ministério Público de São Paulo e estava lotado na Comarca de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, até pedir exonera-ção, em 2014. Morava com o pai, Eder, um senhor afeito a postagens católicas no Facebook. O atirador não trabalhava desde 2015, ficava quase todo o tempo recluso no quarto e tinha, segundo o delegado, um "comportamento estranho". Não tinha passagens pela polícia. Nos dois únicos boletins de ocorrência regis-trados com seu nome ele aparece como vítima, infor-mou Ventura passada às 17h diante da catedral.

Às 18h, o último corpo foi retirado da igreja em um caixão azul, o que fez a multidão começar a se disper-sar. Alguns transeuntes afirmaram nunca ter visto a igreja com portas fechadas naquela hora, em uma ter-ça-feira. Outros depositavam rosas vermelhas em homenagem às vítimas. A Catedral de Campinas em luto deve permanecer assim até a manhã desta quarta, mas informa que, às 12h15, estará aberta mais uma vez, para celebrar uma missa em sufrágio dos faleci-dos.

Tiros na catedral: um recluso decidido a destroçar vidas em Campinas

TIROTEIO EM CAMPINAS

Corpo é retirado da catedral. VICTOR R. CAIVANO AP

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Filtro16

A empresa, que tem mais de 1,5 bilhão de usuári-os, já indicou no passado que prefere se con-centrar nas "plataformas de telefonia móvel

usadas pela grande maioria das pessoas".É por isso que a companhia disse que quem utiliza o

sistema operacional Nokia S40 só terá acesso ao apli-cativo até 31 de dezembro de 2018, de acordo com o blog da empresa.

O S40 é um software que foi desenvolvido pela empresa finlandesa Nokia em 1999 e que, segundo a companhia, passou a ser usado "em centenas de milhões" de celulares.

Entre eles, estão o Nokia 206 e 208, Nokia 301, Nokia 515 e grande parte da série Nokia Asha C3, X2 e X3. Esses dispositivos ainda são vendidos como alter-nativa aos smartphones mais famosos em diversas lojas e sites.

O caso do iPhone 4O WhatsApp também adiantou algumas mudanças

que vão afetar quem tem um celular emblemático da Apple: o iPhone 4. E, embora ainda seja compatível com esse dispositivo, em breve vai deixar de ser.

O aplicativo não permite mais a criação de novas contas a usuários que tenham esse modelo de iPhone ou qualquer outro que funcione com o iOS 7 ou outra versão anterior do software da Apple.

E a partir de 2020, o WhatsApp deixará de funcio-nar completamente nesses telefones.

"O WhatsApp para iPhone requer [um sistema ope-racional] iOS 8 ou posterior. No iOS 7.1.2, não é mais possível criar novas contas ou verificar contas existen-tes. Se o WhatsApp já estiver ativo no seu dispositivo, você poderá usá-lo até 1º de fevereiro de 2020. O iOS 6

ou anteriores não são mais compatíveis", diz o site da empresa.

"Para uma melhor experiência, recomendamos a utilização da versão mais recente do iOS disponível no seu telefone. Visite a página de ajuda da Apple para saber como atualizar o software do seu iPhone."

Android 2.3.7O caso dos celulares que utilizam o sistema opera-

cional Android 2.3.7 (e versões anteriores) é muito semelhante ao do iOS 7.1.2: só podem usar o WhatsApp até 1º de fevereiro de 2020.

Segundo dados do Google, existem cerca de 2 bilhões de celulares no mundo que rodam com Andro-id 2.3.7 ou uma versão anterior do sistema operacio-nal.

"O WhatsApp para iPhone requer [um sistema ope-racional] iOS 8 ou posterior. No iOS 7.1.2, não é mais possível criar novas contas ou verificar contas existen-tes. Se o WhatsApp já estiver ativo no seu dispositivo, você poderá usá-lo até 1º de fevereiro de 2020. O iOS 6 ou anteriores não são mais compatíveis", diz o site da empresa.

"Para uma melhor experiência, recomendamos a utilização da versão mais recente do iOS disponível no seu telefone. Visite a página de ajuda da Apple para saber como atualizar o software do seu iPhone."

Android 2.3.7O caso dos celulares que utilizam o sistema opera-

cional Android 2.3.7 (e versões anteriores) é muito semelhante ao do iOS 7.1.2: só podem usar o WhatsApp até 1º de fevereiro de 2020.

Segundo dados do Google, existem cerca de 2 bilhões de celulares no mundo que rodam com Andro-id 2.3.7 ou uma versão anterior do sistema operacio-nal.

Em que dispositivos o Whatsapp está disponível?

§ Android com sistema operacional 4.0 ou supe-rior

§ iPhone com iOS 8 ou mais avançado§ Windows Phone com sistema operacional 8.1

ou posterior§ JioPhone§ JioPhone 2Fonte: WhatsApp/perguntas frequentes.

WhatsApp: Os celulares em que o app deixará de funcionar em 2019O WhatsApp, o aplicativo de mensagens mais usado no mundo, é atualizado constantemen-te. E acaba de publicar sua habitual "lista negra" de celulares em que o serviço não estará disponível a partir de 1º de janeiro.

O WhatsApp atualizou sua lista de celulares incompatíveis com o aplicativo

Celulares como o Nokia Asha 501 ficaram 'velhos' para o WhatsAppRecomenda-se atualizar o celular e baixar a versão mais recente do sistema operacional disponíve

GETTY IMAGESGETTY IMAGES

TECNOLOGIA

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Filtro 17

Fonte: Revista Galileu

Enquanto o presidente norte-americano Donald Trump ainda olha com ceticismo para o aqueci-mento global, os órgãos do próprio governo

não param de elaborar relatórios com evidências de que o clima no planeta está mudando de forma sem precedentes.

De acordo com o último Relatório Ártico, publica-do anualmente pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), apontou os últimos cinco anos como os mais quentes da história do Ártico desde que registros começaram a ser feitos pela agência, em 1900.

As temperaturas polares estão subindo aproxima-damente o dobro da taxa da média global, e de acordo com os cientistas por trás da última análise, isso está causando mudanças "inesperadas" no ambiente que vai além dos limites do Ártico. Um exemplo é a onda de frio que invadiu a Europa na primeira metade do ano.

O relatório também aponta para o fato de plantas mais comuns em climas mais quentes estarem se espalhando pelo Polo Norte. "O Ártico está experi-

mentando a transição mais sem precedentes na história da humanidade", disse Emily Osborne, que liderou o relatório, ao Independent. “Essas mudanças estão afetando os residentes do Ártico e têm o potencial de afetar pessoas muito além da região.”

Segunda a pesquisadora, nos 13 anos em que a NOAA vem publicando seus relatórios, a tendência de aquecimento no Ártico continuou a ficar cada vez mais severa. Isso enquanto países como a Rússia e o próprio EUA manifestaram interesse em expandir sua perfura-ção de combustíveis fósseis no Ártico, e o derretimen-to do gelo está abrindo pistas de navegação anterior-mente inacessíveis para o norte.

“Este relatório ajudará a orientar as prioridades da NOAA no melhor entendimento do papel do Ártico na mudança climática e clima extremo; sustentação e crescimento da pesca; e apoiar a adaptação e as oportu-nidades econômicas na região”, disse ao Independent o contra-almirante da reserva Timothy Gallaudet, sub-secretário de comércio para oceanos e atmosfera na NOAA.

Este relatório se soma a outro, divulgado há cerca de uma semana, que conclui ser a mudança climática resultante do uso excessivo de combustíveis fósseis

uma grande ameaça tanto para a vida dos norte-americanos quanto para a economia do país. Na ocasião, o presidente Donald Trump disse simples-mente que não acreditava na pesquisa.

A administração de Trump vem revogando as regu-lamentações ambientais da era Obama em um esforço para maximizar a produção de combustíveis fósseis, e anunciou a retirada dos EUA do acordo climático de Paris.

Ao mesmo tempo, na COP-24, na Polônia, os EUA têm sido chamados de “Vilões do Clima”, por se alia-rem à Rússia e à Arábia Saudita em um esforço para desqualificar os resultados do mais importante relató-rio sobre o clima do ano, realizado pelo o Painel Inter-governamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), encomendado durante a COP-21, em que também foi assinado o Acordo de Paris.

O relatório demonstrou a importância de tentar manter o aquecimento do planeta abaixo do 1,5ºC em relação ao início da Era Industrial, além da urgência das nações fazerem mudanças sem precedentes para reduzir as emissões de gases de efeito estufa ou experi-mentar impactos em todos os setores da sociedade.

Relatório oficial dos EUA afirma queÁrtico está mais quente que nuncaDe acordo com documento, os últimos cinco anos foram os mais quentes já registrados desde o início do século 20

MUDANÇAS CLIMÁTICAS

DERRETIMENTO DO GELO NO ÁRTICO (FOTO: WIKIMEDIA COMMONS)

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Iñigo Domínguez - Daniel Verdú - Julio Núñez

O jornal espanhol El País reconstrói a histó-ria de 18 religiosos enviados à América Latina e à África. Alguns foram descober-

tos na Espanha; outros, presos em seus novos desti-nos

A Igreja espanhola não só utilizou o sistema de mudar sacerdotes de paróquia e destino dentro de uma ordem, após serem acusados de abusos de menores. Outro padrão de conduta das últimas décadas foi enviá-los ao estrangeiro. Isso foi confirmado por fontes dos órgãos de Tutela de Menores do Vaticano, que reconhecem que pode ter sido uma tática relativa-mente comum na Espanha e outros países. O EL PAÍS documentou até 18 casos de padres denunciados e condenados por abusos que foram para outros países e acusados e presos no estrangeiro. No Chile, Equador, Peru, Bolívia, Venezuela, Honduras, Estados Unidos, Benin e Quênia.

Alguns foram notícia em sua época, mas seus pas-sos posteriores não foram acompanhados. Outros passaram desapercebidos na Espanha. Também exis-tem casos inéditos, pelas acusações de vítimas locali-zadas pelo EL PAÍS, como dois salesianos do colégio de Deusto, em Bilbao. O jornal relatará os principais casos nos próximos dias.

Um dos exemplos mais flagrantes é o de Jordi Ignasi Senabre, denunciado por um coroinha de 13 anos de Barcelona em 1988 e que fugiu. O EL PAÍS o localizou no Equador, onde exerceu até hoje a função de sacerdote, e o bispado de Barcelona sabia o tempo todo de seu paradeiro, de acordo com a diocese equa-toriana de Santo Domingo.

A situação de muitos dos casos mais importantes desse período foi conhecida em Roma depois do ocor-rido. Algumas vezes não puderam ser investigados por falta de colaboração dos padres e porque as víti-mas preferiam não testemunhar. Fontes de órgãos à

Tutela de Menores do Vaticano dizem que o exílio de sacerdotes foi uma prática relativamente comum durante um período, mas que o papa Francisco, com sua prática de tolerância zero, pede uma mudança radical e muitos casos foram reabertos e revisados.

Nos 18 casos analisados se distinguem dois tipos de situações: religiosos que são descobertos na Espa-nha e são enviados ao estrangeiro, e aqueles que são presos em outro país por esses crimes. Surge então a dúvida de se tiveram acusações anteriores em seu local de origem, como algumas vezes acaba sendo demonstrado.

O último episódio conhecido é o agostiniano Iván Merino, preso na Venezuela há duas semanas, acusa-do de abusar de uma menor. Nesse caso, tanto sua ordem como a diocese de Granada, onde era professor em um colégio até 2015, afirmam que sua mudança de país não teve nada a ver com denúncias anteriores e que não consta nenhuma. Acontece a mesma coisa com o caso de Joan Alonso Bonals, de 53 anos, pároco de Alcanar e Les Cases de Alcanar entre 2011 e 2016 (Tarragona), que se mudou para Honduras. Foi preso nesse país em agosto de 2017 por uma ordem de pri-são emitida pela Espanha e extraditado. É acusado de abuso e de prostituir um menor de 16 anos. A diocese de Tortosa diz que não existem denúncias anteriores contra ele. Está em liberdade provisória.

Por outro lado, a prisão no Chile em 2009 de José Ángel Arregui, da ordem San Viator, trouxe à tona crimes cometidos pelo sacerdote anteriormente na Espanha. Ocorreram denúncias em sete colégios pelos quais passou no País Basco, Aragão e Madri. Foi condenado em 2011, mas parte dos casos prescreve-ram. Atualmente, está em liberdade, confirma sua antiga congregação.

Muitos desses sacerdotes pertencem a ordens reli-giosas, que possuem estruturas no estrangeiro. O caso dos maristas no Chile se destaca: quatro religiosos espanhóis estão sendo investigados dentro de um gran-

de processo aberto contra a ordem. As dioceses, por sua vez, podem enviar padres a outros países como missionários fidei donum, emprestados temporaria-mente a outros bispados, ainda que continuem perten-cendo à sua atribuição de origem. É frequente que as dioceses espanholas tenham relações históricas com outros países.

O sacerdote de Toledo Santiago Martínez Valentín-Gamazo, de 42 anos, foi preso no ano passado no Peru, acusado de abusar de quatro menores em Moyo-bamba. Chegou ao país em 2007. De acordo com o bispado de Toledo, “foi voluntário, como outros sacerdotes da diocese”. Afirmam que ele não tem denúncias na Espanha.

Gil José Sáez, vigário judicial da diocese de Carta-gena e especialista em abusos sexuais na Igreja, admi-te que ainda que essa prática não tenha sido a mais comum, “era outro dos modos utilizados pelos padres e superiores das ordens para esconder os casos de pedofilia”. Esse procedimento significa “uma mudan-ça radical na vida do abusador”, de modo que é difícil “forçá-lo” a deixar seu país. A mudança também depende dos contatos do padre no estrangeiro. Por isso, diz o vigário, é mais comum nas ordens religio-sas.

O maior caso das últimas décadas na CatalunhaEm Barcelona há um velho caso muito singular:

acusados de pedofilia nos anos oitenta que montaram sua própria ordem e continuaram cometendo abusos na África e América Latina, de acordo com fontes eclesiásticas. É a Comunidade Missionária de São Paulo Apostolo e de Maria Mãe da Igreja (MCSPA na sigla em inglês), de Albert Salvans, Pere Cané e Fran-cisco Andreo, o maior caso de abusos na Igreja catalã das últimas décadas.

Os padres acusados de abusos que aIgreja enviou à América Latina e África

PEDOFILIA NA IGREJA ESPANHOLA

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Filtro 19

As mudanças de região ocorreram outras vezes após uma condenação firme, mas sem maiores san-ções disciplinares. Ocorreu com o agostiniano recole-to José Luis Untoria, condenado em 1997 por abusos a 10 menores em um colégio de Salamanca. Recebeu uma multa e foi proibido de ensinar por 10 anos. Pou-cos meses depois foi enviado ao Peru, até 2009. O mesmo aconteceu com o jesuíta Luis Tó González, professor do colégio San Ignacio de Barcelona, con-denado em 1992 a dois anos de prisão por abusar de uma menor. Sua ordem o enviou nesse ano à Bolívia, onde viveu até sua morte em 2017. As duas ordens foram consultadas e não veem nenhum problema na decisão de retirá-los do país e afirma que depois não tiveram denúncias. Os jesuítas, entretanto, admitem erros: “Não foi aberto um processo canônico contra ele e entendemos claramente que isso foi muito errado (...), a ação diante de casos de abusos não esteve à altu-ra, especialmente, pensando na atenção às vítimas e na falta de respostas mais contundentes, e por isso pedimos perdão”.

Para Gema Varona, especialista em abusos de menores e presidenta da Sociedade Basca de Vitimo-logia, foi uma conduta totalmente anômala e “vergo-nhosa”. Varona há anos pesquisa os abusos na Igreja católica e está elaborando o primeiro estudo na Espa-nha sobre o assunto. “É uma prática da Igreja católica documentada em muitos países, como a Alemanha e a Bélgica. O perverso é que é uma forma de que os abu-sadores contundem abusando, porque nessas pessoas sempre há uma continuidade, costumam continuar, e ainda mais se não existiu um tratamento e medidas adequadas. Está entre os erros mais graves pelos quais a Igreja algum dia deverá pedir perdão”.

Davi contra GoliasA especialista, que entrevistou dezenas de vítimas,

diz que elas sofrem muito ao saber que seus agresso-res foram enviados a outra parte, “porque a única coisa que preocupa a quem foi abusado é que isso não volte a se repetir, mas são mandados a lugares com condições mais propícias aos seus crimes”. Frisa que,

nos países de destino, a Igreja costuma ter um poder ainda maior, os pedófilos têm acesso a famílias com maior vulnerabilidade e a Justiça local é menos efici-ente.

Para José Ramón Juárez, psicólogo e perito em alguns dos casos de abusos julgados no Chile, é preci-so não só considerar a dificuldade da vítima para denunciar como também a inferioridade do abusado frente à Igreja. “Para a vítima não é somente Davi con-tra Golias, é quase Davi contra o representante de Deus”, diz. Juárez, especialista em abusos na América Latina e membro da associação catalã Mans Petites, frisa que as hierarquias eclesiásticas costumam ter mais influências nesses países, “pela diferença entre classes sociais e pela forte presença social que possu-em por suas numerosas atividades de caridade, o que se traduz em uma maior impunidade”.

Em 2002, quando começou o escândalo dos abusos na Igreja, um dos primeiros livros publicados na Espa-

nha sobre o fenômeno já dizia tudo. Pepe Rodríguez, coordenador da faculdade de Ciências de Comunica-ção da Universidade Autônoma de Barcelona, escre-veu em (Pedofilia na Pederastia en la Iglesia CatólicaIgreja Católica): “Um padre que abusa sexualmente de menores costuma ser enviado a paróquias cada vez mais humildes - com a crença de que pessoas com escasso poder econômico e cultural suportam melhor os abusos e não têm recursos e credibilidade para enfrentar a Igreja -, ainda que, quando o escândalo começa a explodir, ou ameaça explodir, é muito comum enviar o clérigo a outro país. O destino mais comum do clero pedófilo espanhol é a América Lati-na”.

Fonte: El Pais

José Luis Untoria, agostiniano recoleto condenado pelo abuso de dez menores em Salamanca, em 1997. EL PAÍS

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Filtro20

POR SANDRO POZZO – EL PAIS

A indústria do tabaco começa a apostar no florescente mercado da maconha. O grupo Altria, que entre suas marcas mais

populares controla os cigarros Marlboro, começa a ocupar o terreno ao comprar ações da canaden-se Cronos, fabricante legal de maconha. A mano-bra procura abrir caminho para outras áreas além do cigarro tradicional, cujas vendas estão se desa-celerando.

A Altria desembolsou 1,8 bilhão de dólares (sete bilhões de reais) para assumir 45% das ações da Cronos. É uma quantia pequena em com-paração aos 25,6 bilhões de dólares que o conglo-merado norte-americano faturou em escala glo-bal no ano passado. Mas a manobra poderia ser-vir para marcar o começo de uma nova indústria à medida que o consumo da cannabis seja regula-mentado.

A empresa tem um dilema. Atualmente con-trola 45% das vendas de cigarros nos EUA. O negócio é muito rentável: gera um lucro operaci-onal de 8,4 bilhões de dólares por ano. Mas, ao mesmo tempo, a Altria precisa pensar no futuro e, para isso, controlar o produto fadado a substituir o tabaco parece uma boa opção, e ela tem recur-sos mais do que suficientes para sondar novas águas e assumir riscos.

A empresa matriz da Philip Morris levará à Cronos sua experiência de comercialização do tabaco, um fator que pode ser importante quando, num futuro não tão longínquo, a comercialização da maconha começar a ser padronizada em escala global. A Altria se reserva, além disso, a opção de

continuar elevando seu investimento até assumir o controle de sua sócia se considerar oportuno. A Canopy Growth, rival da Cronos, já recebeu uma injeção de quatro bilhões de dólares da Constel-lation Brands, dona da cervejaria Corona.

Mas o futuro do negócio dependerá, em gran-de medida, do tempo que os EUA levarão para abrandar as regras em nível federal. O mercado da maconha é atualmente estimado em seis bilhões de dólares, com a previsão de chegar aos 10 bilhões nos próximos anos, à medida que mais Estados do país aprovam seu consumo para fins medicinais e recreativos. Todas essas manobras alimentaram o entusiasmo entre os investidores.

O Canadá autorizou há dois meses o consumo recreativo da cannabis. Howard Willard, executi-vo-chefe da Altria, observa que o investimento na Cronos “representa uma nova e estimulante opor-tunidade de crescimento” para a companhia, por-que lhe permite se posicionar desde o começo em um “setor global emergente”, que crescerá “rapi-damente durante a próxima década”.

Perda de brilho nas Bolsas e diversificaçãoA Altria busca, paralelamente, uma diversifi-

cação urgente na sua carteira, indo além dos pro-dutos tradicionais à base de tabaco, com uma forte aposta no cigarro eletrônico. Há semanas especula-se que a empresa estaria negociando a aquisição de uma participação na Juul Labs, líder no setor dos cigarros eletrônicos, que está hoje sob forte pressão nos EUA por seu elevado con-sumo entre adolescentes.

As ações da Altria perderam um quarto de seu valor no último ano. Depois do anúncio da sexta-

feira, entretanto, recuperaram 2%, enquanto as da Cronos tiveram alta de mais de 30% em uma só sessão. “É o sócio ideal”, afirma Mike Gorens-tein, seu executivo-chefe, “porque nos dá os recursos e a experiência de que necessitamos para poder acelerar de forma significativa nossa estratégia de crescimento”.

Há, entretanto, um aspecto na operação que pode se chocar com o consumidor de maconha. A Altria é uma das corporações mais odiadas, por-que o produto que vende tem graves consequên-cias para a saúde, derivados da combustão do tabaco. A Cronos, por sua vez, concentra grande parte de seus ativos no negócio da maconha medi-cinal. Resta ver como essa aliança irá alterar a percepção social sobre a marca.

A injeção de liquidez que a Altria oferece lhe permitirá não só reforçar sua infraestrutura de distribuição, aproveitando a escala global do con-glomerado. Também lhe abrirá o caminho para desenvolver novas marcas e produtos. Além da Canopy, a Cronos tem outros concorrentes: Til-ray, Aphria e Aurora – na qual, especulou-se, a Coca-Cola poderia estar interessada. A Lagunita, uma marca de cerveja controlada pela Heineken, está vendendo água com infusão de cannabis na Califórnia, onde a droga é legal, e a filial Molson Coors tem uma empresa conjunta com a The Hydropothecary para comercializar bebidas desse tipo no mercado canadense. Trata-se de um mercado com muito futuro, sem dúvida, mas tam-

bém muito concorrido. ̈ ¨¨

Grupo norte-americano Altria compra 45% das ações do produtor canadense Cronos para tentar se expandir além do tabaco

Fabricante do Marlboro entrano mercado da maconha

Planta de maconha em San Luis Obispo, Califórnia RICHARD VOGEL AP

INTERNACIONAL

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Filtro 21

Marie foi levada para Bangladesh como se a família estivesse saindo de férias. "Era para ficarmos por seis semanas, mas aí

aumentou para dois meses, depois três, depois seis", diz ela.

"Eu dizia para o meu pai que queria voltar para casa, para a escola, para os meus amigos. Mas ele respondia coisas como 'a gente gastou dinheiro demais vindo para cá'. Essa era a desculpa dele, a forma de esconder que estava planejando meu casamento."

"Lembro como se fosse hoje. Eu estava senta-da jantando com a família e ele apareceu, sentou-se e começou a comer. De repente, disse: 'Não seria ótimo se a gente casasse a Rubie?' Eu morri de vergonha. Eu era criança, dei um ataque, joguei meu prato no chão, saí batendo porta, fui correndo para o quarto, aos berros. Não conse-guia lidar com aquela informação", conta ela.

"Me colocaram num sistema de leilão. Um dos meus tios começou a me leiloar. Foi horrível, fui tratada como uma escrava. Eu estava num lugar totalmente estranho. Não sabia para onde ir, não sabia nem onde tinha telefone, nada."

Fui desonradaMarie foi obrigada a se casar com um homem

que tinha o dobro da sua idade. Na festa de noiva-do, foi vestida "como uma boneca".

"A casa estava cheia de gente rindo, tinha um bando de gente tentando entrar no meu quarto para me ver, para dar uma espiada na noiva. E eu só fiquei sentada lá pensando: 'sou um objeto'. Pensava: 'volte para casa, faça o que tiver de fazer para voltar para casa'."

Depois do casamento, seu marido quis um

filho."Eu era estuprada praticamente todos os dias

para engravidar, porque assim ele poderia ir morar no Reino Unido, por causa do filho. Esse era o plano deles", conta.

Ela finalmente engravidou e voltou para o País de Gales para ter o bebê. Quando ele nasceu, ela fugiu. "Isso envergonhou minha família. Eu fui desonrada por muito tempo."

Ela hoje vive na Inglaterra e trabalha como ativista, educando as pessoas sobre casamento forçado.

"Agora eu passo a mensagem de que há luz no

fim do túnel, há um lugar para você no mundo. Não é tudo

horrível. Não é o inferno. Você tem que dar a volta por cima, senão ninguém vai fazer isso por você."

Criminalizar é a solução?Tornar o casamento forçado um crime pode

fazer as vítimas não denunciarem, dizem ativis-tas.

O fato de ser proibido por lei "manda um reca-do", mas, por outro lado, afasta algumas pessoas, diz uma ONG.

O casamento forçado é crime no Reino Unido desde 2014. No País de Gales, só houve uma denúncia formal, mas o governo acredita que haja cerca de 100 desses casamentos por ano.

Shahien Taj, de uma ONG que atua com famí-lias muçulmanas, disse à BBC que é necessário um trabalho de prevenção para educar quem comete esse tipo de crime, que em geral são os pais das vítimas.

Ela diz que normalmente a vítima quer voltar para a casa dos pais quando a situação se resolve.

"Nunca conheci uma vítima que dissesse que não se importava que a polícia fosse atrás dos seus pais. Na maioria das vezes, eles não querem nenhum tipo de intervenção por esse motivo", disse Taj.

Samsunear Ali, de outra ONG, a Bawso, diz que a educação é essencial, pois muitos pais sequer sabem que estão cometendo um crime.

"Na visão deles, estão fazendo a coisa certa. É um problema gravíssimo e que tem sido pouco discutido."

O drama das mulheres raptadas e forçadas a se casar: 'Ele me estuprava todos os dias'

Rubie Marie aos 5 anos de idade.

Casamento forçado

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Filtro22

Mike Lanchin - BBC World Service

Mas, um detalhe importante chamava a atenção. López era o pai adotivo de Osorio. "Se eu ainda tenho medo dele? Sim, eu tenho", diz

Osorio. "Mas eu tinha que falar. Eu queria ser a voz daqueles que não puderam estar lá."

A saga de Osorio começou nas primeiras horas do dia 6 de dezembro de 1982. Na época com 5 anos de idade, ele estava dormindo com a mãe e os seis irmãos quando López e cerca de 50 membros da Kaibiles, uni-dade militar especial da Guatemala treinada pelos Esta-dos Unidos, entrou no vilarejo onde a família morava.

As tropas de elite anti-guerrilha foram enviadas ao assentamento numa área de floresta do norte do país, depois que um ataque rebelde a um comboio do Exér-cito matou 21 soldados.

Vestidos como guerrilheiros, para mascarar que se tratava de uma missão do Exército, os Kaibiles bate-ram nas portas de cada casa, gritando para que os mora-dores abrissem.

Quando o pai de Osorio obedeceu, petrificado de medo, os soldados o amarraram com uma corda. Eles prenderam a outra ponta da corda ao redor do pescoço da mãe de Osorio e fizeram a família marchar até a praça central da vila.

Todas as mulheres e crianças foram levadas a uma igreja, equanto os homens e as crianças mais velhas foram levadas ao prédio da escola local. Osorio se lem-bra de ouvir gritos enquanto os soldados interrogavam e espancavam os homens. Um a um, eles foram fuzila-

dos e os corpos, empilhados numa vala."Quando terminaram de lidar com os homens, vie-

ram atrás das mulheres e crianças", disse Osorio ao programa de rádio Witness, da BBC. Cerca de 200 pes-soas morreram no massacre, no vilarejo Dos Erres.

A guerra civilNo total, mais de 200 mil pessoas morreram durante

o conflito entre militares da Guatemala e guerrilheiros de orientação marxista. Muitos dos mortos eram indí-genas civis, acusados pelo exército de simpatizarem com os rebeldes.

Desde que a guerra terminou, em 1996, alguns pou-cos oficiais e soldados menos graduados foram proces-sados pelas autoridades civis da Guatemala. López foi o sexto Kaibil a ser julgado pelo massacre em Dos Erres.

Quando testemunhou no tribunal, Osorio contou com a presença de um psicólogo para ajudá-lo a enfrentar o medo. Ele identificou López como um dos soldados que arrastaram a mãe para fora da igreja pelo cabelo. Osorio e seus irmãos se agarraram às pernas dela, desesperados, gritando descontroladamente. Ela implorou para que os soldados poupassem os filhos.

Um deles pegou a irmã bebê de Osorio "pelas per-nas, como se fosse uma galinha". O soldado levou a bebê para o lado de fora e a jogou contra uma árvore, "para que parasse de chorar."

Osorio disse que não viu o que aconteceu com a mãe e os outros irmãos. Eventualmente, exausto de tanto chorar, ele dormiu e, quando acordou, estava acompa-

nhado apenas de duas outras crianças pequenas.Quando deixaram o vilarejo deserto, os soldados

levaram Osorio e uma das duas crianças, um menino de três anos chamado Oscar.

"Deixando a cidade, dava para ver corpos pendura-dos nas árvores, pessoas sem pernas, sem cabeça. Eu reconheci um desses corpos como sendo do meu pai", diz Osorio.

Os três dias de massacres em Dos Erres são consi-derados a pior atrocidade da guerra civil da Guatemala. Ocorreu oito meses depois de um grupo de jovens ofi-ciais do Exército, liderado pelo general Efraín Ríos Montt, tomar o poder no país por meio de um golpe militar, prometendo esmagar rebeldes e seus simpati-zantes.

Durante os 17 meses de governo de Ríos Montt (ele próprio foi derrubado do poder por um golpe, em 1983), cerca de 1.700 indígenas de origem maia foram mortos pelo exército. Ríos Montt morreu em abril de 2018 aos 91 anos, enquanto era alvo de processos por genocídio.

Foi no caminho de volta para a base dos Kaibiles que López começou a se interessar por Osorio, alimen-tando o menino com leite e feijão em lata de suas pró-prias provisões. Depois, os dois meninos- Osorio e Oscar- foram vestidos com pequenos uniformes mili-tares, como se fossem mascotes. López, então, disse a Osorio que havia decidido levá-lo para viver com a sua família, no sudeste do país.

Continua...

'Como ajudei a mandar o meu pai adotivo paraa cadeia condenado a 5 mil anos de prisão'No mês passado, 36 anos após ter sobrevivido a um dos mais sangrentos massacres militares da guerra civil da Guatemala, Ramiro Osorio Cristales prestou depoimento, num tribunal, como testemunha de acusação de um dos assassinos. O homem que estava sendo julgado, um ex-soldado chamado Santos López, era acusado de assassinar a familia de Osorio e seus vizinhos.

Mais de três decadas depois de sobreviver a um massacre, Ramiro Osorio Cristales testemunhou contra o homem que o criou

RICHARD SENNOTT / GROUND TRUTH PROJECT

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Filtro 23

Osorio diz que, primeiro, ficou feliz com a notícia, pensando: "Eu vou ter uma família de novo". Mas as suas esperanças caíram por ter-ra. Ele conta que López o fazia trabalhar, batia nele quando reclamava e o mandava para a escola sem café da manhã.

"Ele me dizia que se eu tentasse fugir, me encontraria onde eu estivesse e me mataria."

Osorio diz que, durante a infância, não se esqueceu dos pais biológicos, mas não falava sobre eles. Quando a sogra de López pergun-tava ao menino porque chorava tanto, ele só dizia: "Sinto saudade da minha mãe."

Ao longo dos anos, Osorio se sentia cada mais mais desesperado para fugir do assassino de sua família. Enquanto isso, López insistia que ele o chamasse de "pai". Foi só aos 22 anos que Osorio conseguiu escapar do conví-vio com o pai adotivo.

Ironicamente, ele conseguiu isso entrando para o exército, a mesma organização que havia assassinado seus pais anos antes. "Eu estava muito perdido. Não sabia ao certo quem eu era", diz. "Foi uma decisão muito difícil, mas eu tinha que escapar. A vida era difícil demais com eles (pais adotivos)."

Era 1998 e a guerra civil já tinha acabado. Os rebeldes estavam formando o seu próprio partido político. Um governo civil estava no poder, embora o Exército continuasse a ser uma força poderosa.

Osorio flertava com a ideia de pedir a

alguém do Exército para ajudá-lo a encontrar a sua família biológica, mas tinha medo de fazer isso. Naquele mesmo ano, porém, auto-ridades da Procuradoria da República e uma organização de defesa dos direitos humanos bateram à porta da família López em busca de Osorio. Eles estavam investigando as atroci-dades da guerra e haviam ouvido que ele e Oscar tinham sobrevivido ao massacre em Dos Erres.

Oscar, cujo nome todo era Oscar Ramírez Castañeda, foi eventualmente localizado nos Estados Unidos, onde estava vivendo. Dife-rentemente de Osorio, ele teve uma vida feliz com a família de outro militar e desco-kaibil nhecia a história da sua família de origem.

A prisão de LópezAo perceber que poderia correr perigo se

seus superiores no Exército descobrissem sobre sua verdadeira identidade, Osorio entrou em contato com os investigadores, que o ajudaram a conseguir asilo no Canadá.

Lá, Osorio refletiu sobre tudo o que aconte-ceu. Ele diz que ainda sente alguma gratidão a López, apesar das surras e das ameaças duran-

te a infância. Chegou até a escrever cartas a ele do Canadá. Mas, ao longo do tempo, Oso-rio diz que percebeu que fora roubado de suas raízes e identidade.

"Eu não tinha nada do meu passado. Então, precisava construir o meu futuro."

Em 2016, López foi deportado dos Estados Unidos, onde vinha vivendo ilegalmente, e enviado à Guatemala para julgamento.

Osorio se torturou com a dúvida sobre se deveria voltar à Guatemala para testemunhar. Eventualmente, concluiu que tinha o dever de prestar o depoimento.

Após apresentar todas as evidências, ele fez um apelo aos juízes.

"É o momento de justiça para todos aqueles que não estão mais aqui, que tiveram as vidas arrancadas", afirmou, no tribunal lotado. "Mas uma luz foi poupada. Eu sou essa luz. E eu estou pedindo que enviem aqueles que cometeram esse crime para a escuridão."

Em 22 de novembro, López foi condenado a mais de 5 mil anos de prisão- 30 anos para cada uma das 171 mortes atribuídas a ele, e outros 30 anos pelo assassinato de uma meni-na que fora levada do vilarejo e morta depois.

Osorio achou que teria uma família novamente, quando foi levado para a casa de López. Mas ele diz que era maltratado pelo pai adotivo

Em 2016, López foi deportado dos Estados Unidos, onde vinhavivendo ilegalmente, e enviado à Guatemala para julgamento

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Filtro24

Por Kalleo Coura - AH

Amúsica começa a soar do outro lado do por-tão. Sim, temos uma orquestra de 16 homens, todos prisioneiros. Essa orquestra,

que conta com algumas personalidades do mundo da música, sempre toca quando vamos e voltamos do trabalho ou quando os alemães recolhem um grupo que será executado. Sabemos que um dia, para muitos de nós, senão para todos, a orquestra também tocará o Tango da Morte."

A cena, descrita pelo engenheiro polonês Leon Weliczker Wells em O Caminho de Janowska, mostra como era comum até nos campos de concentração da Segunda Guerra um gênero musical caracterizado por melodias tristes e nostálgicas. "Tango da Morte" era a forma genérica como eram conhecidos os tangos tocados principalmente durante os fuzilamentos e enforcamentos e antes de os judeus entrarem nas câmaras de gás em locais como Auschwitz, Terezin, Dachau e Buchenwald. Wells, por sorte, não chegou a ouvi-lo.

Fosse em iídiche, em russo ou em espanhol, sua língua de origem, o tango era um estrondoso sucesso na Europa e no resto do mundo nos anos 40. A música melancólica, como a conhecemos, nasceu entre o fim de março e o começo de abril de 1917. Foi nessa época que Carlos Gardel cantou "Mi Noche Triste", de Pascual Contursi, no Teatro Esmeralda, e estreou o tango-canção, caracterizado pela presença de letra nas músicas. A história do tango, no entanto, é mais antiga e obscura do que isso. E, diz a antropóloga argentina Maria Susana Azzi, foi o instrumento de integração cultural do povo argentino. Na Argentina,

aliás, hoje é Dia do Tango.Entre os anos de 1821 e 1914, a Argentina foi o

segundo destino preferencial para a imigração em todo o mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Sub-sidiados pelo governo local, que precisava de mão-de-obra e pretendia "civilizar" e povoar o país, espa-nhóis, franceses, poloneses, muitos judeus e princi-palmente italianos desembarcaram no porto de Bue-nos Aires em busca de um trabalho. Para se ter idéia do tamanho desse fluxo imigratório, segundo o censo de 1887, dos 433.375 habitantes da cidade, mais da metade eram estrangeiros.

Além disso, nos anos 1910, 80% dos trabalhadores do comércio, da indústria e da pecuária não eram nas-cidos no país. Por julgar que os imigrantes estavam tirando seus empregos, os criollos, filhos de espa-nhóis nascidos na Argentina, os desprezavam. Nos lotados cortiços argentinos, os conventillos, onde todos moravam, a miséria juntava-se à animosidade entre os grupos.

Os imigrantes que chegavam às margens do rio da Prata para trabalhar traziam consigo os costumes, cultura e ritmos de seus países. Mas mesmo os casa-dos raramente atravessavam o oceano com uma com-panheira. Ainda segundo o censo de 1887, havia cerca de 53 mil homens a mais do que mulheres em Buenos Aires - ou 78 mulheres para cada 100 homens. Segun-do a professora Rita Laura Segato, do departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, a dife-rença entre o número de pessoas do sexo masculino e feminino motivou o tráfico de mulheres para prostitu-ição.

Em 1930, a organização criminosa Zwi Migdal, que levou para a Argentina cerca de 30 mil garotas,

principalmente polacas, dos países do Leste Europeu, possuía só em Buenos Aires 192 casas de tolerância. Por volta de 1880, num fenômeno que aconteceu ao mesmo tempo em algumas dessas casas e envolto num contexto de sofrimento eternizado anos mais tarde em suas letras, o tango seria gerado.

A origemDevido à discrepância entre o número de homens e

mulheres, os imigrantes e os jovens argentinos, mesmo os mais abastados, visitavam freqüentemente os prostíbulos, principalmente nos bairros periféricos de Las Catalinas, La Boca e Las Barracas. Até nesses locais a quantidade de mulheres era bem menor que a de clientes, o que ocasionava imensas filas. Situação só contornada no dia em que alguém teve a idéia de tocar músicas dançantes para amainar a espera. O pesquisador José Gobello, presidente da Academia Portenha do Lunfardo, identifica um triplo propósito nos cabarés da época.

"Eram lugares adequados para bailar, consumir bebida e eventualmente dormir com alguma das moças." Do encontro da havaneira cubana, da polca da Europa central, do candombe – dança afro-uruguaia – e da espanhola milonga surgia, no fim do século 19, o tango. "Trata-se de uma experiência mul-tivocal que conta a história de pessoas muito diversas. É um integrador cultural, a aceitação da diversidade e a inclusão do marginal dentro do sistema", diz Maria Susana.

Continua...

Tango era tocado durante fuzilamentos em campos de concentração

O gênero marcado pela tristeza foi o instrumento de integração cultural do povo argentino

ARGENTINA

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Filtro 25

Em seus primeiros anos, o ritmo era tocado por um trio - composto por um violeiro, um flautista e um violinista, geralmente todos italianos, nacionalidade da maioria dos imigrantes - de maneira altamente dançante e sem letras. A dança era bem mais rápida que a de hoje, mas, em comum, tinha os passos sensuais. Na década de 1890, surgiram as primeiras letras do gênero, que faziam referência explícita, de maneira chula, às partes íntimas do corpo das prostitu-tas e ao sexo - como "Dos sin Sacar" (duas sem tirar). Já o registro mais antigo do uso do bandoneon, instrumento alemão parente do acordeão e hoje característico do gêne-ro, é de apenas 1899.

Fora da zona do meretrício, nenhuma mulher ousava dançar aquele ritmo. Na época, uma inocente dança entre homens e mulheres abraçados já era considerada pecami-nosa. Mas nem a beatitude nem a escassez de mulheres foram entraves para a realização de bailes populares. Jor-nais e revistas argentinas do fim do século passado, como La Prensa e Caras y Caretas, relatam que os rapazes se encontravam, no cair da noite, no meio das ruas, para dan-çar tango. Eram os chamados bailes callejeros. "Os homens praticavam entre si para treinar. Então, quando chegassem nos prostíbulos, poderiam dançar com as melhores dançarinas", diz Maria Susana.

Só nos primeiros anos do século 20 as letras que acom-panhavam as músicas passaram a ser mais elaboradas. A temática ainda girava em torno das cercanias portenhas e descrevia principalmente os tipos do submundo: o cafetão (ou cafischio), a polaca (lora), o machão (guapo) e o desle-al (malevo). Ainda entre as décadas de 20 e 40, algumas das letras contavam histórias de garotas pobres que, ambi-ciosas, preferiam a prostituição à miséria.

Enquanto a alta sociedade portenha desdenhava voci-ferando "del fango viene el tango" (da lama vem o tango), o ritmo já chamava a atenção dos europeus. Para surpresa dos argentinos mais ricos, que tinham condições de viajar até a Europa, ele havia se tornado, por volta de 1910, a dança preferida na noite parisiense. Segundo José Gobel-lo, o bailarino brasileiro Antonio Lopes de Amorim Diniz, mais conhecido como Duque, criou em Paris, em 1913, a primeira academia séria da dança na Europa: o Dancing Palace.

O arcebispo da cidade, Leon Adolphe, temeroso de que a origem pecaminosa do ritmo influenciasse seus fiéis, pediu ao papa Pio X que o proibisse e excomungasse os bailarinos. Nesse mesmo ano, o dançarino argentino Vasco Ain e uma mulher desconhecida apresentaram o tango ao próprio papa. "Não há registros de como eles dançaram na frente dele. Talvez tenham suavizado um pouco, mas o tango foi absolvido", diz o jornalista e pesquisador de tango Hélio de Almeida Fernandes.

Depois de perceber o quanto os franceses gostavam da música e da dança que tanto desprezava, a alta sociedade portenha mostrou-se mais disposta a aceitá-las. Mesmo assim, quando passou a figurar nos grandes salões porte-nhos, o ritmo já havia sofrido a influência européia. Antes rápido, ágil e repleto de cortes bruscos, o tango tornou-se mais lento e melodioso, exatamente como é hoje.

A história do mitoA música "Mi Noche Triste", executada por Carlos

Gardel em 1917, levaria o tango a um novo patamar. As

letras do primeiro tango-canção ganharam mais importân-cia e a temática deixou de abordar principalmente os tipos marginais para tornar-se mais melancólica e nostálgica. "O tango já era mais do que um ritmo apenas para ser dan-çado. Era a expressão do sentimento argentino", diz José Gobello.

Impossível não se falar de Gardel quando o assunto é tango. Além de cantar, ele estreou no cinema em 1917, com Flor de Durazno. "Nesse filme mudo, a figura dele é um pouco diferente da do galã eternizado no imaginário popular. Ele pesava quase 100 quilos", diz Américo Mez-zatestta, vice-presidente da Associação Gardeliana Argen-tina.

Segundo o estudioso, o homem que cantava músicas populares em prostíbulos, além de ter uma qualidade inter-pretativa incrível, ficou famoso também por ser bem apessoado, humilde, rico e pelo magnetismo fora do comum. "Ele personificou o argentino médio. O povo identificava nele aquilo que poderia ter sido", completa Hélio Fernandes.

Paira uma aura de mistério sobre o cantor. Muito dis-creto quanto à vida pessoal, seu relacionamento mais dura-douro foi com Isabel de La Valle, sua noiva, a quem conhe-ceu quando tinha 34 anos e ela, 14. Até a respeito do lugar em que nasceu há controvérsias. Os uruguaios afirmam que foi em Tacuarembó, no Uruguai, enquanto a maioria dos estudiosos diz que foi em Toulouse, na França. O fato é que, naturalizado argentino, Carlos Romualdo Gardés, como se chamava, deixou um testamento assinado de pró-prio punho e protocolado no qual dizia ser francês.

E tinha passaporte emitido pela França. Com a introdu-ção do som no cinema, o tango e Gardel atingiram novos

horizontes. Gravou outros filmes e mudou-se para os Estados Unidos, em 1933, para filmar quatro longas em nove meses, dentre eles El Día Que Me Quieras.

Além de cantar e filmar, compôs algumas de suas músicas mais famosas, como: "Mi Buenos Aires Querido" e "El Día Que Me Quieras" para o filme homônimo. Aos 44 anos, sua carreira foi interrompida por um choque entre dois aviões no aeroporto de Medellín, na Colômbia. Ao lado de Alfredo le Pera, seu maior letrista, morria, carboni-zado, o homem que ajudou a popularizar o tango. O mito, contudo, continua vivo. Aliás, como gostam de dizer os argentinos, ele canta melhor a cada dia.

A língua do submundoUma das provas da origem marginal do tango é o uso do

lunfardo em suas letras. Na segunda metade do século 19, nos arredores de Buenos Aires, surgiu a forma de falar própria das pessoas que viviam nos ambientes marginais. O lunfardo foi descrito pela primeira vez, em 6 de julho de 1878, no jornal argentino La Prensa, em uma matéria inti-tulada "O dialeto dos ladrões". Com influências de vocá-bulos populares franceses, dos dialetos genovês e cigano, gírias dos imigrantes espanhóis e dos ruralismos do rio da Prata, a lunfa foi rejeitada pela alta sociedade argentina.

Mas encontrou-se com o tango nos bordéis. Em 1943, durante a ditadura militar, o general Pedro Ramírez proi-biu a difusão radiofônica dos tangos que tivessem palavras lunfardas, por serem moralmente repugnantes. O povo, porém, continuou a cantar as músicas na versão original. "O lunfardo é mais do que gíria. É quase uma segunda língua do povo argentino", diz o pesquisador Hélio Fer-nandes.

Carlos Gardel Reprodução

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O jornalista Jacek Hugo-Bader. MATEUSZ SKWARCZEK / AGENCJA GAZETA

Foram alguns meses de tentativas por intermédio, primeiro, da filha, Denize; depois, do filho, João Vicente, até que, em 2010, fosse marcada a

entrevista com Maria Thereza Fontella Goulart, viúva do ex-presidente João Goulart. Segundo o filho, Maria Thereza, que atualmente tem 78 anos, não gosta de dar entrevistas. Mas foi com extrema simpatia que a pri-meira-dama mais bonita que o Brasil já teve recebeu a equipe de Aventura na História, no apartamento de Denize, na zona sul do Rio de Janeiro. Ao lado dos dois herdeiros e das netas Isabela e Bárbara, ela relembrou seu passado e deu vivas ao presente. “Hoje vivo para os meus oito netos”, diz.

Cercada de porta-retratos, a matriarca chamou a atenção para a foto do ex-presidente segurando o neto mais velho, Christopher, no colo, apenas dois meses antes de morrer, em 6 de dezembro de 1976. “Ele mos-trava esse retrato para todo mundo, estava muito feliz por ser avô”, contou ela, sentada ao lado da famosa fotografia em que está junto do marido no comício da Central do Brasil, no Rio, em 13 de março de 1964, poucos dias antes do golpe que depôs Jango e instaurou a ditadura militar no Brasil.

Nessa entrevista, Maria Thereza rememora o início do namoro com Jango, ainda na adolescência, quando tinha apenas 14 anos. Revela que ele morria de ciúme dos namorados da filha, fala da solidão do marido no exílio e comenta as vezes que ela própria foi presa no exterior e no Brasil. Durante o encontro, ela não quis falar a respeito das circunstâncias da morte do ex-presidente, porque o assunto a deprime. Só admitiu a dúvida sobre a causa mortis do marido em outra oca-sião, por telefone. Foi nesta segunda longa conversa com a repórter que ela fez as confissões que nessa matéria.

AH – O que a senhora mais lembra do comício da Central do Brasil?

Maria Thereza – Participei de outros comícios, na campanha de 1962, mas aquele foi o comício das refor-mas de base, um marco daquele momento da política nacional. Até me assustou de tão grande, tão intenso. Eu sabia que era um momento difícil, havia avisos de atentados. O médico dele tinha proibido aquele comí-cio, Jango tinha problemas no coração. Os militares já haviam tentado negociar o fechamento do Congresso e a prisão de líderes sindicais e políticos em troca de se manter no poder. Mas meu marido era um democrata, nada o faria se afastar de seus princípios. “Presidência é destino”, ele dizia. Preferiu cair, mas cair de pé. Esse dia, o do comício, eu vou levar comigo para sempre. Foi ali que aprofundei minha admiração pelo caráter do meu marido, que entendi que o Brasil o merecia. Foi ali que ele se tornou um mártir da democracia no nosso país.

Como foi aquele 31 de março de 1964?Foi um dia difícil. Não somente para nós, mas para

todo o povo brasileiro. Meus filhos não sentiram de perto, eram pequenos. Somente mais tarde entenderam a situação difícil, principalmente para seu pai. Cresce-ram no exílio, em outras terras, longe dos amigos e de sua pátria.

De que forma o exílio os abalou?Para Jango, que dedicou a vida a uma causa, o des-

terro foi a solidão. Ele teve que conviver com isso até a morte. Até hoje não consigo passar perto daquela ponte em Uruguaiana [na fronteira do Brasil com a Argenti-na]. Lembrar-me de meu marido passando ali dentro do caixão me traz à memória velhas imagens difíceis de recordar. Para mim o exílio foi mais ameno. Eu tinha que me dedicar aos meninos. Não senti tanto. Meus parentes iam me visitar, as irmãs de Jango tam-bém. Amigos, só os políticos exilados lá, Darcy Ribei-ro, Waldyr Pires... Formamos uma tribo de exilados. E

fomos bem acolhidos pelo povo uruguaio, que tinha orgulho de ter dentro de seu país o presidente do Brasil. O Uruguai se tornou nossa segunda pátria.

Como era a vida no exílio?Jango dizia uma frase que a gente lembra sempre:

“O exílio é uma invenção do demônio”. No começo, a tranquilidade democrática do Uruguai nos protegeu e nos sentimos em paz. Mas os golpes sucederam-se em outros países latino-americanos, inclusive no Uruguai. A perseguição tornou-se então implacável.

Por que a senhora foi presa?Fui presa em tudo quanto é lugar, Uruguai, Argenti-

na, Brasil... Na primeira vez fiquei detida três dias no Uruguai. Lá existia a Lei da Veda, que proibia durante 15 dias de cada mês o comércio e o consumo de carne, para sobrar mais para a exportação. Meu marido tinha um frigorífico em Maldonado. Uma vez fui da fazenda para Montevidéu com 6 quilos de carne no carro, colo-cadas por um empregado. Passava de meia-noite e poli-ciais me mandaram parar: “O que tem aí?”, pergunta-ram, armados. “Nada”, eu disse. Mas viram a carne. Fiquei num posto da polícia em La Floresta. Já era época da ditadura. Da outra vez, no Uruguai, fui levar uma amiga da minha filha, Denize, em casa, e me pararam. Tinha esquecido os documentos em casa, aí me levaram para a delegacia. Foi rápido, um dia só. Na Argentina, um amigo foi preso e estava dirigindo um carro no meu nome. Fui chamada e passei algumas horas detida. No Brasil foi pior. Foi por ser mulher dele. Em 1970, época mais complicada da ditadura, meu pai estava muito doente. Vim visitá-lo. Viram meu nome no passaporte e me prenderam. Passei por mui-tos interrogatórios, “tira a roupa, bota a roupa, tira a roupa, bota a roupa”. Fiquei três dias incomunicável.

Continua...

TODAS AS VEZES EM QUE A EX-PRIMEIRA-DAMA MARIA THEREZA FONTELLA GOULART FOI PRESA

Maria Thereza e João Goulart Foto:Reprodução

ENTREVISTA

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Mas a senhora foi torturada?Não tocaram em mim. Tortura, só mental. Mas foi

muito cruel. Muito.

Vocês achavam que voltariam logo para o Bra-sil?

Certa vez Jango me disse: “Teca (era assim que ele me chamava desde que me conheceu), às vezes acho que tu vais voltar para o Brasil viúva e avó”. Foi o que aconteceu!

Como era o Jango marido e pai?Ele era supercarinhoso com os filhos. Um amigo na

época até comentou: “Já reparou como toda vez que o Jango está com os meninos abre sempre um sorriso enorme?” Ele era grudado com o João Vicente. E com Denize, depois que ela ficou mais velha, ele era muito ciumento. Não conheceu um namorado dela, não admitia! Ele não era nada romântico. Até mandava flores, dava presentes, me elogiava... Mas tinha aque-la coisa do gaúcho de determinar como as coisas deve-riam ser. Era muito conservador.

Quando a senhora voltou para o Brasil?Dia 6 de dezembro de 1976, para enterrar meu mari-

do. De vez, só em 1980.

É verdade que a senhora teve que lutar para receber pensão?

Sim, foram 12 longos anos. Entrei na Justiça junto com dona Sarah e com Yolanda [Kubitschek] [Costa e Silva]. Há seis anos consegui começar a receber.

Durante o exílio, seus bens foram confiscados? Seus objetos foram recuperados?

Os bens patrimoniais do meu marido foram confis-cados por meses, até terminarem os inquéritos instau-rados pelos militares. Tiveram que lhe devolver tudo. Jango nunca teve empresas ou ações em seu nome ou no de terceiros. Como ele disse numa entrevista, “po-dem investigar à vontade, pois meu patrimônio é lím-pido como o céu do Rio Grande”. Sua declaração de renda sempre foi na pessoa física. O mais hilário nos processos de malversação de fundos contra ele, que ainda respondia quando morreu, é uma parte sobre mandar pintar nosso apartamento com em torno de 30 litros de tintas Novocap. Isso é que é corrupção, né? Não tinham nada para falar dele. Agora, os meus per-tences sumiram todos: carro, joias, roupas... Viajei com meus filhos para o exílio com pouco mais que a roupa do corpo. Perdi tudo, nunca mais tive notícia de nada.

A senhora gosta de ser lembrada como a primei-ra-dama mais bonita do Brasil?

Quando a gente é jovem, tudo é bonito. O governo era formado por homens muito jovens, era cheio de glamour. Jango era um homem lindíssimo! Waldyr Pires, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, todos eram boni-tos. Era um governo de gente jovem.

Mas e a senhora, dona Maria Thereza?Olha, eu era muito jovem... É claro que me sentia

lisonjeada com os elogios. Imitavam meu penteado,

aquele coque, então... Como eu já disse antes, o Brasil vivia um momento de mudanças na moda, cinema, música... Eu procurava estar à altura de meu marido, que tentava mudar o país.

Jango completaria 89 anos dia 1º de março. Como a senhora imagina que ele avaliaria o Bra-sil?

Com tristeza, sem dúvida. O Brasil que ele sonha-va era justo e solidário. Talvez seja possível, mas ainda está longe de ter oportunidades para todos, de maneira igual, como ele imaginava.

Na época do golpe, Jango chegou a ser informa-do da presença da CIA no Brasil?

Esse é o meu grande desafio, dos meus filhos e dos meus netos, para contar e recontar essa triste passa-gem de nossa história, para restaurar a verdade dos fatos. A grande atitude de Jango foi não ter resistido ao golpe. Ele não quis derramar sangue dos irmãos brasi-leiros para se manter no poder. Ele sabia que existia uma frota americana em águas brasileiras, equipada com armas, mísseis e marines. Certamente não era para proteger meia dúzia de cidadãos americanos na embaixada. A esquerda radical o chamava de titube-ante e a direita, de despreparado. Ele foi, isso sim, um mártir da democracia. Teve peito e consciência para trazer para si o ato de não resistir. Foi o único presi-dente a morrer no exílio sem trair suas convicções democráticas. Sou orgulhosa dele!

A senhora começou a namorar Jango aos 14 anos. Ele já era ministro do Trabalho. Como foi isso?

Isso dá um filme. Eu morava do lado dele, em São Borja, mas só o conhecia de ouvir falar e ver de longe. Ele já era um político importante, uma personalidade. Minhas amigas comentavam, “oh, como ele é lindo!” Foi quando, a pedido de um amigo comum das famíli-as, fui à casa amarela, onde os Goulart moravam, entregar uma carta para ele. Ele perguntou: “Como é que eu nunca tinha visto uma moça tão bonita tão

perto da minha casa?” Foi aí que o conheci, mas só começamos a namorar depois, em Porto Alegre, onde eu estudava. Minha tia era casada com um irmão do doutor Getúlio , o Spartaco. Eu era interna no [Vargas]colégio e só tinha autorização para ir à casa dela. Quan-do ela se mudou para o Rio, passei a ter autorização para ir à casa de um outro político, que o Jango tam-bém freqüentava. Os encontros aumentaram e surgiu o namoro. Quando ele ia ao meu colégio, minhas ami-gas ficavam de longe: “Aí vem o homem, aí vem o homem!” Ele ficou sendo “O Homem”. Nós tínhamos uma parede onde colamos fotos de Gregory Peck, Elvis Presley... Aí elas colaram a dele! Dancei a valsa com ele na minha festa de 15 anos, no Rio de Janeiro. Já namorávamos. Na primeira e memorável campa-nha a vice-presidente da República, nos casamos. Eu já tinha 17 anos. Naquela época se votava separada-mente para presidente e para vice.

Quando a senhora soube que seu marido assu-miria o país, tinha noção do que era ser primeira-dama e das obrigações do presidente?

Jango sempre dizia que a presidência da República não era vontade, e sim destino. É bom que eu repita isso, porque naquele momento ele exercia pela segun-da vez – relembro às novas gerações, pela segunda vez eleito com toda a legitimidade constitucional – sua tarefa de vice, havendo inclusive derrotado o sena-dor Milton Campos, que era o candidato da chapa do Jânio. Era presidente do PTB, que elegera a maior bancada do Congresso Nacional. Naquele momento, mesmo jovem, me preparei para estar sob os holofo-tes, que viriam a ficar ainda mais fortes sobre a mulher de um presidente jovem e nacionalista. Jango repre-sentava o pedido das classes populares de transforma-ção, mudança, esperança de um país jovem que dese-java sua emancipação. Isso era uma coisa muito importante na personalidade dele, e eu gostava muito disso. Ele era uma pessoa profundamente preocupada com a área social, com coisas das quais se fala até hoje. Isso me encantava.

Maria Thereza Fontella Goulart Reprodução

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O primeiro choque que eu tive aconteceu nos Jogos Olímpicos de Atenas. Ganha-mos sunkini e maiô para competir. Quan-

do saímos do treino, em uma piscina aberta, a bunda da minha amiga estava estampada em close no telão. No outro dia, ficamos preocupa-das em ir até a borda da piscina enroladas em uma toalha para jogá-la rapidamente antes de pular na água. Essa não é uma preocupação que deveríamos ter às vésperas dos Jogos Olímpicos. Não é uma preocupação que os homens têm, se a sunga está mais ou menos cavada.” Apesar de ser uma das nadadoras com a melhor posição em olimpíadas dos últimos tempos, Joanna Mara-nhão não está livre de um dos preconceitos mais comuns entre as competidoras: ser mulher.

A atleta começou a nadar aos 3 anos de idade e logo foi tomada pelo mundo das competições. Aos 17 anos, participou dos Jogos Olímpicos de Atenas e terminou a prova dos 400 metros med-ley em quinto lugar, posição que não era alcança-da desde 1936. A pernambucana também partici-pou de outras quatro olimpíadas e levou oito medalhas nos quatro Jogos Pan-Americanos que participou, além de ter batido quarenta recordes brasileiros em piscinas longas e curtas. Presente na última edição do evento Mulheres do Mundo, que aconteceu em novembro no Rio de Janeiro, Joanna contou que cresceu cercada por valores machistas e que precisou superar muitas barrei-ras dentro do esporte.

Desde pequena, a nadadora disse que sempre ouviu que precisava treinar como homem para chegar a algum lugar e que associava isso a trei-

nar com força, tolerar dor e ser resiliente. “Aca-bou que me tornei a Joanna que treina mais que muito homem. Foi então que comecei a compre-ender que não treino como homem. Treino como Joanna. E isso não tem relação com gênero. Mui-tos homens que treinam comigo não conseguem me acompanhar”, contou.

Joanna se considera fruto do patriarcado e afirmou que foi criada dentro de uma sociedade machista, que sempre estipulou padrões especí-ficos sobre o que é ser mulher e, principalmente, sobre ser mulher atleta. “Antes de me considerar uma feminista, eu me considero uma machista em desconstrução”, contou. “Eu fui percebendo que tinham coisas dentro daquela caixinha em que eu não me encaixava, até por ter sido abusa-da sexualmente, e que estava tudo bem não me enquadrar naquele modelo.”

Aos 9 anos, a nadadora foi abusada pelo trei-nador do clube onde treinava, o que atrapalhou seu desempenho nas competições. Por um tem-po, Joanna disse que sua vaidade e feminilidade foram prejudicadas, além de suas relações amo-rosas. “Hoje, eu poder ser mulher e colocar mega hair, unha em gel, usar salto e maquiagem, para mim é uma libertação.” Para a competidora, toda mulher tem uma história de resistência simples-mente por ser mulher e cada uma precisa se encontrar dentro da própria história. É preciso sair da mesma “caixinha” em que todas são colo-cadas socialmente.

No esporte não é diferente. “As pessoas que-rem nos robotizar. Atleta acorda, treina, come e dorme. E não é isso. Eu tenho tempo de treinar e

dormir, mas posso ler sobre política, posso falar sobre ser mulher, e isso não quer dizer que vou ser uma boa ou má atleta.” Atualmente, a nada-dora se recusa a ser colocada na mesma padroni-zação feminina imposta pela sociedade e, princi-palmente, pelo mundo esportivo. “Antes de ser atleta, eu sou uma mulher livre, que pode falar e ser o que quiser.”

De acordo com o estudo Beyond 30 per cent: workplace culture in sport (Além dos 30%: a cultura do local de trabalho no esporte ), reali-zado pela ONG britânica Women In Sport, cerca de 40% das mulheres envolvidas no universo esportivo já sofreram algum tipo de discrimina-ção de gênero. O estudo foi realizado entre setembro de 2017 e março de 2018 e ouviu 1152 homens e mulheres. Dentre estes, 30% das mulheres disseram já ter sido alvo de comporta-mentos inapropriados do sexo oposto no ambi-ente de trabalho. Esse número cai para 10% entre os homens. Além disso, 40% das mulheres acre-dita que o próprio gênero contribui para a desva-lorização de suas carreiras esportivas.

A ex-judoca Tuany Siqueira contou que no judô feminino não há tanto preconceito quanto no jiu-jitsu, já que o esporte passou a integrar mais as mulheres depois de 1992. “Mas o pre-conceito por ser mulher está dentro do próprio clube, do ambiente dos judocas. As pessoas dizem: 'Você vai virar menino, vai virar macho'. E daí?”, questionou a atleta. “Minha família às vezes questionava: 'Por que você não faz balé?

Luta não é para menina'”. ̈ ¨¨

JOANNA MARANHÃO "ANTES DE SERATLETA, EU SOU UMA MULHER LIVRE"

PRECONCEITO

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Estará o presidente eleito disposto, se Deus ou a Justiça humana pedir, a sacri-ficar seu filho em nome do compromisso

de fé com seus eleitores?O novo presidente do Brasil, o capitão refor-

mado Jair Bolsonaro, não é só o homem da bala, mas também o da Bíblia. Fez-se batizar na Terra Santa, nas águas do Jordão, as mesmas em que João Batista batizou Jesus. Não esconde ser crente e costuma erguer em suas mãos, junto da Constituição, o livro das Sagradas Escrituras. Quando ainda era deputado no Congresso, afir-mou que o Brasil não é um Estado laico, e sim cristão, e muitos dos que o seguem apoiam uma teocracia como a melhor forma de governo para este país.

Conhece-se de Bolsonaro sua fé nas armas como antídoto contra a violência no Brasil, que ceifa mais vidas que nas guerras em curso no mundo. Junto ao sinal da cruz dos cristãos, seu gesto preferido é o da mão imitando o disparo de um revólver. Durante sua campanha eleitoral que lhe concedeu 57 milhões de votos, o candi-dato à presidência da República manifestou três

grandes atos de fé pessoal e política: fé em livrar os brasileiros das garras da violência que os gol-peia e atemoriza; fé em recuperar a economia em crise, que está devolvendo milhões de famí-lias à pobreza e até à miséria; e, por fim, fé na luta sem trégua contra a corrupção política e empresarial.

Como homem da Bíblia, Deus pôs Bolsonaro perante uma prova de fogo com motivo do suposto escândalo de corrupção que atinge seu filho Flávio através de um de seus assessores. Algo que lhe deve ter feito recordar um dos epi-sódios mais enigmáticos e emblemáticos com que Javé quis provar a fé do patriarca Abraão, considerado como o “pai dos crentes”. Pediu-lhe, como prova de sua fé, que sacrificasse seu filho Isaac. É talvez a cena mais horripilante de todo o Antigo Testamento, narrada em Gênesis, 20. Abraão se encontrou frente ao dilema de oferecer a Deus o sacrifício do seu filho, que além do mais era inocente, ou quebrar seu pacto de fé nele. Escolheu ser fiel a Deus e decidiu sacrificar o seu “filho amado”. Deus premiou sua fé, e um anjo deteve seu braço antes da exe-cução.

Bolsonaro está sendo posto à prova pelo Deus da Bíblia. Pede-lhe que, se for preciso, sacrifique seu filho Flávio ao invés de profanar sua fé na luta contra a corrupção, que ele jurou pôr acima de tudo. Como garantia de seu empe-nho, convidou para ser ministro o mítico fusti-

gador da Lava Jato, o duro juiz Sérgio Moro. O presidente da Bíblia sabe que seu compromisso contra a corrupção foi fundamental para sua eleição. Quebrá-lo, antes ainda de tomar posse do cargo, equivaleria a uma traição sua a milhões de seguidores.

Tanto sabe disso que, na quarta-feira passa-da, dirigindo-se como de costume à sociedade através das redes sociais, o capitão confessou que não está disposto a ser “condescendente com nenhum erro”, custe o que custar. Confessa que “lhe dói o coração”, mas que “nem com ele nem com seu filho” pode ser "condescendente com o erro”. E isso porque, como para Abraão sua fé em Javé era inquebrável, a ponto de estar disposto a sacrificar seu filho, para Bolsonaro, afirmou ele, “o que há de mais firme é o combate à corrupção”, que havia sido um pacto de fé com seus eleitores.

Estará Bolsonaro, o presidente da Bíblia, dis-posto, se Deus pedisse, ou melhor, se a Justiça, desta vez a humana, pedisse, a sacrificar seu próprio filho em nome de seu compromisso de fé com seus eleitores? Ou espera que, como com Abraão, Deus acabe lhe fazendo o milagre de não precisar sacrificar o seu filho? A Bíblia, o talismã sagrado dos seguidores de Bolsonaro, colocou o novo presidente não só frente a um dilema bíblico, mas também diante de um ham-tletiano ser ou não ser fiel a suas promessas e a sua consciência.

JUAN ARIASEL PAIS

Jair Bolsonaro ao lado do filho Flávio no dia da votação da última eleição, em 7 de outubro. SILVIA IZQUIERDO AP

Estará o presidente eleito disposto, se Deus ou a Justiça humana pedir, a sacrifi-car seu filho em nome do compromisso de fé com seus eleitores?

O Bolsonaro da Bíblia frente ao dilemade Abraão de sacrificar o seu filho

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