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Filtro Filtro Dezembro de 2018 ANO I Nº 06 Compilações Selecionadas 38 ANOS SEM JOHN LENNON >06 OS GENERAIS DE BOLSONARO >03 Roosevelt sabia do ataque? PEARL HARBOR, 77 ANOS >10 John Lennon foi assassinato em 8 de dezembro de 1980 Os militares que estarão no coração do poder

Dezembro de 2018 Filtr Setembro de 20ooANO I Nº 0518 · Maggi da campanha do PSL e, até mesmo, ... Cruz viu a fama crescer quando chefiou a tropa interna-cional da missão de paz

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FiltroSetembro de 2018

ANO I Nº 05

FiltroDezembro de 2018

ANO I Nº 06

Compilações Selecionadas

38 ANOS SEM JOHN LENNON>06

OS GENERAIS DE BOLSONARO

>03

Roosevelt sabia do ataque?PEARL HARBOR, 77 ANOS

>10

John Lennon foi assassinato em 8 de dezembro de 1980

Os militares que estarão no coração do poder

FiltroO2

FiltroEditor: Luiz Sergio Castro

Leonencio Nossa, O Estado de S. Paulo

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, decidiu cortar da lista de possíveis ministros o senador e candidato der-

rotado à reeleição Magno Malta (PR-ES) após receber informações de que o aliado fez viagens para aproximar o empresário Eraí Maggi da campanha do PSL e, até mesmo, usar sua proximidade para defender nomes que poderiam compor um eventual governo.

Pelos dados recebidos por Bolsonaro, Maggi teria colocado à disposição do sena-dor um jatinho particular para alguns deslo-camentos e ainda abriu sua fazenda para encontro com ruralistas.

Em conversas com aliados, Bolsonaro chegou a avaliar também uma entrevista dada pelo cobrador Luiz Alves de Lima, de Vitória, que foi preso e sofreu tortura depois de ser acusado de pedofilia por Malta em 2010. Anos depois, a Justiça absolveu Alves.

Na quarta-feira, 5, Bolsonaro disse que o perfil do senador “não se enquadrou” no futuro ministério, mas que ele ainda poderia estar “em outra função”.

M a l t a n ã o r e g i s t r o u deslocamentos em j a t i n h o s d o empresário nas p r e s t a ç õ e s d e conta ao TSE. Ele disse ter gasto na

campanha R$ 163 mil em veículos, R$ 50 mil em combustível e R$ 273 mil em carros de som. Ao Estado, o senador informou que não participou “da negociação, contratação e pagamento de aeronave”. Segundo a assessoria, a aeronave foi contratada pelo Podemos de Mato Grosso.

A relação de Bolsonaro e Malta era próxima até o resultado do segundo turno das eleições. O senador chegou a receber o convite de Bolsonaro para fazer uma oração de agradecimento pela vitória nas urnas.

A família do presidente eleito, porém, r e c l a m a v a q u e M a l t a n ã o t e v e sensibilidade ao entrar no quarto em que Bolsonaro estava internado – após ter sido vítima do atentado a facadas – para fazer imagens. Numa das fotos, quem aparece ao lado de Bolsonaro é Maggi, levado pelo senador. Foi quando começou a circular a possibilidade de o deputado e candidato derrotado ao Senado Adilton Sachetti (PRB-MT) assumir a pasta da Agricultura num eventual governo. Próximo a Maggi, Sachetti era um nome negociado por Malta para o ministério sem aval de Bolsonaro. / COLABORARAM TÂNIA MONTEIRO E BRENO PIRES

VIAGEM EM JATINHO TIRA PASTA DE MALTASenador saiu da lista de ministeriáveis após o presidente eleito, Jair Bolsonaro, receber informações de que ele viajou em aeronave de empresário sem informar à Justiça Eleitoral

GOVERNO BOLSONARO

Filtro 03GOVERNO BOLSONARO

Por Jailton de Carvalho - Fonte: Época

Os generais Mourão, Santos Cruz e Heleno vão ocupar lugares estratégicos na configuração do Palácio do Planalto. O almirante Bento Costa

Lima Leite de Albuquerque Junior foi anunciado nesta sexta-feira (30) para o Ministério de Minas e Energia.

Em junho, quando o cenário eleitoral ainda estava indefinido, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz deixou discretamente o comando da Secretaria Nacio-nal de Segurança Pública para mergulhar na campanha do capitão da reserva Jair Bolsonaro, visto por muitos naquele momento como um azarão. Neste mês, na segunda-feira dia 26, o agora presidente eleito anunciou num inesperado tuíte que Santos Cruz será o futuro chefe da Secretaria de Governo, um dos dois cargos mais importantes na estrutura da Presidência da Repú-blica. Caberá ao general gerenciar os ministérios e fazer a interlocução do futuro governo com os grupos da soci-edade civil.

Santos Cruz será o terceiro general com um lugar estratégico na próxima configuração do Palácio do Planalto — os outros dois confirmados serão o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno. Para a Esplanada dos Ministérios, mais um militar foi nomea-do nesta sexta-feira (30). Bolsonaro anunciou pelo Twit-ter – como tem divulgado seu ministério – o diretor-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha, almirante Bento Costa Lima Leite de Albu-querque Junior, para Minas e Energia. É o primeiro nome da Marinha para uma pasta.

A ascensão de Santos Cruz ao coração do poder foi uma surpresa, porque ele havia sido convidado pelo ex-juiz Sergio Moro a voltar à Secretaria de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Por que Bolsonaro escolheu esse general para ocupar um cargo político como a Secretaria de Governo? Para ex-colegas de caserna, essa dúvida não existe. Santos Cruz se creden-ciou a um gabinete no Planalto pelo extenso currículo internacional, pela proximidade com o presidente eleito

e, sobretudo, porque seu histórico pessoal coincide com o perfil de austeridade e dureza que Bolsonaro idealiza para o governo.

Tido como um linha-dura entre os linhas-duras do Exército, o general é quase uma lenda entre os militares das três Forças, sobretudo entre os mais jovens. “Ele é faca na caveira”, resumiu um militar a uma assessora do governo quando o general retornou ao Brasil, depois de passar dois anos — entre 2013 e 2015 — como chefe da missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) na República Democrática do Congo. “Ele não tem medo de matar ou morrer quando está em ação. Sabe que isso faz parte do trabalho. Ele é simplesmente pragmático”, explicou um oficial experiente, que conhece bem a carreira de Santos Cruz.

Com a imagem de homem simples e rigoroso, Santos Cruz viu a fama crescer quando chefiou a tropa interna-cional da missão de paz da ONU no Haiti, entre 2007 e 2009, num dos períodos mais críticos de um país arrasa-do pela extrema pobreza, por desastres naturais e por conflitos de grupos políticos e gangues armadas. Num dos momentos mais tensos, a casa onde o general mora-va foi cercada por uma gangue. Ele sacou uma arma e rechaçou os inimigos a bala. “Quantos morreram?”, perguntou um oficial tempos depois, ao ouvir o relato. “E você acha que eu fui lá fora contar?”, retrucou Santos Cruz.

O episódio foi narrado a ÉPOCA por dois oficiais. Um ex-colega de Exército disse que o general teve de partir para o tudo ou nada porque do outro lado estavam criminosos a serviço de grupos empresariais contrários à presença forte da ONU no Haiti. Seriam integrantes de quadrilhas similares ao Primeiro Comando da Capital (PCC) no Brasil. Segundo o oficial, esse tipo de embate não é incomum nas ruas de Porto Príncipe. No Congo, onde chefiou uma missão de mais de 20 mil militares de vários países, o general testou sua coragem num grau de risco ainda mais elevado. A situação era tão complicada que, pela primeira vez, a ONU autorizou uma missão de paz a fazer a guerra, caso fosse necessário. E foi isso que aconteceu. Em alguns casos, as tropas de paz tiveram de

entrar em combate com grupos armados.Numa das operações, em maio de 2015, o helicópte-

ro onde estava o general foi atacado a tiros e teve de fazer um pouso forçado. O risco de morte não abalou o comandante. “Essas coisas fazem parte do trabalho. O fato de termos sido atingidos mostrou que estávamos perto do local onde(os grupos armados) se escondiam. O nível de emoção não tem importância”, minimizou Santos Cruz numa entrevista pouco depois de sobrevi-ver ao ataque.

O lado impetuoso do general também pesou em sua decisão de deixar repentinamente a Secretaria de Segu-rança para se engajar na campanha de Bolsonaro. No comando da Secretaria, Santos Cruz defendia que as tropas militares subissem os morros do Rio de Janeiro, sob intervenção federal, e se necessário partissem para o confronto armado com criminosos, com liberdade inclusive para matar. O ministro da Segurança, Raul Jungmann, discordou, com o argumento de que con-frontos de militares nos morros poderiam gerar forte reação. Insatisfeito, Santos Cruz se manteve em silên-cio, mas pediu o boné e foi fazer fileira nas hostes de Bolsonaro. “Não me sinto confortável aqui”, desabafa-ra o general a um amigo.

Como secretário de Governo, ocupará um cargo um degrau acima dos demais ministérios da Esplanada. Amigo de Bolsonaro desde que participaram juntos de competições de pentatlo nos anos 80, Santos Cruz será um dos principais conselheiros do presidente eleito. O núcleo de apoio militar a Bolsonaro no Planalto ainda é reforçado por outros dois generais linha-dura: o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o futuro ministro do GSI, Augusto Heleno. Mourão e Augusto Heleno se destacaram ao fazer, quando ainda estavam na ativa, duras críticas ao governo da ex-presidente Dilma Rous-seff. Os dois tornaram pública uma forte insatisfação de setores das Forças Armadas com os governos do

PT.¨¨¨

CORAÇÃO DO PODER DO GOVERNO BOLSONARO

Os "facas na caveira" que farão companhia a Bolsonaro no Planalto: Santos Cruz (ao centro), Mourão (à esq.) e Augusto Heleno Foto: André Horta/Fotoarena, Leo Martins e Adriano Machado / Agência O Globo e Reuters

QUEM SÃO OS MILITARES QUE ESTARÃO NO

FiltroO4

João Fellet - da BBC News Brasil

Encontrei pela primeira vez a haitiana Nadi-ne Taleis ao visitar um abrigo improvisado para refugiados e imigrantes em Brasileia

(AC), na fronteira do Brasil com a Bolívia, em 2013.

Fazia dois meses que Nadine dividia com outras 1.300 pessoas aquele espaço, um ginásio com dois banheiros que comportava não mais do que 200. Amontoados em colchões cercados por um esgoto a céu aberto, eles aguardavam a documentação para viajar a outras partes do Brasil ou torciam para ser recrutados por empresários que visitavam o local atrás de trabalhadores braçais.

Franzina e cega, Nadine havia sido rejeitada em todas as seleções. Sua esperança era arranjar um emprego como massagista, ofício aprendido anos antes na República Dominicana, para onde fugiu após

o terremoto em 2010 que devastou o Haiti.Passados cinco anos de nosso encontro, Nadine,

hoje com 35 anos, acaba de se formar na faculdade de Direito, foi aprovada no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), está a caminho de se naturali-zar brasileira e pretende prestar concurso para juíza.

"Aquele momento no abrigo foi o segundo terre-moto na minha vida", ela recorda em entrevista à BBC News Brasil. As condições em Brasileia haviam feito o governo do Acre decretar estado de emergência.

Para estar ali, Nadine havia voado da República Dominicana para o Equador e, de lá, viajado de ônibus até a fronteira do Brasil com o Peru - rota percorrida por milhares de estrangeiros que buscavam o Brasil naqueles anos, quando a economia crescia e o futuro do país parecia mais promissor.

Ao ingressar no país, porém, chocou-se com as dificuldades impostas aos recém-chegados.

"Não pensei que situação fosse ficar tão precária no Acre. Mas aprendi muito ali, me ajudou muito a crescer."

A sorte da haitiana começou a mudar quando um funcionário do abrigo lhe pôs em contato com parentes que viviam no Distrito Federal - onde, segundo ele, Nadine teria mais oportunidades e poderia até realizar o dese-jo de cursar uma faculda-de.

Chamou a atenção do homem a facilidade da haitiana com línguas: além do creole e do fran-cês, idiomas oficiais do Haiti, ela falava espanhol - idioma da República

Dominicana - e tinha boas noções de inglês, que aprendera ao trabalhar num call center.

Ela aceitou a sugestão do funcionário e partiu para o Distrito Federal atrás da família. Foi tão bem recebi-da que logo passou a se referir a seus anfitriões, o casal Carlos e Loide Wanderley, como pai e mãe.

"Sem eles, teria sido muito difícil conquistar o que conquistei", afirma.

Os pais biológicos da haitiana morreram quando ela era menina. Segundo Nadine, seu pai, que era polí-tico, foi assassinado por opositores. A perda fez com que a mãe ficasse deprimida e morresse menos de um ano depois.

Ela foi criada por um avô, morto em fevereiro deste ano, e hoje mantém contato com poucos parentes dis-tantes que moram na República Dominicana.

Sem dinheiro para comerFoi com o dinheiro que sua mãe brasileira lhe dava

para comer e alugar uma quitinete que Nadine pagou as primeiras mensalidades do curso de Direito da Faculdade Mauá, na cidade-satélite de Vicente Pires.

No início, assistiu às aulas sem que os pais adoti-vos soubessem, pois não queria que se sentissem pres-sionados a ajudá-la com os custos. "Não gosto de pedir, de ser vista como coitada."

Nadine diz que passou dias sem comer nada para economizar. Ela só enchia o estômago aos domingos, quando os pais lhe traziam comida ao buscá-la para o culto no Ministério Grão de Mostarda, igreja evangé-lica frequentada pela família e que ela também ado-tou, embora seja adventista.

Logo, porém, a direção da faculdade se impressio-nou com a história de vida da haitiana e resolveu lhe oferecer uma bolsa integral, além de um estágio na própria instituição.

Continua...

IMIGRANTE HAITIANA CEGA É APROVADA NA OAB, E QUER VIRAR JUÍZA

Nadine com sua 'mãe' brasileira, Loide Wanderley, na formatura da faculdade de Direito, onde ganhou bolsa integral

Condições do abrigo de imigrantes em Brasileia fizeram o governo do Acre decretar estado de emergência

SUPERAÇÃO

Filtro 05

Só então ela contou à família brasileira que esta-va fazendo o curso - e deixou de passar fome para cobrir as mensalidades.

Com apenas 15% da visão, Nadine gravava todas as aulas e estudava com o auxílio de um pro-grama de computador que lia os livros para ela.

Ela diz que uma única vez sofreu racismo e xenofobia na faculdade, mas prefere não dar deta-lhes da ocasião porque não gosta de se "colocar como vítima" e porque o episódio teria sido um ponto fora da curva.

"Minha cor é muito bonita, mas infelizmente há pessoas que acham que negros e brancos são dife-rentes. Essas pessoas são doentes, elas é que são as vítimas."

Nadine diz que sua maior dificuldade no cotidi-ano era realizar provas, quando dependia de cole-gas que lessem as perguntas.

"Se tiver uma vírgula e a pessoa não der a ênfase certa, você erra a questão." Ela respondia as pro-vas oralmente ou no computador.

Apesar dos desafios, foi aprovada em todas as disciplinas e começou a se preparar para o exame da OAB de junho deste ano.

Como era a primeira vez que faria o exame, sabia que havia boas chances de ser reprovada. Em 2017, um estudo da Fundação Getúlio Vargas apon-tou que 75% dos bacharéis em Direito faziam três exames até serem aprovados.

Em 2015, quando voltamos a conversar para uma nova reportagem à BBC News Brasil, Nadine

me disse que pretendia se tornar diplomata.Hoje ela diz que a situação no país natal piorou

tanto que perdeu a vontade de voltar. Em 2017, uma missão militar da ONU no Haiti (Minustah) chefia-

da pelo Brasil foi encerrada após vigorar por 13 anos.

"Mesmo na época da Minustah, os bandidos mandavam", diz Nadi-ne. "Agora é ainda pior, e os bandi-dos estão mais armados que a polí-cia."

Os planos de se naturalizar brasi-leira e de trabalhar como advogada são condições para que ela possa alçar voos ainda mais altos.

Daqui a alguns anos, Nadine quer prestar concurso para a Advogacia-Geral da União (AGU), onde espera adquirir a experiência necessária para seu objetivo maior: tornar-se juíza.

Ela diz ter como exemplo na carreira o ex-juiz - e futuro ministro da Justiça - Sérgio Moro, que julgou boa parte das ações da Operação Lava Jato na pri-meira instância.

"Quando você é juiz, você não consegue satisfa-zer todos, mas tem de ter coragem para encarar. Sér-gio Moro tem coragem", opina.

Sobre a vitória de Jair Bolsonaro, prefere não opinar.

"Não tenho preferências políticas. Se o Bolsona-ro fizer o Brasil crescer, para mim será bom."

Nadine diz ter sido pega de surpresa pela crise econômica em que o Brasil mergulhou poucos anos após sua chegada. Ela conta que chegou a questio-nar a decisão de se mudar para o país.

«Acho que eu teria mais oportunidades se tives-se migrado para os Estados Unidos ou para o Cana-dá, mas aqui eu tenho amizades, aqui eu ganhei uma família. E isso vale mais do que qualquer

coisa."¨¨¨Nadine passou três meses em abrigo superlotado de imigrantes no Acre logo após chegar ao Brasil, em 2013

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Lennon saiu dos Beatles e gravou canções enga-jadas. Mas foi assassinado quando a única paz que buscava era a de ser um homem comum

Em julho de 1971, o músico inglês John Lennon e sua esposa, a artista plástica japonesa Yoko Ono, resolveram fazer uma canção de Natal enquanto toma-vam café da manhã em Nova York. Eles queriam que a letra incitasse o ouvinte a fazer alguma coisa pela paz, pois a sangrenta guerra do Vietnã estava em curso. Em questão de minutos, os versos foram ficando prontos, começando com “Então é Natal/ E o que você fez?” Depois de deixar a canção de lado por meses, Lennon resolveu gravá-la em novembro.

Embora o tempo fosse curto demais, pressionou a gravadora para lançá-la antes do Natal. Conseguiu. Mas, devido à divulgação insuficiente, o single alcan-çou pouco mais do que o 40º lugar das paradas de sucesso. Seu nome era Happy Xmas (War Is Over) – algo como “Feliz Natal (A Guerra Acabou)”.

Nove anos depois, em 8 de dezembro de 1980, Len-non estava chegando a seu prédio quando ouviu um homem chamá-lo. Antes que o músico terminasse de se virar para olhar, o segurança desempregado Mark Chapman o atingiu com quatro tiros de revólver. Len-non faleceu a caminho do hospital. Sua morte chocou a geração que havia começado ouvindo Beatles, pas-sado pelo desbunde do amor livre e, depois, se engaja-do em movimentos pela paz e respeito aos direitos humanos.

Nas multidões que logo se formaram para prestar homenagem a Lennon, canções pacifistas de sua autoria eram entoadas em coro. E, no próprio Natal de

1980, Happy Xmas (War Is Over)” atingiu o número 1 nas paradas da Inglaterra. Em 1983, faria estrondoso sucesso nos Estados Unidos e, até hoje, é presença certa na programação de fim de ano das rádios.

Cantor ativistaEsse clamor tardio pela paz não deixa de ser irôni-

co. Desde meados dos anos 70, o compositor já tinha parado de ir a manifestações ou gravar canções de protesto. Nos seus últimos anos, Lennon esteve mais preocupado em curtir a família. O disco que estava gravando quando morreu não continha nenhum libe-lo, apenas canções reflexivas e pessoais (que foram lançadas no álbum póstumo Milk and Honey, de 1984).

O período ativista da vida de Lennon começou ainda antes do fim dos Beatles. Em 1969, logo após selar sua união com Yoko, partiu em lua de mel pro-movendo o que eles chamaram de Bed-In for Peace (“Na Cama pela Paz”). Em março, eles foram para o hotel Hilton de Amsterdã, na Holanda, e enviaram aos jornalistas um cartão que dizia: “Venha para a lua de mel de John e Yoko: uma sessão de cama”. Com as recentes esquisitices do casal (a capa do disco Two Virgins, com os dois nus, era um exemplo), houve quem esperasse o pior. Só que, ao chegar, os repórte-res encontraram os anfitriões vestidos de branco e falando apenas de paz.

Na segunda sessão do Bed-In, em um hotel de Mon-treal, no Canadá, eles conseguiram ainda mais aten-ção. Chamaram o então primeiro-ministro local, Pier-re Trudeau, para visitá-los (o encontro só se concreti-

zaria meses depois, pouco antes do Natal de 1969, e o casal saiu declarando que, se mais líderes tivessem a

s ideias de Trudeau, o mundo seria um lugar pacífi-co). Foi durante o Bed-In canadense que, na presença de 50 fãs, Lennon registrou, com um gravador portá-til, a despojada Give Peace a Chance.

Como as andanças de Lennon e Yoko demonstra-vam, o músico não estava mais preocupado com o destino dos Beatles. Logo veio o fim da banda, anun-ciado em abril de 1970. Foi aí que o engajamento polí-tico se tornou a obsessão da vida de Lennon. Ele nunca havia lidado bem com a omissão do conjunto diante dos temas palpitantes dos turbulentos anos 60 (os Beatles eram proibidos pelo empresário Brian Epstein de comentar assuntos polêmicos).

Poucos meses após a dissolução do grupo, Lennon devolveu à rainha a Ordem do Império Britânico, que ganhara com os outros três Beatles em 1965. O ato foi um protesto contra o apoio da Grã-Bretanha à Nigéria durante a repressão a Biafra, um estado que pretendia se separar do país africano (a guerra civil matou 1 milhão de pessoas).

A devolução da medalha também representou a revolta com o suporte dado pelo Reino Unido aos ame-ricanos na Guerra do Vietnã. Esse conflito foi o grande alvo das manifestações pacifistas de Lennon. Perto do Natal de 1970, ele e Yoko espalharam outdoors por 11 cidades do mundo com os dizeres: “War is over! If you want it. Happy Christmas from John & Yoko” (“A guerra acabou! Se você quiser. Feliz Natal de John e Yoko”).

38 ANOS SEM JOHN LENNONLennon saiu dos Beatles e gravou canções engajadas. Mas foi assassinado quando a única paz que buscava era a de ser um homem comum.

Continua...

John Lennon foi assassinato em 8 de dezembro de 1980

BEATLES

Filtro 07

O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique MandettaO futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

Numa conversa com o paquistanês Tariq Ali (um dos mais importantes escritores de esquerda contempo-râneos), publicada na revista Red Mole em janeiro de 1971, Lennon disse que conheceu na pele a opressão das classes populares, embora os Beatles o tivessem afastado da realidade. “Quando comecei com o rock, esse gênero era a revolução para as pessoas da minha idade”, afirmou. “Quero influenciar as pessoas com a minha música e minhas entrevistas.”

Causas americanasLennon parecia mesmo determinado a fazer alguma

coisa pelo mundo além de boas canções. Ele saiu de Londres e, em agosto de 1971, foi para Nova York, o grande centro mundial do capitalismo e da contracultu-ra. Lennon e Yoko foram morar no bairro de Greenwich Village, onde se concentrava todo tipo de ativistas. O casal alugou um humilde apartamento de dois quartos com um colchão no lugar da cama. O Rolls-Royce bran-co com que circulavam em Londres foi trocado por duas bicicletas.

Nos Estados Unidos, Lennon começou a se engajar em causas americanas. Em setembro de 1971, uma rebelião na penitenciária de Attica, em Nova York, envolveu mais de mil presos. Quando as negociações emperraram, o então governador Nelson Rockefeller enviou ao local 1.700 soldados, que mataram 32 pesso-as. Lennon demonstrou seu descontentamento usando um broche com a inscrição: “Indiciem Rockefeller por assassinato”. E organizou um concerto em prol das viúvas dos presos.

No mesmo mês em que ocorreram os violentos con-frontos de Attica, chegou às lojas americanas o disco Imagine, gravado ainda na Inglaterra. A faixa-título fez muito sucesso já no lançamento, e se tornou a mais emblemática canção já feita sobre a paz – foi interpreta-da por gente tão díspar como a pacifista Joan Baez e o brega Ray Conniff. Ao piano, John imagina um mundo sem guerras, religiões, posses, ciúmes e tudo mais que seja capaz de gerar conflito.

Mesmo pregando a paz sem parar, Lennon virou uma ameaça aos olhos do governo americano. Era o roqueiro mais influente do mundo – o decadente Elvis, por exemplo, estava fazendo shows para senhoras em Las Vegas – e tinha o objetivo declarado de incitar as massas. O telefone do músico foi grampeado e seus passos foram seguidos de perto pelas autoridades. Ele de fato estava mantendo contato com figuras conheci-das da polícia ianque, como John Sinclair, fundador do movimento Panteras Brancas (inspirado nos Panteras Negras).

Sinclair estava preso desde 1969 por ter vendido dois cigarros de maconha a policiais disfarçados. Em dezembro de 1971, Lennon e Yoko lideraram mais um concerto político, desta vez no estado do Michigan, em que cantaram “John Sinclair”, que pedia a libertação do ativista. Coincidência ou não, a Suprema Corte daquele estado autorizou a soltura de Sinclair três dias depois.

Quando o visto de permanência de Lennon e Yoko expirou em fevereiro de 1972, eles receberam uma

ordem de deportação – que teve como pretexto uma prisão por posse de maconha acontecida ainda em Lon-dres, em 1968 –, contra a qual recorreram.

Contudo, ao se aprofundar nas investigações, o FBI chegou à conclusão de que o excesso de drogas deixara o músico inofensivo. “Lennon parece ter orientação radical, mas não dá a impressão de ser um verdadeiro revolucionário, já que está constantemente sob a influência de narcóticos”, diz um relatório da época. Inofensivo ou não, fato é que Lennon começou a se desiludir com as causas – e com as pessoas – que havia apoiado. John Sinclair, por exemplo, o processou para ter uma porcentagem de dinheiro no projeto cinemato-gráfico justamente o registro de um show Ten for Two,organizado por Lennon para pedir sua libertação.

Traições e alcoolismoEm 1973, frustrado com a esquerda americana, o

casal vai viver no luxuoso edifício Dakota, próximo ao Central Park. No final daquele ano, Yoko avisa que está se separando, cansada das traições e do alcoolismo de Lennon. Sozinho, ele vai para Los Angeles, onde passa meses se drogando e compondo sem parar. Mas, em 28 de novembro de 1974, nos bastidores de um show de Elton John, o casal se reconciliou e voltou à velha rela-ção apaixonada.

Depois de tanto sofrer, 1975 foi um ano inesquecí-vel para Lennon. parceria dele com David Fame, Bowie, alcança o topo da parada em setembro. Logo depois, a Justiça americana finalmente cancela a ordem de deportação do casal. O cantor passa de perseguido a “cartão postal” de Nova York. Dois dias após a decisão, em 9 de outubro, nasce Sean Taro Ono Lennon – um

presente de aniversário para o pai, nascido na mesma data, em 1940. Enfim, chegava a paz (em tempo: longe dali, em abril, a Guerra do Vietnã havia acabado).

Nesse momento, Lennon resolve sair de cena. Ele sentia por não ter sido um bom pai para seu primeiro filho, Julian (que nasceu em 1963, da união com Cynthia). Vivendo a "beatle mania", o músico fora totalmente ausente – nem estava presente no dia do nascimento. Mas com Sean seria diferente: Lennon anunciou que só voltaria a gravar quando a criança tivesse 5 anos. E assim foi. O período posterior ao nas-cimento de Sean é tido como o mais feliz da vida de Lennon – longe dos estúdios, o ex-beatle dedicou seu tempo a tarefas domésticas.

Lennon retornou às paradas de sucesso em 17 de novembro de 1980, com o álbum Ele Double Fantasy.escolheu “(Justamente (Just Like) Starting Over Como) Começar de Novo” como first single. E a volta foi para valer: antes do fim do ano, o roqueiro já estava de novo trabalhando em estúdio. Não cansava de dizer que se sentia seguro em Nova York, cidade que o aju-dou a esquecer a paranoia de lugares abertos que adqui-rira durante os Beatles. Foi esse o homem que Mark Chapman matou, há exatos 38 anos. Um homem comum, que certa vez buscou a paz no mundo – mas a encontrou dentro do próprio lar.

Por Alexandre PetilloFonte: Aventura na Historia

John e Yoko durante o "Bed-In for Peace"Reprodução

FiltroO8

O homem por trás da indicação de dois dos mais importantes ministros do governo Jair Bolsonaro não é militar nem político. Não

lidera qualquer bancada de deputados na Câmara nem é porta-voz de uma frente parlamentar temática que apoie o capitão reformado do Exército, como a Evan-gélica ou a Agropecuária. Aos 71 anos, Olavo de Car-valho vive desde 2005 nos Estados Unidos, de onde ministra cursos de Filosofia que são transmitidas por vídeos na Internet. Até pouco tempo atrás era tratado como uma espécie de caricatura da extrema direita e do neoconservadorismo no Brasil, mas algo definiti-vamente mudou com a eleição de Bolsonaro para a presidência da República. Não só descobriu-se que Carvalho é o guru intelectual de alguns dos mais pró-ximos assessores do presidente eleito, como ele mesmo foi o padrinho direto das nomeações de Ernes-to Araújo para comandar o Ministério de Relações Exteriores e de Ricardo Vélez Rodríguez para o Ministério da Educação (MEC).

A chamada nova direita que chegou ao poder pelas mãos de Bolsonaro, que mistura a defesa do liberalis-mo econômico com o conservadorismo moral, tem no filósofo brasileiro Olavo de Carvalho uma clara refe-rência intelectual. Tanto Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro e filho do futuro presidente do Brasil, quanto seu irmão Eduardo já foram a Rich-mond, na Virgínia, e participaram de transmissões no YouTube ao lado dele. A lista de seguidores não para por aí: também estão entre os discípulos de Carvalho personagens como o blogueiro de direita Felipe Moura Brasil e a deputada federal eleita por São Paulo Joyce Hasselmann, do mesmo partido do presidente eleito.

"Muito embora não seja um acadêmico, o Olavo de Carvalho é um intelectual de influência considerável na opinião pública brasileira. E já exerce uma ativida-de intelectual há várias décadas, primeiro como arti-culista em grandes jornais e depois nas redes sociais, onde ele difunde o seu pensamento e encontra os seus

aderentes", explica Alvaro Bianchi, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Apesar de ressal-var que "há pouca verdade" na narrativa filosófica apresentada por Carvalho, Bianchi explica que ela se mostra persuasiva e eficaz por abordar "os medos e as inseguranças do homem comum perante as transfor-mações do mundo contemporâneo."

Além de filósofo, Olavo de Carvalho é escritor —são 18 livros, segundo seu perfil no Twitter—, conferencista e jornalista. Ele se apresenta como um intelectual (venerado por seu apoiadores como a mente que se rebelou contra um suposto monopólio do pensamento de esquerda na imprensa e na acade-mia brasileira), mas construiu sua carreira sempre de costas para os círculos universitários (não tem, por exemplo, um título acadêmico formal e boa parte do seu trabalho concentra-se justamente em desqualifi-car a academia).

O desprezo parece ser recíproco nas faculdades brasileiras, onde a obra de Carvalho é praticamente ignorada ou tratada como algo sem valor científico. "Na minha geração e entre os meus colegas ninguém leu Olavo de Carvalho. [Ele] é absolutamente irrele-vante do ponto de vista filosófico", afirma José Arthur Giannoti, professor emérito da Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) e membro fundador do Centro Brasileiro de Análise e Plenajemento (Cebrap). "Não tenho nenhum interesse em ler o Olavo de Carvalho, a não ser [para] explicar como é que a nova direita o tenha como um ídolo e que tanta gente no Brasil seja influ-enciado por ele", acrescenta.

A imagem de outsider entre a intelectualidade bra-sileira só é reforçada pelo seu passado pouco ortodo-xo. Na década de 80 deu cursos de astrologia e, por aqueles tempos, chegou a fazer parte de uma confraria mística muçulmana (tariqa). Hoje denuncia em vídeos o que considera o perigo da islamização do Ocidente e o abandono de valores judaico-cristãos.

O sucesso que Olavo de Carvalho atingiu na nova direita brasileira, ao ponto de converter-se num fenô-meno editorial e alcançar o status de um verdadeiro guru, se deve principalmente à sua militância online ao longo dos últimos anos. Ele mantém um perfil no Facebook que conta com mais de 543.000 seguidores. Para além disso, disponibiliza em sua web oficial um seminário de filosofia —"o único que pode ajudar você a praticar a filosofia em vez de apenas repetir o que outras pessoas, ilustres o quanto se queira, disse-ram a respeito dela"— com videoaulas e cuja mensali-dade custa 60 reais.

Os temas dos vídeos publicados por Carvalho na Internet são vários. Já definiu o ex-presidente Lula como "líder supremo do comunismo latino-americano"; considera o Foro de São Paulo, fórum criado nos anos 90 que reúne partidos de esquerda da América Latina, "a maior organização política que já existiu no continente"; classificou o fascismo de "variante do movimento socialistas" e afirmou que "ideologia de gênero, abortismo e gayzismo" são parte de uma "revolução cultural" coordenada por esquerdistas.

Nas publicações, não raro as suas análises se mis-turam com teorias conspiratórias de procedência duvi-dosa —ou em alguns casos comprovadamente falsas. Em um texto de novembro de 2008 intitulado Mila-gres da fé obâmica, por exemplo, Olavo de Carvalho descreve Barack Obama, então o presidenciável demo-crata prestes a arrematar a Casa Branca, como um político "apoiado entusiasticamente pela Al-Qaeda, pelo Hamas, pela Organização de Libertação Palesti-na, pelo presidente iraniano [Mahmoud] Ahmadine-jad, por Muammar Khadafi, por Fidel Castro, por Hugo Chávez e por todas as forças anti-americanas, pró-comunistas e pró-terroristas do mundo, sem nenhuma exceção visível.»

Continua...

OLAVO DE CARVALHO, O BRASIL SÓ FALA DELE

Olavo de Carvalho, em cena do documentário 'O Jardim das Aflições', pratica tiro esportivo. DIVULGAÇÃO

GOVERNO BOLSONARO

Filtro 09

O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

Num episódio mais recente, já na última campanha presidencial brasileira, Carvalho publicou em suas redes sociais uma mensagem na qual afirmava que Fernando Haddad, candidato do PT que acabou derro-tado, fez em um livro apologia à prática do incesto. O conteúdo da postagem, posteriormente apagada por Carvalho, foi considerado mentiroso por sites de che-cagem de informações no Brasil.

Para Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e organizadora do livro Ódio como política (editora Boitempo), assim como ocorreu no caso de Bolsonaro, a força de Olavo de Carvalho no movimento neoconservador brasileiro só pode ser entendido a partir do fenômeno das redes sociais. "[Ele] é a típica pessoa que soube se capitali-zar com base nesse novo formato de se comunicar: fácil, rápido, polêmico e combativo", afirma. "Ele sabe se comunicar com base em frases polêmicas, conteúdos curtos, mensagens fáceis e ataques. É a forma comunicativa do best seller, daquele palestran-te que tem um conteúdo muito simples e mastigado. Uma coisa fácil, polêmica e que faz sucesso."

Guerra culturalSe em seus textos e vídeos Olavo de Carvalho mos-

tra-se como alguém que transita com naturalidade entre diversos temas filosóficos e da atualidade, um assunto parece merecer sua atenção especial. Trata-se da ideia de "marxismo cultural", teoria conspiratória difundida em diversos círculos de extrema direita ao redor do mundo. Basicamente, ela se apropria de tex-tos do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci para atacar uma suposta infiltração do pensamento comunista em diversas instituições culturais —de escolas e universidades à própria imprensa— com o fim de destruir valores civilizatórios.

Carvalho trata de adaptar essa teoria ao contexto brasileiro. Há gravações na Internet nas quais ele diz que essa ação coordenada de avanço da esquerda sobre as instituições brasileiras ocorreu a partir do golpe militar de 1964. "Na estratégia do [Antonio] Gramsci [filósofo marxista italiano] a maior parte da militância envolvida não saía pregando ideias comu-nistas. Ao contrário, [ela] atacava pontos específicos que representavam pilares da civilização, como a pró-pria ideia de família, moral sexual e as bases do direito penal e civil", diz Carvalho em um dos seus vídeos. "Gradativamente eles [comunistas] foram ocupando todos os espaços. Para se fazer uma ideia de como

levaram isso a sério, no tempo do governo militar a esquerda já dominava a imprensa brasileira inteira. Você não tinha um jornal cujo diretor de redação não fosse comunista", conclui. A teoria propagada por Carvalho pode ter pouco ou nenhum amparo entre historiadores e especialistas, mas encontra solo fértil no neoconservadorismo brasileiro.

De acordo com Bianchi, da Unicamp, Carvalho "reciclou" para o contexto brasileiro "de modo bas-tante eficaz" um assunto que começou a ser discutido nos Estados Unidos na década de 70. "A ideia de um marxismo cultural que estaria ameaçando os valores e as tradições intelectuais das nossas sociedades é um tema recorrente no debate político norte-americano já há bastante tempo", diz o professor. Para Bianchi, que estuda justamente a obra de Gramsci, não há dúvidas de que as teses apresentadas por Carvalho nessa área são teorias conspiratórias. "Ele [Olavo de Carvalho] atribui um peso ao marxismo nas universidades brasi-leiras que simplesmente não existe", pontua.

A ascensão de Bolsonaro tirou Olavo de Carvalho das sombras e o colocou como uma das figuras centra-is para compreender o que pensam tanto o capitão

reformado do Exército quanto algumas pessoas do seu círculo de confiança. Carvalho tem sido alvo de elogios do secretário de relações internacionais do partido do presidente eleito (PSL), Filipe Martins. "O imaginário do jornalista brasileiro médio não é capaz de abarcar um homem de pensamento, dedicado à vida interior e à construção de uma vida bem exami-nada, como Olavo de Carvalho", publicou Martins recentemente no Twitter.

Para além disso, Carvalho já provou todo o alcance da sua influência sobre Bolsonaro. Na formação do novo governo, o filósofo conseguiu emplacar dois nomes na Esplanada dos Ministérios, justamente os de perfil mais ideológico. Ernesto Araújo, por exem-plo, é um diplomata que, à frente das Relações Exteri-ores, promete combater o "alarmismo climático" e as "pautas abortistas e anticristãs em foros multilatera-is", segundo um artigo que ele publicou na semana passada no jornal Gazeta do Povo. Os dias em que Carvalho era retratado apenas como um excêntrico agitador de direita nas redes sociais, sem maiores con-sequências, ficaram para atrás.

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Leandro Quintanilha

Teria o presidente americano deixado os japo-neses atacarem para alcançar o objetivo de participar da Segunda Guerra?

O sol mal havia anunciado a manhã do domingo quando um radar, instalado dias antes, acusou a apro-ximação de um grupo de aviões ao paradisíaco arqui-pélago havaiano. O alerta de nada adiantou. Os oficia-is responsáveis confundiram o ataque inimigo com a chegada previamente agendada de novas aeronaves. Em duas horas, os japoneses feriram e mataram 3.581 pessoas e destruíram 18 navios e 249 aviões de Pearl Harbor, base naval e quartel que os americanos manti-nham no Pacífico. No dia seguinte, os Estados Unidos entraram oficialmente na Segunda Guerra Mundial.

O ataque ocorreu em 7 de dezembro de 1941, data que os americanos lembrariam depois como o “Dia da Infâmia”. Mas haveria uma infâmia ainda maior nis-so? A infâmia de deixar o ataque acontecer, para atin-gir um objetivo político altamente impopular: o de entrar na Segunda Guerra contra toda a vontade do povo dos EUA?

O falecido historiador americano John Toland (1912-2004) foi um dos estudiosos a defender a tese de que o ataque a Pearl Harbor não foi nenhuma sur-presa para os governantes dos Estados Unidos. O ser-viço secreto americano teria interceptado e decifrado mensagens dos japoneses dando conta da iminência do ataque à base naval no Havaí. Mas o então presi-dente Franklin Delano Roosevelt teria preferido “fe-char os olhos” para a agressão, pois queria convencer os americanos sobre a necessidade de o país se juntar aos Aliados.

Toland escreveu dois livros sobre o assunto: Infamy (“Infâmia”) e The Rising Sun: The Decline and Fall of the Japanese Empire (“O Sol Nascente: o Declínio e a Queda do Império Japonês”). Este último narra a Guerra do Pacífico do ponto de vista japonês e rendeu ao autor o Prêmio Pulitzer de jornalismo.

Na opinião de Maria Aparecida de Aquino, profes-sora de História Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP), a tese de Toland é plausível. “Os Estados Unidos já ajudavam os Aliados com supri-mentos desde o começo da guerra (1939)”, diz ela. “Era preciso justificar o envio de soldados americanos para um conflito até então eminentemente europeu.” Segundo a professora, antes do ataque a Pearl Harbor, a guerra parecia muito distante das necessidades ime-

diatas do cidadão médio americano.Mas a rivalidade com o Japão já somava anos. De

todo o Oriente, o arquipélago japonês era o único totalmente independente do colonialismo euro-americano. E o Japão foi também o único país da Ásia a derrotar uma potência europeia. Em 1904, na guerra russo-nipônica, conquistou duas grandes vitórias, uma naval (Tsushima) e outra terrestre (Port Arthur), tornando-se a mais poderosa força militar do Extremo Oriente.

Por tudo isso, os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha trataram de se aproximar da China nas pri-meiras décadas do século 20. A estratégia era contra-balançar o crescente vigor do Japão, que se expandira para a ilha de Taiwan, a península da Coréia e a Man-chúria (região do nordeste da China). Tomando parti-do da China, os Estados Unidos adotaram uma severa política de embargos contra o Japão, com a supressão da venda de aço e petróleo, produtos estratégicos para as operações militares japonesas. O Japão deveria recuar em todas as frentes conquistadas nos anos ante-riores para que o boicote fosse suspenso – uma condi-

ção ultrajante aos olhos do imperador japonês Hiroíto.

Nas franjas da historiografiaÉ bom lembrar aqui que estamos lidando com uma

teoria fringe, isto é, das franjas, dos cantos obscuros da historiografia. Não defendida pela maioria dos historiadores, apesar da adesão de um ou outro peso-pesado.

A polaridade Japão-EUA firmou-se como uma disputa quase declarada pela hegemonia do continen-te asiático. Para o governo americano, entrar numa guerra contra o Japão parecia, portanto, muito oportu-no. Mas a história é como os tribunais – motivos, por si sós, não fazem culpados. “Não há nenhum indício, nenhum documento, nenhum testemunho sequer que possa confirmar a tese de que o governo Roosevelt sabia previamente do ataque”, afirma o historiador e escritor Voltaire Schilling, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segundo Schilling, a direita americana da época tinha ligações com o Eixo. “Ela lançou essa mentira para difamar Roosevelt, apontando-o como engana-dor do povo americano.” Nos Estados Unidos, há uma lei que torna os documentos do Estado disponíveis para análise pública depois de 20 anos. O presidente Richard Nixon, republicano eleito em 1969, tratou de revirar os arquivos da Segunda Guerra em busca de provas contra Roosevelt. Nada encontrou. “E jamais encontrarão algo, pela simples razão de que nenhum estadista, muito menos Roosevelt, ousaria perder gran-de parte da sua esquadra num momento em que uma crise se espalhava pelo mundo, apenas para motivar o povo à guerra”, diz Schilling.

Com o ataque a Pearl Harbor, o almirante Isoroku Yamamoto pôs fora de combate toda a esquadra ame-ricana do Pacífico e fez com que, por um bom período, o grande oceano se tornasse um lago japonês. Até que os Estados Unidos se recuperassem, as forças nipôni-cas puderam montar um complexo sistema de defesa espalhado pelas ilhas do Pacífico.

Schilling aponta também que dezenas de pessoas trabalhavam para o presidente – oficiais do Pentágono e funcionários da Casa Branca, telefonistas, telegra-fistas, secretárias etc. “Essas pessoas não ficariam de boca fechada, deixando o país ser friamente atacado sem fazer nada, apenas para agradar ao chefe.”

Continua...

ROOSEVELT SABIA DO ATAQUE?PEARL HARBOR, 77 ANOS:

O ex-presidente Franklin D. Roosevelt assinando a declaraçãode guerra contra o Japão no dia 8 de dezembro de 1941

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Mas a negligência americana no episódio foi notá-vel. Mesmo Schilling se impressiona com o fato de que, em Pearl Harbor, todo o sistema de alerta tenha miseravelmente falhado. Houve trapalhadas com os radares, as primeiras informações sobre os vôos rasantes dos aviões japoneses não foram levadas a sério, não havia patrulhas aéreas... Como que para facilitar a destruição, os navios estavam ancorados muito próximos uns dos outros. Quando um era atin-gido, o fogo logo chegava ao vizinho, seguindo facil-mente seu caminho incendiário. Não surpreende que tamanho amadorismo dê até hoje munição para os defensores de teorias conspiratórias.

Mas há de se desculpar em parte o descuido ameri-cano. Naqueles dias, os japoneses estavam ocupados com as ilhas Filipinas, bem longe do Havaí, perto da China. Era difícil imaginar que eles investiriam tanto numa força-tarefa tão distante de casa.

AtaqueO ataque começou às 7h53, na hora local. No

Japão, já eram 3h53 do dia seguinte, 8 de dezembro. Os aviões japoneses atacaram em duas vagas. Juntas, em duas horas, elas mandaram 353 aviões a Oahu, o arquipélago de Pearl Harbor. A primeira vaga foi lide-rada por 186 torpedeiros-bombardeiros, aproveitando a surpresa da chegada para atacar os navios no porto, enquanto bombardeiros-de-mergulho destruíam as bases aéreas.

O segundo grupamento, com 168 aviões, atacou o campo Bellows e a ilha Ford, uma base militar no meio de Pearl Harbor. Entre os navios, o afundamento mais trágico foi o do Arizona, que submergiu com 1106 marinheiros. Em nenhuma outra época os Esta-dos Unidos haviam perdido tanta gente em tão pouco tempo. Nos dias que se seguiram, a população ameri-cana foi rapidamente tomada pela revolta e pelo dese-jo de vingança. A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra tornou-se inevitável.

O ataque japonês parece hoje um tiro no pé. A vitó-ria em Pearl Harbor foi efêmera. Basta lembrar o trá-gico desfecho que teria a Segunda Guerra: o lança-mento de duas bombas atômicas pelos americanos, sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945. “Foi um recado para o mundo”, diz a historiadora Maria Aparecida. “Mui-to antes das bombas, já estava claro que os japoneses perderiam a guerra.”

No memorável discurso pós-ataque, em 9 de

dezembro de 1941, quatro anos antes do lançamento das bombas atômicas sobre o Japão, o presidente ame-ricano Roosevelt havia declarado: “Nós, americanos, não somos destruidores – somos construtores”. Foi quando classificou o episódio do ataque japonês como o “Dia da Infâmia”.

Seria uma guerra de muitas infâmias. Sabemos que ela terminou com outra infâmia: os Estados Unidos detonando duas bombas nucleares em solo japonês.

O USS Arizona em chamas após o ataque Reprodução

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Por Vinícius Lemos - BBC News Brasil

Um garoto acompanhado de duas onças-pintadas em uma lagoa. Ele demonstra conforto com a situação e faz carinho em

um dos felinos, enquanto o outro animal está com uma pata encostada no ombro esquerdo do jovem. A cena, que causou estranheza nas redes sociais nas últimas semanas, faz parte da rotina de Tiago Jácomo Silveira, de 12 anos, desde que ele era recém-nascido.

A imagem do garoto foi publicada, inicialmente, pelo próprio pai, o biólogo Leandro Silveira, de 49 anos. Depois, a fotografia foi compartilhada em pági-nas de Facebook e perfis do Instagram.

Em uma publicação feita no dia 23, um usuário do Facebook compartilhou a imagem de Tiago com as onças. A fotografia teve mais de 2 mil compartilha-mentos e 22 mil reações, sendo as mais comuns delas o "amei" e o "uau". Na postagem, não há explicação sobre a origem do registro. Nos comentários, alguns disseram tratar-se de montagem, enquanto outros elogiaram a coragem do jovem.

Para Tiago, a repercussão da foto foi uma surpresa, pois considera se tratar de uma situação comum em seu cotidiano. O garoto frisa que muitas pessoas se surpreendam com o fato de ele conviver com onças-pintadas.

"Eu tenho alguns amigos que não acreditam nisso, acham que é 'fake'. Mas a maioria dos meus conheci-dos acha isso muito legal e tem vontade de conhecê-las. Eu acho muito bom poder levar um pouquinho dessa experiência de vida que tenho para outras pesso-as que não tiveram a mesma sorte que eu", afirma à BBC News Brasil.

Além do pai do garoto, a mãe, Anah Tereza Jáco-mo, de 49 anos, também é bióloga. Os dois coorde-nam o Instituto Onça-Pintada (IOP), que tem o objeti-vo de preservar e estudar o maior felino das Américas.

"O meu filho nasceu em um ambiente com onças-pintadas. Então, ele convive bem com elas desde a infância e sabe como lidar. Logicamente, a gente o instrui e impõe limites, mas hoje ele já sabe o que fazer ou não. É uma questão muito natural para ele", diz Leandro.

Crescendo com as onças-pintadasO nascimento de Tiago foi planejado desde o início

do relacionamento de Anah e Leandro, que estão jun-tos há 28 anos. Os biólogos esperaram a conclusão do doutorado para que tivessem um filho.

"Tinha certeza de que ser mãe me privaria, de certa forma, da minha carreira. Meu marido sempre foi muito companheiro e pediu que concluíssemos os estudos primeiro, porque, na visão dele, não seria

justo eu me afastar da carreira durante a maternidade, ao passo que a dele estaria em plena ascensão", diz.

Após o doutorado, Anah e Leandro decidiram que era o momento de ter um filho. Na época, eles já havi-am criado o Instituto Onça-Pintada e passavam o dia lidando com estudos sobre felinos. Quando Tiago nasceu, o casal cuidava de três onças-pintadas recém-nascidas.

"Nessa época, íamos viajar de caminhonete, para resolver questões do instituto, e levávamos o nosso filho e as onças juntos. Ele ia no colo da minha esposa e elas iam perto da gente, para não se machucar. No trajeto, muitas vezes parávamos para dar mamadeira para ele e para as onças. Isso aconteceu muitas vezes", relata Leandro.

Em razão do convívio que teve com os animais desde pequeno, Tiago sempre considerou natural a proximidade com onças-pintadas. "O referencial dele é baseado na gente. Ele foi crescendo e aprendendo os limites, vendo o que poderia ou não fazer. Mas, para ele, é algo muito comum esse relacionamento, porque foi criado em um ambiente rural. Esse é o cotidiano dele. Não há nada de absurdo", afirma Leandro.

O garoto se considera privilegiado por ter se relaci-onado com as onças-pintadas desde pequeno. "Sem-pre foi uma relação de amor e respeito. Sempre gostei muito disso e sempre ajudei a cuidar dos animais", comenta.

Tiago ressalta que segue as instruções dos pais para lidar com os bichos. "Eles me ensinaram que o medo e o respeito são sentimentos importante e inteligentes. Porque quando você não tem medo e não respeita o animal, você não respeita o limite dele e, por isso, ele também acaba não te respeitando", pontua.

Limites do convívioDesde que o filho era menor, Leandro ensinava ao

garoto sobre a conduta que ele deveria ter com as onças-pintadas. O biólogo costuma passar os mesmos ensinamentos a pessoas que desconhecem informa-ções sobre o felino.

"Esses animais não agem contra o ser humano, no sentido de nos ver como presas. Eles reagem às nossas ações. Então, é importante respeitá-los. Por exemplo, se ele está comendo ou nervoso, ele avisa que não quer proximidade, pela linguagem corporal, então é impor-tante respeitar", diz.

"É fundamental entender os limites e não mexer com o animal quando ele não está bem. Não há como forçar algo com a onça-pintada. É importante compre-ender o momento em que ela quer ficar sozinha e se afastar. Quando ela quiser proximidade, se aproxima-

rá. Isso é uma regra fundamental para a convivência. Onça não é um animal social, mas cria laços para a vida inteira", acrescenta.

Segundo a bióloga, nunca houve incidente entre o garoto e as onças - e ela comenta que nunca deixou o filho sozinho com os animais.

"Sempre tivemos muitos cuidados. Não somente com as onças, mas com qualquer outro animal. Mas o mais importante é que o meu filho aprendeu muito cedo como conhecer cada um. Em nosso sítio, as regras de segurança sempre foram muito determina-das, claras e obedecidas", diz.

Na imagem que repercutiu nas redes sociais, uma cadela da raça blue heeler aparece próxima aos feli-nos. Os bichos mantêm uma relação de proximidade. Na Organização Não-Governamental (ONG), há outros animais, normalmente encaminhados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), como veados, macacos e lobos-guará,. Segundo Leandro, todos vivem em harmonia.

O IOP está localizado na região rural de Mineiros, no interior de Goiás, em uma propriedade de 50 hecta-res, pertencente ao casal de biólogos. O instituto não é aberto a visitação, para evitar incômodo aos animais ou prejuízo aos estudos realizados no lugar.

Amor por onças-pintadas levou à criação de instituto

Leandro se encantou pelas onças-pintadas ainda na infância, quando assistiu a um documentário sobre os felinos. Anos depois, a paixão pela espécie o levou a cursar biologia. O primeiro estágio dele foi em um projeto que lidava com onças-pintadas. "Foi a primei-ra vez em que tive contato com a espécie. Depois, nunca mais parei de trabalhar com ela", relata.

Na universidade, ele conheceu Anah, que também cursava biologia. Os dois são de Goiás. Desde a época em que eram estudantes, desenvolvem atividades com o maior felino das Américas. Em junho de 2002, cria-ram o Instituto Onça-Pintada. O principal objetivo deles era estudar a espécie e ajudar a preservá-la.

Anos após a criação do instituto, uma equipe do Ibama perguntou se Leandro e Anah tinham interesse em receber onças-pintadas recém-nascidas, que eram órfãs e haviam sido resgatadas da natureza. O casal, que não tinha a criação dos felinos como objetivo ini-cial, aceitou. Para acolhê-los, elaborou um criadouro científico, que hoje ocupa metade da propriedade rural.

POR QUE UM CASAL BRASILEIRO DEIXA SEUFILHO BRINCAR COM ONÇAS-PINTADAS

Uma foto de um menino ao lado de duas onças-pintadas viralizou recentemente na internet. Alguns acharam que era montagem, mas a imagem é real

Tiago é filho de biólogos que trabalhamcom a preservação das onças-pintadas

COMPORTAMENTO

Filtro 13

O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

O IOP está localizado dentro do sítio. Além de 25 hectares para o criadouro, o lugar também é dividido entre a parte destinada aos animais de outras espéci-es, a área utilizada para os estudos desenvolvidos por profissionais que atuam no instituto e a residên-cia da família.

O instituto é mantido com doações de empresári-os ou pessoas físicas e por meio de recursos particu-lares do casal de biólogos. "É uma eterna busca por recursos. Nunca são valores governamentais, por-que o poder público nunca nos ajudou. Ultimamen-te, temos apoio de empresas. Mas 95% dos recursos têm sido particulares, meus e da Anah, por meio de assessorias que fazemos", diz Leandro.

No IOP, atualmente há 14 onças-pintadas. Des-tas, quatro são filhotes, dois são jovens e há oito adultos. Na última década, 35 felinos passaram pelo lugar. Normalmente, os que deixam o instituto são encaminhados para outros criadouros, para auxiliar na reprodução e preservação da espécie.

As onças-pintadas que chegam recém-nascidas ao criadouro não retornam à natureza porque a prin-cipal ameaça a elas, segundo pesquisas do IOP, são os pecuaristas.

"Nesse sentido, consideramos um contrassenso devolver à natureza um animal que já veio para o cativeiro fruto desse conflito", explica Anah. Outro motivo que faz com que os felinos sejam encami-nhados a outro criadouro é a necessidade de contato com humanos, que eles desenvolvem no início da vida, por meio da alimentação ou de outros cuidados básicos, em razão da ausência da mãe.

"Esses animais dificilmente perdem o elo com a presença humana e, se soltos, muito fatalmente, caso se aproximem de locais com a presença huma-na, podem acabar sendo abatidos", acrescenta a bió-loga.

Ameaça de extinçãoA onça-pintada está presente em 21 países, entre

eles Argentina e Estados Unidos. Em alguns, como Uruguai e El Salvador, ela foi extinta. O Brasil con-centra a maior parte delas, abrigando 48% da espé-cie de todo o mundo. No país, o animal também está ameaçado de extinção.

"Temos de 20 mil a 30 mil onças-pintadas no Bra-sil. Elas são consideradas ameaçadas porque, ao longo dos anos, perdemos mais de 50% da distribui-ção original delas. A tendência é que, como todos os grandes predadores mundo afora, caso não haja polí-tica de conservação, ela seja extinta."

"É um animal que compete com condições huma-nas, tem riscos aos seres humanos. Então, a tendên-

cia do homem é eliminar. Tudo o que gera riscos, gera prejuízo. Se não criarmos uma política direta de compensação aos prejuízos que esses animais cau-sam, ele vai ser eliminado", pontua. Segundo o bió-logo, não há nenhum tipo de ação do poder público para a preservação dos felinos.

Muitos dos filhotes que chegam ao IOP se torna-ram órfãos após as mães serem mortas por produto-res rurais, enquanto saíam em busca de alimentos para os filhos. "Há inúmeros filhotes que morrem depois da perda da mãe, por não conseguirem se manter sozinhos. Infelizmente, o número de órfãos que chegam para a gente é muito pequeno, perto do total que fica abandonado", explica Leandro.

Um dos principais trabalhos do IOP é conscienti-zar a população sobre a preservação das onças-pintadas. Os principais alvos da iniciativa são os produtores rurais. Para auxiliar no diálogo com eles, o instituto criou o Certificado Onça-Pintada. "Pro-pomos valorizar os produtos de proprietários que se comprometem a tolerar os prejuízos causados por onças e jamais abatê-las", diz Anah. Segundo ela, 170 mil hectares de fazendas já aderiram ao selo. "O nosso objetivo é atingir 1 milhão de hectares em 10 anos", revela.

Anah explica que a importância da conscientiza-ção dos produtores rurais ocorre porque, no Brasil, 70% das terras estão em áreas privadas. "As unida-des de conservação, sozinhas e isoladas, não têm tamanho e não asseguram a conservação da onça-pintada em longo prazo. Dessa forma, ela precisa do proprietário rural para ter a chance de sobreviver",

pontua a bióloga.

Preocupação com o futuroA luta pela preservação das onças-pintadas é

conhecida por Tiago desde a mais tenra idade. Há um ano, ele deixou o sítio onde morava com os pais, na sede do IOP, para se mudar para Goiânia, para estudar. O garoto, que está no oitavo ano do ensino fundamental, sente saudades da convivência diária com os bichos.

"Está sendo muito difícil ficar longe dos animais, porque convivi com eles desde pequeno. Toda vez que volto para a casa dos meus pais, sinto que os ani-mais também sentem saudade de mim. Eles me reco-nhecem e brincam comigo de uma maneira diferen-te. Isso é muito gratificante, porque vejo que o amor e o carinho que dei para eles anos atrás está sendo retribuído", diz o estudante.

Tiago visita os pais a cada três meses. A foto que viralizou na internet foi tirada durante o feriado da Proclamação da República, em 15 de novembro. No futuro, ele não quer continuar distante do lugar onde nasceu. O garoto planeja cursar biologia e retornar para o sítio da família, onde quer dar continuidade à iniciativa desenvolvida pelos pais.

"Quero fazer biologia, mas não para ser profes-sor. Quero trabalhar com os animais, na prática. Pre-tendo dar continuidade ao instituto e ajudar meus pais, porque essa é uma causa muito nobre. A gente está tentando salvar uma espécie de extinção e real-mente quero continuar com essa luta", declara.

Os pais de Tiago o ensinaram desde pequeno como deveria se comportar perto das onças

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Por Elisa Martins - Fonte: Época

No maior crematório do Brasil, o de Vila Alpina, em São Paulo, a média desse tipo de rito funerário dobrou em uma década,

chegando a 10 mil por ano“Favor comparecer à sala de cerimônias.” É

assim, por um chamado de um alto-falante, que as crianças até então se divertindo com observar carpas num laguinho e os adultos por perto entram no pré-dio. Todos se movem em direção a um anfiteatro de cortinas brancas e assentos com almofadas verdes. O centro da sala é conectado por um elevador ao andar de baixo. É por ali que sobe o motivo daquele encon-tro: um caixão. Passam-se dez minutos de palavras e homenagens ao falecido. É tudo rápido. Em seguida, a urna desce pelo mesmo caminho de onde surgiu, no elevador onde nada mais cabe além dela. Encerrada a cerimônia, a família deixa o anfiteatro. E aí começa a parte que quase ninguém conhece.

Quando o caixão desce, uma campainha toca alguns metros abaixo. Um funcionário do Cremató-rio Municipal Dr. Jayme Augusto Lopes, mais conhecido como Vila Alpina, na Zona Leste de São Paulo, abre a portinhola e recebe a urna. Com a ajuda de um carrinho, a coloca em uma câmara frigorífica. A urna vai esperar ali no mínimo 24 horas, prazo esta-belecido por lei — ou 72 horas, ou até dez dias, dependendo da religião ou escolha da família. Passa-do o tempo determinado, a urna entra numa fila de caixões que serão incinerados.

Faz calor, mas não é o sol. São os quatro fornos a gás de 4 metros de altura. Em 1974, esse foi o primei-ro crematório da América Latina. Por muito tempo, foi o único. Hoje, existem mais de 100 só no Brasil. E a demanda é crescente. Um número cada vez maior de pessoas acha que não faz mais sentido ter como única alternativa após a morte ir parar debaixo da terra. A falta de opções parece não combinar com nossa era, marcada pela abundância de escolhas. Num claro sinal de quebra de uma tradição milenar dos cristãos, ser cremado virou, digamos assim, uma nova tendência.

Na década passada, a média de corpos cremados por ano no Vila Alpina foi de 4.630. Em 2017, o número passou dos 10 mil. No Primaveras, cemitério e crematório em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, as cremações já representam 30% do total. O Cemitério da Penitência, no Caju, Rio de Janeiro, começou a cremar corpos em março. No

primeiro mês, foram oito. Em outubro, foram quase 150. Gisela Adissi, presidente do Sindicato dos Cre-matórios e Cemitérios Particulares do Brasil, disse que a procura cresce em todas as regiões do Brasil.

O fenômeno está longe de ser tipicamente brasile-iro. A própria Igreja Católica, que aboliu a proibição da incineração dos mortos nos anos 60, sentiu-se recentemente obrigada a dar novas instruções sobre o tema por causa do “significante aumento” da práti-ca em vários países. As regras aprovadas pelo papa Francisco dizem que a Igreja prefere que os mortos sejam enterrados, mas continua permitindo a crema-ção, com uma ressalva importante: as cinzas não devem ser espalhadas.

Nos Estados Unidos, são mais de 2.100 cremató-rios. Em estados como a Califórnia, entre 60% e 80% dos mortos são queimados. No Canadá, desde o começo da década passada, a maioria dos mortos é cremada. Na Inglaterra, de cada dez mortos, sete são cremados — ashes to ashes, como cantou, citando uma passagem bíblica, David Bowie, que em 2016 deixou tantos de nós de luto. Suas cinzas foram espa-lhadas na Ilha de Bali, na Indonésia.

No Vila Alpina, cada incineração leva em média duas horas. Corpos mais pesados demoram mais. Caixões de 250 quilos levam o dobro do tempo. A maioria das urnas é de madeira, mas também há de papelão — a família escolhe. Só não pode ser metal. Joias e acessórios derretem no forno. A exceção são os marca-passos, que devem ser previamente retira-dos, pois explodem no fogo.

A rotina se repete por 24 horas, todos os dias. O funcionário retira as alças e o vidro que cobrem a parte superior do caixão e, com o auxílio do carrinho, acomoda a urna no forno, já aquecido a 800 graus. Quando a urna pega fogo, a temperatura sobe para mais de 1.000 graus. A cada meia hora, o funcionário levanta a porta do forno para espalhar as cinzas e otimizar a incineração. Usando avental e proteção para olhos e ouvidos, ele manuseia uma espécie de pá gigante para remexer o fogo.

Os tempos de atividade em cada forno são contro-lados com anotações, e as urnas identificadas com números e nomes. Os fornos possuem uma espécie de gaveta na parte dianteira, para onde são dirigidos os restos queimados, puxados de dentro do equipa-mento. A gaveta sai em brasa, com os fragmentos de ossos. Não, os ossos não queimam totalmente. As gavetas são levadas a uma sala contígua, com suas respectivas identificações, onde resfriam por cerca

de 40 minutos. Depois, o “conteúdo” passa por uma grande peneira. “É para separar os restos da madeira e flores que estavam no caixão dos ossos fragmenta-dos”, explicou Filomena Falconi Alcântara, há 31 anos auxiliar técnico-administrativa no Serviço Funerário do Município de São Paulo.

Dali, os fragmentos de ossos são levados a um triturador. Pequenas bolas de ferro, bastante pesadas, também são colocadas no equipamento ligado para ajudar a quebrar os ossos com o movimento. Os peda-ços menores lembram uma casca de ovo. As cinzas são, então, colocadas em um saco transparente de tamanho A4, que pode ser entregue assim aos famili-ares ou transportado a uma urna. Ao final, os cerca de 70 quilos de um corpo humano viram de 2 a 3 quilos de fragmentos de ossos. A funcionária Falconi mos-trou os sacos plásticos organizados em uma caixa — são dezenas, todos identificados. Quando foi a vez de seu pai ser cremado ali, Falconi não teve coragem de ficar junto ao forno.

É importante desfazer aqui três mitos sobre o pro-cesso de cremação. O primeiro: não há corpos empi-lhados no mesmo forno. Em cada equipamento cabe apenas uma urna por vez. E tanto fornos quanto gave-tas são limpos a cada incineração. O que não evita, claro, que algumas partículas de pó humano se mis-turem no ar.

Segundo: não se sente um cheiro forte e nauseante durante a queima. Nada do odor de carne assando nas margens do Ganges, em Varanasi, na Índia. Cada forno é projetado com diferentes câmaras com dese-nho em “U”, que fazem a fumaça circular por filtros de ar. Ela vai se dissipando no caminho e se torna quase imperceptível na chaminé que liga o andar subterrâneo dos fornos à superfície. O terceiro ponto é a composição das cinzas. Como somos feitos de 75% de água, as cinzas se resumem a ossos tritura-dos.

É com objetividade que os funcionários tentam não associar emoção ao trabalho. Salvador Barriero passa pela experiência há pelo menos 11 anos. Come-çou antes ainda, com limpeza, sepultamento e exu-mação em um cemitério. “Quando passei no concur-so, morria de medo. Tinha pesadelo com defuntos, de como seria”, afirmou. Hoje diz que “é um serviço normal, como outro qualquer”. Em um turno de 12 horas — os funcionários descansam as 24 horas seguintes —, Barriero chega a incinerar cerca de 15 corpos.

Continua...

COMO FUNCIONA A INDÚSTRIA DA CREMAÇÃOE POR QUE ELA PROSPERA NO MUNDO TODO

CREMAÇÃO

Filtro

O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

A pior parte é quando chega uma criança. Não raro, bichinhos de pelúcia no caixão vão junto para o forno. Há lendas também. Uma vez, um músico foi cremado com o violão e, até hoje, os funcionários brincam dizendo que escutam uma cantoria de vez em quando. O semblante de Barriero só fica sério ao lhe ser perguntado como imagina o próprio fim. “Quero ser enterrado. Não quero ser cremado, não. Vai saber se dói. Nunca morri para saber.” O que sente depois de tantos anos? “Moça, para resumir bem (ele olha para o forno), nós não somos nada. E todo mundo vai acabar do mesmo jeito.”

A imagem das chamas, em suas nuances de ver-melho e amarelo, é viva e impactante. Para algumas religiões, o fogo purifica. E, para muitas famílias, a cremação representa menos sofrimento que um sepultamento. Não resta uma lápide permanente a encarar. Não há custos fixos no longo prazo. No Vila Alpina, o preço da cremação vai de R$ 115 a R$ 2.100. O que encarece é o tipo de caixão. E a urna é cobrada à parte. Já o sepultamento parte de R$ 40, mas há taxas de jardinagem e manutenção do túmulo além do serviço funerário. Após três anos, também é preciso fazer a exumação, cujo preço começa em R$ 103. Até aí, a família já gastou pelo menos R$ 2 mil, no formato mais simples. Mas a motivação para cre-mar nem sempre está ligada ao preço. Dá para fazer a cremação e continuar indo ao crematório.

A verdade é que passamos por uma ressignifica-ção dos rituais de despedida. A maior procura por cremação aumentou o número de columbários. São salas com espaços para dezenas de urnas com cinzas, que ficam dispostas em vitrines de vidro personaliza-das. A do Primaveras, cemitério e crematório em Guarulhos, famoso por abrigar os integrantes do grupo Mamonas Assassinas, fica ao lado das salas de velório, de frente para o jardim de lápides. Cada qua-drado é uma dimensão de memória e saudade.

Alguns guardam óculos, camisas de time de fute-bol, maço de cigarro, imagens de santos, revista de palavras cruzadas, porta-retratos eletrônico, bara-lho, sapatinhos, dinossauro de brinquedo... O que fica com a luz permanentemente acesa é de uma senhora que tinha medo do escuro. Outro acabou de ganhar uma miniatura de Kombi que pisca — pre-sente da filha, que há pouco mais de um ano cuida da decoração do nicho do pai, arrumado também com boné, vidro de perfume e um relógio (a bateria ainda funciona).

No nicho de Ismael de Almeida, dois vasinhos de flores, óculos e uma camisa azul do time da pelada ficam na frente da urna do major da polícia falecido há quatro anos. O filho Marco reluta em levar tam-bém as condecorações, ainda guardadas em casa. “Quando dá saudade, a gente vem”, afirmou. A espo-sa de Almeida, Elia, elogiou a localização: a vitrine no fundo da sala, no canto inferior direito, fica bem perto de um jardim vertical, atrás de um muro de vidro. “Ele não gostava de ir a velório, nem de visitar

cemitério. Mas aqui é calmo, traz paz. Menos impactante do que uma lápide. Já avisei a meus filhos para quando for minha vez me colocarem aqui do lado.”

O uso do columbário do Primaveras é grá-tis por 30 dias. Depois, as famílias que optam por deixar as cinzas ali pagam R$ 150 mensa-is pelo espaço. As cremações são feitas em outra sala mais adiante. Ao contrário de outros crematórios no mundo, em que a urna desce por um elevador para ser incinerada, no Primaveras ela sobe, alçada por um elevador — o que, de acordo com o marketing do cre-matório, seria uma representação simbólica da elevação do espírito.

O comerciante Sérgio Fini quis um layout novo para decorar a lápide da mãe, Antonieta. Ela faleceu em junho e foi sepultada ao lado do marido, Ernesto, morto há oito anos. “Eles tiveram quatro filhos e criaram uma família com amor. Essa é uma forma de fazer algo para mostrar a eles que valeu a pena”, disse Fini. A lápide dos pais tem até QR Code para celular, que leva a um site com fotos e infor-mações sobre quem foi sepultado ali.

A transformação pela qual passa a indús-tria da morte no Brasil, um setor que movi-menta R$ 7 bilhões por ano, é consequência também de uma nova geração de empreende-dores, que muitas vezes herdaram o negócio de cemitérios dos pais e querem inovar. Gise-la Adissi, que também é presidente do grupo Primaveras, inventava, quando criança, histó-rias para os coleguinhas da escola sobre de onde vinha o sustento da família. Já adulta, depois de provar o dia a dia em multinaciona-is, sentiu que seu propósito estava mesmo no negócio dos pais. “Muitas vezes somos vistos como vilões, como os que ganham dinheiro no pior momento da vida das pessoas. Mas sabemos também que com o cliente existe uma famí-lia que adoece e que precisa de acolhimento”, afir-mou Adissi.

Ela formou um grupo com outros herdeiros do ramo funerário para trocar ideias com cemitérios pelo mundo. Já foram aos Estados Unidos, Chile, Peru, Colômbia, Japão, China, Espanha, Itália. Há dois meses, estavam na Bolívia. No ano que vem, será a vez da Austrália, e, em 2021, vão carimbar o passaporte para o México. Foi de um rapaz da Malá-sia e que mora na Austrália, aliás, que veio a ideia da plataforma on-line de homenagens, acessada pelo QR Code nas lápides. Ele havia perdido o pai, estava longe e queria se comunicar com a família, contar as memórias dele. Na plataforma há opção .de as pesso-as “participarem” ao vivo dos velórios, acenderem vela virtual, avisarem sobre missas, deixarem men-sagens na página — as crianças podem mandar dese-nhos.

O despachante público Luiz Claudio Correia Nunes, de 64 anos, já idealizou o que acontecerá quando chegar sua vez. “Quero bastante alegria, nin-guém chorando, aquela lamentação toda. Tenho um lado roqueiro, sou festeiro. Meu sonho é que no meu velório toque Iron Maiden, interpretando 'Phantom of the opera'. Também quero que os convidados pos-sam beber vinho, cerveja artesanal, prosecco”, con-tou Nunes, que já pagou por um plano funerário no Cemitério da Penitência, no Rio de Janeiro.

As ideias atendem ao gosto do freguês. Em Porto Alegre, uma família pediu para servir chope, tequila e uma tábua de frios em um velório. Em outro, o neto dançou valsa em homenagem à avó. Já na cerimônia de despedida de um militar, foi preciso adaptar o espaço para receber uma tropa de cavalaria. Houve ainda um pedido para o velório ser feito dentro de um barco, com a capela ornamentada com tarrafa, vara de pescar e banquinho.

A procura levou o complexo da Penitência, no Rio, a lançar em setembro um menu de serviços espe-

ciais para o grand finale. Os velórios podem ter trilha sonora, música ao vivo — há uma playlist das mais tocadas, e “Ave Maria” e “Amigos para sempre” são campeãs de pedidos —, projeção de fotos e vídeo, chuva de pétalas de rosa e transmissão on-line, com senha de acesso para um site, além de QR Code nos jazigos verticais. É possível, também, remontar o quarto ou o escritório de quem partiu no mausoléu do cemitério vertical, ou criar cenários, como uma pra-ia. É a morte espetáculo.

O cemitério Jardim da Ressurreição, de Teresina, já fez muita gente rir. Há dois anos, virou “o cemité-rio mais famoso da internet” graças a uma campanha peculiar nas redes sociais. Ideia do filho do proprie-tário, Diego Oliveira. Algumas das postagens mais famosas no Instagram: “Senhoras e senhores, nin-guém mais vai morrer. Ass: Dona Morte (É verdade esse 'bilete')” — uma referência a um meme famoso de uma criança que inventou um bilhete da professo-ra; “Hoje é dia daquele amigo que sempre desenterra seu passado sujo. 17/08 — Dia do coveiro”; “Hoje eu tô só o pó” (e a foto de uma urna) ou ainda “Que tiro foi esse?” (e uma estátua no chão). A conta repleta de memes tem mais de 16 mil seguidores. “Somos bem leves na página, mas claro que não usamos esses ter-mos com os clientes. Aí a preocupação é com a dor da família”, explicou Maria das Dores, gerente do cemitério.

Frases bem humoradas nas redes sociais, crema-ção, homenagens com bebidas alcoólicas, decora-ções temáticas, músicas, alternativas digitais...Todas essas estratégias, bem com a cara do século 21, pare-cem ser uma tentativa de tirar o peso da finitude. E, de fato, muitas pessoas afirmam que as novidades as ajudam a amenizar o sofrimento. Mas fica uma dúvi-da: será que o medo de morrer, assim como a dor de quem fica, não é tão inevitável como a morte?

Depois de retirados dos fornos, os restos queimados são peneirados para que sejam retirados pedaços de madeira do caixão e de flores. Em seguida, os fragmentos de ossos são levados a um triturador Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Caixa de memórias, nas quais familiares colocam imagens e objetos de seus entes queridos Foto: Francio Holanda / Agência O Globo

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Por Guillermo D. Olmo - BBC News

No dia 6 de dezembro de 1998, há 20 anos, Hugo Rafael Chávez Frías ganhava as elei-ções presidenciais na Venezuela pela prime-

ira vez e inaugurava uma nova página na história do país. À época, a Venezuela era castigada por cor-rupção, pobreza e desigualdade. O novo presidente chegava ao poder com a promessa de uma repúbli-ca refundada, que regeneraria a política e entrega-ria a tão desejada justiça social.

Mas, 20 anos depois, muitos dos problemas daque-la época pioraram. O país vizinho vive a maior reces-são de sua história. São 12 trimestres seguidos de retração econômica, segundo anunciou em julho a Assembleia Nacional, o parlamento venezuelano, que atualmente é controlado pela oposição.

A inflação no país está próxima de 1.000.000% ao ano. A fome fez os venezuelanos perderem, em média, 11 quilos no ano passado. A violência esvazia as ruas das grandes cidades quando anoitece.

Como Chávez venceu?O historiador Agustín Blanco Muñoz, autor de vári-

as obras sobre a história recente da Venezuela e a figura de Chávez, explica o contexto daquela vitória chavis-ta: "O sistema de Ponto Fixo, que acabou com a dita-dura de Marcos Pérez Jiménez em 1958, era baseado em dois partidos, Ação Democrática (AD) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Co-pei), que se alternavam no poder sem conseguir resol-ver os problemas. Cada presidente que tomava posse culpava o anterior pela herança".

Então, os venezuelanos decidiram confiar em Chávez, um jovem militar que havia ficado famoso como líder de uma tentativa de golpe de Estado em 1992, contra Carlos Andrés Pérez.

Sua mensagem televisiva ao país pouco depois do fracasso da rebelião, quando anunciou que seu movi-

mento bolivariano não tinha alcançado seus objetivos "por ora", foi, na verdade, como escreveu na época Gabriel García Márquez, "o início de sua campanha eleitoral".

Depois de ser perdoado em 1994 pelo presidente Rafael Caldera, Chávez, de gravata e já sem uniforme militar, competiu nas urnas seis anos depois e venceu de lavada.

"A situação em 1998 era de verdadeiro desastre e ele conseguiu se apresentar como um salvador em meio a esse desastre, porque os venezuelanos já não acreditavam nos partidos políticos tradicionais", diz Blanco.

Como estava a economia em 1998?Apesar de ter feitos declarações contrárias ao

Fundo Monetário Internacional (FMI) em seu manda-to anterior (1974-79) e na campanha presidencial de 1989, o presidente Carlos Andrés Pérez fez ajustes acordados com o órgão em troca de crédito para que a Venezuela pudesse enfrentar sua enorme dívida exter-na e melhorar sua economia, afetada pela queda dos preços de petróleo nos mercados internacionais.

Na época, tal como hoje, a Venezuela dependia de suas exportações de petróleo bruto, sem refino (por-tanto, sem valor agregado).

Na década de 1970, principalmente no primeiro governo de Pérez, a Venezuela havia se beneficiado de um boom de petróleo que permitiu um volumoso gasto social. Foram os anos conhecidos como "Venezuela saudita", caracterizados pelo investimento público e pela criação de infraestrutura no país.

Mas na década de 1980 aquela bonança terminou. Os preços, o desemprego e a dívida pública cresceram.

Até que, em 1989, logo depois de ser eleito pela segunda vez, Pérez implementou o programa econô-mico conhecido popularmente como "pacotão", que incluiu cortes em serviços sociais, aumento de impos-tos e privatização de empresas estatais.

Como era o clima social à época?A Venezuela de 1998 ainda vivia sob o trauma do

episódio conhecido como "Caracaço". Pouco depois de Pérez iniciar as reformas, uma revolta popular com protestos e saques estourou em Caracas.

O historiador Blanco Muñoz diz que o presidente suspendeu várias garantias constitucionais e, "para salvar a si mesmo e ao seu governo, botou o Exército na rua com ordem de matar". Ele chama esse momento de "massacre da Venezuela".

"Ainda estamos contando os mortos", lamenta em conversa com a BBC Mundo Juan Barreto, que acom-panhou a candidatura de Chávez desde seus primeiros passos e foi responsável pela comunicação no seu governo.

A onda de violência e a repressão à época deixaram centenas de mortos, mas o número exato ainda é moti-vo de debate no país.

A indignação contra a resposta do governo aos pro-testos fortaleceu o apoio a Chávez mais tarde.

Gustavo Márquez, ministro de Chávez em duas ocasiões, afirma que nos anos finais do chamado sistema de alternância entre os dois principais parti-dos, "a elite política do país tinha se distanciado da população".

Qual é a situação da Venezuela hoje?Esse contexto político e econômico do final da

década de 1990 facilitou a ascensão de Chávez, um militar que propôs romper com a política tradicional.

Mas, a situação de hoje tem alguns paralelos com aquele momento.

Em 2014 e 2017, ocorreram diversas ondas de pro-testo contra o governo de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, que morreu em 2013. Os enfrentamentos entre forças de segurança e manifestantes também deixaram dezenas de mortos - não há consenso sobre o número exato.

O QUE MUDOU NA VENEZUELA 20 ANOS APÓS TRIUNFO DE HUGO CHÁVEZ

CHAVISMO

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O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

Barreto diz que ultimamente "o governo Maduro vem cerceando liberdades, mas não se pode dizer que seja igual ao que se viu no Caracaço", quando, segundo ele, "obrigaram jovens a atirar contra a população".

De acordo com o Observatório Venezuelano de Con-flito Social, 2018 será o ano com mais protestos na Vene-zuela desde 2011, quando a organização começou a cole-tar os dados. No entanto, parece que eles estão se tornan-do menos intensos.

Já não acontecem as grandes marchas de oposição como em anos anteriores, mas sim concentrações meno-res de pensionistas, trabalhadores da área de saúde e outros grupos que protestam contra o governo e sua ges-tão econômica e contra a falta de acesso a serviços bási-cos.

E a economia venezuelana?A economia da Venezuela começou a sofrer uma

forte deterioração em 2013, ano em que morreu Chávez.Segundo estimativa do FMI, o país terá vivido em

2018 seu terceiro ano consecutivo com uma queda supe-rior a 10% do PIB, uma redução dramática de sua rique-za nacional. Entre 2013 e 2017, o PIB venezuelano teve uma queda de 37%. O FMI prevê que, neste ano, caia mais 15%; e descreve a situação como "uma das piores crises econômicas da história".

A isso se soma a hiperinflação, um aumento constan-te e acelerado dos preços, que o FMI estima totalizar 1.000.000% até o fim deste ano.

Ainda que em 1998 a inflação já fosse um problema, a atual supera todos os precedentes na Venezuela e quase todos no mundo.

A crise atual também teve como causa a queda do preço do petróleo. Para o chavista Barreto, "Chávez não conseguiu romper com o modelo rentista petroleiro".

Acabou a corrupção?Todos os analistas concordam que a farra de autorida-

des venezuelanas com esquemas de corrupção foi outro motivo importante que deu a Chávez sucesso nas urnas.

Já na década de 1970, proliferavam escândalos que vinculavam Carlos Andrés Pérez e figuras de seu entor-no a suposto uso indevido de recursos públicos.

Depois do "Caracaço" e de duas tentativas golpistas de Chávez, Pérez foi formalmente acusado de gastar indevidamente milhões de bolívares de um fundo secre-to presidencial e destiná-los ao envio de uma missão policial à Nicarágua.

O processo acabou com sua destituição como presi-dente pelo Congresso e a Suprema Corte o condenou a dois anos e quatro meses de prisão domiciliar.

Em 1998, Pérez foi acusa-do de novo pelo uso indevido de recursos públicos, que teria ocultado em contas de bancos americanos. Pérez deixou a Venezuela e acabou se instalando em Miami, onde morreu sem ter atendi-do aos requerimentos dos tribunais venezuelanos.

O chavismo tampouco se livrou da mancha de cor-rupção.

Um tribunal da Flórida condenou recentemente Ale-jandro Andrade, que foi tesoureiro da República e guar-da-costas de Chávez, a 10 anos de prisão por ter cobrado propina no valor de US$1 bilhão.

Outras pessoas do círculo de Chávez também estão sendo acusadas em diferentes lugares do mundo. Sua enfermeira, Claudia Patricia Díaz Guillén, espera na Espanha que a Justiça decida sobre sua extradição à Venezuela sob acusação de envolvimento no esquema do tesoureiro chavista.

A lista não acaba aí. Em Andorra, se investiga um grupo de diretores da PDVSA, a empresa de petróleo estatal venezuelana, acusados de roubar centenas de milhões de dólares.

O Ministério Público da Venezuela anunciou há pou-cas semanas que havia descoberto um esquema de apro-priação indevida de dinheiro da companhia e disse que tinha prendido os responsáveis.

Além disso, dois sobrinhos da esposa do presidente Maduro foram condenados nos Estados Unidos, em 2017, por tentar levar 800 quilos de cocaína ao Haiti.

A situação se agrava com o acirramento político. Em 2015, o chavismo perdeu o controle do Parlamento e Maduro, que acusa constantemente os oposicionistas de tentarem tirá-lo do poder por meio de um golpe, decidiu convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.

Na prática, foi uma estratégia para esvaziar totalmen-te o poder do Legislativo comandado pelos opositores e criar uma instância paralela de decisão. O chavismo também domina o Tribunal Supremo de Justiça, instân-cia máxima do Judiciário.

Já na década de 1970 proliferavam escândalos que vinculavam Carlos Andrés Péreze figuras de seu entorno com suposto uso indevido de recursos públicos

GETTY IMAGES

Os sobrinhos de Maduro foram condenados nos EUA por narcotráfico

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Assessora parlamentar assumirá a nova pasta das Mulheres, da Família e dos Dire-itos Humanos, que inclui Funai, com

pauta conservadora mas disposta a lutar por igualdade salarial entre gêneros

Fora dos círculos evangélicos, Damares Alves era uma desconhecida quase completa até ser anuncia-da, nesta quinta-feira, como a mais nova ministra do Governo Jair Bolsonaro. Damares comandará a pasta das Mulheres, da Família e dos Direitos Huma-nos, uma estrutura nova que será criada em 1º de jane-iro e que albergará também a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pelas políticas públicas voltadas para as populações indígenas no país. Pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, a advogada terá a missão delicada e ao mesmo tempo estratégica de formular pautas para os grupos mais vulneráveis da sociedade, ao mesmo tempo em que terá de responder à base conservadora que ajudou a levar Bolsonaro ao poder, um político que rejeita o conceito de "minoria" e relativiza até mesmo o de direitos humanos.

“Essa pasta vai lidar com proteção de vidas, não com morte”, disse, como cartão de visitas, Damares nesta quinta-feira. Ela é uma militante contra o abor-to e rejeita que o tema seja encarado como uma ques-tão de saúde pública, apesar das milhares de mortes por ano no Brasil decorrentes de interrupções clan-destinas de gravidez. Se neste ponto está alinhada com Bolsonaro e sua base, em outro discordou do eleito: “Se depender de mim vou para a porta da empresa em que o funcionário homem, desenvol-vendo papel igual da mulher, ganhe mais. Acabou isso no Brasil”, declarou. Durante a campanha, Bol-sonaro afirmou mais de uma vez que, na questão de definição salarial e brecha de gênero em empresas privadas, o Estado não deveria interferir.

A futura ministra é desde 2015 assessora parla-mentar do senador Magno Malta (PR), uma das prin-cipais figuras da bancada evangélica. Até então com salário líquido de 4.408 reais, virou ministra no lugar que muitos imaginavam pertencer a seu chefe. Apoi-ador de primeira hora de Bolsonaro, Malta não esconde seu ressentimento com o presidente eleito por ter sido preterido na montagem da Esplanada. Assim como ocorreu com a escolha do titular da Edu-cação, Ricardo Vélez, Bolsonaro passou por cima de

aliados no Congresso Nacional, que reclamaram nos bastidores de terem sido ignorados pelo presidente eleito na seleção. As queixas agora viraram públicas: "Se até o momento ficava claro alguma ingratidão com o Magno Malta, agora chegou a ser afronta. Acho que ele [Bolsonaro] erra em convidar e ela [Da-mares] erra em aceitar. Não foi uma coisa muito bem conduzida", diz o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM), aliado de Malta no Congresso

Atuação evangélicaA ligação de Damares com aliados do presidente

eleito, no entanto, é anterior ao vínculo com o sena-dor pelo Espírito Santo. Antes, ela trabalhou para o deputado federal Arolde de Oliveira (PSD), senador eleito pelo Rio de Janeiro cujo sucesso nas urnas em outubro se deveu, em grande parte, ao suporte do clã Bolsonaro. "Ela foi minha assessora durante uns quatro anos. Saiu em 2014 e nós negociamos com o senador Magno Malta para ela continuar fazendo o mesmo trabalho lá", conta Oliveira. "É uma advoga-da muito atuante, uma educadora, e é pastora. Então os valores e princípios dela são aqueles valores juda-ico-cristãos", acrescenta.

O deputado diz ter convidado Damares para auxi-liá-lo após ter acompanhado o seu trabalho como colaboradora da frente parlamentar evangélica. Antes de trabalhar para Oliveira, ela foi chefe de gabi-nete de outro expoente da bancada neopentecostal na Câmara, o deputado federal João Campos (PRB). O parlamentar, pré-candidato à presidência da Câmara e autor do polêmico projeto da cura gay, diz que a militância de Damares em temas caros aos evangéli-cos a tornou conhecida no meio religioso. "Na medi-da em que foi se dedicando a esses temas, ela foi ficando conhecida e passou a ser solicitada a fazer palestras nos mais diversos Estados do Brasil", relata Campos.

Na Internet, é possível encontrar vídeos em que Damares afirma que "a ideologia de gênero é um grande maltrato contra as crianças do Brasil" e que "estão desconstruindo a identidade biológica" delas. Em sites especializados para o público evangélico, a pastora também é citada com certa frequência, denunciando, por exemplo, o que considera uma "guerra contra a família" promovida nas escolas bra-sileiras. Nesta quinta, porém, a futura ministra pro-

meteu fazer “um governo de paz entre o movimento conservador, o movimento LGBT e os demais movi-mentos.”

Questão indígenaO ponto mais polêmico do novo ministério criado

por Bolsonaro é sem dúvidas a transferência da Funai para o órgão. A saída da autarquia do guarda-chuva do Ministério da Justiça é fortemente criticada por antropólogos e lideranças indígenas, que temem retrocessos sobretudo na questão de demarcação de terras dos povos originários. O próprio Bolsonaro já declarou que pretende congelar os processos de demarcação existentes. Além do mais, em sua prime-ira coletiva de imprensa depois de anunciada minis-tra, Damares confirmou que o tema não deve ser prioridade. "O índio é gente e precisa ser visto de uma forma como um todo. Índio não é só terra", dis-se.

Damares, que anos atrás adotou uma menina indí-gena, se diz preparada para ter sob a sua responsabi-lidade o principal órgão de política indigenista em um país marcado por graves conflitos fundiários. As credenciais que ela apresenta, no entanto, estão longe de convencer antropólogos e movimentos orga-nizados de defesa dos direitos dos índios. A futura ministra afirmou ter iniciado seu trabalho no tema em 1999, quando trabalhou numa Comissão Parla-mentar de Inquérito (CPI) que investigou a Funai. "Assessorando a CPI da Funai, descubro que alguns povos no Brasil, por uma questão cultural, ainda matam crianças porque não sabem o que fazer com elas quando nascem com alguma deficiência física ou mental", disse Damares nesta quinta-feira. "Qu-ando descobrimos que isso acontecia, que filhos de mães solteiras não podem sobreviver, comecei um diálogo que acabou se prolongando de tal forma que estou há 16 anos cuidando de crianças indígenas no Brasil sempre com diálogo e respeito", acrescentou.

Damares tocou num assunto que é questionado por muitos antropólogos no país. Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Saulo Feitosa, que foi membro do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a futura ministra "descontextu-aliza" casos esporádicos de abandono de crianças indígenas. "Há informações de que em alguns povos há abandono de crianças, temos alguns relatos, inclusive lemos através da imprensa geral de que houve situações em que as crianças foram abandona-das. Mas esses relatos são muito esporádicos", reba-te Feitosa. "Não há em hipótese alguma a possibili-dade de se aceitar de que haja um abandono ou des-carte de crianças em massa entre povos indígenas. Isso é mentira e nunca vai se aproximar da quantida-de de crianças que são abandonadas no mundo urba-no", conclui. De acordo com o professor, o trabalho de Damares nessa temática se insere num esforço de se "criminalizar" determinadas práticas tradicionais indígenas, com o objetivo de retratá-los como comu-nidades bárbaras e, dessa forma, facilitar a desterri-torialização dos povos tradicionais do País.

Nesse sentido, Damares é tida como uma das idea-lizadoras de um projeto de lei na Câmara dos Depu-tados que propõe o "combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas". Justamente pelo seu histórico de atuação, a nova ministra representa uma guinada sem precedentes na política indigenista do Brasil, o que deve sofrer forte resistência de setores da socie-

dade civil. ̈ ¨¨

Por Ricardo Della Coletta – El Pais

GOVERNO BOLSONARO

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O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

Se as paredes do apartamento de Betty Dodson falas-sem. Pela sua residência, localizada no coração de Manhattan, passaram tantas mulheres em busca de

prazer que a artista e sexóloga não se atreve a calcular. Aos 89 anos de idade, essa velha roqueira do feminismo se orgu-lha de décadas ensinando técnicas de masturbação a suas clientes. A ideia não apareceu sozinha em sua cabeça. Nem a fama. Nos anos 60, ela organizou orgias na mesma sala onde atualmente realiza suas oficinas de sexo. Foi então que percebeu que muitas das participantes fingiam sentir prazer. Paralelamente, a artista expunha seus quadros rupturistas de vulvas e pessoas praticando sexo e, sem que essa fosse sua intenção, as moças recorriam a ela em busca de respos-tas.

São duas da tarde e Betty não atende à campainha no nono andar. E também não atende o celular. Na portaria, o zelador dá de ombros, supondo que a octogenário não tenha colocado os aparelhos auditivos. De volta ao nono andar. Uma empregada se oferece para abrir a porta. "Bata palmas para que ela não se assuste", recomenda. A sala que teste-munhou tantas vezes um coro de gemidos se encontra em silêncio e quietude. Os aplausos não surtem efeito. Vários passos adiante, no limiar do quarto, aparece uma cesta com dezenas de vibradores. Finalmente, uma resposta: Betty Dodson, a mulher que subia nas mesas há seis décadas para explicar como os vibradores eram usados, aparece na cama vestindo apenas uma camiseta preta de mangas curtas.

Betty se masturba desde os cinco anos de idade. Se há alguém a quem agradece por ter vivido uma sexualidade livre é a sua mãe. “Uma mulher do Kansas" sem instrução, mas com bom senso", diz a sexóloga, e alerta para os danos que os pais causam cada vez que repreendem um filho por se tocar: "Se lhe dizem que isso é nojento, a primeira lição sobre sexo é negativa, quando é um dos aspectos mais importantes no crescimento de uma pessoa, e que obtenha prazer disso". A sala tem dois grandes quadros assinados pela artista. Um é de sua mãe aos 65 anos posando nua em uma posição horizontal. "Ela me pediu para desenhá-la assim, 'como as modelos', me disse."

A segunda de quatro irmãos, sendo os outros três homens, Betty chegou a Nova York nos anos 50 para se formar desenhista. Aos 35 anos, quando seu casamento

acabou, a segunda onda feminista eclodia. "Eu queria me casar novamente, mas não era a hora para isso. Era hora de viver." Apareceram as pílulas anticoncepcionais, licença maternidade e a organização pró-direitos civis das mulhe-res. O livro The Mysticism of Feminism (1963), de Betty Friedan, abriu os olhos dela. Dodson comungava com a análise da autora, mas sentia que havia deixado de lado um aspecto que agarrou como sua bandeira de luta: a liberação sexual das mulheres. Como artista, desenvolveu a primeira exposição de arte erótica feminina na Wickersham Gallery e, alguns anos depois, projetou slides de vulvas na NOW Sexuality Conference. Ele se envolveu com tudo na revolu-ção.

Em paralelo à exibição de suas obras, começou a partici-par de reuniões feministas e lhe sugeriram que criasse seu próprio grupo. Convidou suas amigas, namoradas e vizi-nhas para "festas sexuais", onde compartilharam suas expe-riências. "Eram só queixas, muito entediante: 'Acho que meu marido me engana', 'ele nunca pega o lixo', 'gasta muito dinheiro com isso'. Então havia essas mulheres que não sabiam nada sobre sexo e eu decidi ensiná-las. Eu tran-sava muito, algo de que me orgulhava e que era raro para a época", relata com ares de que ainda lhe agrada. "Senti a necessidade de instruí-las, o orgasmo não é alcançado pela magia." Para ela, essa autonomia sexual representa uma dose de liberdade para as mulheres; um momento em que se reconciliam consigo mesmas e se afastam de suas insegu-ranças.

As imagens das conferências dadas por Betty estão expostas na Biblioteca da Universidade Harvard, na seção "A História das Mulheres na América". No final dos anos 60, ela foi pioneira ao explicar publicamente o uso correto de vibradores. "Os homens riam de mim. E me davam apeli-dos vulgares, até meus irmãos, mas nunca me senti intimi-dada por isso”, esclarece. Gloria Steinem, a grande referên-cia da segunda onda, com Friedan, descreveu Dodson como uma das "primeiras feministas" depois de vê-la debater em um lugar sombrio. "Foi a primeira vez que ouvi mulheres sendo sexualmente honestas em público", disse ela na épo-ca.

A cama de casal semidesfeita é vigiada por uma fotogra-fia de uma de suas oficinas de fim de semana (1.200 dólares,

4.650 reais): um grupo de mulheres nuas de diferentes ida-des, tamanhos e origens posa sorrindo. "Em geral vêm garo-tas entre 30 e 50 anos. Muitas nunca se tocaram em sua vida", diz ela. Nos cursos, as participantes falam sobre sua intimidade, encaram seus genitais diante de um espelho, tocam-se, fazem exercícios de respiração, e o que vem a seguir ... Betty não conta. Ela também faz sessões particula-res por uma tarde (1.500 dólares, 5.800 reais) exigidas prin-cipalmente por senhoras mais velhas. O meio século de Dodson no negócio a levou a uma conclusão decepcionan-te: "Ainda continuamos reprimidas". Ela responsabiliza a religião, especialmente a católica. Quanto ao que melho-rou, depois de uma longa pausa, responde: a Internet. "Já não podem nos controlar como antes", diz, com uma risada quase maquiavélica.

Não gosta do movimento #MeToo. "A ideia de ser uma vítima indefesa nunca passou pela minha cabeça. Minhas amigas pensam que é importante expressar a dor, mas acho que fazemos isso demais. Tenho vontade de lhes dizer 'con-tinuem com a sua vida, façam uma aula de defesa pessoal'. Toda vez que um homem tentou me foder e eu não queria, eu o derrubei. E não gritava socorro, socorro, socorro (ex-clama simulando a voz de uma menina)." Sobre o que fazer para mudar as coisas, ela responde que "essa é a pergunta de 64 milhões de dólares", mas que tudo ajuda, embora "ainda falte muito para que sejamos iguais. O principal é alcançar a equidade salarial".

A mulher que viu seus pais e os três irmãos partirem completou 89 anos em agosto. No meio da mesa onde se realiza a entrevista, há um cinzeiro no qual repousa um cachimbo de maconha e um cigarro deixado pela metade. Ela não tem uma resposta sobre como consegue se manter forte, mas reconhece que os remédios ajudam. Tem vários, mais de mil, talvez. Os frascos de medicamentos estão per-feitamente arrumados em uma prateleira ao lado da porta da cozinha, como se fosse uma de suas obras expostas. "Não tenho nada a esconder", confirma mais uma vez a mulher que está há 50 anos lutando para tirar o véu que cobre a sexu-alidade feminina.

A CHEGAR AO ORGASMO

Por Antonia Laborde - El Pais

Aos 89 anos, a norte-americana Betty Dodson, ícone do feminismo, dá oficinas de sexo em sua casa em Nova York

A artista e sexóloga Betty Dodson em seu apartamento, Nova York. JASPER HAYNES

A OCTOGENÁRIA QUE ENSINA SEXOLOGIA

Filtro

Sylvia Colombo - Fonte: Folha S Paulo

Familiares cobrem corpos com lençol ou improvisam caixão de cartolina

“Levei cinco dias para juntar dinheiro para recolher o corpo do meu pai do necrotério, outros sete para achar um espaço no cemitério. Quando não tinha mais como pedir dinheiro a parentes e amigos para mais nada, decidi que faríamos, com meus irmãos, um caixão com cartolina. Mas foi tudo com muito amor e oração, sei que ele agora finalmente está em paz.”

O relato comovido de Willy Olmedo, 25, do município de Sucre, na região metropolitana de

Caracas, à Folha, resume alguns desses percal-ços.

“Aqui mesmo já vi alguns sendo enterrados em lençóis, coisa que só tinha escutado que esta-va acontecendo no interior, agora chegou aos subúrbios de Caracas”, diz.

Ele conseguiu enterrar o pai em um cemitério convencional, mas para os mais pobres isso ficou fora do alcance. Em outra parte do município de Sucre, moradores que não conseguem pagar pelo enterro em um local legalizado passaram a sepul-tar seus parentes em um terreno baldio, sem licença.

Se entre os estratos mais pobres da população falta dinheiro para tirar o corpo de um necrotério

público —trâmite antes gratuito, mas hoje sujeito à cobrança de subornos—, conseguir espaço num cemitério e até comprar um caixão simples, entre os de classe média ou mais endinheirados o problema passa também por outros procedimentos, como cre-mar ou embalsamar.

Muito comum também se tornaram as profanações de sepulturas, atrás de obje-tos de valor, e o roubo das placas de ouro ou bronze.

“Tiraram as placas com o nome de todos os meus

familiares. Tivemos de reunir os parentes aqui para fazer um mapa baseado em nossas lembran-ças para lembrar quem está onde. Foi muito dolo-roso, como reviver cada funeral”, diz Norma Her-rera, 52, ao mostrar à reportagem o lote da famí-lia, com buracos nos locais das placas, no tradici-onal Cementerio del Este.

Se no começo as cremações passaram a ser comuns, por conta dos custos de um funeral tra-dicional, agora nem estas podem ser feitas em todos os estados do país. Em Zulia, por exemplo, como reportou a Reuters, Angelica Vera, 27, não pôde cremar o pai, por falta de gás no cemitério local.

“Essas coisas fazem que a tragédia da morte continue acentuando a tristeza da ausência de um parente”, conta Herrera, enquanto mostra, cami-nhando pelo cemitério caraquenho, algumas sepulturas com o cartaz: “Esta aqui já foi viola-da”.

“Quase coloquei um cartaz assim na nossa. Porque não basta recolocar as placas, reformar sepulturas, se você pode ter de enfrentar isso tudo de novo”, disse Herrera.

Com a inflação projetada pelo FMI em 1.000% para este ano e a crise gerada pela falta de papel-moeda no mercado, há uma busca extra por metais e pedras preciosas.

Além da migração para as regiões de minera-ção do país, outra fonte para obtê-los é por meio do roubo de joias, pedras preciosas, bancos que guardam ouro e, por que não, violação de sepul-turas e roubos de placas em lápides.

CRISE OBRIGA VENEZUELANOS AENTERRAR PARENTES NO QUINTAL

Venezuelanos em Maracaibo cavam buraco no quintal de casa para enterrar familiar - Gerard Torres-26.set.2018/AFP

Familiares enterram venezuelano Ender Bracho, 39, embrulhadoem lençol no quintal de casa - Gerard Torres-27.set.2018/AFP

CRISE

Filtro 21

O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

EFE / EL PAIS

OGoverno egípcio pediu no sábado à

Promotoria Geral que investigue um vídeo divulgado nas redes sociais em que

se vê um casal escalando uma das três pirâmides de Gizé e que acaba com os dois nus no topo. Em um comunicado, o ministro egípcio de Antiguidades, Khaled al Anani, pediu para que “sejam tomadas as medidas necessárias” sobre o caso de um vídeo filmado por “um casal estrangeiro”, além da publicação de uma fotografia que “atenta contra a moral”.

Por isso, Al Anani enviou o caso à Promotoria Geral egípcia para que seja investigado o material publicado pelo casal, que supostamente escalou uma das pirâmides durante a noite, de acordo com o comunicado. Por outro lado, a agência de notícias estatal MENA afirmou que nas redes sociais foi divulgado “um vídeo publicado por um fotógrafo dinamarquês em que ele aparece escalando a grande pirâmide durante a noite com

sua amiga e gravando cenas de libertinagem no final do mês passado”.

A MENA se refere ao texto publicado pelo fotógrafo dinamarquês, identificado como Andreas Hvid, com sua colega Josephine Sarah em sua conta da rede social Instagram e da plataforma YouTube. Em 5 de dezembro, o fotógrafo Andreas Hvid publicou um vídeo em sua conta do YouTube em que comentou na descrição que ele e sua amiga escalaram a pirâmide de Quéops “temendo ser vistos por muitos guardas” e que ocorreu, de acordo com Hvid, “no final de novembro de 2018”, sem dar uma data precisa. A autenticidade desse vídeo, entretanto, não pôde ser verificada até o momento.

Na filmagem, de três minutos de duração, é possível ver como o casal escala durante a noite uma das pirâmides e chega, supostamente, ao topo, onde nos últimos vinte segundos da gravação a mulher começa a tirar a roupa, ficando seminua. No final da filmagem, aparece uma imagem fixa do casal totalmente nu praticando

uma posição sexual tirada com a luz do amanhecer.

Na conta do Instagram do fotógrafo dinamarquês foram publicadas várias imagens tiradas do alto de vários edifícios e estruturas, incluindo uma em que também aparece uma mulher seminua em cima de uma ponte em Budapes te , uma imagem semelhante à supostamente realizada no Egito.

Não é a primeira vez que ocorre esse tipo de polêmica sobre as três pirâmides de Gizé. Em 2015, o jovem alemão Andrej Ciesielski foi preso e expulso para sempre do Egito por subir sem autorização no alto de uma das pirâmides. Além disso, em março de 2017, a modelo belga Marisa Papen posou nua na explanada das pirâmides de Gizé e posteriormente foi presa durante um dia no templo de Karnak, em Luxor, quando tirou suas roupas para outra sessão de fotos.

CASAL FAZENDO SEXO NO ALTO DE UMA PIRÂMIDE CAUSA ESCÂNDALO NO EGITO

Filtro22

Uma única estrada chega até a cidade de Guari-bas, no extremo sul do Piauí. Pelo menos 50 quilômetros de terra batida separam o municí-

pio — que estreou o Bolsa Família há 15 anos por ser na época o mais pobre do país — da vizinha Caracol. Com a dificuldade de acesso e a frágil economia inter-na comum às pequenas cidades do sertão nordestino, as poucas possibilidades de trabalho ali se resumem aos cerca de 400 cargos da prefeitura, ao modesto comércio local e à agricultura de subsistência. É signi-ficativa a importância do serviço público de saúde nesta comunidade onde 62% dos moradores depen-dem diretamente da média de 282 reais que o Governo federal transfere todo mês para cada família cadastra-da no Bolsa Família.

Até duas semanas atrás, dois médicos cubanos se revezavam entre os três postos de saúde da cidade para garantir o atendimento a uma população de 4.401 habitantes. Junto com enfermeiros, técnicos e agentes de saúde, eles conseguiram assistir a 82% das 876 famílias que necessitam de acompanhamento periódi-co pelo Governo por terem crianças de até sete anos ou gestantes, um desempenho considerado "muito bom" no relatório publicado em outubro pelo Ministé-rio do Desenvolvimento Social. Os dados são positi-vos, mas a cidade ainda enfrenta uma série de desafios na atenção básica. A taxa de mortalidade infantil média na cidade — de 17 óbitos para 1.000 nascidos vivos — é superior à média nacional (14). Além disso, apenas um terço das casas tem esgotamento sanitário adequado, uma estrutura fundamental para evitar doenças como diarreia, hepatite A e verminoses, geralmente tratadas e prevenidas justamente com a ajuda dos profissionais da atenção básica.

O fim da cooperação de Cuba no programa Mais Médicos em novembro deixou a cidade, que dependia exclusivamente dos médicos cubanos, desassistida. Guaribas é um dos 31 municípios que não despertou o interesse dos profissionais brasileiros. Uma médica ainda chegou a ser selecionada para uma das vagas, mas informou a desistência à prefeitura dias depois da inscrição. A segunda vaga sequer chegou a ser cogita-da por outro candidato. Catalogado na condição de extrema pobreza e 650 quilômetros distante da capital Teresina, o município segue com suas duas vagas no

primeiro edital do programa, cujas inscrições se encerraram nesta sexta-feira. As condições urbanísti-cas da cidade não ajudam a atrair os profissionais: segundo o IBGE, as vias públicas não têm estrutura de urbanização mínima adequada, com a presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio.

"Aqui não tem mais médico, só enfermeiro. Tira-ram os médicos. Por que fizeram isso? Aqui já é tudo tão difícil, aí ainda tiram o pouco que a gente tem", se queixa a aposentada Amélia Alves Rocha, de 67 anos. Ela diz que nas últimas semanas acompanhou o mari-do Nilho Alves Rocha, de 75 anos, no posto para con-seguir o remédio que ele toma para controlar a hiper-tensão, mas sem médico para dar a receita, não conse-guiu a medicação gratuitamente. O casal criou sete filhos graças ao Bolsa Família e hoje vive da aposen-tadoria e da mandioca que plantam na roça. Com a seca que historicamente assola a região — Guaribas é um dos municípios que decretaram estado de emer-gência por esse motivo neste mês — nunca houve muita expectativa de melhorar de vida. "Antes nin-guém tinha nada aqui, aí Deus preparou esse Bolsa Família. O cartãozinho salvou a gente que tinha muito filho porque a vida aqui sempre foi muito complicada. As coisas são caras, ainda hoje a gente tem que com-pletar o aposento com o pouco que planta na roça", conta.

Amélia conta que a ausência de médicos na cidade é um problema, mas demonstra resiliência ao argu-mentar tempo pior era aquele em que a família dormia nos colchões que eles mesmos faziam com plásticos recheados do capim colhido na serra. "Perdi uma filha de seis anos e uma neta porque elas brincando tocaram fogo num colchão desses. Morreram as duas queima-das. Ruim mesmo era naquele tempo que a gente tinha que sair por aí no lombo de um jumento atrás de socor-ro nas outras cidades. Hoje tem até transporte pra levar", conta.

Enquanto as vagas do Mais Médicos não são subs-tituídas, enfermeiros e agentes de saúde das duas equi-pes de atenção básica prestam um atendimento míni-mo à população. "A gente se vira como pode. Tem muita coisa que só o medico pode fazer, mas a gente segue acompanhando as crianças e as gestantes que fazem pré-natal, por exemplo. Nossa sorte é que

temos aqui um serviço bem estruturado, então os pre-juízos até diminuem, mas é complicado", diz o enfer-meiro que coordena a Atenção Básica no município, Francisco Júnior.

Três horas de viagem por um atendimentoQuando esses profissionais identificam serviço de

urgência ou situações que não podem solucionar sem a presença do médico, os pacientes são encaminhados para a cidade que é referência para os 20 municípios da região da Serra da Capivara. Eles enfrentam quase três horas de viagem e percorrem mais de 100 quilô-metros (a metade deles de estrada carroçal) até chegar ao Hospital Regional ou à Unidade de Pronto Atendi-mento (UPA) de São Raimundo Nonato. "A situação é a seguinte: a gente já é acostumado. Médico é bom porque a gente se consulta, mas se não tem o jeito é ir pra São Raimundo quando o problema piora. É muito complicado, mas dá pra gente ir vivendo", se confor-ma Amélia.

Outra opção, dizem moradores de Guaribas, é ten-tar atendimento em Caracol, cidade mais próxima, a 50 quilômetros do município. No entanto, moradores dizem que a situação lá também não está fácil. "Na região toda a situação tá horrível. Caracol perdeu três médicos, uma cubana e dois brasileiros que se inscre-veram no programa e foram pra outras cidades", conta o agricultor Raimundo Ribeiro. O EL PAÍS tentou confirmar os números com a Prefeitura de Caracol, mas não obteve resposta.

O fato é que a dificuldade de preencher as vagas deixadas pelos médicos cubanos e mesmo a migração de profissionais que já atuavam na atenção básica sob um regime de contrato com as prefeituras para outros municípios do programa Mais Médicos já repercute na UPA e no Hospital Regional de São Raimundo Nonato. "A demanda tem aumentado muito com essa dificuldade na atenção básica. Temos recebido muitos casos de gripe e febre que seriam facilmente resolvi-dos no posto de saúde", afirma a diretora do hospital, Nilvania Nascimento. Na atenção básica, a cidade polo também sofre com a crise do Mais Médicos: teve seis vagas abertas no primeiro edital. ̈ ¨¨

MAIS MÉDICOS

O RETRATO DE UMA CIDADE PARA ONDENENHUM MÉDICO BRASILEIRO QUER IR

Em Guaribas, 62% dos moradores dependem diretamente do Bolsa Família U. DETTMAR AGÊNCIA BRASIL

Filtro 23VÍDEOS DA BBC NEWS

Meu marido cortou minhas mãos com um machado'Em dezembro de 2017, depois de deixar os filhos do casal no berçário, Dmitry Grachev, então marido de Margarita Gracheva, 26, a levou até uma floresta nos arredores de Moscou. Então, ele a prendeu e cortou as duas mãos da esposa com um machado, porque achava que ela o estava traindo. Clique na imagem abaixo.

Caixa-preta'? O BNDES em cinco perguntasO nível de transparência do banco de desenvolvimento foi um dos temas polêmicos das eleições e é assunto comum nos discursos de Bolsonaro. Afinal, quais informações o BNDES torna públicas e quais mantém em sigilo? Assista o vídeo abaixo