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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação ALESSANDRA APARECIDA DE MELO DI MENOR: filosofia da diferença, dobras, imagens e passagens entre vozes marginais da cidade e da Fundação CASA. CAMPINAS 2019

DI MENOR: filosofia da diferença, dobras, imagens e ...€¦ · medidas em privação de liberdade? Os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari ajudam-nos a pensar em grupos

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

ALESSANDRA APARECIDA DE MELO

DI MENOR:

filosofia da diferença, dobras, imagens e passagens entre

vozes marginais da cidade e da Fundação CASA.

CAMPINAS

2019

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ALESSANDRA APARECIDA DE MELO

DI MENOR:

filosofia da diferença, dobras, imagens e passagens entre

vozes marginais da cidade e da Fundação CASA

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Educação

da Faculdade de Educação da Universidade

Estadual de Campinas como parte dos

requisitos exigidos para a obtenção do título

de Mestra em Educação, na área de

concentração Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Alik Wunder

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DE DISSERTAÇÃO

DEFENDIDA PELA ALUNA ALESSANDRA APARECIDA DE MELO E

ORIENTADA PELA PROFA. DRA ALIK WUNDER

CAMPINAS

2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

DI MENOR:

filosofia da diferença, dobras, imagens e passagens entre

vozes marginais da cidade e da Fundação CASA

Alessandra Aparecida de Melo

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dra. Alik Wunder

Prof. Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

Profa. Dra. Alda Regina Tognini Romaguera

Prof. Dr. Patricio Alfonso Landaeta Mardones

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e

na Secretaria do Programa da Unidade.

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Dedicado a todos os ‘di menor’ que mesmo frente às adversidades sustentam-se

em pé: matilha, bando em devir.

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Agradecimentos:

Reverência à vida que é uma dádiva e que por muitos caminhos me impeliu

a chegar até aqui. Agradeço a minha mãe Dirce portal para este mundo, fonte de força,

calma e amor, ao meu pai Mingo (in memoriam) por me ensinar a dar um jeito nas

coisas da vida, à minha irmã Josy e ao meu querido Stéfano pelo incentivo, minhas

filhas Melissa, Helena e Maya por me manterem atenta e forte.

Alik Wunder, querida orientadora, obrigada pela confiança, respeito,

liberdade e cuidado sempre tão especiais dedicados a mim e a este trabalho, também

pelos tantos aprendizados, belezuras, ventos, cores e imagens partilhados nestes

muitos anos de parceria.

Agradeço ao Prof. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim por abrir-me

espaço de trabalho e estudo na Faculdade de Educação da Unicamp, acontecimento

divisor de mundos.

Marli Wunder sou muito grata, pois você me ensinou a desviar o olhar e ver

pequenas coisas.

Agradeço ao grupo Humor Aquoso da Faculdade de Educação da

UNICAMP por ser um espaço aberto à criação, estudo e mutações.

Lembranças e afetividades devotadas ao Coletivo FABULOGRAFIAS que

me proporcionou tantas vivências em muitos anos de oficinas, imagens e trocas.

Vitor Epifânio obrigada pelos desenhos tão especiais.

Miguel, obrigada pela edição dos vídeos.

Minha amiga Tati, eu não estaria aqui sem teu incentivo.

Grata ao Cursinho da moradia, aos professores e a casa A10 que tanto me

acolheu antes e durante a graduação.

Agradeço a professora da disciplina de português Maria Luiza que no

ensino fundamental tanto me incentivou a leitura carregando uma caixa cheia de livros

toda semana para sala de aula para que nos tornássemos leitores em uma escola que

mantinha a biblioteca fechada.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de

Financiamento 001.

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“Conversações duram tanto tempo, que já não sabemos mais

se ainda fazem parte da guerra ou já da paz”

(DELEUZE, 1992, p.7)

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Resumo:

Quais são as possíveis formas de vida que resistem à marginalidade nas pensões do

centro da cidade de Campinas e as salas de aula da Fundação CASA (Centro de

atendimento ao adolescente), entidade sócio educativa na qual menores cumprem

medidas em privação de liberdade? Os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari

ajudam-nos a pensar em grupos que podem ser aproximados a personagens de

Kafka. Andar pela cidade, perambular, deambular, seguir forças que se arrastam para

todos os lados. Pensões, viadutos, túneis, guetos, sinais, zonas de prostituição e

tráfico. E mais, força que arrasta e que nos leva a durante os dois anos a atuar como

professora da disciplina de filosofia, local no qual realizamos uma oficina de

produções imagéticas e textuais nas salas de aula da Fundação CASA. Se por um

lado olhamos com olhar atento, por outro nos deixamos guiar por esta prática em sala

de aula1 que se abre a deriva e que traça seu próprio mapa de acordo com a própria

ação. Identificamos diversas dobras subjetivas nestes ‘di menor’ e propomo-nos a

pensar os textos-imagens produzidos e coletados a partir da ideia de literatura menor

que Deleuze (DELEUZE,1977) desenvolve partindo da literatura de Kafka. As

narrativas dos dois territórios da dissertação desenvolverem-se a partir de encontros

com pessoas de grupos minoritários, marginalizados pelas dinâmicas da cidade e de

uma dupla experimentação com o conceito ‘di menor’ na medida em que ele é

encontrado ao se notar o mapa que compõem as forças e ao realizar a prática

docente. Ao percorrer estes territórios poéticos pretende-se falar de uma prática

docente, para compreender quais linhas estão conectadas: “acontecimentos vividos,

determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações

sociais” (DELEUZE, 1975, p.17). Também pretende-se buscar as potências das

imagens-palavras, deixar que rompam, agrupam-se e escapem incessantemente das

instituições normatizadoras e à marginalização imposta pela miséria e pelo sistema

de controle dos corpos infratores. Para tanto nos lançamos na elaboração deste

conceito ‘di menor’.

Palavras chave: Deleuze,Gilles; Kafka, Franz; Fundação Casa; Fotografia;

Educação; Diferença (Filosofia)

1 https://www.youtube.com/watch?v=LuTqmI_GLXM

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Abstract:

What are the possible forms of life that resist the marginality in the pensions

of the city center of Campinas and the classrooms of the Fundação CASA (Adolescent

Service Center), a socio-educational entity in which minors comply with deprivation of

liberty measures? writings by Gilles Deleuze and Félix Guattari help us to think of

groups that can be approximated to Kafka characters. What are the folds that can be

identified in the imagery and textual productions carried out in a workshop in the

Fundação Casa classrooms? that these encounters entailed? What was produced in

these folds? What moves these textual and imagistic creations? What are the

assemblages and folds produced by the displacement in the crossed territories? What

make up the generated flows? We propose to think the texts-images produced and

collected from the idea of minor literature, which Deleuze (DELEUZE, 1977) develops

from the literature of Kafka. of the two territories of the dissertation are developed from

meetings with people from minority groups, marginalized by the dynamics of the city.

When we go through these poetic territories, we want to understand which lines are

connected: "lived events, historical determinations, thoughtful concepts, individuals,

groups and social formations" (DELEUZE, 1975, p.17). It is also intended to search for

the powers of word images, to allow them to break up, to group together and to escape

incessantly from the normative institutions and to the marginalization imposed by the

misery and the control system of the offending bodies.

Keywords: Juvenile Detention Center, Photography, Philosophy of diference,

Education

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Sumário:

Território Monólogos Marginais...................................................11

Mapa em rascunho..............................................................................12

S(a)cola do Mundo .............................................................................22

Monólogos Marginais..........................................................................34

Território Di menor........................................................................92

Di menor ............................................................................................93

Escritas-imagens míticas..................................................................112

Fabulações imagéticas ...................................................................124

Considerações Finais.......................................................................154

Bibliografia .......................................................................................156

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Monólogos Marginais

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Mapa em rascunho

Este texto pretende apresentar o mapa aberto dos dois territórios que são

percorridos na pesquisa de Mestrado: DI MENOR: filosofia da diferença, dobras,

imagens e passagens entre vozes marginais da cidade e da Fundação CASA. Este

mapa é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível

de receber modificações constantemente, rascunhado e mutável. Espalha-se por

todos os lados ramificando, crescendo nas bordas sendo grama, extravasando

sentidos nos cantos escuros, gotejando palavras, batendo ferro com ferro. Ecoando

nos silêncios sem regras definidas. Deambular, caminhar, esgotar, compreender o

que existe entre conhecer e intervir. Apostando metodologicamente na cartografia, o

trabalho é uma intervenção realizada no plano da experiência, acompanhada e

mergulhada. Existência, desistência e resistência, esgotamento, territórios e devires

minoritários. Quais são as possíveis formas de vida que resistem à marginalidade?

Estas formas de vida são aquelas que desenham as linhas e agenciamentos que são

expostos no vão das coisas, um mapa de passagens como são as pensões do centro

da cidade de Campinas e as salas de aula da Fundação Casa, entidade sócio

educativa na qual menores cumprem medidas em privação de liberdade.

Sempre almejamos dar passagem a este grande rizoma, este mapa em

rascunho que ao ser rascunhado já se transformou. A grande mobilidade é o que

conecta gestuais, músicas e tatuagens dos internos da Fundação Casa a pequenos

delitos no centro da cidade de Campinas. “Um rizoma não começa nem conclui, ele

se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE, 2004,

p.37). Algo que muda e cresce, que corre pelo subsolo e aflora nas mãos de um

menino que conduz a vítima de sequestro relâmpago dentro de um Shopping

chamando-a de mãe, que evapora no ar nas rodas de crack das pensões, que

extingue vidas por cinco reais. Cadeias de acontecimentos que têm sua semelhança

nas forças que as arrastam em diversas direções, que mantém sua correlação, que

são atravessadas por linhas de fuga. E que de qualquer ponto que forem acessadas

desejam afetar, já que são polimorfas. É pelas linhas de intensidade que é dada

passagem a fluxos que se reagrupam e se misturam entre as coisas, no meio de

tantas coisas nesta caminhada imagética e poética. Imagens-palavra, palavra-

imagem, palavra-música, palavra-som, imagem-silêncios. Lançar-se ao mundo e

tateá-lo e ter encontros violentos com as coisas, imersões e submersões, fluxos em

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dois momentos, em dois territórios subjetivo/poéticos. “Monólogos Marginais” dá

passagem ao coletivo da marginalia de pensões e estabelecimentos do centro da

cidade de Campinas. O território ‘di menor’ é quem traz inúmeros desdobramentos

imagéticos e textuais provocados por oficinas realizadas na Fundação Casa. Ambos

os trabalhos permeados pela teoria de Gilles Deleuze que nos moveu a refletir em

diversas direções.

Um encontro nas aulas de filosofia que foram desenvolvidas como oficinas

de criação de imagens e palavras dentro das aulas com os meninos, uma atuação

como professora dentro dos centros de internação da Fundação CASA. Encontros

com imagens, palavras e devires menores. Criações textuais e imagéticas,

agenciamentos e dobras produzidos pelo deslocamento nos territórios atravessados.

O que compõem os fluxos gerados? A fronteira improvável onde algo acontece, uma

inclusão daqueles que estão às margens, uma imaginação que recolhe, que recorta

textos e imagens.

Figura 1: Quad

Propomo-nos a pensar os textos-imagens a partir da ideia de literatura

menor, que Deleuze (DELEUZE, 1977) desenvolve partindo da literatura de Kafka, em

especial pelo fato das narrativas dos dois territórios se desenvolverem impulsionados

com encontros com pessoas de grupos minoritários, marginalizados pelas dinâmicas

da cidade. Ao percorrer estes territórios poéticos pretende-se compreender que linhas

estão conectadas aos “acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos

pensados, indivíduos, grupos e formações sociais” (DELEUZE, 1975, p.17). Também

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se pretende buscar as potências menores destas imagens-palavras, deixar que

rompam, agrupam-se e escapem incessantemente das instituições normatizadoras e

à marginalização imposta pela miséria e pelo sistema de controle dos corpos

infratores.

O território “Monólogos Marginais” é a ressonância, vozes do centro da

cidade, dos marginalizados, uma experimentação de escrita, uma decupagem que

não pretende representar o real, mas que tem um compromisso com a realidade.

Coletivo da marginalia, a língua dos prostíbulos, dos guetos, das rodas de crack, das

esquinas do tráfico. Encontros com a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari e o

conceito de literatura menor (DELEUZE, 1977). Compomos as enunciações coletivas

que trazem este texto com a literatura menor que traz enunciações coletivas.

Trazemos fluxos e intensidades que também são enunciações coletivas e trazem uma

fora política destas vozes... Há inúmeras reverberações dos encontros com este

coletivo. Qual língua é esta? O que dizem estas vozes? Esta língua ‘di menor’ traz

silenciamentos e forças que arrastam essa escrita. Traz uma máquina de fala e

escrita, um experimento literário no qual se fundem os enunciados individuais e os

coletivos, um fluxo que puxa todo tipo de coisa. Um mergulho na experiência sem

oxigênio, experimentar, esticar a língua no espaço com fronteiras ilimitadas, Silêncios,

pulsos e intensidades. Um encontro com uma língua minoritária. Vozes, torções e

adulterações da língua oficial, assim como fazem os personagens de Kafka ao

misturar a língua alemã oficial a outras línguas, “estranhos usos menores”

(DELEUZE,1997, p.26), porém em um idioma diferente. Deslocamentos intensivos da

língua portuguesa, uma língua que se move nos vãos da língua oficial e a utiliza ao

seu bel prazer, experimentações marginais na cidade de Campinas: a língua das

travestis, dos fulanos, sicranos e beltranos, das crianças do crime, dos usuários de

drogas, moradores de rua, cafetões e prostitutas, pequenos ladrões, michês, de um

grupo, um coletivo de marginalizados pela sociedade. Pessoas esquecidas nos

cantos, nos escombros.

Um uso menor da língua não por grau ou tamanho, mas por pertencer a

uma minoria. Pessoas que utilizam a língua de forma semelhante àquele uso feito

pelos personagens de Kafka. Na obra “A metamorfose” (KAFKA, 1915), Gregor

Samsa um dia acorda transformado em um inseto gigante e por fim acaba excluído

da sociedade após esta mudança. Violência, transbordamento, murmúrio, palavras

que não são ouvidas tomam forma e espaço. Vozes que brotam das gretas, que

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ecoam nos silêncios, que ressoam no ferro das penitenciárias, nas gavetas dos

necrotérios. “Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua

dominante dentro de uma multiplicidade política” (DELEUZE, 1995 p.15). Fluxos

contidos, estancamentos. Encontros com línguas de populações excluídas pela

violência, nos cantos das pensões. Estancamentos, devires menores. São criações

textuais e agenciamentos desta obra, que trazem repetições, que dobram e compõem

os fluxos gerados e compõem com esta língua é esta falada na marginalidade? Os

“Monólogos Marginais” nascem de um modo de viver que implica em uma afirmação

silenciosa da vida, de formas de resistência destes fulanos, sicranos e beltranos.

Intentamos dar passagem, ser passagem deste dialeto. Como fazer isto? Permitindo-

se ver as conexões desta jornada e conectar estes começos.

Na obra “Mil Platôs” (DELEUZE & GUATTARI, 1995) Deleuze e Guattari

desenvolvem a ideia de rizoma tomando emprestado da biologia o termo que remete

aos tubérculos e suas raízes que se desenvolvem em diversas direções ramificando-

se de forma não centralizada. A escrita parte desta imagem de pensamento e deseja

produzir multiplicidades que podem ser acessadas de qualquer ponto, assim como

platôs com diversas velocidades. São os princípios de conexão e de heterogeneidade

que dizem que de “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro

e deve sê-lo” (DELEUZE, 1995, p.14) que moveram o desafio da escrita inventiva

desta dissertação: a construção de um texto que possa, e deva ser conectado a

qualquer outro ponto dentro deste texto. Uma escrita por vir, um invento movente, a

escrita que fabula este povo menor que fala por dela, que lhes dá voz e permanece

em constante mudança assim como este povo. Um povo nômade assim como os

meninos da fundação casa, sem rosto, sem identidade, sem nome “Trata-se de um

povo menor, eternamente menor” (LINS, 2012). Uma matilha de meninos sobre os

quais se escreve com a utilização de uma estética rizomática, da pretensão de criar

novos mundos, dobras, vãos. Libertar pensamentos de quem está fisicamente

encarcerado “libertar a vida é a tarefa principal do pensamento, isso porque a vida e

o pensamento estão encarcerados” (LINS, 2012). Meninos que possuem uma

saudade imensa de futuro e de tudo que os espera fora das grades.

A leituras das obras de Kafka e a reflexão de Deleuze (DELEUZE,1976)

acerca da escrita deste autor trouxeram inquietações sobre a complexa e

deslumbrante máquina de enunciados e agenciamentos de uma língua falada nos

vãos da língua oficial. Uma língua diferente da língua dominante, flexibilizada,

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reinventada, escorregadia. Uma língua menor, particular, feita por grupos nômades

que h abitam locais de passagens na Cidade de Campinas nos territórios

investigativos deste trabalho que são percorridos arrastados por esta potência ‘di

menor’. Populações sazonais em constante deslocamento, nômades urbanos que

dobram, torcem e rearranjam a língua oficial realizando uma “micropolítica do campo

social” (DELEUZE, 1995, p.14).

‘Di menor’ é fruto da instauração de um território de experimentação dentro

das salas de aula da Fundação Casa tendo a educação menor como inspiração

(GRUPO TRANSVERSAL, 2013). Menor, pois assim como a literatura desenvolvida

por Kafka possui flexibilizações, devires menores da língua alemã. Esta educação é

aproximada da ideia de que a educação menor também ocorre nos vãos da educação

curricular oficial como uma máquina de imagens-palavras, palavras-sons, palavras-

silêncio, visões. Fruto de oficinas dentro das aulas de filosofia do ensino formal da

Fundação Casa inspiradas pela teoria de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Acontecimentos que promoveram encontros, multiplicação de ideias, afetos,

atravessamentos, palavras e imagens dando impulso a uma ação poderosa contra a

homogeneização da subjetividade dos meninos. Produções textuais, imagéticas e

sonoras mobilizaram pensamentos. Arrastar, rachar os conceitos e extrair-lhes

devires, abrir novos possíveis, estados de variação, fluxos, imagens. Lançar-se sobre

o acontecimento, abrir-se a impossibilidades, enfrentar esgotamentos, buscar o

movimento. Seguir pistas da produção de imagens e da vida neste lugar de reclusão

regido pelos fluxos de entrada e saída de adolescentes foram algumas das trilhas

percorridas. Máquina de escrita e violência, a vítima ainda respira, explode a arma em

sangue, o menino corre, o carro capota e mergulha no córrego. Socorro? Para que

pressa? Bicho solto não morre, cai um levantam mil em cada boca de fumo, do ventre

da rua, das curvas das vielas, da fome das gretas, do pó do asfalto levantarão

multidões, matilhas encarniçadas sem medo, “plenos de vitalidade, asas, sonhos

molhados, tatuados em seus corpos como uma escrita vagabunda, viajante, errante,

eles molham o papel” (LINS, 2012). Palavras limites, sons quase inaudíveis,

murmúrios, palavras que escapam, desejos impossíveis, formas, cores, sons. O

amarelo vaza das grades e tudo amarela sob a pouca luz, um amarelo insuportável,

intolerável, impossível de se encarar sem membranas nictantes nos olhos, adereço

que só se ganha no nascimento bicho ou depois de muita desgraça partilhada nos

devires bicho homem. Fotografar e escrever para expulsar mundos, criar mundos,

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escrever para se livrar da morte anunciada e marcada que levará uma matilha sem

rosto.

O que estes encontros acarretaram? O que foi produzido nessas dobras?

O que move estas criações textuais e imagéticas? O que move são os agenciamentos

e dobras produzidos pelo deslocamento nos territórios atravessados. O que compõem

esses fluxos gerados é o resultado de tudo isto é uma grande bruxaria, um misto de

imagens-palavras e palavras-imagens nas aulas do ensino formal de filosofia. “Querer

estar menor” (GRUPO TRANSVERSAL, 2007, p.24) e fazer com que a aula seja um

vão. Desejar que algo aconteça no vão entre o currículo formal e o currículo oculto

desta instituição, Fundação Casa. Buscou-se um movimento de criação com palavras

e imagens que permitisse que o singular fosse considerado na relação com outras

singularidades, que um agenciamento coletivo pudesse brotar destas gretas e para

apontar as hastes deste rizoma.

Notou-se nos meninos tramas subjetivas que englobam o campo social

quanto ao conjunto de circunstâncias da vida que estão atreladas a valores do crime:

tatuagens que indicam um pertencimento, desejos da máquina capitalista, ostentação,

sucesso no crime, conquista de muito dinheiro e aquisições de tênis, motos, carros e

etc. Em relação à instituição destaca-se o “esquadrinhamento panóptico”

(FOUCAULT,1975) da estrutura física do lugar, a verificação do comportamento, a

produção de subjetividades fáceis de serem controladas para que se mantenha a

ordem e diminuam as singularidades e as diferenças. A estrutura do prédio, porta que

se abre e fecha-se. O olho esbarra em tudo que é canto, confinamento e os limites

físicos ali impostos. Grades amarelas, os meninos de branco e cinza. Cheiro de

guardado que adensa o ar. A passagem por diversos postos de vigilância e também

procedimentos de revista padrões de segurança, a contagem de material na entrada

e que ocorreria também na saída dos mesmos, o prédio que se organiza em andares.

No andar superior uma quadra coberta. No andar do meio os quartos que abrigam os

adolescentes de quatro em quatro e o banheiro ao fundo com uma porta que expõe

os pés e a cabeça daquele que o esteja usando, no térreo as salas de aulas.

A sala branca de portas de aço e grades amarelas abriga uma população

variável de meninos de doze a trinta, dependendo do período, com alunos do primeiro

ao terceiro ano do ensino médio. E também chegam meninos que não são

alfabetizados, vindos do ensino fundamental. O dispositivo panóptico é aquele que

obriga o jogo do olhar, este dispositivo permite que sejam visíveis os meios de

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coerção. Em sua obra “Vigiar e punir”, Foucault (1975) faz uma análise genealógica

da tecnologia do poder N na qual afirma que nossa sociedade não é a de espetáculos,

mas a de vigilância. O modelo arquitetônico panóptico desenvolvido por Jeremy

Bentham (1748-1832) como nos explica Foucault é um dispositivo de poder

disciplinar. Trata-se de uma construção em forma de anel com uma torre de vigilância

em seu centro. Este prédio estaria dividido em celas e cada uma destas celas

possuiria duas janelas, uma delas voltada para fora permitido a entrada de luz e outra

voltada para dentro para que a torre central tivesse total visão sobre o seu conteúdo.

Assim um único vigilante seria capaz de vigiar muitas celas ao mesmo tempo, pois a

torre central, por sua vez, possui janelas que permitem olhar através das janelas

interiores das próprias celas. O efeito que se busca com o panóptico é fazer com que

o detento se sinta em permanente estado de vigilância. Não se trata meramente de

um dispositivo físico, mas sim de uma forma de ação sobre os indivíduos vigiados

observando-lhes cada detalhe d e comportamento e conduta. Este território de

pesquisa se instaura não somente pela produção de imagens, mas também pela vida

neste lugar de reclusão que é a Fundação Casa e por seus fluxos de entrada e saída

de adolescentes. As linhas mínimas vazam o contido, extravasam silêncios e gritos,

reinventam a vida e a juventude em caminhos dantes desconhecidos, já que: “as

coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos caminhos que se acredita”

(DELEUZE & PARNET, 1998, p.12).

É inegável a diferença na velocidade dos corpos dos meninos internos na

Fundação Casa. O esquadrinhamento proposto, a visão panóptica que a instituição

incide sobre eles, a rigorosa verificação do comportamento pautado por relatórios de

conduta e revistas nesse regime de luz e segurança. E faz-se necessário considerar

essa particularidade e acolhê-la para se abrir ao movimento dos encontros. Mas diante

de tudo isto como se deu a produção? Produzimos materiais imagéticos e textuais

com estes devires-meninos. E a entrada nesse fluxo se deu de muitas maneiras:

conceitos filosóficos arrastados de diversas formas, uma oficina de criação poética e

experimentação fotográfica na sala de aula, o encontro com um conjunto de imagens

dos mais diversos tipos, o contato com a câmera fotográfica em a sala de aula,

solicitando respostas imagéticas a partir de perguntas, filmes e textos filosóficos.

Foram exploradas a potência da imagem, da palavra e o roubo criativo dos conceitos

filosóficos, rachamos as palavras para extrair delas outros devires e nos apropriamos.

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Cada movimento dentro da Fundação Casa produziu ao seu redor uma

fissura que extrapolada a normalidade. São visões, palavras e imagens indomáveis

de quem muito moço já ultrapassou o limite da vida. São imagens e palavras que

sequestram o ar. Vidas que estão por um fio e que cotidianamente convivem com a

morte e a destruição - companheiras desta trilha - e buscam outras formas de viver,

efeitos, itinerários, força dos encontros, dobras produzidas, tudo isto se mostra

conforme se habita os territórios. Implicação, produção, conexão de redes, um

verdadeiro rizoma, assumir que a realidade toda se comunica (KASTRUP, 2007).

‘Di menor’ instaurou um território de experimentação dentro da Fundação

nas aulas de filosofia do ensino formal. As aulas de filosofia sempre funcionaram como

dispositivo que abrisse passagem para que fosse possível ouvir os silenciamentos,

trazer à tona rupturas da linguagem oficial. Poéticas militantes em um território de um

povo em devir, uma população nômade em uma arquitetura panóptica. Uma

“experimentação ancorada no real” (PELBART, 2017, p.141) partindo das mais

diversas provocações. Permitir que a filosofia possa agir produzindo imagens. Como

isto seria possível?

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Figura 2: caderno de campo

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A cartografia é o acompanhamento de processos, conexão de redes e

trajetos (KASTRUP, 2007). A realidade não permite que sejam previstos os

resultados, ao adentrar as pensões ou ao elaborar uma oficina dentro das aulas de

filosofia da Fundação Casa. Não era possível saber destes encontros, o que havia era

um compromisso com a realidade. Um compromisso que guiava a escrita criativa, mas

que não a afastava da realidade. São diferentes linhas de composição que são

utilizadas como guias para esta aposta metodológica, no entanto, o fio de Ariadne não

nos leva a um fora, não nos tira do labirinto, é a conexão destas linhas e teias que faz

o desenho do mapa do rizoma. As ramificações deste rizoma compõem territórios,

locais habitados por grupos, linhas de tensão. Mas não existe um mapa definitivo

deste território de pesquisa, e sim conexões móveis, agenciamentos, rascunhos

absolutamente mutáveis, conectados, imprevisíveis e sem regras. Seria a intervenção

um caminho no qual cria-se uma realidade de si e do mundo.

O tema desta pesquisa, a busca por esta escrita criativa que hora

aconteceu individualmente e hora em grupo apareceu ao percorrer esta trilha. A

entrada na Fundação Casa não ocorreu por uma premissa da pesquisa e sim por uma

vontade de novamente entrar em contato com estes agenciamentos coletivos das

vidas em marginalidade. A delimitação teórica e o entendimento desta pesquisa

ocorreram ao longo do tempo, nas inúmeras revisitas a este material produzido

durante as aulas e durante as andanças pelo centro da cidade de Campinas. É

necessária uma atenção especial para a realização deste trabalho, para o

acompanhamento deste processo de produção e exploração das imagens-palavras,

palavras-imagens destes dois territórios investigativos. “Explorações mobilizam a

memória e a imaginação, o passado e o futuro numa mistura difícil de discernir”

(KASTRUP, 2008, p.18). Explorar o material da Fundação Casa é também explorar

as andanças dos “Monólogos Marginais” de antes, encontrar dobras e

emparelhamentos, distanciamentos e conexões, discutir e coletivizar experiências.

Desejamos compreender qual é a dor ou ameaça que cada um deles nos traz. Ser

dispositivo para dar voz. Alumiar passagens subterrâneas. Alquimia de movimento.

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S(a)cola do mundo

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“Vou mostrando como sou e vou sendo como

posso. Jogando meu corpo no mundo.

Andando por todos os cantos, e pela lei natural

dos encontros eu deixo e recebo um tanto e passo

aos olhos nus ou vestidos de lunetas.

Passado, presente, participo sendo o mistério do

planeta…”

(Música “Mistério do Planeta” do grupo “Novos Baianos”)

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Criança.

Ainda criança nutriu uma paixão pelas letras. A alfabetização terminou ao

ler o jornal “Notícias Populares” que se fosse torcido pingava sangue dizia-se na

época. Desde os oito anos, terceiro ano de escola, alguma necessidade de ganha pão

já se esboçava. O pai, com cinco anos de estudo, era curioso, apontador do jogo do

bicho, além de passarinheiro e rolista. Esta sua última ocupação fazia com que tivesse

dias incríveis como quando de manhã saia com um carro e na parte da tarde chegava

com outro (não necessariamente melhor) ou quando apareceu com uma bicicleta

barra forte sem freio. Nela a menina descia a avenida com sua irmã concorrendo com

os ônibus na contramão.

A criança colocava junto aos livros pequenas porções de amendoim

salgado e doce e pacotes de salgadinhos de sabor variado. A freguesia era certa, pois

como comprava no atacado garantia os preços melhores que os da cantina da escola.

- Estuda para não lavar banheiro dos outros - a frase da mãe, ex-empregada

doméstica com apenas quatro anos de estudos, ainda hoje ecoa na mente. Junto com

os salgadinhos vendia chup-chups, geladinhos, sacolés, biribinhas e selos de

cachorrinhos. Aos onze anos devorava livros incentivados na leitura pela Professora

Maria Luiza que dava aulas de português. Aos catorze anos teve o primeiro registro

na carteira de trabalho em uma rede de fastfood. Trabalhou de quinze e quarenta e

cinco até meia noite por um ano e oito meses. Trocava com os motoristas e

cobradores do último ônibus passagens por lanches meio frios que haviam sobrado e

seriam descartados. No primeiro ano do ensino médio o sono era tanto que cochilava

nas duas primeiras aulas. Cansaço. O resultado foi o abandono escolar no dia que

completou quinze anos - para desespero da mãe. No ano seguinte retornou e voltou

a obter boas notas. Posteriormente trabalhou em novos empregos: vendeu comerciais

da TV Gazeta em uma cidade que o canal não pegava, cursos de informática no sol

do meio dia para pessoas que não queriam comprá-los. Abandonou o curso de teatro

e trabalhou em uma padaria. Conseguiu quebrar o balcão de vidro por empilhar (com

o aval do dono) inúmeros potes de doce de leite. Trabalhou em uma empresa de

telefonia. Foi vendedora (das boas) de móveis planejados e ao vender um armário

acabou tornando-se projetista de redes de informática. Desenhava plantas de redes

de computadores na tela do computador. Fez curso técnico em informática como

bolsista da escola técnica. E então, o futuro lhe dizia: engenheira elétrica. Neste

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período também teve intensos encontros com os moradores das pensões do centro

da cidade, com as travestis que injetaram silicone industrial nas bochechas e com

larápios praticantes de pequenos furtos para trocas das mercadorias adquiridas por

pedras de crack nas biqueiras da boca do lixo. De madrugada rasgava as avenidas

de Campinas na garupa de uma moto CG.

Na empresa de cabeamento estruturado (coisa pré wi-fi) era responsável

pela planta de implantação da rede de computadores das agências da Caixa

Econômica Federal de todo Estado de São Paulo. Todo dia desenrolava as plantas

deste cabeamento e pensava em bitolas de tubos pelos quais os cabos passariam

para distribuir a internet por todos os lugares, medições, números de conectores,

tamanhos de cabos, nomes de equipamentos. E diariamente da mesa do escritório da

empresa de redes de informática trabalhava no computador desenhando plantas

observava um homem que corria ao longo da Lagoa do Taquaral. Ele tinha este hábito

diário e na empresa apelidaram ele de Rambo. Apelido bobo, pois ele tinha uma

bandana como o herói dos filmes deste personagem. Ela acabava uma planta e

passava a próxima tarefa igual as demais e igual as que viriam depois. Tubos,

conectores, tela do computador, dobra a planta, arquiva. Movimento que se repete.

Acabava uma planta e passava a próxima tarefa, igual às demais e igual as que viriam

depois. Movimento que se repete. Tubos, conectores, tela do computador...

Acabava uma planta e passava à próxima tarefa igual às demais e igual às

que viriam depois. Movimento que se repete. Tubos, conectores, tela do computador...

até que um dia enquanto Rambo corria algo estalou em seu peito… esvaziada ela

também muda, esgotado o sentido daquela vida ela pede as contas da empresa e se

abriga em um dos quartos da pensão do João.

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A pensão do João

Fim da rua, sobrado, última casa, uma casa velha e com trincas enormes,

prestes a desabar. Da casa de cima podia-se ver a fachada, a garagem e o que

aparecia pela janela do quarto: a televisão preto e branco (em cima de uma

mesinha), a cama com um lençol amarelado e uma caixa de engraxate que

denunciava a ocupação do senhor que ali morava. Um murinho baixo que dividia a

garagem da rua era também o que guardava o portão anterior à escada que dava

acesso a casa de baixo. A escada tinha dois lances e um corrimão meio sem

vergonha, no qual vez ou outros bêbados escoravam. A escada desembocava em

um pátio debaixo da garagem da casa de cima. A entrada da casa era precedida por

uma arinha-pseudo-floricultura que tinha desde pimenteira até plantas raras. A porta

tinha duas folhas, mas uma só abria, pois a outra era impedida de se mover por um

tapume que compunha a parede do quarto de N. Alphavela, Gleba b, subsolo, sem

abuso, e só para os íntimos, como dizia Beba (uma travesti poderosíssima de quase

dois metros de altura).

Mocó

As paredes eram verdes meio tom, algo entre verdinho e verdão, e uma

delas possuía um estufado com toda a umidade que só um porão tem. A janela era

cinza com grades e se abria para a pequena área embaixo da garagem

proporcionando uma bela vista do muro embolorado, do portãozinho e com sorte de

uma pontinha, digo, pontíca de céu. O chão de tacos soltos podia ser removido e

realocado tornando-se desta maneira um possível motivo de distração nas horas mais

tenebrosas. A mobília era pouca. Todo dia sem faltar a malucada colava em bando e

cada um sempre que voltava trazia mais um aumentando assim exponencialmente a

banca.

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O Quarto de R

O pé direito era alto, mas só se podia notar depois de uns minutos.

Pendurados na parede ‘Lisa Minnelli e Robert De Niro’ em ‘New York, New York’, ao

lado Batman e do Homem Aranha, lutavam por espaço em meu campo de visão com:

flores, porta banner, cartões telefônicos, recortes de revistas, uma bandeira azul do

último candidato a prefeito – usada como cortina. Um pano vermelho que disfarçava

um buraco, vários pôsteres colados no teto, dois oratórios – um com santo e um sem

santo- uma televisão com o som baixíssimo e letrinhas passando na tela, um vaso

com flores laranjas e vermelhas enormes, citronela perto da janela, duas camas, um

vão na parede que dava para um ‘cantinho-cozinha’, dois gatos, tapetes coloridos de

linha, um rack branco. Uma geladeira antiga com um cartaz de cerveja e umas figuras

humanas coladas na porta, um mapa, um batik (pano chiquérrimo), filtros dos sonhos,

móbiles de estrelinhas, fotografias em preto-branco roubadas do CC, recortes de

animais e plantas, cestos de palha e bambu. Banquinho, cadeirinha de criança

vermelha, mesa, estante, bauzinho indiano, bolas de natal douradas, gatinhos de

madeira, bonecas russas, vasos de vidro coloridos e transparentes, castiçais com

velas vermelhas, aparelho de som, indiozinho de gesso com cachimbo na boca,

bolinhas de madeira emendadas umas às outras formando um cordão, teia de aranha

(com aranha), um escorpião 3D, cartões postais, latas de refrigerante vazias, ursinhos

de pelúcia, revistas, banquinhos, três cinzeiros e ainda seis malucos fumando pedra.

Entrou com Inho. Já estava acostumada com muita coisa, mas aqueles

malucos com cara de nóia lhe assustavam um pouco, sentou, tipo “normal”, nas

situações mais improváveis sempre tentou fazer cara de normal. Os malucos a

mediram de cima a baixo, o R. perguntou de onde vinha, quem era e o que fazia ali.

Passado o interrogatório, se apresentou e apresentou cada um dos malucos

acrescentando que aquela era a função “normal”, todo mundo muito louco, mas

“normal”. Normal, pensou, e nessa hora essa palavra começou a tomar um significado

bem diferente e o tempo demonstraria que o padrão da normalidade é bastante

variável, atualização constante.

Os malucos estavam sentados em círculo, ela sentou, “normal”, um deles

pegou uma lata de refrigerante, amassou pelo meio, tirou o lacre, furou a parte

amassada, levou a boca, e deu algo como uma puxada, testando a passagem do ar,

pegou um plastiquinho preto, abriu, tirou uma pedrinha do tamanho de um dente,

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amarelinha. Nessa hora o R. soltou um, ‘esse é o doce de leite’, apertou em cima de

uma capa de CD, desfazendo-a, recolheu uma porção de cinza de cigarros com um

cartão telefônico dobrado em pá e pôs na lata a cinza. Pegou uma porção do pozinho

em que havia transformado a pedra, colocou em cima das cinzas e meteu fogo, ao

mesmo tempo, do lado oposto, sentado na cama. R. desmanchou um cigarro, colocou

em uma seda, misturou com crack, bolou seu pitilho e fumou – sempre fumava assim,

esse era seu jeito, como a convivência mais tarde me mostraria. A ansiedade

materializava-se ocupando toda a sala junto com o cheiro do crack, algo parecido com

plástico queimado. Ela “normal”, desesperada por dentro, mas “norma”, pegando a

nóia dos caras para si, mas “normal”.

O Incho deu umas pauladas, de acordo com R. Ele não dispensava, saiu

com um cara grandão, que só apareceu daquela vez e voltou rapidamente trazendo

mais dois papéis de pedra e um de pó. Eram encomendas do Piu, uma figura branca

de olhos azuis e mandíbula trancada que a tornava monossilábica, quase muda,

naquele momento, e que parecia ligeiramente insólita equilibrada em um banquinho.

Ninguém falava nada. Um maluco levantava e ia até a janela uma vez por

minuto, arrumava a cortina-bandeira, verificava se não havia nenhuma fresta e voltava

a posição inicial. Outro deles enrolava e desenrolava o plástico da base de um

cachimbo de crack. Um terceiro olhava fixamente para o cinzeiro. O Piu permanecia

imóvel, enquanto R. mantinha a boca aberta e Inho olhava o vazio estalado e elétrico.

O casal

Passando a porta dos fundos da cozinha, depois ainda do banheiro

chegava-se a uma pseudo lavanderia onde o tanque semi embolorado resistia

bravamente e contrariando as expectativas, monolítico, mantinha-se firme, servindo

na função. Em uma casinha de três cômodos morava um vigia. O fundo do terreno

era ocupado por uma construção semelhante a um barracão composta de dois

cômodos, teto de brasilit, fiação exposta, chão de cimento e uma caiação malfeita. O

lugar era alugado por um casal bastante curioso. Cacarecos mobiliavam a casa em

conjunto com a não aceita pobreza que era distraída por luxos e mimos que eles

surrupiavam das lojas do centro: conservas, azeites, tomate seco, muçarela de búfala,

condimentos importados, vinagre balsâmico, caviar, picanhas maturadas, vinhos

internacionais, patês diversos, alcaparras, champignons, chocolate, melzinho de

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abelha, amêndoas, cerejas. Tinham ainda pequenos fetiches: roupas, camisolas e

camisinhas com sabor e textura. Sapatos, cremes anti-idade, celulite ou estrias, todos

com potes pequenos, e ainda óleos corporais, grandes e multicoloridos frascos,

sapatos de salto, vestidos, cestos, bonecas, kit de maquiagem, travessas. Agendas,

cadernos, carteiras, bolsas, mini blusa, incensos, velas aromáticas, almofadas de

ervas e de tudo mais que lhes fizesse os olhos crescer ou que pudesse ser virado em

pedra rapidamente.

Ele de quando em quando arrumava um biquinho que além do dinheiro

legal abria a possibilidade de trazer objetos desviados, função meio “normal”, afinal

puxou um tempo por assalto, o que lhe rendeu uma cicatriz pequena, uma tatuagem

e muita malandragem. Ela era feliz e entre cortava o assunto dos potes de conserva

ou sapatos com o das duplas penetrações que havia feito antes de namorar o marido.

E também contava sobre viagens para o Rio de Janeiro vendendo cartões trabalhando

com teatro de rua, tudo antes de sua mãe lhe buscar, tudo antes de conhecer o

marido.

A rotina deles era simples, quem fuma pedra quer pedra! Isso mesmo, mais

pedra e pronto, a rotina é essa e acabou. Acabou? Mais uma de noite? Mais uma de

noite, depois também de tarde. Mais uma de tarde? Sim, depois também de manhã.

E quando a deles acabava, obviamente queriam mais. E haja corre. Pequenos furtos,

assaltos, roubo de tapes, trombadas em velhinhos, cinco dedos rápidos, estelionato.

Mas as lojas do centro e os hipermercados eram seus lugares preferidos, o filé. Depois

era só carregar até a boca do lixo os fetiches e mimos e trocar por pedra com as putas

que vendem crack a luz do dia.

Por menores

A primeira vez que ela pegou em um livro de Kafka estava sentada na rede

de seu quarto. Era manhã havia pouco e a “Metamorfose” lhe encheu os olhos.

Presente de um amigo, destes presentes bons mesmo que nunca se esquece, que se

carrega pela vida.

Deleuze e Guattari em sua obra “Kafka - Por uma literatura menor”

(DELEUZE E GUATTARI, 1977), dizem que a escrita de Kafka trata de uma língua

menor, assim chamada por ser uma manifestação de grupos que fazem uma utilização

particular da língua oficial a chamada língua maior. Experimentar, esticar a língua no

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espaço com fronteiras ilimitadas, isto seria um uso menor da língua. Seria uma

máquina de fala e escrita que tem por conteúdo um coletivo de devires menores que

se movem nos vãos da língua. É nestes vãos onde grupos a utilizam ao seu bel prazer,

onde novas leis atuam sobre a língua maior, a chamada língua oficial e lhes

transbordam. Murmúrios, vozes, palavras que não são ouvidas tomam forma e espaço

neste lugar: a língua das putas, a língua das travestis dos cinemas de exibição de

filmes pornôs no centro da cidade de Campinas, histórias sobre se prostituir e

sobreviver disto: a chuca, a pica, os clientes que insistiam em não usar camisinha, o

silicone industrial que modela o corpo ou o uso de hormônios, o corpo em devir,

intensidades.

Kafka com seus personagens, ela e seus encontros com línguas menores

de populações excluídas da sociedade pela violência. Línguas menores de um idioma

diferente daquele dos personagens de Kafka, mas que se aproximam na condição de

exclusão daqueles que as falam. Os personagens kafkianos e aquelas pessoas as

quais ouve são excluídos. Pontas de realidade que como grama aparecem nos vãos,

um grande rizoma, um grande labirinto com diversos desvios e passagens

subterrâneas ocultas e fantásticas neste momento une ela a Kafka. Junção imprevista

em seu mocó, ela sentada em sua rede e Kafka movimentando sua máquina literária

bem a sua frente.

Na obra “A metamorfose” (KAFKA,1915) o personagem Gregor Samsa um

dia acorda transformado em um inseto gigante. Com suas patas recém adquiridas e

seu casco abaulado Samsa jaz de costas em seu quarto sem saber como pode

desvirar-se e viver sua vida comum anterior a esta insólita mudança. Em sua mente

ela formula a paráfrase de Samsa que se metamorfoseia em muitos para seu

entendimento: fulanos, sicranos e beltranos, travestis, crianças do crime, usuários de

drogas, moradores de rua, cafetões e prostitutas, pequenos ladrões, michês. Todos

tornam-se Gregor Samsa virado de costas sobre o casco abaulado. Pessoas

esquecidas nos cantos, vãos, escombros. Ela as ouve, as línguas menores, as línguas

que estão dentro da língua oficial, as vozes que brotam das gretas, que ecoam nos

silêncios, que ressoam nos ferros das penitenciárias, nas gavetas dos necrotérios.

Vozes dos que não nasceram, fluxos contidos, estancamentos, devires menores.

Encontros violentos e ela ali atravessada por tudo isto: - Como seria bom

ser tal qual Kafka - imagina neste momento encontro e espelho, ser experimental.

Quem dera se pudesse apenas relatar estas línguas menores que ouve nas esquinas,

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nos prostíbulos, nos guetos, nas rodas de crack, nas esquinas do tráfico. Os seres

humanos são incríveis em sua capacidade de resistir. Samsa resiste devir-inseto, ela

resiste devir-experimento, com Kafka ela entra em sua própria máquina de sentidos

palavra-violências que atravessam esta experiência.

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Com quantas lágrimas se faz um bordado?

“Conta uma história tão antiga quanto o tempo que

cada lágrima derramada é colhida pela Deusa que com

elas borda um manto. Quanto mais adensa o pranto,

mais brilhoso se torna o manto. E é o cintilo destes

ornamentos que na mais alta madrugada da vida

espanta os maus espíritos” .

(trecho do Caderno de Campo)

Outra profissão: vendedora de cursos de inglês em uma escola de Barão

Geraldo aos 23 anos. E convencida por uma amiga que conhecia desde o segundo

ano de escola foi conhecer o cursinho popular na Moradia Estudantil da Unicamp. A

entrada no cursinho abriu um campo novo de possibilidades e questionamentos: por

quê também não estudava na universidade? O que a fazia diferente daqueles jovens

até mais novos? Vestibular. Pela primeira vez pensou nisto.

No cursinho compreendeu que era necessário o domínio de um

conhecimento específico. Foi também neste momento que se deu conta das inúmeras

falhas no aprendizado efetivado na rede estadual de ensino e enxugar as lágrimas.

Restava-lhe estudar. Ao fim daquele ano, após intensas madrugadas de estudo na

moradia estudantil, prestou vestibular de filosofia, pois leu alguma coisa de filosofia e

gostou, e tinha a ver com leitura e escrita coisa que queria desde criança. Parecia

uma boa ideia.

Naquele verão conheceu Foucault, pasmou. O número de referências do

texto dava ideia de quanto tinha que remar oceano a dentro para ter alguma base de

conhecimento sobre autores que Foucault mencionava, cabeça tonta com tantos

nomes…. Arrumou um emprego (que odiava) de recepcionista em uma escola de

inglês com o horário das catorze as vinte duas horas. E outro cursinho popular pela

manhã no qual tinha uma bolsa socioeconômica. Como o salário era pouco além da

bolsa de desconto, também desempenhava a função de bibliotecária do cursinho, e

para isto todos os dias perdia a última aula para que a mensalidade fosse ainda

menor.

Aos domingos (folga) passou a trabalhar em uma banquinha de camelô no

terminal mercado completando a renda e estudando em todos os momentos possíveis

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para o vestibular. Em um domingo qualquer enquanto embalava salgadinhos de bacon

em sacos pequenos para serem comercializados um homem, um morador de rua

aproximou-se. Como havia errado a boca do saco alguns salgadinhos estavam no

latão de lixo a sua frente, e então este homem pergunta:

Você vai usa? E aponta para o latão de lixo.

Não, não - e deu um pacotinho de salgadinho a ele.

Mas eu vô levá este assim mesmo- responde o homem. - Passa a mão no

saco de lixo e leva, já comendo o conteúdo na sua frente.

O latão de lixo, o saco arrastado, o salgadinho do latão comido pelo

homem. A criação nasce do esgotamento assim como aquele que acomete os

personagens de Beckett, a memória que retorna a “Quad 2 ”. Falta de ar,

impossibilidade. Falta de ar que revira o estômago... Não respirar, como respirar se

não há oxigênio? Somente ao esgotar que ela teve acesso ao fora da linguagem, ao

silêncio… O latão, o homem, o lixo, a boca. O latão, o homem, o lixo, a boca…

palavras, o lixo, a boca, boooooooooocaaaaaaaaaaaaaaaaa, esgota o sentido...

2 https://www.youtube.com/watch?v=LPJBIvv13Bc

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Figura 3- Monólogos, Victor Epifânio

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Monólogos Marginais.

É fruto de uma descrença, de um descolamento aos possíveis que ainda

subsistem aos clichês que mediam e amortecem nossa relação com o mundo e o

tornam tolerável, porém irreal e, por isso mesmo intolerável (PELBART, 2017). O

esgotamento é cartógrafo dos territórios, esvazia possibilidades, aponta visões,

mostra forças e tensões, intensidade, potências, virtualidades, desenhos em

rascunho, nos indica o que fala através de nós, cria novos possíveis.

Uma baforada de realidade que quebra o sentido. Um fluxo em uma língua

menor, vozes dos becos, violência e incontrolável, sons, atravessamentos, palavras

onomatopeicas, fel, grades, gretas das ruas, corres sem nome no meio da noite.

Violência expurgada em fluxo de palavras. As vozes dos devires menores,

das prostitutas, dos desvalidos, dos viciados...

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Sala de aula

Tia, cê é professora?

...

Não?

...

Ah! Cê veio ajudá hoje...e cê vai voltá?

...

Uma moça veio, brincou com a gente e disse que ia voltar, mas ela nunca voltou.

...

Tia, ainda bem que cê veio hoje aqui, na semana essa escola é muito violenta.

...

Os meninos xingam as meninas, batem nas meninas, vem com faca para escola.

...

Não, os meninos grandes, eles trazem faca e pedem dinheiro.

...

Mas no sábado não, a gente pinta, brinca, se diverte.

...

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Repetente

Eu repeti, era para eu tá na 7ª série.

...

Não! Eu não vou pará de estudá.

...

Minha irmã fez até a oitava

...

Ela parô, ela tem um filho e não tem quem fique com o filho dela

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No baile

Tô eu lá com a minha mina, só curtindo, de boa, tá ligado? Ai ela mostrô um cara e falô:

- Tá veno aquele ali? Tá pagano

pra mim, fica dando piscadinha.

...

Eu fiquei só cuidano, o cara tava memo. Cheguei nele já intimando, tá ligado?

E aí maluco, quê, que cê tá pagando de zóio pra aquela mina?

...

Ah, cê num tá não. Bati no peito dele. Assim ó, tá ligado?

...

Fiquei lá curtino o baile, tomando uns goró, dando uns tiro, tá ligado?

...

Minha mina vira e fala: ele tá de piscadinha pra mim.

Ai eu voltei no maluco, puxei a quadrada e foi só pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus

o caralho, é pum, pum, pum, tá ligado?

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Na pensão

...

Aí maluco qualé que é? Cê tá me tirano?

...

Vamos lá fora os dois, na mão.

...

...

...

...

Sangue? Cê tiro meu sangue?

...

Tá fudido, eu num tenho medo não.

...

Pode fugi, num adianta, cê tá prometido e eu vou te buscar.

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Na rua

...

Esperto mano, se alguém tentá fazê alguma coisa cê puxa a faca.

...

A faca é a cruz, e a cruz é a justiça divina. Mete a faca e já era.

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Na cozinha

...

Isso, frita bem a cebola

...

Eu era chefe de cozinha, ganhava bem, mas o que eu gosto mesmo é do que eu faço agora

...

Eu curto é me prostituir

...

Paga o cafofo, compro pedra e já era!

...

Adoro o cinema, aquele monte de travesti tudo na parede.

...

Liga não Amapô, eu sou assim mesmo.

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Para casa

Moça, eu num sei nem como falá, tô tão nervosa. Tem algum Diretor que eu possa

conversá?

...

Eu tô tão envergonhada. Preciso vortá para Belo Horizonte. Eu num sô de Belo

Horizonte, eu sô de Diamantina, mas lá eu me viro.

...

u vim pra trabaiá na casa de uma senhora, mas chegando num era nada disso, eu num

quis fazê o trabaio e ela disse que se era para eu ficá assim que fosse embora, mas ela não

ia me dar à passagem de vorta não.

...

Eu dei tanta vorta que achei que tava na mesma rua. Fui na polícia e eles me disse que ia

me deixa num albergue, mas eu num quis não.

...

Eu num sei onde fica esse apartamento, ela foi me buscá na rodoviária, me levô pra lá.

...

Os policiais falarô que se eu soubesse onde é, eles iam lá na casa de mulher da vida.

...

Eu preciso de R$ 54,00, tem aqui até minha passagem da hora que eu vim. Quero junta o

dinheiro e i embora.

...

Quando eu vi escrito aqui na frente resolvi entrar, eu fiz até a 8ª série de modo que sei lê.

O homi me falô que pedino na rua eu arrumo o dinheiro.

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43

...

Zóio Roxo

É, enfiei minha cara na mão de um maluco.

...

Duas vezes, por isso os dois tão roxo. A cara logo sara e o maluco tá prometido.

...

Eu tenho um filho sim, ele tem sete anos, tá com a mãe, tá bem, faz uma cara que eu não

vejo.

...

Não, não, maluco vai tirá a favela? Tá prometido.

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Piche

Ontem eu tava lá com os maluco. Estoramô um, comêmo uma pizza. Só na alimentação!

...

Aí chegou um mulequinho e pediu pra ir no rolê com nóis:-‘Vamô lá!’ - Num botei uma

fé, o mulequinho pequinininho assim, ó! Bonezinho de lado, loirinho, cabelinho liso, não

acreditei.

...

O mulequinho que fez aquele piche, do lado do teatro.

...

Não, do lado de lá, na parede rosa, tá pichado FUN de função.

O muleque tava apetitoso para dar uns rolê. Desacreditei.

...

Os maluco deixaram o muleque de ar.

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A guarda

O cheiro tá bom, hein? Fica sussegado, nós estamos atrás ‘di menor’. Tem algum menor

aqui?

...

Você tem passagem?

...

Está devendo?

...

Quem mora aqui?

...

Documento, documento.

...

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Desaforo

Ó, ó os homi, fodeu! Joga a ponta!

...

Sô usuário, sim senhor.

...

Moro aqui.

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47

Compulsão

Deixa ver!

...

Ah! Cês num sabe fazê papel de pó não.

...

O papel tem que deixar o cara apetitoso. Ele tem que fica apertando, tentando ver quanto

tem, na ilusão.

...

O baguio é ilusão.

...

Hoje faz 27 dias que eu não fumo pedra. 27 dias, se eu não fumar um mês, não fumo

mais.

...

Não meu, eu e ele que somos compulsivos sabemos disso.

...

Só por hoje comigo não funciona, tem que ser para sempre.

...

Oi e tchau!

...

Cê viu né? Ela entrô aqui, eu falei oi e tchau.

...

Não, cê não, eu já vô. Tô fugindo de lugares e pessoas.

...

Bom mesmo é fuma uma macinha. Tem coisa melhor que maconha?

...

É, dá um rango.

...

Dormi.

...

Mulher, mulher é muito bom. Puta! Tem um monte de coisa melhor.

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Documento

...

Olha a barca, nossa! Essa foi perto.

...

Tá estranho hoje, né?

...

Tem certeza que aqui não dá nada?

...

Cês vêm sempre aqui?

...

Num dá nada? Dispensa, sujo, sujo!

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49

D

ois

Dois?

...

Dá um peão, dá um peão.

...

Tá na mão o dinheiro?

...

Certinho?

Falô, falô.

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Truta

Truta, tem que vê quem é o maluco. De repente ele tá num carro pá e tal e o carro é do

patrão.

...

Eu moro lá no centro. Sabe a Padaria?

...

Sabe o bequinho?

...

Então, viranô.

Nóis invadimu lá faiz dois ano. Arrumamu tudo a casa, agora o dono pediu. Filha da

Puta! Agora que a casa tá tudo arrumadinha.

Agora eu num sei, acho que eu vô pra casa duma amiga da minha mãe que tava guardada.

Cinco anos ela ficou presa, destruiru a casa dela.

...

Eu saí descabelado lá dos predinho. Descabelado.

...

Parei de estudá quando eu tinha dezesseis ano.

...

Cê lembra a chacina do Vida Nova há uns ano atrás?

...

Eu estudava naquela escola. Perdi um primo. Quase perdi a vida.

...

Morreram três pessoa e balearam mais onze.

Porquê? Por causa de tênis

...

O maluco tinha um conhecimento. Era truta do cara, entrô na casa dele, pego o tênis e

perdeu o tênis. Num sei também como que perde o tênis.

...

Cobrô uma vez, cobrô duas vez. Um dia os mano tá lá, muito loco e resolvero resolvê.

...

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51

Tipo que manda, muito loco.

Entraro a escola e mataro quem num tinha nada a vê

Eu perdi meu primo, num era nem pra eu tá aqui.

...

Peguei trauma de todas as escola.

...

Depois eu até voltei lá pra robá os computador.

O barato é loco.

Eu num consigo

dormi, mano.

Tenho uns

pesadelo, truta.

Essa noite tavam

me persiguino, me

fecharam e deram

vários pipoco.

Acordei suado.

Fico atormentado

de dia e di noite.

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Viveno

Tenho feito muito não.

Fumano. Namorano.

Olhando os carro, vendeno zona azul.

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Assalto

Domingo eu fui assaltado por três muleque na parada gay.

...

Os três me chamaram. Olhei os três bunito, a loca foi. Na hora que eu cheguei lá puxaro

meu relógio e eu com essa perna não consigo correr.

...

Juntei uma pedra, mas vixê, na hora que eu vi eles já tavam bem longe.

...

Mas nem esquentei, tava tão boa a Parada.

...

Uma vez eu já tinha sido assaltado, é, mais ou menos.

...

Eu morava na rua, sabe o ponto do Fula?

...

Então, lá era um mocó, eu morava lá. Nossa, nessa época eu bebia muito. Fazia um

monte de quadro, vendia um monte.

...

A loca bêbada, queria trepá, fui lá pro mocó com três caras. Tirei a roupa, eu tava com

um tênis nike novinho, lindo, uma blusa da Argentina toda bordada, dobrei tudo, enfiei

na sacolinha e dei muito. A gozação foi tanta que eu apaguei.

...

NA hora que eu acordei, não tinha nada, eu pelado, só a minha cueca jogada de lado,

não acreditei, comecei a chorar.

...

Vi um mendingo bêbado, arranquei a roupa dele e pus.

...

Fui batê lá na casa do Beltrão:- Beltrão, Beltrão, Beltrão, me arruma uma roupa.

O Beltrão é deeesseee tamanho. Eu falei que fazia um nó, qualquer coisa.

...

Três dias depois eu comecei com uma coceira no saco. Fui vê, uns piolhão assim ó.

Muquirana. Piolho de mendingo.

...

Nossa! Que ódio, demorô pra sará.

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Pacoteira

Fui lá, né? Na casa da B., cheguei lá maior pacoteira. Os mano lá tão com 150 k de pó.

Um pacote dessa altura assim... ó, dessa largura.

...

Tem ainda maconha, muita coisa. O Fulano me ligou e falou assim, pô môr, se tem que

fazê esse corre pra mim, tô ligado que você é mina de responsa. Você sai daí, vai até S.

Paulo e leva a encomenda.

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Sem carga viral

Peguei do meu marido.

Ele era forte, bunito. Ficô fraco, fraco e morreu.

Eu não queria fazê o exame, tinha medo.

...

Eu tomo remédio direitinho. Meu marido

de agora não tem. Eu falo para ele por

camisinha, mas ele não qué.

...

Eu tive dois filho dele. O menino não tem nada. A menina tá com um ano, mas se Deus

quisé, vai negativá.

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Pichação

Contra o abandono: INVASÃO!

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Tecnologia

Vô compra um celular.

Tô trabalhano, não vejo a hora de receber. Tô

contando os dia.

M

a

f

ú

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58

M

a

Na sala

...

Queijinho, tomei muito isso. Me deram no açougue que eu trabalhava.

...

Doze anos, mais ou menos isso, aí eu saí de casa, trampava no açougue, os cara era muito

loco.

...

Quando eu saí do açougue num voltei para casa não, dormia na rua, no castelo de

Greiscon, nos mocós.

...

Eu era o menorzinho da turma por isso Fulaninho. Depois eu comecei a passar um fumo.

...

Durante muito tempo eu, Sicrano e Beltrano.

...

O lugar cê num acredita! Tinha um 10 enorme, um luminoso, a gente ficava ali embaixo.

Maconha 10, num tinha como errá.

...

Um dia, Sicrano rodô com as paranguinhas, fiquei bolado. Será que ele ia me caguetá?

...

Peguei um dinheiro e pum, fui lá pro Paraná, lá onde eu nasci. Cheguei lá e encontrei

minha ti, mas eu num conhecia mais ninguém, olhei, olhei, voltei no mesmo ônibus.

....

Aí eu voltei para cá.

...

Sicrano é rocha mesmo, ponta firme, segurô a bronca sozinho.

...

Não, é claro que a gente dá uma assistência pro cara leva um cigarro e tal.

...

Mas, depois dessa eu num mexo mais com essas coisas não, tenho minhas meninas para

cria.

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Novela

Vai começa a novela

Cê viu o que Fulana fez?

...

A novela, a novela.

...

Shiiiiiiiiiiiiiiiii! Silêncio! Depois da novela a gente conversa.

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Nóia

Socorro! Tem alguém atrás de mim.

...

Me ajuda, me ajuda, ele vai me pegar.

...

Tem sim, tem alguém sim, me ajuda.

Ele vai me matar, ele vai me matar.

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Nóia 2

...

Esconde a faca.

...

Tchau! Agora vô fuma.

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Mudança

Entra aí. Qué toma um café?

...

Gosto do Jaison? Tem o Fred Também, tinha a outra parte.

...

Voltei a fumar.

...

.Cigarro também.

...

Ah! Tô indo em uma igreja lá em cima às vezes.

...

Tô entregando água.

...

Não era você que queria tanto que eu trabalhasse

...

.Eu tava fazendo decoração de festa, mas agora não tá dando nada.

...

Tá véia essa calça hein? Vem vê a que eu comprei.

...

Eu comprei num brechó. R$5,00 tá novinha.

...

Eu tô entregando água, olha só o cartão.

...

É, não era bem o que eu queria, mas é um trabalho.

...

Com esse frio, não sai muita água.

...

.E os seus cds?

...

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Pilantra os muleque. Cê não tem mais porque eles robaram daquela vez. Eu intimei,

tava aquele Fulano e o Beltrano.

Falei que ia dá um pau neles, se não devolvesse eu batia na cara de novo.

...

Mas, eles juntaram de função, com léio de pau.

...

Vai não, fica mais um pouco.

...

Passe aqui Sábado ou Domingo que é mais tranquilo.

...

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Moeda

Dá um trocadinho para eu comprar uma marmita?

...

Só um trocadinho, eu tô com fome.

...

É pão isso no saco?

...

Tá bom, então, Deus te abençoe.

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Desenho

Tia, quê que é p’ra fazê?

...

Desenho?

...

Mas num cabe tia, eu preciso de mais uma folha.

...

Num cabe tem onze pessoa na minha casa.

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Presente de Natal

Quando eu vô ganhá a pasta?

...

No Natal?

...

Se eu vier todo sábado eu ganho a pasta?

...

Então eu vô vir.

Casa

Vamô lá para minha casa?

...

Mas eu moro num barraco, cê num liga não?

...

.

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Pedra

Eu tô aqui com minha família, nóis viemo do Mato Grosso. Tô pedindo uma ajuda p’ra ir

para Atibaia.

...

Nóis durmimo numa pedra ali embaixo.

...

Num tem, só a passagem? Então é a passagem que eu preciso.

...

Ah! Só a passagem de i embora

Num quero café não.

...

Albergue! Você manda no Albergue?

...

Então um adianta

...

Eu sou caminhoneiro, amanhã eu posso vir aqui e fazer uma presença com vocês. Vocês

sabem atender as pessoas. Se não, se não me atendesse bem, eu sou caminhoneiro,

amanhã eu podia passar encima de vocês na estrada.

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R$300,00

Eu não sou prostituta. Não faço programa. Mas, por R$300,00. Pôxa!

R$300,00 eu faço.

...

Ele pagou meu aluguel. Fez uma compra de supermercado. R$300,00, eu faço!

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Vingança

Tá feio o negócio né? Pois é, quando eu tava doente, cê não me ajudou. Me pôs pra fora.

Queria o dinheiro, o aluguel.

Mas, o mundo da volta né?

...

Cê quer que eu pague um lanche?

...

Agora você que tinha 11 quartos não tem nada. Vou indo viu?

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Na diretoria

...

Aqui é muito complicado!

...

Compramos canecas e olha o que eles fazem

...

...

Eles não vêm com o mínimo de educação de casa.

...

Na semana passada mataram um aluno nosso.

Demos Graças a Deus!

...

Eu sei, é horrível.

....

Não, ele apavorava a escola

Andava armado.

....

Matou oito, oito só para ver como caía.

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...

Na Roda

Maluco era sangue bom, firmeza memo.

...

Matava por cinco conto, ninguém tirava o cara.

...

Tirava caía.

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No barraco

Eu num sei lê não.

...

Nunca aprendi.

...

Desde meus sete anos eu queria memo era sê bandido.

...

Sô daqui não.

...

Vim da Bahia, fugi faz dois ano.

...

Tem uma tia que tem um barraco aqui.

...

Até tentei trabalhá em obra, mas num vira, eu sô bicho solto.

...

Esse negócio de trampá pros otros num vira não. O negócio é fazê um dinheiro.

...

Cê num sabe onde tem uns playboys pra fazê um sequestro relâmpago?

...

Como assim? Grana fácil, limpinha na mão

...

Limpinha, tô falando

...

Ah, mas aí se o cara reagir... pum, pum, e já era

...

Medo? Tenho medo não, ainda vô vira

numa fita grande, mas se morre, já era!

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Eu quero

Cê já vai dormir? Dexa eu entrar.

...

Não, só um pouquinho.

...

Cê tem um corpo bonito né? Nem tem barriga.

...

Cê tem um cotonete?

...

Me empresta um?

...

Não, eu vou ficar só um pouquinho.

...

É seu namorado?

Deixa eu deitar com você?

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Esmola

Uma ajuda moço. Pelo amor de Deus uma ajuda.

Deus te abençoe.

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Balinha

Desculpa incomoda a viagem de vocês. Eu num arrumo emprego e vendo essa balinha

por não arrumar emprego. Cada balinha custa R$1,00. Eu tenho dois sabores, morango e

uva verde e também paçoquinha R$0,50.

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Catando latas

Minha filha tem 5 anos. Estuda em escola particular, ano que vem vou por ela o inglês.

Eu morava no Pará, deixei meu marido lá, ele não queria trabalhá.

...

Eu não tive mãe, fui criada em orfanato. Agora eu cato lata, pago tudo com as latinhas.

...

Minha filha tá sempre limpinha, a gente come, paga o aluguel, tudo com as latinhas.

Lixo

Moça, cê vai usar esse salgadinho que tá aqui no latão?

...

Vou comer ele tá? Hoje eu não comi nada.

...

Ah! Brigado. Bom né, mas... eu vou pegar esse aqui do latão tameim.

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Prostituto

Quando eu era prostituto lá em São Paulo eu fazia várias coisas estranhas. O povo pagava

né.

...

Tinha um que ele me pagava em dólar. Um dia eu fui na casa dele e ele tinha comprado

uma roupa inteira vermelha para mim.

...

Aí ele falou para eu por e ficar de frente do espelho só olhando, aquela roupa vermelha

linda, eu fiquei loca para arrastar a bota. Ele foi no banheiro e saiu todo de preto, cheio

de correntes e mandou eu deitar na cama, ele ficou em frente ao espelho.

Depois, ele virou para mim e mandou eu cagar.

...

É cagar. Eu não tava com vontade, ele dizia que queria. Eu fiz força. Ah! Ele pagava em

dólar, eu caguei.

Eu tinha que ficar pegando merda, a minha merda, e jogando nele, e ele no canto da

parede. Ele gozava assim, cê acredita?

...

...

Juro! Ele pedia para eu mijar nele. Eu enfiava cada pepino enorme no cu dele, tubo de

desodorante, enorme. A bicha tinha o buraco da Orosimbo Maia, podre! Cê não acredita?

Antes de eu enfiar eu tinha que molhar com o meu mijo. Ele gostava de sentir o cu arder.

Cê acha? Eu fazia né? Ele pagava em dólar.

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Família

Tem uma aluna aqui que é estuprada pelo pai.

...

A mãe consente.

...

Que, que a gente pode fazer?

...

A mãe consente.

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Bunequinha

Então foi você que roubou a menina?

...

Cê não tem vergonha não? Robá vizinho? Robá deficiente?

...

Pelo amor de Deus

...

Ah! Robô bunequinha de loça?

...

Que lindo! Robô bunequinha.

...

Cê dormiu com ela. Bandido que brinca de boneca, abraçadinho, que bonitinho.

...

Ah! Cê tava muito loco de cola. Não sabia que era dela, achou que fosse do Fulano.

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Largada

Cê vivia toda largada. Mas com 5 meses já fico com cara de mãe.

Tá de parabéns.

Sua filha sempre limpinha, bem cuidada.

...

Pô, essa mina era loca, robava mercado comigo.

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Trabáio

Eu num sei lê não!

...

Acho que num aprendo mais, já tenho sessenta ano.

...

Eu fui criado na roça. Meu pai dizia que lê era coisa pra gente rico. Dizia que se eu

aprendesse a trabaia nunca ia me farta nada.

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Sicraninho

Minha mãe morreu quando eu tinha 3 anos. Não me lembro bem dela. Eu fui criado meio

para lá, meio para cá, minha

Madrasta era muito ruim.

...

Quando eu tinha seis anos, meu vizinho me estuprou, eu era tão pequenininho.

...

Depois, quando eu tinha dez anos, fui estuprado de novo pelo filho da minha Madrasta.

Meu pai não fez nada.

...

Eu tentei gostar de mulher, tive até uma namorada, mas não adianta eu gosto é de pinto

mesmo, aquelas costas de homem, pêlos.

...

Com dezessete anos eu estava em São Paulo junto com as outras travestis. Tomava

hormônio, tinha uns peitinhos lindos, me vestia bem bonito de salto alto, batom, penteava

o cabelo comprido, parecia uma menina.

...

Muitas drogas, muito pico na roda. Trepei muito sem camisinha. Eu tinha um namorado

que eu adorava, ele era lindo, perfeito, me disseram: - Cuidado, ele é muito galinha!

...

Dezoito anos eu estava com AIDS, o outro irmão meu também morreu de AIDS. Mas, eu

não sabia o que era não. Tomei baque em muita roda e trepei muito.

...

Tive um namorado, um cobrador de ônibus que me adorava, me tratava tão bem, ele foi

emagrecendo, emagrecendo, morreu. Morreu de AIDS. Eu descobri que eu num morria,

mas passava para os outros e eles morriam.

...

Depois eu fiquei com tuberculose, quase morri. Me levaram para Campos do Jordão. O

Hospital tinha um andar só para homossexual. Fiz um monte de amizades, fazia

artesanato, meus arranjos com flores.

...

Sarei e logo tava na rua.

...

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83

Troquei o baque pela lata, bem melhor! Faz dez anos que eu fumo uma pedra.

...

Todo dia! Maconha e Pedra os amigos todos fuma.

...

Não, eu não, me visto mais de mulher.

...

Neguinho olha e pensa: Sicraninho, bichinha, fraquinho. Mas na hora de brigar eu sou é

muito macho.

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No Corre

Eu caí no crime, minha mulher foi embora, levô meu pivete.

...

Tô aqui hoje com os camarada para fazer uma fita, levantar um dinheiro.

...

Não, então, na semana que vem tem uma fita grande, dada. Com esse dinheiro eu vô

lançar uma moto para mim. Vô trampa de motoboy. Sete contos é isso que vai rolá na fita

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Casa Nova

Tô morado numa casa nova, eu e o Beltraninho.

...

Ah! É lá embaixo, atrás das bocas.

...

Ontem nóis fumemo treis papel.

...

Mas agora eu tô fumano menos. Tenho mais é cheirado um pó

...

O povo continua na mesma, Beltrano casô. Eu não conhecia a mulher dele não.

...

Esse aí tá trampando. Agora o Sicrano, vixê! Tá guardado de novo. Bicho solto, num tem

jeito, só arruma encrenca, foi pego, diz que com uma ponta. Puxaram a capivara do cara,

dançô.

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No ônibus

Desculpa incomoda a viagem de vocês. Eu sou aquele homem que faz catorze anos,

botou um tumor para fora. Mas, eu tenho uma úlcera e num posso ficá sem tomá o

remédio. No hospital num tem o remédio e eu num posso fica sem tomá.

Eu gasto R$700,00 por mês com esses remédios. Vocês podem vê minha barriga. Eu

não tenho condição de compra os remédios e num posso operar se não vira um câncer.

Por não ter condição de compra os remédios e sentir dor passo nervoso e úlcera como

vocês sabem num pode passar nervoso.

Eu vô passá e se vocês puderem me ajudar.

...

Deus abençoe a vida de vocês para que nem vocês nem nenhum familiar passe por isso.

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Pedrada

O Sicrano estourou R$1.500,00 em pedra. Nunca tinha fumado.

...

Não, ele fumava um back, cheirava uma farfa, mas brita não, a primeira vez ele já pirou.

...

Tinha recebido, estourou o salário, faltou dois dias. Quando recebeu de novo faltou mais

três dias, fico hibernado na pedra, os caras mandaram ele embora. Recebeu seguro,

Fundo de garantia, essas coisas. Estourou tudo.

...

Agora eu num sei, o cara tá aí, na nóia.

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Farinha

Farinha! Fariiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinha! Fariiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinha!

Farinha!

...

Ô mano, vamô lá!

...

Tem cinco conto?

Tem?

Vamô lá!

...

Pô, vamô lá

...

Vamô lá! Vâmo lá!

...

Hoje eu vô usa uma droga

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Subindo

Cê tem que ver os camaradas que melhoraram também. Eu morava na rua, não tomava

banho, só queria era ficar muito chapado. Só nas fitas erradas. Achava que tudo era isso

mesmo.

...

Agora eu tenho casa, filho, mulher. Precisa vê, tudo isso.

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Três dias depois

Alô! Fulana?

Ele tá morrendo!

...

Como assim não vem?

Ele é seu irmão.

...

Cara, eu tenho uma irmã, se ela precisar de mim, vou até no inferno para ajudar.

Mãe, o Sicraninho vai morrer. Ele me abraçou, olhou nos meus olhos. Eu acho que ele vai

morrer. Não tinha mais o que fazer.

...

Ele não se mexe mais, não tem coordenação motora. Eu não posso fazer nada.

A irmã dele foi levar ele no hospital.

Meu Deus! Porque tanta desgraça

Eu tinha até me despedido de você.

...

Agora, força irmãozinho!

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Figura 3- Victor Epifânio

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DI MENOR

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Figura 5: Di menor - acervo Fabulografias

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“Primeiro a filosofia nunca esteve reservada aos

professores de filosofia. É filósofo quem se torna

filósofo, isto é, quem se interessa por estas criações

muito especiais na ordem dos conceitos"

(DELEUZE & GUATTARI, 1992, p.39)

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Figura 4 - Céu

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Sempre cabe a alguém abrir o portão.

Passagem, dar passagens, ser passagem.

(Caderno de campo).

São tantos os começos que nos guiam: um desejo de estar menor, desafiar,

insistir, resistir, querer contato com uma população em devir, com um grupo

minoritário, com os meninos que estão em conflito com a lei e em cumprimento de

medida em reclusão na Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao

Adolescente, também nos interessam as subjetividades que as marcas da vida destes

menores escrevem e desenham. Deleuze e Guattari nos provocam a pensar junto

com a literatura de Kafka sobre quais devires de bando são possíveis dentro de um

espaço de confinamento de menores).Adentrar a instituição como professora de

filosofia, fato disparador deste trabalho, significa ter passado por uma seleção para a

função que foi feita pela entrega de um projeto de trabalho a Diretoria de Ensino e a

instituição, passar por uma entrevista, por diversos postos de vigilância e também por

procedimentos de revista padrões de segurança: guardar chaves, dinheiro, objetos

pontiagudos nos armários do lado de fora do centro de internação, contagem de

material na entrada (anúncio do que se repetiria na saída), assinatura de aceite desta

contagem, revista do corpo. O próprio corpo esquadrinhado a cada entrada no centro,

meu corpo esquadrinhado pelo panótico. O olho esbarra em tudo que é canto, o

confinamento, os limites físicos ali impostos, as grades amarelas, os meninos de

branco e cinza. Cheiro de guardado que adensa o ar.

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Figura 6: atrás das grades

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A estrutura do prédio obriga o olhar. Já na primeira visita destaca-se a

estrutura do prédio inspirada no panóptico de Bentham (BENTHAM, 2019 apud

FOUCAULT, 1975) um regime de luz e segurança para que sejam visíveis todos os

movimentos daquele que está sendo observado, funcionando, desta forma, como um

meio de coerção. Porta que se abre e fecha, tranca, ferro com ferro, clanc! Tatear,

espiar e deambular nesse território.

Que território é este: escola dentro da Fundação CASA? Que território é

esta aula de filosofia dentro desta escola? Que território é esta oficina de palavras e

imagens dentro da Fundação Casa? Tatear e entrar em contato com esta população

de adolescentes, este devir menor adolescente, este povo nômade. Entradas

múltiplas, conexões, um mapa que se rascunha e muda, linhas de continuidade e

fuga, forças e ”o mapa é sempre aberto” (BORGES,2016, p.128). Um laboratório de

experimentação nas aulas de filosofia do ensino médio da Fundação CASA

produzindo imagens e palavras. Nos movemos neste texto pelo desafio de uma escrita

criativa composta por rastros, cruzamentos de uma adolescência que se dobra em

outra e outra ainda confinada, violenta, ainda intensas pelejas, esgotamentos

espaciais, reinvenções da vida e do ofício de professora e tantas outras coisas.

Apostamos que a produção de imagens articular algo menor, algo mutável

que foge o tempo todo. Apostamos em uma força que se auto afeta, na criação como

um furor, como um atravessamento da vida, das forças das muitas vidas que

compõem este trabalho, uma travessia que se guia pela realização de experimentos

com filosofia, fotografias e literatura e muitas escutas. As imagens que compõem com

este texto foram produzidas e funcionaram como modo de escuta e meio de troca já

que eles produziram, fotografaram e eu as manipulei. Experimentos realizados em

conjunto a uma manada de meninos, multidões de adolescentes, grupos anômalos de

meninos que escapam ao modelo dominante da sociedade, subjetividades de

meninos encarcerados em um processo de captura que deseja a negação de toda a

diferença. São grupos de meninos que se formam e se desarranjam em

multiplicidades e que se transformam por contágio. Empreitamos uma ação de

professora que possa fazer um perceber de dentro da instituição.

O prédio organiza-se em andares. De cima da quadra poliesportiva coberta

notam-se os campos que circundam o bairro afastado, os olhos se perdem no

horizonte, exclusão do tudo. Cheiro de fumaça de queimada que invade o prédio

quase sempre. No andar do meio os quartos-dela que abrigam adolescentes em

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grupos de quatro, medo da chuva, da dengue, do vento gelado das frestas, havaianas

com meias esquentam o inverno junto com ideias de vingança, justiça e fé. A mãe,

sempre a mãe que é quem acolhe e embala a lembrança na madrugada fria dos filhos,

muitos a seu modo inocentes. A mãe que visita um filho na Fundação e outros no CDP

(Centro de Detenção Provisória, lugar no qual ficam os adultos aguardando o

julgamento). A mãe que o abandonou quando pequeno. A mãe que deu a ele crack.

A mãe que não perde a visita. A mãe que chora de tristeza. A mãe que nunca vem. A

mãe que sabe que o filho continuará com o negócio da família. A mãe que são muitas,

que também são bando em devir.

Nas turmas adolescentes com idades diferentes são divididos entre as

unidades que possuem uma variedade administrativa, mas também quanto a sua

população: periculosidade, reincidência, idade e lotação permitida. No térreo, na sala

de aula branca de portas de aço e grades amarelas doze a trinta alunos, dependendo

do fluxo de entrada e saída dos adolescentes em cumprimento de medida, assistem

aulas de filosofia. Na maioria das vezes as classes são multi seriadas com alunos do

primeiro ao terceiro ano do ensino médio, tendo por objetivo o resgate de sua trajetória

escolar, um dos focos da medida sócio educativa.

Os meninos internados além das aulas da escola formal frequentam

também uma série de oficinas (padaria, confeitaria, salgadeira dentre outros) todas

como pequenas amostras de profissões que poderiam desenvolver ‘no mundão’ como

dizem os meninos quando saírem de lá. Além disto os adolescentes também recebem

apoio psicológico e social. Comumente em sua maioria os adolescentes não

frequentavam mais a escola antes da internação 67,7% (INSTITUTO SOU DA PAZ3,

2018).

Durante o período da manhã, em duas aulas semanais da disciplina de

filosofia, ocorreram encontros com as turmas em três unidades nos anos de 2015,

2016 e 2017. Produzimos oficinas inspiradas pela teoria de Gilles Deleuze e Félix

Guattari, promovemos acontecimentos, multiplicação de ideias, afetos,

atravessamentos, impossibilidades e transbordamentos como propostas e respostas

ao esgotamento imposto pela vida destes meninos e pelo trabalho de professora neste

local de reclusão. Trabalhamos com composições imagéticas, com reais existentes,

3http://www.soudapaz.org/upload/pdf/ai_eu_voltei_pro_corre_2018.pdf

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com mitos e com a fotografia como o local da impossibilidade e lugar da possibilidade

de criação, de expansão, de subjetividade e de encontro de forças diversas destes

meninos.

A atuação na Fundação Casa sempre pediu muito mais para que possa se

ocupar este espaço de professora: roupas adequadas (um jaleco que cobrisse as

nádegas “de modo a não provocar os meninos” como foi pedido no primeiro dia), o

sapato baixo para que fosse possível correr em caso de rebelião, os brincos pequenos

para que não fossem transformados em arma, o cabelo preso, a atribuição de tarefas

constantes aos adolescentes, a observação dos protocolos de segurança, a proibição

de que os alunos fiquem em pé, a distância informada como segura da porta que fica

aberta em 45°, o funcionário que vigia a sala ao lado desta porta, a aprovação no

relatório que esquadrinha o professor neste espaço bimestralmente. A ocupação

deste espaço sempre se deu no chão da sala de aula da Fundação CASA com o

intuito de possibilitar dentro de uma prisão-escola, ops, CASA Centro de atendimento

ao Adolescente um espaço de criação. Neste espaço nos permitimos estar, mas não

como o mestre explicador, um maestro (RANCIÉRE, 2014) aquele que conduz a aula

de cima de seu tablado de madeira. Ranciére denomina “mestre explicador” aquele

professor que impõe uma verdade a seus discípulos. Para muitos na filosofia este

mestre poderia ser comparado ao homem que sai da caverna platônica na “Alegoria

da Caverna” e que retorna para contar aos seus o seu caminho de encontro com a

verdade. O mito da caverna de novo? - Assim me dizem os alunos. Não, não

desejamos trazer todos à nossa luz, apenas nos impele transmitir o “sentimento de

ignorância” (RANCIÉRE, 2002, p.119) O mestre ignorante de Ranciere é um professor

exilado na Holanda, este professor não fala holandês, somente francês, porém deve

ensinar francês a seus alunos holandeses. O meio escolhido para possibilitar este

encontro entre professor e alunos é a obra literária Ilíada com autoria atribuída a

Homero, que narra a Guerra de Tróia, uma guerra de dez anos movida por Menelau

com o intuito de resgatar sua amada Helena, nada menos que a mais bela mortal

sequestrada por Páris, príncipe troiano. Esta história para nós também se fez como

um meio de encontro, já que dia após dia os alunos ouviam enfileirados em silêncio

uma versão adaptada da Ilíada lida por nós. Bem, assim como este mestre ignorante

sempre nos vimos também como ignorante e com isto uma possibilidade de

aprendizado de troca. O meio de encontro que escolhemos é composto pelas imagens

e pela filosofia. Desafiando crenças de que é o professor um emissor, uma fonte de

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saber, também nos colocamos em um movimento de aprendizado com os alunos da

Fundação CASA estando todos nós no mesmo nível e com ignorâncias diferentes.

A Fundação CASA é um local que de diversas maneiras tenta levar ao

pensamento do aluno como inferior ao mestre. Nós nos movemos partindo de

problemas filosóficos a serem pensados juntos. Este desejo deve-se a nossa crença

de que o que nos força a pensar é o problema, e o problema também pode ser

imagético. Em seu abecedário, Deleuze nos diz que é o problema que nos leva a

pensar, sendo que a origem do pensamento é sempre da ordem do acontecimento

(DELEUZE & PARNET,1996). Nossa postura foi a de agir de uma forma inversa a da

instituição, desejávamos revelar o pensamento dos meninos, dar-lhes autoconfiança

para pensarmos juntos. Seria extremamente arrogante esperar que pudesse saber

algo sobre dar aulas em uma “cadeia” de menores antes de estar lá. Por mais que

tenha lido o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente e por mais que já tivesse

inúmeras experiências como oficineira em escolas públicas e como professora ´no

mundão’, a imagem do mestre ignorante me acompanhava. Alguém que chega a um

território desconhecido, que não fala uma língua dita ali. O “mestre ignorante” e eu

buscamos juntos um meio de chegar em alunos. Chegar a Fundação CASA, não

conhecer os meninos, chegar em uma cadeia imaginada, fabulada, encontrar,

adentrar, ser afetada, deu-me dimensão da ignorância que possuía sobre tudo ali.

Despi-me de convicções pedagógicas, de manuais, pus em xeque qual tipo de

educadora seria naquele lugar. Veio o desafio, a instabilidade, as limitações e também

necessidade e desejo de movimento. E assim fizemos ao levar cartões postais do

Coletivo Fabulografias, ao levar uma exposição dos meninos para o MIS (Museu da

Imagem e do Som) da cidade de Campinas, ao levarmos grupos para cantarem em

festas, oficineiros do Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP para discutirem

sobre racismo, imagens para serem criadas e que aqui atravessam este texto e a

Ilíada de Homero para sala de aula. Interessou-nos, nestes movimentos, abrirmo-nos

ao acontecimento, dar uma “guinada do ponto de vista” (LAPOUJADE, 2017, p.65),

trabalhar com uma dimensão do real, no qual o professor e aluno trocam. Quem sabe

mais? Esta pergunta não nos interessa. Nessa troca imagens e palavras são levadas

como provocações nas aulas e imagens e palavras são trazidas pelos meninos,

criadas, extravasadas, picadas, rabiscadas, destruídas, construídas e o fluxo intenso

mantém-se em aulas-acontecimento. Cabe-nos ouvir a aula, perceber quais desejos

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dos alunos são atiçados durante a prática, receber a aula como um vão entre curricular

e não curricular.

Nossas leituras da obra de Suely Rolnik, mais precisamente do texto:

“Pensamento, corpo e devir” (ROLNIK, 1993), levamos a pensar sobre quais fluxos

compõem as subjetividades destes menores em reclusão. Subjetividades estas que

se remodelam ao estarem atadas e esquadrinhadas pela instituição correcional. O

desejo da instituição é o de impor novas subjetividades ao menino, mudanças que

começam pelo corpo: o cabelo é raspado, as roupas são da instituição, o chinelo azul.

Uma série de meninos desejados iguais, imposição do gesto das mãos para trás,

desejo de um futuro diferente, saída do crime.

Desejo que as mudanças ocorram no subjetivo e que transforme já no início

da internação os corpos dos meninos na Fundação CASA. Subjetividades que se

dobram em um novo corpo, o corpo dócil que visa desestabilizar a identificação do

menino com o mundo do crime.

A instituição impõe um processo que deseja a negação de toda a diferença.

Pensamos como os estados inéditos provocados pela instituição movem novas

subjetividades que se dobram e desdobram. Subjetividades que se dobram neste

novo corpo pedido pela instituição, mãos para trás, cabeça baixa, cabeça raspada.

Mas o que sobra de individual? Restam marcas aparentes, tatuagens de palhaços,

santos, crucifixos, heróis, irmãos metralha, lágrimas negras, carpas, crucifixos, terços,

tatuagens nos braços, pernas, mãos e rosto. Uma imagem que não é plana, uma

imagem viva que se insere no corpo, o corpo como uma tela, o corpo como imagem,

o corpo como superfície, o corpo escrito pelas marcas. O que esta imagem traz?

‘Di menor’ é um recorte de imagem. Que traz esse recorte de imagem? ‘di

menor’ não tem rosto. Kafka e as análises feitas por Deleuze e Guattari em sua análise

da obra “Kafka. Por uma literatura menor” (DELEUZE & GUATTARI, 1975), ajudam-

nos a pensar em um bando de meninos em devir, pensar estes meninos em privação

de liberdade com a menoridade que os personagens kafkianos possuem. Mas como?

São as perdas de individualidade e ganhos de características de bando que são

apresentados nas criações imagéticas e textuais dentro da Fundação Casa.

Construções filosóficas e imagéticas possíveis a que também chamamos ‘di menor’.

Pistas que se mostram nesta caminhada imagética e poética. Ambos os grupos

(adolescentes e personagens kafkianos) são compostos por pessoas

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desterritorializadas que se re-territorializam em outro lugar. Para os menores em

confronto com a justiça é dentro da Fundação CASA que há uma re-territorialização.

´Di menor´ cava a fuga no tijolo de seu quarto cela que fica no terceiro andar

de uma instituição correcional para menores infratores no Brasil a Fundação Casa.

Cavar como um rato? Fazer uma toca como um animal? Josefina na última obra de

Kafka se perde na multidão de ratos. ‘Di menor’ devir fuga escava as paredes do

terceiro andar do prédio com uma colher. ‘Di menor’ devir coragem pula e em fuga,

corre com o pé quebrado na queda, ainda assim pula a muralha quebra o braço e se

embrenha no mato. “Quem tá preso quer fugir” - diz a coordenadora. ‘di menor’

reaprendido pela polícia retorna, mãos para trás, cabeça baixa, gesto que se repete e

se dobra em mais um. Deixa-se viver, porém aprisiona-se, domestica-se, silencia-se

buscando um recondicionamento destes jovens corpos infratores. Busca-se a

produção de uma ordem que normatiza o agir e o pensar, que visa uma subjetividade

fácil de controlar, e que a partir da produção e manutenção desta ordem diminua as

singularidades e as diferenças.

Ter menos de dezoito anos no Brasil e ser infrator, por hora, significa ter

sua identidade protegida, mas lhe agrega a um bando ‘di menor’, um coletivo de

menores infratores. ‘di menor’ não tem rosto, ‘di menor’ cresce todo dia na favela e é

aliciado por facções criminosas. ‘di menor’ se mata, corre na periferia, segura fuzil,

vende drogas. ‘di menor’ é morto! Há um genocídio negro em marcha no Brasil, o

número de homicídios de negros cresceu 23% nos últimos dez anos, segundo o IPEA.

Cerca de 70% meninos internos na Fundação Casa são negros ou pardos segundo

levantamento feito pela própria instituição no dia 10 de novembro de 2017, com dados

do Nuprie (Núcleo de Produção de Informações Estratégicas).

Os meninos revelam subjetividades, relações invisíveis entre o “eu” atual

deste menino e os muitos fluxos que compõem esta subjetividade ‘di menor’,

rompimentos que os levam a formulação de outros 'eus’ dentro do mesmo sujeito

interno na Fundação CASA. Subjetividades que se dobram em malha e que se

sobrepõem umas às outras, se dobram em um novo corpo, desestabilizando a

identidade do menino que se identifica com o mundo do crime. Subjetividades que nos

levam a pensar como os estados inéditos provocados pela instituição movem, se

dobram e desdobram, formas sutis de existência que deixam de existir, ovos de

futuros, linhas de tempo desconectadas, criações, gêneses, novo devir. Fundação

Casa provoca reverberações, são corpos e subjetividades exigidas destas jovens

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vidas em reclusão. Linha de frente. Impedimento de ver o próprio rosto refletido no

espelho, poucos são os privilégios que restam: uma escova de dentes identificada,

guardada pelos agentes de segurança, um par de chinelos para cada um, a

impossibilidade de registrar o próprio rosto. – Tira uma foto minha, tira uma foto minha!

– Um menino pede ao outro quando estamos realizando as oficinas com a câmera

fotográfica.. – Grava uma música minha. Grava! – O outro menino atende e assim

nasce um clip. ‘Linha de Frente’ foi gravado pelos meninos durante uma das aulas de

filosofia. Um moletom respira arfando e cantando verdades. No vídeo um moletom

sem rosto respira e canta um devir menor, um devir ‘di menor’, um devir de bando.

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Figura 7: Linha de frente

Linha de frente

é Deus quem manda

e cada um vai colher

o que planta,

comprou maldade

só colheu o sofrimento.

É revolta.

Revolta, tô tranquilo!

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Figura 8: pele

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Figura 9: pele

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Na pele destes meninos são expostas subjetividades que se dobram. A

Fundação Casa impõe um novo fluxo ao menino que cria um corpo novo, o corpo

infrator. Este novo corpo não possui nome, não possui rosto, este corpo ´di menor´

possui marcas e proliferações de imagens que tingem a pele em tatuagens e isto a

instituição não lhes tira, não consegue mudar. São as tatuagens que trazem à tona as

subjetividades destes meninos, desta forma grupal ‘di menor’. O nome da mãe,

sempre a mãe. O novo corpo marcado pela instituição traz a cabeça baixa as mãos

para trás, ombros arqueados, carrega em si a vida, cicatrizes e marcas escritas na

pele que são referências ao crime, assim como os palhaços associados a facção

criminosa denominada Primeiro Comando da Capital, vulgo PCC. Marcas que dizem

por que em uma das vezes havia cheiro de maconha dentro da sala de aula.

Subjetividades que em linhas de fuga em algum quarto cela praticam o culto satanista

ou que trazem em seus corpos imagens da Virgem Maria, Jesus loiro de olhos azuis

sobre a pele negra, crucifixos, terços. Subjetividades estas que entendem que deus

corre do lado deles. São corpos que passam por estados inéditos e que recebem

novas marcas dentro da instituição. Marcas de “Ovos de linhas de tempo” (ROLNIK,

1993, p.1) futuros intocados, jamais alcançados, traçados incompletos, desejos…

ovos nos quais reverbera a marca ‘di menor’, aquela que o agrega a este bando sem

rosto, sem nome individual. ‘Di menor’ são subjetividades que se dobram, se cruzam,

se retroalimentam formando malhas, intersecções, conjunções e linhas de fuga.

Marcas que escrevem mitos e que nisto expõem suas feridas, pensamentos, crenças,

pois “escrever traz notícia das marcas” (ROLNIK, 1993, p.9). A institucionalização

destes meninos também gera estados inéditos em seus corpos. “Estados inéditos se

produzem em nosso corpo a partir das composições que vamos vivendo “ (ROLNIK,

1993, p.2). Ter notícias destas marcas dos meninos é encontrar estratégias do desejo

destes menores, violência, delinquência, intensidade, movimentos, entrega ao crime.

São chamados diversos da fome, da dor, da oportunidade escassa, da ambição,

chamados da vida, da alegria de ser jovem, da ausência do medo da morte, entrega.

Exigências que sempre criam novos corpos. J. pula de um lado para o outro em um

pé só atravessando a sala de aula, pois uma bala ainda jaz em seu tornozelo. P. com

apenas metade do pé esquerdo ri enquanto me interroga: - E meu pé vai crescer?

Existe filosofia para isto?

São estas marcas e tantas outras que escreveram mitos fantásticos nas

oficinas de imagens e palavras. Nossas conversas com as imagens nascem de

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experimentações, produções e questionamentos que tensionam forças: Produzir

imagens e palavras em sala de aula o que haveria de incomum nisto? Produzir

imagens nas aulas de filosofia dentro das salas de aula da Fundação CASA com

meninos em cumprimento de medida socioeducativa. A percepção deste território

institucionalizado Fundação CASA é dada ao seguirmos pistas que surgem com a

produção de imagens e palavras, a proximidade com a vida neste lugar de reclusão,

o devir da população de adolescentes e seus fluxos de entrada e saída. Fluxos. Foram

dois anos e meio esgotando palavras, esgotando as possibilidades, esgotando

movimentos, esgotando o ofício de professora.

‘Di menor’ entra e sai, porém, a associação ao crime nunca cai em desuso

por todos aqueles que chegam à instituição. Trabalhar na Fundação Casa trazia uma

surpresa a cada dia e nem sempre elas eram agradáveis. Notícias de mortes de ex

alunos, meninos que haviam sido presos novamente: - oi senhora, lembra de mim? -

A Casa era outra, mas o menino o mesmo que não era liberado, pois não tinha comida

em casa. Mas desta vez preso, segundo ele, era porquê tudo fora forjado. Histórias

pessoais extremamente tristes. Funcionários que tinham uma visão muito humanista

dos meninos e nem sempre eram ouvidos, por outro lado o medo constante dos

menores que alguns funcionários alardeavam possuir. Linhas que se cruzam neste

espaço no qual geramos imagens e palavras. Imagens e palavras como vazão da

força destes meninos, máquina de guerra poética.

Um território escola dentro da Fundação Casa. Um território aula de filosofia

dentro desta escola. Um território oficina de palavras e imagens dentro da Fundação

Casa. Territórios traçados ao se entrar em contato com esta população de

adolescentes, este devir menor adolescente, este povo nômade. São entradas

múltiplas, conexões, um mapa que se rascunha e muda.

Todas as imagens e palavras que foram produzidas durante estes

processos tratam de um processo que por mais simples que pareça em sua feitura

nunca foi simples. Esquadrinhamento, revista da câmera na entrada e na saída. Os

textos e imagens são passagens, desejam ser passagens e ligam-se. Apostamos nas

“forças da fotografia como linguagem, e não somente como registro“ (WUNDER,

2016, p.19). Que sentidos são expressos nestas imagens? Encontramos imagens e

palavras como resistência a imposição subjetiva da instituição. Palavras que crescem

em gretas, que escapam em meio ao silêncio, que estampam a pele dos meninos.

Resistência. Efemeridades que estampam a parede. Os meninos desenham em seus

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cadernos com uma única caneta esferográfica Bic que entrou contrabandeada na

instituição. Também encontramos uma língua de sinais própria com a qual os meninos

se comunicam silenciosamente durante as aulas. Um menino soletra rapidamente

para o outro.

O convívio em alguns momentos diário com estas jovens vidas à beira do

abismo disparou pensamentos e escritos sobre esta experiência, passagens e

conexões que trazemos aqui. A escolha desta intervenção foi a de “fazer esse

mergulho no plano implicacional” (KASTRUP, 2014, p.26), buscando compreender

que existe uma relação que ocorre entre os muitos eus de cada um destes meninos e

que exige este ”novo corpo” (KASTRUP, 2014, p.2). Esta exigência de um novo corpo

vai se fazendo de fluxos, de inúmeras experiências de vida e de reclusão que os

agregam a um bando sem rosto, o bando ‘di menor’.

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Figura 10: apagamentos

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Escritas-imagens míticas.

Dia das Mães, chego ao bairro afastado para mais um dia de trabalho como

professora de filosofia. Na entrada da instituição uma fila indiana de familiares

aguarda, é dia de visita na Fundação Casa. Eu passarei pela revista, eles passarinho?

Gaiolas separam as famílias. Os familiares tirarão a roupa e abaixarão três vezes nus

no quarto de revista. Será que dessa vez alguém tentará passar com algo ilegal

inserido nas entranhas? Outro dia a menina tentou e saiu de camburão. Creio que

hoje não. Não! – afirmo mentalmente. No corredor das salas de aulas, a luz amarela

tinge as faces. Uma mesa com lanches de mortadela, bolo café, suco e refrigerante

(doação da igreja) será o banquete. Os familiares chegam de um em um depois de

passar por todas as portas, gaiolas e revistas. Os voluntários da igreja evangélica

entoam um hino ao som do violão. No corredor estreito, sem janelas e escuro mães,

pais, irmãos mais velhos e outros familiares. O abraço apertado gesto que se repete

aos pares e se dobra. Um pai ligeiramente alcoolizado se equilibra, mães choram, o

hino permanece em contínuo, murmúrios são ouvidos, uma mãe começa a primeira

de quatro visitas que fará naquele dia aos filhos que estão presos em diferentes

instituições - ela me diz sorrindo.

Muito mais que um laboratório de experimentação nas aulas de filosofia do

ensino médio produzindo imagens e palavras dentro da Fundação Casa, vivi como

professora uma imersão e um movimento que recorta, que recolhe, que leva e traz.

Uma imaginação que segue pistas da produção de imagens e palavras, da vida neste

lugar de reclusão e do devir nômade da população de meninos internos, que chamo

‘di menor’. Os adolescentes deste local e seus fluxos de entrada e saída nos guiaram.

Fluxos, que arrastam as linhas mínimas, que vazam o contido pela instituição,

extravasam silêncios e gritos, reinventam a vida e a juventude em caminhos antes

desconhecidos, já que “as coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos

caminhos que se acredita” (DELEUZE & PARNET, 1998, p.12).

Meninos que como outros desejam festa, comida e alegria, mas um deles

morava em um buraco com a mãe. Não, não se tratava de um lugar ruim, de um lugar

precário. Ele morava em um buraco no chão, como nos foi relatado pela

coordenadora. ´Di menor’ é um mapa, um traçado das linhas de força que o compõe,

um ”mapa é sempre aberto” (BORGES, 2016, p.128). ‘Di menor’ é tudo aquilo que

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foge, tudo que escapa à instituição, são devires nômades, é existência feroz,

resistência. ‘Di menor’ é algo sobre o qual é impossível não escrever, é a própria

“impossibilidade de não escrever” (DELEUZE, GUATTARI, 1975, p.35). Buscamos

movimento, produção de palavras e imagens dando impulso a uma ação poderosa

contra a homogeneização da subjetividade dos meninos. Arrastar, rachar os conceitos

e extrair-lhes devires, abrir novos possíveis, estados de variação, pensamentos,

seguir pistas neste lugar de reclusão regido pelos fluxos de entrada e saída de

adolescentes foram algumas das trilhas percorridas. Os olhos sempre se movem, mas

sempre esbarram nas grades neste território com esta população inconstante que

resiste às normas. Um local vigiado, normatizado espaço limite. Os olhos se movem

e notam os movimentos: desterritorializar a adolescência, reterritorializar no crime,

desterritorializar na Fundação Casa.

As linhas mínimas vazam o contido, extravasam silêncios e gritos,

reinventam a vida e a juventude em caminhos dantes desconhecidos, já que “as

coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos caminhos que se acredita”

(DELEUZE; PARNET,1998, p.12). A criação das imagens aqui apresentadas foi

inspirada pela filosofia de Deleuze e Guattari. Nós nunca desejamos capturar

realidades com as lentes, nos interessam as “potências que as imagens têm quando

descoladas do desejo de representar” (WUNDER, 2018, p.2). São visões, torções,

imagens que sequestram o ar, notícias que sequestram o ar. Tantas são as questões

que movem essa escrita que se arrasta por todos lados. Quais foram os

acontecimentos que atravessaram a produção destas imagens? Vazamentos,

pulsões. O que elas trazem? Muito mais do que o que elas nos dizem, nos

debruçamos para espreitar o que elas movem. Limitações, medo, culpa, choro.

Indiferença, fome. Fome? Um dia foi roubado um caminhão de carne, a mercadoria

distribuída. E houve churrasco na favela por uma semana....

Em diferentes direções o tema filosofia foi arrastado pelos menores internos

abrindo caminhos possíveis para novas investigações. Não houve baliza para os

resultados nem desejos de salvação destes menores, mas sim o constante

esgotamento e a sublimação que provocava novamente o movimento ainda que em

um espaço confinado. Tocar, fluir, possibilitar os encontros, extravasar sentidos sem

definir o caminho. As aulas de filosofia do ensino foram ao mesmo tempo marcados

por estados de variação de impossibilidade e movimento, momentos de rebelião nos

quais não podíamos entrar, aulas com imagens, diversos livros levados para a sala

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de aula em uma caixa de feira, filmes, mitos, conversas, atenção dentre tantas outras

coisas. Buscamos lidar com as variações desta atmosfera, a visão panóptica que a

instituição incide sobre os menores e funcionários, a rigorosa verificação do

comportamento pautado por relatórios de conduta e revistas neste regime de luz e

segurança.

Depois de um crime fartamente comentado pela mídia fica quase

impossível que o assunto não chegue a sala de aula, seja ela dentro ou fora da

Fundação Casa, já que os meninos têm o hábito de ver televisão e também o gosto

por isso, além, é claro de ser uma das poucas diversões possíveis. Na sala de

televisão eles se apinham em grande número: - SHIIIHHH! Os assuntos expostos

pelos jornais que assistem chegam a sala de aula, assim foi com a notícia do estupro

coletivo de uma adolescente que ocorreu no estado do Rio de Janeiro. Tratar de

violência contra a mulher é assunto quase inevitável em um lugar submerso em tanta

violência diária. A maioria dos internos já vivenciou episódios de violência dos mais

diversos, muitos que ocorreram em casa presenciando a agressão da própria mãe.

Naquele dia eram sete ou oito meninos e o assunto era este. O primeiro

menino, depois que caímos neste do assunto do estupro e posteriormente sobre a Lei

Maria da Penha (Lei 11.340 que tange a agressão) diz: - Eu tenho cinco Maria da

Penha, tô aqui por isso. - E você acha bonito? - interpelo. - Enchi de porrada -

prossegue. - E você acha bonito? – insisto. Os outros meninos riem, se esborracham

nas cadeiras! - Mulher tem que servir o homem, obedecê, se não encho de porrada.

Cresci em meus 1,60: - Vocês vão ficar quietos e acabou este assunto. Estão me

desrespeitando, sou a única mulher aqui - Disse quase gritando! - Não é verdade não,

senhora - ´Di menor´ volta atrás e mudamos de assunto.

Os olhos sempre contam, durante a reunião escolar, arqueadas e

enfileiradas ao longo da mesa as mães daqueles meninos na sala de leitura que mais

uma vez e sempre e todas é decorada pelas grades amarelo vivas. Os familiares

podem levar o boletim escolar dos meninos e de um modo geral com o resgate da

trajetória escolar eles passam a ter boas notas e se inserem no ensino formal durante

a passagem pela CASA. Já suas mães quase sempre carregam além do peso dos

anos de nascimento, vincos, sorriso amarelo de poucos dentes e a tristeza nos olhos

baixos.

‘Di menor’ devir corpo dócil, intenção de sujeição e domesticação, desejo

de que o corpo seja dócil, tudo muito explícito quando se observa as janelas e as

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grades, as três gaiolas que se passa para enfim chegar aos meninos. Gaiolas com

duas grades corrediças, o professor para adentrar o prédio passa por sistemas assim

três vezes. Todo um aparato de domesticação e contenção: grades, portas, quartos-

celas, relatórios, uniformes e etc. Deixa-se viver, porém aprisiona-se, domestica-se,

silenciasse buscando um recondicionamento destes jovens corpos infratores. Em

questão das subjetividades é claro que a forma identitária que a instituição busca

moldar no menino infrator é contrária a aquela com a qual ele chega, seria a proposta

de um distanciamento até que se chegue progressivamente a contraposição. Muito

mais do que anuncia Foucault em sua obra “Vigiar e punir” (FOUCAULT,1975), estes

meninos e a sua permanência na instituição vão de encontro a produção de

subjetividades percebidas por Deleuze na sociedade disciplinar. A instituição busca

produzir uma certa subjetividade para que seja desperta a vontade de estudar, de

vencer na vida (o que seria sair do crime de acordo com o que a instituição almeja),

de participação social.

Movem-nos desejos de subversões filosóficas, de libertar o pensamento de

corpos aprisionados. Impossibilidades, esgotamentos. - Senhora continua a história

de Tróia (Ilíada). Hora que passa de mais um dia. - Senhora, logo a liberdade canta.

Os inúmeros processos que ocorrem neste local de reclusão nos dão pistas

sobre os possíveis modos de vida e resistência destes jovens em devires menores,

em devires ‘di menor’. Nas produções de textos ‘di menor’ cria mitos fantásticos de

luta e sangue, guerra, paz e ressurreição. ’Di menor’ traz angústias e poesias com os

desenhos de suas mãos. Como é raro uma caneta dentro de uma CASA, uma caneta,

um instrumento tão simples e comum aqui fora, uma caneta, um instrumento de poder,

uma arma, um objeto de fazer arte, tantos significados claros ou ocultos.

‘Di menor‘ nunca morre, ‘di menor’ é legião, é formiga, é vespa, é matilha

urbana, é vetor de bando. Um exército que não se extingue, pelo contrário, se

multiplica em devires: nos guetos, vielas, nos sinais, nos camburões, embaixo dos

viadutos, nas ruelas das favelas, nas faltas de oportunidades, morto nos sacos pretos.

Fazendo avião para o tráfico, morando na areia, sendo engrenagem da máquina-

crime, cifrão tatuado no dedo, sangrando até morrer baleado pela polícia ou nos

acertos, “não há sujeito, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação”

(DELEUZE & GUATTARI, 1975, p.38). ‘Di menor’ não tem nome, mas sempre há mais

um, mais mil em pé. “Josefina, a camundonga, afogada em seu povo” (DELEUZE &

GUATTARI, 1975, p.71) se perde na multidão de camundongos, ‘di menor’ se perde

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na multidão. ‘Di menor’ é multidão, é um, é um que são muitos, são vozes de um devir

menor, de um devir adolescente marginalizado, são linhas de continuidade e fuga.

São música, são linhas de frente. A mesma mão que comete a violência é aquela que

com traços precisos faz arte. ‘Di menor’ clama à justiça divina, mas também empunha

a arma que o leva a execução de um sequestro relâmpago no Shopping. - Mãe, ô

mãe, compra este aqui para mim. - Mãe, ô mãe, quero este também…. Eles chamando

a vítima de mãe e depois de pegar tudo que queriam deixando-a sentada em um café

com R$50,00 embaixo do pires. ‘Di menor’ é gerente do tráfico de drogas. Dizem por

aí que é ‘di menor’ é até piloto de fuga. Se por um lado traz tatuagens com símbolos

religiosos, evoca a justiça divina por outro empunha a arma e puxa o gatilho. Justiça

que se escreve na pele caminhando lado a lado com os símbolos religiosos que

trazem estampados em tatuagens. Inventos de uma vida marginal que os

adolescentes oferecem em desenhos. Destaca-se o fato que a pele se torna a única

marca identitária possível de ser mantida dentro da instituição. Nestas marcas um

conjunto de circunstâncias da vida que estão atreladas a valores do crime,

pertencimento, desejos da máquina capitalista, ostentação, sucesso no crime,

conquista de muito dinheiro, tênis, motos, carros.

Versículos da bíblia inscritos nas paredes brancas da instituição, nos

cadernos. ‘Jesus’ leio no braço de um dos meninos, pichações santas nas paredes.

Jesus loiro estampa peles negras e pardas. Jesus loiro e uma Ave Maria igualmente

alva é quem mantém a fé nas condições adversas, uma santidade branca abençoa

meninos negros, majoritárias hierarquias do mundo simplificadas para a minha parca

compreensão. O forte hábito religioso que se mistura com a criminalidade. Se por um

lado os adolescentes cometem delitos por outro estão fortemente atrelados a valores

cristãos, violência, ecos da vida vindos deste bando ‘di menor’ que é agora seduzido

pelo crime mais uma vez. ‘Di menor’ são muitos, diz de todos enquanto bando, diz de

todos quando diz de um. O menino aliciado na porta de sua casa, o vulgo ‘di menor’

que se dobra em mais um, ecos. ‘Di menor’ corre nas noites olhando qual é a facilidade

de se estourar um vidro com pedaços de velas de carros que estão em seu bolso. ‘Di

menor’ carrega pacotes, entrega armas, ‘di menor’ garante a segurança da biqueira,

olho que vê e denuncia. ‘Di menor’ vende crack nas biqueiras. Que imagens,

percursos, relações, permanência, imersão, ruptura, muito nos trazem as tatuagens

destes meninos. Marcas que escrevem muito além do visível, marcas que criam

estados inéditos de dor que escreverão de agora em diante. Linhas de tempo novas

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geradas. O menino que se recusava a copiar por mais que eu pedisse. - Não enxergo

- afirmava. Marcas que dizem em suas narrações que criam novos corpos a cada dia

de aula, assim como a minha insistência com a equipe pedagógica sobre a

necessidade do menor de usar óculos. Passados dois meses o menor aparece na

sala de aula com seus óculos novos. Eu sorrio, ele não sorri de volta, me aproximo: -

Como estão os óculos? Está vendo bem? - Senhora, eu tô cego de um olho - ele diz.

E completa: - Nunca mais vou enxergar, descolamento de retina o médico falou. Ficou

assim do soco que a polícia me deu...Marcas que criam um novo corpo em quem aos

quinze anos é cego de um olho. Enxergar com este novo corpo, o corpo cego de um

olho para toda a vida, o corpo infrator. O menino não enxerga mais com um olho, a

subjetividade imposta por este fluxo de violência no qual está inserido o dobra em

mais um ‘di menor’. Alunos? Vidas que resistem a exclusão, a violência, a perda da

infância, ao estado, a instituição e as normas.

Vidas que reinventam modos de existir e entre os vãos, com pouca luz que

as banha, apontam as suas hastes vencendo as grades. Meus olhos sempre se

prendem as mãos dos meninos e as grades e aos descascados nas grades que

denunciam quantas mãos se apertaram a elas. Notam-se as subjetividades. Menino

é menino esteja guardado ou correndo no sol. Como pensar diante de um problema?

Filosofia com meninos que não se rendem a medidas socioeducativas? A

subjetividade desses adolescentes ao adentrar o centro está em grande parte

fortemente atrelada a valores de representação da vida no crime, ostentação, sucesso

no crime, conquista de muito dinheiro e aquisições de bens materiais tais como: tênis,

motos e carros. Esta subjetividade é movida por desejos que estão em conformidade

com a máquina de consumo capitalista, com determinadas formas de ser e pensar,

desejos de posses. A mãe, sempre a mãe, sempre o nome da mãe!

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Figura 11: mãe

Imagens que dizem também de afinidades com o skate ou com o coringa,

personagem de Stan Lee. Uma imagem que não é plana e que se insere no corpo, o

corpo como superfície de encontro. Superfícies de escrita e transparência, a pele

como uma superfície, como tela do subjetivo deste bando ´di menor´. Fazer ouvir o

invisível.

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Figura 12: coringa

Encontramos pistas de como fugir de clichês de representação ao olhar

para as imagens destes meninos. Imagens que eles oferecem do próprio corpo em

uma das aulas com a câmera. Gerar imagens comandadas pelo corpo, fluxos que

arrastam todo tipo de coisa, retenções, larvas, germes. Um processo de pensamento,

encontros a população, relação. A pele mais que adorno revela tramas subjetivas que

englobam tanto o campo social, quanto o conjunto de circunstâncias da vida destes

meninos. A pele revela suas marcas, em seus corpos os meninos trazem signos e

símbolos tatuados que os relacionam ao mundo do crime tais como: palhaços, irmãos

metralha, coringa, caveiras, balõezinhos de almas de policiais mortos e

representações dos crimes ou facções as quais estão ligados, desejos expressos em

cifrões no dedo indicador, no dedo que aperta o gatilho e ainda lágrimas negras

tatuadas no rosto. Símbolos que se repetem nas imagens que produziram durante as

oficinas. Balõezinhos com almas de policiais “subindo” depois de serem executados.

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Figura 13: subiu!

Apreender imagens do pensamento, ver deslizamentos, resistências e

acontecimentos ao produzir imagens acontecimentos. Trabalhamos com imagens que

são um processo de criação e de encontros nas aulas de filosofia, deslizamentos,

resistências e acontecimentos destes meninos. São imagens que eles trazem e

produzem e que se desprendem de narrações de histórias de verdades. São diversos

tipos de entradas nas imagens, percursos, relações e permanências enquanto o

bando, a manada ‘di menor’ passa e traz notícias de outros lugares.

Como vazam as palavras ao serem atravessadas por este coletivo ‘di menor’?

Buscamos caminhos para esta pergunta com a proposta do trabalho com mitos. Esta

escolha deve-se a sua pertinência filosófica e ao interesse demonstrado pelos

meninos. No início de cada aula (que ocorriam em blocos de duas) a leitura em voz

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alta da Ilíada (poema épico de Homero) em uma versão adaptada para escolas

públicas entretia aos meninos que enfileirados ouviam em quase todas as salas. A

história da guerra de Tróia seguia aula a aula e sempre que entrava um menino novo,

o que era bem recorrente, havia um resumo e prosseguíamos do ponto de parada da

aula anterior. Foram lidas mais de uma centena de páginas. Desta experiência

surgiram comentários sobre “Percy Jackson e o Ladrão de raios”, filme Hollywoodiano

com temática mitológica, ou ainda a história de “Ben Woof” uma lenda nórdica também

transformada em filme blockbuster. Empolgados, eles narravam mitos gregos e de

diversas outras civilizações que já conheciam. As visões poéticas da fundação das

coisas na obra “Uma história quase universal” do escritor uruguaio Eduardo Galeano

(GALEANO, 2008), que foi lida em sala de aula e as falas dos alunos dispararam a

criação de seus próprios mitos.

Mas que mitos ressoam nas mentes deste bando? Que relações dinâmicas

de devir, multiplicidade, expansão carregam suas falas? Estes meninos dobram-se

em mitos. Como “essa dimensão do mito, esse exercício de criar personagens que

assumem um lugar maior” (BOGUE, 2011, p.24) aparece em suas produções? Os

mitos trazem questionamentos sobre a existência e significados da vida, do mundo,

das religiões, das formas de viver e formas de comunicação e expressão. Mas porque

trabalhar com mitos? Mitos dizem muito sobre determinada civilização, cultura ou

grupo humano. Os meninos também criam e inventam seus mitos nos quais ressoam

devires menores.

Histórias que narram um dia de muito calor a milhões de anos atrás, muito

quente mesmo, na época dos dinossauros. Uma época em que caíram pedras de

fogo, uma delas tão grande que criou um vale dos vulcões. Apesar de inesperado,

anos depois volta a ocorrer tamanho evento e então nasce o vulcão maior de todos,

pai de todos os outros. E pronto, eis a fundação do vulcão. Histórias que trazem

desejos, pensamento e entretenimento, gostos de tais como o futebol que é quase

unânime entre os meninos, e que passa por uma refundação mítica tornando-se um

jogo feito por Hades (deus grego do mundo inferior). Ao invés de usar uma bola o jogo

acontecia com um crânio humano! Esta seria a origem do jogo que chega até nós

depois de ser desenvolvido por séculos e séculos.

Devires menores que falam de amizade e bullying quando narram que num

belo dia dois amigos resolveram se encontrar num parque para curtir e relembrar do

passado. Amigos se lembram do bullying que sofriam no tempo de escola. Amigos

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que após um abraço feliz no parque vão até uma loja de armas comprar um revólver.

Vingança e ódio tem vez nesta história em que o revólver é disparado contra aquele

que praticava o bullying enquanto ele lavava o carro. O velho amigo que tantas marcas

psicológicas tinha por ter sido maltratado chega perto e dispara várias vezes. O corpo

cai perto do bueiro e seu sangue escorre e se mistura à água na estação de

tratamento. Este sangue misturado a água suja dá origem a um monstro horroroso

que passa a ser a sombra a vida do atirador que se vingou. Seria a vingança solução,

seria a vingança um monstro que acompanha quem a executa?

Estes mitos trazem anseios e revelam em que mais se dobram este ‘di

menor’. Trazem histórias de desobediência, castigo e dor nas quais um menino xinga

seu pai, que era um protegido do deus dos animais, e que como castigo é

transformado em um bode. Histórias que explicam o surgimento da Mãe Dináh, uma

espécie de entidade que só pode ser conhecida ao se atravessar vale da morte e em

meio a este percurso seu nome for chamado três vezes. Vingança que consome quem

está preso, vingança que se revela em um mito, em uma lição, uma tarefa.

Os personagens destas produções desafiam e vencem a própria morte ao

renascer de um incêndio tal qual Fênix. O menino do mito renasce depois de ser

linchado e queimado pela comunidade na qual mora, linchado injustamente por

inimigos. Ao renascer este menino traz a marca do fogo e o desejo de vingança.

Ressurreto e implacável o herói mítico traz paz e justiça. Mitos que falam do inferno,

da possibilidade de encontrá-lo ao se cavar o chão, mas que ao mesmo tempo

duvidam quando afirmam que o inferno é aqui na terra. Mitos que falam de desejos e

revelam dobras e mais dobras, imagens e a energia, um desejo de resistência,

complexidade e multiplicidade de forças. Uma imagem que se repete para diferir, para

captar dentro de um rizoma, captar acontecimentos. Uma imagem composta por

escolhas, plano, altura, foco, um recorte feito pelos meninos. Forças que todos os dias

me interrogam de alguma forma: - Senhora? Senhora? Onde que a senhora vai beber

água? No nosso bebedouro? A senhora não tem nojo da gente? Nojo? Forças que

me impelem a desequilibrar modos de ver e pensar. A ter que me preocupar em

produzir imagens sem rosto de meninos sem nome, romper esgotamentos visuais,

mover através do impossível, deixar que as imagens sejam palavra e das palavras

vazem imagem para além dos muros, para além de tudo que as filtrou e separou até

que chegassem aqui.

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Interessam-nos as forças que movem estas produções e desafiam o usual,

procuramos as possibilidades de absorção de mundos pelas imagens. Filosofia em

aulas acontecimento. Aulas? Na Fundação todas as professoras são chamadas de

senhora. - E a revista, senhora? - Cadê o lápis do menino, senhora? Filosofia

possível? - Cadê o termo de entrada do material, senhora? - Hoje a Casa ‘virou’,

senhora. Depois de rebelião não há aula, todo mundo nos quartos. – Se um dia eu

disser que tem um telefonema para senhora lá fora, a senhora vai atender! Entende?

A senhora vai na hora atender, entende? Não pode ficar não que é um sinal que a

casa vai virar, vai haver rebelião. – Se eu disser para senhora que amanhã a senhora

vai ficar doente, amanhã a senhora não vem. Entendeu senhora?

Aqui abraçamos o terceiro excluído aristotélico e rodopiamos, é não é, é

não é. Em cadeia de criança todo mundo é inocente. Pergunte ao canto, ao vão da

grade, ao beliche de concreto, ao ‘boi’ que esconde só as genitálias e o tronco do

menino que usa a privada em um dos quartos-celas. Pergunte aos ‘funças’ que vigiam

os meninos e seus movimentos e os chamam de ‘monstrinho’: - Monstrinho. Ô

monstrinho! Pergunte aos relatórios. Pergunte a cozinheira que queria servir mais uma

porção de comida para o menino, mas não permitiram. Perguntem ao funcionário, ao

´funça´ que humilhou esta mulher por querer servir mais comida. Pergunte a cadeira

que foi arrebentada na nuca deste ´funça´. Pergunte a colher que foi escondida dentro

do calção do ‘di menor’ devir fuga que cava a parede. Escute os ecos das infâncias

perdidas no tempo, dos ovos de linha de tempo adormecidos, dos esporos de

infâncias dormentes, de infâncias saudosas de um futuro que talvez jamais chegue,

um futuro que já passou, um futuro latente que nunca chegará a ser. Verdades? Eles

já possuem a própria.

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Fabulações imagéticas

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“Tô chapando, eita mundo bom de acabar”

(Racionais Mc’s)

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Figura 14: terror

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Tempo para pensar ou chapar como diz ‘di menor’ não falta na Fundação

Casa. Muitos dos meninos internos na instituição ao subir para a quadra esportiva,

que fica no alto dos três andares do prédio, preferem andar ao redor dela ao invés de

praticar alguma outra atividade proposta. Os meninos internos cumprem “uma

passagem” - como dizem – e, ao mesmo tempo, percorrem exaustivamente o espaço,

assim como fazem os personagens de Beckett na tele peça “Quad II”. Ambas as cenas

remetem ao esgotamento do espaço e as possibilidades de movimento.

Semelhanças, aproximações, meninos acinzentados percorrem exaustivamente um

espaço num jogo teatral, personagens percorrem exaustivamente um espaço na tele

peça “Quad II” 4 . Se na telepeça quem busca esgotar os movimentos são as

personagens, na realidade são os meninos que permanecem transitando pelos cantos

da quadra. Muito além do cansado que se debate, recusa-se a dormir, alterna estados:

a mão o levanta, a mão o serve, no entanto, o cansado insiste. O esgotado passa por

diferenciações, afastamentos, personagens são criações, os meninos estão

confinados na vida real. Percorrer, esgotar, esgotar os movimentos possíveis.

Quantas voltas são necessárias para não chapar? Quadrado que se repete, ângulos

retos da quadra, da peça, retas das grades, retas do pequeno quadro de sessenta

centímetros por cinquenta que chamamos de lousa. Escrever e apagar tantas vezes

durante uma aula da disciplina de filosofia. ‘di menor’” sem nome, apagamentos. Um

quadro, linhas que se cruzam em grades, hachuras. Palavra que se esgota na tristeza

do gesto: mãos para trás, cabeça baixa, mais uma dobra. Impossibilidades que tiram

a voz. Cansados os meninos andam de um lado para o outro sem parada ou sossego.

Repetem ações e criam padrões de repetição, série de gestos. Esgotamento após

esgotamento, meses de clausura são notados e tingem as peles do mesmo amarelo

das grades. - Eu não aguento mais, eu não aguento mais ficar aqui - esta é uma frase

recorrente.” A limitação esgota os internos de várias maneiras: linguagem, espaço,

palavra, gesto, condições que se excedem ao possível. Mas que o foge a todos os

conceitos do mundo, grades, portas, gestos obrigatórios, ordens que dobram em

outras. Os meninos fogem! Fabulam e criam, imaginam, criam força. São as

“fabulações que levam a “criar “imaginários” resistentes à representação do real,

principalmente da representação, pela inteligência, da inevitabilidade da morte. Desse

4 https://www.youtube.com/watch?v=4ZDRfnICq9M

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modo, a função fabuladora desempenha um papel social, mas também traz ao

indivíduo, segundo o autor Bergson, um “acréscimo de força” ” (SILVA, 2015, p.131).

Enquanto o menino copia da lousa também se comunica em uma

linguagem de sinais própria com o outro menino, com um “parça” que está do outro

lado da sala, ou em outra unidade da Fundação CASA, olho de águia que vê do prédio

ao lado pela janela, entre as grades. Sempre houve um esforço de movimento frente

a impossibilidade, os meninos resistem e reinventam a vida de muitas formas. Nesta

trilha de resistência e força em conjunto vivemos uma prática de sala de aula como

linha de fuga durante “minha passagem” como professora de filosofia na instituição

Fundação CASA. Uma fuga que ultrapassou ao uniforme, ao coque de cabelo de

cabelo que nos era exigido (para que houvesse menos formas de nos atarem em caso

de rebelião), foge aos pequenos brincos para que nunca se tornassem armas, foge

aos relatórios constantes, as grades e que extravasa o pequeno quadro, que

extravasa o limite e que desencadeia uma metamorfose: convites, encontros, tema,

geração, fluxos de pensamento, acontecimentos dentro das aulas, “talvez a abertura

de um intervalo, um vazio para aquilo que vem sem direção de causa ou de efeito –

puros efeitos – para aquilo que simplesmente nos consome e nos inunda em um devir

ilimitado”. (AMORIM & MARQUES & WUNDER, 2016. p.11).

Em muitas das intervenções e provocações realizadas nas aulas de

filosofia dentro da Fundação CASA optamos por utilizar a máquina fotográfica e entrar

com uma máquina na Fundação significa passar por revista na entrada e na saída

além das usuais revistas nas muitas gaiolas que separam a rua os meninos, significa

obter autorização do corpo pedagógico e também ter as imagens filtradas na entrada

e na saída das casas. As imagens que aqui são apresentadas foram captadas durante

duas das muitas oficinas realizadas, denominadas por nós: Fabulografias e

Aparições. Imagens revistadas após as oficinas de forma a não trazerem nenhum tipo

de identificação ou referência ao menor que as produziu. Alguns postais foram

separados por conterem tentativas de comunicação entre as CASAS, já que as

oficinas ocorriam nas três unidades da Fundação, nas quais eu era professora. E os

meninos sabiam disto.

Nestes encontros trabalhamos com fotografias experimentais em uma

“aposta na imagem como disparadora de pensamentos” (WUNDER, 2015, p.13).

Sempre quisemos dar passagem às visualidades que os meninos trazem consigo,

perceber de dentro, perceber como se dão as relações entre eles, com eles, com o

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mundo, com a vida. Arriscar e permitir que a força das palavras tome posse de si,

“narrar sem legenda. Criar com a imagem a lenda fabulatória de um mundo que se

abre às forças“ (AMORIM, MARQUES & WUNDER; 2016, p.110). Bailar sobre os

efeitos da escolha de deslocar a visão do trivial e do representacional da fotografia e

desenvolver relações menos ilustrativas. Desejamos uma criação imaginativa tendo

como disparador imagens e propostas de criação, fabulações, potências ficcionais e

forma de expressão. Tratava-se de uma geração de dobras, de vazar da falta de

palavras para dizer de acontecimentos que abalam, que silenciam, para romper

ordens discursivas impostas, silenciamentos impostos. Todas as vezes que a câmera

este presente, eles se fotografaram insistentemente de todos os ângulos possíveis,

pois ver sua própria imagem refletida também é algo raro na instituição.

Mas o que atravessa as grades? Vazam imagens produzidas pelos

meninos em conflito com a lei. As produções que apresentamos representam

potências e uma inserção em um grupo de excluídos da sociedade que trazem

fragmentos, entradas, variações, mudanças e repetições, séries ‘di menor’ e que

expressam a relação entre a filosofia e as artes. Processos que levam ao

reconhecimento da imagem como um processo de pensamento, uma expressão de

potências e sentidos: desenhos, produção de textos que torcem o português oficial,

imagens vivas que os meninos trazem tatuados em seus próprios corpos, energias,

visões, noções. As imagens produzidas são rupturas visuais que pretendem

desequilibrar a ideia de que a fotografia é uma representação do mundo que vemos,

em contraponto produzimos imagens como criadoras de visões, como uma forma de

atuação do pensamento e do corpo e não como captura de olhares. Nosso êxito está

em imagens que foram produzidas para aquém do esgotamento imposto pela

instituição. Esta inspiração nos foi trazida por artistas que ajudam a pensar a produção

de imagens relacionando-as ao conceito de esgotamento, assim o fotógrafo esloveno

Evgen Bavkar.

A criação de Bavkar nasce após dois acidentes aos doze anos de idade

que o levaram a cegueira em um período de oito meses, após o esgotamento da

possibilidade de ver, ao menos com os olhos. Ainda que fotografia e visão de um

modo geral refiram-se uma a outra parecendo inseparáveis, quando falamos de

captura de imagens Bavkar provoca a quebra. Ele reposiciona a fotografia não mais

como um exercício do olhar e sim como uma visão do pensamento. Muito além de

meros prolongamentos dos olhos, Bavkar cego nos leva a ver suas fabulações que

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desequilibram a ideia da fotografia como representação. Suas obras nos aproximam

da ideia da fotografia como uma criadora de visões, não se trata mais de expressão

de uma realidade ou uma verdade do nosso tempo. Trata-se de experiência, de

exploração da potência da imagem, de um modo de atuar sobre o pensamento

produzindo novas visualidades. A luz se envereda por experimentações de interação

e criação. Não é mais o olho que vê, o olho que fotografa, e sim o corpo, a imaginação.

Cego ele nos leva a ver suas fabulações, tornar visíveis forças invisíveis e pensa por

meio da experimentação fotográfica.

‘Di menor’ traz possíveis cruzamentos entre uma prática de sala de aula e

a produção artística coletiva. Acontecimentos criativos que captam e inventam. A

criação imagética e textual dentro da Fundação sempre foi imaginativa e partiu de

fabulações, partiu de inspirações e de esgotamentos diversos: espaciais devido a

arquitetura, limitação de materiais que poderiam entrar na sala de aula, proibição de

retirada de imagens com o rosto dos meninos ou com algum conteúdo considerado

impróprio (sendo necessária uma revista da memória da câmera na entrada e na

saída), tempo de aula, revistas obrigatórias na entrada e saída do centro, rebeliões,

dentre outros. Criar partindo de esgotamentos diversos, tempo de aula, revistas

obrigatórias, rebeliões, dentre outros. No confinamento da instituição tempo é o que

mais se têm, tempo é o que menos se tem. Uma aula é de cinquenta minutos, porém

a contagem de materiais e procedimentos de revista na entrada e na saída da unidade

fazem com que o tempo efetivo seja bem menor.

Dentro da Fundação Casa o trabalho desenvolvido mostrou que os

meninos estavam abertos e que davam respostas diversas, intensas, conectáveis a

tantas outras coisas dentro de uma máquina de enunciados. Mobilizar pensamentos

nas salas de aula foi o que orientou a prática em educação e a realização de oficinas

imagéticas, textual e fotográfica como ferramenta de sensibilização, reflexão e

criação. Entrar com a máquina fotográfica, sair com as imagens, uma inspeção a mais

dentre tantas outras diárias, verificação do conteúdo que sai e entra. Permissão ou

não dos fluxos de entrada e saída destas imagens. São expressos sentidos nestas

imagens e palavras produzidas, sentidos que passam pelas grades.

Eparrey Iansã! Pelas grades passa o vento. Ventos de Iansã, ventos do

Fabulografias, ar, ares que ventam em diversos espaços diferentes, Áfricas de muitos

portos, de muitas cores. Fabulografias entrando com tambores, imagens e sons para

uma maioria da população das CASAS que é negra (meninos negros em sua maioria

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que foram apreendidos por policiais negros) agora num encontro com o “Coletivo

Fabulografias” que se articula com Núcleo de Leitura da Associação de Leitura do

Brasil ALB (FAEPEX -2013) e o Projeto Fabulografias em áfricas-cartões-postais

(Faculdade de Educação - Unicamp - FAEPEX - 2011) tendo como coordenadora a

Profa. Dra. Alik Wunder. Neste projeto, que participei por cinco anos, criamos postais

sonoros e imagéticos impulsionados pela pergunta disparadora: “Que Áfricas ventam

por você? ” Este coletivo realiza saraus em escolas públicas, praças, encontros, com

grupos de cultura popular, artistas, professores, estudantes secundaristas e

universitários, mestres griôs, dentre outros. Imagens experimentais inspiradas pela

teoria do filósofo Gilles Deleuze e por devires africanos movimentados pela pergunta

disparadora: que África venta por você?

Fabulografias são imagens e palavras que muito além de criar subvertem

o olhar, são “modos de pensar com as imagens menos como representação de um

mundo“ (WUNDER, 2015, p.14) e mais como experimentação. O Coletivo

Fabulografias promoveu encontros de criação dentro da Fundação CASA utilizando a

palavra e o silêncio. Um processo de criação coletiva de invenção, experiência,

criação e desejos. Respeito, mesmo que o evangélico não tenha participado, falar de

devires africanos não foi um problema. Respeito: - Esta oficina é muito legal, sempre

trazem as mesmas coisas para gente, queremos ver coisas diferentes. Respeito e

ecoar de tambores dentro do prédio. Em muitos lugares e momentos o Coletivo

Fabulografias se deparou com o intolerável, muitas vezes devires africanos nos

levaram a questão do preconceito. Se em um primeiro momento eram as mãos de tia

Nice, figura campineira que nos narrou muitos dos preconceitos raciais que viveu que

expunham feridas, neste encontro com os jovens da Fundação CASA nos choca a

juventude confinada. Em manipulações digitais, repetições e composições de postais

que se dobraram em outras e outras… O que se repete e o que se diferencia? A

oficina do Fabulografias colocou muitos sorrisos em rostos sisudos e nesta hora podia-

se notar que eram meninos extremamente empolgados com a proposta de criação de

sons através de instrumentos musicais e também de imagens. “ Isto é diferente,

sempre nos mostram as mesmas coisas” – disse um deles: - sempre rap e hip hop.

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Figura 15: Separa - Fabulografias

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Figura 16: vazamentos - Fabulografias

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Entradas em imagens e percursos, imagens que estabelecem, superfícies

de passagem, rasuras de outros lugares, imagens que oferecemos e que vieram de

outras oficinas feitas antes. Apostas de rasuras nas imagens, raspagens nas imagens

que trouxemos. Uma materialidade que a fotografias traz, o menino que pica

milimetricamente uma imagem que já percorreu muitos mundos, uma imagem que

atravessou oceanos de luz, que já atravessou mares e foi criada por muitas mãos. O

Coletivo Fabulografias sempre trabalhou assim, nas imagens fabuladas, durante a

realização das oficinas aprendi que uma pergunta pode gerar muitos fluxos, todos

diversos que se misturam e sem cruzam em malhas, tecidos vivos de uma trama que

diz do que podem ser uma Áfricas pensadas. Criações de imagens pensamentos que

muitas vezes se ancoram nas sensações, que fogem de clichês de representação e

arrastam tantas coisas, larvas, germes, ovos de futuros perdidos, um processo de

“fabulação que se dá na relação “ (DELEUZE, 2007, p.1). São convites feitos antes a

tantos grupos e feitos novamente agora, convites a uma caminhada imagética não

imposta, produções de sopros, de ventos do Fabulografias que se dobra em muitos,

devir oficina, um banquete de imagens e silêncio para esta degustação de poesias,

autores africanos e imagens. Composições de tantas oficinas movidas pela pergunta:

“’Que África venta por você?”. Esta pergunta aberta em roda dentro da Fundação

CASA permite algo que nunca eu havia presenciado: tambores que ecoam no silêncio.

O afastamento físico que o prédio possui do resto da cidade impõe outros sons: fala-

se baixo, o alto incomoda, murmura-se, gesticula-se palavras, uma rotina do som. Mas

naquele momento isto quebra-se e o tambor ecoa por todo o prédio, os meninos quase

sempre sisudos sorriem e entreolham-se. São instantes de criação, o direito

concedido de se picar, de rabiscar. Toca o tambor menino, toca. Quebra o silêncio! –

penso! . “Que Áfricas ventam por você?”. Fabulografias moveu desejos e expressões

das subjetividades dos meninos. Será que ela sofre?

Quanto sofrimento cabe em uma folha de papel?

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Figura 17: Sofrimento -acervo Fabulografias

Quanto sofrimento cabe em um menino privado de sua família, privado de

sua comunidade, sonhos, liberdade, desejos, vontade? Quanto sofrimento cabe na

noite escura em um beliche de concreto com o vento gelado passando entre as

frestas? Será que ela sofre? Eles sofrem tenho certeza. Sei que sofrem quando vejo

‘di menor’ cego de um olho por ter apanhado da polícia. Sei que sofrem quando um

menino pede para tocar meu ventre arredondado pela gravidez, sei que sofre quando

diz que acha tão bonita uma mulher grávida e tem mais de dois anos que não vê uma.

Sei que sofrem quando este mesmo menino já pai relata como é difícil saber que seu

filho agora cresce sem vê-lo em uma cidade longe dali. Sei de tudo isto quando um

menino relata que nunca recebe visitas, pois a família não tem pouso em Campinas e

o tempo de vinda de sua cidade não permite que venham vê-lo. Ah! Como sei que

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sofrem quando um me diz que sua tia trabalha no Canadá de empregada doméstica

e quer levá-lo para lá em busca de uma vida melhor, mas muitos dizem que isto não

é para ele. Sei também que ninguém para de sofrer ao ser chamado de monstrinho

quotidianamente ou ainda ao ser obrigado a assumir o crime de alguém que é maior

de dezoito anos.

Se ela sofre também não sei, mas ela dança livremente.

Trabalhar com as imagens meticulosamente como nunca vimos em tantas

oficinas realizadas, possibilidades de rasuras, de amassar as fotografias, de rasgá-las

de remontá-las ao seu gosto. Picar a imagem, reconstruí-la, rasurá-la, riscá-la.

Quantas impossibilidades transpostas nestes gestos dentro da instituição.

Possibilidades de expressar pensamentos confinados, de fazer música, de assumir-

se como pertencente a uma religião de matriz africana. Pensamentos sobre o mundo

lá fora e as coisas que ele possui. Quantas vezes não ouvi deles quanta falta faz uma

terra, uma árvore, umas folhas.

Escolhas, montagens, reedições, poesias e sons. Produção de novas

imagens que compõem o velho com o novo, compõem a rua com a liberdade, a

simplicidade com a poesia, com lembranças que ardem como fogo, que permanecem

dentro na imensidão das horas que a solidão do confinamento devora. Declarações

de amor a liberdade e de amor ao próximo

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Figura 18: não- acervo Fabulografias

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Figura 19: Composição acervo Fabulografias

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Figura 20: celular- Fabulografias 1

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Figura 21: Nil Senna – acervo Fabulografias

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E belezuras nos encontros com as imagens da cantante Nil Senna

produzidas também durante as oficinas do Fabulografias. Voltas, hachuras e linhas.

Beleza e destreza que dão vida ao papel contornado pelas mãos habilidosas do

menino. Dar corpo a um rosto, extravasar a fotografia. Levamos caneta, papel, um

postal e a sensação que fica é que seria possível partindo dali que ele desenhasse o

mundo. Texturas, linhas que dançam no papel e que criam novas visões, mais uma vez

a fotografia que não representa, mas que cria, que inventa e que nos leva para longe

das grades.

Impossível que cede na dobra, no vão. ‘di menor’” costura a imagem. Seria

fácil desistir, mas ele resiste e reinventa a vida com papel e tinta, borda a imagem. E

ressignifica este espaço tempo, ressignifica o fato de estar trancafiado. Trabalhar com

fotografia em um local onde não se pode manter a imagem, nem ver sua imagem,

desenhar no impossível, criar um mundo para além das grades, retas, gretas,

percorrer trilhas, acontecimento. Hastes vencendo as grades. Grades que são beleza,

grades que dão corpo ao perfil. Grades moventes, insubmissas, uma curva, algo que

distrai os olhos, beleza em meio a dor, arte.

Encontramos resistência. Palavras que crescem em gretas, que escapam

em meio ao silêncio, poesia. Desejos de sons e cores, desejos de liberdade. Músicas

que trazem reflexões sobre frustação, revolução, luta, ética e tantas outras coisas nos

versos do rap dos Racionais, aliás coisa impressionante. Quase todos os meninos

conhecem o álbum “ vida loka” de cor e expressam em escritos.

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Figura 22: Poema – acervo Fabulografias

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Figura 23: Poema 2 – acervo Fabulografias

Trazem possibilidades de rasuras. Discussões sobre o preconceito com as

religiões de matrizes africanas. Muito pode uma imagem em sua complexidade e

multiplicação de forças, pode provocar debates e enfrentamentos assim foi com o

menino evangélico que não participou da oficina, mas que respeitou aquele momento.

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Figura 24: demônio? - Fabulografias

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As imagens foram devolvidas aos meninos para conhecê-las e também

foram disponibilizadas para que pudessem leva-las no momento da liberdade. Muitos

foram os encontros em superfícies e meios assim como trazem os escritos dos postais

do Coletivo Fabulografias que circulou pelas unidades e que foram apreendidos e

retirados de circulação diversas vezes. As trocas realizadas no intercâmbio destas

produções geraram estancamentos que destacam uma grafia própria em mensagens

que nunca chegaram, versos de postais, mensagens filtradas. Uma grafia marginal

que se repete é se dobra em mais uma e pode ser vista nas mensagens aqui

represadas. São muitas alcunhas, muito ‘salves’, muitas mensagens que desejam

força e fortalecimento. Mas que também comunicam sobre situações dentro da casa

Figura 25: Verso 1- Fabulografias

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como a utilização de drogas, planos de fuga ou de rebelião. O motivo da filtragem

deste material se refere a segurança de todos e era um procedimento padrão. A

equipe da

Fundação sempre recebeu com entusiasmo e boa vontade as ações

propostas dentro das aulas fazendo com que o trabalho pudesse ser realizado da

melhor maneira possível em condições tão adversas. Após esta produção de imagens

foi feita uma seleção pela instituição de quais delas poderiam sair de lá. Algumas

passaram, muitas ficaram. O olhar institucional filtra tudo o que pode ser considerado

como apologia ao crime ou ligações com facções criminosas: gueixas, carpas,

palhaços, balõezinhos com almas mortas de policiais, armas, o número quinze

(atrelado ao PCC - Primeiro Comando da Capital – facção criminosa). O olhar

institucional filtra pelos olhos do funcionário que vê, recorta e colhe, retira e separa.

Figura 26: salve

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Figura 27: verso 2 - Fabulografias

Fabulações provocadas por perguntas dentro das aulas sempre nos moveram

a pensar e nos levaram a fuga e ao transbordamento daquilo que era represado pela

instituição, nos propiciaram transpor o possível e chegar ao impossível: a realização

de movimento mesmo frente a tantas adversidades. Uma outra pergunta geradora de

fabulação que nos moveu durante as criações veio de uma proposta feita pelo Labjor

(Laboratório de Jornalismo da Unicamp) para a realização de uma intervenção

artística no MIS (Museu da Imagem e do Som) de Campinas, durante a ocupação

Aparições em 2015. E se uma enchente submergisse uma cidade? E se esta enchente

ao baixar revelasse uma cidade totalmente nova? Que enchentes transbordam em

imagens? Quais cidades este acontecimento criativo capta e inventa? Que cidades

são fabuladas? Que ressonâncias fazem com estas jovens experiências de vida em

reclusão, com suas trajetórias, com sua imaginação e subjetividade? O que nos

mostra esta nova cidade quando a água baixa?’

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Figura 28 Aparições

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Figura 29 cidade

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Desta cidade nova também surgem mulheres que sorriem, seriam anúncios

de braços que os esperam do lado de fora das grades? Falta de liberdade, falta da

família, lembranças, desejos de quem ficou com a namorada ou esposa do outro lado

do muro, tristeza e revolta.

‘Di menor’” traz trechos de músicas do grupo Racionais MC’s: ”onde estiver,

seja lá como for tenha fé porque até no lixão nasce flor”, esperança e dor. Palavras

movidas por experiências de vida e que inundam as folhas e escorrem sangue e

lágrimas.

Figura 30: Mulheres

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Figura 31: lixão 1

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Figura 32: palafita

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Marcas que esta vida marginal traz. Quantos sentidos ocultos existem

nestas imagens? Em mais um desenho a cidade que emergiu da pergunta disparadora

desta oficina se dobra em outra e traz violência. Viaturas de polícia capotadas,

pessoas em fuga, assaltos. E em ainda outro novamente a cidade se dobra: - Minha

casa quero bem longe da água - anuncia o desenho da palafita de outro deles.

Experimentações que se enveredam em apostas do próprio ato de fotografar,

encontros com imagens que eles trouxeram, compuseram, inventaram e criaram.

Espaços tempos que se dobram e se desdobram em criações. Após a saída as

imagens passaram por intervenções digitais e foi oferecida a exposição dentro do MIS

(Museu da Imagem e do Som) da cidade de Campinas. Como devolutiva expusemos

as imagens dentro da instituição para que os meninos e suas famílias pudessem ver

quando os visitassem. E esta nova cidade criada pelos menores que desta forma se

dobra em outra ainda. Os meninos puderam ver, mas nunca puderam ficar com elas

em seu quarto-cela, pois não é permitido. Muitas coisas são impossíveis na instituição.

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Considerações finais:

Este duplo conceito ‘di menor’ que apresentamos ao longo desta

dissertação traz em si uma dinâmica de relação com as imagens, poesias, a sala de

aula, a cidade e a fotografia. Constituímos nosso pensamento sobre este ‘di menor’

partindo da literatura menor de Kafka assim como a leem Deleuze e Guattari, partindo

da prática docente, andanças pelo centro da cidade de Campinas e pelas leituras da

filosofia da diferença. Esta dupla expansão do conceito ‘di menor’ atravessa os dois

territórios desta pesquisa e nos ajuda a pensar nestes grupos em exclusão.

Trouxemos aqui uma ruptura, um fluxo, uma passagem de um trabalho coletivo que

escapa a instituição e a miséria e apresenta uma literatura menor na medida que traz

as vozes de pessoas excluídas pelas dinâmicas da pobreza. São possibilidades de

uma criação coletiva com literatura e fotografia. Imagens e palavras que falam

diretamente dos escombros de uma sociedade, potências inventivas movidas pela

menoridade que nos trazem estas pessoas. Também nos moveu e ainda nos

move um desejo de entranhar-se em existências mínimas, em vidas que tem sua

existência questionada. Um desejo de deambular cartograficamente neste vão que é

a cidade com seus tantos fulanos, sicranos e beltranos, vontades de voltar à névoa

destas falas, e a linguagem não figurativa que elas trazem. São falas e lugares que

são eminentemente políticos. Nesta dissertação ‘di menor’ emaranha a vida e a prática

docente dentro da instituição ao trazer enunciações coletivas e ao compor com estas

vozes dos meninos. Convivemos e ouvimos vidas que reinventam modos de existir na

medida que persistem, são tantas limitações que a pobreza e a exclusão social

impõem, são tantas as formas de coação do estado na busca de um corpo dócil, mas

‘di menor’ é bicho solto. Se por um lado suas subjetividades são atravessadas por

inúmeras forças, por outro compõem com elas. São anúncios de morte e vida que

esses meninos nos trazem em suas obras, anúncios de resistência e reinvenção da

vida nas cidades, nos grandes centros. Novas formas de viver e resistir. Forças destas

imagens que arrastam, este possível que vaza pelas gretas das grades, dos bueiros,

extrapola todos os impossíveis e permite que sejam realizados movimentos, que

permite filosofar neste impossível. Seria este o vão? São tantos os questionamentos.

O ensinamento de filosofia curricular5 buscaria a transmissão de forma organizada e

55 FINI, Maria Inês . Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Filosofia São Paulo: 2008.

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metódica de certo corpus de conhecimento construído ao longo da história, mas esta

não foi nossa aposta. Partimos de imagens e palavras para provocar o

questionamento, o encantamento, a criação de uma linha de partilha junto a esta

multidão ‘di menor’. Das imagens criadas vazam escolhas, fotografias experimentais

reveladoras, provocativas, imagens testemunhas destas subjetividades, também

convites a reflexões sobre este território habitado pelas aulas de filosofia. Fazem-se

dobras, formas de captar os acontecimentos não no sentido de imortalizar momentos,

mas de revelar instantes tênues antes que a imagem se desfaça. Experimentações

que se enveredam em apostas do próprio ato de fotografar, encontros com imagens

que eles trouxeram, compuseram, inventaram e criaram. Espaços tempos de criação,

devir água, inundação, devir vento, forças da natureza que transbordam em uma

poética dos elementos. Dentro de uma estrutura panóptica cerceada, limitadora,

detentora dos corpos, um desejo de um corpo dócil em encontro com uma enchente

e uma ventania. O que passa pelas grades da Fundação CASA? Passam fotografias,

rupturas visuais e relações menos representativas, imagens de resistência que

possuem desejos e que são complexidades de forças que se efetuam, que fissuram a

normalidade. São visões de quem muito moço já ultrapassou o limite da vida, palavras

e imagens indomáveis que sequestram o ar, um manifesto deste grupo minoritário.

Vidas que estão por um fio e que cotidianamente convivem com a morte e a destruição

que cada vez mais os atira à vida.

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