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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Faculdade de Educação
ALESSANDRA APARECIDA DE MELO
DI MENOR:
filosofia da diferença, dobras, imagens e passagens entre
vozes marginais da cidade e da Fundação CASA.
CAMPINAS
2019
ALESSANDRA APARECIDA DE MELO
DI MENOR:
filosofia da diferença, dobras, imagens e passagens entre
vozes marginais da cidade e da Fundação CASA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos
requisitos exigidos para a obtenção do título
de Mestra em Educação, na área de
concentração Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Alik Wunder
ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DE DISSERTAÇÃO
DEFENDIDA PELA ALUNA ALESSANDRA APARECIDA DE MELO E
ORIENTADA PELA PROFA. DRA ALIK WUNDER
CAMPINAS
2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DI MENOR:
filosofia da diferença, dobras, imagens e passagens entre
vozes marginais da cidade e da Fundação CASA
Alessandra Aparecida de Melo
COMISSÃO JULGADORA:
Profa. Dra. Alik Wunder
Prof. Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
Profa. Dra. Alda Regina Tognini Romaguera
Prof. Dr. Patricio Alfonso Landaeta Mardones
A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e
na Secretaria do Programa da Unidade.
Dedicado a todos os ‘di menor’ que mesmo frente às adversidades sustentam-se
em pé: matilha, bando em devir.
Agradecimentos:
Reverência à vida que é uma dádiva e que por muitos caminhos me impeliu
a chegar até aqui. Agradeço a minha mãe Dirce portal para este mundo, fonte de força,
calma e amor, ao meu pai Mingo (in memoriam) por me ensinar a dar um jeito nas
coisas da vida, à minha irmã Josy e ao meu querido Stéfano pelo incentivo, minhas
filhas Melissa, Helena e Maya por me manterem atenta e forte.
Alik Wunder, querida orientadora, obrigada pela confiança, respeito,
liberdade e cuidado sempre tão especiais dedicados a mim e a este trabalho, também
pelos tantos aprendizados, belezuras, ventos, cores e imagens partilhados nestes
muitos anos de parceria.
Agradeço ao Prof. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim por abrir-me
espaço de trabalho e estudo na Faculdade de Educação da Unicamp, acontecimento
divisor de mundos.
Marli Wunder sou muito grata, pois você me ensinou a desviar o olhar e ver
pequenas coisas.
Agradeço ao grupo Humor Aquoso da Faculdade de Educação da
UNICAMP por ser um espaço aberto à criação, estudo e mutações.
Lembranças e afetividades devotadas ao Coletivo FABULOGRAFIAS que
me proporcionou tantas vivências em muitos anos de oficinas, imagens e trocas.
Vitor Epifânio obrigada pelos desenhos tão especiais.
Miguel, obrigada pela edição dos vídeos.
Minha amiga Tati, eu não estaria aqui sem teu incentivo.
Grata ao Cursinho da moradia, aos professores e a casa A10 que tanto me
acolheu antes e durante a graduação.
Agradeço a professora da disciplina de português Maria Luiza que no
ensino fundamental tanto me incentivou a leitura carregando uma caixa cheia de livros
toda semana para sala de aula para que nos tornássemos leitores em uma escola que
mantinha a biblioteca fechada.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.
“Conversações duram tanto tempo, que já não sabemos mais
se ainda fazem parte da guerra ou já da paz”
(DELEUZE, 1992, p.7)
Resumo:
Quais são as possíveis formas de vida que resistem à marginalidade nas pensões do
centro da cidade de Campinas e as salas de aula da Fundação CASA (Centro de
atendimento ao adolescente), entidade sócio educativa na qual menores cumprem
medidas em privação de liberdade? Os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari
ajudam-nos a pensar em grupos que podem ser aproximados a personagens de
Kafka. Andar pela cidade, perambular, deambular, seguir forças que se arrastam para
todos os lados. Pensões, viadutos, túneis, guetos, sinais, zonas de prostituição e
tráfico. E mais, força que arrasta e que nos leva a durante os dois anos a atuar como
professora da disciplina de filosofia, local no qual realizamos uma oficina de
produções imagéticas e textuais nas salas de aula da Fundação CASA. Se por um
lado olhamos com olhar atento, por outro nos deixamos guiar por esta prática em sala
de aula1 que se abre a deriva e que traça seu próprio mapa de acordo com a própria
ação. Identificamos diversas dobras subjetivas nestes ‘di menor’ e propomo-nos a
pensar os textos-imagens produzidos e coletados a partir da ideia de literatura menor
que Deleuze (DELEUZE,1977) desenvolve partindo da literatura de Kafka. As
narrativas dos dois territórios da dissertação desenvolverem-se a partir de encontros
com pessoas de grupos minoritários, marginalizados pelas dinâmicas da cidade e de
uma dupla experimentação com o conceito ‘di menor’ na medida em que ele é
encontrado ao se notar o mapa que compõem as forças e ao realizar a prática
docente. Ao percorrer estes territórios poéticos pretende-se falar de uma prática
docente, para compreender quais linhas estão conectadas: “acontecimentos vividos,
determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações
sociais” (DELEUZE, 1975, p.17). Também pretende-se buscar as potências das
imagens-palavras, deixar que rompam, agrupam-se e escapem incessantemente das
instituições normatizadoras e à marginalização imposta pela miséria e pelo sistema
de controle dos corpos infratores. Para tanto nos lançamos na elaboração deste
conceito ‘di menor’.
Palavras chave: Deleuze,Gilles; Kafka, Franz; Fundação Casa; Fotografia;
Educação; Diferença (Filosofia)
1 https://www.youtube.com/watch?v=LuTqmI_GLXM
Abstract:
What are the possible forms of life that resist the marginality in the pensions
of the city center of Campinas and the classrooms of the Fundação CASA (Adolescent
Service Center), a socio-educational entity in which minors comply with deprivation of
liberty measures? writings by Gilles Deleuze and Félix Guattari help us to think of
groups that can be approximated to Kafka characters. What are the folds that can be
identified in the imagery and textual productions carried out in a workshop in the
Fundação Casa classrooms? that these encounters entailed? What was produced in
these folds? What moves these textual and imagistic creations? What are the
assemblages and folds produced by the displacement in the crossed territories? What
make up the generated flows? We propose to think the texts-images produced and
collected from the idea of minor literature, which Deleuze (DELEUZE, 1977) develops
from the literature of Kafka. of the two territories of the dissertation are developed from
meetings with people from minority groups, marginalized by the dynamics of the city.
When we go through these poetic territories, we want to understand which lines are
connected: "lived events, historical determinations, thoughtful concepts, individuals,
groups and social formations" (DELEUZE, 1975, p.17). It is also intended to search for
the powers of word images, to allow them to break up, to group together and to escape
incessantly from the normative institutions and to the marginalization imposed by the
misery and the control system of the offending bodies.
Keywords: Juvenile Detention Center, Photography, Philosophy of diference,
Education
Sumário:
Território Monólogos Marginais...................................................11
Mapa em rascunho..............................................................................12
S(a)cola do Mundo .............................................................................22
Monólogos Marginais..........................................................................34
Território Di menor........................................................................92
Di menor ............................................................................................93
Escritas-imagens míticas..................................................................112
Fabulações imagéticas ...................................................................124
Considerações Finais.......................................................................154
Bibliografia .......................................................................................156
11
Monólogos Marginais
12
Mapa em rascunho
Este texto pretende apresentar o mapa aberto dos dois territórios que são
percorridos na pesquisa de Mestrado: DI MENOR: filosofia da diferença, dobras,
imagens e passagens entre vozes marginais da cidade e da Fundação CASA. Este
mapa é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível
de receber modificações constantemente, rascunhado e mutável. Espalha-se por
todos os lados ramificando, crescendo nas bordas sendo grama, extravasando
sentidos nos cantos escuros, gotejando palavras, batendo ferro com ferro. Ecoando
nos silêncios sem regras definidas. Deambular, caminhar, esgotar, compreender o
que existe entre conhecer e intervir. Apostando metodologicamente na cartografia, o
trabalho é uma intervenção realizada no plano da experiência, acompanhada e
mergulhada. Existência, desistência e resistência, esgotamento, territórios e devires
minoritários. Quais são as possíveis formas de vida que resistem à marginalidade?
Estas formas de vida são aquelas que desenham as linhas e agenciamentos que são
expostos no vão das coisas, um mapa de passagens como são as pensões do centro
da cidade de Campinas e as salas de aula da Fundação Casa, entidade sócio
educativa na qual menores cumprem medidas em privação de liberdade.
Sempre almejamos dar passagem a este grande rizoma, este mapa em
rascunho que ao ser rascunhado já se transformou. A grande mobilidade é o que
conecta gestuais, músicas e tatuagens dos internos da Fundação Casa a pequenos
delitos no centro da cidade de Campinas. “Um rizoma não começa nem conclui, ele
se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE, 2004,
p.37). Algo que muda e cresce, que corre pelo subsolo e aflora nas mãos de um
menino que conduz a vítima de sequestro relâmpago dentro de um Shopping
chamando-a de mãe, que evapora no ar nas rodas de crack das pensões, que
extingue vidas por cinco reais. Cadeias de acontecimentos que têm sua semelhança
nas forças que as arrastam em diversas direções, que mantém sua correlação, que
são atravessadas por linhas de fuga. E que de qualquer ponto que forem acessadas
desejam afetar, já que são polimorfas. É pelas linhas de intensidade que é dada
passagem a fluxos que se reagrupam e se misturam entre as coisas, no meio de
tantas coisas nesta caminhada imagética e poética. Imagens-palavra, palavra-
imagem, palavra-música, palavra-som, imagem-silêncios. Lançar-se ao mundo e
tateá-lo e ter encontros violentos com as coisas, imersões e submersões, fluxos em
13
dois momentos, em dois territórios subjetivo/poéticos. “Monólogos Marginais” dá
passagem ao coletivo da marginalia de pensões e estabelecimentos do centro da
cidade de Campinas. O território ‘di menor’ é quem traz inúmeros desdobramentos
imagéticos e textuais provocados por oficinas realizadas na Fundação Casa. Ambos
os trabalhos permeados pela teoria de Gilles Deleuze que nos moveu a refletir em
diversas direções.
Um encontro nas aulas de filosofia que foram desenvolvidas como oficinas
de criação de imagens e palavras dentro das aulas com os meninos, uma atuação
como professora dentro dos centros de internação da Fundação CASA. Encontros
com imagens, palavras e devires menores. Criações textuais e imagéticas,
agenciamentos e dobras produzidos pelo deslocamento nos territórios atravessados.
O que compõem os fluxos gerados? A fronteira improvável onde algo acontece, uma
inclusão daqueles que estão às margens, uma imaginação que recolhe, que recorta
textos e imagens.
Figura 1: Quad
Propomo-nos a pensar os textos-imagens a partir da ideia de literatura
menor, que Deleuze (DELEUZE, 1977) desenvolve partindo da literatura de Kafka, em
especial pelo fato das narrativas dos dois territórios se desenvolverem impulsionados
com encontros com pessoas de grupos minoritários, marginalizados pelas dinâmicas
da cidade. Ao percorrer estes territórios poéticos pretende-se compreender que linhas
estão conectadas aos “acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos
pensados, indivíduos, grupos e formações sociais” (DELEUZE, 1975, p.17). Também
14
se pretende buscar as potências menores destas imagens-palavras, deixar que
rompam, agrupam-se e escapem incessantemente das instituições normatizadoras e
à marginalização imposta pela miséria e pelo sistema de controle dos corpos
infratores.
O território “Monólogos Marginais” é a ressonância, vozes do centro da
cidade, dos marginalizados, uma experimentação de escrita, uma decupagem que
não pretende representar o real, mas que tem um compromisso com a realidade.
Coletivo da marginalia, a língua dos prostíbulos, dos guetos, das rodas de crack, das
esquinas do tráfico. Encontros com a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari e o
conceito de literatura menor (DELEUZE, 1977). Compomos as enunciações coletivas
que trazem este texto com a literatura menor que traz enunciações coletivas.
Trazemos fluxos e intensidades que também são enunciações coletivas e trazem uma
fora política destas vozes... Há inúmeras reverberações dos encontros com este
coletivo. Qual língua é esta? O que dizem estas vozes? Esta língua ‘di menor’ traz
silenciamentos e forças que arrastam essa escrita. Traz uma máquina de fala e
escrita, um experimento literário no qual se fundem os enunciados individuais e os
coletivos, um fluxo que puxa todo tipo de coisa. Um mergulho na experiência sem
oxigênio, experimentar, esticar a língua no espaço com fronteiras ilimitadas, Silêncios,
pulsos e intensidades. Um encontro com uma língua minoritária. Vozes, torções e
adulterações da língua oficial, assim como fazem os personagens de Kafka ao
misturar a língua alemã oficial a outras línguas, “estranhos usos menores”
(DELEUZE,1997, p.26), porém em um idioma diferente. Deslocamentos intensivos da
língua portuguesa, uma língua que se move nos vãos da língua oficial e a utiliza ao
seu bel prazer, experimentações marginais na cidade de Campinas: a língua das
travestis, dos fulanos, sicranos e beltranos, das crianças do crime, dos usuários de
drogas, moradores de rua, cafetões e prostitutas, pequenos ladrões, michês, de um
grupo, um coletivo de marginalizados pela sociedade. Pessoas esquecidas nos
cantos, nos escombros.
Um uso menor da língua não por grau ou tamanho, mas por pertencer a
uma minoria. Pessoas que utilizam a língua de forma semelhante àquele uso feito
pelos personagens de Kafka. Na obra “A metamorfose” (KAFKA, 1915), Gregor
Samsa um dia acorda transformado em um inseto gigante e por fim acaba excluído
da sociedade após esta mudança. Violência, transbordamento, murmúrio, palavras
que não são ouvidas tomam forma e espaço. Vozes que brotam das gretas, que
15
ecoam nos silêncios, que ressoam no ferro das penitenciárias, nas gavetas dos
necrotérios. “Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua
dominante dentro de uma multiplicidade política” (DELEUZE, 1995 p.15). Fluxos
contidos, estancamentos. Encontros com línguas de populações excluídas pela
violência, nos cantos das pensões. Estancamentos, devires menores. São criações
textuais e agenciamentos desta obra, que trazem repetições, que dobram e compõem
os fluxos gerados e compõem com esta língua é esta falada na marginalidade? Os
“Monólogos Marginais” nascem de um modo de viver que implica em uma afirmação
silenciosa da vida, de formas de resistência destes fulanos, sicranos e beltranos.
Intentamos dar passagem, ser passagem deste dialeto. Como fazer isto? Permitindo-
se ver as conexões desta jornada e conectar estes começos.
Na obra “Mil Platôs” (DELEUZE & GUATTARI, 1995) Deleuze e Guattari
desenvolvem a ideia de rizoma tomando emprestado da biologia o termo que remete
aos tubérculos e suas raízes que se desenvolvem em diversas direções ramificando-
se de forma não centralizada. A escrita parte desta imagem de pensamento e deseja
produzir multiplicidades que podem ser acessadas de qualquer ponto, assim como
platôs com diversas velocidades. São os princípios de conexão e de heterogeneidade
que dizem que de “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro
e deve sê-lo” (DELEUZE, 1995, p.14) que moveram o desafio da escrita inventiva
desta dissertação: a construção de um texto que possa, e deva ser conectado a
qualquer outro ponto dentro deste texto. Uma escrita por vir, um invento movente, a
escrita que fabula este povo menor que fala por dela, que lhes dá voz e permanece
em constante mudança assim como este povo. Um povo nômade assim como os
meninos da fundação casa, sem rosto, sem identidade, sem nome “Trata-se de um
povo menor, eternamente menor” (LINS, 2012). Uma matilha de meninos sobre os
quais se escreve com a utilização de uma estética rizomática, da pretensão de criar
novos mundos, dobras, vãos. Libertar pensamentos de quem está fisicamente
encarcerado “libertar a vida é a tarefa principal do pensamento, isso porque a vida e
o pensamento estão encarcerados” (LINS, 2012). Meninos que possuem uma
saudade imensa de futuro e de tudo que os espera fora das grades.
A leituras das obras de Kafka e a reflexão de Deleuze (DELEUZE,1976)
acerca da escrita deste autor trouxeram inquietações sobre a complexa e
deslumbrante máquina de enunciados e agenciamentos de uma língua falada nos
vãos da língua oficial. Uma língua diferente da língua dominante, flexibilizada,
16
reinventada, escorregadia. Uma língua menor, particular, feita por grupos nômades
que h abitam locais de passagens na Cidade de Campinas nos territórios
investigativos deste trabalho que são percorridos arrastados por esta potência ‘di
menor’. Populações sazonais em constante deslocamento, nômades urbanos que
dobram, torcem e rearranjam a língua oficial realizando uma “micropolítica do campo
social” (DELEUZE, 1995, p.14).
‘Di menor’ é fruto da instauração de um território de experimentação dentro
das salas de aula da Fundação Casa tendo a educação menor como inspiração
(GRUPO TRANSVERSAL, 2013). Menor, pois assim como a literatura desenvolvida
por Kafka possui flexibilizações, devires menores da língua alemã. Esta educação é
aproximada da ideia de que a educação menor também ocorre nos vãos da educação
curricular oficial como uma máquina de imagens-palavras, palavras-sons, palavras-
silêncio, visões. Fruto de oficinas dentro das aulas de filosofia do ensino formal da
Fundação Casa inspiradas pela teoria de Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Acontecimentos que promoveram encontros, multiplicação de ideias, afetos,
atravessamentos, palavras e imagens dando impulso a uma ação poderosa contra a
homogeneização da subjetividade dos meninos. Produções textuais, imagéticas e
sonoras mobilizaram pensamentos. Arrastar, rachar os conceitos e extrair-lhes
devires, abrir novos possíveis, estados de variação, fluxos, imagens. Lançar-se sobre
o acontecimento, abrir-se a impossibilidades, enfrentar esgotamentos, buscar o
movimento. Seguir pistas da produção de imagens e da vida neste lugar de reclusão
regido pelos fluxos de entrada e saída de adolescentes foram algumas das trilhas
percorridas. Máquina de escrita e violência, a vítima ainda respira, explode a arma em
sangue, o menino corre, o carro capota e mergulha no córrego. Socorro? Para que
pressa? Bicho solto não morre, cai um levantam mil em cada boca de fumo, do ventre
da rua, das curvas das vielas, da fome das gretas, do pó do asfalto levantarão
multidões, matilhas encarniçadas sem medo, “plenos de vitalidade, asas, sonhos
molhados, tatuados em seus corpos como uma escrita vagabunda, viajante, errante,
eles molham o papel” (LINS, 2012). Palavras limites, sons quase inaudíveis,
murmúrios, palavras que escapam, desejos impossíveis, formas, cores, sons. O
amarelo vaza das grades e tudo amarela sob a pouca luz, um amarelo insuportável,
intolerável, impossível de se encarar sem membranas nictantes nos olhos, adereço
que só se ganha no nascimento bicho ou depois de muita desgraça partilhada nos
devires bicho homem. Fotografar e escrever para expulsar mundos, criar mundos,
17
escrever para se livrar da morte anunciada e marcada que levará uma matilha sem
rosto.
O que estes encontros acarretaram? O que foi produzido nessas dobras?
O que move estas criações textuais e imagéticas? O que move são os agenciamentos
e dobras produzidos pelo deslocamento nos territórios atravessados. O que compõem
esses fluxos gerados é o resultado de tudo isto é uma grande bruxaria, um misto de
imagens-palavras e palavras-imagens nas aulas do ensino formal de filosofia. “Querer
estar menor” (GRUPO TRANSVERSAL, 2007, p.24) e fazer com que a aula seja um
vão. Desejar que algo aconteça no vão entre o currículo formal e o currículo oculto
desta instituição, Fundação Casa. Buscou-se um movimento de criação com palavras
e imagens que permitisse que o singular fosse considerado na relação com outras
singularidades, que um agenciamento coletivo pudesse brotar destas gretas e para
apontar as hastes deste rizoma.
Notou-se nos meninos tramas subjetivas que englobam o campo social
quanto ao conjunto de circunstâncias da vida que estão atreladas a valores do crime:
tatuagens que indicam um pertencimento, desejos da máquina capitalista, ostentação,
sucesso no crime, conquista de muito dinheiro e aquisições de tênis, motos, carros e
etc. Em relação à instituição destaca-se o “esquadrinhamento panóptico”
(FOUCAULT,1975) da estrutura física do lugar, a verificação do comportamento, a
produção de subjetividades fáceis de serem controladas para que se mantenha a
ordem e diminuam as singularidades e as diferenças. A estrutura do prédio, porta que
se abre e fecha-se. O olho esbarra em tudo que é canto, confinamento e os limites
físicos ali impostos. Grades amarelas, os meninos de branco e cinza. Cheiro de
guardado que adensa o ar. A passagem por diversos postos de vigilância e também
procedimentos de revista padrões de segurança, a contagem de material na entrada
e que ocorreria também na saída dos mesmos, o prédio que se organiza em andares.
No andar superior uma quadra coberta. No andar do meio os quartos que abrigam os
adolescentes de quatro em quatro e o banheiro ao fundo com uma porta que expõe
os pés e a cabeça daquele que o esteja usando, no térreo as salas de aulas.
A sala branca de portas de aço e grades amarelas abriga uma população
variável de meninos de doze a trinta, dependendo do período, com alunos do primeiro
ao terceiro ano do ensino médio. E também chegam meninos que não são
alfabetizados, vindos do ensino fundamental. O dispositivo panóptico é aquele que
obriga o jogo do olhar, este dispositivo permite que sejam visíveis os meios de
18
coerção. Em sua obra “Vigiar e punir”, Foucault (1975) faz uma análise genealógica
da tecnologia do poder N na qual afirma que nossa sociedade não é a de espetáculos,
mas a de vigilância. O modelo arquitetônico panóptico desenvolvido por Jeremy
Bentham (1748-1832) como nos explica Foucault é um dispositivo de poder
disciplinar. Trata-se de uma construção em forma de anel com uma torre de vigilância
em seu centro. Este prédio estaria dividido em celas e cada uma destas celas
possuiria duas janelas, uma delas voltada para fora permitido a entrada de luz e outra
voltada para dentro para que a torre central tivesse total visão sobre o seu conteúdo.
Assim um único vigilante seria capaz de vigiar muitas celas ao mesmo tempo, pois a
torre central, por sua vez, possui janelas que permitem olhar através das janelas
interiores das próprias celas. O efeito que se busca com o panóptico é fazer com que
o detento se sinta em permanente estado de vigilância. Não se trata meramente de
um dispositivo físico, mas sim de uma forma de ação sobre os indivíduos vigiados
observando-lhes cada detalhe d e comportamento e conduta. Este território de
pesquisa se instaura não somente pela produção de imagens, mas também pela vida
neste lugar de reclusão que é a Fundação Casa e por seus fluxos de entrada e saída
de adolescentes. As linhas mínimas vazam o contido, extravasam silêncios e gritos,
reinventam a vida e a juventude em caminhos dantes desconhecidos, já que: “as
coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos caminhos que se acredita”
(DELEUZE & PARNET, 1998, p.12).
É inegável a diferença na velocidade dos corpos dos meninos internos na
Fundação Casa. O esquadrinhamento proposto, a visão panóptica que a instituição
incide sobre eles, a rigorosa verificação do comportamento pautado por relatórios de
conduta e revistas nesse regime de luz e segurança. E faz-se necessário considerar
essa particularidade e acolhê-la para se abrir ao movimento dos encontros. Mas diante
de tudo isto como se deu a produção? Produzimos materiais imagéticos e textuais
com estes devires-meninos. E a entrada nesse fluxo se deu de muitas maneiras:
conceitos filosóficos arrastados de diversas formas, uma oficina de criação poética e
experimentação fotográfica na sala de aula, o encontro com um conjunto de imagens
dos mais diversos tipos, o contato com a câmera fotográfica em a sala de aula,
solicitando respostas imagéticas a partir de perguntas, filmes e textos filosóficos.
Foram exploradas a potência da imagem, da palavra e o roubo criativo dos conceitos
filosóficos, rachamos as palavras para extrair delas outros devires e nos apropriamos.
19
Cada movimento dentro da Fundação Casa produziu ao seu redor uma
fissura que extrapolada a normalidade. São visões, palavras e imagens indomáveis
de quem muito moço já ultrapassou o limite da vida. São imagens e palavras que
sequestram o ar. Vidas que estão por um fio e que cotidianamente convivem com a
morte e a destruição - companheiras desta trilha - e buscam outras formas de viver,
efeitos, itinerários, força dos encontros, dobras produzidas, tudo isto se mostra
conforme se habita os territórios. Implicação, produção, conexão de redes, um
verdadeiro rizoma, assumir que a realidade toda se comunica (KASTRUP, 2007).
‘Di menor’ instaurou um território de experimentação dentro da Fundação
nas aulas de filosofia do ensino formal. As aulas de filosofia sempre funcionaram como
dispositivo que abrisse passagem para que fosse possível ouvir os silenciamentos,
trazer à tona rupturas da linguagem oficial. Poéticas militantes em um território de um
povo em devir, uma população nômade em uma arquitetura panóptica. Uma
“experimentação ancorada no real” (PELBART, 2017, p.141) partindo das mais
diversas provocações. Permitir que a filosofia possa agir produzindo imagens. Como
isto seria possível?
20
Figura 2: caderno de campo
21
A cartografia é o acompanhamento de processos, conexão de redes e
trajetos (KASTRUP, 2007). A realidade não permite que sejam previstos os
resultados, ao adentrar as pensões ou ao elaborar uma oficina dentro das aulas de
filosofia da Fundação Casa. Não era possível saber destes encontros, o que havia era
um compromisso com a realidade. Um compromisso que guiava a escrita criativa, mas
que não a afastava da realidade. São diferentes linhas de composição que são
utilizadas como guias para esta aposta metodológica, no entanto, o fio de Ariadne não
nos leva a um fora, não nos tira do labirinto, é a conexão destas linhas e teias que faz
o desenho do mapa do rizoma. As ramificações deste rizoma compõem territórios,
locais habitados por grupos, linhas de tensão. Mas não existe um mapa definitivo
deste território de pesquisa, e sim conexões móveis, agenciamentos, rascunhos
absolutamente mutáveis, conectados, imprevisíveis e sem regras. Seria a intervenção
um caminho no qual cria-se uma realidade de si e do mundo.
O tema desta pesquisa, a busca por esta escrita criativa que hora
aconteceu individualmente e hora em grupo apareceu ao percorrer esta trilha. A
entrada na Fundação Casa não ocorreu por uma premissa da pesquisa e sim por uma
vontade de novamente entrar em contato com estes agenciamentos coletivos das
vidas em marginalidade. A delimitação teórica e o entendimento desta pesquisa
ocorreram ao longo do tempo, nas inúmeras revisitas a este material produzido
durante as aulas e durante as andanças pelo centro da cidade de Campinas. É
necessária uma atenção especial para a realização deste trabalho, para o
acompanhamento deste processo de produção e exploração das imagens-palavras,
palavras-imagens destes dois territórios investigativos. “Explorações mobilizam a
memória e a imaginação, o passado e o futuro numa mistura difícil de discernir”
(KASTRUP, 2008, p.18). Explorar o material da Fundação Casa é também explorar
as andanças dos “Monólogos Marginais” de antes, encontrar dobras e
emparelhamentos, distanciamentos e conexões, discutir e coletivizar experiências.
Desejamos compreender qual é a dor ou ameaça que cada um deles nos traz. Ser
dispositivo para dar voz. Alumiar passagens subterrâneas. Alquimia de movimento.
22
S(a)cola do mundo
23
“Vou mostrando como sou e vou sendo como
posso. Jogando meu corpo no mundo.
Andando por todos os cantos, e pela lei natural
dos encontros eu deixo e recebo um tanto e passo
aos olhos nus ou vestidos de lunetas.
Passado, presente, participo sendo o mistério do
planeta…”
(Música “Mistério do Planeta” do grupo “Novos Baianos”)
24
Criança.
Ainda criança nutriu uma paixão pelas letras. A alfabetização terminou ao
ler o jornal “Notícias Populares” que se fosse torcido pingava sangue dizia-se na
época. Desde os oito anos, terceiro ano de escola, alguma necessidade de ganha pão
já se esboçava. O pai, com cinco anos de estudo, era curioso, apontador do jogo do
bicho, além de passarinheiro e rolista. Esta sua última ocupação fazia com que tivesse
dias incríveis como quando de manhã saia com um carro e na parte da tarde chegava
com outro (não necessariamente melhor) ou quando apareceu com uma bicicleta
barra forte sem freio. Nela a menina descia a avenida com sua irmã concorrendo com
os ônibus na contramão.
A criança colocava junto aos livros pequenas porções de amendoim
salgado e doce e pacotes de salgadinhos de sabor variado. A freguesia era certa, pois
como comprava no atacado garantia os preços melhores que os da cantina da escola.
- Estuda para não lavar banheiro dos outros - a frase da mãe, ex-empregada
doméstica com apenas quatro anos de estudos, ainda hoje ecoa na mente. Junto com
os salgadinhos vendia chup-chups, geladinhos, sacolés, biribinhas e selos de
cachorrinhos. Aos onze anos devorava livros incentivados na leitura pela Professora
Maria Luiza que dava aulas de português. Aos catorze anos teve o primeiro registro
na carteira de trabalho em uma rede de fastfood. Trabalhou de quinze e quarenta e
cinco até meia noite por um ano e oito meses. Trocava com os motoristas e
cobradores do último ônibus passagens por lanches meio frios que haviam sobrado e
seriam descartados. No primeiro ano do ensino médio o sono era tanto que cochilava
nas duas primeiras aulas. Cansaço. O resultado foi o abandono escolar no dia que
completou quinze anos - para desespero da mãe. No ano seguinte retornou e voltou
a obter boas notas. Posteriormente trabalhou em novos empregos: vendeu comerciais
da TV Gazeta em uma cidade que o canal não pegava, cursos de informática no sol
do meio dia para pessoas que não queriam comprá-los. Abandonou o curso de teatro
e trabalhou em uma padaria. Conseguiu quebrar o balcão de vidro por empilhar (com
o aval do dono) inúmeros potes de doce de leite. Trabalhou em uma empresa de
telefonia. Foi vendedora (das boas) de móveis planejados e ao vender um armário
acabou tornando-se projetista de redes de informática. Desenhava plantas de redes
de computadores na tela do computador. Fez curso técnico em informática como
bolsista da escola técnica. E então, o futuro lhe dizia: engenheira elétrica. Neste
25
período também teve intensos encontros com os moradores das pensões do centro
da cidade, com as travestis que injetaram silicone industrial nas bochechas e com
larápios praticantes de pequenos furtos para trocas das mercadorias adquiridas por
pedras de crack nas biqueiras da boca do lixo. De madrugada rasgava as avenidas
de Campinas na garupa de uma moto CG.
Na empresa de cabeamento estruturado (coisa pré wi-fi) era responsável
pela planta de implantação da rede de computadores das agências da Caixa
Econômica Federal de todo Estado de São Paulo. Todo dia desenrolava as plantas
deste cabeamento e pensava em bitolas de tubos pelos quais os cabos passariam
para distribuir a internet por todos os lugares, medições, números de conectores,
tamanhos de cabos, nomes de equipamentos. E diariamente da mesa do escritório da
empresa de redes de informática trabalhava no computador desenhando plantas
observava um homem que corria ao longo da Lagoa do Taquaral. Ele tinha este hábito
diário e na empresa apelidaram ele de Rambo. Apelido bobo, pois ele tinha uma
bandana como o herói dos filmes deste personagem. Ela acabava uma planta e
passava a próxima tarefa igual as demais e igual as que viriam depois. Tubos,
conectores, tela do computador, dobra a planta, arquiva. Movimento que se repete.
Acabava uma planta e passava a próxima tarefa, igual às demais e igual as que viriam
depois. Movimento que se repete. Tubos, conectores, tela do computador...
Acabava uma planta e passava à próxima tarefa igual às demais e igual às
que viriam depois. Movimento que se repete. Tubos, conectores, tela do computador...
até que um dia enquanto Rambo corria algo estalou em seu peito… esvaziada ela
também muda, esgotado o sentido daquela vida ela pede as contas da empresa e se
abriga em um dos quartos da pensão do João.
26
A pensão do João
Fim da rua, sobrado, última casa, uma casa velha e com trincas enormes,
prestes a desabar. Da casa de cima podia-se ver a fachada, a garagem e o que
aparecia pela janela do quarto: a televisão preto e branco (em cima de uma
mesinha), a cama com um lençol amarelado e uma caixa de engraxate que
denunciava a ocupação do senhor que ali morava. Um murinho baixo que dividia a
garagem da rua era também o que guardava o portão anterior à escada que dava
acesso a casa de baixo. A escada tinha dois lances e um corrimão meio sem
vergonha, no qual vez ou outros bêbados escoravam. A escada desembocava em
um pátio debaixo da garagem da casa de cima. A entrada da casa era precedida por
uma arinha-pseudo-floricultura que tinha desde pimenteira até plantas raras. A porta
tinha duas folhas, mas uma só abria, pois a outra era impedida de se mover por um
tapume que compunha a parede do quarto de N. Alphavela, Gleba b, subsolo, sem
abuso, e só para os íntimos, como dizia Beba (uma travesti poderosíssima de quase
dois metros de altura).
Mocó
As paredes eram verdes meio tom, algo entre verdinho e verdão, e uma
delas possuía um estufado com toda a umidade que só um porão tem. A janela era
cinza com grades e se abria para a pequena área embaixo da garagem
proporcionando uma bela vista do muro embolorado, do portãozinho e com sorte de
uma pontinha, digo, pontíca de céu. O chão de tacos soltos podia ser removido e
realocado tornando-se desta maneira um possível motivo de distração nas horas mais
tenebrosas. A mobília era pouca. Todo dia sem faltar a malucada colava em bando e
cada um sempre que voltava trazia mais um aumentando assim exponencialmente a
banca.
27
O Quarto de R
O pé direito era alto, mas só se podia notar depois de uns minutos.
Pendurados na parede ‘Lisa Minnelli e Robert De Niro’ em ‘New York, New York’, ao
lado Batman e do Homem Aranha, lutavam por espaço em meu campo de visão com:
flores, porta banner, cartões telefônicos, recortes de revistas, uma bandeira azul do
último candidato a prefeito – usada como cortina. Um pano vermelho que disfarçava
um buraco, vários pôsteres colados no teto, dois oratórios – um com santo e um sem
santo- uma televisão com o som baixíssimo e letrinhas passando na tela, um vaso
com flores laranjas e vermelhas enormes, citronela perto da janela, duas camas, um
vão na parede que dava para um ‘cantinho-cozinha’, dois gatos, tapetes coloridos de
linha, um rack branco. Uma geladeira antiga com um cartaz de cerveja e umas figuras
humanas coladas na porta, um mapa, um batik (pano chiquérrimo), filtros dos sonhos,
móbiles de estrelinhas, fotografias em preto-branco roubadas do CC, recortes de
animais e plantas, cestos de palha e bambu. Banquinho, cadeirinha de criança
vermelha, mesa, estante, bauzinho indiano, bolas de natal douradas, gatinhos de
madeira, bonecas russas, vasos de vidro coloridos e transparentes, castiçais com
velas vermelhas, aparelho de som, indiozinho de gesso com cachimbo na boca,
bolinhas de madeira emendadas umas às outras formando um cordão, teia de aranha
(com aranha), um escorpião 3D, cartões postais, latas de refrigerante vazias, ursinhos
de pelúcia, revistas, banquinhos, três cinzeiros e ainda seis malucos fumando pedra.
Entrou com Inho. Já estava acostumada com muita coisa, mas aqueles
malucos com cara de nóia lhe assustavam um pouco, sentou, tipo “normal”, nas
situações mais improváveis sempre tentou fazer cara de normal. Os malucos a
mediram de cima a baixo, o R. perguntou de onde vinha, quem era e o que fazia ali.
Passado o interrogatório, se apresentou e apresentou cada um dos malucos
acrescentando que aquela era a função “normal”, todo mundo muito louco, mas
“normal”. Normal, pensou, e nessa hora essa palavra começou a tomar um significado
bem diferente e o tempo demonstraria que o padrão da normalidade é bastante
variável, atualização constante.
Os malucos estavam sentados em círculo, ela sentou, “normal”, um deles
pegou uma lata de refrigerante, amassou pelo meio, tirou o lacre, furou a parte
amassada, levou a boca, e deu algo como uma puxada, testando a passagem do ar,
pegou um plastiquinho preto, abriu, tirou uma pedrinha do tamanho de um dente,
28
amarelinha. Nessa hora o R. soltou um, ‘esse é o doce de leite’, apertou em cima de
uma capa de CD, desfazendo-a, recolheu uma porção de cinza de cigarros com um
cartão telefônico dobrado em pá e pôs na lata a cinza. Pegou uma porção do pozinho
em que havia transformado a pedra, colocou em cima das cinzas e meteu fogo, ao
mesmo tempo, do lado oposto, sentado na cama. R. desmanchou um cigarro, colocou
em uma seda, misturou com crack, bolou seu pitilho e fumou – sempre fumava assim,
esse era seu jeito, como a convivência mais tarde me mostraria. A ansiedade
materializava-se ocupando toda a sala junto com o cheiro do crack, algo parecido com
plástico queimado. Ela “normal”, desesperada por dentro, mas “norma”, pegando a
nóia dos caras para si, mas “normal”.
O Incho deu umas pauladas, de acordo com R. Ele não dispensava, saiu
com um cara grandão, que só apareceu daquela vez e voltou rapidamente trazendo
mais dois papéis de pedra e um de pó. Eram encomendas do Piu, uma figura branca
de olhos azuis e mandíbula trancada que a tornava monossilábica, quase muda,
naquele momento, e que parecia ligeiramente insólita equilibrada em um banquinho.
Ninguém falava nada. Um maluco levantava e ia até a janela uma vez por
minuto, arrumava a cortina-bandeira, verificava se não havia nenhuma fresta e voltava
a posição inicial. Outro deles enrolava e desenrolava o plástico da base de um
cachimbo de crack. Um terceiro olhava fixamente para o cinzeiro. O Piu permanecia
imóvel, enquanto R. mantinha a boca aberta e Inho olhava o vazio estalado e elétrico.
O casal
Passando a porta dos fundos da cozinha, depois ainda do banheiro
chegava-se a uma pseudo lavanderia onde o tanque semi embolorado resistia
bravamente e contrariando as expectativas, monolítico, mantinha-se firme, servindo
na função. Em uma casinha de três cômodos morava um vigia. O fundo do terreno
era ocupado por uma construção semelhante a um barracão composta de dois
cômodos, teto de brasilit, fiação exposta, chão de cimento e uma caiação malfeita. O
lugar era alugado por um casal bastante curioso. Cacarecos mobiliavam a casa em
conjunto com a não aceita pobreza que era distraída por luxos e mimos que eles
surrupiavam das lojas do centro: conservas, azeites, tomate seco, muçarela de búfala,
condimentos importados, vinagre balsâmico, caviar, picanhas maturadas, vinhos
internacionais, patês diversos, alcaparras, champignons, chocolate, melzinho de
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abelha, amêndoas, cerejas. Tinham ainda pequenos fetiches: roupas, camisolas e
camisinhas com sabor e textura. Sapatos, cremes anti-idade, celulite ou estrias, todos
com potes pequenos, e ainda óleos corporais, grandes e multicoloridos frascos,
sapatos de salto, vestidos, cestos, bonecas, kit de maquiagem, travessas. Agendas,
cadernos, carteiras, bolsas, mini blusa, incensos, velas aromáticas, almofadas de
ervas e de tudo mais que lhes fizesse os olhos crescer ou que pudesse ser virado em
pedra rapidamente.
Ele de quando em quando arrumava um biquinho que além do dinheiro
legal abria a possibilidade de trazer objetos desviados, função meio “normal”, afinal
puxou um tempo por assalto, o que lhe rendeu uma cicatriz pequena, uma tatuagem
e muita malandragem. Ela era feliz e entre cortava o assunto dos potes de conserva
ou sapatos com o das duplas penetrações que havia feito antes de namorar o marido.
E também contava sobre viagens para o Rio de Janeiro vendendo cartões trabalhando
com teatro de rua, tudo antes de sua mãe lhe buscar, tudo antes de conhecer o
marido.
A rotina deles era simples, quem fuma pedra quer pedra! Isso mesmo, mais
pedra e pronto, a rotina é essa e acabou. Acabou? Mais uma de noite? Mais uma de
noite, depois também de tarde. Mais uma de tarde? Sim, depois também de manhã.
E quando a deles acabava, obviamente queriam mais. E haja corre. Pequenos furtos,
assaltos, roubo de tapes, trombadas em velhinhos, cinco dedos rápidos, estelionato.
Mas as lojas do centro e os hipermercados eram seus lugares preferidos, o filé. Depois
era só carregar até a boca do lixo os fetiches e mimos e trocar por pedra com as putas
que vendem crack a luz do dia.
Por menores
A primeira vez que ela pegou em um livro de Kafka estava sentada na rede
de seu quarto. Era manhã havia pouco e a “Metamorfose” lhe encheu os olhos.
Presente de um amigo, destes presentes bons mesmo que nunca se esquece, que se
carrega pela vida.
Deleuze e Guattari em sua obra “Kafka - Por uma literatura menor”
(DELEUZE E GUATTARI, 1977), dizem que a escrita de Kafka trata de uma língua
menor, assim chamada por ser uma manifestação de grupos que fazem uma utilização
particular da língua oficial a chamada língua maior. Experimentar, esticar a língua no
30
espaço com fronteiras ilimitadas, isto seria um uso menor da língua. Seria uma
máquina de fala e escrita que tem por conteúdo um coletivo de devires menores que
se movem nos vãos da língua. É nestes vãos onde grupos a utilizam ao seu bel prazer,
onde novas leis atuam sobre a língua maior, a chamada língua oficial e lhes
transbordam. Murmúrios, vozes, palavras que não são ouvidas tomam forma e espaço
neste lugar: a língua das putas, a língua das travestis dos cinemas de exibição de
filmes pornôs no centro da cidade de Campinas, histórias sobre se prostituir e
sobreviver disto: a chuca, a pica, os clientes que insistiam em não usar camisinha, o
silicone industrial que modela o corpo ou o uso de hormônios, o corpo em devir,
intensidades.
Kafka com seus personagens, ela e seus encontros com línguas menores
de populações excluídas da sociedade pela violência. Línguas menores de um idioma
diferente daquele dos personagens de Kafka, mas que se aproximam na condição de
exclusão daqueles que as falam. Os personagens kafkianos e aquelas pessoas as
quais ouve são excluídos. Pontas de realidade que como grama aparecem nos vãos,
um grande rizoma, um grande labirinto com diversos desvios e passagens
subterrâneas ocultas e fantásticas neste momento une ela a Kafka. Junção imprevista
em seu mocó, ela sentada em sua rede e Kafka movimentando sua máquina literária
bem a sua frente.
Na obra “A metamorfose” (KAFKA,1915) o personagem Gregor Samsa um
dia acorda transformado em um inseto gigante. Com suas patas recém adquiridas e
seu casco abaulado Samsa jaz de costas em seu quarto sem saber como pode
desvirar-se e viver sua vida comum anterior a esta insólita mudança. Em sua mente
ela formula a paráfrase de Samsa que se metamorfoseia em muitos para seu
entendimento: fulanos, sicranos e beltranos, travestis, crianças do crime, usuários de
drogas, moradores de rua, cafetões e prostitutas, pequenos ladrões, michês. Todos
tornam-se Gregor Samsa virado de costas sobre o casco abaulado. Pessoas
esquecidas nos cantos, vãos, escombros. Ela as ouve, as línguas menores, as línguas
que estão dentro da língua oficial, as vozes que brotam das gretas, que ecoam nos
silêncios, que ressoam nos ferros das penitenciárias, nas gavetas dos necrotérios.
Vozes dos que não nasceram, fluxos contidos, estancamentos, devires menores.
Encontros violentos e ela ali atravessada por tudo isto: - Como seria bom
ser tal qual Kafka - imagina neste momento encontro e espelho, ser experimental.
Quem dera se pudesse apenas relatar estas línguas menores que ouve nas esquinas,
31
nos prostíbulos, nos guetos, nas rodas de crack, nas esquinas do tráfico. Os seres
humanos são incríveis em sua capacidade de resistir. Samsa resiste devir-inseto, ela
resiste devir-experimento, com Kafka ela entra em sua própria máquina de sentidos
palavra-violências que atravessam esta experiência.
32
Com quantas lágrimas se faz um bordado?
“Conta uma história tão antiga quanto o tempo que
cada lágrima derramada é colhida pela Deusa que com
elas borda um manto. Quanto mais adensa o pranto,
mais brilhoso se torna o manto. E é o cintilo destes
ornamentos que na mais alta madrugada da vida
espanta os maus espíritos” .
(trecho do Caderno de Campo)
Outra profissão: vendedora de cursos de inglês em uma escola de Barão
Geraldo aos 23 anos. E convencida por uma amiga que conhecia desde o segundo
ano de escola foi conhecer o cursinho popular na Moradia Estudantil da Unicamp. A
entrada no cursinho abriu um campo novo de possibilidades e questionamentos: por
quê também não estudava na universidade? O que a fazia diferente daqueles jovens
até mais novos? Vestibular. Pela primeira vez pensou nisto.
No cursinho compreendeu que era necessário o domínio de um
conhecimento específico. Foi também neste momento que se deu conta das inúmeras
falhas no aprendizado efetivado na rede estadual de ensino e enxugar as lágrimas.
Restava-lhe estudar. Ao fim daquele ano, após intensas madrugadas de estudo na
moradia estudantil, prestou vestibular de filosofia, pois leu alguma coisa de filosofia e
gostou, e tinha a ver com leitura e escrita coisa que queria desde criança. Parecia
uma boa ideia.
Naquele verão conheceu Foucault, pasmou. O número de referências do
texto dava ideia de quanto tinha que remar oceano a dentro para ter alguma base de
conhecimento sobre autores que Foucault mencionava, cabeça tonta com tantos
nomes…. Arrumou um emprego (que odiava) de recepcionista em uma escola de
inglês com o horário das catorze as vinte duas horas. E outro cursinho popular pela
manhã no qual tinha uma bolsa socioeconômica. Como o salário era pouco além da
bolsa de desconto, também desempenhava a função de bibliotecária do cursinho, e
para isto todos os dias perdia a última aula para que a mensalidade fosse ainda
menor.
Aos domingos (folga) passou a trabalhar em uma banquinha de camelô no
terminal mercado completando a renda e estudando em todos os momentos possíveis
33
para o vestibular. Em um domingo qualquer enquanto embalava salgadinhos de bacon
em sacos pequenos para serem comercializados um homem, um morador de rua
aproximou-se. Como havia errado a boca do saco alguns salgadinhos estavam no
latão de lixo a sua frente, e então este homem pergunta:
Você vai usa? E aponta para o latão de lixo.
Não, não - e deu um pacotinho de salgadinho a ele.
Mas eu vô levá este assim mesmo- responde o homem. - Passa a mão no
saco de lixo e leva, já comendo o conteúdo na sua frente.
O latão de lixo, o saco arrastado, o salgadinho do latão comido pelo
homem. A criação nasce do esgotamento assim como aquele que acomete os
personagens de Beckett, a memória que retorna a “Quad 2 ”. Falta de ar,
impossibilidade. Falta de ar que revira o estômago... Não respirar, como respirar se
não há oxigênio? Somente ao esgotar que ela teve acesso ao fora da linguagem, ao
silêncio… O latão, o homem, o lixo, a boca. O latão, o homem, o lixo, a boca…
palavras, o lixo, a boca, boooooooooocaaaaaaaaaaaaaaaaa, esgota o sentido...
2 https://www.youtube.com/watch?v=LPJBIvv13Bc
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Figura 3- Monólogos, Victor Epifânio
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Monólogos Marginais.
É fruto de uma descrença, de um descolamento aos possíveis que ainda
subsistem aos clichês que mediam e amortecem nossa relação com o mundo e o
tornam tolerável, porém irreal e, por isso mesmo intolerável (PELBART, 2017). O
esgotamento é cartógrafo dos territórios, esvazia possibilidades, aponta visões,
mostra forças e tensões, intensidade, potências, virtualidades, desenhos em
rascunho, nos indica o que fala através de nós, cria novos possíveis.
Uma baforada de realidade que quebra o sentido. Um fluxo em uma língua
menor, vozes dos becos, violência e incontrolável, sons, atravessamentos, palavras
onomatopeicas, fel, grades, gretas das ruas, corres sem nome no meio da noite.
Violência expurgada em fluxo de palavras. As vozes dos devires menores,
das prostitutas, dos desvalidos, dos viciados...
36
Sala de aula
Tia, cê é professora?
...
Não?
...
Ah! Cê veio ajudá hoje...e cê vai voltá?
...
Uma moça veio, brincou com a gente e disse que ia voltar, mas ela nunca voltou.
...
Tia, ainda bem que cê veio hoje aqui, na semana essa escola é muito violenta.
...
Os meninos xingam as meninas, batem nas meninas, vem com faca para escola.
...
Não, os meninos grandes, eles trazem faca e pedem dinheiro.
...
Mas no sábado não, a gente pinta, brinca, se diverte.
...
37
Repetente
Eu repeti, era para eu tá na 7ª série.
...
Não! Eu não vou pará de estudá.
...
Minha irmã fez até a oitava
...
Ela parô, ela tem um filho e não tem quem fique com o filho dela
38
No baile
Tô eu lá com a minha mina, só curtindo, de boa, tá ligado? Ai ela mostrô um cara e falô:
- Tá veno aquele ali? Tá pagano
pra mim, fica dando piscadinha.
...
Eu fiquei só cuidano, o cara tava memo. Cheguei nele já intimando, tá ligado?
E aí maluco, quê, que cê tá pagando de zóio pra aquela mina?
...
Ah, cê num tá não. Bati no peito dele. Assim ó, tá ligado?
...
Fiquei lá curtino o baile, tomando uns goró, dando uns tiro, tá ligado?
...
Minha mina vira e fala: ele tá de piscadinha pra mim.
Ai eu voltei no maluco, puxei a quadrada e foi só pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus
o caralho, é pum, pum, pum, tá ligado?
39
Na pensão
...
Aí maluco qualé que é? Cê tá me tirano?
...
Vamos lá fora os dois, na mão.
...
...
...
...
Sangue? Cê tiro meu sangue?
...
Tá fudido, eu num tenho medo não.
...
Pode fugi, num adianta, cê tá prometido e eu vou te buscar.
40
Na rua
...
Esperto mano, se alguém tentá fazê alguma coisa cê puxa a faca.
...
A faca é a cruz, e a cruz é a justiça divina. Mete a faca e já era.
41
Na cozinha
...
Isso, frita bem a cebola
...
Eu era chefe de cozinha, ganhava bem, mas o que eu gosto mesmo é do que eu faço agora
...
Eu curto é me prostituir
...
Paga o cafofo, compro pedra e já era!
...
Adoro o cinema, aquele monte de travesti tudo na parede.
...
Liga não Amapô, eu sou assim mesmo.
42
Para casa
Moça, eu num sei nem como falá, tô tão nervosa. Tem algum Diretor que eu possa
conversá?
...
Eu tô tão envergonhada. Preciso vortá para Belo Horizonte. Eu num sô de Belo
Horizonte, eu sô de Diamantina, mas lá eu me viro.
...
u vim pra trabaiá na casa de uma senhora, mas chegando num era nada disso, eu num
quis fazê o trabaio e ela disse que se era para eu ficá assim que fosse embora, mas ela não
ia me dar à passagem de vorta não.
...
Eu dei tanta vorta que achei que tava na mesma rua. Fui na polícia e eles me disse que ia
me deixa num albergue, mas eu num quis não.
...
Eu num sei onde fica esse apartamento, ela foi me buscá na rodoviária, me levô pra lá.
...
Os policiais falarô que se eu soubesse onde é, eles iam lá na casa de mulher da vida.
...
Eu preciso de R$ 54,00, tem aqui até minha passagem da hora que eu vim. Quero junta o
dinheiro e i embora.
...
Quando eu vi escrito aqui na frente resolvi entrar, eu fiz até a 8ª série de modo que sei lê.
O homi me falô que pedino na rua eu arrumo o dinheiro.
43
...
Zóio Roxo
É, enfiei minha cara na mão de um maluco.
...
Duas vezes, por isso os dois tão roxo. A cara logo sara e o maluco tá prometido.
...
Eu tenho um filho sim, ele tem sete anos, tá com a mãe, tá bem, faz uma cara que eu não
vejo.
...
Não, não, maluco vai tirá a favela? Tá prometido.
44
Piche
Ontem eu tava lá com os maluco. Estoramô um, comêmo uma pizza. Só na alimentação!
...
Aí chegou um mulequinho e pediu pra ir no rolê com nóis:-‘Vamô lá!’ - Num botei uma
fé, o mulequinho pequinininho assim, ó! Bonezinho de lado, loirinho, cabelinho liso, não
acreditei.
...
O mulequinho que fez aquele piche, do lado do teatro.
...
Não, do lado de lá, na parede rosa, tá pichado FUN de função.
…
O muleque tava apetitoso para dar uns rolê. Desacreditei.
...
Os maluco deixaram o muleque de ar.
45
A guarda
O cheiro tá bom, hein? Fica sussegado, nós estamos atrás ‘di menor’. Tem algum menor
aqui?
...
Você tem passagem?
...
Está devendo?
...
Quem mora aqui?
...
Documento, documento.
...
46
Desaforo
Ó, ó os homi, fodeu! Joga a ponta!
...
Sô usuário, sim senhor.
...
Moro aqui.
47
Compulsão
Deixa ver!
...
Ah! Cês num sabe fazê papel de pó não.
...
O papel tem que deixar o cara apetitoso. Ele tem que fica apertando, tentando ver quanto
tem, na ilusão.
...
O baguio é ilusão.
...
Hoje faz 27 dias que eu não fumo pedra. 27 dias, se eu não fumar um mês, não fumo
mais.
...
Não meu, eu e ele que somos compulsivos sabemos disso.
...
Só por hoje comigo não funciona, tem que ser para sempre.
...
Oi e tchau!
...
Cê viu né? Ela entrô aqui, eu falei oi e tchau.
...
Não, cê não, eu já vô. Tô fugindo de lugares e pessoas.
...
Bom mesmo é fuma uma macinha. Tem coisa melhor que maconha?
...
É, dá um rango.
...
Dormi.
...
Mulher, mulher é muito bom. Puta! Tem um monte de coisa melhor.
48
Documento
...
Olha a barca, nossa! Essa foi perto.
...
Tá estranho hoje, né?
...
Tem certeza que aqui não dá nada?
...
Cês vêm sempre aqui?
...
Num dá nada? Dispensa, sujo, sujo!
49
D
ois
Dois?
...
Dá um peão, dá um peão.
...
Tá na mão o dinheiro?
...
Certinho?
Falô, falô.
50
Truta
Truta, tem que vê quem é o maluco. De repente ele tá num carro pá e tal e o carro é do
patrão.
...
Eu moro lá no centro. Sabe a Padaria?
...
Sabe o bequinho?
...
Então, viranô.
Nóis invadimu lá faiz dois ano. Arrumamu tudo a casa, agora o dono pediu. Filha da
Puta! Agora que a casa tá tudo arrumadinha.
Agora eu num sei, acho que eu vô pra casa duma amiga da minha mãe que tava guardada.
Cinco anos ela ficou presa, destruiru a casa dela.
...
Eu saí descabelado lá dos predinho. Descabelado.
...
Parei de estudá quando eu tinha dezesseis ano.
...
Cê lembra a chacina do Vida Nova há uns ano atrás?
...
Eu estudava naquela escola. Perdi um primo. Quase perdi a vida.
...
Morreram três pessoa e balearam mais onze.
Porquê? Por causa de tênis
...
O maluco tinha um conhecimento. Era truta do cara, entrô na casa dele, pego o tênis e
perdeu o tênis. Num sei também como que perde o tênis.
...
Cobrô uma vez, cobrô duas vez. Um dia os mano tá lá, muito loco e resolvero resolvê.
...
51
Tipo que manda, muito loco.
Entraro a escola e mataro quem num tinha nada a vê
Eu perdi meu primo, num era nem pra eu tá aqui.
...
Peguei trauma de todas as escola.
...
Depois eu até voltei lá pra robá os computador.
O barato é loco.
Eu num consigo
dormi, mano.
Tenho uns
pesadelo, truta.
Essa noite tavam
me persiguino, me
fecharam e deram
vários pipoco.
Acordei suado.
Fico atormentado
de dia e di noite.
52
Viveno
Tenho feito muito não.
Fumano. Namorano.
Olhando os carro, vendeno zona azul.
53
Assalto
Domingo eu fui assaltado por três muleque na parada gay.
...
Os três me chamaram. Olhei os três bunito, a loca foi. Na hora que eu cheguei lá puxaro
meu relógio e eu com essa perna não consigo correr.
...
Juntei uma pedra, mas vixê, na hora que eu vi eles já tavam bem longe.
...
Mas nem esquentei, tava tão boa a Parada.
...
Uma vez eu já tinha sido assaltado, é, mais ou menos.
...
Eu morava na rua, sabe o ponto do Fula?
...
Então, lá era um mocó, eu morava lá. Nossa, nessa época eu bebia muito. Fazia um
monte de quadro, vendia um monte.
...
A loca bêbada, queria trepá, fui lá pro mocó com três caras. Tirei a roupa, eu tava com
um tênis nike novinho, lindo, uma blusa da Argentina toda bordada, dobrei tudo, enfiei
na sacolinha e dei muito. A gozação foi tanta que eu apaguei.
...
NA hora que eu acordei, não tinha nada, eu pelado, só a minha cueca jogada de lado,
não acreditei, comecei a chorar.
...
Vi um mendingo bêbado, arranquei a roupa dele e pus.
...
Fui batê lá na casa do Beltrão:- Beltrão, Beltrão, Beltrão, me arruma uma roupa.
O Beltrão é deeesseee tamanho. Eu falei que fazia um nó, qualquer coisa.
...
Três dias depois eu comecei com uma coceira no saco. Fui vê, uns piolhão assim ó.
Muquirana. Piolho de mendingo.
...
Nossa! Que ódio, demorô pra sará.
54
Pacoteira
Fui lá, né? Na casa da B., cheguei lá maior pacoteira. Os mano lá tão com 150 k de pó.
Um pacote dessa altura assim... ó, dessa largura.
...
Tem ainda maconha, muita coisa. O Fulano me ligou e falou assim, pô môr, se tem que
fazê esse corre pra mim, tô ligado que você é mina de responsa. Você sai daí, vai até S.
Paulo e leva a encomenda.
55
Sem carga viral
Peguei do meu marido.
Ele era forte, bunito. Ficô fraco, fraco e morreu.
Eu não queria fazê o exame, tinha medo.
...
Eu tomo remédio direitinho. Meu marido
de agora não tem. Eu falo para ele por
camisinha, mas ele não qué.
...
Eu tive dois filho dele. O menino não tem nada. A menina tá com um ano, mas se Deus
quisé, vai negativá.
56
Pichação
Contra o abandono: INVASÃO!
57
Tecnologia
Vô compra um celular.
Tô trabalhano, não vejo a hora de receber. Tô
contando os dia.
M
a
f
ú
58
M
a
Na sala
...
Queijinho, tomei muito isso. Me deram no açougue que eu trabalhava.
...
Doze anos, mais ou menos isso, aí eu saí de casa, trampava no açougue, os cara era muito
loco.
...
Quando eu saí do açougue num voltei para casa não, dormia na rua, no castelo de
Greiscon, nos mocós.
...
Eu era o menorzinho da turma por isso Fulaninho. Depois eu comecei a passar um fumo.
...
Durante muito tempo eu, Sicrano e Beltrano.
...
O lugar cê num acredita! Tinha um 10 enorme, um luminoso, a gente ficava ali embaixo.
Maconha 10, num tinha como errá.
...
Um dia, Sicrano rodô com as paranguinhas, fiquei bolado. Será que ele ia me caguetá?
...
Peguei um dinheiro e pum, fui lá pro Paraná, lá onde eu nasci. Cheguei lá e encontrei
minha ti, mas eu num conhecia mais ninguém, olhei, olhei, voltei no mesmo ônibus.
....
Aí eu voltei para cá.
...
Sicrano é rocha mesmo, ponta firme, segurô a bronca sozinho.
...
Não, é claro que a gente dá uma assistência pro cara leva um cigarro e tal.
...
Mas, depois dessa eu num mexo mais com essas coisas não, tenho minhas meninas para
cria.
59
Novela
Vai começa a novela
Cê viu o que Fulana fez?
...
A novela, a novela.
...
Shiiiiiiiiiiiiiiiii! Silêncio! Depois da novela a gente conversa.
60
Nóia
Socorro! Tem alguém atrás de mim.
...
Me ajuda, me ajuda, ele vai me pegar.
...
Tem sim, tem alguém sim, me ajuda.
Ele vai me matar, ele vai me matar.
61
Nóia 2
...
Esconde a faca.
...
Tchau! Agora vô fuma.
62
Mudança
Entra aí. Qué toma um café?
...
Gosto do Jaison? Tem o Fred Também, tinha a outra parte.
...
Voltei a fumar.
...
.Cigarro também.
...
Ah! Tô indo em uma igreja lá em cima às vezes.
...
Tô entregando água.
...
Não era você que queria tanto que eu trabalhasse
...
.Eu tava fazendo decoração de festa, mas agora não tá dando nada.
...
Tá véia essa calça hein? Vem vê a que eu comprei.
...
Eu comprei num brechó. R$5,00 tá novinha.
...
Eu tô entregando água, olha só o cartão.
...
É, não era bem o que eu queria, mas é um trabalho.
...
Com esse frio, não sai muita água.
...
.E os seus cds?
...
63
Pilantra os muleque. Cê não tem mais porque eles robaram daquela vez. Eu intimei,
tava aquele Fulano e o Beltrano.
Falei que ia dá um pau neles, se não devolvesse eu batia na cara de novo.
...
Mas, eles juntaram de função, com léio de pau.
...
Vai não, fica mais um pouco.
...
Passe aqui Sábado ou Domingo que é mais tranquilo.
...
64
Moeda
Dá um trocadinho para eu comprar uma marmita?
...
Só um trocadinho, eu tô com fome.
...
É pão isso no saco?
...
Tá bom, então, Deus te abençoe.
65
Desenho
Tia, quê que é p’ra fazê?
...
Desenho?
...
Mas num cabe tia, eu preciso de mais uma folha.
...
Num cabe tem onze pessoa na minha casa.
66
Presente de Natal
Quando eu vô ganhá a pasta?
...
No Natal?
...
Se eu vier todo sábado eu ganho a pasta?
...
Então eu vô vir.
Casa
Vamô lá para minha casa?
...
Mas eu moro num barraco, cê num liga não?
...
.
67
Pedra
Eu tô aqui com minha família, nóis viemo do Mato Grosso. Tô pedindo uma ajuda p’ra ir
para Atibaia.
...
Nóis durmimo numa pedra ali embaixo.
...
Num tem, só a passagem? Então é a passagem que eu preciso.
...
Ah! Só a passagem de i embora
Num quero café não.
...
Albergue! Você manda no Albergue?
...
Então um adianta
...
Eu sou caminhoneiro, amanhã eu posso vir aqui e fazer uma presença com vocês. Vocês
sabem atender as pessoas. Se não, se não me atendesse bem, eu sou caminhoneiro,
amanhã eu podia passar encima de vocês na estrada.
68
R$300,00
Eu não sou prostituta. Não faço programa. Mas, por R$300,00. Pôxa!
R$300,00 eu faço.
...
Ele pagou meu aluguel. Fez uma compra de supermercado. R$300,00, eu faço!
69
Vingança
Tá feio o negócio né? Pois é, quando eu tava doente, cê não me ajudou. Me pôs pra fora.
Queria o dinheiro, o aluguel.
Mas, o mundo da volta né?
...
Cê quer que eu pague um lanche?
...
Agora você que tinha 11 quartos não tem nada. Vou indo viu?
70
Na diretoria
...
Aqui é muito complicado!
...
Compramos canecas e olha o que eles fazem
...
...
Eles não vêm com o mínimo de educação de casa.
...
Na semana passada mataram um aluno nosso.
Demos Graças a Deus!
...
Eu sei, é horrível.
....
Não, ele apavorava a escola
Andava armado.
....
Matou oito, oito só para ver como caía.
71
...
Na Roda
Maluco era sangue bom, firmeza memo.
...
Matava por cinco conto, ninguém tirava o cara.
...
Tirava caía.
72
No barraco
Eu num sei lê não.
...
Nunca aprendi.
...
Desde meus sete anos eu queria memo era sê bandido.
...
Sô daqui não.
...
Vim da Bahia, fugi faz dois ano.
...
Tem uma tia que tem um barraco aqui.
...
Até tentei trabalhá em obra, mas num vira, eu sô bicho solto.
...
Esse negócio de trampá pros otros num vira não. O negócio é fazê um dinheiro.
...
Cê num sabe onde tem uns playboys pra fazê um sequestro relâmpago?
...
Como assim? Grana fácil, limpinha na mão
...
Limpinha, tô falando
...
Ah, mas aí se o cara reagir... pum, pum, e já era
...
Medo? Tenho medo não, ainda vô vira
numa fita grande, mas se morre, já era!
73
Eu quero
Cê já vai dormir? Dexa eu entrar.
...
Não, só um pouquinho.
...
Cê tem um corpo bonito né? Nem tem barriga.
...
Cê tem um cotonete?
...
Me empresta um?
...
Não, eu vou ficar só um pouquinho.
...
É seu namorado?
Deixa eu deitar com você?
74
Esmola
Uma ajuda moço. Pelo amor de Deus uma ajuda.
Deus te abençoe.
75
Balinha
Desculpa incomoda a viagem de vocês. Eu num arrumo emprego e vendo essa balinha
por não arrumar emprego. Cada balinha custa R$1,00. Eu tenho dois sabores, morango e
uva verde e também paçoquinha R$0,50.
76
Catando latas
Minha filha tem 5 anos. Estuda em escola particular, ano que vem vou por ela o inglês.
Eu morava no Pará, deixei meu marido lá, ele não queria trabalhá.
...
Eu não tive mãe, fui criada em orfanato. Agora eu cato lata, pago tudo com as latinhas.
...
Minha filha tá sempre limpinha, a gente come, paga o aluguel, tudo com as latinhas.
Lixo
Moça, cê vai usar esse salgadinho que tá aqui no latão?
...
Vou comer ele tá? Hoje eu não comi nada.
...
Ah! Brigado. Bom né, mas... eu vou pegar esse aqui do latão tameim.
77
Prostituto
Quando eu era prostituto lá em São Paulo eu fazia várias coisas estranhas. O povo pagava
né.
...
Tinha um que ele me pagava em dólar. Um dia eu fui na casa dele e ele tinha comprado
uma roupa inteira vermelha para mim.
...
Aí ele falou para eu por e ficar de frente do espelho só olhando, aquela roupa vermelha
linda, eu fiquei loca para arrastar a bota. Ele foi no banheiro e saiu todo de preto, cheio
de correntes e mandou eu deitar na cama, ele ficou em frente ao espelho.
Depois, ele virou para mim e mandou eu cagar.
...
É cagar. Eu não tava com vontade, ele dizia que queria. Eu fiz força. Ah! Ele pagava em
dólar, eu caguei.
Eu tinha que ficar pegando merda, a minha merda, e jogando nele, e ele no canto da
parede. Ele gozava assim, cê acredita?
...
...
Juro! Ele pedia para eu mijar nele. Eu enfiava cada pepino enorme no cu dele, tubo de
desodorante, enorme. A bicha tinha o buraco da Orosimbo Maia, podre! Cê não acredita?
Antes de eu enfiar eu tinha que molhar com o meu mijo. Ele gostava de sentir o cu arder.
Cê acha? Eu fazia né? Ele pagava em dólar.
78
Família
Tem uma aluna aqui que é estuprada pelo pai.
...
A mãe consente.
...
Que, que a gente pode fazer?
...
A mãe consente.
79
Bunequinha
Então foi você que roubou a menina?
...
Cê não tem vergonha não? Robá vizinho? Robá deficiente?
...
Pelo amor de Deus
...
Ah! Robô bunequinha de loça?
...
Que lindo! Robô bunequinha.
...
Cê dormiu com ela. Bandido que brinca de boneca, abraçadinho, que bonitinho.
...
Ah! Cê tava muito loco de cola. Não sabia que era dela, achou que fosse do Fulano.
80
Largada
Cê vivia toda largada. Mas com 5 meses já fico com cara de mãe.
Tá de parabéns.
Sua filha sempre limpinha, bem cuidada.
...
Pô, essa mina era loca, robava mercado comigo.
81
Trabáio
Eu num sei lê não!
...
Acho que num aprendo mais, já tenho sessenta ano.
...
Eu fui criado na roça. Meu pai dizia que lê era coisa pra gente rico. Dizia que se eu
aprendesse a trabaia nunca ia me farta nada.
82
Sicraninho
Minha mãe morreu quando eu tinha 3 anos. Não me lembro bem dela. Eu fui criado meio
para lá, meio para cá, minha
Madrasta era muito ruim.
...
Quando eu tinha seis anos, meu vizinho me estuprou, eu era tão pequenininho.
...
Depois, quando eu tinha dez anos, fui estuprado de novo pelo filho da minha Madrasta.
Meu pai não fez nada.
...
Eu tentei gostar de mulher, tive até uma namorada, mas não adianta eu gosto é de pinto
mesmo, aquelas costas de homem, pêlos.
...
Com dezessete anos eu estava em São Paulo junto com as outras travestis. Tomava
hormônio, tinha uns peitinhos lindos, me vestia bem bonito de salto alto, batom, penteava
o cabelo comprido, parecia uma menina.
...
Muitas drogas, muito pico na roda. Trepei muito sem camisinha. Eu tinha um namorado
que eu adorava, ele era lindo, perfeito, me disseram: - Cuidado, ele é muito galinha!
...
Dezoito anos eu estava com AIDS, o outro irmão meu também morreu de AIDS. Mas, eu
não sabia o que era não. Tomei baque em muita roda e trepei muito.
...
Tive um namorado, um cobrador de ônibus que me adorava, me tratava tão bem, ele foi
emagrecendo, emagrecendo, morreu. Morreu de AIDS. Eu descobri que eu num morria,
mas passava para os outros e eles morriam.
...
Depois eu fiquei com tuberculose, quase morri. Me levaram para Campos do Jordão. O
Hospital tinha um andar só para homossexual. Fiz um monte de amizades, fazia
artesanato, meus arranjos com flores.
...
Sarei e logo tava na rua.
...
83
Troquei o baque pela lata, bem melhor! Faz dez anos que eu fumo uma pedra.
...
Todo dia! Maconha e Pedra os amigos todos fuma.
...
Não, eu não, me visto mais de mulher.
...
Neguinho olha e pensa: Sicraninho, bichinha, fraquinho. Mas na hora de brigar eu sou é
muito macho.
84
No Corre
Eu caí no crime, minha mulher foi embora, levô meu pivete.
...
Tô aqui hoje com os camarada para fazer uma fita, levantar um dinheiro.
...
Não, então, na semana que vem tem uma fita grande, dada. Com esse dinheiro eu vô
lançar uma moto para mim. Vô trampa de motoboy. Sete contos é isso que vai rolá na fita
85
Casa Nova
Tô morado numa casa nova, eu e o Beltraninho.
...
Ah! É lá embaixo, atrás das bocas.
...
Ontem nóis fumemo treis papel.
...
Mas agora eu tô fumano menos. Tenho mais é cheirado um pó
...
O povo continua na mesma, Beltrano casô. Eu não conhecia a mulher dele não.
...
Esse aí tá trampando. Agora o Sicrano, vixê! Tá guardado de novo. Bicho solto, num tem
jeito, só arruma encrenca, foi pego, diz que com uma ponta. Puxaram a capivara do cara,
dançô.
86
No ônibus
Desculpa incomoda a viagem de vocês. Eu sou aquele homem que faz catorze anos,
botou um tumor para fora. Mas, eu tenho uma úlcera e num posso ficá sem tomá o
remédio. No hospital num tem o remédio e eu num posso fica sem tomá.
Eu gasto R$700,00 por mês com esses remédios. Vocês podem vê minha barriga. Eu
não tenho condição de compra os remédios e num posso operar se não vira um câncer.
Por não ter condição de compra os remédios e sentir dor passo nervoso e úlcera como
vocês sabem num pode passar nervoso.
Eu vô passá e se vocês puderem me ajudar.
...
Deus abençoe a vida de vocês para que nem vocês nem nenhum familiar passe por isso.
87
Pedrada
O Sicrano estourou R$1.500,00 em pedra. Nunca tinha fumado.
...
Não, ele fumava um back, cheirava uma farfa, mas brita não, a primeira vez ele já pirou.
...
Tinha recebido, estourou o salário, faltou dois dias. Quando recebeu de novo faltou mais
três dias, fico hibernado na pedra, os caras mandaram ele embora. Recebeu seguro,
Fundo de garantia, essas coisas. Estourou tudo.
...
Agora eu num sei, o cara tá aí, na nóia.
88
Farinha
Farinha! Fariiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinha! Fariiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinha!
Farinha!
...
Ô mano, vamô lá!
...
Tem cinco conto?
Tem?
…
Vamô lá!
...
Pô, vamô lá
...
Vamô lá! Vâmo lá!
...
Hoje eu vô usa uma droga
89
Subindo
Cê tem que ver os camaradas que melhoraram também. Eu morava na rua, não tomava
banho, só queria era ficar muito chapado. Só nas fitas erradas. Achava que tudo era isso
mesmo.
...
Agora eu tenho casa, filho, mulher. Precisa vê, tudo isso.
90
Três dias depois
Alô! Fulana?
Ele tá morrendo!
...
Como assim não vem?
Ele é seu irmão.
...
Cara, eu tenho uma irmã, se ela precisar de mim, vou até no inferno para ajudar.
Mãe, o Sicraninho vai morrer. Ele me abraçou, olhou nos meus olhos. Eu acho que ele vai
morrer. Não tinha mais o que fazer.
...
Ele não se mexe mais, não tem coordenação motora. Eu não posso fazer nada.
A irmã dele foi levar ele no hospital.
Meu Deus! Porque tanta desgraça
Eu tinha até me despedido de você.
...
Agora, força irmãozinho!
91
Figura 3- Victor Epifânio
92
DI MENOR
93
Figura 5: Di menor - acervo Fabulografias
94
“Primeiro a filosofia nunca esteve reservada aos
professores de filosofia. É filósofo quem se torna
filósofo, isto é, quem se interessa por estas criações
muito especiais na ordem dos conceitos"
(DELEUZE & GUATTARI, 1992, p.39)
95
Figura 4 - Céu
96
Sempre cabe a alguém abrir o portão.
Passagem, dar passagens, ser passagem.
(Caderno de campo).
São tantos os começos que nos guiam: um desejo de estar menor, desafiar,
insistir, resistir, querer contato com uma população em devir, com um grupo
minoritário, com os meninos que estão em conflito com a lei e em cumprimento de
medida em reclusão na Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao
Adolescente, também nos interessam as subjetividades que as marcas da vida destes
menores escrevem e desenham. Deleuze e Guattari nos provocam a pensar junto
com a literatura de Kafka sobre quais devires de bando são possíveis dentro de um
espaço de confinamento de menores).Adentrar a instituição como professora de
filosofia, fato disparador deste trabalho, significa ter passado por uma seleção para a
função que foi feita pela entrega de um projeto de trabalho a Diretoria de Ensino e a
instituição, passar por uma entrevista, por diversos postos de vigilância e também por
procedimentos de revista padrões de segurança: guardar chaves, dinheiro, objetos
pontiagudos nos armários do lado de fora do centro de internação, contagem de
material na entrada (anúncio do que se repetiria na saída), assinatura de aceite desta
contagem, revista do corpo. O próprio corpo esquadrinhado a cada entrada no centro,
meu corpo esquadrinhado pelo panótico. O olho esbarra em tudo que é canto, o
confinamento, os limites físicos ali impostos, as grades amarelas, os meninos de
branco e cinza. Cheiro de guardado que adensa o ar.
97
Figura 6: atrás das grades
98
A estrutura do prédio obriga o olhar. Já na primeira visita destaca-se a
estrutura do prédio inspirada no panóptico de Bentham (BENTHAM, 2019 apud
FOUCAULT, 1975) um regime de luz e segurança para que sejam visíveis todos os
movimentos daquele que está sendo observado, funcionando, desta forma, como um
meio de coerção. Porta que se abre e fecha, tranca, ferro com ferro, clanc! Tatear,
espiar e deambular nesse território.
Que território é este: escola dentro da Fundação CASA? Que território é
esta aula de filosofia dentro desta escola? Que território é esta oficina de palavras e
imagens dentro da Fundação Casa? Tatear e entrar em contato com esta população
de adolescentes, este devir menor adolescente, este povo nômade. Entradas
múltiplas, conexões, um mapa que se rascunha e muda, linhas de continuidade e
fuga, forças e ”o mapa é sempre aberto” (BORGES,2016, p.128). Um laboratório de
experimentação nas aulas de filosofia do ensino médio da Fundação CASA
produzindo imagens e palavras. Nos movemos neste texto pelo desafio de uma escrita
criativa composta por rastros, cruzamentos de uma adolescência que se dobra em
outra e outra ainda confinada, violenta, ainda intensas pelejas, esgotamentos
espaciais, reinvenções da vida e do ofício de professora e tantas outras coisas.
Apostamos que a produção de imagens articular algo menor, algo mutável
que foge o tempo todo. Apostamos em uma força que se auto afeta, na criação como
um furor, como um atravessamento da vida, das forças das muitas vidas que
compõem este trabalho, uma travessia que se guia pela realização de experimentos
com filosofia, fotografias e literatura e muitas escutas. As imagens que compõem com
este texto foram produzidas e funcionaram como modo de escuta e meio de troca já
que eles produziram, fotografaram e eu as manipulei. Experimentos realizados em
conjunto a uma manada de meninos, multidões de adolescentes, grupos anômalos de
meninos que escapam ao modelo dominante da sociedade, subjetividades de
meninos encarcerados em um processo de captura que deseja a negação de toda a
diferença. São grupos de meninos que se formam e se desarranjam em
multiplicidades e que se transformam por contágio. Empreitamos uma ação de
professora que possa fazer um perceber de dentro da instituição.
O prédio organiza-se em andares. De cima da quadra poliesportiva coberta
notam-se os campos que circundam o bairro afastado, os olhos se perdem no
horizonte, exclusão do tudo. Cheiro de fumaça de queimada que invade o prédio
quase sempre. No andar do meio os quartos-dela que abrigam adolescentes em
99
grupos de quatro, medo da chuva, da dengue, do vento gelado das frestas, havaianas
com meias esquentam o inverno junto com ideias de vingança, justiça e fé. A mãe,
sempre a mãe que é quem acolhe e embala a lembrança na madrugada fria dos filhos,
muitos a seu modo inocentes. A mãe que visita um filho na Fundação e outros no CDP
(Centro de Detenção Provisória, lugar no qual ficam os adultos aguardando o
julgamento). A mãe que o abandonou quando pequeno. A mãe que deu a ele crack.
A mãe que não perde a visita. A mãe que chora de tristeza. A mãe que nunca vem. A
mãe que sabe que o filho continuará com o negócio da família. A mãe que são muitas,
que também são bando em devir.
Nas turmas adolescentes com idades diferentes são divididos entre as
unidades que possuem uma variedade administrativa, mas também quanto a sua
população: periculosidade, reincidência, idade e lotação permitida. No térreo, na sala
de aula branca de portas de aço e grades amarelas doze a trinta alunos, dependendo
do fluxo de entrada e saída dos adolescentes em cumprimento de medida, assistem
aulas de filosofia. Na maioria das vezes as classes são multi seriadas com alunos do
primeiro ao terceiro ano do ensino médio, tendo por objetivo o resgate de sua trajetória
escolar, um dos focos da medida sócio educativa.
Os meninos internados além das aulas da escola formal frequentam
também uma série de oficinas (padaria, confeitaria, salgadeira dentre outros) todas
como pequenas amostras de profissões que poderiam desenvolver ‘no mundão’ como
dizem os meninos quando saírem de lá. Além disto os adolescentes também recebem
apoio psicológico e social. Comumente em sua maioria os adolescentes não
frequentavam mais a escola antes da internação 67,7% (INSTITUTO SOU DA PAZ3,
2018).
Durante o período da manhã, em duas aulas semanais da disciplina de
filosofia, ocorreram encontros com as turmas em três unidades nos anos de 2015,
2016 e 2017. Produzimos oficinas inspiradas pela teoria de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, promovemos acontecimentos, multiplicação de ideias, afetos,
atravessamentos, impossibilidades e transbordamentos como propostas e respostas
ao esgotamento imposto pela vida destes meninos e pelo trabalho de professora neste
local de reclusão. Trabalhamos com composições imagéticas, com reais existentes,
3http://www.soudapaz.org/upload/pdf/ai_eu_voltei_pro_corre_2018.pdf
100
com mitos e com a fotografia como o local da impossibilidade e lugar da possibilidade
de criação, de expansão, de subjetividade e de encontro de forças diversas destes
meninos.
A atuação na Fundação Casa sempre pediu muito mais para que possa se
ocupar este espaço de professora: roupas adequadas (um jaleco que cobrisse as
nádegas “de modo a não provocar os meninos” como foi pedido no primeiro dia), o
sapato baixo para que fosse possível correr em caso de rebelião, os brincos pequenos
para que não fossem transformados em arma, o cabelo preso, a atribuição de tarefas
constantes aos adolescentes, a observação dos protocolos de segurança, a proibição
de que os alunos fiquem em pé, a distância informada como segura da porta que fica
aberta em 45°, o funcionário que vigia a sala ao lado desta porta, a aprovação no
relatório que esquadrinha o professor neste espaço bimestralmente. A ocupação
deste espaço sempre se deu no chão da sala de aula da Fundação CASA com o
intuito de possibilitar dentro de uma prisão-escola, ops, CASA Centro de atendimento
ao Adolescente um espaço de criação. Neste espaço nos permitimos estar, mas não
como o mestre explicador, um maestro (RANCIÉRE, 2014) aquele que conduz a aula
de cima de seu tablado de madeira. Ranciére denomina “mestre explicador” aquele
professor que impõe uma verdade a seus discípulos. Para muitos na filosofia este
mestre poderia ser comparado ao homem que sai da caverna platônica na “Alegoria
da Caverna” e que retorna para contar aos seus o seu caminho de encontro com a
verdade. O mito da caverna de novo? - Assim me dizem os alunos. Não, não
desejamos trazer todos à nossa luz, apenas nos impele transmitir o “sentimento de
ignorância” (RANCIÉRE, 2002, p.119) O mestre ignorante de Ranciere é um professor
exilado na Holanda, este professor não fala holandês, somente francês, porém deve
ensinar francês a seus alunos holandeses. O meio escolhido para possibilitar este
encontro entre professor e alunos é a obra literária Ilíada com autoria atribuída a
Homero, que narra a Guerra de Tróia, uma guerra de dez anos movida por Menelau
com o intuito de resgatar sua amada Helena, nada menos que a mais bela mortal
sequestrada por Páris, príncipe troiano. Esta história para nós também se fez como
um meio de encontro, já que dia após dia os alunos ouviam enfileirados em silêncio
uma versão adaptada da Ilíada lida por nós. Bem, assim como este mestre ignorante
sempre nos vimos também como ignorante e com isto uma possibilidade de
aprendizado de troca. O meio de encontro que escolhemos é composto pelas imagens
e pela filosofia. Desafiando crenças de que é o professor um emissor, uma fonte de
101
saber, também nos colocamos em um movimento de aprendizado com os alunos da
Fundação CASA estando todos nós no mesmo nível e com ignorâncias diferentes.
A Fundação CASA é um local que de diversas maneiras tenta levar ao
pensamento do aluno como inferior ao mestre. Nós nos movemos partindo de
problemas filosóficos a serem pensados juntos. Este desejo deve-se a nossa crença
de que o que nos força a pensar é o problema, e o problema também pode ser
imagético. Em seu abecedário, Deleuze nos diz que é o problema que nos leva a
pensar, sendo que a origem do pensamento é sempre da ordem do acontecimento
(DELEUZE & PARNET,1996). Nossa postura foi a de agir de uma forma inversa a da
instituição, desejávamos revelar o pensamento dos meninos, dar-lhes autoconfiança
para pensarmos juntos. Seria extremamente arrogante esperar que pudesse saber
algo sobre dar aulas em uma “cadeia” de menores antes de estar lá. Por mais que
tenha lido o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente e por mais que já tivesse
inúmeras experiências como oficineira em escolas públicas e como professora ´no
mundão’, a imagem do mestre ignorante me acompanhava. Alguém que chega a um
território desconhecido, que não fala uma língua dita ali. O “mestre ignorante” e eu
buscamos juntos um meio de chegar em alunos. Chegar a Fundação CASA, não
conhecer os meninos, chegar em uma cadeia imaginada, fabulada, encontrar,
adentrar, ser afetada, deu-me dimensão da ignorância que possuía sobre tudo ali.
Despi-me de convicções pedagógicas, de manuais, pus em xeque qual tipo de
educadora seria naquele lugar. Veio o desafio, a instabilidade, as limitações e também
necessidade e desejo de movimento. E assim fizemos ao levar cartões postais do
Coletivo Fabulografias, ao levar uma exposição dos meninos para o MIS (Museu da
Imagem e do Som) da cidade de Campinas, ao levarmos grupos para cantarem em
festas, oficineiros do Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP para discutirem
sobre racismo, imagens para serem criadas e que aqui atravessam este texto e a
Ilíada de Homero para sala de aula. Interessou-nos, nestes movimentos, abrirmo-nos
ao acontecimento, dar uma “guinada do ponto de vista” (LAPOUJADE, 2017, p.65),
trabalhar com uma dimensão do real, no qual o professor e aluno trocam. Quem sabe
mais? Esta pergunta não nos interessa. Nessa troca imagens e palavras são levadas
como provocações nas aulas e imagens e palavras são trazidas pelos meninos,
criadas, extravasadas, picadas, rabiscadas, destruídas, construídas e o fluxo intenso
mantém-se em aulas-acontecimento. Cabe-nos ouvir a aula, perceber quais desejos
102
dos alunos são atiçados durante a prática, receber a aula como um vão entre curricular
e não curricular.
Nossas leituras da obra de Suely Rolnik, mais precisamente do texto:
“Pensamento, corpo e devir” (ROLNIK, 1993), levamos a pensar sobre quais fluxos
compõem as subjetividades destes menores em reclusão. Subjetividades estas que
se remodelam ao estarem atadas e esquadrinhadas pela instituição correcional. O
desejo da instituição é o de impor novas subjetividades ao menino, mudanças que
começam pelo corpo: o cabelo é raspado, as roupas são da instituição, o chinelo azul.
Uma série de meninos desejados iguais, imposição do gesto das mãos para trás,
desejo de um futuro diferente, saída do crime.
Desejo que as mudanças ocorram no subjetivo e que transforme já no início
da internação os corpos dos meninos na Fundação CASA. Subjetividades que se
dobram em um novo corpo, o corpo dócil que visa desestabilizar a identificação do
menino com o mundo do crime.
A instituição impõe um processo que deseja a negação de toda a diferença.
Pensamos como os estados inéditos provocados pela instituição movem novas
subjetividades que se dobram e desdobram. Subjetividades que se dobram neste
novo corpo pedido pela instituição, mãos para trás, cabeça baixa, cabeça raspada.
Mas o que sobra de individual? Restam marcas aparentes, tatuagens de palhaços,
santos, crucifixos, heróis, irmãos metralha, lágrimas negras, carpas, crucifixos, terços,
tatuagens nos braços, pernas, mãos e rosto. Uma imagem que não é plana, uma
imagem viva que se insere no corpo, o corpo como uma tela, o corpo como imagem,
o corpo como superfície, o corpo escrito pelas marcas. O que esta imagem traz?
‘Di menor’ é um recorte de imagem. Que traz esse recorte de imagem? ‘di
menor’ não tem rosto. Kafka e as análises feitas por Deleuze e Guattari em sua análise
da obra “Kafka. Por uma literatura menor” (DELEUZE & GUATTARI, 1975), ajudam-
nos a pensar em um bando de meninos em devir, pensar estes meninos em privação
de liberdade com a menoridade que os personagens kafkianos possuem. Mas como?
São as perdas de individualidade e ganhos de características de bando que são
apresentados nas criações imagéticas e textuais dentro da Fundação Casa.
Construções filosóficas e imagéticas possíveis a que também chamamos ‘di menor’.
Pistas que se mostram nesta caminhada imagética e poética. Ambos os grupos
(adolescentes e personagens kafkianos) são compostos por pessoas
103
desterritorializadas que se re-territorializam em outro lugar. Para os menores em
confronto com a justiça é dentro da Fundação CASA que há uma re-territorialização.
´Di menor´ cava a fuga no tijolo de seu quarto cela que fica no terceiro andar
de uma instituição correcional para menores infratores no Brasil a Fundação Casa.
Cavar como um rato? Fazer uma toca como um animal? Josefina na última obra de
Kafka se perde na multidão de ratos. ‘Di menor’ devir fuga escava as paredes do
terceiro andar do prédio com uma colher. ‘Di menor’ devir coragem pula e em fuga,
corre com o pé quebrado na queda, ainda assim pula a muralha quebra o braço e se
embrenha no mato. “Quem tá preso quer fugir” - diz a coordenadora. ‘di menor’
reaprendido pela polícia retorna, mãos para trás, cabeça baixa, gesto que se repete e
se dobra em mais um. Deixa-se viver, porém aprisiona-se, domestica-se, silencia-se
buscando um recondicionamento destes jovens corpos infratores. Busca-se a
produção de uma ordem que normatiza o agir e o pensar, que visa uma subjetividade
fácil de controlar, e que a partir da produção e manutenção desta ordem diminua as
singularidades e as diferenças.
Ter menos de dezoito anos no Brasil e ser infrator, por hora, significa ter
sua identidade protegida, mas lhe agrega a um bando ‘di menor’, um coletivo de
menores infratores. ‘di menor’ não tem rosto, ‘di menor’ cresce todo dia na favela e é
aliciado por facções criminosas. ‘di menor’ se mata, corre na periferia, segura fuzil,
vende drogas. ‘di menor’ é morto! Há um genocídio negro em marcha no Brasil, o
número de homicídios de negros cresceu 23% nos últimos dez anos, segundo o IPEA.
Cerca de 70% meninos internos na Fundação Casa são negros ou pardos segundo
levantamento feito pela própria instituição no dia 10 de novembro de 2017, com dados
do Nuprie (Núcleo de Produção de Informações Estratégicas).
Os meninos revelam subjetividades, relações invisíveis entre o “eu” atual
deste menino e os muitos fluxos que compõem esta subjetividade ‘di menor’,
rompimentos que os levam a formulação de outros 'eus’ dentro do mesmo sujeito
interno na Fundação CASA. Subjetividades que se dobram em malha e que se
sobrepõem umas às outras, se dobram em um novo corpo, desestabilizando a
identidade do menino que se identifica com o mundo do crime. Subjetividades que nos
levam a pensar como os estados inéditos provocados pela instituição movem, se
dobram e desdobram, formas sutis de existência que deixam de existir, ovos de
futuros, linhas de tempo desconectadas, criações, gêneses, novo devir. Fundação
Casa provoca reverberações, são corpos e subjetividades exigidas destas jovens
104
vidas em reclusão. Linha de frente. Impedimento de ver o próprio rosto refletido no
espelho, poucos são os privilégios que restam: uma escova de dentes identificada,
guardada pelos agentes de segurança, um par de chinelos para cada um, a
impossibilidade de registrar o próprio rosto. – Tira uma foto minha, tira uma foto minha!
– Um menino pede ao outro quando estamos realizando as oficinas com a câmera
fotográfica.. – Grava uma música minha. Grava! – O outro menino atende e assim
nasce um clip. ‘Linha de Frente’ foi gravado pelos meninos durante uma das aulas de
filosofia. Um moletom respira arfando e cantando verdades. No vídeo um moletom
sem rosto respira e canta um devir menor, um devir ‘di menor’, um devir de bando.
105
Figura 7: Linha de frente
Linha de frente
é Deus quem manda
e cada um vai colher
o que planta,
comprou maldade
só colheu o sofrimento.
É revolta.
Revolta, tô tranquilo!
106
Figura 8: pele
107
Figura 9: pele
108
Na pele destes meninos são expostas subjetividades que se dobram. A
Fundação Casa impõe um novo fluxo ao menino que cria um corpo novo, o corpo
infrator. Este novo corpo não possui nome, não possui rosto, este corpo ´di menor´
possui marcas e proliferações de imagens que tingem a pele em tatuagens e isto a
instituição não lhes tira, não consegue mudar. São as tatuagens que trazem à tona as
subjetividades destes meninos, desta forma grupal ‘di menor’. O nome da mãe,
sempre a mãe. O novo corpo marcado pela instituição traz a cabeça baixa as mãos
para trás, ombros arqueados, carrega em si a vida, cicatrizes e marcas escritas na
pele que são referências ao crime, assim como os palhaços associados a facção
criminosa denominada Primeiro Comando da Capital, vulgo PCC. Marcas que dizem
por que em uma das vezes havia cheiro de maconha dentro da sala de aula.
Subjetividades que em linhas de fuga em algum quarto cela praticam o culto satanista
ou que trazem em seus corpos imagens da Virgem Maria, Jesus loiro de olhos azuis
sobre a pele negra, crucifixos, terços. Subjetividades estas que entendem que deus
corre do lado deles. São corpos que passam por estados inéditos e que recebem
novas marcas dentro da instituição. Marcas de “Ovos de linhas de tempo” (ROLNIK,
1993, p.1) futuros intocados, jamais alcançados, traçados incompletos, desejos…
ovos nos quais reverbera a marca ‘di menor’, aquela que o agrega a este bando sem
rosto, sem nome individual. ‘Di menor’ são subjetividades que se dobram, se cruzam,
se retroalimentam formando malhas, intersecções, conjunções e linhas de fuga.
Marcas que escrevem mitos e que nisto expõem suas feridas, pensamentos, crenças,
pois “escrever traz notícia das marcas” (ROLNIK, 1993, p.9). A institucionalização
destes meninos também gera estados inéditos em seus corpos. “Estados inéditos se
produzem em nosso corpo a partir das composições que vamos vivendo “ (ROLNIK,
1993, p.2). Ter notícias destas marcas dos meninos é encontrar estratégias do desejo
destes menores, violência, delinquência, intensidade, movimentos, entrega ao crime.
São chamados diversos da fome, da dor, da oportunidade escassa, da ambição,
chamados da vida, da alegria de ser jovem, da ausência do medo da morte, entrega.
Exigências que sempre criam novos corpos. J. pula de um lado para o outro em um
pé só atravessando a sala de aula, pois uma bala ainda jaz em seu tornozelo. P. com
apenas metade do pé esquerdo ri enquanto me interroga: - E meu pé vai crescer?
Existe filosofia para isto?
São estas marcas e tantas outras que escreveram mitos fantásticos nas
oficinas de imagens e palavras. Nossas conversas com as imagens nascem de
109
experimentações, produções e questionamentos que tensionam forças: Produzir
imagens e palavras em sala de aula o que haveria de incomum nisto? Produzir
imagens nas aulas de filosofia dentro das salas de aula da Fundação CASA com
meninos em cumprimento de medida socioeducativa. A percepção deste território
institucionalizado Fundação CASA é dada ao seguirmos pistas que surgem com a
produção de imagens e palavras, a proximidade com a vida neste lugar de reclusão,
o devir da população de adolescentes e seus fluxos de entrada e saída. Fluxos. Foram
dois anos e meio esgotando palavras, esgotando as possibilidades, esgotando
movimentos, esgotando o ofício de professora.
‘Di menor’ entra e sai, porém, a associação ao crime nunca cai em desuso
por todos aqueles que chegam à instituição. Trabalhar na Fundação Casa trazia uma
surpresa a cada dia e nem sempre elas eram agradáveis. Notícias de mortes de ex
alunos, meninos que haviam sido presos novamente: - oi senhora, lembra de mim? -
A Casa era outra, mas o menino o mesmo que não era liberado, pois não tinha comida
em casa. Mas desta vez preso, segundo ele, era porquê tudo fora forjado. Histórias
pessoais extremamente tristes. Funcionários que tinham uma visão muito humanista
dos meninos e nem sempre eram ouvidos, por outro lado o medo constante dos
menores que alguns funcionários alardeavam possuir. Linhas que se cruzam neste
espaço no qual geramos imagens e palavras. Imagens e palavras como vazão da
força destes meninos, máquina de guerra poética.
Um território escola dentro da Fundação Casa. Um território aula de filosofia
dentro desta escola. Um território oficina de palavras e imagens dentro da Fundação
Casa. Territórios traçados ao se entrar em contato com esta população de
adolescentes, este devir menor adolescente, este povo nômade. São entradas
múltiplas, conexões, um mapa que se rascunha e muda.
Todas as imagens e palavras que foram produzidas durante estes
processos tratam de um processo que por mais simples que pareça em sua feitura
nunca foi simples. Esquadrinhamento, revista da câmera na entrada e na saída. Os
textos e imagens são passagens, desejam ser passagens e ligam-se. Apostamos nas
“forças da fotografia como linguagem, e não somente como registro“ (WUNDER,
2016, p.19). Que sentidos são expressos nestas imagens? Encontramos imagens e
palavras como resistência a imposição subjetiva da instituição. Palavras que crescem
em gretas, que escapam em meio ao silêncio, que estampam a pele dos meninos.
Resistência. Efemeridades que estampam a parede. Os meninos desenham em seus
110
cadernos com uma única caneta esferográfica Bic que entrou contrabandeada na
instituição. Também encontramos uma língua de sinais própria com a qual os meninos
se comunicam silenciosamente durante as aulas. Um menino soletra rapidamente
para o outro.
O convívio em alguns momentos diário com estas jovens vidas à beira do
abismo disparou pensamentos e escritos sobre esta experiência, passagens e
conexões que trazemos aqui. A escolha desta intervenção foi a de “fazer esse
mergulho no plano implicacional” (KASTRUP, 2014, p.26), buscando compreender
que existe uma relação que ocorre entre os muitos eus de cada um destes meninos e
que exige este ”novo corpo” (KASTRUP, 2014, p.2). Esta exigência de um novo corpo
vai se fazendo de fluxos, de inúmeras experiências de vida e de reclusão que os
agregam a um bando sem rosto, o bando ‘di menor’.
111
Figura 10: apagamentos
112
Escritas-imagens míticas.
Dia das Mães, chego ao bairro afastado para mais um dia de trabalho como
professora de filosofia. Na entrada da instituição uma fila indiana de familiares
aguarda, é dia de visita na Fundação Casa. Eu passarei pela revista, eles passarinho?
Gaiolas separam as famílias. Os familiares tirarão a roupa e abaixarão três vezes nus
no quarto de revista. Será que dessa vez alguém tentará passar com algo ilegal
inserido nas entranhas? Outro dia a menina tentou e saiu de camburão. Creio que
hoje não. Não! – afirmo mentalmente. No corredor das salas de aulas, a luz amarela
tinge as faces. Uma mesa com lanches de mortadela, bolo café, suco e refrigerante
(doação da igreja) será o banquete. Os familiares chegam de um em um depois de
passar por todas as portas, gaiolas e revistas. Os voluntários da igreja evangélica
entoam um hino ao som do violão. No corredor estreito, sem janelas e escuro mães,
pais, irmãos mais velhos e outros familiares. O abraço apertado gesto que se repete
aos pares e se dobra. Um pai ligeiramente alcoolizado se equilibra, mães choram, o
hino permanece em contínuo, murmúrios são ouvidos, uma mãe começa a primeira
de quatro visitas que fará naquele dia aos filhos que estão presos em diferentes
instituições - ela me diz sorrindo.
Muito mais que um laboratório de experimentação nas aulas de filosofia do
ensino médio produzindo imagens e palavras dentro da Fundação Casa, vivi como
professora uma imersão e um movimento que recorta, que recolhe, que leva e traz.
Uma imaginação que segue pistas da produção de imagens e palavras, da vida neste
lugar de reclusão e do devir nômade da população de meninos internos, que chamo
‘di menor’. Os adolescentes deste local e seus fluxos de entrada e saída nos guiaram.
Fluxos, que arrastam as linhas mínimas, que vazam o contido pela instituição,
extravasam silêncios e gritos, reinventam a vida e a juventude em caminhos antes
desconhecidos, já que “as coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos
caminhos que se acredita” (DELEUZE & PARNET, 1998, p.12).
Meninos que como outros desejam festa, comida e alegria, mas um deles
morava em um buraco com a mãe. Não, não se tratava de um lugar ruim, de um lugar
precário. Ele morava em um buraco no chão, como nos foi relatado pela
coordenadora. ´Di menor’ é um mapa, um traçado das linhas de força que o compõe,
um ”mapa é sempre aberto” (BORGES, 2016, p.128). ‘Di menor’ é tudo aquilo que
113
foge, tudo que escapa à instituição, são devires nômades, é existência feroz,
resistência. ‘Di menor’ é algo sobre o qual é impossível não escrever, é a própria
“impossibilidade de não escrever” (DELEUZE, GUATTARI, 1975, p.35). Buscamos
movimento, produção de palavras e imagens dando impulso a uma ação poderosa
contra a homogeneização da subjetividade dos meninos. Arrastar, rachar os conceitos
e extrair-lhes devires, abrir novos possíveis, estados de variação, pensamentos,
seguir pistas neste lugar de reclusão regido pelos fluxos de entrada e saída de
adolescentes foram algumas das trilhas percorridas. Os olhos sempre se movem, mas
sempre esbarram nas grades neste território com esta população inconstante que
resiste às normas. Um local vigiado, normatizado espaço limite. Os olhos se movem
e notam os movimentos: desterritorializar a adolescência, reterritorializar no crime,
desterritorializar na Fundação Casa.
As linhas mínimas vazam o contido, extravasam silêncios e gritos,
reinventam a vida e a juventude em caminhos dantes desconhecidos, já que “as
coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos caminhos que se acredita”
(DELEUZE; PARNET,1998, p.12). A criação das imagens aqui apresentadas foi
inspirada pela filosofia de Deleuze e Guattari. Nós nunca desejamos capturar
realidades com as lentes, nos interessam as “potências que as imagens têm quando
descoladas do desejo de representar” (WUNDER, 2018, p.2). São visões, torções,
imagens que sequestram o ar, notícias que sequestram o ar. Tantas são as questões
que movem essa escrita que se arrasta por todos lados. Quais foram os
acontecimentos que atravessaram a produção destas imagens? Vazamentos,
pulsões. O que elas trazem? Muito mais do que o que elas nos dizem, nos
debruçamos para espreitar o que elas movem. Limitações, medo, culpa, choro.
Indiferença, fome. Fome? Um dia foi roubado um caminhão de carne, a mercadoria
distribuída. E houve churrasco na favela por uma semana....
Em diferentes direções o tema filosofia foi arrastado pelos menores internos
abrindo caminhos possíveis para novas investigações. Não houve baliza para os
resultados nem desejos de salvação destes menores, mas sim o constante
esgotamento e a sublimação que provocava novamente o movimento ainda que em
um espaço confinado. Tocar, fluir, possibilitar os encontros, extravasar sentidos sem
definir o caminho. As aulas de filosofia do ensino foram ao mesmo tempo marcados
por estados de variação de impossibilidade e movimento, momentos de rebelião nos
quais não podíamos entrar, aulas com imagens, diversos livros levados para a sala
114
de aula em uma caixa de feira, filmes, mitos, conversas, atenção dentre tantas outras
coisas. Buscamos lidar com as variações desta atmosfera, a visão panóptica que a
instituição incide sobre os menores e funcionários, a rigorosa verificação do
comportamento pautado por relatórios de conduta e revistas neste regime de luz e
segurança.
Depois de um crime fartamente comentado pela mídia fica quase
impossível que o assunto não chegue a sala de aula, seja ela dentro ou fora da
Fundação Casa, já que os meninos têm o hábito de ver televisão e também o gosto
por isso, além, é claro de ser uma das poucas diversões possíveis. Na sala de
televisão eles se apinham em grande número: - SHIIIHHH! Os assuntos expostos
pelos jornais que assistem chegam a sala de aula, assim foi com a notícia do estupro
coletivo de uma adolescente que ocorreu no estado do Rio de Janeiro. Tratar de
violência contra a mulher é assunto quase inevitável em um lugar submerso em tanta
violência diária. A maioria dos internos já vivenciou episódios de violência dos mais
diversos, muitos que ocorreram em casa presenciando a agressão da própria mãe.
Naquele dia eram sete ou oito meninos e o assunto era este. O primeiro
menino, depois que caímos neste do assunto do estupro e posteriormente sobre a Lei
Maria da Penha (Lei 11.340 que tange a agressão) diz: - Eu tenho cinco Maria da
Penha, tô aqui por isso. - E você acha bonito? - interpelo. - Enchi de porrada -
prossegue. - E você acha bonito? – insisto. Os outros meninos riem, se esborracham
nas cadeiras! - Mulher tem que servir o homem, obedecê, se não encho de porrada.
Cresci em meus 1,60: - Vocês vão ficar quietos e acabou este assunto. Estão me
desrespeitando, sou a única mulher aqui - Disse quase gritando! - Não é verdade não,
senhora - ´Di menor´ volta atrás e mudamos de assunto.
Os olhos sempre contam, durante a reunião escolar, arqueadas e
enfileiradas ao longo da mesa as mães daqueles meninos na sala de leitura que mais
uma vez e sempre e todas é decorada pelas grades amarelo vivas. Os familiares
podem levar o boletim escolar dos meninos e de um modo geral com o resgate da
trajetória escolar eles passam a ter boas notas e se inserem no ensino formal durante
a passagem pela CASA. Já suas mães quase sempre carregam além do peso dos
anos de nascimento, vincos, sorriso amarelo de poucos dentes e a tristeza nos olhos
baixos.
‘Di menor’ devir corpo dócil, intenção de sujeição e domesticação, desejo
de que o corpo seja dócil, tudo muito explícito quando se observa as janelas e as
115
grades, as três gaiolas que se passa para enfim chegar aos meninos. Gaiolas com
duas grades corrediças, o professor para adentrar o prédio passa por sistemas assim
três vezes. Todo um aparato de domesticação e contenção: grades, portas, quartos-
celas, relatórios, uniformes e etc. Deixa-se viver, porém aprisiona-se, domestica-se,
silenciasse buscando um recondicionamento destes jovens corpos infratores. Em
questão das subjetividades é claro que a forma identitária que a instituição busca
moldar no menino infrator é contrária a aquela com a qual ele chega, seria a proposta
de um distanciamento até que se chegue progressivamente a contraposição. Muito
mais do que anuncia Foucault em sua obra “Vigiar e punir” (FOUCAULT,1975), estes
meninos e a sua permanência na instituição vão de encontro a produção de
subjetividades percebidas por Deleuze na sociedade disciplinar. A instituição busca
produzir uma certa subjetividade para que seja desperta a vontade de estudar, de
vencer na vida (o que seria sair do crime de acordo com o que a instituição almeja),
de participação social.
Movem-nos desejos de subversões filosóficas, de libertar o pensamento de
corpos aprisionados. Impossibilidades, esgotamentos. - Senhora continua a história
de Tróia (Ilíada). Hora que passa de mais um dia. - Senhora, logo a liberdade canta.
Os inúmeros processos que ocorrem neste local de reclusão nos dão pistas
sobre os possíveis modos de vida e resistência destes jovens em devires menores,
em devires ‘di menor’. Nas produções de textos ‘di menor’ cria mitos fantásticos de
luta e sangue, guerra, paz e ressurreição. ’Di menor’ traz angústias e poesias com os
desenhos de suas mãos. Como é raro uma caneta dentro de uma CASA, uma caneta,
um instrumento tão simples e comum aqui fora, uma caneta, um instrumento de poder,
uma arma, um objeto de fazer arte, tantos significados claros ou ocultos.
‘Di menor‘ nunca morre, ‘di menor’ é legião, é formiga, é vespa, é matilha
urbana, é vetor de bando. Um exército que não se extingue, pelo contrário, se
multiplica em devires: nos guetos, vielas, nos sinais, nos camburões, embaixo dos
viadutos, nas ruelas das favelas, nas faltas de oportunidades, morto nos sacos pretos.
Fazendo avião para o tráfico, morando na areia, sendo engrenagem da máquina-
crime, cifrão tatuado no dedo, sangrando até morrer baleado pela polícia ou nos
acertos, “não há sujeito, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação”
(DELEUZE & GUATTARI, 1975, p.38). ‘Di menor’ não tem nome, mas sempre há mais
um, mais mil em pé. “Josefina, a camundonga, afogada em seu povo” (DELEUZE &
GUATTARI, 1975, p.71) se perde na multidão de camundongos, ‘di menor’ se perde
116
na multidão. ‘Di menor’ é multidão, é um, é um que são muitos, são vozes de um devir
menor, de um devir adolescente marginalizado, são linhas de continuidade e fuga.
São música, são linhas de frente. A mesma mão que comete a violência é aquela que
com traços precisos faz arte. ‘Di menor’ clama à justiça divina, mas também empunha
a arma que o leva a execução de um sequestro relâmpago no Shopping. - Mãe, ô
mãe, compra este aqui para mim. - Mãe, ô mãe, quero este também…. Eles chamando
a vítima de mãe e depois de pegar tudo que queriam deixando-a sentada em um café
com R$50,00 embaixo do pires. ‘Di menor’ é gerente do tráfico de drogas. Dizem por
aí que é ‘di menor’ é até piloto de fuga. Se por um lado traz tatuagens com símbolos
religiosos, evoca a justiça divina por outro empunha a arma e puxa o gatilho. Justiça
que se escreve na pele caminhando lado a lado com os símbolos religiosos que
trazem estampados em tatuagens. Inventos de uma vida marginal que os
adolescentes oferecem em desenhos. Destaca-se o fato que a pele se torna a única
marca identitária possível de ser mantida dentro da instituição. Nestas marcas um
conjunto de circunstâncias da vida que estão atreladas a valores do crime,
pertencimento, desejos da máquina capitalista, ostentação, sucesso no crime,
conquista de muito dinheiro, tênis, motos, carros.
Versículos da bíblia inscritos nas paredes brancas da instituição, nos
cadernos. ‘Jesus’ leio no braço de um dos meninos, pichações santas nas paredes.
Jesus loiro estampa peles negras e pardas. Jesus loiro e uma Ave Maria igualmente
alva é quem mantém a fé nas condições adversas, uma santidade branca abençoa
meninos negros, majoritárias hierarquias do mundo simplificadas para a minha parca
compreensão. O forte hábito religioso que se mistura com a criminalidade. Se por um
lado os adolescentes cometem delitos por outro estão fortemente atrelados a valores
cristãos, violência, ecos da vida vindos deste bando ‘di menor’ que é agora seduzido
pelo crime mais uma vez. ‘Di menor’ são muitos, diz de todos enquanto bando, diz de
todos quando diz de um. O menino aliciado na porta de sua casa, o vulgo ‘di menor’
que se dobra em mais um, ecos. ‘Di menor’ corre nas noites olhando qual é a facilidade
de se estourar um vidro com pedaços de velas de carros que estão em seu bolso. ‘Di
menor’ carrega pacotes, entrega armas, ‘di menor’ garante a segurança da biqueira,
olho que vê e denuncia. ‘Di menor’ vende crack nas biqueiras. Que imagens,
percursos, relações, permanência, imersão, ruptura, muito nos trazem as tatuagens
destes meninos. Marcas que escrevem muito além do visível, marcas que criam
estados inéditos de dor que escreverão de agora em diante. Linhas de tempo novas
117
geradas. O menino que se recusava a copiar por mais que eu pedisse. - Não enxergo
- afirmava. Marcas que dizem em suas narrações que criam novos corpos a cada dia
de aula, assim como a minha insistência com a equipe pedagógica sobre a
necessidade do menor de usar óculos. Passados dois meses o menor aparece na
sala de aula com seus óculos novos. Eu sorrio, ele não sorri de volta, me aproximo: -
Como estão os óculos? Está vendo bem? - Senhora, eu tô cego de um olho - ele diz.
E completa: - Nunca mais vou enxergar, descolamento de retina o médico falou. Ficou
assim do soco que a polícia me deu...Marcas que criam um novo corpo em quem aos
quinze anos é cego de um olho. Enxergar com este novo corpo, o corpo cego de um
olho para toda a vida, o corpo infrator. O menino não enxerga mais com um olho, a
subjetividade imposta por este fluxo de violência no qual está inserido o dobra em
mais um ‘di menor’. Alunos? Vidas que resistem a exclusão, a violência, a perda da
infância, ao estado, a instituição e as normas.
Vidas que reinventam modos de existir e entre os vãos, com pouca luz que
as banha, apontam as suas hastes vencendo as grades. Meus olhos sempre se
prendem as mãos dos meninos e as grades e aos descascados nas grades que
denunciam quantas mãos se apertaram a elas. Notam-se as subjetividades. Menino
é menino esteja guardado ou correndo no sol. Como pensar diante de um problema?
Filosofia com meninos que não se rendem a medidas socioeducativas? A
subjetividade desses adolescentes ao adentrar o centro está em grande parte
fortemente atrelada a valores de representação da vida no crime, ostentação, sucesso
no crime, conquista de muito dinheiro e aquisições de bens materiais tais como: tênis,
motos e carros. Esta subjetividade é movida por desejos que estão em conformidade
com a máquina de consumo capitalista, com determinadas formas de ser e pensar,
desejos de posses. A mãe, sempre a mãe, sempre o nome da mãe!
118
Figura 11: mãe
Imagens que dizem também de afinidades com o skate ou com o coringa,
personagem de Stan Lee. Uma imagem que não é plana e que se insere no corpo, o
corpo como superfície de encontro. Superfícies de escrita e transparência, a pele
como uma superfície, como tela do subjetivo deste bando ´di menor´. Fazer ouvir o
invisível.
119
Figura 12: coringa
Encontramos pistas de como fugir de clichês de representação ao olhar
para as imagens destes meninos. Imagens que eles oferecem do próprio corpo em
uma das aulas com a câmera. Gerar imagens comandadas pelo corpo, fluxos que
arrastam todo tipo de coisa, retenções, larvas, germes. Um processo de pensamento,
encontros a população, relação. A pele mais que adorno revela tramas subjetivas que
englobam tanto o campo social, quanto o conjunto de circunstâncias da vida destes
meninos. A pele revela suas marcas, em seus corpos os meninos trazem signos e
símbolos tatuados que os relacionam ao mundo do crime tais como: palhaços, irmãos
metralha, coringa, caveiras, balõezinhos de almas de policiais mortos e
representações dos crimes ou facções as quais estão ligados, desejos expressos em
cifrões no dedo indicador, no dedo que aperta o gatilho e ainda lágrimas negras
tatuadas no rosto. Símbolos que se repetem nas imagens que produziram durante as
oficinas. Balõezinhos com almas de policiais “subindo” depois de serem executados.
120
Figura 13: subiu!
Apreender imagens do pensamento, ver deslizamentos, resistências e
acontecimentos ao produzir imagens acontecimentos. Trabalhamos com imagens que
são um processo de criação e de encontros nas aulas de filosofia, deslizamentos,
resistências e acontecimentos destes meninos. São imagens que eles trazem e
produzem e que se desprendem de narrações de histórias de verdades. São diversos
tipos de entradas nas imagens, percursos, relações e permanências enquanto o
bando, a manada ‘di menor’ passa e traz notícias de outros lugares.
Como vazam as palavras ao serem atravessadas por este coletivo ‘di menor’?
Buscamos caminhos para esta pergunta com a proposta do trabalho com mitos. Esta
escolha deve-se a sua pertinência filosófica e ao interesse demonstrado pelos
meninos. No início de cada aula (que ocorriam em blocos de duas) a leitura em voz
121
alta da Ilíada (poema épico de Homero) em uma versão adaptada para escolas
públicas entretia aos meninos que enfileirados ouviam em quase todas as salas. A
história da guerra de Tróia seguia aula a aula e sempre que entrava um menino novo,
o que era bem recorrente, havia um resumo e prosseguíamos do ponto de parada da
aula anterior. Foram lidas mais de uma centena de páginas. Desta experiência
surgiram comentários sobre “Percy Jackson e o Ladrão de raios”, filme Hollywoodiano
com temática mitológica, ou ainda a história de “Ben Woof” uma lenda nórdica também
transformada em filme blockbuster. Empolgados, eles narravam mitos gregos e de
diversas outras civilizações que já conheciam. As visões poéticas da fundação das
coisas na obra “Uma história quase universal” do escritor uruguaio Eduardo Galeano
(GALEANO, 2008), que foi lida em sala de aula e as falas dos alunos dispararam a
criação de seus próprios mitos.
Mas que mitos ressoam nas mentes deste bando? Que relações dinâmicas
de devir, multiplicidade, expansão carregam suas falas? Estes meninos dobram-se
em mitos. Como “essa dimensão do mito, esse exercício de criar personagens que
assumem um lugar maior” (BOGUE, 2011, p.24) aparece em suas produções? Os
mitos trazem questionamentos sobre a existência e significados da vida, do mundo,
das religiões, das formas de viver e formas de comunicação e expressão. Mas porque
trabalhar com mitos? Mitos dizem muito sobre determinada civilização, cultura ou
grupo humano. Os meninos também criam e inventam seus mitos nos quais ressoam
devires menores.
Histórias que narram um dia de muito calor a milhões de anos atrás, muito
quente mesmo, na época dos dinossauros. Uma época em que caíram pedras de
fogo, uma delas tão grande que criou um vale dos vulcões. Apesar de inesperado,
anos depois volta a ocorrer tamanho evento e então nasce o vulcão maior de todos,
pai de todos os outros. E pronto, eis a fundação do vulcão. Histórias que trazem
desejos, pensamento e entretenimento, gostos de tais como o futebol que é quase
unânime entre os meninos, e que passa por uma refundação mítica tornando-se um
jogo feito por Hades (deus grego do mundo inferior). Ao invés de usar uma bola o jogo
acontecia com um crânio humano! Esta seria a origem do jogo que chega até nós
depois de ser desenvolvido por séculos e séculos.
Devires menores que falam de amizade e bullying quando narram que num
belo dia dois amigos resolveram se encontrar num parque para curtir e relembrar do
passado. Amigos se lembram do bullying que sofriam no tempo de escola. Amigos
122
que após um abraço feliz no parque vão até uma loja de armas comprar um revólver.
Vingança e ódio tem vez nesta história em que o revólver é disparado contra aquele
que praticava o bullying enquanto ele lavava o carro. O velho amigo que tantas marcas
psicológicas tinha por ter sido maltratado chega perto e dispara várias vezes. O corpo
cai perto do bueiro e seu sangue escorre e se mistura à água na estação de
tratamento. Este sangue misturado a água suja dá origem a um monstro horroroso
que passa a ser a sombra a vida do atirador que se vingou. Seria a vingança solução,
seria a vingança um monstro que acompanha quem a executa?
Estes mitos trazem anseios e revelam em que mais se dobram este ‘di
menor’. Trazem histórias de desobediência, castigo e dor nas quais um menino xinga
seu pai, que era um protegido do deus dos animais, e que como castigo é
transformado em um bode. Histórias que explicam o surgimento da Mãe Dináh, uma
espécie de entidade que só pode ser conhecida ao se atravessar vale da morte e em
meio a este percurso seu nome for chamado três vezes. Vingança que consome quem
está preso, vingança que se revela em um mito, em uma lição, uma tarefa.
Os personagens destas produções desafiam e vencem a própria morte ao
renascer de um incêndio tal qual Fênix. O menino do mito renasce depois de ser
linchado e queimado pela comunidade na qual mora, linchado injustamente por
inimigos. Ao renascer este menino traz a marca do fogo e o desejo de vingança.
Ressurreto e implacável o herói mítico traz paz e justiça. Mitos que falam do inferno,
da possibilidade de encontrá-lo ao se cavar o chão, mas que ao mesmo tempo
duvidam quando afirmam que o inferno é aqui na terra. Mitos que falam de desejos e
revelam dobras e mais dobras, imagens e a energia, um desejo de resistência,
complexidade e multiplicidade de forças. Uma imagem que se repete para diferir, para
captar dentro de um rizoma, captar acontecimentos. Uma imagem composta por
escolhas, plano, altura, foco, um recorte feito pelos meninos. Forças que todos os dias
me interrogam de alguma forma: - Senhora? Senhora? Onde que a senhora vai beber
água? No nosso bebedouro? A senhora não tem nojo da gente? Nojo? Forças que
me impelem a desequilibrar modos de ver e pensar. A ter que me preocupar em
produzir imagens sem rosto de meninos sem nome, romper esgotamentos visuais,
mover através do impossível, deixar que as imagens sejam palavra e das palavras
vazem imagem para além dos muros, para além de tudo que as filtrou e separou até
que chegassem aqui.
123
Interessam-nos as forças que movem estas produções e desafiam o usual,
procuramos as possibilidades de absorção de mundos pelas imagens. Filosofia em
aulas acontecimento. Aulas? Na Fundação todas as professoras são chamadas de
senhora. - E a revista, senhora? - Cadê o lápis do menino, senhora? Filosofia
possível? - Cadê o termo de entrada do material, senhora? - Hoje a Casa ‘virou’,
senhora. Depois de rebelião não há aula, todo mundo nos quartos. – Se um dia eu
disser que tem um telefonema para senhora lá fora, a senhora vai atender! Entende?
A senhora vai na hora atender, entende? Não pode ficar não que é um sinal que a
casa vai virar, vai haver rebelião. – Se eu disser para senhora que amanhã a senhora
vai ficar doente, amanhã a senhora não vem. Entendeu senhora?
Aqui abraçamos o terceiro excluído aristotélico e rodopiamos, é não é, é
não é. Em cadeia de criança todo mundo é inocente. Pergunte ao canto, ao vão da
grade, ao beliche de concreto, ao ‘boi’ que esconde só as genitálias e o tronco do
menino que usa a privada em um dos quartos-celas. Pergunte aos ‘funças’ que vigiam
os meninos e seus movimentos e os chamam de ‘monstrinho’: - Monstrinho. Ô
monstrinho! Pergunte aos relatórios. Pergunte a cozinheira que queria servir mais uma
porção de comida para o menino, mas não permitiram. Perguntem ao funcionário, ao
´funça´ que humilhou esta mulher por querer servir mais comida. Pergunte a cadeira
que foi arrebentada na nuca deste ´funça´. Pergunte a colher que foi escondida dentro
do calção do ‘di menor’ devir fuga que cava a parede. Escute os ecos das infâncias
perdidas no tempo, dos ovos de linha de tempo adormecidos, dos esporos de
infâncias dormentes, de infâncias saudosas de um futuro que talvez jamais chegue,
um futuro que já passou, um futuro latente que nunca chegará a ser. Verdades? Eles
já possuem a própria.
124
Fabulações imagéticas
125
“Tô chapando, eita mundo bom de acabar”
(Racionais Mc’s)
126
Figura 14: terror
127
Tempo para pensar ou chapar como diz ‘di menor’ não falta na Fundação
Casa. Muitos dos meninos internos na instituição ao subir para a quadra esportiva,
que fica no alto dos três andares do prédio, preferem andar ao redor dela ao invés de
praticar alguma outra atividade proposta. Os meninos internos cumprem “uma
passagem” - como dizem – e, ao mesmo tempo, percorrem exaustivamente o espaço,
assim como fazem os personagens de Beckett na tele peça “Quad II”. Ambas as cenas
remetem ao esgotamento do espaço e as possibilidades de movimento.
Semelhanças, aproximações, meninos acinzentados percorrem exaustivamente um
espaço num jogo teatral, personagens percorrem exaustivamente um espaço na tele
peça “Quad II” 4 . Se na telepeça quem busca esgotar os movimentos são as
personagens, na realidade são os meninos que permanecem transitando pelos cantos
da quadra. Muito além do cansado que se debate, recusa-se a dormir, alterna estados:
a mão o levanta, a mão o serve, no entanto, o cansado insiste. O esgotado passa por
diferenciações, afastamentos, personagens são criações, os meninos estão
confinados na vida real. Percorrer, esgotar, esgotar os movimentos possíveis.
Quantas voltas são necessárias para não chapar? Quadrado que se repete, ângulos
retos da quadra, da peça, retas das grades, retas do pequeno quadro de sessenta
centímetros por cinquenta que chamamos de lousa. Escrever e apagar tantas vezes
durante uma aula da disciplina de filosofia. ‘di menor’” sem nome, apagamentos. Um
quadro, linhas que se cruzam em grades, hachuras. Palavra que se esgota na tristeza
do gesto: mãos para trás, cabeça baixa, mais uma dobra. Impossibilidades que tiram
a voz. Cansados os meninos andam de um lado para o outro sem parada ou sossego.
Repetem ações e criam padrões de repetição, série de gestos. Esgotamento após
esgotamento, meses de clausura são notados e tingem as peles do mesmo amarelo
das grades. - Eu não aguento mais, eu não aguento mais ficar aqui - esta é uma frase
recorrente.” A limitação esgota os internos de várias maneiras: linguagem, espaço,
palavra, gesto, condições que se excedem ao possível. Mas que o foge a todos os
conceitos do mundo, grades, portas, gestos obrigatórios, ordens que dobram em
outras. Os meninos fogem! Fabulam e criam, imaginam, criam força. São as
“fabulações que levam a “criar “imaginários” resistentes à representação do real,
principalmente da representação, pela inteligência, da inevitabilidade da morte. Desse
4 https://www.youtube.com/watch?v=4ZDRfnICq9M
128
modo, a função fabuladora desempenha um papel social, mas também traz ao
indivíduo, segundo o autor Bergson, um “acréscimo de força” ” (SILVA, 2015, p.131).
Enquanto o menino copia da lousa também se comunica em uma
linguagem de sinais própria com o outro menino, com um “parça” que está do outro
lado da sala, ou em outra unidade da Fundação CASA, olho de águia que vê do prédio
ao lado pela janela, entre as grades. Sempre houve um esforço de movimento frente
a impossibilidade, os meninos resistem e reinventam a vida de muitas formas. Nesta
trilha de resistência e força em conjunto vivemos uma prática de sala de aula como
linha de fuga durante “minha passagem” como professora de filosofia na instituição
Fundação CASA. Uma fuga que ultrapassou ao uniforme, ao coque de cabelo de
cabelo que nos era exigido (para que houvesse menos formas de nos atarem em caso
de rebelião), foge aos pequenos brincos para que nunca se tornassem armas, foge
aos relatórios constantes, as grades e que extravasa o pequeno quadro, que
extravasa o limite e que desencadeia uma metamorfose: convites, encontros, tema,
geração, fluxos de pensamento, acontecimentos dentro das aulas, “talvez a abertura
de um intervalo, um vazio para aquilo que vem sem direção de causa ou de efeito –
puros efeitos – para aquilo que simplesmente nos consome e nos inunda em um devir
ilimitado”. (AMORIM & MARQUES & WUNDER, 2016. p.11).
Em muitas das intervenções e provocações realizadas nas aulas de
filosofia dentro da Fundação CASA optamos por utilizar a máquina fotográfica e entrar
com uma máquina na Fundação significa passar por revista na entrada e na saída
além das usuais revistas nas muitas gaiolas que separam a rua os meninos, significa
obter autorização do corpo pedagógico e também ter as imagens filtradas na entrada
e na saída das casas. As imagens que aqui são apresentadas foram captadas durante
duas das muitas oficinas realizadas, denominadas por nós: Fabulografias e
Aparições. Imagens revistadas após as oficinas de forma a não trazerem nenhum tipo
de identificação ou referência ao menor que as produziu. Alguns postais foram
separados por conterem tentativas de comunicação entre as CASAS, já que as
oficinas ocorriam nas três unidades da Fundação, nas quais eu era professora. E os
meninos sabiam disto.
Nestes encontros trabalhamos com fotografias experimentais em uma
“aposta na imagem como disparadora de pensamentos” (WUNDER, 2015, p.13).
Sempre quisemos dar passagem às visualidades que os meninos trazem consigo,
perceber de dentro, perceber como se dão as relações entre eles, com eles, com o
129
mundo, com a vida. Arriscar e permitir que a força das palavras tome posse de si,
“narrar sem legenda. Criar com a imagem a lenda fabulatória de um mundo que se
abre às forças“ (AMORIM, MARQUES & WUNDER; 2016, p.110). Bailar sobre os
efeitos da escolha de deslocar a visão do trivial e do representacional da fotografia e
desenvolver relações menos ilustrativas. Desejamos uma criação imaginativa tendo
como disparador imagens e propostas de criação, fabulações, potências ficcionais e
forma de expressão. Tratava-se de uma geração de dobras, de vazar da falta de
palavras para dizer de acontecimentos que abalam, que silenciam, para romper
ordens discursivas impostas, silenciamentos impostos. Todas as vezes que a câmera
este presente, eles se fotografaram insistentemente de todos os ângulos possíveis,
pois ver sua própria imagem refletida também é algo raro na instituição.
Mas o que atravessa as grades? Vazam imagens produzidas pelos
meninos em conflito com a lei. As produções que apresentamos representam
potências e uma inserção em um grupo de excluídos da sociedade que trazem
fragmentos, entradas, variações, mudanças e repetições, séries ‘di menor’ e que
expressam a relação entre a filosofia e as artes. Processos que levam ao
reconhecimento da imagem como um processo de pensamento, uma expressão de
potências e sentidos: desenhos, produção de textos que torcem o português oficial,
imagens vivas que os meninos trazem tatuados em seus próprios corpos, energias,
visões, noções. As imagens produzidas são rupturas visuais que pretendem
desequilibrar a ideia de que a fotografia é uma representação do mundo que vemos,
em contraponto produzimos imagens como criadoras de visões, como uma forma de
atuação do pensamento e do corpo e não como captura de olhares. Nosso êxito está
em imagens que foram produzidas para aquém do esgotamento imposto pela
instituição. Esta inspiração nos foi trazida por artistas que ajudam a pensar a produção
de imagens relacionando-as ao conceito de esgotamento, assim o fotógrafo esloveno
Evgen Bavkar.
A criação de Bavkar nasce após dois acidentes aos doze anos de idade
que o levaram a cegueira em um período de oito meses, após o esgotamento da
possibilidade de ver, ao menos com os olhos. Ainda que fotografia e visão de um
modo geral refiram-se uma a outra parecendo inseparáveis, quando falamos de
captura de imagens Bavkar provoca a quebra. Ele reposiciona a fotografia não mais
como um exercício do olhar e sim como uma visão do pensamento. Muito além de
meros prolongamentos dos olhos, Bavkar cego nos leva a ver suas fabulações que
130
desequilibram a ideia da fotografia como representação. Suas obras nos aproximam
da ideia da fotografia como uma criadora de visões, não se trata mais de expressão
de uma realidade ou uma verdade do nosso tempo. Trata-se de experiência, de
exploração da potência da imagem, de um modo de atuar sobre o pensamento
produzindo novas visualidades. A luz se envereda por experimentações de interação
e criação. Não é mais o olho que vê, o olho que fotografa, e sim o corpo, a imaginação.
Cego ele nos leva a ver suas fabulações, tornar visíveis forças invisíveis e pensa por
meio da experimentação fotográfica.
‘Di menor’ traz possíveis cruzamentos entre uma prática de sala de aula e
a produção artística coletiva. Acontecimentos criativos que captam e inventam. A
criação imagética e textual dentro da Fundação sempre foi imaginativa e partiu de
fabulações, partiu de inspirações e de esgotamentos diversos: espaciais devido a
arquitetura, limitação de materiais que poderiam entrar na sala de aula, proibição de
retirada de imagens com o rosto dos meninos ou com algum conteúdo considerado
impróprio (sendo necessária uma revista da memória da câmera na entrada e na
saída), tempo de aula, revistas obrigatórias na entrada e saída do centro, rebeliões,
dentre outros. Criar partindo de esgotamentos diversos, tempo de aula, revistas
obrigatórias, rebeliões, dentre outros. No confinamento da instituição tempo é o que
mais se têm, tempo é o que menos se tem. Uma aula é de cinquenta minutos, porém
a contagem de materiais e procedimentos de revista na entrada e na saída da unidade
fazem com que o tempo efetivo seja bem menor.
Dentro da Fundação Casa o trabalho desenvolvido mostrou que os
meninos estavam abertos e que davam respostas diversas, intensas, conectáveis a
tantas outras coisas dentro de uma máquina de enunciados. Mobilizar pensamentos
nas salas de aula foi o que orientou a prática em educação e a realização de oficinas
imagéticas, textual e fotográfica como ferramenta de sensibilização, reflexão e
criação. Entrar com a máquina fotográfica, sair com as imagens, uma inspeção a mais
dentre tantas outras diárias, verificação do conteúdo que sai e entra. Permissão ou
não dos fluxos de entrada e saída destas imagens. São expressos sentidos nestas
imagens e palavras produzidas, sentidos que passam pelas grades.
Eparrey Iansã! Pelas grades passa o vento. Ventos de Iansã, ventos do
Fabulografias, ar, ares que ventam em diversos espaços diferentes, Áfricas de muitos
portos, de muitas cores. Fabulografias entrando com tambores, imagens e sons para
uma maioria da população das CASAS que é negra (meninos negros em sua maioria
131
que foram apreendidos por policiais negros) agora num encontro com o “Coletivo
Fabulografias” que se articula com Núcleo de Leitura da Associação de Leitura do
Brasil ALB (FAEPEX -2013) e o Projeto Fabulografias em áfricas-cartões-postais
(Faculdade de Educação - Unicamp - FAEPEX - 2011) tendo como coordenadora a
Profa. Dra. Alik Wunder. Neste projeto, que participei por cinco anos, criamos postais
sonoros e imagéticos impulsionados pela pergunta disparadora: “Que Áfricas ventam
por você? ” Este coletivo realiza saraus em escolas públicas, praças, encontros, com
grupos de cultura popular, artistas, professores, estudantes secundaristas e
universitários, mestres griôs, dentre outros. Imagens experimentais inspiradas pela
teoria do filósofo Gilles Deleuze e por devires africanos movimentados pela pergunta
disparadora: que África venta por você?
Fabulografias são imagens e palavras que muito além de criar subvertem
o olhar, são “modos de pensar com as imagens menos como representação de um
mundo“ (WUNDER, 2015, p.14) e mais como experimentação. O Coletivo
Fabulografias promoveu encontros de criação dentro da Fundação CASA utilizando a
palavra e o silêncio. Um processo de criação coletiva de invenção, experiência,
criação e desejos. Respeito, mesmo que o evangélico não tenha participado, falar de
devires africanos não foi um problema. Respeito: - Esta oficina é muito legal, sempre
trazem as mesmas coisas para gente, queremos ver coisas diferentes. Respeito e
ecoar de tambores dentro do prédio. Em muitos lugares e momentos o Coletivo
Fabulografias se deparou com o intolerável, muitas vezes devires africanos nos
levaram a questão do preconceito. Se em um primeiro momento eram as mãos de tia
Nice, figura campineira que nos narrou muitos dos preconceitos raciais que viveu que
expunham feridas, neste encontro com os jovens da Fundação CASA nos choca a
juventude confinada. Em manipulações digitais, repetições e composições de postais
que se dobraram em outras e outras… O que se repete e o que se diferencia? A
oficina do Fabulografias colocou muitos sorrisos em rostos sisudos e nesta hora podia-
se notar que eram meninos extremamente empolgados com a proposta de criação de
sons através de instrumentos musicais e também de imagens. “ Isto é diferente,
sempre nos mostram as mesmas coisas” – disse um deles: - sempre rap e hip hop.
132
Figura 15: Separa - Fabulografias
133
Figura 16: vazamentos - Fabulografias
134
Entradas em imagens e percursos, imagens que estabelecem, superfícies
de passagem, rasuras de outros lugares, imagens que oferecemos e que vieram de
outras oficinas feitas antes. Apostas de rasuras nas imagens, raspagens nas imagens
que trouxemos. Uma materialidade que a fotografias traz, o menino que pica
milimetricamente uma imagem que já percorreu muitos mundos, uma imagem que
atravessou oceanos de luz, que já atravessou mares e foi criada por muitas mãos. O
Coletivo Fabulografias sempre trabalhou assim, nas imagens fabuladas, durante a
realização das oficinas aprendi que uma pergunta pode gerar muitos fluxos, todos
diversos que se misturam e sem cruzam em malhas, tecidos vivos de uma trama que
diz do que podem ser uma Áfricas pensadas. Criações de imagens pensamentos que
muitas vezes se ancoram nas sensações, que fogem de clichês de representação e
arrastam tantas coisas, larvas, germes, ovos de futuros perdidos, um processo de
“fabulação que se dá na relação “ (DELEUZE, 2007, p.1). São convites feitos antes a
tantos grupos e feitos novamente agora, convites a uma caminhada imagética não
imposta, produções de sopros, de ventos do Fabulografias que se dobra em muitos,
devir oficina, um banquete de imagens e silêncio para esta degustação de poesias,
autores africanos e imagens. Composições de tantas oficinas movidas pela pergunta:
“’Que África venta por você?”. Esta pergunta aberta em roda dentro da Fundação
CASA permite algo que nunca eu havia presenciado: tambores que ecoam no silêncio.
O afastamento físico que o prédio possui do resto da cidade impõe outros sons: fala-
se baixo, o alto incomoda, murmura-se, gesticula-se palavras, uma rotina do som. Mas
naquele momento isto quebra-se e o tambor ecoa por todo o prédio, os meninos quase
sempre sisudos sorriem e entreolham-se. São instantes de criação, o direito
concedido de se picar, de rabiscar. Toca o tambor menino, toca. Quebra o silêncio! –
penso! . “Que Áfricas ventam por você?”. Fabulografias moveu desejos e expressões
das subjetividades dos meninos. Será que ela sofre?
Quanto sofrimento cabe em uma folha de papel?
135
Figura 17: Sofrimento -acervo Fabulografias
Quanto sofrimento cabe em um menino privado de sua família, privado de
sua comunidade, sonhos, liberdade, desejos, vontade? Quanto sofrimento cabe na
noite escura em um beliche de concreto com o vento gelado passando entre as
frestas? Será que ela sofre? Eles sofrem tenho certeza. Sei que sofrem quando vejo
‘di menor’ cego de um olho por ter apanhado da polícia. Sei que sofrem quando um
menino pede para tocar meu ventre arredondado pela gravidez, sei que sofre quando
diz que acha tão bonita uma mulher grávida e tem mais de dois anos que não vê uma.
Sei que sofrem quando este mesmo menino já pai relata como é difícil saber que seu
filho agora cresce sem vê-lo em uma cidade longe dali. Sei de tudo isto quando um
menino relata que nunca recebe visitas, pois a família não tem pouso em Campinas e
o tempo de vinda de sua cidade não permite que venham vê-lo. Ah! Como sei que
136
sofrem quando um me diz que sua tia trabalha no Canadá de empregada doméstica
e quer levá-lo para lá em busca de uma vida melhor, mas muitos dizem que isto não
é para ele. Sei também que ninguém para de sofrer ao ser chamado de monstrinho
quotidianamente ou ainda ao ser obrigado a assumir o crime de alguém que é maior
de dezoito anos.
Se ela sofre também não sei, mas ela dança livremente.
Trabalhar com as imagens meticulosamente como nunca vimos em tantas
oficinas realizadas, possibilidades de rasuras, de amassar as fotografias, de rasgá-las
de remontá-las ao seu gosto. Picar a imagem, reconstruí-la, rasurá-la, riscá-la.
Quantas impossibilidades transpostas nestes gestos dentro da instituição.
Possibilidades de expressar pensamentos confinados, de fazer música, de assumir-
se como pertencente a uma religião de matriz africana. Pensamentos sobre o mundo
lá fora e as coisas que ele possui. Quantas vezes não ouvi deles quanta falta faz uma
terra, uma árvore, umas folhas.
Escolhas, montagens, reedições, poesias e sons. Produção de novas
imagens que compõem o velho com o novo, compõem a rua com a liberdade, a
simplicidade com a poesia, com lembranças que ardem como fogo, que permanecem
dentro na imensidão das horas que a solidão do confinamento devora. Declarações
de amor a liberdade e de amor ao próximo
137
Figura 18: não- acervo Fabulografias
138
Figura 19: Composição acervo Fabulografias
139
Figura 20: celular- Fabulografias 1
140
Figura 21: Nil Senna – acervo Fabulografias
141
E belezuras nos encontros com as imagens da cantante Nil Senna
produzidas também durante as oficinas do Fabulografias. Voltas, hachuras e linhas.
Beleza e destreza que dão vida ao papel contornado pelas mãos habilidosas do
menino. Dar corpo a um rosto, extravasar a fotografia. Levamos caneta, papel, um
postal e a sensação que fica é que seria possível partindo dali que ele desenhasse o
mundo. Texturas, linhas que dançam no papel e que criam novas visões, mais uma vez
a fotografia que não representa, mas que cria, que inventa e que nos leva para longe
das grades.
Impossível que cede na dobra, no vão. ‘di menor’” costura a imagem. Seria
fácil desistir, mas ele resiste e reinventa a vida com papel e tinta, borda a imagem. E
ressignifica este espaço tempo, ressignifica o fato de estar trancafiado. Trabalhar com
fotografia em um local onde não se pode manter a imagem, nem ver sua imagem,
desenhar no impossível, criar um mundo para além das grades, retas, gretas,
percorrer trilhas, acontecimento. Hastes vencendo as grades. Grades que são beleza,
grades que dão corpo ao perfil. Grades moventes, insubmissas, uma curva, algo que
distrai os olhos, beleza em meio a dor, arte.
Encontramos resistência. Palavras que crescem em gretas, que escapam
em meio ao silêncio, poesia. Desejos de sons e cores, desejos de liberdade. Músicas
que trazem reflexões sobre frustação, revolução, luta, ética e tantas outras coisas nos
versos do rap dos Racionais, aliás coisa impressionante. Quase todos os meninos
conhecem o álbum “ vida loka” de cor e expressam em escritos.
142
Figura 22: Poema – acervo Fabulografias
143
Figura 23: Poema 2 – acervo Fabulografias
Trazem possibilidades de rasuras. Discussões sobre o preconceito com as
religiões de matrizes africanas. Muito pode uma imagem em sua complexidade e
multiplicação de forças, pode provocar debates e enfrentamentos assim foi com o
menino evangélico que não participou da oficina, mas que respeitou aquele momento.
144
Figura 24: demônio? - Fabulografias
145
As imagens foram devolvidas aos meninos para conhecê-las e também
foram disponibilizadas para que pudessem leva-las no momento da liberdade. Muitos
foram os encontros em superfícies e meios assim como trazem os escritos dos postais
do Coletivo Fabulografias que circulou pelas unidades e que foram apreendidos e
retirados de circulação diversas vezes. As trocas realizadas no intercâmbio destas
produções geraram estancamentos que destacam uma grafia própria em mensagens
que nunca chegaram, versos de postais, mensagens filtradas. Uma grafia marginal
que se repete é se dobra em mais uma e pode ser vista nas mensagens aqui
represadas. São muitas alcunhas, muito ‘salves’, muitas mensagens que desejam
força e fortalecimento. Mas que também comunicam sobre situações dentro da casa
Figura 25: Verso 1- Fabulografias
146
como a utilização de drogas, planos de fuga ou de rebelião. O motivo da filtragem
deste material se refere a segurança de todos e era um procedimento padrão. A
equipe da
Fundação sempre recebeu com entusiasmo e boa vontade as ações
propostas dentro das aulas fazendo com que o trabalho pudesse ser realizado da
melhor maneira possível em condições tão adversas. Após esta produção de imagens
foi feita uma seleção pela instituição de quais delas poderiam sair de lá. Algumas
passaram, muitas ficaram. O olhar institucional filtra tudo o que pode ser considerado
como apologia ao crime ou ligações com facções criminosas: gueixas, carpas,
palhaços, balõezinhos com almas mortas de policiais, armas, o número quinze
(atrelado ao PCC - Primeiro Comando da Capital – facção criminosa). O olhar
institucional filtra pelos olhos do funcionário que vê, recorta e colhe, retira e separa.
Figura 26: salve
147
Figura 27: verso 2 - Fabulografias
Fabulações provocadas por perguntas dentro das aulas sempre nos moveram
a pensar e nos levaram a fuga e ao transbordamento daquilo que era represado pela
instituição, nos propiciaram transpor o possível e chegar ao impossível: a realização
de movimento mesmo frente a tantas adversidades. Uma outra pergunta geradora de
fabulação que nos moveu durante as criações veio de uma proposta feita pelo Labjor
(Laboratório de Jornalismo da Unicamp) para a realização de uma intervenção
artística no MIS (Museu da Imagem e do Som) de Campinas, durante a ocupação
Aparições em 2015. E se uma enchente submergisse uma cidade? E se esta enchente
ao baixar revelasse uma cidade totalmente nova? Que enchentes transbordam em
imagens? Quais cidades este acontecimento criativo capta e inventa? Que cidades
são fabuladas? Que ressonâncias fazem com estas jovens experiências de vida em
reclusão, com suas trajetórias, com sua imaginação e subjetividade? O que nos
mostra esta nova cidade quando a água baixa?’
148
Figura 28 Aparições
149
Figura 29 cidade
150
Desta cidade nova também surgem mulheres que sorriem, seriam anúncios
de braços que os esperam do lado de fora das grades? Falta de liberdade, falta da
família, lembranças, desejos de quem ficou com a namorada ou esposa do outro lado
do muro, tristeza e revolta.
‘Di menor’” traz trechos de músicas do grupo Racionais MC’s: ”onde estiver,
seja lá como for tenha fé porque até no lixão nasce flor”, esperança e dor. Palavras
movidas por experiências de vida e que inundam as folhas e escorrem sangue e
lágrimas.
Figura 30: Mulheres
151
Figura 31: lixão 1
152
Figura 32: palafita
153
Marcas que esta vida marginal traz. Quantos sentidos ocultos existem
nestas imagens? Em mais um desenho a cidade que emergiu da pergunta disparadora
desta oficina se dobra em outra e traz violência. Viaturas de polícia capotadas,
pessoas em fuga, assaltos. E em ainda outro novamente a cidade se dobra: - Minha
casa quero bem longe da água - anuncia o desenho da palafita de outro deles.
Experimentações que se enveredam em apostas do próprio ato de fotografar,
encontros com imagens que eles trouxeram, compuseram, inventaram e criaram.
Espaços tempos que se dobram e se desdobram em criações. Após a saída as
imagens passaram por intervenções digitais e foi oferecida a exposição dentro do MIS
(Museu da Imagem e do Som) da cidade de Campinas. Como devolutiva expusemos
as imagens dentro da instituição para que os meninos e suas famílias pudessem ver
quando os visitassem. E esta nova cidade criada pelos menores que desta forma se
dobra em outra ainda. Os meninos puderam ver, mas nunca puderam ficar com elas
em seu quarto-cela, pois não é permitido. Muitas coisas são impossíveis na instituição.
154
Considerações finais:
Este duplo conceito ‘di menor’ que apresentamos ao longo desta
dissertação traz em si uma dinâmica de relação com as imagens, poesias, a sala de
aula, a cidade e a fotografia. Constituímos nosso pensamento sobre este ‘di menor’
partindo da literatura menor de Kafka assim como a leem Deleuze e Guattari, partindo
da prática docente, andanças pelo centro da cidade de Campinas e pelas leituras da
filosofia da diferença. Esta dupla expansão do conceito ‘di menor’ atravessa os dois
territórios desta pesquisa e nos ajuda a pensar nestes grupos em exclusão.
Trouxemos aqui uma ruptura, um fluxo, uma passagem de um trabalho coletivo que
escapa a instituição e a miséria e apresenta uma literatura menor na medida que traz
as vozes de pessoas excluídas pelas dinâmicas da pobreza. São possibilidades de
uma criação coletiva com literatura e fotografia. Imagens e palavras que falam
diretamente dos escombros de uma sociedade, potências inventivas movidas pela
menoridade que nos trazem estas pessoas. Também nos moveu e ainda nos
move um desejo de entranhar-se em existências mínimas, em vidas que tem sua
existência questionada. Um desejo de deambular cartograficamente neste vão que é
a cidade com seus tantos fulanos, sicranos e beltranos, vontades de voltar à névoa
destas falas, e a linguagem não figurativa que elas trazem. São falas e lugares que
são eminentemente políticos. Nesta dissertação ‘di menor’ emaranha a vida e a prática
docente dentro da instituição ao trazer enunciações coletivas e ao compor com estas
vozes dos meninos. Convivemos e ouvimos vidas que reinventam modos de existir na
medida que persistem, são tantas limitações que a pobreza e a exclusão social
impõem, são tantas as formas de coação do estado na busca de um corpo dócil, mas
‘di menor’ é bicho solto. Se por um lado suas subjetividades são atravessadas por
inúmeras forças, por outro compõem com elas. São anúncios de morte e vida que
esses meninos nos trazem em suas obras, anúncios de resistência e reinvenção da
vida nas cidades, nos grandes centros. Novas formas de viver e resistir. Forças destas
imagens que arrastam, este possível que vaza pelas gretas das grades, dos bueiros,
extrapola todos os impossíveis e permite que sejam realizados movimentos, que
permite filosofar neste impossível. Seria este o vão? São tantos os questionamentos.
O ensinamento de filosofia curricular5 buscaria a transmissão de forma organizada e
55 FINI, Maria Inês . Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Filosofia São Paulo: 2008.
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metódica de certo corpus de conhecimento construído ao longo da história, mas esta
não foi nossa aposta. Partimos de imagens e palavras para provocar o
questionamento, o encantamento, a criação de uma linha de partilha junto a esta
multidão ‘di menor’. Das imagens criadas vazam escolhas, fotografias experimentais
reveladoras, provocativas, imagens testemunhas destas subjetividades, também
convites a reflexões sobre este território habitado pelas aulas de filosofia. Fazem-se
dobras, formas de captar os acontecimentos não no sentido de imortalizar momentos,
mas de revelar instantes tênues antes que a imagem se desfaça. Experimentações
que se enveredam em apostas do próprio ato de fotografar, encontros com imagens
que eles trouxeram, compuseram, inventaram e criaram. Espaços tempos de criação,
devir água, inundação, devir vento, forças da natureza que transbordam em uma
poética dos elementos. Dentro de uma estrutura panóptica cerceada, limitadora,
detentora dos corpos, um desejo de um corpo dócil em encontro com uma enchente
e uma ventania. O que passa pelas grades da Fundação CASA? Passam fotografias,
rupturas visuais e relações menos representativas, imagens de resistência que
possuem desejos e que são complexidades de forças que se efetuam, que fissuram a
normalidade. São visões de quem muito moço já ultrapassou o limite da vida, palavras
e imagens indomáveis que sequestram o ar, um manifesto deste grupo minoritário.
Vidas que estão por um fio e que cotidianamente convivem com a morte e a destruição
que cada vez mais os atira à vida.
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