Dialogos Agroecologicos Completo eBook

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DILOGOS AGROECOLGICOSConhecimento Cientfico e Tradicional na Conservao da Agrobiodiversidade no Rio Cuieiras (Amaznia Central)

Convnio 076/2006, Projeto etnobotnico e manejo florestal no entorno de Anavilhanas

Manaus, 2009

IPE - Instituto de Pesquisas Ecologicas Copyright 2009 Todos os direitos reservados. Organizadores Thiago Mota Cardoso Mariana Gama Semeghini Capa, projeto grfico, diagramao e produo ttema Design Editorial www.attema.com.br Ilustraes

Ana Luiza MelgacoFicha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia

D536

Dilogos agroecolgicos: conhecimentos cientfico e tradicional na conservao da agrobiodiversidade no rio Cuieiras (Amaznia Central) / [Organizadores: Thiago Mota Cardoso, Mariana Gama Semeghini; ilustraes Ana Luiza Melgaco].---Manaus : Instituto de Pesquisas Ecolgicas, 2009. 160 p. : il. Este livro apresenta resultados de pesquisas/dilogos entre pesquisadores e educadores do projeto ETNO Isbn: 978-85-86838-02-6 1. Conservao da natureza Amaznia. 2. Etnobotnica. 3. Agroecologia. 4. Povos tradicionais. 5. Agrobiodiversidade. I. Cardoso, Thiago Mota II. Semeghini, Mariana Gama. III. Melgaco, Ana Luiza. CDD 19. ed. 581.61098111

Rua Barroso, 355, 2 andar, salas G/H Centro CEP 69.010-050 Manaus AM Brasil Tel.: 55 (92) 3622.1312 Tel./Fax: 55 (92) 3633.3637 [email protected]

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SumrioApresentao ................................................................................. 04 Agradecimentos ............................................................................ 06 Introduo: Um convite ao tema.......................................... 07O Rio Cuieiras: Os habitantes e seu ambiente........................18

Mariana Gama Semeghini Thiago Mota Cardoso Thiago Mota Cardoso

A Roa ......................................................................................40 Os quintais agroflorestais ....................................................... 55

Caroline de Oliveira Bruno Scarazatti

Plantas cultivadas .................................................................... 71

Thiago Mota CardosoA floresta: Usos e Significados ............................................... 83

Marilena Altenfelder de Arruda Campos Leonardo Pereira Kurihara Mariana Gama Semeghini

Educao agroecolgica e socioambiental........................... 97 Oficina agroflorestal ............................................................. 108

Marcio Menezes Jailton Cavalcanti Mariana Gama Semeghini Leonardo Pereira Kurihara Thiago Mota Cardoso

Meliponicultura: Uma ferramenta de educao socioambiental ............................................... 125

Leonardo Pereira Kurihara Consideraes Finais .................................................................. 133 Bibliografia Consultada ............................................................ 139 Currculos dos autores ............................................................ 146

Dilogos Agroecolgicos

ApresentaoO rio Cuieiras habitado por populaes tradicionais e indgenas que vivem do extrativismo, da caa, da pesca, da agricultura, do turismo e artesanato. A rea insere-se em um mosaico de unidades de conservao, no baixo rio Negro, de extrema importncia para conservao da biodiversidade. Porm , pouco valor foi dado por gestores das reas protegidas e cientistas populao humana que habita a regio e manejam os ecossistemas. Valor no sentido humano, cultural e tambm no sentido de considera-los como protagonistas e sujeitos que possam ter interesses na conservao da biodiversidade. No incio de 2005, encaminhamos o projeto Etnobotnica e Manejo Agroflorestal no Entorno da Estao Ecolgica de Anavilhanas (ETNO) ao Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), projeto aprovado e que teve inicio em dezembro do mesmo ano (Convnio 076/2005). O projeto teve como objetivos: i) Obter e gerir informaes sobre o conhecimento etnobotnico das comunidades ribeirinhas, visando a aplic-las ao manejo sustentvel da paisagem; ii) Desenvolver alternativa agroflorestal, considerando as dimenses sociais, ecolgicas e econmicas das comunidades envolvidas; iii) Incentivar o envolvimento e organizao social, desenvolvendo as bases sociais para o manejo da paisagem; iv) Viabilizar o acesso da informao, capacitao e educao ambiental de forma participativa e com perspectiva de gnero. O projeto est em sua fase final, o que no significa trmino, mas sim o fim de uma etapa para novos caminhos se abrirem. Durante sua execuo, o projeto ETNO desdobrou-se dois caminhos de atuao: um atravs da assessoria aos grupos de mulheres agricultoras e artess de So Sebastio e Nova Cana (Coana) e outro na assessoria e apoio a praticas agricolas e artisticas da comunidade4

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indigena Nova Esperana, dentre outras aes que se integram. Estas duas linhas de atuao fazem parte do projeto Agrobiodiversidade que abre uma nova etapa de atuao do IP na regio. A continuidade das atividades j conta com apoio do SEBRAE, do Programa Demonstrativo para Povos Indigenas (Pdpi), projeto Corredores Ecolgicos e do rcem aprovado Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (Mda), o que em si, j demonstra a importncia e a qualidade dos resutlados do projeto ETNO no contexto local e amaznico. Este livro apresenta resultados de pesquisas/dilogos entre pesquisadores e educadores do projeto ETNO, de forma a apresentar os sistemas agrcolas do rio Cuieiras e como, diante de tais conhecimentos, os tcnicos definiram suas metodologias para atuar em campo. Este trabalho, portanto, caminha no campo da etnoecologia e da pesquisa-ao agroecolgica, sendo uma viso dos tcnicos sobre este processo. A escrita se desenvolve entre a linguagem tcnica e a no-formal de modo a possibilitar sua leitura por um pblico mais amplo. Boa leitura! Organizadores

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AgradecimentosAos moradores do rio Cuieiras, por nos receberem com tamanho carinho em suas casas, fazendo-nos compreender que no dilogo olho-a-olho, na relao sincera e no saber-fazer cotidiano que bons caminhos so trilhados. Importante para os que trilham na esperana da sustentabilidade. s organizaes parceiras, um agradecimento sincero, por possibilitarem estas vivncias e acreditarem nas potencialidades dos projetos locais. Em especial, ao nosso financiador o Fundo Nacional do Meio Ambiente (Fnma) e a Simone Gallego da gerncia de projetos, por nos acompanhar nesta jornada. s comunidades de So Sebastio, Trs Unidos, Nova Cana/Coana, Nova Esperana, Boa Esperana e Barreirinhas. Ao Grupo de Pesquisas em Abelhas, ao Laboratrio de Etnoepidemiologia e Etnoecologia Indgena do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia (INPA), ao Arboreto/ UFAC e aos pesquisadores do Pacta. Gislene Carvalho do Grupo de Pesquisas de Abelhas (GPA/Inpa). A todos os queridos membros do IP. Ao Rafael Illenseer, Oscar Sarcinelli, Sarita de Moura, Marco Antonio, Nailza Pereira, Christina Tofoli, Jefferson Barros, Sherre Nelson, Eduardo Badialli, Hercules Quelu e Francisco (Chiquinho), membros do IP no Rio Negro.

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Introduo: um convite ao tema

Thiago Mota Cardoso

Cronistas, viajantes, naturalistas, literrios das mais diversas vertentes e, mais recentemente, cientistas e polticos empreenderam descries da Amaznia e dos amazonidas recheadas de mitos e de construes tericas preconceituosas. Tais descries inserem os nativos no patamar da natureza (dentro da viso ocidental que separa e hierarquiza as categorias de natureza e cultura), ao lado de animais e plantas, tidos, nesta perspectiva, como seres primitivos e selvagens, objetos passveis de dominao e explorao. Alm de enxergarem esta vasta regio com o olhar homogenizador e biologizante, os colonizadores fizeram de sua viso uma forma de ocupao do espao, apropriao dos recursos e de controle das mentes e corpos nativos presentes desde pocas pr-colombianas. A estratgia consciente e inconsciente do colonizador era e permanece sendo a de desfigurar, desvalorizar e, em ltima instncia, tornar invisvel estes povos, enquanto sujeitos sociais portadores de territrios, economias, organizao social, conhecimentos e direitos prprios e particulares afim de melhor empreender a dominao e explorao dos espaos e recursos (naturais e humanos)1. O projeto consistia em eliminar a diversidade existente em prol de um sistema social-econmico-poltico homogneo em favor do Estado, da Igreja e da apropriao mercantil da natureza. Percebemos isto na escravizao e extermnio impiedoso dos povos indgenas e nos diversos ciclos econmicos do extrativismo e agricultura colonial.1 Inmeros autores realizaram trabalhos crticos sobre este tema, ver Porto-Goncalves (2001), Godim (2007) e Almeida (2008).

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Atualmente, o projeto colonizador tenta desqualificar e invisibilizar os povos tradicionais amaznicos e seus parceiros (ambientalistas e indigenistas) de forma a fazer avanar a agricultura convencional, a pecuria e demais tipos de explorao predatria dos recursos. Tal empreendimento conta com apoio de parte do Estado, que, alm de financiar o projeto, proporciona infraestrutura fsica, jurdica, poltica e ideolgica, justificando-o como a nica forma de desenvolvimento para a regio, bem como um modo de tirar a Amaznia do suposto vazio demogrfico, subdesenvolvimento, atraso e primitivismo, assim, eliminando as diversas formas de ver o mundo (cosmologias) e de caminhar rumo a outros tipos de desenvolvimento. Propondo bloquear a expansiva destruio do capital natural da Amaznia, grupos ambientalistas trataram primeiramente de indicar como principal agente destruidor o modelo de vida agrcola e extrativista das populaes locais, defendendo a ideia da incompatibilidade entre as sociedades humanas e as florestas tropicais. Outros grupos enxergam estes povos como parceiros na conservao, porm creem que os mesmos, por no possurem conhecimentos adequados, devem ser guiados a adotarem tcnicas e conhecimentos supostamente mais viveis ao ambiente local. Uma terceira vertente, socioambientalista e indigenista, enxerga os amazonidas como pessoas que vivem em harmonia com a natureza, como parte dela. Estas vises de mundo, apesar de terem um carter mais positivo, convergem com as dos antepassados colonizadores, os quais no concebiam o outro como sujeito social ativo, construtor de suas realidades, portadores de contradies, mas, sim, como elementos inertes, passivos e sem sujeio histrica. Ainda neste campo, a agroecologia, concebida como alternativa e como uma cincia capaz de se contrapor agricultura monocultural, prope uma transio agroecologica, que8

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seria a mudana de um estgio mais insustentvel para um mais sustentvel no campo, envolvendo transformaes tecnolgicas e adoo de prticas mais racionais. A agroecologia corresponde a um avano na forma de se tratar o uso dos solos e o contexto socioeconmico tendo em vista a sustentabilidade, porm, ao se aplicar sem o devido dilogo e entendimento do contexto dos povos tradicionais, os extensionistas podem gerar uma srie de inconvenientes. De certo modo, muitos agroeclogos invisibilizam e desvalorizam o saber e saber-fazer dos agricultores tradicionais. Desta forma, sem intenes negativas, muitos agroeclogos propem a substituio tecnolgica no sentido de modernizar os sistemas agrcolas tradicionais, assim, visando transio agroecolgica, como exemplo, os sistemas agroflorestais, mecanizao, criao racional de abelhas e peixes e acesso irrestrito economia de mercado. Quando existe a proposta de dilogo entre saberes, a agroecologia d primazia ao saber cientfico, capturando parte/ fragmento do saber tradicional til, preocupado mais com o contedo do que com a forma deste saber, e deixa de perceber o conhecimento tradicional em sua inteireza e profundidade. Esta crtica no objetiva negar o valor da agroecologia como alternativa aos modelos dominantes, pelo contrrio, buscamos trabalhar tendo em vista a construo de uma agroecologia amaznica para conservao da biodiversidade e valorizao da sociodiversidade, ampliando nossa viso com novos conceitos. No seriam tambm os sistemas agrcolas dos povos tradicionais componentes dos tipos de agricultura ecolgica-alternativa que precisam ter investimentos srios? A monocultura da mente2 em detrimento da diversidade de formas de ver e acessar o mundo um empreendimento violento2 Ver Shiva (2003).

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que vem sendo implantado, de forma no to pacfica, mas gerando resistncias. O desenvolvimento tcnico-cientfico aprofundou e alargou tal avano monocultural para alm das fronteiras. Segundo Shiva (2003), os fatores que levam perda de diversidade e dos saberes tradicionais estariam ligados ao modo como a cincia ocidental disseminada: ela desconsidera todo conhecimento tradicional local. De todo modo, a cincia disseminada de uma forma que no leva em conta os conhecimentos tradicionais e atua como se eles no tivessem nenhum valor epistmico. Tornando os saberes locais invisveis, as cincias invadem como se fossem o nico conhecimento disponvel. Para a autora, os conceitos das cincias so frequentemente tomados de uma civilizao que no se relaciona com a natureza de um modo sustentvel, desta forma, a sociedade ocidental com sua cincia reducionista trabalha a servio das indstrias,[...] produz monoculturas insustentveis na natureza e na sociedade. No h lugar para o pequeno, para o insignificante. Diversidade orgnica substituda por atomismo fragmentado e uniformidade. A diversidade ento [...] deve ser manejada de fora, pois ela no pode mais se auto-regular e autogovernar. Aquilo que no couber na uniformidade deve ser declarado inapto (Shiva, 2003).

O desrespeito s culturas tradicionais e os impactos diversidade biolgica parecem estar intimamente ligados. Na medida em que o sistema econmico dominante no valoriza as diversidades socioambientais, uma minoria passa a ditar as regras em um processo que contribui para concentrar os conhecimentos, os recursos e o poder. So inmeras as consequncias perversas de tal modelo. Para este livro ateremo-nos a uma proposta de dilogo intercultural, com a finalidade de caminharmos para a conservao da diversidade biolgica nos agroecossistemas, tendo como pressupostos a simetria10

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de valor e a diferena de forma entre os saberes cientficos e tradicionais no campo da agroecologia. *** Vrios estudos apontam para a ideia da persistncia de sistemas agrcolas tradicionais ancorados na diversidade ecolgica e gentica e integrados, desse modo, formando mosaicos a outros espaos florestais, cujo processo de diversificao tambm fruto da intencionalidade dos agricultores e agricultoras. Esta construo intencional da diversidade resulta de uma dinmica interativa entre elementos socioculturais e bioecolgicos especficos de cada lugar, como bem colocou Emperaire (2005), as espcies e as variedades cultivadas so,[...] objetos biolgicos que atendem a critrios culturais de produo, de denominao e de circulao, em constante interao com as sociedades e os indivduos que os produzem e os modelam. So objetos cuja existncia se insere em tempos e em espaos definidos por exigncias biolgicas, mas que so tambm parte da vida cotidiana e constantemente readaptados a um contexto ecolgico, econmico e sociocultural.

A construo da agrobiodiversidade tem o sentido ativo de gerao, amplificao e manuteno da diversidade e, portanto, o seu manejo associa as populaes indgenas e caboclas ao papel de mantenedoras e geradoras da diversidade de plantas. Este processo nativo de conservao da agrobiodiversidade e os saberes associados se apoiariam nas dinmicas espao-temporais dos agroecossistemas, em um continuum roa-capoeira-floresta-quintais. Entende-se, tambm, que a construo da agrobiodiversidade est assentada em processos mais amplos de uma construo social da natureza (DESCOLA; PLSSON, 1996), em que os indgenas, ao infligirem uma perturbao na paisagem, buscariam dar condies para o pleno desenvolvimento e crescimento de plantas,11

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com a perpetuao de relaes do tipo social/espiritual e no de sujeito/objeto. Um exemplo destas relaes pode ser visto entre as agricultoras indgenas do rio Cuieiras e as mandiocas e roas, especificamente com a me da roa. Uma entidade, ao mesmo tempo, material e espiritual que determina relaes, pensamentos e sentimentos na prtica agrcola. As perdas da agrobiodiversidade3 e de conhecimentos revestem-se de importncia especial no caso da Amaznia, onde se localizam importantes focos de diversificao de plantas cultivadas, entre as quais, a mandioca. Justamente, na Amaznia, a eroso gentica vem ocorrendo desde o incio da colonizao europeia com o genocdio e etnocdio indgena, e sendo acelerada, nas ltimas dcadas, devido integrao destes povos ao mercado, perda territorial e a polticas pblicas inadequadas. Uma das principais formas tradicionais de conservao da agrobiodiversidade ou de etnoconservao a complementaridade entre os espaos, a pluriatividade, as redes de circulao de plantas e objetos biolgicos, como sementes, manivas, etc. Alguns trabalhos mostraram que os processos de diversificao e manuteno das plantas cultivadas estavam ligados aos mecanismos de troca entre vizinhos, parentes, aliados e amigos e a formas de manejo seletivo de sementes e materiais. Associados a processos de etnoconservao, vm aumentando os interesses terico e prtico em prevenir uma possvel perda de diversidade e em proteger o patrimnio de conhecimentos, bem como em proteger os direitos3 A estes recursos podemos denominar agrobiodiversidade, que foi definida na Conveno de Diversidade Biolgica, como: Um termo amplo que inclui todos os componentes da biodiversidade que tm relevncia para a agricultura e alimentao, e todos os componentes da biodiversidade que constituem os agroecossistemas: as variedades e a variabilidade de animais, plantas e microorganismos, nos nveis genticos, de espcies e ecossistemas, os quais so necessrios para sustentar funes chaves dos agroecossistemas, suas estruturas e processos - Deciso V/5, da CDB (WOLFF, 2004).

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intelectuais de povos indgenas e das comunidades tradicionais. Estratgias de conservao ex situ da agrobiodiversidade esto em andamento e as estratgias in situ e on farm, estimuladas desde a conferncia de Leipizig, em 1996, comeam a ser consideradas como eficazes na conservao dos recursos genticos, tendo em vista o manejo das espcies e variedades no agroecossistema, permitindo adaptao e evoluo contnuas. Entretanto, segundo Emperaire (2005, 2006), os principais instrumentos de conservao, sejam in situ ou ex situ, privilegiaram abordagens mais centradas nos recursos fitogenticos do que nas condies de produo destes, focando mais em objetos biolgicos finalizados do que nos processos globais de produo. Atualmente, estimula-se o manejo comunitrio da agrobiodiversidade e se ressalta a importncia do papel das mulheres agricultoras na conservao. Diante desta constatao e seguindo as recomendaes da Conveno da Diversidade Biolgica, novas concepes de conservao se afirmam e apoiam formas locais de manejo dos recursos, tendo como uma das prioridades a garantia territorial e o delineamento de projetos de etnodesenvolvimento e educao libertadora. Entretanto, as populaes locais no esto sendo devidamente recompensadas e respeitadas, mesmo diante das inquestionveis evidncias do papel desempenhado pelas mesmas na conservao dos recursos fitogenticos. Assiste-se, portanto, a uma ampliao da noo de conservao, embora esta ainda permanea no campo dos tcnicos e cientistas. *** Valorizar as praticas agricolas tradicionais e assessorar os sujeitos sociais que as mantm para que possam inovar contantemente e manter a resilincia ecolgica e cultural constitui o objetivo maior13

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dos trabalhos dos educadores e pesquisadores que escreveram os textos deste livro. Em 2004, o Instituto de Pesquisas Ecolgicas (IP) iniciou os contatos com as comunidades locais tendo em vista a conservao da biodiversidade e a valorizao da sociodiversidade. Atravs de um programa de interveno, buscou-se desenvolver aes para entender o uso dos recursos naturais e atuar nesse contexto. Observamos, ento, que a agricultura a atividade produtiva que estrutura a organizao familiar e economia local e, tambm, que pode estar ocorrendo uma eroso da diversidade agrcola e dos conhecimentos tradicionais, bem como o parcial ou total abandono dos agroecossistemas na rea do projeto. Aprofundando as reflexes, no mbito do projeto ETNO, verificamos os provveis fatores de ganho e perda de diversidade nas comunidades locais. Quanto aos fatores de incremento, poderamos citar o intercmbio de espcies e variedades entre as famlias, a

Participantes da oficina de educao agroflorestal

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espordica migrao de agricultores de outras regies que trazem novas variedades, a dinmica ou ciclos dos sistemas agrcolas de pousio, os saberes locais e prticas de manejo. Alguns fatores que contribuem para a perda seriam a reduo ou abandono da rea de cultivo, escolha de espcies e variedades comerciais, seleo de variedades adaptadas, imigrao para zona urbana, processo de escolarizao uniformizada com modificaes dos valores pelos mais jovens. Na rea do presente estudo, esta situao complexa, haja vista estarmos lidando com comunidades pluritnicas que migraram do alto-mdio Rio Negro para a proximidade de um grande centro urbano, Manaus, e que, por isso, esto recriando as suas formas de manejo do espao e dos recursos genticos. Ressalta-se que estas comunidades situam-se dentre um mosaico de unidades de conservao, que pressupe leis restritivas de uso dos recursos e do espao, e possuem forte ligao com o extrativismo madeireiro, o que compete com a prtica da agricultura, levando esta ltima ao abandono completo. Ao mesmo tempo, estas famlias mantm contato intenso com outros grupos sociais indgenas e caboclos que vivem no rio Cuieiras e no baixo rio Negro, bem como com o mercado de Manaus. O conjunto de informaes terico-prticas que as populaes locais apresentam sobre os fenmenos naturais oferece uma rica e desconhecida fonte de informao a respeito de como manejar, conservar e utilizar os recursos vegetais de maneira mais sustentvel. Este conhecimento etnobotnico est baseado na experincia e seu registro transmitido geralmente pela tradio oral. Estudos foram realizados com vistas a evidenciar tais saberes e aplic-los em aes de extenso e manejo agroflorestal. Os resultados esto descritos neste livro e so parte do esforo de compreenso do contexto local. As pesquisas objetivam descrever e analisar aspectos etnobotnicos e ecolgicos da agrobiodiversidade: a) levantamento etnobotnico dos quintais agroflorestais; b) mapeamento participativo15

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das reas de cultivo e extrativismo; e c) estudo etnoecolgico concernente fauna de caa. O projeto teve apoio do Laboratrio de Etnoepidemiologia e Etnoecologia Indgena do INPA e foi articulado com o programa Populaes tradicionais, agrobiodiversidade e conhecimentos tradicionais associados na Amaznia brasileira (PACTA) do consrcio CNPq/IRD/UNICAMP/ISA. A educao ambiental e organizao social visa construo de aes e pensamentos crticos a respeito do uso dos recursos naturais e do territrio, procurando envolver os jovens e mulheres no projeto. A educao socioambiental afirma valores e aes que contribuem para a transformao humana e social e para a preservao ecolgica. As aes de educao e organizao social buscam fazer a ponte entre os estudos etnobotnicos e as alternativas trabalhadas, assim, fortalecendo a organizao social das comunidades e contribuindo para a segurana alimentar e qualidade dos alimentos tradicionais. A meta de educao agroecolgica considera que as agroflorestas e o extrativismo florestal so partes da histria de manejo dos ecossistemas pelos povos indgenas e tradicionais, que, no entorno de suas casas e em seus roados, consorciam uma diversidade de plantas que lhes fornecem frutos, madeira, sementes e substncias medicinais, alm de acessarem os recursos florestais dos quais obtm essncias, frutos, gomas e madeira. Porm, muitas vezes, todo o potencial ecolgico e produtivo de um sistema agroflorestal (SAF) no conhecido, nem aproveitado pelos comunitrios. Portanto, construir agroecossistemas sustentveis, promovendo a ligao destes com as famlias e o mercado justo, pode ajudar na manuteno da diversidade e qualidade de vida local. Neste enfoque, os tcnicos exercem o papel de facilitadores do processo e da organizao do conhecimento, identificando os saberes e as prticas que os ribeirinhos possuem, assim, dialogando com16

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os conhecimentos cientficos, busca-se levantar solues conjuntas. A proposta metodolgica fundamenta-se na participao da comunidade, caracterizando um processo pedaggico dinmico e interativo. O mtodo pedaggico dialgico construtivista busca, simultaneamente com a capacitao tcnica, a valorizao dos saberes tradicionais. Por fim, o dilogo a principal ferramenta na agroecologia, devendo ser simtrico e sem preconceitos. Deve-se partir da premissa que o outro um sujeito interessado e, como ns, possui suas potencialidade e contradies. Este vis deve passar margem das aes utilitrias, onde os tcnicos formulam as propostas e aplicam nas comunidades, propostas enviesadas, recheadas de poder. Como exemplo, colocamos os projetos que buscam obter o aumento de renda das famlias no mercado, sem o dilogo necessrio para se compreender o que significa necessidade, pobreza e desenvolvimento para estas pessoas, bem como o que preconizam como qualidade de vida. Talvez seja esta a grande pergunta que nos fizemos durante todo este trajeto: O que qualidade de vida? Para mim? E para o outro? Como conciliarmos nossas vises e interesses?

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O Rio Cuieiras:Os habitantes e seu ambiente

Mariana Gama Semeghini Thiago Mota Cardoso

No rio Cuieiras, existem seis comunidades, sendo quatro indgenas, uma mista (parte indgena e parte no-indgena) e uma ribeirinha (Figura 1). Todas esto localizadas na beira do rio, algumas na margem esquerda, outras na margem direita. Algumas mais prximas foz do rio e outras mais distantes, sendo umas mais populosas que outras. Porm, todas mantm uma intensa relao entre si, assim como com os recursos naturais da regio no tocante alimentao, sade e moradia. O presente texto mostra um breve retrato destas comunidades, com informaes sobre a populao, histria, origem das famlias e principais atividades econmicas, bem como as caractersticas do ambiente conforme denominam os moradores. Esta pesquisa foi realizada entre 2006 e 2007, pelo IP, atravs de um levantamento socioeconmico em cada comunidade, onde foi utilizada a metodologia do Diagnstico Rural Participativo (DRP). As tcnicas foram complementadas atravs de reunies, palestras e visitas s residncias dos comunitrios. Em visitas posteriores, foram aplicados questionrios em cada casa, nos quais foram registrados: nmero de moradores por casa, nome, idade e escolaridade, alm de outras informaes relevantes. Aproveitou-se, ento, para aprofundar alguns temas desenvolvidos pelo DRP, atravs de entrevistas semiestruturadas.18

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Figura 1 Imagem de comunidade ribeirinha do rio Cuieiras. Foto: Thiago M. Cardoso

Onde fica?O rio Cuieiras um afluente do rio Negro pela margem esquerda, corre em seu mdio curso, numa direo geral norte-sul. Sua foz dista cerca de 50 quilmetros de Manaus (Figura 1 e 2). As comunidades ribeirinhas situam-se na zona rural deste municpio, no estado do Amazonas. O rio Cuieiras se situa no Corredor Ecolgico da Amaznia Central, na Zona Ncleo da Reserva da Biosfera e no Mosaico de reas Protegidas do Baixo Rio Negro, sendo uma rea de grande relevncia para conservao da biodiversidade.

Breve histricoA histria de ocupao de toda a regio do rio Negro no difere, em termos gerais, da que ocorreu em toda a Amaznia, que foi baseada na explorao dos recursos naturais e violncia fsica e cultural contra as populaes nativas (Tabela 1). Os colonizadores e atuais promotores do desenvolvimento ignoraram os processos ecolgicos caractersticos de seus ecossistemas, bem como os mesmos se inserem e se integram ao conhecimento, modo de vida e territorialidade das populaes locais.19

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Figura 2 Localizao das sedes das comunidades do rio Cuieiras.

O modelo de desenvolvimento implantado foi centrado nos ciclos econmicos dos recursos naturais, intimamente ligados atividade extrativista. Este modelo de desenvolvimento ainda tem provocado muitos conflitos e grandes transformaes sociais, culturais e nas paisagens. O empreendimento etnocida e genocida praticado pelos colonizadores portugueses e pelas elites luso-brasileiras objetivava, desde o sculo XVII, adentrar territrios indgenas tendo em vista o aprisionamento e migrao de mo-de-obra escrava e a formao dos ncleos missionrios. A penetrao portuguesa foi feita com base no trabalho indgena e na comercializao de produtos da floresta. Juntamente a este ciclo e com a extenso do domnio territorial e sobre os recursos naturais, passa a economia extrativista, inicialmente com as drogas do serto, a ser o principal objetivo econmico da metrpole e das elites nacionais. As disputas territoriais envolvendo outros estados criaram a necessidade de ocupar a regio do rio Negro e controlar as sociedades locais por meio de empreendimentos econmicos e regimentos militares, o que ainda vem ocorrendo na regio.20

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Tabela 1 Diagrama histrico da regio

Sc XVIII- Drogas do serto - Descimentos e escravizao - Misses - Cabanagem - Exploraco de madeira, vegetais e fauna -Barco a vapor - Inicio ciclo da borracha - Entrada de Nordestinos - Mao-de-obra indgena - Esvaziamento do BRN - Etnocdio e genocdio Indgena

Sc IXX-Esvaziamento do BRN -Resistncia de indgenas e caboclos -Re-ocupao do BRN -Crescimento de Manaus

Sc XX1910-20 1920-30 1930-50- Crise da borracha -Novos produtos Extrativistas (castanha, Balata, sorva, fibras) -Agricultura tradicional -Soldados da borracha -Prisioneiros no Cuieiras -Novos produtos extrativistas -Termino do ciclo da seringa -Zona Franca de Manaus -Intensificao da atividade madeireira -Migrao dos seringais e mdio/ Alto rio Negro (atuais comunidades) -Urbanizao e crescimento de Manaus -Extrativismo (areia, pedra) -Exploraco da Acariquara -Criao das Unidades de Conservao -Intensificao do turismo -Propostas de desenvolvimento sustentvel -Migrao do Mdio e Alto rio Negro -Urbanizao e crescimento de Manaus -Conflito entre UCs e comunidades locais -Solicitaco de Terra Indgena -Criao do PDS Cuieiras-Apuau

1950-70

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No final do sculo XIX, a explorao da borracha atingiu o rio Negro, estabelecendo-se at meados do sculo XX, devido vasta demanda decorrente das duas Grandes Guerras Mundiais. Esse perodo representou um novo ciclo de explorao e maus tratos aos ndios, que continuaram a ser levados fora para os seringais. Do encontro entre os nordestinos que vieram explorar a seringa, e que falavam portugus, com os ndios e caboclos amazonenses resultou uma intensa miscigenao e complexa troca de experincias, mudanas culturais e inovaes. No sculo XIX, introduziu-se a navegao a vapor com o estabelecimento de uma linha no rio Negro que ia at Santa Isabel, o que possibilitou uma retomada no extrativismo. A demanda da lenha, no baixo rio Negro4, para alimentar as fornalhas dos barcos a vapor gerou uma nova atividade econmica, a explorao madeireira, que se intensificou nos anos 70 do sculo passado graas ao intenso crescimento urbano de Manaus. Esta atividade perdura at os dias atuais. um produto da floresta intensamente demandado pela construo civil, cuja extrao gera impacto ambiental considervel e realizada sob condies sociais precrias5. Relatos recentes, narrados pelos moradores mais antigos do rio Cuieiras, informam que, durante os anos 40-50 do sculo passado, o governo enviava e mantinha prisioneiros comuns para o trabalho forado na extrao de madeira na regio. Esta madeira era utilizada basicamente para abastecer os fornos e fornecer energia eltrica para os moradores de Manaus. Esta atividade deixou marcas visveis na paisagem. Na dcada de 50, comeam a chegar ao rio Cuieiras famlias pertencentes aos povos Bars e Tukanos, que migraram do alto rio Negro para Manaus e as populaes de caboclos oriundos principalmente dos antigos seringais situados no mdio e baixo rio Negro, dentre outros rios afluentes do Solimes e das cidades de Manaus e Novo Airo.4 Ver livro de Victor Leonardi (1999), Os Historiadores e os Rios. Publicado pela Editora da UnB. 5 Relatrio do Projeto Etnobotnica (IP, 2007) e em Cardoso et al. (2008).

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Neste perodo, a atividade econmica predominante, alm da caa, pesca, agricultura e coleta para subsistncia, foi o extrativismo do ltex e de gomferas, a venda da carne e pele de animais silvestres e de madeira, que merece destaque. Nessa poca, a principal espcie explorada era a Acariquara para servir de postes iluminao pblica, como salienta Cardoso et al. (2008). A partir de 1990, surgem novas atividades econmicas como a implantao de hotis de turismo e chegada de turistas nas comunidades. Tambm, nessa dcada, organiza-se o movimento indgena e reconhecido oficialmente um importante conjunto de Terras Indgenas no alto rio Negro e em Roraima e criadas vrias Unidades de Conservao de Uso Indireto no baixo rio Negro. No mdio e baixo rio Negro, h processos de ordenamento territorial ainda em curso.

Demografia e configurao territorialEntre 2006 e 2007, a populao total do rio Cuieiras consistia em 274 pessoas, distribudas em 96 famlias. As comunidades mais populosas so Nova Cana e So Sebastio, como se verifica na Figura 4.

Figura 4 Nmero de famlias das comunidades do rio Cuieiras. Fonte: IP, 2007

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Dilogos Agroecolgicos

As comunidades indgenas foram formadas fundamentalmente por grupos de famlias provenientes do mdio e alto rio Negro, bem como no-indgenas de outras localidades, com predomnio de pessoas da etnia Bar e representantes das etnias Karapano, Tukano, Tikuna e Satere-Maue. Algumas famlias chegaram entre as dcadas de 50 a 70, no entanto, o principal grupo familiar que compe a comunidade de Nova Esperana chegou na dcada de 80 (Figura 5). A comunidade indgena Trs Unidos foi fundada em 1991, por um grupo da etnia Kambeba, que vivia no rio Solimes. Estas comunidades indgenas so formadas por famlias que migraram em busca de melhores condies de vida e consideram a regio do Cuieiras e baixo rio Negro como territrio tradicional de seu povo. Os primeiros moradores das comunidades de So Sebastio e Nova Cana estabeleceram-se na dcada de 60 (Figura 6), ento, constituindo-se como comunidades nos anos 80 e 90. O processo histrico de ocupao do espao foi fortemente influenciado pelas polticas estatais, de acordo com Cardoso (2008). Segundo relato

Figura 5 Moradores da comunidade Nova Esperana. Fonte: Marilena A.A.Campos

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dos atuais moradores, o estado incentivou os habitantes ribeirinhos, que antes viviam em colocaes relativamente isoladas, a formarem ncleos ou centros comunitrios e a viverem concentrados nestes espaos para, desta forma, receberem os benefcios das polticas pblicas - como escola e sade. Atualmente, uma comunidade formada por unidades familiares que podem optar por ocupar uma rea no centro comunitrio ou em rea florestal. Muitos moradores, principalmente os que vivem mais isolados, chamam de comunidade apenas a rea compreendida pelo centro comunitrio. Separam claramente o que seria a unidade domstica e o que seria comunidade. O estar em comunidade significa, para estes, estarem inscritos em determinado centro comunitrio no qual a pessoa, alm de ter direito de usufruir dos benefcios estatais, participaria das atividades ldicas, recreativas e religiosas. A Figura 7 mostra a origem da populao do rio Cuieiras. Mais da metade da populao de adultos das comunidades indgenas Barreirinha, Boa Esperana e Nova Esperana originria de Santa

Figura 6 Moradores da comunidade So Sebastiao. Fonte: Arquivo IP

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Figura 7 Origem da populao do rio Cuieiras. Fonte: IP, 2007

Isabel e parcela significativa de So Gabriel da Cachoeira. Famlias indgenas da comunidade Nova Cana tambm vieram desta regio, enquanto os primeiros moradores da comunidade indgena Trs Unidos vieram do Solimes. No entanto, do total da populao do rio Cuieiras, Santa Isabel corresponde a 12% e So Gabriel menos de 6% da origem dos moradores, enquanto quase um tero (30%) nascido no prprio rio e 18% em Manaus. As localidades de Novo Airo e do rio Unini tambm tm destaque: No rio Negro, os deslocamentos de pessoas, grupos e famlias so relativamente comuns e frequentes. Porm, h poucos estudos sobre os fatores que motivam esta mobilidade (educao, sade, famlia, recursos naturais, criao de unidades de conservao e conflitos fundirios), a conexo entre territrio e migrao e outras vises do mundo que ligam a territorialidade ideia de regio e de fronteira. Estes assuntos subsidiam aspectos centrais que deveriam estar contemplados na agenda de discusso dos diversos agentes das administraes federais e estatais para levar a srio um ordenamento territorial com base nas diferenas culturais dos povos que residem nessa regio.26

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Percebe-se que esta dinmica territorial envolve, ainda, um contnuo urbano-rural, onde os grupos deixam locais mais isolados para viver em reas mais prximas ou nos prprios centros urbanos como Manaus e Novo Airo. Alguns familiares continuam vivendo na cidade, os jovens, principalmente, para estudarem e trabalharem. Para retirar a aposentadoria e o salrio, no caso de funcionrios pblicos, necessrio se deslocar, todos os meses, para a cidade. Alm disso, h uma rede de relaes entre as diversas comunidades e grupos familiares no rio Negro, em funo do parentesco, intercmbios culturais e de recursos naturais (fundamentalmente agrcolas) que perpassam o conceito de migrao, assim como a dicotomia entre a cidade e interior, urbano e rural. Em geral, as famlias se estabeleceram inicialmente em stios e terrenos isolados entre si. A partir da dcada de 80, conformaramse como comunidades e passaram a reivindicar alguns direitos e benefcios junto ao poder pblico, no que concerne posse da terra e atendimento educao e sade. As comunidades do rio Cuieiras, So Sebastio e Nova Cana tm associaes registradas; Nova Esperana est em processo de regularizao. De forma geral, estas comunidades tm buscado articulaes e apoios com instituies, fator que vem desempenhando um papel fundamental nas conquistas obtidas, embora muitas solicitaes ainda no tenham sido atendidas. No final da dcada de 90, as quatro comunidades indgenas do rio Cuieiras junto s famlias indgenas de Nova Cana e as comunidade de Terra Preta e So Tom, localizadas no rio Negro, comearam a se mobilizar e se articular com movimentos indgenas do Amazonas e nacionais. A partir desse momento, foram reconhecidas como comunidades indgenas pela Fundao Nacional do Indio (FUNAI), conquistando o direito assistncia sade diferenciada, implementada pela Fundao Nacional de Sade (FUNASA), em convnio com a27

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Confederao das Organizaes Indigenas da Amazonia Brasileira (COIAB), nesse perodo. A partir de 2000, passam a reivindicar tambm a demarcao de uma Terra Indgena (TI), solicitando FUNAI um estudo para identificao e delimitao. O objetivo deste territrio garantir a sobrevivncia fsica e cultural dos povos indgenas, onde a disponibilidade de recursos naturais conservados um fator intrnseco, pois determinante para a manuteno das atividades produtivas (agricultura, caa, pesca e coleta, principalmente) e, em ltima instncia, do conhecimento. A possibilidade da criao de uma TI incentivou a mobilizao das comunidades no-indgenas da regio, encabeada pela comunidade de So Sebastio, para a reivindicao de direitos sobre a terra e regularizao fundiria da rea, junto ao Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA). Esta articulao resultou na criao do Programa de Desenvolvimento Sustentvel (PDS) Cuieiras-Apua. Em 1995, foi criado o Parque Estadual do Rio Negro - Setor Sul (PAREST), que se destaca em virtude de seus atributos naturais (vegetao e fauna), bem como em decorrncia de seu imenso potencial turstico. No entanto, no processo de criao e delimitao, prevaleceram fatores polticos sobre os fatores biolgicos, fsicos e sociais. As perspectivas da populao local no foram consideradas na poca. Aps seu estabelecimento, o parque foi esquecido completamente e sua gesto no foi implementada, por conseguinte, aes bsicas como a arrecadao da terra ao INCRA no foram realizadas. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia (INPA) mantm uma reserva biolgica no rio Cuieiras, acima de uma base de treinamento da Polcia Federal. A falta de dilogo entre as partes governamentais flagrante na regio, cada rgo vem realizando seus prprios programas e agendas de forma sobreposta. No que se refere ao ordenamento territorial, esta lacuna na comunicao entre instituies e entre estas28

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e as comunidades vem submetendo-as a uma situao de incerteza e indefinio permanente quanto ao cenrio fundirio, gerando conflitos socioambientais e impossibilidade de se levar adiante projetos que visem ao uso sustentvel da biodiversidade e melhoria da qualidade de vida das mesmas6. Ressalta-se que em todos os casos descritos, as comunidades tradicionais no participaram dos processos de planejamento e execuo do ordenamento. E verifica-se, no rio Cuieiras, um excesso de ordenamento estatal, nos nveis estadual e federal.

Educao e sadeTodas as comunidades possuem uma escola e um posto de sade, em parte construdos pelos rgos municipais responsveis Secretaria Municipal de Educao (SEMED) e Secretaria Municipal de Sade (SEMSA) e em parte estabelecidos em locais improvisados. Na maioria das comunidades h tambm um chapu de palha, onde acontecem reunies comunitrias, uma igreja e ainda um pequeno comrcio. A partir de agosto de 2007, foi implantado o ensino fundamental (5. a 8. srie) itinerante por mdulos concentrados das disciplinas escolares, nas escolas das comunidades Nova Cana e So Sebastio devido ao nmero de alunos. Antes, atendiam somente o ensino bsico (1. a 4. srie), contando com somente um(a) professor(a) em cada; sendo, portanto, classes multisseriadas. As escolas das comunidades de Boa Esperana, Nova Esperana e Trs Unidos continuaram com o ensino bsico e, em Barreirinhas, no h escola. Atendendo a reivindicaes que vinham desde 2000, a educao indgena e diferenciada foi implementada em junho de 2007, atravs do Ncleo de Educao Indgena da SEMED. A maioria dos professores falante da lngua geral (heengatu), porm, com exceo de6 Ver Cardoso et al. (2008).

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Trs Unidos, cuja lngua Kambeba, e dois professores indgenas so responsveis tanto pelo ensino indgena como regular. Os professores de Nova Cana, Nova Esperana e Boa Esperana dividem o espao na escola com professores no indgenas, que esto vinculados ao Distrito Rural e que ministram aulas em portugus e matemtica. Os postos de sade mais equipados esto na comunidade So Sebastio, implantado pela SEMSA, e em Trs Unidos, onde o atendimento sade realizado pela FUNASA. Ambas esto localizadas prximo foz do rio Cuieiras. Em todas as comunidades do rio Cuieiras, h um agente de sade que, em geral, j fazia parte da comunidade e foi escolhido pelos moradores e, com exceo de So Sebastio, todos so indgenas, vinculados, portanto, ao convnio de sade da FUNASA. A doena mais comum a malria, ocorrendo com intensidade em perodos especficos, como a vazante. Alguns moradores sofrem de hipertenso e, alm da malria, so recorrentes surtos de gripe e diarreia, esta ltima, muitas vezes, em decorrncia do consumo da gua do rio. Nas comunidades Trs Unidos, So Sebastio e Nova Esperana, h poos artesianos, o que pode diminuir o risco de contaminao pela gua. Ainda assim, devem ser realizadas anlises sobre a qualidade da gua regularmente.

A pluriatividade como estratgia de uso dos recursosCada famlia do rio Cuieiras realiza o processo de apropriao do ambiente seguindo uma certa estratgia. Esta estratgia pode ser definida como a forma particular que cada uma reconhece, busca e organiza seus recursos produtivos, seu trabalho e recursos financeiros com o objetivo de manter e reproduzir suas condies materiais e imateriais de existncia7. Estas estratgias so elaboradas mediantes7 O conceito de estratgia e mltiplos usos junto a populaes tradicionais pode ser visto na recente publicao de Victor Toledo e Narciso BarreraBassol (2008).

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conhecimentos sobre os elementos e dinmica do ambiente (como pocas de frutificao, dinmica das guas, clima, perodos reprodutivos de peixes etc.), bem como por processos de tomada de deciso baseados no histrico agroextrativista da famlia e do contexto socioeconmico e fundirio. Boa parte dos povos tradicionais na Amaznia e no Cuieiras no poderia ser muito diferente, apresentam estratgias produtiva e extrativa baseadas em intercmbios (ecolgicos, econmicos e sociais). Intercmbios realizados de diversas formas e com distintos elementos do ambiente de maneira a garantir um fluxo ininterrupto de bens, matria e energia. Isso significa uma produo baseada no princpio da diversidade de recursos, paisagens e de prticas produtivas, ou seja, os mltiplos-usos do ambiente e a pluriatividade. Alm das atividades de subsistncia, agricultura, coleta, caa e pesca, desenvolvem-se atividades econmicas com objetivo de gerao de renda, dentre as quais se destacam: extrao de madeira, produo de artesanato e outras vinculadas ao turismo, venda de farinha e prestao de servios (Figura 8). Neste ltimo, incluem-se carpintaria, dirias na agricultura e, no caso das comunidades do rio Negro, servios temporrios em Manaus.

Figura 8 Principais atividades econmicas realizadas pelos moradores das comunidades do rio Cuieiras (% de famlias em cada atividade). Fonte: IP, 2007

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Quase a metade das famlias tem roa (46,5%), e uma pequena parcela comercializa o excedente da farinha (15%), a maioria desenvolve esta atividade para consumo prprio. Ressalta-se, a relao direta entre o extrativismo e a agricultura. Como menos da metade das famlias tem roa, percebe-se que a extrao madeireira (35%) e produo de espeto (18,5%) so atividades significativas, sendo que apresentam maior destaque nas comunidades de Nova Cana e So Sebastio. Na regio do rio Cuieiras, o esforo de trabalho familiar na explorao madeireira gera o abandono ou diminuio dos espaos agrcolas. O turismo e o artesanato representam uma importante oportunidade de desenvolvimento sustentvel com envolvimento comunitrio. O grfico corrobora este potencial, pois verifica-se que um quarto das famlias (26%) est envolvida nesta atividade. Destacam-se as comunidades de Nova Esperana e Trs Unidos com a produo de artesanato, que recebem visitas de grupos de turistas regularmente, e algumas famlias de outras comunidades cujo principal trabalho consiste em guia e barqueiro. Mas esta prtica ainda ocorre de forma desigual, sem que as comunidades sejam partes ativas nas decises e nos ganhos econmicos do turismo. Os benefcios estatais constituem uma renda importante para muitas famlias atravs do programa bolsa famlia e aposentadoria. Funcionrios pblicos, vinculados s escolas (professoras, merendeiras e condutores da escola), e agentes de sade (dos postos de sade) tambm tm representao significativa neste quesito. Algumas famlias mantm pequenos comrcios nas comunidades, o que representa apenas 2% da fonte de renda nesta regio. O mapeamento participativo, construdo pelo IP, em parceria com as comunidades, mostrou que a rea de uso dos recursos por estas comunidades abrangente, e alguns locais so procurados por32

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todas as comunidades. As comunidades identificam limites bem definidos e usam principalmente a rea do rio Cuieiras e igaraps, concentrando-se nas proximidades das comunidades e no repartimento do rio Branquinho e rio Cuieiras, rea que foi apontada como farta em peixes e caa. O rio Negro utilizado somente pelas duas comunidades mais prximas boca do rio Cuieiras, So Sebastio e Trs Unidos. As reas de pesca e caa, assim como os esforos dedicados para cada atividade, variam muito devido disponibilidade de recursos em funo do regime de gua. A pluriatividade dos agentes econmicos se inter-relaciona a uma complexa rede de relaes socioculturais de trocas de saberes, de saber-fazer, de trabalhos coletivos comunitrios e de trocas de produtos, informaes e conhecimentos. Os resultados da inter-relao social entre as formas de produo e a cultura tradicional moldam redes sociais de produo pouco segmentadas, relativamente curtas e com um alto nvel de interdependncia entre si, atravs das trocas e comercializao intracomunidades e das comunidades com os intermedirios (denominados na regio como aviadores ou regates). Esta regio beneficia-se ainda pela relativa proximidade da cidade de Manaus, principal centro consumidor da regio e de Novo Airo. A proximidade dos centros consumidores exerce grande presso sobre as atividades produtivas na regio, afinal so quase 2 milhes de consumidores. De forma geral, esta proximidade dos mercados consumidores apresenta vantagens e desvantagens para o desenvolvimento da regio. As vantagens relacionam-se principalmente com a certeza de acesso a mercados para os produtos do baixo rio Negro, mas, por outro lado, tambm estimula a produo/ extrao de produtos ilegais, como o caso do extrativismo madeireiro, da caa e da minerao.33

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As relaes de troca entre comunitrios, comunidades e comerciantes se do quase que totalmente sem a mediao da moeda, num sistema de troca e doao em que a moeda serve apenas como referncia de valor e onde a economia se subordina as relaes sociais de reciprocidade determinam o vetor e intensidade das relaes econmicas. As trocas geralmente so entre gneros alimentcios (produtos agrcolas e extrativismo florestal) por bens alimentcios processados em outras comunidades, por bens bsicos provenientes das cidades (bens/produtos de necessidade bsica) e por equipamentos destinados a facilitar o trabalho dos comunitrios no interior. Nota-se uma grande influncia deste modo tpico de vida sobre as atividades econmicas estabelecidas na regio. O saber-fazer e as formas de acesso, manejo e explorao dos recursos naturais locais obedecem a saberes e tcnicas de produo tradicionais, idealizadas com baixo investimento de capital, baixa produtividade e pequena escala produtiva, mas respeitando os ciclos ecolgicos e a sazonalidade da produo.

O ambiente segundo os moradores8Os habitantes do rio Cuieiras vivem em ecossistemas de gua preta, conhecidos pela oligotrofia, baixa produtividade e grande diversidade de fauna terrestre e aqutica. As atividades econmicas dos povos que habitam a bacia do Rio Negro esto diretamente ligadas sazonalidade das precipitaes e aos perodos de seca e enchente. O perodo chuvoso, na regio de estudo, vai de janeiro a abril, sendo maro e abril os meses mais chuvosos com mdias de 294.7 e 289mm. O perodo seco vai de junho a setembro, sendo o pico da estao seca em agosto, com mdia de 63.3mm. O perodo de cheia do rio Negro vai de maio a8 Informaes extradas de Cardoso (2008) e Arruda Campos (2008).

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julho, sendo junho o ms que o rio Negro alcana sua cota mxima. O perodo seco vai do fim de setembro at o incio de janeiro. O ms com a menor cota foi novembro. O clima dominante tropical-chuvoso com temperatura em torno de 26C. Os aspectos topogrficos esto diretamente associados com tipos especficos de vegetao, de solo e de manejo humano. A terminologia utilizada no rio Cuieiras inclui palavras como baixo (rea alagada), barranco (rea intermediria) e terra alta ou terra firme (plat) (Figura 9). No sentido da terra alta para as posies mais baixas do relevo, h uma diferenciao na morfologia do solo, com aumento gradual na quantidade de areia e, consequente, modificao da vegetao. A percepo da variao dos tipos de solo e das unidades de paisagem no gradiente altitudinal pode ser colocada vis--vis ou at com mais detalhe do que a utilizada na literatura cientfica sobre a regio norte de Manaus. Assim como em quase toda a calha do rio Negro, a construo da infraestrutura domstica e a realizao da agricultura no rio Cuieiras ocorrem na terra alta ou terra firme, isso em virtude da variao das inundaes e impossibilidade de se praticar atividades agrcolas nos solos extremamente empobrecidos das reas mais baixas.

Figura 9 Horizonte topogrfico e unidades de paisagem no rio Cuieiras.Cardoso (2008)

Fonte:

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Tipos de vegetaoNo baixo, distinguem-se as seguintes unidades de paisagem: a campina, a restinga, a praia, o igap e o chavascal. A campina corresponde aos campos de gramneas com pequenos e troncudos arbustos de at dois metros e que so alagados periodicamente. Os solos so arenosos e afundam. As principais espcies indicadoras da paisagem so a macacarecuia, rabo de lontra e capins. D-se o nome de caranazal e arumazal as subunidades paisagsticas da campina, respectivamente em referncia presena dominante da palmeira caran e ao arum. Tirirical e arrozrana so concernentes campina com predominncia de capins. O igap tambm chamado localmente de vrzea. a vegetao que alaga durante a poca das cheias dos rios. Algumas espcies so indicadoras locais desta vegetao, como o macucu, japiranga e breieiro. O solo um barro meio enlameado, como dizem os mroadores A vegetao chamada de queimado refere-se ao igap que passou por incndios antropognicos devido folhagem e razes secas presentes no solo, no tempo em que se fazia carvo na regio. Nas restingas, a vegetao mais alta do que a campina, com cerca de dez a vinte metros e o solo arenoso e mais compacto. A restinga pode ser subdividida em restinga alta e restinga baixa, esta alaga em qualquer enchente e a vegetao mais aberta; enquanto na alta a vegetao mais fechada. O chavascal corresponde aos charcos, s reas permanentemente alagadas. So paisagens situadas nas margens dos igaraps, em reas prximas s cabeceiras. A vegetao mais baixa e aberta do que na mata alta, predominando como espcies indicadoras o tarum, samambaias, palha branca, buss, buriti e patau. Estas quatro ltimas espcies do nome s subunidades de paisagem, como o palhau, bussuzal, buritizal e patauazal. O solo arenoso enlameado do chavascal alagado intermitentemente e possui pequenos crregos.36

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Na terra alta ou terra firme, distinguem-se as seguintes unidades de paisagem: a caatinga, campinas alta, a mata alta ou mata virgem, a capoeira, a roa, o stio e o quintal. A caatinga percebida por sua semelhana com o chavascal. Os solos so arenosos, no se prestando para agricultura e a vegetao de menor porte se comparada com a mata alta. As rvores so mais finas, tendo o umiri como espcie indicadora, alm das samambaias e bromlias. A campina alta, em semelhana com a campina do baixo, possui vegetao predominante de gramneas com arbustos baixos, porm apresenta rvores de menor porte com cerca de dez metros. A mata virgem ou mata alta o tipo de paisagem que predomina no rio Cuieiras. A estrutura florestal percebida pela mata mais fechada com pouco cip e de grande porte, com rvores chegando a 40 metros. As principais espcies indicadoras so rvores como o roxinho, itauba, acaricoara, angelim, cumaru, sucupira, uxi coroa, uxi liso, piquia, bacaba marup-branco, abiurana, caju, arabazeira, cedrinho, bacabinha e cips, como o cip titica, cip dgua, cip jabuti-escada.

Tipos de soloNo rio Cuieiras, encontram-se solos dos tipos barro, areia e terra. Os solos barrentos, ou barro, so facilmente reconhecidos nas regies de terra firme, pela sua consistncia mais dura e granulao mais fina, sendo denominados, a depender da colorao, como barro vermelho, barro amarelo, barro branco e tabatinga, sendo este ltimo um tipo de barro branco mais endurecido. Os solos arenosos, localmente denominados de areia, so reconhecidos pela sua textura granulosa. As terras so reconhecidas pela sua origem da natureza ou relacionadas com stios arqueolgicos. So denominadas respectivamente de terra preta e terra preta legtima. Os solos tambm so percebidos enquanto uma mistura entre um tipo e outro. O solo areiusco percebido pela textura mais37

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arenosa no horizonte mais superficial (cerca de 20cm), com barro mais abaixo. Outros exemplos referem-se mistura no nvel superficial/horizontal, como o areiusco com terra preta, barro vermelho com areia, areiusco com barro amarelo. Outro tipo de solo percebido a piarra, fruto da mistura entre barro amarelo e pedras, sendo considerado um tipo de solo raro na regio. Quanto consistncia, os solos podem ser duros ou fofos. Os solos duros so os que possuem maior consistncia e no afundam, ao contrrio, os fofos afundam quando se anda sobre a superfcie. Em se tratando da umidade, os solos podem ser enlameados, quando apresentam alta concentrao de gua ficando com textura de uma lama; secos, quando possuem baixa concentrao de gua; e liguentos, que so solos midos e bem agregados. A histria e a intensidade de uso do solo um atributo relevante na caracterizao e escolha do solo para a agricultura, podendo ser classificados em terra velha ou nova. A nova corresponde a solos oriundos da derrubada da mata virgem ou de capoeiras altas, enquanto a velha se refere ao uso sucessivo de um mesmo espao ao longo dos anos. Os agricultores locais deduzem a fertilidade do solo pelo processo sucessional da vegetao, chamam de terra fraca ou cansada o solo das capoeiras novas; e terra forte ou descansada o de capoeiras alta. Este critrio de classificao no se refere terra preta legtima, que considerado um tipo de solo que sempre d. A sucesso ecolgica ou o pousio utilizado como uma forma de restaurar a fertilidade do solo aps um ciclo de cultivo. A sucesso na perspectiva local funciona da seguinte forma: aps a derrubada da vegetao e plantio de mandioca, o espao passa a ser denominado de roa, a roa nova passa ento por etapas de manejo e controle, com o cultivo predominante de mandioca, tornando-se roa madura e velha aps 1 a 3 anos. A roa ento deixada ao processo de sucesso ecolgica. O espao passa38

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a se chamar capoeira nova. Este estgio vai at cerca de 7 anos. A idade no o critrio mais utilizado para identificar as capoeiras, mas sim a estrutura da vegetao e a presena de espcies indicadoras. A capoeira nova pode tambm ser chamada de capoeira baixa e capoeira fraca. percebida como uma mata bem fechada, com muitas ervas, arbustos e cips. So identificadas espcies indicadoras como embabas, lacre, vassourinha e piriquiteira. Esta paisagem tida como uma fase do sistema agrcola em que os solos esto cansados ou sem fertilidade. O prximo estgio chamado de capoeira velha, madura, alta ou capoeiro, que corresponde a um tipo de vegetao de maior porte em que o solo j est descansado. As rvores j so maiores e grossas e a mata mais aberta. So identificadas espcies caractersticas como a goiaba-de-anta, murici, lacre e pepino-do-mato. Observa-se tambm a presena de espcies de mata alta, como a itaba, cedrinho e acariquara comeando a aparecer.

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A Roa

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Thiago Mota Cardoso

A roa est presente no imaginrio do brasileiro, possuindo mltiplos significados de acordo com a diversidade cultural existente. Em geral, nas regies Sul, Sudeste e Nordeste, onde persiste uma forte (pelo menos aparente) separao entre a vida no campo e nas cidades, o termo remete noo do rural, do lugar onde se expressa a agricultura familiar, do autossustento, dos contos e narrativas e da tranquilidade proporcionada pelo campo e pelas relaes nele estabelecidas. As expresses morar na roa ou eu vim da roa podem significar tanto que o sujeito vive no interior como que trabalha com agricultura de mandioca, milho, feijo, dentre outras plantas. Neste contexto, a roa, para uns, significa o atraso diante de um progresso industrial-tecnolgico-urbano inevitvel; para outros, a possibilidade de ser livre, de ter segurana alimentar e qualidade de vida de acordo com as tradies e/ou como reao modernidade. A roa constitui-se como o espao por excelncia da agricultura na Amaznia e, no rio Cuieiras, no poderia ser diferente.9 Inspirado na dissertao de mestrado do autor, intitulada Etnoecologia, construo da diversidade agrcola e manejo da dinmica espao-temporal em roas indgenas do rio Cuieiras, Baixo Rio Negro, defendida em 2008, pelo Programa Integrado de Ps-Graduao em Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia INPA.

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um espao que nasce de um distrbio (o corte e queima da floresta) e visa segurana alimentar de uma famlia, de uma comunidade local ou de uma regio. Na Amaznia, a roa simplesmente o espao cultivado. A roa pode estar na cidade, como na floresta. Ao escutarmos vamos roa, isso significa, em poucas palavras, ir ao lugar onde se planta o alimento, o lugar onde se aplicam os saberes e tcnicas necessrias para a produo e reproduo de bens ao mesmo tempo materiais (o alimento) e imateriais (os significados). No rio Cuieiras, assim como em todo rio Negro, a roa o principal espao cultivado e a mandioca brava a sua planta estruturadora (Figura 10). Este espao deve ser visto como parte de um sistema agrcola mais amplo, integrado floresta, aos quintais e a outros locais prprios para o cultivo. A roa o locus de manuteno da diversidade agrcola. Deve-se, tambm, considerar que a implantao de uma roa possui significados culturais profundos produzidos dos estreitos laos entre a agricultura e as plantas.

Figura 10 Roca recm aberta. Fonte: Thiago Mota Cardoso

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Fazendo a roaA roa manejada em um ciclo que imitaria em estrutura as fases de sucesso ecolgica da floresta. Podemos observar as seguintes fases do sistema agrcola: seleo da rea de cultivo, derrubada e queima da vegetao, cultivo, colheita e abandono. A ltima fase considerada, hoje, como uma fase de manejo de capoeira ou agrofloresta. As duas primeiras fases so de trabalho masculino, enquanto que a fase de cultivo e colheita, bem como o processamento dos produtos obtidos, de cuidado feminino ou de ambos. As crianas geralmente ajudam as mulheres nesta fase.

Seleo da rea de cultivoEscolher um lugar para fazer a roa uma questo que envolve tempo e muita observao. Os roados so implantados em terra firme e, geralmente, prximos residncia da famlia horticultora. Os saberes sobre a interao solo-vegetao-plantas so considerados variveis importantes na deciso de onde se abrir um roado, pois, como diria um agricultor, toda planta tem cincia, no pode chegar e forar plantar no local que no para ela. O agricultor pode decidir implantar um roado em mata virgem ou numa capoeira nova ou madura. De certa forma, h uma preferncia em realizar o roado tanto em capoeira alta como capoeira baixa, sendo a mdia de idade das capoeiras derrubadas de 12 anos, mas boa parte est entre 7 e 10 anos. Percebe-se localmente que a capoeira alta possui boa fertilidade e no d tanto trabalho para derrubar a vegetao quanto a mata alta, que possui rvores de maior dimetro e dureza. Outro motivo para escolher a capoeira alta em relao baixa e mata alta se deve fertilidade do solo. Uma boa produo de mandioca e com maior velocidade de crescimento das razes se deve ao aumento da fertilidade ao longo do processo de sucesso. O solo passa de fraco, na etapa de capoeira baixa, para descansado ou forte de uma capoeira alta, e este momento reconhecido como o ideal para a42

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implantao do roado. Uma das preferncias pela capoeira baixa se deve deciso em se intensificar a agricultura em reas de terra preta legtima. Os nicos motivos que levam os agricultores a preferirem cultivar a mata alta so a maior fertilidade dos solos, que permite o cultivo de espcies e variedades de maior exigncia como a banana, cana, car, dentre outras, alm da mandioca e tambm pelo menor trabalho disponibilizado para capinas. Um critrio fundamental para escolha da rea onde se localizar o roado o tipo de solo (Tabela 2), que muitas vezes escolhido baseado nas plantas disponveis. O conhecimento local permite selecionar as plantas cultivadas a um tipo de solo especfico e a adaptao das mesmas a um determinando substrato explicitada atravs dos termos d bem e no d bem. A mandioca considerada uma espcie generalista, que pode ser cultivada em qualquer tipo de solo, menos no arenoso, sendo sua produtividade percebida como mais ligada aos estgios de sucesso, no qual, a vegetao foi derrubada com a premissa de que a maniva d bem em terra boa e no em terra fraca.Tabela 2 Tipo de solo e principais plantas cultivadas

Tipo de solo

Principais plantas cultivadas*D bem Mandioca, abacaxi, banana, car, batata-doce, cana, pimentas, feijo de praia, frutferas e palmeiras em geral Mandioca, car, batatadoce, abacaxi, banana, cubiu, aa-do-par, pupunha, pimenta Mandioca, caju, abacaxi, tucum, pupunha, pimenta No d bem

Terra preta

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Barro

Melancia, cana, caju, feijo de praia Banana, melancia, gerimum, cana, cubiu, feijo de praia, laranja, limo

Areiusco

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As variaes da estrutura e da textura do solo influenciam diretamente na adaptao dos cultivos. Segundo as agricultoras, algumas plantas como a banana, a melancia e o gerimum necessitam de um solo mais mido e compacto, e no do bem em solos com superfcie arenosa, como o tipo areiusco. E aduzem que este solo, sob incidncia constante dos raios solares, aquecer-se-ia e queimaria estas plantas.

Derruba e queimaAps escolha da rea, o agricultor inicia a fase da broca ou roagem e derruba da rea, realizando este trabalho sozinho ou atravs de ajuris10. A roagem realizada com terados e tem como meta cortar todas as ervas, cips, arbustos e paus mais finos. A derrubada ocorre logo em seguida. Como forma de economizar tempo e energia, os agricultores fazem um corte bastante profundo em rvores de menor porte e, logo depois, derrubam com machados ou moto-serras as rvores maiores, e passam a derrubar a vegetao circundante, geralmente no sentido centro periferia do roado. A broca ou roagem, quando feita numa vegetao secundria, realizada comumente no incio do vero, entre os meses de julho e agosto, e deixada para secar antes da queima por 15 a 30 dias, enquanto que uma vegetao de mata alta exige trs meses para secar, sendo derrubada entre maio e junho. O ltimo processo, essencialmente masculino, a queima. considerada uma boa queima quando o fogo queima bem toda a vegetao e feita na poca certa. Uma m queima, geralmente, feita no incio das chuvas, o fogo ento no consegue se espalhar pela vegetao mida e o agricultor no poder obter bons10 Organizao coletiva do trabalho, conhecido tambm como mutiro.

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rendimentos. No caso de uma m queimada, o agricultor pode juntar os restos de vegetao que no foram queimados num montculo, chamado coivara, e realizar outra queima. A queimada realizada para disponibilizar adubo para as plantas e retirar as ervas adventcias.

Obteno das plantas e plantioO primeiro momento desta fase a obteno das plantas. Algumas espcies so protegidas do fogo e mantidas para enriquecer o roado. Faz-se aceiro ao redor de espcies que no resistem ao fogo, como a bacaba, bacabinha e o pequi e outras como o tucum e pupunha, dessa forma, aps a queimada, estas conseguem resistir e so mantidas no roado. Outras plantas crescem espontaneamente no roado aps a queima e so mantidas, como o ing, goiaba de anta, cubiu, car e mandioca. A goiaba de anta deixada no roado como futura atratora de animais de caa. As principais formas das mulheres obterem as espcies com reproduo vegetativa, que so as plantas tpicas de roa (mandioca, car, batata-doce e banana), so atravs de roados antigos, fazendo a muda de parte da planta para o roado novo. Outra forma atravs de doaes realizadas por vizinhos ou parentes ou incorporando plantas oriundas de bancos de sementes nas capoeiras. A parte utilizada para propagao da mandioca denominada de maniva (Figura 11). As mulheres, aps a colheita, em um roado antigo, selecionam as mandiocas de maior interesse agronmico e podem descartar as que no tiveram vigor produtivo aps sucessivos replantes. O momento certo de colher a mandioca quando ela est madura, depois da florao. Aps este momento, a mandioca mantida em solo e, na necessidade de se produzir farinha ou outros itens alimentares, retirada a sua raiz e as manivas so deixadas em feixes, com a ponta enterrada na terra sem deixar secar.45

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Geralmente, so obtidas sementes e mudas dos quintais e stios (cupuau, biriba, goiaba, abiu) para posterior plantio. Tambm, podem ser obtidas sementes no mercado de Manaus (gerimum, melancia). A transferncia de plantas como aa-da-mata, bacaba e uxi das capoeiras e da mata alta igualmente contribui para manter o roado mais enriquecido. Usualmente, estas frutas so retiradas da floresta, consumidas e suas sementes so germinadas nos quintais em mudas para posterior transferncia para os roados ou, tambm, para doao. O plantio da mandioca deve ser realizado logo aps a queima e no pice do vero, pois, como relatam as agricultoras, se plantar maniva nas chuvas encharca a maniva e pode dar bicho, que tora tudo. Muitas agricultoras plantam de qualquer jeito, como dizem, enquanto que muitos obedecem aos ciclos lunares, devendo plantar a

Figura 11 Roca recm aberta. Fonte:Thiago Mota Cardoso

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mandioca e outras frutas quando a lua estiver na crescente: para crescer bem as batatas ou caruda (cheia) para dar mandioca grossa. O plantio da mandioca feito pela mulher e filhos, podendo ter a ajuda dos homens e dos parentes. Geralmente, planta-se do centro do roado para a beira prximo mata, mas tambm se pode realizar o cultivo de um lado diretamente a outro da roa. As manivas cortadas de 15 a 30 centmetros so colocadas horizontalmente em covas, com cerca de 30-50cm de distncia uma da outra. Duas tcnicas so utilizadas a mergulho e a cavada, na primeira, as manivas so inteiramente enterradas; na segunda, as pontas ficam de fora. Aps plantio da mandioca, um pouco antes do perodo das chuvas, em novembro e dezembro, ocorre o plantio dos abacaxis de forma aleatria. Nas coivaras, devido cinza, ao carvo desfeito e ao calor, so plantadas as pimentas, cubius, canas, cars, bananas, gerimum e batata-doce, plantas de maiores exigncias agronmicas. A pimenta e o cubiu so plantados jogando-se as sementes de forma aleatria na coivara. As bananas so colocadas de preferncia nas bordas do roado, pois podem formar uma barreira contra a entrada de predadores das plantas, como veados (Mazama sp.) e bandos de porcos do mato (Tayassu tajacu). A mandioca brava estrutura a organizao espacial do roado. As agricultoras distribuem as manivas tendo como base a taxonomia local, ou seja, o reconhecimento dos atributos e tipo distintivo de cada variedade e suas caractersticas agronmicas. O primeiro critrio de distribuio das manivas a cor do tubrculo, segundo as agricultoras, no se deve misturar as mandiocas brancas com as amarelas. Aps esta distino, as variedades podem ser distribudas atravs de dois modelos baseados na percepo distintiva das partes areas: em banda (segmentado) e o misturado. Quando comeam a maturar as mandiocas de menor durao em solo, a agricultora inicia a colheita e imediatamente o replante dos47

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clones. Quando o replante realizado, a agricultora corta as manivas em tamanhos maiores do que quando ocorre plantio em novas reas. Tambm necessrio colocar na cova quatro manivas da mesma qualidade ou de qualidades diferentes ao invs de duas do plantio inicial, que, conforme as agricultoras, aumenta a possibilidade de vingar as manivas de indivduos mais vigorosos em solos mais fracos. O trabalho de colheita e replante ocorre at o momento em que a agricultora percebe que o solo j est cansado e com invaso constante de muitas ervas adventcias, neste momento, as mandiocas colhidas tero suas manivas cortadas e arrumadas em feixes. Aps o incio das chuvas, a agricultora pode, caso decida construir um stio, plantar frutferas arbreas. O plantio pode ocorrer tanto da roa nova como na roa velha. Algumas plantas como o aa-do-par, o cupuau, o abacate, a manga e o umari so plantadas em reas sombreadas pelas folhas das primeiras mandiocas. Outras no so to exigentes quanto presena direta do sol, como os ings e o tucum. O cupuau e o ing so semeados de forma aleatria, jogandose a semente no espao, o que pode contribuir para a diversificao destas plantas. A pupunha deve ser plantada um pouco distante de outras frutferas, pois o crescimento de suas razes considerado um dificultador do crescimento das plantas vizinhas. Aps o abandono, ficam as frutferas que sero manejadas com tcnicas adequadas para o manejo agroflorestal.

Manejo de espcies espontneasA limpeza das ervas espontneas no terreno, atravs da capina ou roa, reconhecida como uma das mais importantes prticas agrcolas no rio Cuieiras. plenamente conhecida que o crescimento constante, principalmente durante a poca das chuvas, de jurubebas, capins navalha, tiririca, dentre outros, atrasa a roa, como relatam, no sentido de diminuir a produtividade do roado e atrapalhar o trabalho de cultivo.48

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As agricultoras relatam que as principais ameaas ambientais s plantas manejadas no roado so os animais silvestres e insetos, que constantemente penetram no espao cultivado, chegando a eliminar algumas plantas. Insetos como as formigas savas (Atta spp.) e gafanhotos so combatidos constantemente em muitos roados. Os vertebrados, principalmente os mamferos, so considerados os grandes viles do roado. Caso a agricultora abandone temporariamente o espao para realizar uma viagem, no seu retorno, pode se deparar com o roado todo destrudo pelas capivaras (Hydrochoerus hydrochoeris), porcos do mato (Tayassu tajacu) e cutias (Dasyprocta agouti). A forma de controle local destes animais atravs da caa. Os espaos agrcolas no rio Cuieiras so os principais espaos de caa, responsveis por boa parte da biomassa de mamferos e aves consumidos na regio. Os caadores frequentam constantemente a roa para fazer espera de algum animal de interesse alimentar. A roa neste caso funcionaria como uma grande ceva para os caadores.

Manejo da capoeiraAps os ciclos de cultivo na roa, o espao abandonado para que o solo recupere a fertilidade tornando-se capoeira. Porm, como se observa no rio Cuieiras e em outras regies da Amaznia, as capoeiras no so consideradas apenas uma fase de descanso, mas sim como uma fase do sistema agroflorestal indgena que proporciona diversos usos e a manuteno de sementes. Os principais recursos utilizados da capoeira so os frutos de palmeiras, medicinais e madeira para lenha e venda. Algumas espcies so tiradas para abastecer as casas de forno e as caeiras de carvo, outras podem ser vendidas para atravessadores da regio ou trocadas por itens alimentares e utenslios domsticos. Muitas agricultoras conseguem obter manivas de mandioca, parte da cana e banana49

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nas capoeiras. A capoeira no importante apenas pelo uso direto das espcies, mas tambm por conter espcies e variedades, conformando um importante banco de sementes. As agricultoras relatam a germinao de sementes de mandioca e car em roas cultivadas em rea de antigo cultivo:As vezes que ns fazemos a roa na capoeira sempre nasce maniva de semente. Ela nasce assim, sem raiz e ela vai pro fundo. No tem batata no como as manivas plantadas. S tem batatinha na ponta. D na capoeira porque roa dos antigos. As sementes j ficaram no cho. Aguenta mesmo, voc pode fazer uma roa na capoeira, ai com um ms voc vai ver, maniva pra l, pr c...tudo de semente. Tudo sem nome, ningum sabe o que que . Se ela for boa ns vamos cuidar dela. A maniva fica na capoeira. Deixando na terra ela no aguenta, mas a semente fica. Deixando a roa, com uma ano e meio a mandioca j fica com frutinha, aquela semente abre e cai, fica na terra. Olha esta capoeira do Dadico, quando derrubamos j tinha semente crescendo rapidinho. Quando tem semente que a roa ta bem madura, j da as frutinhas, ai cai e abre igual fruta, igual seringueira que cai em fevereiro, com a maniva igual. Depois que vamos derrubar embrolha (brota) as sementes.

Diversidade agrcola na roaCultiva-se uma ampla diversidade de espcies e variedades (qualidades), entre anuais e perenes, em estgios variados de domesticao na regio com destaque para as 70 variedades de mandioca (5 mansas e 65 bravas) (Tabelas 3 e 4). Ao contrrio dos quintais, onde predominam espcies frutferas, ornamentais, condimentares e medicinais, nos roados do rio Cuieiras, as espcies, como a mandioca, presente em 100% dos roados, o car, a banana e abacaxi, so as mais frequentes e as que possuem maior diversidade. A mandioca a espcie estruturadora50

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dos roados e a mais utilizada localmente, podendo ser considerada uma espcie cultural chave.Tabela 3 Lista das plantas cultivadas no rio Cuieiras11

Nome CientficoMandioca Car Banana Abacaxi Ing Cana Aa-dopar Pimenta Umari Tucum Cubiu Graviola Batata Doce Abacate Cupuau Gerimum Feijo de praia Manihot esculenta Dioscorea spp. Musa sp. Ananas comosus Inga sp. Saccharum officinarum Euterpe oleracea Capsicum spp. Poraqueiba paraensis Astrocaryum aculeatum Solanum sessiliflorum Annona muricata Ipomoea batatas Persea americana Theobroma grandiflorum Curcubita pepo Phaseolus vulgaris

Qualidades Roa Quintal Stio70 5 12 2 4 5 7 4 3

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Excluindo plantas medicinais ornamentais

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Nome CientficoPlanta da roa* AriMangarataia

Qualidades Roa Quintal Stio6 3

Calathea alluia Zingiber officinalis Bactris gasipaes Oenocarpus bacaba Eugenia jambos Colocasia antiquorum Anacardium occidentale Theobroma cacao Mangifera indica Rollinea mucosa Citrullus vulgaris Cacaria papaya Theobroma bicolor Pourouma cecropiaefolia Maximiliana maripa Mauritia flexuosa Pouteria caimito Citrus sinensis Bellucia grossularoides

Pupunha Bacaba Jambo Taj Caju Cacau Manga Biriba Melancia Mamo Baraturi Cucura Inaj Buriti Abiu Laranja Goiaba de anta

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Nome CientficoTaioba Aa-domato Urucum Piqui Cebolinha Mari-mari Jaca Uxi Maracuj Milho Cedrinho Xanthosoma sagittifolium Euterpe precatoria Bixa orellana Caryocar villosum Allium cepa Cassi leiandra Artocarpus heterophyllus Duckesia verrucosa Passiflora sp Zea mays Erisma uncinatum

Qualidades Roa Quintal Stio

Bacabinha Oenocarpus mapora Jenipapo Araticum Limo Ara Goiaba Genipa americana Annona montana Citrus limonia Psidium guineensis Psidium guajava

Fonte: Cardoso, 2008

No rio Cuieiras, nenhuma variedade amplamente cultivada. As de maior frequncia so as variedades tracaj, aladim e nara justamente por terem maior produtividade para a produo de farinha e comercializao. As espcies de ciclo mais curto so manejadas nos primeiros estgios dos roados, onde, aps dois ou trs anos de cultivo e53

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posterior abandono, pode comear a predominar as espcies arbreas cultivadas, que tm suas sementes ou partes transferidas dos quintais, da floresta, trazidas do mercado e/ou incorporadas durante a sucesso natural. As espcies frutferas arbreas esto presentes nos roados de 63% das famlias. Observa-se, tambm, em certa medida, uma preferncia por unidade familiar no uso de cada planta e a escolha por espcies comercialmente mais valoradas (aa, graviola, cupuau, tucum, abacate) e muitas espcies se encontram em poucas unidades familiares.Tabela 4 Qualidades de mandioca no rio Cuieiras.

Mandioca BravaManiva tracaj grande Maniva aa Maniva aladim Maniva nara Maniva seis meses Maniva capivara Maniva roxinha Maniva jurar Maniva piriquito Maniva amarelo Maniva pretinha Maniva uiwa amarela Maniva macielzinho Maniva preta Maniva nanico Maniva arauari Maniva caroo Macaxeira preta Macaxeira roxaFonte: Cardoso, 2008

Maniva olho roxo Maniva surubim Maniva oro Maniva catatau Maniva tartaruga Maniva maturac Maniva arrozinho Maniva nanica-pixuna Maniva lngua-de-pinto Maniva branca Maniva baixinha Manivas sem nome Manivas de semente

Maniva uiwa branca Maniva seis meses creme Maniva paca Maniva nara amarela Maniva supi Maniva ndia Maniva olhuda Maniva uia-pixuna Maniva maimaroca Maniva jacund Maniva arroz Maniva mata porco Maniva antinha Maniva ndio

Maniva tracaj pequeno Maniva pixuna

Mandioca MansaMacaxeira branca Macaxeira vermelha Macaxeira manteiga

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Os quintais agroflorestais

Caroline de Oliveira Bruno Scarazatti

Na regio amaznica, as comunidades locais desenvolveram sistemas integrados de subsistncia envolvendo atividades como a pesca, a caa, os cultivos agrcolas de curto e longo prazo e a coleta de produtos vegetais. O quintal agroflorestal faz parte deste sistema cuja interao dos recursos naturais e o manejo dos mesmos respondem diretamente necessidade das populaes locais. Os quintais agroflorestais podem ser definidos por serem,uma rea de produo, localizada perto da casa, onde cultivada uma mistura de espcies agrcolas e florestais, envolvendo, tambm, a criao de pequenos animais domsticos (galinhas, patos, porcos, gatos e cachorros) ou animais domesticados (paca, capivara, porco do mato)12

conhecido na Amaznia como quintal, stio, pomar, horta familiar ou terreiro, sendo este ltimo o nome pelo qual a maioria dos moradores do rio Cuieiras o chama. O quintal tambm a rea de lazer da famlia e de intercmbio dos vizinhos. Um espao onde as brincadeiras das crianas acontecem, e momentos

12

Ver Manual Agroflorestal da Amaznia, de Dubois (1996).

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de descontrao e relaxamento so usufrudos por todos, sentados sombra das rvores. A escolha das espcies plantadas num quintal agroflorestal pode ocorrer em funo de diversos objetivos, sendo a produo de frutos para a alimentao um dos principais. Enquanto a roa garante os alimentos de base, como mandioca, milho, feijo entre outros, o quintal responsvel por uma alimentao complementar, fornecendo frutos ricos em vitaminas e sais minerais. A grande diversidade de plantas de uso mltiplo, caracterstica dos quintais, garante a seus proprietrios um papel significativo quanto segurana alimentar. Isso porque a variedade de espcies cultivadas assegura um cardpio contnuo de alimentos ao longo do ano. Alm das frutferas, espcies de valor medicinal, ornamental, cultural e de uso na confeco de artesanatos, tambm, fazem parte deste mosaico de plantas. Portanto, so diversos os produtos gerados e consumidos de um quintal. Em alguns casos, a produo de excedentes pode at significar um ganho econmico extra, mesmo que pequeno. O quintal tambm funciona como um campo de experimentao de novas espcies e tcnicas (propagao vegetativa, podas, enxertias, entre outras), as quais, por ventura, podero ser utilizadas, em maior escala, em outras unidades de produo. vlido ressaltar a contribuio positiva dos quintais com a manuteno da fertilidade do solo, na medida em que melhora a eficincia do processo de ciclagem de nutrientes, por sua vez, estimulada pela deposio do lixo orgnico gerado pelo consumo dos moradores (restos de alimentos, cascas, ossos, cinzas). O quintal agroflorestal tambm presta servios ambientais como proteo e conservao da estrutura fsica do solo, incremento e manuteno da biodiversidade local, entre outras vantagens quanto ao aproveitamento do espao e56

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de recursos naturais como gua, luz e nutrientes do solo, conforme observados por alguns autores.13 Nas comunidades indgenas e ribeirinhas do rio Cuieiras, os quintais agroflorestais se fazem presentes. A maioria de seus moradores cultiva seu quintal e demonstra dar grande importncia para este espao. Dentro deste contexto, o presente estudo objetivou realizar um levantamento e descrio dos quintais agroflorestais localizados no rio Cuieiras, estudando-se as principais espcies componentes destes sistemas, bem como a relao de uso por suas comunidades.

Diversidade cultivadaForam levantadas informaes etnobotnicas em nove quintais agroflorestais, contabilizando um total de 43 famlias e 82 espcies. O nmero de espcies registradas em cada quintal variou entre 11 a 50 representantes. A famlia com maior nmero de espcies foi a Arecaceae (palmeiras), com 12 espcies registradas, seguida das Rutaceae e Myrtaceae, ambas com 5 representantes. Na sequncia, as Solanaceae e Euphorbiacea aparecem com 4 representantes cada. O restante das outras famlias foi representado apenas por uma ou duas espcies. Do total de famlias registradas, 73% foram classificadas como alimento (Figura1). Nas Solanaceae, por exemplo, a maioria das espcies so herbceas condimentares (pimentas). Das Euphorbiacea, foram registradas a macaxeira (Manihot esculenta) e mandioca (Manihot esculentum) para alimentao, pinho-branco (Jatropha curcas) para uso medicinal e seringueira (Hevea sp) como espcie arbrea nativa de ocorrncia natural (no plantada), classificada como outros usos.13

Pinho (2008); Lok e Mendes (1998). 57

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As plantas utilizadas como temperos e condimentos, apesar de servirem como alimentos, foram classificadas parte, como condimentares, totalizando 6% das espcies registradas. As plantas de uso medicinal somaram 11% do total, com diversos tipos de utilizaes para combate s enfermidades. Outros tipos de usos, como obteno de madeira, sombreamento, uso ornamental, ou mesmo quelas espcies de ocorrncia espontnea (no plantada) corresponderam a 11% do total de registros. Como exemplos de espcies espontneas foram encontradas: Imbaba (Cecropia sp.), Seringueira (Hevea sp.), Maaranduba (Manulkara huberi) e Cumaru (Dipteryx odorata), todas estas aproveitadas para obteno de madeira, mesmo que no tenha sido esta a inteno. Algumas espcies tm potencial para artesanato, como a Cuieira (Crescentia cujete), o Babau (Orbignya phalerata), Tucum (Astrocaryum aculeatum) entre outras. Os moradores locais denominam tambm algumas espcies como rvores do mato, pois no relacionam a sua identificao com alguma utilidade ou uso especfico. Dentre os quintais visitados, as espcies mais comumente cultivadas so: o Cupuau (Theobroma grandiflorum), em 100% dos quintais, o Aa-do-par (Euterpe oleracea), Caju (Anacardium giganteum), Ing (Inga sp) e Pupunha (Bactris gasipaes), encontrados em 89% dos quintais. Em seguida, aparecem a goiaba (Psidium guajava), Jambo (Eugenia jambos), Manga (Mangfera indica) e Mari-mari (Cassi leiandra) em 79% dos quintais. O Birib (Rollinea mucosa), o Car (Dioscorea spp), a Castanha-do-Brasil (Bertholletia excelsa), a Cebolinha (Allium cepa) e a Jaca (Artocarpus heterophyllus), tambm, foram encontrados em 67% dos quintais estudados (Tabela1). Das espcies cultivadas, as frutferas so predominantes em 56% dos quintais.58

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Diversidade de alimento ao longo do anoSegundo Dubois (1996),um bom quintal deve fornecer produtos teis o ano todo e, portanto, devem reunir um grande nmero de espcies e variedades, escolhidas de tal maneira que, em qualquer poca do ano, a famlia possa colher no quintal alimentos, frutas e plantas medicinais.

Para um bom planejamento de espcies que ofertem alimentos ao longo do ano, devem-se anotar os perodos de frutificao de espcies sazonais, criando um calendrio que possa ser completado atravs do cultivo de espcies que produzam com maior frequncia. A partir disso, foi constatado que as espcies frutferas, principalmente as arbreas, apresentaram as produes mais variadas ao longo do ano (Tabela 1). No entanto, mudanas no comportamento fenolgico das rvores podem ocorrer ocasionalmente em funo de variaes climticas ou no meio ambiente, por exemplo, assim como a seca ocorrida em algumas regies amaznicas, em 2005.Tabela 5 Principais espcies cultivadas nos quintais agroflorestais (excluindo medicinais e ornamentais) e poca de frutificao e alimento.14

Mar

Ago

Nov

Mai

Abacaxi

Ananas comosus (L.) Merril.

14 Primeiramente, preciso esclarecer que este levantamento foi feito com base em literatura e trabalhos de outros autores que estudaram plantas comestveis na regio Amaznica, e que o ideal seria realizar um estudo em diferentes pocas do ano para acompanhar a frutificao das espcies e avaliar a distribuio e oferta de alimentos de maneira mais real ao longo do tempo.

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Dez

Abr

Out

Fev

Set

Jan

Jun

N