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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LNGUAS ORIENTAIS
PROGRAMA PS-GRADUAO EM ESTUDOS JUDAICOS E RABES
REA DE CONCENTRAO: ESTUDOS JUDAICOS
LYGIA FERREIRA ROCCO
Dilogos da arquitetura no Cairo entre os sculos X e XIII:
A Sinagoga de Ben Ezr e o contexto da cidade islmica
Exemplar Revisado
SO PAULO
2014
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LNGUAS ORIENTAIS
PROGRAMA PS-GRADUAO EM ESTUDOS JUDAICOS E RABES
REA DE CONCENTRAO: ESTUDOS JUDAICOS
Dilogos da arquitetura no Cairo entre os sculos X e XIII:
A Sinagoga de Ben Ezr e o contexto da cidade islmica
LYGIA FERREIRA ROCCO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Estudos Judaicos e rabes do Departamento de Letras
Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno
do ttulo de Doutor em Letras.
rea de Concentrao: Estudos Judaicos.
Orientador:
Prof. Dr. Moacir Aparecido Amncio
EXEMPLAR REVISADO
De acordo do orientador
Orientador: Prof. Dr. Moacir A. Amncio
Ass.: ____________________________________________
SO PAULO
2014
Ao meu filho ENZO, que torna tudo especial.
Agradecimentos
Desejo expressar a minha profunda gratido e apreciao ao meu orientador prof. Dr.
Moacir Aparecido Amncio pelo seu apoio, pelas observaes, correes, indicaes de leitura
e conselhos valiosos, e para com aqueles que apoiaram e acompanharam desde a minha
dissertao de mestrado, at a finalizao desta presente pesquisa, ao prof. Dr. Mamede Mustafa
Jarouche, pelo incentivo a esta pesquisa e ao prof. Dr. Andrea Piccini pela sua grande amizade,
e pela generosidade com que compartilha o conhecimento sobre a arquitetura. A todos pela
confiana depositada em mim nesses anos de pesquisa, pelas longas conversas e encontros.
CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), pelo
apoio com o qual foi possvel a dedicao a esta pesquisa em tempo integral, e tambm a
aquisio de material de pesquisa imprescindvel para o desenvolvimento de todo o tema.
Ao Magia Elguibly com as indicaes e comentrios que foram fundamentais e que foi
uma das sementes norteadoras desta tese, pela sua indicao fundamental para esta pesquisa, e
os seus comentrios valiosos sobre o Cairo. E pela sua disponibilidade em me encontrar para
conversarmos sobre o tema.
Aos funcionrios da biblioteca do MAE-USP (Museu de Arqueologia e Etnologia) pela
ajuda que foram fundamentais, atendendo a todas as minhas solicitaes de textos, livros,
artigos, alm do apoio, das indicaes, das conversas e do carinho, simpatia e ateno que
dispensaram s minhas necessidades, e a amizade que surgiu dessa convivncia diria nestes
anos de pesquisa, a Diretora da Biblioteca Eliana Rotolo e de toda a sua equipe: Hlio Rosa de
Miranda, Alberto Blumer Bezerra, Eleuza Gouveia, Gilberto Morais de Paiva, Ana Lcia de
Lira Facini, Washington Urbano Marques Jnior, Marta dos Santos Vieira, Thiago Chaves
Alexandre e aos estagirios que me gentilmente me atenderam.
Meu agradecimento a Sofia Tels, diretora da Biblioteca Mehlmann da Universidade de
Tel-Aviv pelo envio de artigos. Ao Roberto Bertazzoni, da Biblioteca Fondazione Bruno
Kessler (FBK), em Trento (Itlia) pelo envio de material fundamental para minha pesquisa.
Agradeo a toda equipe de Ps-Graduao e da secretaria do Departamento de Letras
Orientais: Jorge, lvaro, Maribel, Iva, Luis e Patricia, e ao programa de Estudos Judaicos e
rabe da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Sociais da Universidade de So Paulo
(FFCLH-USP) pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa no nvel de doutorado. Aos
professores do programa de Hebraico e ao programa de rabe que foram receptivos e apoiaram
toda a pesquisa, com o oferecimento de disciplinas relevantes ao aprofundamento do tema.
Ao Rodrigo Pereira da Silva da UNASP-EC, por disponibilizar de momentos valiosos
de seu tempo em Israel para procurar artigos na Biblioteca de Jerusalm. Ao Diego Raigorodsky
pela traduo para o portugus dos artigos em hebraico.
profa. Dra. Arlene E. Clemesha e ao prof. Dr. Miguel Attie Filho pela oportunidade
de realizar o estgio do PAE (Programa de Aperfeioamento de Ensino) em suas aulas da
Graduao.
Julia Maria de Paiva que desde nosso encontro no Cairo me encorajou e incentivou a
aprofundar o estudo sobre a arquitetura e sobre a cidade islmica, e Patricia Rodrigues
Loureiro e Silva, minha amiga-irm, Marisa Alves de Souza e Selma Daffr pelo encorajamento
em todos estes anos de pesquisa, e a todas estas amigas que so to valiosas para mim, pelo
importantssimo e fundamental auxlio nas questes prticas do cotidiano, e que me apoiaram
nos momentos mais difceis, os quais no foram poucos, ajudando-me a super-los e seguir em
frente. Dalva Pares Cunha pelos anos de amizade e pela sua sabedoria e gentileza que me
serviram de modelo. Ao Alexandre, meu amigo irmo pela torcida, apoio, amizade e carinho.
Beatriz, pela ateno, pelo imenso carinho e disposio que foram to importantes nestes
ltimos seis anos, e Patricia pelo apoio.
Aos meus avs e a meu pai (in memorian), minha tia Maria do Carmo Rocco, por
terem aberto meus caminhos, pelo apoio financeiro nos momentos difceis e pelo incentivo aos
meus estudos durante todos estes longos anos de formao, estudo e pesquisa. minha me
pelos anos de formao, introduo ao universo da leitura e passeios aos museus e galerias.
prima Marlene por sempre ter acreditado e pela grande ajuda que ofereceu nos momentos
difceis.
Aos amigos de tantos anos, que me acompanham, onde sempre encontro apoio, fora e
estmulo: Gyngy Lukcs, Prola, Cristina, Mariana Szllzy, Mariangla N. Figueiredo, Carlos
E. Figueiredo e D Vanir, Geraldo Mendes, Helena Andr, Lri.
Ao meu filho Enzo, sempre presente, que faz tudo valer pena e compreensivo quanto
s ausncias da me em suas brincadeiras nestes seus 6 anos de vida. A ele por simplesmente
estar aqui ao meu lado.
Isabelle Somma, por atender as minhas necessidades em Cambridge com os livros e as
emocionantes conversas sobre o assunto em nossos encontros. Ao Rogrio Schlegel pelo apoio,
leitura e comentrios e pela amizade. Ao Claudio W. Duarte pela amizade, sugestes de leitura,
comentrios e pela grande generosidade. A Tatiana Souza pela disposio em trabalhar as
imagens e pela amizade e deliciosas conversas.
Aos meus amigos do Museu e USP pelas leituras, conversas, comentrios e dicas:
Irmina, Isabel Catanio, Rodrigo de Lima, Cleberson Moura, Maria Ester, Viviana, Aline, La,
Gustavo, Cida, Geraldo, Judite, Maurcio, Fillipo, Marta e a todos pelos agradveis encontros.
s amizades que foram para alm dos espaos da Universidade: Lorena, Estevam, Juliana
Duarte, Ximena, Daniela e Sheila.
Valria Montanholli, Ricardo Sacco, Malu Dias, Rejane Elias, Tho, Dafner Barreto,
Leonardo Capucci, Mrian, Augusto, Vanessa, Tatiane Almeida, Diego, Diana Mendes, Jos
Srgio, Katiucha, Lo, Daniela, Claudemir, amizades que se iniciaram nos corredores da Creche
Central e ultrapassaram os jardins e as unidades da Universidade de So Paulo, pelos nossos
encontros, almoos, passeios e todos os momentos deliciosos que passamos juntos. Rejane
tambm pela ajuda com a traduo.
E s amizades que se intensificaram para alm dos espaos dedicados aos nossos filhos:
Marcelo Modolo, Clia Modolo, Juta, Jorge, Elosa, Luciano, Rita, Grace, Jussara, Z, Marcelo,
Aline, Ruy, Jlia, Rose, Malu, Sergio, Renato e Bianca, todos queridos amigos que em vrios
momentos ofereceram valioso suporte para a pesquisa no que se refere ao auxlio na dinmica
das atividades e da logstica do dia-a-dia.
Aos meus amigos da Vila Buarque: Eduardo Camargo, Ismar Leal, Regina Tirello,
amizades que se intensificaram ao longo dos anos e ao Mrcio Prigo, Cato, Marcos, Moacir
Simplcio, Carlos Marinho, Philippe, Cacau, Ded, Janana, Priscila, Mathias, Max, Robson, aos
novos e pequenos ingressantes do grupo, Teo e Gabriel. Aos amigos da UMAPAZ/UNESP:
Mrio, Lucila, Luciene, Paula e Will, Solange, Luana, Patrcia e todos que fizeram parte deste
grupo que simbolizou um renascimento.
s educadoras e funcionrios da Creche Central Coseas da Universidade de So Paulo,
que estiveram nestes seis anos presentes na vida do Enzo, e com carinho atenderam as suas
necessidades e contriburam para a sua formao, fazendo com que eu tivesse tranquilidade
absoluta para me dedicar pesquisa. Pela amizade e pelos momentos inesquecveis de toda a
convivncia: Josiane (Jos), Alexsandra, Irene, Adriana (Dri), Priscila, Telma, Lvia,
Crispiniana, Hanna, Edinaura (Edi), Crismara, Juliana, Lenilda, Mrcia, Margareth, Ione, Isabel
(Bel), D Ivoni, Delba, Dirlene, Sizino, Bruna, Anaizuede, Andrea, ngela, Marli, Martha,
Fabiana, Everaldo, Rmulo, Miriane, Neime, Odair, Olindina, Beth, Maria Claudia, Eliene,
Francinalda, Chiquinho, Nelita, Maria, Flvia, Janeide, Jorge, Gabriela, Elaine, Carla, Airton,
Clio, Jos (Seu Z), Rodrigo, Rose, Cida, Thiago, Mait, Tas, Renata, Clio, Clio, Renata,
Natlia, Denise e todas as educadoras e funcionrios que estiveram presentes na vivncia do
Enzo neste espao que foi to especial para todos ns. E Dona Lucy pela simpatia e carinho.
PALAVRAS CHAVE
Arquitetura Cairo Sinagoga Judasmo Isl Medievo
RESUMO
Nos estudos sobre as cidades islmicas, poucos so os que tratam dos edifcios
que pertencem a outros grupos confessionais que no o dos muulmanos, no sentido de
analis-los como agentes na evoluo da configurao urbana das cidades que estiveram
sob governo islmico.
Os estudos existentes sobre esses edifcios seguem sempre uma orientao em
analis-los dentro de seus prprios elementos, ou seja, um edifcio cristo ou judaico
dentro do seu prprio contexto que o de servir a sua prpria comunidade confessional.
A tese mostra que a sinagoga um elemento que tambm constri e participa da
dinmica da cidade, e seu estudo auxilia tanto na compreenso da urbe rabe-islmica,
como tambm no entendimento da dinmica da sociedade entre os sculos X-XIII.
Ao analisar a Sinagoga de Ben Ezr localizada no Cairo portanto no contexto da
cidade islmica e no apenas sob seus aspectos estticos ou estilsticos, busca entender
como o edifcio dialoga com a cidade no sentido da construo de suas territorialidades.
E tambm, no sentido inverso: como a cidade e um tipo de linguagem islmica
dialogam com o edifcio judaico.
A grande extenso geogrfica conquistada pelo Isl produziu uma multiplicidade
de formas e emprstimos e, ao mesmo tempo, devido facilidade de ir e vir das pessoas
e as novas conquistas, forjou-se uma certa unificao na linguagem.
As trocas e as assimilaes no s foram e so inevitveis, como fazem parte das
relaes e convvio entre os grupos em qualquer momento. A Sinagoga de Ben Ezr foi
desde a sua fundao, um elemento organizador do espao urbano ao seu redor,
organizador da distribuio dos habitantes ligados comunidade judaica, no apenas da
comunidade rabnica da palestina mas das outras comunidades judaicas babilnica e
carata, entre os sculos X ao XIII. E desempenhou um papel de articulador de
multiterritorialidades.
Esta anlise vem ampliar o conhecimento acerca desse edifcio, e
principalmente, das relaes entre as comunidades judaica, islmica e crist entre a
conquista fatmida do Egito (969 E.C.) e o fim da dinastia aibida (1254 E.C.).
Key Words
Architecture Cairo Synagogue Judaism Islam - Medieval
ABSTRACT
In studies of Islamic cities, there are few that deal with buildings that belong to
other faith groups other than Muslims, in the sense of analyzing them as agents in the
evolution of the urban configuration of the cities that were under Islamic government.
The existing studies about these buildings always follows the line of analyzing them
inside their own elements, in other words, a Christian or Jewish building within their
own context, which is to serve its own confessional community.
The thesis shows that the synagogue is an element that also builds and
participates in the dynamics of the city, and its study helps both in the comprehension of
the Arab-Islamic metropolis, but also in understanding the dynamics of society between
the X-XIII centuries.
By analyzing the Ben Ezra Synagogue in Cairo, located just in the context of the
Islamic city, not only in its aesthetics or stylistic aspects, aims to understand how the
building dialogues with the city in the sense of the construction of its territorialities.
And also, in reverse: how the city and a kind of Islamic language dialogue with the
Jewish building.
The big geographic extension conquered by the Islam produced a multiplicity of
forms and loans and, at the same time, due to the facility of coming and going of the
people and the new conquests forged a certain unification in the language.
The exchanges and the assimilations not only were and are inevitable, as they
are part of the relations and living together among the groups at any time. The Ben Ezr
Synagogue was since its foundation, an organizing element of the urban space around,
organizer of the distribution of the inhabitants linked to the jewish community not only
the rabbinic of Palestine but for others jewish communities babylonic and Karaite,
between the X-XIII centuries. And it played a role of articulator of multiterritorialities.
This analysis comes to enlarge the knowledge about this building, and mainly, of
the relations among the communities Judaic, Islamic and Christian - between the
Fatimid conquest of the Egypt (969 e.C.) and the end of the Ayyubid dynasty (1254
E.C).
NDICE
Pgina
ndice de Figuras i
Lista de Abreviaturas v
Explicaes Iniciais vi
Introduo 1
Captulo 1 12
1.1- CONSIDERAES GERAIS 12
1.2 -OBJETIVOS, CONCEITOS E METODOLOGIA 18
1.2.1 - Objetivo 18
1.2.2 - Conceitos 24
1.3 - CONCEITO DE CULTURA 32
1.3.1 - Cultura e arqueologia 32
1.4 - CULTURA MATERIAL 37
1.4.1 - A Paisagem 37
1.4.2 - Cultura Material e Arquitetura 41
1.5 - HISTRIA 44
1.6 - A TERRIORIALIDADE 49
Captulo 2 55
2.1 - DESENVOLVIMENTO HISTRICO 58
2.2 - ORIGEM DA FORTALEZA DA BABILNIA 64
2.3 - O EGITO ISLMICO 83
2.3.1 - Fus (antes da conquista Fatmida) Contextualizao Histrica 83
2.3.2 - Fus depois da conquista Fatmida 89
2.4 - COMPOSIO DOS GRUPOS NO GOVERNO FATMIDA 98
2.4.1 Comunidades (Aspectos Sociais) 106
2.5 - AS COMUNIDADES JUDAICAS NO PERODO FATMIDA 110
2.6 AS CIDADES: AL- FUS E AL-QHIRA 116
Captulo 3 123
3.1 - A GUENIZ 124
3.2 - AS COMUNIDADES CARATA E AS RABNICAS BABILNICA E
PALESTINA
129
3.2.1 - Caratas 130
3.2.2 - Rabanitas (Rabnicos) da Palestina e da Babilnia 134
3.2.3 - Rabnicos da Babilnia 136
3.2.4 - Rabnicos da Palestina 139
3.3 -AS RELAES COM O GOVERNO ISLMICO 141
3.4 - AS REDES DINMICA DA COMUNIDADE JUDAICA (SCULOS X-XIII) 150
3.4.1 - A Organizao da Cidade e as Leis 150
3.5 - WAQF FUNDAES PIEDOSAS 159
3.5.1 -Waqf 159
3.5.2 - A Configurao do Espao em torno da Sinagoga a partir das Doaes
Piedosas
163
3.5.3 - Sobre as Restries Legais dos Waqfs 171
Captulo 4 177
4.1 - SINAGOGA 177
4.2 - A SINAGOGA DE BEN EZR 178
4.2.1 Localizao da Sinagoga A Fortaleza da Babilnia 179
4.3 - QUESTES SOBRE A ORIGEM DO EDIFCIO 182
4.4 - DESCRIO DO EDIFCIO SINAGOGA DE BEN EZR E AS
CONSTRUES ADJACENTES
190
4.5 - CARACTERSTICAS TIPOLGICAS E ARQUITETNICAS DO
EDIFCIO
196
4.6 - ELEMENTOS ARQUITETNICOS NO INTERIOR DO EDIFCIO 205
4.7 - EVIDNCIAS ARQUEOLGICAS ANTERIORES RESTAURAO
LEVANTAMENTOS PARA O PROJETO DE 1980
211
4.8 - HISTRIA DA CONSTRUO (DO EDIFCIO): EVIDNCIA TEXTUAL 214
4.8.1 - A Sinagoga e a sua relao com a Comunidade As Evidncias Textuais 214
NDICE
Pgina
4.8.2 Descrio do Edifcio da Sinagoga no perodo Fatmida e Aibida e do seu Interior 229
Concluso 238
Apndice A Tabelas de Transliterao 250
Apndice B Cronologia de Governantes Fatmidas e Aibidas 255
Apndice C Glossrio 257
Bibliografia 259
i
NDICE DE FIGURAS
Figura Descrio Pgina
FIGURA I Mapa localizando Fustt com relao as outras reas do
Cairo histrico
4
FIGURA II A Sinagoga de Ben Ezr depois da restaurao realizada
na dcada de 1980
7
FIGURA 2.1 Os trs momentos da expanso islmica: (marrom) poca
de Mohammed (622-632 EC); (laranja) os domnios
durante o Califado Rashdun (632-661 EC); (amarelo) os
domnios durante o Califado Omada de Damasco (661-
750 EC). A segunda fase se inicia em 750 EC com o
califado abssida e a partir desse momento se inicia a
desfragmentao de um nico califado em vrios califados
autnomos.
59
FIGURA 2.2 O curso dos canais romano e rabe atravs do Cairo.
(mostra as principais vias modernas e a progradao
(processo natural de ampliao das margens e praias,
provocados pelos rios ou pelo mar) da margem oeste do
Nilo com o decorrer do tempo.
65
FIGURA 2.3 Egito e o Oriente Mdio c. 110 E.C. 66
FIGURA 2.4 Vista rea do Cairo Antigo. A Fortaleza da Babilnia est
no canto esquerdo inferior. A mesquita de cAmr prxima a
parte superior direita da foto.
68
FIGURA 2.5 O delta do rio Nilo e as ramificaes conforme o relato de
Strabo. [depois de Said, 1981].
69
FIGURA 2.6 Seo transversal entre Ain El-Sira e o Rio Nilo. 70
FIGURA 2.7 Principais rotas na direo norte-leste, da frica e Oriente
Mdio em direo ndia.
73
FIGURA 2.8 Regio atravessa pelo canal do Nilo at o Mar Vermelho.
Esboo feito por Posener que mostra a localizao encontrada
de quatro stelas persas.
74
FIGURA 2.9 Localizao de Musturud e o canal que passa por esse local. 75
ii
Figura Descrio Pgina
FIGURA 2.10 Imagem que mostra a distncia entre Musturud e o Mar Vermelho.
75
FIGURA 2.11 Reconstruo axonomtrica da Fortaleza Romana da Babilnia e a entrada do Ammis Traianus por volta de 300 EC.
[Alojamentos de Diocleciano: A topografia da Fortaleza
Romana da Babilnida].
76
FIGURA 2.12 A Fortaleza da Babilnia no contexto do Cairo. Caractersticas
topogrficas e urbanas da Margem Leste do rio Nilo no Cairo.
80
FIGURA 2.13 O local de al-Fus, al-cAskar e al-Qaic (depois de Bahat e
Gabriel). Indica a entrada do Fumm al- Kalg.
82
FIGURA 2.14 Planta que apresenta al- Fus, al-Askar, al-Qataci, e outros
elementos topogrficos da cidade. Indica a localizao das
margens do Nilo desde a poca da conquista rabe at o perodo
aibida. Retirado de Fouilles dal-Foustat de Bahgat Bey 1921.
84
FIGURA 2.15 Levantamento com os monumentos do Cairo Antigo. 88
FIGURA 2.16 Mapa do Magrebe, primeira metade do sculo XI. 90
FIGURA 2.17 Territrio do Governo Fatmida na primeira metade do sculo
XI e depois o que restou no sculo XII [listrado].
93
FIGURA 2.18A Evoluo urbana de Fus entre 642 a 1250 (depois de Clerget). 96
FIGURA 2.18B Os canais do Cairo na metade do sculo XIV. Toponmia,
urbanizao e eixos de circulao. Fonte: Description de
lgypte.
97
FIGURA 2.19 O Cairo Fatmida: al-Qhira. 104
FIGURA 2.20 Principais rotas de comerciais entre os sculos IX ao XV. 105
FIGURA 2.21 Mapa do territrio sob governo aibida (em laranja). 133
iii
Figura Descrio Pgina
FIGURA 3.1 Planta: Localizao do Cairo e Fayyum. 133
FIGURA 3.2 Planta do setor sul da Fortaleza da Babilnia. Indica as sinagogas, as instituies e as casas medievais. Localizao dos
edifcios por Menahem Ben-Sasson aps desenho elaborado por
Kate Spence, Peter Sheehan e Charles le Quesne.
175
FIGURA 4.1 A Sinagoga de Ben Ezr antes da restaurao ocorrida na
dcada de 1980 E.C.
179
FIGURA 4.2 Planta com os principais edifcios religiosos dentro da Fortaleza
da Babilnia. (1) Igreja da Virgem [al-Adra]; (2) Mair Girgis
[So Jorge]; (3) Igreja de Santa Brbara; (4) Ab Sargah (Santo
Sergius); (5) Sinagoga de Ben Ezr; (6) Igreja Suspensa / Sitt
Mariam [al-Muallaqa; muallaqt suspenso]; (7) Igreja Grega
Ortodoxa de So Jorge
180
FIGURA 4.3 Planta do Cairo Antigo. Indica os edifcios existentes e as reas
(cobertas) da Fortaleza Romana que permanecem no nvel do
terreno ou que foram reveladas pela escavao. No centro da
planta mostra o canal de Trajano. A entrada do canal entre as
duas torres.
183
FIGURA 4.4 Reconstruo axonomtrica dos alojamentos romanos na rea
leste da atual Sinagoga de Ben Ezr. Mostra a relao das
construes romanas com a sinagoga, com a Igreja de Santa
Brbara e outros edificaes medievais.
187
FIGURA 4.5 Maquete do Museu Copta que mostra o Cairo Antigo em 1930,
com as trs longas fileiras de construes dos alojamentos da
comunidade judaica.
190
FIGURA 4.6 Planta com levantamento do Egito em que mostra a relao do
Cairo Antigo e a regio do rio. O levantamento foi realizado em
1918. Apresenta os cemitrios prximos da fortaleza e da
sinagoga.
191
FIGURA 4.7 Planta da superfcie das estruturas da Sinagoga de Ben Ezr com
o Anexo II.
193
FIGURA 4.8 Fortaleza da Babilnia. Butler, The Ancient Coptic Churches of
Egypt.
194
FIGURA 4.9 Vista do Cairo Antigo durante a segunda metade do sculo XIX.
(Jullien).
195
iv
Figura Descrio Pgina
FIGURA 4.10 Planta do piso trreo da Sinagoga de Ben Ezr. 197
FIGURA 4.11 Reconstruo isomtrica do sculo XIX no interior da Sinagoga de Ben Ezr. Desenho Kate Spence, 1993.
198
FIGURA 4.12 Perspectiva axonomtrica da Sinagoga de Ben Ezr (SBE) antes
da reconstruo de 1889.
199
FIGURA 4.13 Perspectiva axonomtrica da SBE conforme o ano de 1930. 199
FIGURA 4.14 Elevao da fachada oeste da SBE. Desenho de Claire Daliers. 201
FIGURA 4.15 Elevao da fachada sul da SBE. Desenho de Claire Daliers. 202
FIGURA 4.16 Corte transversal da SBE. Vista leste. Desenho de Claire
Daliers, Rodrigo Tapia e Anna-Paula Villela.
203
FIGURA 4.17 Hekhal da SBE. 207
FIGURA 4.18 Vista geral, com a bim a frente. 207
FIGURA 4.19 Intradorso da arcada da galeria feminina e o teto da nave da
SBE.
207
FIGURA 4.20 Portas da cmara ao norte da arca. Mostra o antigo revestimento
nas paredes imitando trabalho em cantaria.
207
FIGURA 4.21 Ptio da Sinagoga de Alepo com a bim externa. 235
FIGURA 4.22 Mesquita de cAmr ibn al-
cAs. Ptio Central com a fonte de
abluo. Foto: Final do sculo XIX.
236
v
LISTA DE ABREVIATURAS
Add. Adicional
AIU Alliance Isralite Universelle, Paris.
Antonin Antonin Collection, St. Petersburgo.
Ar. rabe
AS Sries Adicionais
B.L. British Library
Bodl. Bodleian Library (Oxford); Neubauer-Cowley, Catalogue of
Hebrew MSS. at the Bodleian, vols. I e II.
MS. Heb. Hebrew MSS. na Bodleian, Oxford.
Chapira Chapira Collection
DK David Kauffman Collection, Budapeste.
El 2nd Enciclopdia do Isl, 2 ed. P.Bearman,T. Bianquis, C. E.
Bosworth, E. van Donzel, e W. P. Heinrichs (Leiden, 2006)
ENA Elkan Nathan Adler Collection, New York.
MS. Adler Collection of Mr. E. N. Adler;
Halper Halper Collection, University of Pennsylvania
Heb. Hebraico
IFAO Institute Franaise dArcheologie Oriental
JNUL Jewish National and University Library, Jerusalem.
JTS Jewish Theological Seminary
J. Judeu-rabe
Meunier Meunier Collection
Misc. Miscellaneous
Mosseri Jacques Mosseri Collection, Cambridge.
MS (MSS) Manuscrito
N.S. Nova Srie
Or. Oriental MSS. no British Museum, London.
P. Heid. Papyrus Collection of the University of Heidelberg.
PER. Erzherzog Rainer Papyrus Collection, Viena.
T.S. Taylor-Schechter Collection, Cambridge.
vi
EXPLICAES INICIAIS
A grafia na qual foram escritos os nomes dos indivduos da comunidade judaica
segue a forma e convenes utilizadas no mundo islmico, segundo:
O nome pessoal ism (ar.) (nome), o patronmico nasab (nome do pai), a kunya
(pai de xxx), e nisba pessoal ou familiar (um especificador) que indicaria ou o lugar
de origem, a profisso ou descendncia. Alguns indivduos tm mais que um nisba, e
alguns indivduos ou famlias tambm carregam um laqab, ou apelido. A maioria das
formas adotadas no texto na forma ism b. nasab, mas tambm foram adotadas
variaes, seguindo o uso do autor da qual a fonte foi utilizada1.
O b. o equivalente a ibn em rabe, que ben em hebraico e bar em
aramaico, como exemplo: Ysuf b. Yaqb Ibn Awkal que significa, Ysuf cujo pai era
Yaqb, e cuja famlia era Ibn Awkal, e que tambm pode ser apenas citado como
Ysuf Ibn Awkal, ou seja, Ysuf da familia Awkal.
Durante a idade mdia, muitos judeus no Oriente Mdio, eram conhecidos tanto
por seus nomes em hebraico como em rabe, usualmente, eles utilizavam as formas em
rabe.
Para as cidades cujos nomes so mais familiares aos leitores em portugus,
foram utilizadas as verses traduzidas. Para outros nomes, e tambm para indicar como
foram citados pelos autores e fontes medievais, so apresentadas em sua forma
transliterada, tambm acompanhados do artigo onde seu uso mais comum, como por
exemplo al-Qhira, em alguns casos Fus e em outros al-Fus (de acordo com o
contexto da fonte citada).
Para a Peninsula Ibrica (Espanha) islmica so utilizadas as formas: Andaluzia
(em portugus), al-Andalus (s vezes com ou sem o artigo al) e iqilliyya (Siclia)
quando citada por algum texto medieval, al-Shm (Sria). Os nomes transliterados so
utilizados quando no contexto dos textos e citaes medievais.
As palavras rabes e hebraicas esto em itlico. Encontra-se um glossrio no
apndice. As letras c
ayn e hamza esto indicadas. Todas as datas so indicadas pela
1 Jessica Goldberg, Trade and Institutions in the Medieval Mediterranean: The Geniza Merchants and their business world. Cambridge, 1969, pp. 31-50, 199-209, 247-288.
vii
frmula E.C. (Era comum) pois todas as trs religies possuem calendrios especificos
e diferentes.
O apndice A contm as tabelas das transliteraes do rabe e do Hebraico.
O apndice B inclui a tabela dos governantes fatmidas e aibidas.
O apndice C contm um glossrio de termos.
1
INTRODUO
Cheguei enfim cidade de Mir [Cairo], me de todas as cidades e
sede do Fara, o tirano, senhora de amplas provncias e terras frteis, sem
limites em sua multido de edifcios, inigualvel em beleza e esplendor, local de
encontro daquele que vem e daquele que vai, o ponto de parada do debilitado e
do forte. L existe o que voc escolher, do estudado ao simples, do srio e do
alegre, do prudente ao tolo, do vil ao nobre, do alto ao baixo nvel, do
desconhecido ao famoso; ela surge como as ondas do mar, com suas multides
de gente, e mal as pode conter a despeito de seu posto em termos de posio e
poder para prover. Sua juventude sempre nova, apesar da longevidade em
dias, e o astro de seu horscopo no se move da casa da fortuna; sua capital
conquistada [al- Qahira] subjugou as naes, e os seus reis tomaram pelo cabelo
rabes e no rabes. Ela tem como sua possesso exclusiva o majestoso Nilo,
que dispensa sua rea da necessidade de suplicar pela destilao [da chuva]; seu
territrio uma jornada de um ms para um viajante apressado, de solo
generoso, e oferecendo uma recepo calorosa a estranhos.1 (Traduo:
Rogrio Schlegel).
Entre todas as cidades do mundo, a cidade do Cairo est entre uma das mais
famosas. Seu embrio, a Fortaleza da Babilnia, onde foram construdas vrias igrejas e
sinagogas.
As cidades nos territrios que foram governados pelo isl sempre tiveram os
estudos de sua histria e de seu desenvolvimento urbano baseados em elementos e
edifcios relacionados com o governo e/ou a comunidade muulmanos.
1 I arrived at length at the city of Mir [Cairo], mother of cities and seat of Pharaoh the tyrant, mistress of
broad provinces and fruitful lands, boundless in multitude of buildings, peerless in beauty and splendour,
the meetingplace of comer and goer, the stopping-place of feeble and strong. Therein is what you will of
learned and simple, grave and gay, prudent and foolish, base and noble, of high estate and low estate,
unknown and famous; she surges as the waves of the sea with her throngs of folk and can scarce contain
them for all the capacity of her situation and sustaining power. Her youth is ever new in spite of length of
days, and the star of her horoscope does not move from the mansion of fortune; her conquering capital
[al-Qahira) has subdued the nations, and her kings have grasped the forelocks of both Arab and non-Arab.
She has as her peculiar possession the majestic Nile, which dispenses her district from the need of
entreating the distillation [of the rain]; her territory is a month's journey for a hastening traveller, of
generous soil, and extending a friendly welcome to strangers. (GIBB, H. A. R. The Travels of Ibn
Battuta, A.D. 1325 -1354. Translated with revisions and notes from the Arabic text edited by C.
DEFREMERY and B. R. SANGUINETTI, Vol.1. Cambridge. 1958: 41)
2
Poucos so os estudos que tratam dos edifcios que pertencem a outros grupos
confessionais que no o dos muulmanos no sentido de analis-los como agentes na
evoluo da configurao urbana das cidades que estiveram sob o governo islmico. Os
estudos que existem sobre esses edifcios seguem sempre a direo de estud-los dentro
de seus prprios elementos, ou seja, um edifcio cristo ou judaico dentro do seu prprio
contexto, que o de servir a sua prpria comunidade confessional.
Analisaremos aqui uma sinagoga conhecida atualmente por Sinagoga de Ben
Ezr, localizada na cidade do Cairo, dentro da Fortaleza da Babilnia.
Afirmamos que a sinagoga um elemento que tambm constri e participa da
dinmica da cidade, e que seu estudo auxilia tanto a compreenso da urbe rabe-
islmica como tambm o entendimento da dinmica daquela sociedade entre os sculos
X e XIII. Ela um edifcio que organiza o espao, e os grupos sociais e confessionais
envolvidos deixam suas marcas nas construes e na configurao espacial do seu
entorno.
A importncia do estudo dessa sinagoga d-se pelo fato de ser uma das mais
antigas sinagogas do perodo medieval2 e de estar no contexto de uma das mais
importantes cidades islmicas daquela poca, com uma considervel populao tanto de
judeus como de outras comunidades que ou habitavam a cidade ou usavam-na como
rota para outros locais de destino ligando o norte da frica e a Andaluzia sia
Central.
Analisar uma sinagoga dentro da cidade islmica no analis-la apenas do
ponto de vista esttico ou estilstico, mas tambm de como o edifcio dialoga com a
cidade do ponto de vista da construo de suas territorialidades. E vice-versa: como a
cidade e um tipo de linguagem islmica dialogam com o edifcio judaico.
Para esse entendimento, necessrio levar em conta que a cidade islmica
baseada nos valores socioculturais decorrentes da religio islmica, mas que no est
limitada a smbolos e sinais, ou seja, no uma cidade que possui um padro ou forma
preestabelecida, pois existem variaes no tempo e no espao.
2 Deixaremos claro desde o incio que o termo medieval (adj.) aqui nesta pesquisa utilizado nos termos
da historiografia ocidental. Para a historiografia do Ocidente, o perodo que se inicia no sculo V, com a
queda do Imprio Romano do Ocidente, e termina no sculo XV. uma diviso clssica da Histria
ocidental.
3
A cidade do Cairo construda sobre e entre camadas de fundaes anteriores.
So cidades que, aps os sucessivos governos, entre os sculos VII e X, foram sendo
fundadas a partir de um novo assentamento urbano prximo ao permetro da cidade que
a antecedia, mas sem se desvincular dela at, no final do perodo aibida, ela se tornar
uma nica, o atual Cairo.
Os antigos componentes da cidade anterior convivem e tambm so
ressignificados a cada novo assentamento urbano, seja no seu aspecto material uso de
esplio de outras construes, por meio da manuteno de antigos edifcios sem a sua
destruio ou mudana de uso , pela permanncia dos seus habitantes ou, ainda, pela
permanncia do uso por antigos habitantes que se deslocaram para novos bairros e para
novas cidades, mas que se mantm ligados cidade anterior, pois continuam
frequentando-a e ativos com relao a congregaes ligadas ao seu edifcio religioso.
Tambm os antigos moradores e as geraes seguintes podem, muitas vezes,
continuar ligados s antigas reas por questes econmicas como, por exemplo, ter
imveis de sua propriedade que precisam administrar ou lojas e outros estabelecimentos
nos quais tanto podem exercer sua atividade profissional diariamente como podem ser
apenas scios.
E, por fim, a permanncia tambm se d pela tradio e vnculo que podem estar
relacionados a lendas e histrias do local.
No longo perodo no qual se desenvolveram as regies que foram conquistadas
pelos muulmanos, foram includos diferentes grupos tnicos, que possuam diferentes
culturas e diferentes religies: judeus, cristos, hindustas, budistas e zoroastristas, entre
outros. Herdaram tambm instituies dos povos que habitavam anteriormente as terras
ento conquistadas, como as dos imprios romano e sassnida, e, mais tarde, as dos
bizantinos.
Nesta mirade de culturas e regies conquistadas, na arquitetura e na construo
das cidades, os novos governantes islmicos tambm adotaram desenhos e formas locais
integrando e combinando-os com uma ampla gama de elementos provenientes de outras
regies.
A grande extenso geogrfica conquistada pelo isl produziu uma multiplicidade
de formas e emprstimos e, ao mesmo tempo, devido facilidade de ir e vir das pessoas
e tambm s novas conquistas, forjou-se uma certa unificao na linguagem.
4
As trocas e as assimilaes no s foram e so inevitveis, como fazem parte das
relaes e do convvio entre os grupos em qualquer momento.
A Sinagoga de Ben Ezr foi um elemento organizador de espao para a
comunidade judaica, no s a rabnica da Palestina, mas as outras comunidades judaicas
babilnica e carata , entre os sculos X e XIII. E desempenhou um papel de
articulador de multiterritorialidades.
necessrio, no caso do estudo de um edifcio localizado na cidade do Cairo, ou
seja, dentro da cidade islmica, definirmos o que entendemos por cidade islmica.
No primeiro momento, a cidade islmica aqui definida aquela que governada
por indivduos que professam a f do isl. Em um segundo momento, aquela na qual
amaioria da populao composta de muulmanos, o que ir ocorrer lentamente.
Figura I: Mapa localizando Fustt com relao s outras reas do Cairo histrico. (Fonte:
Bianca, Stephano; Antoniou, Jim; El-Hakim, Sherif; Lewcock, Ronald; Welbank, Michael. The
Conservation of the Old City of Cairo. UNESCO, Paris. 1985)
5
As regies que estiveram sob o domnio de algum governo islmico, mesmo por
um curto perodo, reconhecem na sua paisagem elementos que se denominam
islmicos.
Logo, o termo islmico no se resume a uma cidade ou a um elemento
arquitetnico ou edificao, mas a uma cultura que opera sobre uma ampla rea
geogrfica e que fornece um reconhecimento dos seus habitantes, sejam eles
muulmanos, cristos ou judeus3, nos limitando aqui apenas aos denominados Povos
do Livro, como veremos no decorrer deste trabalho.
O perodo escolhido para a anlise, entre os sculos X e XIII, foi um perodo
durante o qual parte das terras sob o domnio islmico estava sob o governo de trs
califados poderosos diferentes e cujas populaes que viviam nestas regies dialogavam
intensamente entre si, construindo dinmicas sociais e urbanas que iro no apenas
desenhar a distribuio espacial na cidade como tambm marcar arquitetonicamente os
edifcios com sua pluralidade cultural.
A Sinagoga de Ben Ezr, como dito acima, localizada no Cairo e, portanto, no
contexto da cidade islmica, foi desde a sua fundao um dos elementos organizadores
do espao urbano no interior da Fortaleza da Babilnia; da distribuio dos habitantes
ligados comunidade judaica; e, mais especificamente, da comunidade judaica rabnica
palestina. Mas tambm foi uma ferramenta para a construo de territorialidades das
comunidades que se distriburam no s na cidade, mas em uma ampla regio
geogrfica. Por isso, o edifcio da sinagoga foi o objeto concreto, material e o suporte
para o dilogo arquitetnico que ps em contato diversos grupos que foram os atores da
sociedade naquela poca.
Foi uma poca de grande circulao de pessoas e grupos por todo o mundo
islmico4 e o que veio a se tornar o atual Cairo foi uma cidade que atraiu governantes
de diversas regies.
No sculo IX ocorreu a compra do edifcio da sinagoga, inaugurando
oficialmente a presena judaica na cidade sob a gide do isl, durante o governo de
3 Entendidos ento como o conjunto dos israelitas: judeus rabnicos, judeus caratas e samaritanos.
4 O termo mundo islmico, que usamos aqui e quando for utilizado no decorrer deste trabalho, o a
partir da definio de Hourani: Nos sculos IX ou X EC surgiu algo que era reconhecidamente um
mundo islmico. Um viajante ao redor do mundo poderia dizer, pelo que via e ouvia, se uma terra era
governada e povoada por muulmanos. Essas formas externas tinham sido levadas por movimentos de
povos: por dinastias e seus exrcitos, mercadores cruzando os mundos do oceano ndico e do mar
Mediterrneo, e artesos atrados de uma cidade para outra pelo patrocnio de governantes ou dos ricos.
Em HOURANI, A., Uma histria dos povos rabes. Companhia das Letras, 2006:86.
6
Ahmd Ibn ln. No fim do sculo XIV, ocorreu a conquista de Crdoba pelos
cristos, marcando mais um movimento de povos provocado por questes polticas.
O edifcio anterior da atual sinagoga, segundo relatos histricos, era a igreja de
So Michel, que foi vendida pelo patriarca copta aos judeus5. O edifcio da sinagoga
ficou conhecido nos tempos medievais como kanisat al-shamiyyin6 (a sinagoga da
comunidade judaica palestina no Cairo) e recebeu a denominao de Ben Ezr no
perodo moderno, devido a uma lenda, registrada no sculo XV, que relaciona o profeta
Ezr7 e os manuscritos da Tor que estavam com ele e que teriam sidos posteriormente
guardados nessa sinagoga.
Outra lenda seria que o rabino Avraham Ben Ezr8, rabino tambm de
Jerusalm, teria sido o responsvel pela reestruturao da sinagoga no incio do sculo
XII, embora no se saiba em que data ele realmente teria estado no Egito. Em muitos
dos textos que comentam sobre o nome Ben Ezr, pelo qual a sinagoga passou a ser
denominada, estas duas lendas se confundem.
Com base nos trabalhos j realizados sobre a comunidade judaica no isl do
perodo medieval9, nos relatrios das escavaes mais recentes realizadas na rea da
Fortaleza da Babilnia10
, de estudiosos da histria islmica, da arquitetura e da arte,
pretendo fazer um retrato da sociedade islmica na construo dos seus espaos urbanos
e dos elementos envolvidos nesta ao, pois a distribuio dos espaos na planta de um
5 REIF, Stefan C. A Jewish Archive from Old Cairo: The History of Cambridge University's Genizah
Collection. Curzon, 2000. 6 Kannisat al-shmiyyn se refere a uma das principais comunidade judaicas do Egito. Existiam duas
importantes congregaes judaicas em Fustt, uma palestina (Kannisat al-shmiyyn) e a outra babilnica
(Kannisat al-irqiyyn). Existiam duas congregaes em muitas das maiores comunidades judaicas no
Egito, e poucas nas menores (aquelas que possuam um nmero mais reduzido de judeus na cidade). Mais
de 90 nomes de cidades, vilas e aldeias com populaes judaicas so mencionados nos documentos
gueniz. Palestinos e babilnios formaram a comunidade denominada Rabinato judaico. Os caratas
formaram um grupo distinto. Estes ltimos rejeitam as tradies rabnicas do judasmo talmdico e
aceitam apenas a Bblia como fonte para as leis religiosas. A data de seu estabelecimento no Egito
desconhecida, mas no sculo X eles j formavam um grupo numeroso, e muitos deles pertenciam elite
mais rica de mercadores e oficiais da burocracia do governo. O casamento entre os membros da
orientao rabnica e da carata era frequente no Egito nesta poca, mas se tornou menos comum no final
da idade mdia. (Fonte: The Cambridge History of Egypt, Vol. 1 [Islamic Egypt, 640-1517]; Carl F.
Petry, Cambridge University Press, 1998) 7 Tambm Ezr, o escriba, ou Ezr, o sacerdote (480440 AEC).
8 Erudito e escritor, nascido em 1092-1093 EC. Provavelmente, pertence a um ramo da famlia Ibn Ezr,
qual Moses ibn Ezr pertencia. 9 Entre eles, os estudos de S. D. Goitein, Yaacov Lev e Jacob Mann feitos no sculo XX; os estudos mais
recentes feitos principalmente por Marina Rustow e outros autores que sero citados no decorrer deste
trabalho e na bibliografia final. 10
Que, confrontados com as afirmaes feitas em estudos anteriores realizados no incio do sculo XX, as
modificam, pois os novos dados obtidos a partir de escavaes e o intenso estudo sobre os documentos da
Gueniz do Cairo modificam afirmaes anteriores.
7
edifcio, ou em uma cidade, o resultado das relaes espaciais e sociais que so
ordenadas de maneira a distinguir os lugares, o que em um primeiro momento feito
atravs da linguagem e depois atravs dos espaos construdos. Os edifcios, alm de
proporcionarem o abrigo bsico, desempenham o papel de codificar os esquemas e os
lugares sob a forma fsica e simblica.11
Figura II: A Sinagoga de Ben Ezr depois da restaurao realizada na dcada de 1980. (Fonte: Lambert,
Phyllis. 1994, p. 33).
Concordamos com Ibn Khaldun12
que afirma que a cidade o produto de
pessoas e edifcios, engenharia, cultura e arquitetura, administrao e economia13
.
11
Rocco, Lygia F. A mesquita de Ibn ln como representao da herana arquitetnica rabe. Estudo
da Mesquita de Ibn ln como monumento sntese das caractersticas rabes e das transferncias de
elementos arquitetnicos entre os povos no rabes. Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Lngua, Literatura e Cultura rabe junto ao Departamento de Letras Orientais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do
ttulo de Mestre em Letras. So Paulo, 2008. p. 03. 12
cAbd al-Rahman Ibn Khaldun nasceu na Tunsia em 1332 e faleceu no Egito em 1406. Historiador e
estudioso de diversas reas do conhecimento. Suas principais obras so Al-tarif bIbn Khaldun, obra
autobiogrfica, e o conhecido al-Muqaddimah (Prolegmenos da Histria Universal), na qual faz uma
anlise poltico-social sobre as populaes nmades e sedentrias; sobre as civilizaes, o poder, os
Estados, as formas de governo e das instituies, as cidades e as sociedades rurais; sobre as cincias e as
artes. Asabiyyah (esprito de parentesco, entendido como laos de solidariedade) o termo usado por Ibn
Khaldun para descrever os vnculos de coeso entre os indivduos de um grupo e que formam uma
comunidade. 13
Ibn Khaldun, citado em KHALIL, Ahmed Mohammed. Cairo: An Analytical Case Study of an Arab-
Islamic City. The University of Texas at Arlington, Dissertation for the Degree of Master of Architecture.
UMI Dissertation Information Service, 1990:12.
8
Hassan Fathy descreve a cidade como um ambiente civilizado composto pelo
homem para representar a cultura de um povo como um grupo e revelar sua
personalidade () a cidade uma forma cultural, social e econmica no espao14
.
As fontes estudadas para a pesquisa foram: jornais eletrnicos, manuscritos
disponibilizados digitalmente pela Universidade de Cambridge, peridicos, artigos,
relatrios e livros, e relatrios de escavaes realizadas no Cairo Antigo. Para esta
anlise, so utilizados os documentos encontrados na gueniz Sinagoga de Ben Ezr,
que o conjunto de documentos e manuscritos conhecidos como Gueniz do Cairo, e os
documentos encontrados nas proximidades do cemitrio de al-Bastn.
A gueniz uma espcie de sala de armazenagem ou depsito de uma sinagoga
ou local sagrado; um lugar utilizado especificamente para guardar os livros e artigos
que versam sobre temas religiosos, sendo proibido, de acordo com as crenas judaicas
que possuem paralelos com os costumes coptas e muulmanos, se desfazer dos escritos
que contm a palavra de Deus.
Na Gueniz do Cairo, cartas pessoais, contratos legais ou qualquer texto que
continha uma invocao a Deus foram preservados. Acrescenta-se que nela foram
encontradas obras inteiras de poetas medievais, alm de outros documentos (ver
captulo 3). Por este motivo, o local constitui importante fonte documental egpcia para
o estudo das relaes entre as comunidades daquele perodo. H. Hirschfel15
(Hirschfel,
apud Goitein, 1955:76) afirmava no comeo do sculo XX que em torno de 12 mil
documentos encontrados nas escavaes foram escritos em rabe, embora a maioria
estivesse em caracteres hebraicos, na linguagem conhecida como judeu-rabe16
. Hoje,
14
Fathy, Hassan. What is a City? Artigo apresentado pelo autor na Universidade de al-Azhar no Cairo
em 1967. Traduo do rabe em: Hassan Fathy, James Steele (London, England: Academy Editions,
1988; New York St. Marias Press, 1988), p. 122. 15
Hirschfeld, Hartwig. Jewish Quarterly Review XV (1903), p. 167. (Fonte:
http://archive.org/stream/jewishquarterly03montgoog#page/n183/mode/1up acesso: dez. 2011). 16
Considerado um etnoleto, e nesta pesquisa no ser aprofundado. Para isso, ver Benjamin H. Hary, em
Multiglossia in Judeo-Arabic: Judeu-rabe tem sido falado e escrito em vrias formas pelos judeus por
todo o mundo de lngua rabe desde antes do advento do isl at os dias atuais. (...) So cinco os
principais perodos do judeu-rabe: judeu-rabe pr-islmico, judeu-rabe primitivo (entre os sculos
VIII/IX e X), judeu-rabe clssico (do sculo X ao XV), judeu-rabe tardio (do sculo XV ao XIX) e
judeu-rabe moderno (sculo XX). Algumas caractersticas so nicas ao judeu-rabe: o uso dos
caracteres hebraicos em vez dos caracteres rabes; diferentes tradies da ortografia judeu-rabe;
elementos da gramtica e do vocabulrio hebraicos e aramaicos; e traduo literal ou direta do hebraico.
O etnoleto contm elementos do rabe clssico, componentes dialetais, elementos pseudocorrigidos e a
padronizao destes elementos. (...) A lngua tambm um excelente exemplo do fenmeno de idiomas
em contato, uma vez que o ponto de encontro para o rabe clssico. Benjamin H. Hary, em
Multiglossia in Judeo-Arabic: with an edition, translation and grammatical study of the Cairene Purim
scroll. Brill, 1992, xiii.
9
sabe-se que a quantidade muito maior que a levantada na poca do comentrio de
Hirschfel.
Goitein comenta que Grohmann17
, em sua publicao From the World of Arabic
Papyri, estimava que nas colees de gueniz conhecidas por ele existissem por volta de
16 mil papiros e 33 mil pedaos de papel escritos em caracteres rabes. Isto retrata a
intensidade do convvio na sociedade islmica entre muulmanos e judeus durante
aquele perodo. Esses documentos compem uma srie de registros relativos s
operaes de vrias espcies entre as comunidades judaicas, crists e muulmanas.
Tambm foram utilizados relatos da literatura narrativa, pois muito do que se
conhece sobre o Cairo nos aspectos urbano e arquitetnico daquela poca provm das
descries literrias dos viajantes, embora o material literrio produzido pelos viajantes,
inclusive os documentos da gueniz, ilustrem os aspectos sociais e os eventos polticos,
sobre as informaes referentes totalidade do tecido urbano, as questes
arquitetnicas, as de circulao, como os grupos e comunidades se distribuam no
espao e construram suas territorialidades no tecido urbano. Esses dados necessitam ser
localizados no espao geogrfico, pois o conceito de territorialidade est vinculado ao
conceito de territrio na sua dimenso material. Esta dimenso fundamental para a
anlise proposta nesta pesquisa, que a organizao da cidade e sua evoluo durante
um determinado perodo de tempo.
A transformao e o desenvolvimento urbano do Cairo esto diretamente
relacionados ascenso do isl e seus desdobramentos, e a rea onde hoje o Cairo foi
uma das primeiras fundaes urbanas promovidas pelos muulmanos.
Durante todo o seu desenvolvimento, sempre existiram diversas comunidades
religiosas na cidade judeus, muulmanos e cristos , embora hoje, depois da criao
do Estado de Israel, a populao judaica tenha diminudo drasticamente, por razes que
no sero analisadas aqui, pois excederiam o objetivo da pesquisa.
Por fim, ser mostrado, a partir da anlise do desenvolvimento urbano da cidade
do Cairo, da anlise do edifcio da sinagoga e do entorno, delineadas a partir das
informaes obtidas nos documentos, que a cidade depende como qualquer outra cidade
de seu meio ambiente para se construir e extrair sua identidade.
17
GROHMANN, Adolf, From The World Of Arabic Papyri, 1952, Royal Society of Historical Studies,
Al-Maaref Press: Cairo.
10
Mas as comunidades aqui estamos falando das comunidades confessionais e
dos grupos a que pertencem exercem influncias que no so especificamente
islmicas, desempenhando um papel que determina a forma do ambiente urbano, pois os
processos sociais modelam o espao, e as formas so renovadas e at suprimidas para
dar lugar a outras formas que atendam s necessidades novas da estrutura social 18
,
promovendo um dilogo entre o material e o simblico.
Esta anlise vem ampliar o conhecimento acerca deste edifcio e,
principalmente, das relaes entre as comunidades judaica, islmica e crist entre a
conquista fatmida do Egito (969 E.C.) e o fim da dinastia aibida (1254 E.C.).
A estrutura desta anlise foi organizada em quatro captulos:
O primeiro captulo trata da metodologia e dos conceitos. O estudo optou por
construir um modelo de estrutura que analise a Sinagoga de Ben Ezr a partir do aspecto
da sua configurao espacial e de sua relao com a cidade, de maneira a entender a sua
transformao espacial e as relaes sociais envolvidas na dinmica da construo do
espao no perodo analisado e, assim, demonstrar que a arquitetura e sua insero no
espao urbano so um dos meios pelos quais as relaes de convvio e trocas so
expressas.
No captulo 2, esta pesquisa mostra a evoluo histrica da cidade do Cairo at o
perodo aibida e sua contextualizao dentro da histria geral do isl. So apresentadas
as informaes obtidas dos mais recentes relatrios arqueolgicos e confrontadas com
as concluses feitas antes dessas ltimas escavaes. So apresentadas as camadas
histricas sobre as quais a cidade se desenvolveu at o sculo XIII e descrito o contexto
urbano e a localizao da Sinagoga de Ben Ezr. Ser descrita a fortaleza da Babilnia,
a sua formao histrica e os primeiros edifcios religiosos que se concentravam dentro
da Fortaleza.
O captulo 3 trata mais especificamente das comunidades judaicas, a rabnica
babilnica, a rabnica palestina e a carata, e sua dinmica de convivo assim como
questes com o governo islmico. Tambm so analisadas informaes obtidas a partir
da documentao relacionada s fundaes piedosas judaicas.
18
BISSIO, Beatriz. O mundo falava rabe: a civilizao rabe-islmica clssica atravs da obra de Ibn
Khaldun e Ibn Battuta. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2013: 24.
11
O captulo 4 descreve o edifcio da Sinagoga de Ben Ezr e fornece informaes
sobre os acontecimentos histricos envolvendo a sinagoga e como as dinmicas de
territorialidade e multiterritorialidade se materializaram no edifcio.
12
Captulo 1
1.1 - Consideraes Gerais
Para o desenvolvimento das cidades so necessrios a unio e o
desenvolvimento dos seguintes fatores e condies: os hbitos (ou maneiras de viver); a
natureza das relaes sociais, pois um forte senso de organizao social faz que a cidade
se mantenha coesa em momentos de crise; as tradies; a religio, que orienta
politicamente em muitos casos as comunidades assentadas no local; o desenvolvimento
tcnico; e os fatores naturais e geogrficos.
Podemos afirmar que a arquitetura e o urbanismo so expresses materiais de
valores culturais, relacionados com as crenas e as suas particularidades sociais e
polticas, e com a prpria viso de mundo da sociedade para o qual se constri. Essas
expresses podem ser vistas tambm como o resultado das tradies e prticas dirias
de um grupo social em particular, de uma comunidade ou de vrias comunidades, no
caso das regies do isl e, como mostramos nesta pesquisa, do Cairo, de diferentes
comunidades confessionais ou de uma sociedade no sentido mais amplo, e que
corresponderiam aos valores e princpios adotados por tais grupos.
Pode-se afirmar que existe uma relao bastante direta entre o que as pessoas
acreditam e o que elas constroem1. A influncia poltico-religiosa no contexto histrico
do Cairo um elemento importante, pois tanto os grupos, muulmanos, cristos e
judeus, desempenharam um papel importante nas questes polticas internas como
tambm, pelo seu poder e pela riqueza, a cidade se tornou o centro regional assim como
tambm disputava, com outros locais (Crdoba e Bagd), o poder do imprio islmico.
As tradies so um conjunto de regras e saberes que orientam o comportamento
da sociedade e tambm o espao no qual esta sociedade se desenvolve. Em todos os
locais onde o islamismo se propagou, as suas manifestaes visuais iro variar de
acordo com as tradies locais. O mesmo serve para qualquer outro grupo confessional
que viva sob o governo islmico; neste caso, teremos a participao de trs elementos
1 ROCCO, opus cit., 2008: 33.
13
concomitantemente: a adequao aos preceitos do grupo governante, as tradies locais
e as orientaes internas da comunidade ou grupo em questo. A religio islmica, em
terras nas quais ou professada pelo governo ou pela maioria da populao,
desempenha um papel dominante na vida da cidade.
O conceito do termo cidade islmica ou cidade muulmana foi criado entre
1920 e 1950 pela Escola Orientalista da Arglia, por William e Georges Marais, e
depois por Roger le Tourneau, superados depois por Jean Sauvaget e Jacques Weulersse
da Escola de Damasco. Nessa poca, a Frana j possua uma grande tradio nos
estudos do urbanismo islmico e tambm era uma poderosa fora colonial nas terras do
Magrebe e do Levante.
a partir da viso extica (e colonial) que o termo islmico tornou-se adjetivo
para as cidades que foram governadas pelos muulmanos a partir do surgimento desta
religio. O Isl mencionado em relao s instituies, s organizaes da vida
poltica, s atividades econmicas e sociais, e com a estrutura fsica das cidades e
tambm da tipologia das suas habitaes. No caso do uso do termo pelos orientalistas,
ele utilizado para contrapor a cidade do Isl em relao s cidades construdas na
antiguidade. A primeira seria desordenada, catica, ilegvel enquanto a segunda seria
ordenada, legvel2.
A cidade no sentido weberiano3 possui os seguintes elementos encontrados
concomitantemente, os quais na cidade islmica nem sempre so encontrados
conjuntamente, e que se caracterizam da seguinte maneira: (1) fortificaes, e nem todas
as cidades criadas pelo isl so cidades fortificadas; (2) formas urbanas distintas de
associao, e nas cidades islmicas os bairros se organizavam por associaes tribais em
sua maioria, mas no configurando um desenho urbano diferenciado entre eles. As
associaes podiam ocorrer por laos tnicos, religiosos ou de profisses; (3) mercados
cada cidade islmica tinha seu mercado e, em alguns casos, vrios mercados,
dependendo tambm do tamanho da cidade; (4) uma corte que administrava uma lei
parcialmente autnoma, o que no ocorria no caso das cidades islmicas, pois o governo
central as governava por meio de seus representantes administrativos, que faziam parte
2 RAYMOND, Andr, The Spatial organization of the city, em The city in the Islamic World, Vol. 2,
edit. por Salma K. Jayyusi [et al.], Brill, 2008:49. 3 STILLMAN, Norman A., "The Jew in the Medieval Islamic City". In: Daniel Frank, ed., The Jews of
Medieval Islam: Community, Society, and Identity (New York, 1995): 3-13.
14
de uma burocracia imperial centralizada cuja sede do poder estava localizada bem
distante desses aglomerados urbanos espalhados por uma ampla rea geogrfica.
E, por fim, (5) a existncia de ao menos uma autonomia parcial e independente
das entidades religiosas. Como ser mostrado, os judeus tinham um certo grau de
autonomia para resolver as questes internas da comunidade, mas no mbito da cidade e
do imprio estavam sujeitos lei islmica.
No exclusivamente devido ao isl que as cidades medievais do Oriente Mdio
no se encaixam no modelo de cidade estabelecido por Weber, que era a cidade
medieval europeia, mas a religio islmica contribuiu para o estabelecimento de um
sistema legal e social que diferenciasse as cidades sob o seu domnio das da Europa que
no estava sob o domnio dos muulmanos.
A cidade europeia medieval se desenvolve de maneira diferente da cidade
islmica no mesmo perodo, e esta ltima no pode ser reduzida ao modelo
estereotipado na forma: mesquita, palcio, mercado e bairros que se desenvolvem em
uma distribuio concntrica em torno da mesquita. O Cairo um exemplo de cidade
que se desenvolve a partir de vrios ncleos embrionrios que, na sua expanso, foram
se intersectando: al-Ftt e al-Qhira e as diferentes comunidades distribudas em
grupos dispersos pela cidade, embora existissem diversos pontos de concentrao que
construram suas prprias territorialidades no tecido urbano.
Como em qualquer lugar, os comportamentos e construes so o resultado de
tradies. E essas tradies podem mudar ou podem enrijecer com a insero de um
elemento novo e diferente em seu interior, principalmente se esse novo elemento
muito diferente do elemento receptor e tambm mais forte.
Braudel afirma: No h uma s sociedade, brilhante ou primitiva, que no seja
tocada em toda a sua espessura por contgios e intruses culturais, que, na verdade,
nada deixam fora de seu alcance, nem os humildes detalhes da vida cotidiana, nem os
pices da vida intelectual. Toda a sociedade , portanto, cultura, quer consideremos o
rs do cho, quer os andares superiores da vida. Do mesmo modo, toda a sociedade
civilizao4.
As populaes que formaram o amplo conjunto dominado pelo imprio islmico
ficaram expostas a diferentes tradies daquele perodo. O que intensificou esses
contatos foi a facilidade de se percorrer essas regies que estavam de certa maneira sob
4 BRAUDEL, Fernand. Gramtica das Civilizaes. Martins Fontes, 1989: 347.
15
uma nica religio e com um idioma em comum, o rabe, apesar do processo de
islamizao e de arabizao de todas as regies conquistadas ter sido lento e ter se
efetivado no decorrer de muitos anos.
Ibn Khaldun comentou que (...) as condies de construo so diferentes
segundo de que cidade se trate. Cada centro urbano segue um procedimento conhecido
dentro da competncia tcnica de seus habitantes, que responde ao clima e s diferentes
condies de sua populao em relao com sua riqueza ou pobreza5( Khaldun apud
BISSIO, 2013:241).
Podemos afirmar que as sociedades humanas so construes culturais cujas
razes esto mergulhadas na histria. Uma mesma cultura rene aqueles que
compartilham dos mesmos cdigos; isto facilita as alianas e as camaradagens;
maneiras de se alimentar, de comer, de sentar, ritmos e horrios. (...) cada indivduo est
vinculado a outro em uma rede complexa de relaes. (Claval, 2007: 110)
O isl era, e ainda , a religio dominante no Cairo e, por isso, desempenhou um
papel modelador no processo de construo da cidade e de seus edifcios. A religio
islmica orienta as sociedades onde ela a religio adotada pela maioria da populao,
no s nas questes poltico-sociais, mas na distribuio dos grupos nas cidades e,
consequentemente, na maneira como os edifcios principais e as habitaes vo se
distribuindo na malha urbana.
A coeso social das vrias comunidades confessionais envolvidas na dinmica
da cidade produziu uma distribuio orgnica na malha urbana, na qual a relao dos
edifcios e dos espaos reflete esses laos sociais de seus habitantes, como ocorre dentro
da fortaleza da Babilnia, onde esto localizadas muitas igrejas e sinagogas. Embora o
isl seja dominante, outros grupos religiosos minoritrios tambm organizaram o espao
da cidade.
E, como afirma Bissio (2013:31), o principal vnculo entre as diferentes partes
do espao sempre foi o fato de seus membros partilharem da mesma f 6
; isso servia
tanto para os muulmanos como para os judeus e os cristos. E para alm desses trs
grandes grupos, ou seja, internamente, todos esses grupos tinham suas divises sectrias
5 Ibn Khaldun citado em BISSIO, Beatriz. O mundo falava rabe: a civilizao rabe-islmica clssica
atravs da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2013: 241. 6 Que faziam parte da umma, que a comunidade de todos os muulmanos.
16
internas e as consequentes disputas entre eles, que aparecem na malha urbana e na
distribuio de edifcios, como tambm nas prprias edificaes.
Nos edifcios, esses contatos e trocas se manifestaram, s vezes, na distribuio
das plantas e, outras, no uso de elementos construtivos ou em objetos, mobilirio e na
decorao, cada um em maior ou menor grau, entre judeus, cristos e muulmanos.
O resultado das conquistas islmicas para a comunidade judaica que vivia na
regio foi a forte urbanizao provocada pela expanso do isl. E a comunidade judaica
acompanhou esse processo de urbanizao, abandonando em sua maior parte as reas
agrrias.
O Cairo na poca dos fatmidas retratava essa rea geogrfica que pode ser
considerada o encontro de culturas que estavam mergulhadas em uma longa histria e,
com os contatos provocados pelas ondas migratrias incentivadas pelo isl, que
formaram uma rede de relaes na construo de territorialidades na malha urbana da
cidade, repercutindo tambm na arquitetura de seus edifcios. Esses contatos
desenvolveram novas prticas que modelaram o espao tanto no seu aspecto material
como no social.
No sculo X, os judeus j tinham se tornado uma comunidade marcadamente
urbana e com um elevado grau de organizao comunal (Stillman apud Frank, 1995:8),
tanto local como internacionalmente. A rede formada por essa organizao foi o
elemento da construo das multiterritorialidades e das territorialidades na cidade do
Cairo.
Nas fontes judaicas, encontramos tanto o termo povo israelita, para se referir
comunidade em seu conjunto, e Israel, ou seja, a nao em si e seu povo denominado
israelita, como os termos judeu e judaico, utilizados no mesmo sentido que o
anterior. Goitein afirma que a designao da comunidade judaica como congregao
sagrada (do hebraico qahal qadosh) o equivalente do bblico reino dos sacerdotes e
do povo sagrado (Ex. 19:6)7.
Nesta pesquisa, utilizaremos os termos comunidade judaica e judeu pelas
seguintes razes: a primeira que as diversas comunidades judaicas que existiam
naquela poca disputavam entre si a conquista de seus membros. As disputas ocorriam
7 xodo 19:6. E vs sereis o meu reino sacerdotal, e uma nao santa. Eis aqui o que tu hs de dizer aos
filhos de Israel. Bblia Sagrada. Traduo de Padre Antnio Pereira de Figueiredo. Livraria Editora
Iracema, s/d.
17
entre a rabnica da Babilnia e a rabnica da Palestina, e os diferentes grupos rabnicos e
os caratas e samaritanos8. Todos esses grupos participavam da dinmica social,
religiosa, poltica e urbana da sociedade muulmana. A disputa no interior desses
grupos judaicos reflete-se na Sinagoga de Ben Ezr e tambm no conjunto de edifcios
que compem o complexo dessa sinagoga. Nas cidades com apenas uma sinagoga,
existia uma nica comunidade no local ou se houvesse indivduos de outra comunidade,
no havia em nmero suficiente para fundar outra congregao; nessa situao, esses
indivduos coexistiam na sinagoga existente. Mas, como no caso do Cairo, onde
existiam trs grandes comunidades (babilnica, palestina e carata), a vida da
comunidade se dividia entre as suas respectivas sinagogas.
A segunda razo da adoo de judaico, e no de israelita, est relacionada s
fontes consultadas. A maioria dos estudos e trabalhos que tratam dos judeus nas terras
rabe-islmicas no perodo medieval produziu suas pesquisas em lngua inglesa e
francesa, jew/jewish e juif respectivamente; ento, com base nessa terminologia, foram
utilizados os termos judeu e judaico em vez de israelita, que no retrataria as
diferenas desses grupos na poca estudada.
8 A questo dos samaritanos no ser tratada aqui neste trabalho, pois eles tiveram um papel muito
pequeno em Fus no perodo analisado e principalmente no que concerne sinagoga de Ben Ezra.
A origem dos samaritanos problemtica. Os samaritanos, hoje reduzidos a algumas centenas de
indivduos, identificam-se como descendentes dos hebreus bblicos, numa linha de tradio. Alguns
historiadores afirmam que a origem dos samaritanos est ligada s tribos do norte de Israel, pois apenas
um nmero pequeno de habitantes teria sido deportado para a Assria. Logo, estes samaritanos seriam
chamados de verdadeiros israelitas, que seriam os guardies da lei de Moiss. Outra vertente afirma que
a origem dos samaritanos est relacionada aos cativos que os assrios transferiram da Babilnia, Cuthah,
Avva, Hamath e Sepharvaim para repovoar regies do norte de Israel, e que em Israel estes cativos
continuaram a adorar os dolos que eram de suas cidades de origem, e foram considerados os ancestrais
dos samaritanos e tambm considerados pagos. E uma terceira teoria, que combina estas duas anteriores,
afirma que o exlio assrio das dez tribos no teria sido total, que um significativo nmero de israelitas
teria sido deixado para trs e, simultaneamente, os assrios teriam trazido um grupo de exilados para a
regio que teria sido o reino israelita do norte. Assim, esses grupos teriam formado o povo denominado
samaritano (Alan David Crown. The Samaritans. Tbingen: Mohr, 1989. p. 1).
18
1.2 OBJETIVOS, CONCEITOS E METODOLOGIA
1.2.1 Objetivo
A anlise da Sinagoga de Ben Ezr entre os sculos X e XIII mostra que no
foram exclusivamente os edifcios oficiais islmicos, mesquitas e palcios, mas tambm
os edifcios de outros grupos confessionais, que construram a cidade, e a sinagoga um
exemplo desta dinmica urbana.
Aqui, importante definir o termo islmico, pois a sinagoga de Ben Ezr no
s est dentro de uma cidade qual agregamos o adjetivo islmico, mas tambm o
edifcio como sendo um edifcio religioso judaico s passa a existir aps a conquista do
Egito pelos muulmanos. Logo, islmico neste trabalho utilizado em relao aos
acontecimentos e s obras elaboradas aps o advento da religio islmica9, relacionada a
uma cultura ou civilizao na qual a maioria da populao, ou o elemento
predominante, professa a f do isl. E que, como afirma Oleg Grabar, o ponto
importante que islmica na expresso arte islmica no comparvel palavra
crist ou budista na arte crist ou na arte budista. Existem diversos edifcios
construdos para judeus e para cristos e por judeus e cristos que contm elementos
arquitetnicos e decorativos que o estudo da histria da arte caracteriza como sendo
islmicos. Os contatos culturais so vias de assimilaes e trocas, e esto presentes na
Sinagoga de Ben Ezr.
Para o entendimento do complexo de edifcios da sinagoga e do prprio edifcio
religioso e de como esses elementos contribuem para a sua arquitetura, os conceitos de
territorialidade e multiterritorialidade, a partir da perspectiva elaborada por Haesbaert10
,
so devidamente apropriados para entender o processo da formao de novas
territorialidades pelas comunidades rabnicas judaicas que construram o espao no qual
a Sinagoga de Ben Ezr era o centro organizador, entre os sculos X e XIII, e mediante
essa anlise, mostrar a caracterstica multicultural da cidade do Cairo e como ela se
apresenta na arquitetura.
9 Professada pelo profeta Muhammad por volta de 615. O calendrio islmico inicia em 622 EC, data em
que ocorreu a fuga do Profeta com seus seguidores para Yarib (atual Medina), na Arbia Saudita. 10
HAESBAERT, Rogrio. O mito da desterritorializao: do fim dos territrios multiterritorialidade.
7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
19
A observao, por ser realizada ao longo de um perodo de aproximadamente
trs sculos, est dentro do que Braudel denomina de ampla narrativa da histria,
como veremos mais frente.
O estudo da histria da arquitetura do Oriente Mdio aps o surgimento da
religio islmica est fortemente impregnado dos conceitos e preconceitos do Ocidente
em relao ao Oriente, num discurso e numa prtica denominados por Edward
Said11
de orientalismo, tema desenvolvido por ele em obra de mesmo nome.
O orientalismo, segundo Said (2007), um conjunto de diversas prticas
desenvolvidas principalmente pelos povos ocidentais, no qual o objeto principal a
construo acadmica, poltica e doutrinria em relao aos povos orientais. O que
demonstrado por Said que nem o termo Oriente nem o conceito de Ocidente tm
estabilidade ontolgica; ambos so constitudos de esforo humano parte afirmao,
parte identificao do Outro.
As noes como modernidade, democracia e os temas aqui abordados
relacionados histria da arte e da arquitetura, noes como medieval, gtico,
renascimento e barroco, no so de modo algum conceitos consensuais e equivalentes s
formas ocorridas no Oriente Mdio.
Mesmo que os conceitos aplicados no Ocidente sejam utilizados nos estudos
relacionados ao Oriente, isto no ocorre sem consequncias ou isoladamente e sem
influncias externas, fato este que oposto posio dos adeptos de polarizaes
territoriais redutivas do tipo Isl versus Ocidente. Este no isolamento seria
equivalente a falar dos sistemas abertos das novas teorias arqueolgicas. As frmulas
redutivas equivalem ao mesmo que pensar o Ocidente e o Oriente como sistemas
fechados. Said prope a desconstruo dessas frmulas redutivas e abre a discusso para
um contexto amplamente situado na histria, na cultura e na realidade socioeconmica,
como tambm o fazem as teorias arqueolgicas no evolucionistas e o estudo da histria
atravs da histria de longa durao, das permanncias e das mudanas lentas.
As abordagens reducionistas agrupam grupos e pessoas sob nomes falsamente
unificadores inventam identidades coletivas para grupos de indivduos que, na
realidade, so muito diferentes uns dos outros. Deve-se ter o cuidado tambm de no
incorrer no extremo oposto, pois por meio dos contatos, ao mesmo tempo em que os
11
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. Traduo: Rosaura Eichenberg.
So Paulo: Companhia das Letras, 2007.
20
grupos se aproximam, tambm conservam suas diferenas, como ser mostrado ao
longo desta tese.
A histria arquitetnica islmica apenas recentemente comeou a reconsiderar
alguns de seus mais arraigados pontos elaborados a partir do modelo eurocntrico como
a questo da progresso linear, mas, por outro lado, passou a colocar a autonomia
cultural como um ponto importante no seu estudo, o que ocorre dentro de um contexto
histrico de reafirmao nacional. Os estudos que afirmam exclusivamente uma
autonomia cultural da criao de uma arquitetura exclusiva so desconstrudos neste
trabalho, pois mostramos que a arquitetura e a forma urbana trazem em seu interior os
contatos culturais que so seus elementos construtivos.
Podemos afirmar que foi mediante as migraes que ocorreram os intensos
contatos sociais e comerciais entre o Oriente Mdio e o Ocidente. Foi essa proximidade
de povos e, mais do que isto, a sua convivncia em uma mesma rea geogrfica que
permitiram, entre outras coisas, a influncia de expresses da cultura desenvolvida nas
terras governadas pelo isl, na arquitetura e na arte em geral.
Os mtodos de investigao utilizados aqui permitiram compreender e estruturar
os vrios alinhamentos que se afirmaram e reafirmaram-se em combinaes diversas e
flexveis no domnio da arquitetura e do urbanismo islmico em toda a sua longa
histria.
Mesmo que os movimentos ocorridos na arte e na arquitetura raramente
correspondam ao momento no qual ocorreram as mudanas polticas, para facilitar a
localizao cronolgica, o consideramos como sendo uma nomenclatura de apoio para
situ-lo em relao histria geral mundial; portanto, no deve ser totalmente
descartado.
Algumas mudanas ou incorporaes nos edifcios e na malha urbana, at
mesmo o surgimento de novas cidades, foram consequncia do ascenso de novos
governantes muulmanos, fundando novas estruturas polticas no territrio, como no
caso da fundao das cidades de Fus, Kufa e Bagd. Em muitos casos, esses novos
governantes trouxeram de sua regio de origem os construtores que iriam incorporar a
sua prpria linguagem aos edifcios j existentes, sempre que isso fosse possvel.
21
As primeiras geraes de historiadores da arte islmica mostraram-se, segundo
Nasser Rabbat (2005)12
, bem conservadoras com relao aos limites e s fronteiras
culturais e histricas. Adotaram uma cronologia linear, iniciada com a mesquita do
Profeta em Medina, seguindo paralelamente a evoluo dos conceitos e a definio de
tipos da arquitetura e da arte ocidentais, utilizando-se, na maioria das vezes, dos
mesmos termos para representar alguns elementos, como, por exemplo, a existncia de
um gtico-islmico, e afirmando que essa arquitetura fracassou com a chegada da era
colonial no Oriente Mdio.
Como afirma Flood13
, aqueles que estudam a histria da cultura visual
normalmente o fazem com relao a um perodo ou cultura especficos, e os vinculam a
parmetros nos quais raramente os seus objetos de estudo conseguem se inserir
totalmente. Os artefatos, os edifcios e at as cidades conseguem abarcar em parte esses
parmetros onde os governantes e as dinastias no o conseguem, mas esses objetos
mudam de mos como resultado do comrcio, da diplomacia, da guerra; nesses
processos de troca, eles so remodelados, reinterpretados e reinventados, e o edifcio
Sinagoga de Ben Ezr tambm est inserido nesse processo.
Com as pesquisas j existentes relativas ao Cairo antigo, e com as novas
abordagens desenvolvidas aqui, abre-se um novo entendimento da diversidade cultural
dos povos que viviam sob a gide do isl, e tambm tem-se uma ferramenta para o
estudo das genealogias heterogneas e as qualidades hbridas que possuem qualquer
arquitetura, pois a histria da arte ocidental engendrou uma estrutura que
discursivamente controlou a intricada rede de convenes epistemolgicas e culturais
que produziram e usaram o conhecimento histrico arquitetnico e artstico.
Mostraremos que a convivncia entre grupos de crenas diferentes no
necessariamente se traduz em formas diferentes de se expressar arquitetonicamente, e
que as territorialidades so muito mais permeveis do que uma rpida olhada assim o
supe.
A partir do uso metodolgico de vrios conceitos construdos pela histria da
arte e da arquitetura ocidentais e pelo orientalismo se props a elaborao de uma
12
NASSER Rabbat, Toward a Critical Historiography of Islamic Architecture , in Repenser les
limites: l'architecture travers l'espace, le temps et les disciplines, Paris, INHA ( Actes de colloques ),
2005 [En ligne], mis en ligne le 28 octobre 2008. Acesso: jan. 2012. URL: http://inha.revues.org/642 13
FLOOD, Finbarr B. The Medieval Trophy as an Art Historical Trope: Coptic and Byzantine "Altars" in
Islamic Contexts. In: Muqarnas: An Annual on the Visual Culture of the Islamic World, XVIII, E.J. Brill,
2001. pp. 41-72.
22
estrutura histrica dinmica e adaptvel que no dependa nem de modelos emprestados
nem de fronteiras polticas e culturais proscritas, ou seja, uma ferramenta alm desses
modelos.
A cultura, em sua elaborao orgulhosa como sistema de enquadramento de
identidade, est comeando a perder sua primazia como o fator determinante para reas
de especializao no campo da histria da arquitetura; assim, uma definio de cultura
aqui se faz importante como veremos no decorrer deste captulo, pois vemos que a
noo de cultura difere tanto nas vrias linhas da arqueologia como nas de outras
disciplinas devemos esclarecer qual vamos adotar.
Novos mtodos e novas abordagens esto sendo elaborados para dar conta da
fluidez com que as ideias, as tcnicas, as pessoas e os materiais cruzaram todo o tipo de
fronteiras por toda a histria, para criar o que basicamente uma abordagem
multicultural do estudo da arquitetura e das cidades. Cito a pesquisa desenvolvida por
Andrea Piccini14
sobre o Batistrio de Florena como um exemplo desse tipo de
abordagem. Nesse trabalho, Piccini (2009) mostra como foi que atravs das migraes
ocorreram os intensos contatos sociais e comerciais entre o Oriente Mdio e o Ocidente,
e como os elementos arquitetnicos foram compartilhados em decorrncia desse trnsito
de pessoas.
Foi esse fluxo15
de povos, e, mais do que isso, a sua convivncia em uma mesma
rea geogrfica, que permitiu, entre outras coisas, a influncia de expresses da cultura
islmica na arquitetura e na arte em geral. Tais migraes no apenas provocaram
transformaes sociais e econmicas, mas tambm influenciaram no uso de novos
objetos do cotidiano, nas roupas, porcelanas e cermicas (PICCINI, 2002).
Devido aos contatos provenientes de lugares distantes entre si, entre os sculos
X e XIII, importante definir o conceito de rea geogrfica, ou reas geogrficas, para o
entendimento do contexto histrico e cultural. Nas reas geogrficas aqui delimitadas
so apresentadas algumas das condies iniciais, a conquista islmica do Egito e a
fundao da cidade de Fus e sua conexo com a regio onde surgiu o isl, e as reas
extremas do sistema16
, para o entendimento da relao das redes com a sinagoga. Essa
ampla viso vital para o entendimento do edifcio da Sinagoga de Ben Ezr e do seu
14
Piccini, Andrea. Arquitetura do Oriente Mdio ao Ocidente: a transferncia de elementos
arquitetnicos atravs do Mediterrneo at Florena, AnnaBlume, 2009. 15
Fluxos e fixos na ptica de Haesbaert, onde no h dicotomia entre fixao e mobilidade. 16
O sistema a ampla rea geogrfica governada pelo isl.
23
entorno, desde o perodo de sua fundao aps a compra do edifcio17
e sua relao com
a cidades al-Qhira e al-Fus, e no apenas com a malha urbana de Fus.
A Sinagoga de Ben Ezr tambm o instrumento que serve de ferramenta para
se entender tanto a histria social do Egito islmico, entre os sculos IX ao XIV18
, como
as relaes de trocas e contatos com outros grupos: cristos-coptas, judeus vindos da
regio do Levante e Mesopotmia, judeus originrios da Andaluzia e a prpria
comunidade muulmana local convertida ao islamismo e dos territrios ocupados pelos
abssidas e omadas, como de outros grupos muulmanos provindos de outras regies.
Apesar da classificao da arquitetura islmica, principalmente a do perodo
conhecido como Isl Clssico19
, se utilizar algumas vezes da sequncia dinstica da
histria poltica islmica, ou seja, a arquitetura abssida, tulnida, fatmida, esse recurso
foi aqui utilizado para facilitar o estudo dentro da histria geral da arquitetura e do
urbanismo islmico. uma nomenclatura derivada dos estudos ocidentais da arte
citados anteriormente, e ser demonstrado que tal nomenclatura no mostra, quando
utilizada exclusivamente, a evoluo e a continuidade autnomas dos movimentos
artsticos e arquitetnicos e que no corresponde diretamente s mudanas polticas
ocorridas na regio, pois muitos grupos dinsticos existiam concomitantemente.
Os estudos feitos por meio da periodizao dinstica supervalorizaram o papel
dos patronos reais em detrimento de outras partes envolvidas, como a dos construtores e
dos usurios. Foram os movimentos populacionais, as questes de cunho religioso, os
grupos confessionais e tribais, os pontos artsticos e estruturais comuns, e as inovaes
tecnolgicas que tiveram um efeito mais profundo sobre a arquitetura e sobre a
organizao da malha urbana do que qualquer mudana meramente dinstica20
.
Esses patronos so tambm importantes como veremos no caso das fundaes
das primeiras cidades. Mas internamente, dentro da malha urbana dessas mesmas
cidades, outras foras so to importantes quanto as dos seus fundadores oficiais, e o
que mostramos neste trabalho.
A Sinagoga de Ben Ezr, um edifcio religioso judaico, analisado dentro do
contexto da cidade islmica, tambm uma ferramenta que mostra que as periodizaes
17
Questo controversa que ser discutida no captulo sobre o edifcio. 18
O recorte da pesquisa entre os sculos X e XIII, embora quando necessrio esse limite seja
extrapolado. 19
Entre os sculos VIII e XII, segundo Rosalie H. de S. Pereira, em O Isl clssico: itinerrios de uma
cultura. Org.: Rosalie Helena de Souza Pereira. So Paulo: Perspectiva, 2007:20. 20
Embora as mudanas dinsticas tenham sido fundamentais na fundao de novas cidades.
24
e os limites cronolgicos e geogrficos so flexveis e apresentam sobreposies de
linguagens, de tipologias de plantas e tambm de dinastias e realidades socioculturais.
Levar em considerao essas sobreposies mais adequado anlise histrica da
arquitetura desse perodo nas reas governadas pelo isl, pois mostra a qualidade
multicultural dessa arquitetura que no possui um modelo ou referncia cultural nicos,
que serviram de inspirao para os edifcios mais emblemticos dessa arquitetura, como
as grandes mesquitas, igrejas, sinagogas, edifcios oficiais do governo, nem para os
mais simples, da sua arquitetura vernacular.
No desenvolvimento da malha urbana, na construo de novos edifcios,
diferentes tenses esto presentes e agindo, como a tenso entre a populao local e os
recm-chegados muulmanos e no muulmanos ou os muulmanos de vrias partes
das regies governadas pelo isl, grupos de outras orientaes religiosas coptas,
judeus. Isto s para citar os grupos de orientao religiosa monotesta. So muulmanos
e no muulmanos produzindo objetos.
1.2.2 - CONCEITOS
Ao analisar o stio histrico a