Dicionário Internacional da Outra Economia

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Dicionrio Internacionalda Outra Economia

ANTONIO DAVID CATTANIJEAN-LOUIS LAVILLELUIZ INCIO GAIGERPEDRO HESPANHA

Biblioteca Nacional de Portugal Catalogao na Publicao

Dicionrio internacional da outra economia / PedroHespanha[et al.]. (CES)ISBN 978-972-40-3722-6

I HESPANHA, Pedro,1946-

CDU 330316304364

DICIONRIO INTERNACIONAL DA OUTRA ECONOMIA

AUT ORES

ANTONIO DAVID CATTANIJEAN-LOUIS LAVILLELUIZ INCIO GAIGERPEDRO HESPANHA

E D I T O R

EDIES ALMEDINA, SAAv. Ferno Magalhes, n.o 584, 5.o Andar3000-174 CoimbraTel.: 239 851 904 Fax: 239 851 [email protected]

ALMEDINA BRASIL, LTDAAlameda Lorena, 670Jardim Paulista01424-000 So PauloTel/Fax: +55 11 3885 6624 / 3562 6624Mob: +55 11 8457 2654 [email protected]

P R - I M P R E S S O

G.C. GRFICA DE COIMBRA, LDA.producao@grafi cadecoimbra.pt

I M P R E S S O

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Janeiro, 2009

D E P S I T O L E G A L

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Os dados e as opinies inseridos na presente publicao so da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).Toda a reproduo desta obra, por fotocpia ou outro qualquer processo, sem prvia autorizao escrita do Editor, ilcita e passvel de procedimento judicial contra o infractor.

NDICE

7 Construindo a Outra Economia Antonio David Cattani 9 Nota Acerca da Edio Portuguesa Boaventura de Sousa Santos Pedro Hespanha

11 Altermundializao Patrick Viveret

16 Antiutilitarismo Alain Caill

21 Associativismo Philippe Chanial Jean-Louis Laville

26 Autogesto Daniel Moth

31 Bancos Comunitrios de Desenvolvimento Genauto Carvalho de Frana Filho Jeov Torres Silva Junior

37 Bens Pblicos Mundiais Philip Golub Jean-Paul Marchal

43 Cadeias Produtivas Lee Pegler

49 Capital Social Susana Hintze

55 Cidadania Paulo Henrique Martins

60 Comrcio Justo Alfonso Cotera Humberto Ortiz

68 Conselhos de Empresa Hermes Augusto Costa

74 Consumo Solidrio Euclides Andr Mance

80 Cooperao Paulo de Jesus Lia Tiriba

86 Cooperao Internacional Dipac Jaiantilal

91 Cooperativas de Trabalho Jacob Carlos Lima

96 Cooperativismo Rui Namorado

103 Ddiva Alain Caill

108 Desenvolvimento Local Rogrio Roque Amaro

114 Economia da Famlia Lina Coelho

4120 Economia do Trabalho Jos Luis Coraggio

128 Economia Feminista Lina Coelho

134 Economia Moral Nolle M. P. Lechat

139 Economia para a Vida Franz J. Hinkelammert Henry Mora Jimnez

145 Economia Plural Jean-Louis Laville

150 Economia Popular Ana Mercedes Sarria Icaza Lia Tiriba

156 Economia Social Jacques Defourny

162 Economia Solidria Jean-Louis Laville Luiz Incio Gaiger

169 Efi cincia Luiz Incio Gaiger

175 Emancipao Social Antonio David Cattani

181 Empreendimento Econmico Solidrio Luiz Incio Gaiger

188 Empresa Social Jacques Defourny

193 Empresas Recuperadas Gabriel Fajn

198 Estado Social Franois-Xavier Merrien

203 tica Econmica Anne Salmon Antonio David Cattani

208 Finanas Solidrias Ruth Muoz

213 Governao Local Slvia Ferreira

219 Identidade Marlia Verssimo Veronese Egeu Gmez Esteves

224 Incubao de Redes de Economia Solidria Genauto Carvalho de Frana Filho Eduardo Vivian da Cunha

231 Justia Cognitiva Maria Paula Meneses

237 Macroeconomia e Economia Popular Ricardo Diguez

243 Microcrdito Jean-Michel Servet

248 Microempreendedorismo Pedro Hespanha

255 Moeda Social Claudia Lcia Bisaggio Soares

260 Movimento Social Ana Mercedes Sarria Icaza

264 Patrimnio Comum da Humanidade Jos Manuel Pureza

5268 Polticas Pblicas Walmor Schiochet

273 Previdncia Social Claudia Danani

278 Redes de Colaborao Solidria Euclides Andr Mance

284 Redes Sociais Breno Fontes Slvia Portugal

289 Responsabilidade Social Empresarial Anne Salmon Antonio David Cattani

293 Saberes do Trabalho Associado Maria Clara Fischer Lia Tiriba

299 Sociedade-Providncia Pedro Hespanha Slvia Portugal

305 Sociologia Econmica Benot Lvesque

310 Solidariedade Jean-Louis Laville

315 Tecnologia Social Renato Dagnino

322 Terceiro Sector Slvia Ferreira

328 Utopia Antonio David Cattani

335 Autores e Corpo Tcnico

A construo desta obra est sintonizada com os ideais e as realizaes objetivas da outra economia, aquela que se apresenta como alternativa material e humana supe-rior economia capitalista. Designadas por termos tais como economia solidria, eco-nomia do trabalho, novo cooperativismo, empresas autogestionrias e outros, essas formas correspondem a realizaes inova-doras, associadas a novos valores e princ-pios que se opem s prticas excluden-tes, social e ambientalmente predatrias.

A construo do novo, do socialmente mais avanado, remete a processos com-plexos que ultrapassam a mediocridade e as limitaes das relaes de produo capitalistas. Nestas, os termos associados so concorrncia, explorao, acumulao compulsria, excluso. A outra economia regida pelos princpios da solidariedade, da sustentabilidade, da incluso, enfi m, da emancipao social. Esses princpios no se reduzem a boas intenes, mas constituem realizaes concretas, viveis e, sobretudo, em expanso no mundo inteiro.

O histrico do Dicionrio Internacional acompanha a evoluo recente da tem-tica. Uma edio pioneira comeou a ser gestada em 2002, na sequncia de semi-nrios tericos e conceituais realizados no Brasil. O resultado desse trabalho coletivo foi lanado durante o III Frum Social Mundial, ocorrido em Porto Ale-

gre, em janeiro de 2003 (Porto Alegre, Veraz Editores). A obra alcanou grande sucesso e, graas ao empenho de Jos Luis Coraggio, foi logo traduzida para o espa-nhol (Buenos Aires, Editorial Altamira, 2004). No ano seguinte, por iniciativa de Jean-Louis Laville, contribuies euro-pias foram agregadas a uma seleo de verbetes sob o nome Dictionnaire de lAutre Economie (Paris, Descle de Brouwer, 2005). Nova edio foi publicada na cole-o Folio Actuel (Paris, Gallimard, 2006, 1 reimpresso em 2008). Parte desta lti-ma verso foi publicada na Itlia, sob o ttulo Dizionario dellAltra Economia (Roma, Edizione Miltimediali, 2006).

O Dicionrio Internacional da Outra Economia legatrio da experincia acu-mulada nas publicaes anteriores, cons-tituindo-se, ao mesmo tempo, em obra indita. Pedro Hespanha e Luiz Incio Gaiger reforaram o trabalho de coor-denao dos mais de cinquenta autores, oriundos de trs continentes. A equipe multidisciplinar, proveniente de vrios horizontes tericos, polticos e sociais, buscou ampliar e atualizar o trabalho de clarifi cao terica e conceitual, de maneira a aprofundar a refl exo crtica sobre as formas mais avanadas de produ-o social. Essas produes intelectuais no so neutras, tampouco despojadas de valores, princpios, desejos e esperan-as. Algumas elaboraes decorrem do

CONSTRUINDO A OUTRA ECONOMIA

envolvimento direto com experincias em curso; outras so formulaes proceden-tes de exerccios analticos do observador externo aos processos. Em todos os casos, no h percepes resignadas da realida-de social e econmica, mas elementos da disputa pela legitimidade no campo das idias.

Na grande maioria dos casos, os ver-betes seguem uma estrutura bsica (defi -

nio sinttica, gnese e desenvolvimento histrico do termo, controvrsias e ques-tes atuais relacionadas). Cada autor responsvel por seus textos. O ponto de unio da equipe a crena nos valores civilizadores: cooperao, solidariedade e compromisso com a vida, com a natureza, com a justia social. Acreditamos todos que um mundo melhor possvel e que ele est sendo construdo pelas realizaes concretas da outra economia.

Antonio David CattaniPorto Alegre, janeiro de 2009.

Portugal partilha, de um modo muito especial com outras sociedades de capita-lismo perifrico, a circunstncia de man-ter formas de usar os recursos, de produzir e de trocar cujo fundamento e motivao nada tm a ver com o individualismo pos-sessivo e a competio cega que caracteri-zam a economias capitalistas.

A persistncia de formas tradicionais de cooperao e solidariedade torna-se particularmente visvel em muitos sec-tores da pequena produo, em grupos sociais que foram marginalizados e em territrios do interior do pas que foram deixados para trs e hoje esto em pro-cesso de desertifi cao fsica e humana. Mas essas formas encontram-se igual-mente presentes em espaos mais desen-volvidos onde o capital conseguiu incor-porar uma mo-de-obra que subsiste nos limites da sua prpria reproduo graas s redes de entreajuda e persistncia de padres de vida prprios das clas-ses populares. No admira, assim, que em perodos de crise econmica, vivida pelos trabalhadores como desemprego e instabilidade laboral, perda de poder de compra ou endividamento, estas formas econmicas estranhas ao capitalismo, e que este nunca pde totalmente absor-ver, se reforcem e tornem mais visveis. No admira tambm que as novas ideolo-gias ou os movimentos sociais de cunho solidarista recuperem ou procurem dar

sentido a este valioso patrimnio de coo-perao e de resistncia.

O CES tem procurado, desde sempre, aprofundar o conhecimento dos proces-sos de incluso das sociedades como a portuguesa no sistema econmico mun-dial, partindo precisamente das ideias de complexidade e de transformao dialc-tica: complexidade pela sua posio inter-mdia no sistema da economia-mundo e transformao dialctica pela sua incor-porao diferenciada no capitalismo glo-bal. A um nvel microscpico estas ideias ajudam a compreender por que razo nes-tas sociedades as classes tm contornos to mal defi nidos ou por que a racionali-dade dos agentes se afasta tanto da racio-nalidade do sistema quando se analisam os padres de reproduo econmica. De vrios pontos de vista, certas particu-laridades da sociedade portuguesa, como por exemplo, o peso elevado da economia informal e da semi-proletarizao, o dfi ce da aco colectiva ou a permeabilidade do Estado aos interesses privados, so mais facilmente compreendidas quando comparadas com sociedades da Amrica Latina ou mesmo de frica.

Reconhecer a persistncia de formas econmicas distintas da do capital ou a emergncia de formas econmicas alter-nativas ao capital, umas e outras forte-mente relacionadas com este ltimo, uma opo aparentemente incontroversa

NOTA ACERCA DA EDIO PORTUGUESA

mas com implicaes enormes, dada a diversidade de entendimentos acerca dos processos de relacionamento entre o capitalismo e aquilo que lhe estranho. A prpria dissociao entre os fenmenos econmicos e a sociedade onde estes se geram, que o pensamento econmico libe-ral inventou, contribuiu decisivamente para a invisibilidade daquelas formas.

A literatura sobre este assunto vasta e por vezes demasiado hermtica para no iniciados. Por isso, visou-se, com a presente obra, divulgar para pblicos alargados os conceitos e as teorias mais marcantes sobre as alternativas economia capitalista extra-dos dessa literatura especializada. Nela se abordam temas to diversos quanto os fundamentos e as modalidades da outra economia ou os marcos histricos do pen-samento alternativo, a par de outros mais especfi cos relacionados com as empresas

recuperadas, as redes de colaborao soli-dria, as fi nanas solidrias, a responsabili-dade social ou o comrcio justo.

Espera-se, assim, que ela possa ajudar a tornar mais inteligveis as anomalias do nosso sistema econmico, a reconhecer a existncia de lgicas distintas de produzir e de (con)viver e a discernir a presena, resistente ou emergente, de outras econo-mias mais justas e solidrias.

Uma ltima nota sobre dois apoios importantes para esta edio: de um lado, a prestimosa ajuda de Slvia Ferreira, Colega da Faculdade e investigadora do CES, na mobilizao dos contributos para o Dicionrio; de outro, as oportunidades de debate oferecidas pelo Grupo EcoSol, recentemente criado pelos estudantes de ps-graduao do CES no mbito do Ncleo de Cidadania e Polticas Sociais. A ambos o devido reconhecimento...

Boaventura de Sousa SantosDirector do Centro de Estudos Sociais

Pedro HespanhaCoordenador do Ncleo de Cidadania e Polticas Sociais

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ALTERMUNDIALIZAOPatrick Viveret

1. O termo altermundializao expressa o carter multiforme de um movimento que pretende suscitar valores como a democra-cia, a justia econmica e social e a proteo ao meio ambiente e aos direitos humanos a fi m de estabelecer condies para uma mundializao democrtica, controlada e solidria. Os termos altermundializao e altermundialismo foram criados em 2002, na Blgica e na Frana (principalmente no mbito da revista Mouvements), tendo como inspirao o slogan do Frum Social Mundial de Porto Alegre, realizado no Brasil: um outro mundo possvel. Para seus idealizadores, o conceito foi tambm um meio de se opor apresentao des-se movimento, ao mesmo tempo cvico e social, veiculada pela mdia como uma iniciativa contrria mundializao. Essa recusa no tange prpria mundialidade, inscrita na continuao dos valores inter-nacionalistas (nossa terra-ptria), mas sua forma atual, julgada ecolgica e social-mente destrutiva. O conceito difundiu-se de maneira mais ampla, ultrapassando os limites da francofonia, por ocasio do Frum Social Europeu, ocorrido em Paris, em novembro de 2003. At mesmo uma ofi cina, intitulada As palavras, as lnguas, os smbolos do movimento altermundialista, dedicou-se aos problemas de traduo e

de interpretao desse novo conceito. De fato, ele permanece marcado por sua ori-gem francfona, e sua traduo em ingls refere-se assiduamente a essa origem.

2. O movimento altermundialista focaliza-se na crtica s lgicas econmicas domi-nantes e na busca de alternativas a elas. Tais lgicas revelam-se particularmente nas instituies econmicas e fi nancei-ras internacionais, alvos privilegiados das manifestaes altermundialistas: a Orga-nizao Mundial do Comrcio (OMC), o Fundo Monetrio Internacional (FMI), a Organizao de Cooperao e Desenvol-vimento Econmico (OCDE) e o Banco Mundial (BM). Dois grandes processos levaram ao surgimento da altermundiali-zao. O primeiro processo relaciona-se expresso internacional do fato associa-tivo, que se traduziu na multiplicao de fruns de ONGs, por ocasio das reuni-es internacionais de cpula das Naes Unidas organizadas na dcada de 1990. O primeiro frum ocorreu durante a Con-ferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92. O segundo processo, marcado por uma tradio mais radical, manifestou-se por meio de vrias iniciativas: o Peoples Power 21, reunio de movimentos asiticos; a conferncia contra o neoliberalismo, organizada pelos zapatistas em Chiapas; as manifestaes anuais contra o Frum

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AEconmico Mundial de Davos e os Encon-tros Internacionais de Paris, da ATTAC (Associao pela Tributao das Transa-es Financeiras em Apoio aos Cidados), ocorridos em 1999.

Esses dois processos uniram-se, em parte, durante as manifestaes contra a OMC realizadas em Seattle (1999) e em Gnova (2001), onde a polcia italia-na matou a tiros um participante. Essas manifestaes favoreceram sobretudo a construo de um acontecimento de refe-rncia, o Frum Social Mundial (FSM), em oposio ao Frum Econmico Mundial de Davos. A expresso frum-espaos, forjada por Whitaker, um dos co-funda-dores do FSM, expressa o carter volunta-riamente pluralista do processo: ausncia de declaraes fi nais, votos majoritrios ou instrues, assim como inexistncia de organismos dirigentes. Em termos de estrutura, o Frum Mundial possui um secretariado, responsvel por sua organi-zao, e um conselho internacional.

O FSM ocorreu trs vezes em Porto Alegre, no Brasil, depois em Mumbai, na ndia, antes de voltar a Porto Alegre no incio de 2005. Em 2006, foi realizado em Caracas; em 2007, em Nairobi; e, em 2008, foi convertido em dia mundial de mobilizao. Em 2009, voltar a ser reali-zado no Brasil (Belm, Par).

3. A altermundializao agrupa atores de culturas muito diversas, como terceiro-mundistas, ecologistas, marxistas, cristos progressistas, keynesianos ou anarquistas. Com frequncia, rene ainda atores rara-mente vistos nos mesmos lugares, como integrantes dos movimentos pacifi stas israelenses e dos movimentos progressis-tas muulmanos.

Nos planos econmico e social, os altermundialistas rejeitam a idia de que o direito da concorrncia possa ser superior queles inscritos na Declarao Universal dos Direitos do Homem. Criticam regras favorveis demais propriedade intelec-tual ou ao patenteamento da vida, pratica-das em detrimento dos pases do Sul e, de modo mais amplo, dos cidados. Denun-ciam as patentes sobre o material gentico tradicional e o preo exorbitante de certos medicamentos cobrado de habitantes dos pases mais pobres (por exemplo, as drogas necessrias ao combate AIDS, na frica). Algumas associaes que participam ati-vamente dos encontros altermundialistas, como a organizao britnica Oxfam, no combatem abertamente a OMC, pois jul-gam til haver uma regulao do comrcio mundial. Em contrapartida, criticam os pases industrializados, que, alm de no se empenharem em suprir as falhas demo-crticas e jurdicas desse sistema, tirariam proveito delas.

Os altermundialistas defendem idias favorveis regulao dos mercados fi nan-ceiros. A mais conhecida a proposta de se fi xar uma tributao sobre as transaes fi nanceiras, conhecida pelo nome de seu criador, Tobin, Prmio Nobel da Econo-mia (na verdade, trata-se de um prmio do Banco Central Sueco em memria de Alfred Nobel, erroneamente apresentado como Prmio Nobel). Os altermundia-listas propem ainda a atribuio de um papel mais importante a organizaes como a Organizao Mundial da Sade (OMS) e a Organizao Internacional do Trabalho (OIT). So tambm favorveis criao de uma organizao mundial do meio ambiente dotada de poderes efetivos de sano e apiam todas as iniciativas em

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Aprol do desenvolvimento de um comrcio realmente justo.

O altermundialismo investe muito nas lgicas de rede e na utilizao das novas tecnologias da informao, apoiando-se em certos veculos de comunicao. Entre os mais conhecidos, esto o jornal Le Monde Diplomatique, a rede Indymedia Center e o jornal alternativo Bretzel, assim como organizaes a exemplo da ATTAC, idealizadora do projeto Tobin. As mobi-lizaes altermundialistas fi zeram com que a OMC, o G8 e o BM passassem a organizar seus encontros cada vez mais longe dos grandes centros, em lugares afastados e pouco acessveis populao, o que aumenta a suspeita acerca de seu carter pouco democrtico. Em 2001, a OMC congregou-se em Doha, no Qatar. Em 2002, a Cpula do G8 reuniu-se no corao das Rochosas, em Kananaskis, e, em 2003, em vian, na Frana. Para a Reu-nio de Cpula do G8 de 2004, George W. Bush escolheu Sea Island, uma pequena ilha privada da Gergia. Em 2005, foi a vez de Gleneagles (Esccia); em 2006, de So Petersburgo, na Rssia, e, em 2007, de Rostock, Alemanha, considerada uma ver-dadeira priso de luxo.

Entre as propostas evocadas com mais frequncia nos planos econmico e social, encontram-se principalmente: o controle das instituies fi nanceiras internacionais FMI, BM, OMC pela organizao das Naes Unidas (ONU); a preservao dos servios pblicos ameaados pelo Acor-do Geral sobre o Comrcio dos Servios (AGCS); e a anulao da dvida dos pases pobres, algumas delas contradas por um governo anterior no-democrtico, para manter-se no poder. Tal demanda baseia-se nas alegaes de que essa dvida j foi

paga vrias vezes por seus juros e de que ela tem, em contrapartida, as dvidas eco-lgica ou colonial. Os altermundialistas exigem igualmente: o combate efetivo aos parasos fi scais, em um primeiro momen-to, e a posterior supresso desses espaos, onde se confundem economias especu-lativa e criminosa; a excluso defi nitiva de certos setores, tais como a educao ou a sade, dos ciclos de negociao da OMC; a elaborao de um balano exaus-tivo e independente das polticas seguidas nos ltimos vinte anos pelas instituies fi nanceiras internacionais; a cobrana de garantias de progressos democrticos quando da concesso de auxlio econmi-co a pases no-democrticos; e o estabe-lecimento de um controle cidado sobre as ajudas econmicas.

Desde o primeiro Frum Social Mun-dial de Porto Alegre, houve tambm o crescimento de propostas que tendem a desenvolver uma outra abordagem da riqueza e da moeda. Novos indicadores de riqueza (indicadores de desenvolvi-mento humano, de sade social, de bem-estar econmico, de desenvolvimento sustentvel) so cada vez mais debatidos e elaborados, frequentemente no mbi-to de instituies internacionais como o PNUD (Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento) ou a OMS. De manei-ra ainda mais radical, iniciou-se recente-mente um debate sobre a natureza da pr-pria moeda, suas condies de emisso e circulao e sobre a lgica perversa das taxas de juros. Tanto no plano terico, como no experimental, multiplicam-se iniciativas de sistemas de troca, de moedas ecolgicas e sociais e de novas formas de crdito. Tais aes apiam-se no conhe-cimento adquirido durante as tentativas

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Aregistradas na dcada de 1990, como os Clubes de Trocas (LETS, de local exchange trade system, nos pases anglo-saxes), os SEL (sistemas locais de trocas, nos pa-ses francfonos), os sistemas de trocas com base no tempo (bancos do tempo, na Itlia; time dollar, nos Estados Unidos; fair bank, na Gr-Bretanha), ou as moedas sociais alocadas (como o cheque-servio, o tquete-restaurante, o cheque-frias, etc.).

4. Esses debates e experincias propiciam at mesmo a formulao de um projeto concebendo uma unidade contbil e de troca mundial. Tal instrumento permitiria, aos atores que demonstrassem a necessi-dade de utilizar a moeda como um meio e no como um fi m, privilegiar as trocas e os investimentos inseridos nessa lgica. Todas essas tentativas do novo impulso ao projeto histrico da economia social (cooperativas, sistemas mutualistas e asso-ciaes), revisitado pela nova energia cria-dora da economia e das fi nanas solidrias.

O altermundialismo constitui a parte mais dinmica do que se conhece pelo ter-mo amplo sociedade civil internacional. O movimento desenvolveu-se de modo extremamente rpido, mesmo dispon-do de expedientes irrisrios em relao queles das empresas multinacionais, das instituies fi nanceiras, dos Estados e dos grandes meios de comunicao. Sucedido esse impulso, o altermundismo atravessa atualmente um momento crtico de sua jovem histria, devendo contornar os ris-cos que levaram ao fracasso muitas tenta-tivas anteriores, em especial nos regimes comunistas.

O capitalismo (ou o que se nomeia, frequentemente, com o termo preguio-so globalizao neoliberal) no cons-

titui o nico risco que pesa, no incio do sculo XXI, sobre a humanidade. Os dois maiores obstculos enfrentados ao esta-belecimento de uma civilidade mundial so o fundamentalismo, sob formas mais e mais violentas, e um capitalismo esta-dunidense, cada vez mais autoritrio e menos liberal. Na administrao Bush, esse capitalismo revela-se sempre mais nacionalista e oposto a regulaes mun-diais ecolgicas (rejeio ao Protocolo de Kyoto), jurdicas (objeo Corte Penal Internacional), polticas (recusa a uma reforma das Naes Unidas) e at eco-nmicas (imposio de barreiras prote-cionistas a sua agricultura, sua indstria e suas patentes). O desafi o combater-se mais um capitalismo autoritrio, que se ope a regulaes mundiais, e menos uma mundializao liberal. O confronto por uma democracia mundial deve inscrever-se nessa alternativa aos riscos autorit-rios, que podem assumir tanto a forma do capitalismo, como a expresso do funda-mentalismo. Essa democracia no pode contentar-se em desmilitarizar a luta pelo poder, precisando mudar sua natureza.

Se a forma associativa uma das mais adaptadas exigncia democrtica, isso se d justamente porque ela se ajusta muito mais ao poder como criao do que como dominao. Foi por essa razo que se viu surgir, a partir da dcada de 1990, no somente uma sociedade civil, mas tam-bm uma sociedade civil mundial. Com efeito, essas associaes de um novo tipo, as que se caracterizam como movimentos de cidadania ou associaes cvicas, tra-tam diretamente de questes polticas. Um encontro como o Frum Social Mun-dial de Porto Alegre , no melhor sentido do termo, um encontro poltico.

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AEssa qualidade democrtica mais

necessria no movimento cvico e societ-rio emergente em escala mundial porque foi nesse terreno que fracassaram as ten-tativas anteriores de alternativa ao capita-lismo. Todas as foras que, no comeo do sculo XXI, acreditam na possibilidade de haver um outro mundo devem trabalhar internamente para superar as lgicas de rivalidade e de suspeio que minaram o movimento operrio e seus componen-tes polticos e sociais. Nem as diferenas nem os desacordos so perigosos; os mal-entendidos, os processos de inteno, as lgicas de rivalidade e de relaes de fora que o so. A pluralidade das tradies polticas, culturais e espirituais que com-pe o movimento da altermundializa-o uma fora, no uma fraqueza, desde que ela edifi que coletivamente uma tica e uma qualidade democrtica proporcio-nais a suas ambies.

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AANTIUTILITARISMOAlain Caill

1. O antiutilitarismo defi ne-se por opo-sio Economia e Cincia Econmica dominantes e cristalizao e condensa-o de prticas, viso de mundo e fi loso-fi a utilitaristas. A crtica Economia ser antiutilitarista ou no o ser. Essa afi rma-o suscita tanto problemas quanto solu-es, pois supe que se delibere sobre o que convenha entender-se por utilitaris-mo. A assero tem ainda inspirado todo o trabalho da Revue du MAUSS (Movimento Antiutilitarista em Cincias Sociais) des-de sua fundao, em 1981.

A crtica Economia e Cincia Eco-nmica, nascida com o capitalismo moder-no e sua economia poltica, desponta por volta de 1800, assumindo formas e graus de intensidade infi nitamente variados. Para os males engendrados pelo capitalis-mo, buscou-se uma soluo, durante dois sculos, na volta aos bons velhos tempos, na invocao de dias melhores (socialistas ou comunistas), ou ento, mais modesta-mente, em uma organizao social-demo-crata da livre concorrncia. A crtica Cincia Econmica ocorre, basicamen-te, sob trs vertentes principais, entre outras. Primeiramente, ela pode incidir sobre pontos tcnicos mais ou menos especfi cos, a exemplo da crtica ao con-ceito de capital formulada pela escola de Cambridge, ou da demonstrao do irrea-lismo dos postulados protagonizada pela teoria do equilbrio geral. A crtica Cin-cia Econmica pode ainda questionar a imagem do sujeito econmico racional, cuja racionalidade , na melhor das hipte-ses, subjetiva e limitada. Finalmente, essa crtica pode consistir na demonstrao da

incompletude do mercado e dos defeitos de coordenao que ela acarreta, a exem-plo do que fazem o keynesianismo, o neo-institucionalismo e as escolas da regula-o ou das convenes. De qualquer sorte, salienta-se a incapacidade intrnseca de a Cincia Econmica primar pela natureza, pelo ser vivo e pelo ser humano. Frequente-mente, essas diversas crticas, passadistas, reformistas ou revolucionaristas, tcnicas, ecolgicas ou epistemolgicas, entrecru-zam-se e combinam-se, o que no facilita a defi nio do que seja antiutilitarismo.

No interior desse conjunto crtico pro-teiforme, pouco se duvida de que o mar-xismo tenha desempenhado, por muito tempo, o papel principal, ainda que amb-guo. Cabe indagar se a crtica economia poltica, por diversas vezes recomeada e reformulada por Marx e seus discpulos, deve ser entendida como a esperana de se criar uma Cincia Econmica mais cientfi ca que a economia poltica bur-guesa a verdadeira Cincia Econmica enfi m encontrada , ou como uma crtica aos limites de qualquer discurso econmi-co possvel. Do mesmo modo, cabe ques-tionar se a crtica ao capitalismo deve ser compreendida como a denncia da subor-dinao da vida real dos homens concretos aos imperativos abstratos da economia, ou, com a contribuio do materialismo histrico, um apelo a um excesso de rea-lismo economicista e ao desenvolvimento sem fi m das foras produtivas. possvel demonstrar-se que essa ambiguidade est na raiz dos dramas engendrados pelas ten-tativas de se construir o comunismo, pois elas se mantiveram exaustivamente dividi-das entre um economicismo (apologia ao planejamento racional) e um antiecono-micismo (escolha pela abolio das cate-

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Agorias mercantis e apelo ao devotamento do proletariado), igualmente hipertrofi a-dos. Outra oposio situa-se entre um uti-litarismo e um antiutilitarismo desenfrea-dos. Com efeito, o marxismo compartilha com o pensamento burgus a certeza utili-tarista de que, sendo o econmico o nico real, a sociedade no passa de uma supe-restrutura da economia. Ele a critica, mas o faz em nome de um antiutilitarismo, de uma aspirao a deixar o utilitarismo do qual ele no consegue se desvincular, j que o prprio marxismo procede em boa parte do utilitarismo.

2. No raro que uma mesma doutrina seja objeto de leituras totalmente divergentes, e isso se aplica tambm ao utilitarismo. Neste caso, em particular, a diversidade das interpretaes surpreendente. Sob a tica do Continente (Alemanha, Fran-a, Itlia), o utilitarismo, concebido como uma doutrina particularmente banal, no interessava a mais ningum. As histrias da Filosofi a ou das Cincias Sociais mal faziam meno a ele, limitando-se a lembrar a exis-tncia de Bentham (1970), considerado o pai da doutrina. No mximo, citavam-se alguns precursores, os moralistas escoce-ses, Hutcheson, Hume ou Smith, ou ento Helvtius ou Beccaria, e pelo menos um sucessor importante, Stuart Mill, autor da obra Utilitarismo (1998), que teria estabele-cido o essencial da doutrina.

Esse desinteresse radical pelo utili-tarismo causa surpresa diante do fato de que os principais debates tericos e pol-ticos do sculo XIX, ocorridos na Europa, desenvolveram-se em uma relao central com ele e, principalmente, com a doutrina de Bentham, tal como seu discpulo su-o Dumont expusera-a no incio daque-

le sculo. Podem-se citar trs exemplos, entre dezenas de outros. Nietzsche foi inicialmente um defensor do utilitaris-mo antes de se tornar um antiutilitarista radical, vendo no homem utilitarista um calculador, aquele que buscaria acima de tudo a prpria felicidade, a fi gura execr-vel do ltimo homem, com quem fi n-daria a histria da humanidade. Contra o utilitarismo de Spencer, Durkheim, o socilogo mais popular da Europa dos anos 1880, fundou o que se tornaria a escola sociolgica francesa. Por sua vez, a grande tradio socialista francesa aque-la que culminou com Jaurs segue a linha do benthamismo, por se querer raciona-lista, mesmo pretendendo infl eti-lo para dar lugar maior ao altrusmo do que ao egosmo. O socialismo no-marxista v-se assim como um utilitarismo com certo tom de simpatia (CHANIAL, 2000).

O cerne do debate que reserva mui-tas surpresas polariza-se entre egosmo e altrusmo. Para a maior parte dos econo-mistas, e para quase todos os socilogos, o utilitarismo estabelece: a) que os homens so ou devem ser considerados como indivduos, separados e mutuamente in-diferentes, no podendo, por natureza, buscar algo alm de sua prpria felicida-de ou de seu prprio interesse; b) que bom e legtimo que assim o seja, pois esse o nico objetivo racional oferecido aos seres humanos; c) enfi m, que os indiv-duos buscam essa satisfao de seu pr-prio interesse ou deveriam busc-la racio-nalmente, maximizando seus prazeres (ou ainda, sua utilidade, suas prefern-cias) e minimizando suas difi culdades (ou sua falta de utilidade). Assim concebido, o utilitarismo mostra-se como uma dog-mtica do egosmo (HALVY, 1995) e faz

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Amais do que antecipar o que ainda se cha-ma de modelo econmico ou, de modo mais geral, de individualismo metodol-gico e de Rational Action Theory (RAT), tor-nados o modelo explicativo dominante nas Cincias Sociais. Assim o consideram todos os autores importantes da tradio sociolgica, para quem a Sociologia deve ser pensada como um antiutilitarismo, um discurso que reconhece a legitimi-dade do clculo de interesse e da racio-nalidade do homo conomicus, mas que se recusa a acreditar que toda ao reduzir-se-ia racionalidade instrumental (LAVAL, 2002).

A difi culdade reside no fato de que a corrente ultradominante da fi losofi a moral anglo-saxnica, desde Mill at Rawls, pas-sando por Sidgwick e Moore, repousa sobre uma interpretao bem diferente do utilitarismo. Em sua discusso sobre o utilitarismo, todos esses autores interes-sam-se menos pelo postulado do egosmo racional do que pelo princpio de justia utilitarista enunciado por Bentham: jus-to o que permita maximizar a felicidade do maior nmero. Deduz-se a sequncia: para ser justo e moral, pode-se revelar ser necessrio sacrifi car os interesses egostas felicidade do maior nmero. O utilita-rismo, que antes parecia consistir em uma dogmtica do egosmo, mostra-se como uma doutrina que prega o altrusmo; at mesmo o sacrifcio. Foi precisamente para evitar o sacrifcio dos interesses ou a liber-dade dos indivduos sob o pretexto de maximizar a utilidade comum que Rawls tentou defi nir outros critrios de justia alm do parmetro utilitarista. Seu xito duvidoso, j que o autor no soube expli-car-se sobre o estatuto da hiptese do egosmo racional.

Segundo economistas, o homo cono-micus no necessariamente egosta. H certos indivduos para quem a satisfao do prprio interesse passa pelo contenta-mento dos outros. Eles seriam, em suma, egostas altrustas. A discusso sobre o alcance do utilitarismo torna-se logo complexa, e quatro teses podem ser apre-sentadas para se analisarem essas intrica-das questes.

Conforme a primeira tese, o utilitaris-mo caracteriza-se pela combinao dif-cil (at impossvel) entre uma afi rmao positiva os indivduos so calculistas interessados racionais e uma afi rmao normativa consequencialista: justo e desejvel o que maximiza objetivamente a felicidade do maior nmero ou o interesse geral. Em suma, o utilitarismo distingue-se pela combinao de um egosmo e de um altrusmo racionais.

As teorias econmicas liberais, que apelam ao mercado e ao contrato a fi m de conciliar esses dois princpios, podem ser consideradas como utilitaristas lato sensu. J as teorias utilitaristas stricto sensu so aque-las que, a exemplo do Bentham reformador do Direito, postulam ser essa conciliao somente possvel mediante a interveno de um legislador racional que manipule os desejos, equacionando penas e recompen-sas, pelo que Halvy denominava-a har-monizao artifi cial dos interesses. Estas compem o segundo grupo de teses.

Embora a palavra utilitarismo seja rela-tivamente recente (foi criada por Mill), os dois princpios de base do utilitarismo, j claramente enunciados por Scrates e Plato, so to antigos quanto as fi losofi as ocidental e chinesa, conforme Mao-Tse (HAN-FEI-TSE, 2000), cuja histria pode ser lida como a de uma longa batalha

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Aentre teses utilitaristas e teses antiutilita-ristas (CAILL; LAZZERI; SENELLART, 2001). Esse embate foi substitudo pelo confron-to entre Cincia Econmica e Sociologia.

De acordo com a quarta tese, o utilita-rismo nada mais do que a teoria da racio-nalidade prtica ampliada totalidade da fi losofi a moral e poltica. Apoiada no postulado do homo conomicus, a Cincia Econmica representa a cristalizao do utilitarismo.

3. Criticar o utilitarismo delicado, em razo da fora de sua intuio constitutiva. difcil opor-se algo s idias aparente-mente manifestas de que os indivduos no podem buscar nada mais do que a satisfa-o de seu prprio interesse e que no h outro objetivo legtimo concebvel para os Estados ou para as sociedades seno asse-gurar a maior felicidade ao maior nmero. Muitos fatores esto envolvidos, entretan-to, neste estudo, possvel fazer-se apenas um breve apanhado deles.

No plano positivo, as explicaes utili-taristas da ao humana so infi nitamen-te mais fracas do que se poderia crer no incio: ou elas no conseguem se libertar do formalismo e da tautologia, limitando-se a repetir, sob mltiplas formas, que os homens preferem o que preferem e inte-ressam-se pelo que os interessa; ou elas caem em uma forma ou outra de utilitaris-mo vulgar, afi rmando serem os interesses materiais (o dinheiro, o sexo, ou o gosto pelo poder) que conduzem o mundo.

No plano normativo, a questo princi-pal que, se a felicidade pode certamente ser desejada, nem por isso pode ser obje-tivada, pois no palpvel. Fazer dela uma meta (e no um resultado desejvel pos-svel) implica consider-la quase como

um objeto, o qual se pode possuir e dele se apropriar, e considerar o sujeito que o persegue, indivduo ou Estado racionais, como um senhor ou um proprietrio onis-ciente e onipotente. De modo mais con-creto, as sociedades modernas decidiram o debate estabelecendo que a medida adequada da felicidade seria o Produto Nacional Bruto (identifi cado com a Feli-cidade Nacional Bruta) e que a maximi-zao da vida ou da sobrevida brutas seria alcanada a qualquer preo, com o risco da infelicidade.

A esses discursos que difundem uma viso puramente instrumental da exis-tncia humana (solapando assim toda possibilidade de felicidade objetiva), pode-se objetar que, como mostra Mauss, em Ensaio sobre a Ddiva (2003), a moti-vao primeira da ao no o interesse pessoal, mas a obrigao de dar, de mos-trar-se generoso diante dos outros; que a hiptese do homo donator , portanto, to plausvel quanto a do homo conomicus (GODBOUT, 2000). O essencial da existn-cia reside sem dvida nessas premissas, e a viso utilitarista do mundo desconsidera que, antes mesmo de os sujeitos poderem satisfazer suas necessidades e calcular seus interesses, preciso que existam e se constituam enquanto tais, quer se tra-te dos indiv duos, quer dos coletivos. Essa construo de subjetividade relaciona-se subordinao da necessidade exign-cia de sentido (para o indivduo ou para o coletivo) e implica a subordinao das consideraes utilitrias a um momento antiutilitarista constitutivo. Em outros termos, a crtica consistente economia poltica implica o reconhecimento da essncia poltica (e no econmica) das sociedades. O utilitarismo contribuiu

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Apara o nascimento da democracia moder-na, mas corre o risco de revelar-se mortal sua sobrevivncia. Esta s ser possvel mediante o entendimento de que a demo-cracia deve ser desejada por si mesma e que as consideraes de efi ccia funcional e instrumental devem estar subordinadas ao objetivo de sua edifi cao.

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AASSOCIATIVISMOPhilippe ChanialJean-Louis Laville

1. A associao uma traduo em atos do princpio de solidariedade que se expres-sa pela referncia a um bem comum, valorizando pertenas herdadas, no caso da solidariedade tradicional, ou perten-as construdas, no caso da solidariedade moderna fi lantrpica ou democrtica. A criao associativa impulsionada pelo sentimento de que a defesa de um bem comum supe a ao coletiva. Em sentido genrico, incluindo tanto as formas jur-dicas associativas, como as cooperativas e mutualistas, a associao pode ser aborda-da sociologicamente como um espao que opera a passagem, graas a um encontro interpessoal, entre redes de socialidades primria e secundria, entre esferas priva-da e pblica (LAVILLE, 2004, p. 63). As rela-es diretas personalizadas ultrapassam o contrato entre pessoas, para englob-lo na busca de fi ns comuns.

A cada ano, nascem e desenvolvem-se milhares de associaes, nas quais se inventam novos lugares de defi nio e de exerccio da cidadania, implantando-se redes de solidariedade e ajuda mtua s margens do Estado ou do mercado. Se o evento associativo impe-se atualmente como um fato de sociedade, a prpria idia de associao permanece insufi -cientemente problematizada em sua sin-gularidade. O ato mesmo de associar-se interpela diretamente nossas categorias sociolgicas fundamentais de anlise. Se o vnculo de associao irredutvel tanto ao clculo de interesse quanto aos jogos e relaes de poder, isso ocorre porque ele indica uma outra modalidade do lao

social e poltico, a solidariedade. Por essa razo, as prticas associativas e as formas associativas delas resultantes (mutualida-des, cooperativas, sindicatos, associaes civis, etc.) constituem uma poltica origi-nal: o associacionismo. Aceitar essa hipte-se permite esclarecer-se o que confere ao agir associativo sua especifi cidade, antes de retomarem-se as teorizaes que fi ze-ram dele o fundamento de um projeto poltico.

2. A tentativa de se explicar o agir associa-tivo a partir de motivaes exclusivamen-te utilitrias s pode resultar em aporias. Assim acontece com as abordagens acerca do terceiro setor atinentes economia neoclssica, que buscaram interpretar a vantagem corporativa das associaes via imposio de no-lucratividade. Segundo essas anlises, o comportamento desinte-ressado dos promotores torna-se o sinal de confi ana que convence os usurios a recorrerem a seus servios. Em outras palavras, os usurios estimam que a pre-servao de seu interesse seja garantida pelo comportamento altrusta dos empre-endedores de organizaes no-lucra-tivas. Logo se v o impasse lgico de tal concepo, salvo se admitirmos que o desinteresse material dos criadores de projetos associativos recobre um interes-se no-material, mas o contedo desse interesse ento que se torna enigmtico. Quanto s concepes da economia social que relacionam a solidariedade ao interes-se coletivo, geral ou mtuo, elas deixam de lado um vasto mundo de motivaes e de racionalidades no consumistas e no-instrumentais (EVERS, 2000, p. 568). Somente uma teorizao que considere a solidariedade como um princpio de ao

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Acoletiva independente, distinto do agir instrumental e estratgico, tem condies de compreender a originalidade do que se expressa nas prticas associativas. A soli-dariedade remete liberdade positiva de se desenvolverem prticas cooperativas e ultrapassa, pela busca das condies inter-subjetivas da integridade pessoal, a lgica do interesse.

A adeso a um bem comum no bas-ta para se constiturem os elementos necessrios a uma ao duradoura, pois ela deve ser acompanhada de um acordo sobre princpios de justifi cativa (BOLTANSKI e THVENOT, 1992). Esses princpios assu-mem a forma de lgicas institucionais quando oferecem regras fi veis em mat-ria de: prestaes; relaes com os usu-rios e com os membros; recrutamento e formao; representao e expresso dos voluntrios e dos assalariados; e, entre outras, de mobilizao dos recursos. Para se liberarem de um trabalho interpretati-vo extenuante, as relaes cristalizam-se em torno dessas lgicas (domstica, de ajuda social, de ajuda mtua, de movi-mento social, etc.), facilitando a sua coor-denao. Essa organizao explica por que a associao, quando de seus primrdios, d mostras de criatividade, mas apresen-ta-se frgil ao buscar a consolidao que atualize seu projeto fundador. A difcil elaborao de um universo simblico divi-dido pela capacidade de articular registros gerais para tratar de um bem comum sin-gular choca-se incessantemente com os fenmenos de isomorfi smo institucional.

3. Cabe indagar, em face dessa aborda-gem, se a associao pode constituir uma poltica e, em sendo possvel, qual seria ela. Uma tradio poltica negligenciada,

a do socialismo associacionista francs, tentou fornecer uma resposta positiva a esse questionamento. claro que o socia-lismo jamais teve o monoplio da associa-o, que foi teorizada e praticada tanto no campo liberal, quanto no campo conser-vador. Ocorre porm que, quando alguns buscavam na associao um simples rem-dio aos excessos do individualismo e s ameaas do poder de Estado, os socialis-mos associacionistas franceses transcen-deram essa formulao. Eles constituram a Associao como matriz, como para-digma para pensar e reformar as ordens social, econmica, poltica e moral. Nesse sentido, essa tradio no se limita a um nome, o de Proudhon, frequentemente apontado como o anti-Marx. Ela defi -ne, antes, a singularidade do socialismo francs, principalmente em relao a seu camarada alemo, a qual pode ser resu-mida em alguns traos reveladores de sua atualidade.

O socialismo associacionista precur-sor, aquele dos pioneiros Saint-Simon, Fourier e seus discpulos , foi por mui-to tempo defi nido, at mesmo estigma-tizado, como um socialismo utpico. Se utopia h, ela se deve ao fato de esse socialismo ter se conformado margem dos grandes princpios revolucionrios de 1789. Aqueles socialistas no espera-vam nada da democracia, da Repblica ou mesmo do poltico. Era necessrio construir, sobre as runas deixadas pela Revoluo, algo bem diferente. O ponto de partida comum aos fourieristas e aos saint-simonianos foi, deveras, a constata-o de uma desordem, encarnada sobre-tudo pela anarquia industrial (Fourier), contudo, seria errneo limitar o alcance dessa matriz associacionista apenas

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Aesfera econmica. Nessa esteira, a questo social no pode ser entendida como um mero problema material, pois ela se inscre-ve tambm, e, sobretudo, na esfera moral. A desordem liberal o reinado da desas-sociao, se gundo a frmula de Leroux (1997) con siste-se, acima de tudo, no reinado de um individualismo estrito jus-tifi cado por essa cincia sem moralidade, conforme a frmula saint-simoniana, ou essa cincia das naes que morrem de fome na expresso do fourierista Con-sidrant, a economia poltica. Associar os homens consiste menos em combinar seus interesses com vistas a um benefcio mximo e mais em associar as paixes para atingir a Harmonia (Fourier), em fortale-cer os sentimentos e laos de simpatia que devem unir os homens (Saint-Simon) ou em efetivar a Justia, desenvolvendo novos laos de mutualidade ou de reciprocidade (Proudhon).

Desse ponto de vista, o socialismo da associao , em princpio, um socialismo moral. Essa moral socialista deve ser inter-pretada como uma moral da cooperao, em busca de uma sntese entre felicidades individual e coletiva, amor prprio e amor aos outros, liberdade pessoal e solidarie-dade social. Essa moral indissocivel da fi losofi a da histria defendida por esses autores, contrastando radicalmente com a grande narrativa liberal. Segundo esta, o progresso da humanidade identifi ca-se com a liberao do homem de todas as correntes que o prendiam, mas, ao con-trrio, o progresso da humanidade , aci-ma de tudo, o progresso da associao, a caminhada rumo Associao Universal (Saint-Simon). Ele se identifi ca com esse processo histrico em que progressiva-mente os sentimentos altrustas sobrepu-

jam os sentimentos egostas, para dar uma forma solidarista ou socialista aos grupos humanos (MALON, 1894).

Essa combinao original entre aspec-tos individualistas e coletivistas e essa rearticulao entre interesse e desinteres-se no culminam em um moralismo ou em um sentimentalismo associacionista. Essa moral da associao prolonga-se em uma poltica republicana da associao simbo-lizada por alguns aspectos da Revoluo de 1848, na Frana. No ilegtimo inter-pretar essa Revoluo, ao menos em parte, como uma revoluo de e pela associao (CHANIAL, 2001; DESROCHE, 1981; CHANIAL e LAVILLE, 2001; LAVILLE, 1999). A Associa-o, como princpio de uma reorganizao geral da sociedade, recebe ento uma dupla signifi cao, ao mesmo tempo poltica e social. A Repblica democrtica e social de 1848 pretende pelo menos idealmen -te encarnar essa dupla lgica. Sendo uma Repblica dos cidados e dos trabalhado-res associados, ela reconhece simultanea-mente, por meio do sufrgio universal, o direito de associao no nvel do Estado e, pela organizao do trabalho, o direito de associao no nvel da vida econmica. Reforma poltica e reforma social so ago-ra indissociveis: o homem no poderia ter direitos civis e ser simultaneamente servo da indstria.

Apesar do impasse que essa Repblica indissociavelmente democrtica e social encontrou quase imediatamente, o asso-ciacionismo de 1848 esboou uma outra defi nio da cidadania, a da legitimidade, da representao e da soberania. Em seu prprio movimento, a Repblica soube, durante alguns meses, redefi nir a exign-cia republicana e redesenhar as prticas democrticas. Esta , alm das reformas

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Aconcretas propostas, a principal heran-a de 1848, principalmente meio sculo mais tarde. De fato, na virada do sculo, esse socialismo de 1848 ainda permanece vivo. O solidarismo e o radicalismo reivin-dicam-no, mas sobretudo o socialismo democrtico francs de Jaurs, assim como o de Mauss, que prolonga sua herana, e isso para melhor conter, no duplo sentido do termo, o marxismo. Esse socialismo dos trs pilares (partido, sindicato, coo-perativa) , ao mesmo tempo, um socialis-mo experimental e pluralista.

intransigncia e ao dogmatismo dos guesdistas franceses, a seu marxismo estreito e bitolado, Mauss (1997) ope um socialismo resolutamente experimental. Se a ao poltica deve permanecer secun-dria e se, em contrapartida, os sindicatos e as cooperativas so privilegiados, por-que j constituem uma experimentao concreta na qual se inventam uma econo-mia, um direito, uma nova moral; de fato, para Mauss, trata-se de viver imediata-mente a vida socialista, cri-la em todos os sentidos. De modo mais geral, se o socia-lismo de Estado no nem vivel nem desejvel, porque no poderia ser instau-rado sem atingir certos costumes, idias de mocrticas e liberdades duramente con quistadas. Ao contrrio, o socialismo somente poder edifi car-se abrindo espa-o inicialmente a uma parcela importante de liberalismo e de individualismo. Expe-rimental, o socialismo maussiano tanto plural, como hbrido. Sua crtica precoce e feroz ao bolchevismo leva-o a desconfi ar, j em 1924, de um socialismo consagrado a um nico deus, sobretudo se este for o Estado ou o partido. Defendendo, ao con-trrio, esse socialismo dos trs pilares, no qual se articulam ao sindical, ao

cooperativa e ao poltica, esse polites-mo conduz Mauss a defender um coleti-vismo original.

O projeto coletivista sustentado na mesma poca por Jaurs tampouco se resume a um socialismo de Estado. Em 1895, o autor j evoca o que ser o siste-ma econmico sovitico: Entregar aos homens de Estado e aos governantes, j donos da nao armada e da diplomacia nacional, a direo efetiva do trabalho nacional, dar-lhes o direito de nomear a todas as funes diretivas do trabalho [...] seria dar a alguns homens um poder perto do qual aquele dos dspotas da sia no nada (JAURS, 1931, p. 345-6). Jaurs esclarece que essa propriedade, esses bens que sofreram um processo de apropriao coletiva, ao contrrio, devem ser delegados pela Nao, em condies determinadas, a indivduos ou a grupos de indivduos, pois a propriedade soberana que o coletivismo quer atribuir nao no exclui de modo algum a propriedade dos indivduos ou das associaes particulares (ibid., p. 165).

O papel do Estado consiste em garan-tir, a todo cidado, a co-propriedade dos meios de trabalho que se tornaram pro-priedade coletiva. Para Jaurs, somen-te a democracia permite organizar essa co-propriedade; tal o cerne de sua teo-ria da propriedade social (CHANIAL, 2001). Quer se trate da coletivizao da inds-tria, do desenvolvimento e da gesto dos servios pblicos ou da implantao da seguridade social, Jaurs sempre mobiliza estes dois aspectos da propriedade social: a propriedade social como compartilha-mento, como mutualizao (dos meios de produo, dos servios, das protees e das seguridades) e a propriedade como socializao dos poderes, realizando

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Aaquele velho sonho operrio de fazer as suas prprias coisas. A propriedade social, para Jaurs, no portanto somente uma propriedade comum, compartilhada, e, por essa razo, propriedade dos sem-pro-priedade; ela tambm uma propriedade cvica, poder dos sem-poder. Pela pro-priedade social, concretiza-se tanto o ide-al de justia social, quanto o imperativo de liberdade e de cidadania social. Proprieda-de cvica, a propriedade social supe uma extenso da democracia, assegurando a participao direta dos operrios associa-dos ao poder econmico. O princpio de associao, desenvolvido como autogo-verno dos cidados associados, constitui o nico meio de se praticarem conjunta-mente o socialismo e a democracia.

4. Essa poltica socialista da associao indissocivel de uma redefi nio dos laos entre liberdade negativa e liberdade positiva. Se a socializao da moral exige a socializao da economia, ela reclama igualmente uma socializao do Estado, da res publica. Para os mais republicanos desses socialistas, a liberdade negativa no se ope liberdade positiva. A liberdade individual supe, ao contrrio, uma socia-lidade crescente, uma densifi cao das relaes de cooperao, e exige, portanto, a multiplicao das formas e dos espaos cvicos de engajamento. por meio do envolvimento em tais relaes de associa-o que o indivduo poder desenvolver livremente cada uma de suas faculdades, realizar-se como indivduo social.

Articulando solidariedade e autogo-verno, ddiva e engajamento cvico, o associacionismo convida-nos a identifi car o ideal democrtico com o modelo de uma sociedade liberada de toda forma de servi-

do, principalmente aquela das foras do mercado, como a estatal. Essa sociedade , em suma, isenta de dominao. Mes-mo que essa tradio poltica tenha sido historicamente derrotada na Frana, ela reencontra, no contexto do desmorona-mento dos socialismos reais, da crise da social-democracia e de desgaste do acordo fordista, uma nova atualidade sob formas j em construo.

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AAUTOGESTODaniel Moth

1. A autogesto um projeto de organiza-o democrtica que privilegia a democra-cia direta. Esta constitui um sistema em que voluntariamente, sem perceberem remunerao e sem recorrerem a inter-medirios, os cidados debatem todas as questes importantes, em assemblias. A periodicidade dessas reunies deve ser compatvel com a disponibilidade dos agentes envolvidos. A democracia repre-sentativa, por seu turno, corresponde ao sufrgio universal dos Estados democr-ticos, em que os cidados elegem uma minoria de mandatrios remunerados, incumbidos de represent-los em instn-cias decisrias de governanas nacionais e locais. Os eleitos atuam ainda em muitas outras instituies, como as de natureza representativa ou os conselhos de admi-nistrao das associaes.

A democracia participativa uma for-ma atenuada de autogesto, consistindo em reunir-se, em assemblias, o conjunto dos atores envolvidos em um tema com vistas a debat-lo (por exemplo, a orga-nizao do trabalho em uma ofi cina ou a limpeza urbana em determinado bairro). Frequentemente, o papel dessas assem-blias apenas consultivo, e a participa-o nesses encontros no conquistada por seus executantes, mas viabilizada pelos dirigentes.

A democracia radical uma forma ampliada de autogesto, na qual todos os cidados devem poder debater e votar sobre as leis e regras administrativas que lhes digam respeito. Sua consequncia o aumento do poder direto do cidado e a diminuio da margem de manobra de

seus representantes e de expertos. Esse regime poltico toma o governo de Ate-nas do sculo V a. C. como modelo de referncia.

2. O termo autogesto foi introduzido como conceito, na dcada de 1950, pelo partido comunista iugoslavo, que espe-rava modernizar o sistema econmico do Pas, atraindo a participao dos cidados depositrios dos conhecimentos tcnicos e profi ssionais nas empresas e nas muni-cipalidades em que o aparelho do partido detinha o poder. O termo seria aplicado, durante alguns anos, a regimes autorit-rios (por exemplo, Iugoslvia e Arglia). Outros regimes totalitrios comunistas instituiriam assemblias de democracia direta (China, Camboja, Albnia), que serviriam para encobrir Estados libertici-das, mas no empregariam o tema autoges-to, devido a confl itos internos ao bloco comunista.

O sentido que a autogesto assumiu na Frana, sobretudo a partir de 1968, foi o de uma democracia radical, ao mesmo tempo opondo-se s experincias stali-nistas e reivindicando Marx. A democra-cia radical propunha a volta s origens do socialismo, baseando-se nas perspectivas do comunismo e recusando aos partidos de vanguarda o monoplio sobre a repre-sentao dos interesses dos cidados. Esse conceito de democracia radical j aparecia nos anos 1920, nas correntes marxistas revolucionrias: em Rosa de Luxemburgo, na oposio operria russa e nos comunistas de conselhos holandeses, sem se esquecer a corrente libertria. Na dcada de 1950, muitos marxistas e liber-trios constataram que as ditaduras dos pases do Leste no haviam deixado lugar

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Aalgum democracia operria, prometida tanto nas fbricas, como na Nao. Uma corrente que poderia, mais tarde, ser cha-mada de autogestionria, props-se ento a voltar s fontes originais do socialismo, constatando que a abolio da proprieda-de privada no bastara concretizao do projeto socialista. O termo autogestionrio abrangeria tambm a ao dos empres-rios alternativos agindo nas cooperativas operrias de produo, nas associaes e em comunidades, instituindo formas de democracia direta sem participar obriga-toriamente dos debates ideolgicos dos militantes polticos.

Os adeptos da autogesto so assim representados por duas correntes: os polticos e os alternativos. Os militantes polticos julgam que a introduo de uma parcela maior de democracia direta nas instituies constitui em si um programa de transformao poltica o qual tange ideologia socialista. Por essa razo, subor-dinam a autogesto conquista poltica do poder. De um lado, encontram-se os maximalistas revolucionrios, que prome-tem uma sociedade de autogesto radical cujos espaos poltico, administrativo e produtivo sero submetidos democracia direta; de outro, esto os reformistas, que prometem, em seus programas eleitorais, efetuar algumas melhorias por meio de uma participao mais importante dos cidados nas decises. Para essas duas tendncias, a ao poltica a chave para a passagem a uma sociedade autogerida. Os alternativos so essencialmente pro-fi ssionais que tentam materializar espaos de autogesto limitados e circunscritos, aqui e agora, na produo, no consumo, na cultura, na educao, na insero, nos bairros, na habitao, etc.

3. A concepo poltica maximalista da autogesto repousa sobre trs hipteses: o sistema capitalista, fator de desigual-dade econmica, deve ser destrudo para que se realize a autogesto; o exerccio do poder corrompe o indivduo; e os cida-dos livres da explorao capitalista e dos profi ssionais da poltica fi caro dispon-veis para investir nas questes pblicas. Afi rmando inicialmente que a autoges-to no compatvel com a economia de mercado e que s poder se realizar quando abolida a propriedade privada, os maximalistas priorizam a revoluo e no aceitam qualquer tentativa experimental de autogesto. Parecem ignorar a experi-ncia das prticas de democracia direta das cooperativas, das sociedades mutua-listas e das associaes que se instituram em reao ao sistema capitalista desde o sculo XIX.

Os militantes revolucionrios, por seu turno, aceitam a idia de que a democra-cia direta possa ser utilizada em um sis-tema capitalista, unicamente no mbito das reivindicaes dos assalariados. Essa democracia direta das lutas assumiu, a partir dos anos 1970, um lugar cada vez maior nas prticas de confl ito os gru-pos revolucionrios tentavam substituir o poder dos sindicatos pelos comits de greve, unidos entre si por coordenaes dependentes de uma democracia dire-ta permanente de grevistas, na qual os representantes sindicais frequentemen-te desempenhavam apenas um papel secundrio. Os revolucionrios, que, at ento, haviam privilegiado o conceito de classe social como a explicao cntrica da dominao, ampliaram-no ao conceito de dominante. Podiam assim provar, median-te exemplos histricos, que se poderia

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Asubmeter o povo sem se pertencer classe dos capitalistas, mas somente exercendo a profi sso de representante eleito. A res-posta poltica para se evitar essa infl exo seria reabilitarem-se a democracia direta e o controle dos representantes eleitos. Res-gatava-se a proposta sugerida por Rosa de Luxemburgo: a revogabilidade permanen-te desses representantes. Na democracia autogestionria, a virtude cvica natural do homem deve ser protegida contra a ten-tao no menos natural do exerccio do poder em seu proveito pessoal ou daquele de um cl poltico liberado da vontade de seus mandantes.

A autogesto parte de uma ambio antropolgica, especulando sobre as poten-cialidades infi nitas abertas ao imaginrio humano de cidados livres do jugo da ide-ologia dominante. Ela abre o caminho para uma idia de progresso diferente daque-le da produo ilimitada das riquezas: o progresso ilimitado de uma democracia criadora. Ao mesmo tempo em que se diz no saber antecipadamente o que os cida-dos decidiro, afi rma-se saber o que eles no decidiro. Defende-se implicitamente a idia de que, uma vez livres da ideologia burguesa dominante, eles no desejaro voltar a ela, pois a racionalidade igualitria mantm sempre a fora de sua convico.

No incio do sculo XX, a idia dos anarcossindicalistas, segundo a qual o tra-balho manual no somente uma fora, mas um produto da inteligncia, foi sen-do cada vez mais admitida pela opinio pblica. Pela primeira vez na Histria, atribua-se um estatuto poltico ao traba-lho manual. Essa idia foi retomada na dcada de 1970 pelos gestores das empre-sas industriais, quando se constatou que o conhecimento prtico dos assalariados

de base era indispensvel para se melho-rar a racionalidade dos processos de pro-duo. Chegou-se a criticar o taylorismo exatamente em nome da produtibilidade capitalista. Invocando-se o utilitarismo, constatou-se que as experincias dos assa-lariados de base extradas de seu trabalho tornavam-nos depositrios de informa-es absolutamente indispensveis ope-rao efi caz dos novos sistemas industriais automticos e informatizados. Experin-cias de grupos autnomos de produo substituram o trabalho em linha de mon-tagem, e crculos de qualidade levaram os assalariados a contriburem intelectu-almente para a melhoria dos produtos e para sua fabricao. Na Frana, em 1982, novas regras internas nas empresas e uma lei sobre os grupos de expresso buscaram instituir procedimentos autogestionrios limitados a equipes de trabalho e circuns-critos a alguns temas.

A idia de que os cidados possuem conhecimento ganhou credibilidade quando o setor dos servios desenvolveu-se e percebeu-se que a organizao padro-nizada no convinha mais ao atendimento, devendo este ser adaptado pessoa singu-lar do usurio. Os profi ssionais das reas sociais vm tentando substituir a poltica social do gabinete pela participao dos usurios na soluo de seus problemas. Assim, na Frana, uma lei de 2004 sobre o direito dos usurios recorreu a argu-mentos tericos extrados dos autogestio-nrios. Nesse esprito, o atendimento ao pblico tende a incluir o indivduo como um dado informativo especfi co, em face do desperdcio ocasionado pela padroni-zao. A individualizao do atendimento adaptado identidade da pessoa abala os princpios burocrticos.

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AOs autogestionrios que criticavam a

separao entre dirigentes e executantes parecem ter sido ouvidos na sociedade do incio do sculo XXI, na qual noes to abstratas e pessoais quanto o desejo do cidado entram no campo poltico. Dese-jos de minorias sexuais, por exemplo, tor-nam-se reivindicaes polticas e, depois, leis. Assiste-se a uma conjuno entre princpios coletivistas autogestionrios e os princpios individualistas liberais, reconhecendo-se no indivduo um cida-do soberano.

Representantes eleitos que esto per-dendo credibilidade acabam por entrever a participao dos habitantes na gesto municipal. O envolvimento dos cidados percebido pelos mandatrios como uma resposta poltica ao desencanto com a democracia parlamentar. Nesse plano, a perenidade dos mtodos participativos em cidades brasileiras mostra que o enga-jamento dos eleitores no processo inicial das decises facilita a exequibilidade de projetos. No h somente antecipaes tcnicas detalhadas por parte dos futu-ros executantes, mas estes desenvolvem o sentimento de que so co-autores da deciso e das restries que devem acei-tar. Pode-se concluir que, em meio sculo, as idias autogestionrias e suas prticas dispersas, em temas e terrenos, ganharam credibilidade e foram concretizadas, no da maneira fulgurante que os revolucion-rios esperavam, mas, pouco a pouco, tanto mediante a ao poltica, como por meio de iniciativas prticas.

Os integrantes de associaes voltadas educao popular sabem, h bastante tempo, que uma das difi culdades interpos-tas democracia continua sendo a distri-buio assimtrica do capital cultural aos

cidados. Aqueles que fazem experincias baseadas na democracia direta tm busca-do, h muitos anos, procedimentos para atrair, aos debates, os menos experientes, sem que estes sofram os estigmas de sua ignorncia e de sua inabilidade diante dos acadmicos e dos militantes. Ao reunirem populaes heterogneas, as experimenta-es autogestionrias obrigam seus organi-zadores a encontrar mtodos para atenuar esses dfi cits, a fi m de que as assemblias no reproduzam um sistema oligrquico, no mais fundado sobre o capital fi nancei-ro, mas sobre o capital cultural.

A autogesto foi pensada no mbi-to de um el revolucionrio cujos atores so movidos pelo desejo da mudana. No calor de uma vitria sobre seus opresso-res, as multides convidam-se mesa do debate poltico; no precisam ser convida-das. Esses so breves perodos que servem de referncia, superando os menos espe-taculares, assinalados ao longo do tempo, como os kibutzim e as cooperativas oper-rias, os quais devem sobreviver ao ardor pela mudana desencadeada por seus fun-dadores. Essa constatao pe-nos diante de uma evidncia, qual seja, a de que a democracia direta s se sustenta na sub-jetividade da inteno. Se a democracia direta no reunir uma parcela signifi cativa dos cidados envolvidos, sua legitimida-de no ultrapassar aquela dos partidos e dos sindicatos. Ao serem tomadas somen-te por um nmero reduzido de cidados voluntrios, as decises no tero mais autoridade do que aquela das democra-cias representativas.

Argumentos tericos que justifi quem a democracia direta no so sufi cientes para se sustentar um modelo que consuma muito tempo do indivduo. Nesse sentido,

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Abasta refl etir-se sobre a distribuio atual dos tempos sociais dos cidados, aqueles consagrados ao trabalho, vida familiar e locomoo, no esquecendo as ativida-des ldicas. Essa difi culdade natural dos tempos disponveis nunca evocada na abundante literatura dos anos 1970-1980 sobre o assunto. J a autogesto apresen-ta-se diferentemente conforme se situe em um mesmo espao como a empresa ou na vida externa ao trabalho. Na empresa, os participantes esto dispostos a discu-tir em grupo sem que isso lhes crie um incmodo maior, pois o tempo do debate insere-se no perodo de trabalho. A auto-gesto que se efetua em espaos externos, cujos participantes precisem deslocar-se para encontrar os outros membros do grupo, supe que esse tempo seja tomado do lazer. Mesmo que os tempos de reunio sejam retribudos, as compensaes nun-ca sero sufi cientes para se concretizar o projeto de democracia radical.

As constataes empricas permitem afi rmar que resultados efi cazes da demo-cracia direta podem verifi car-se entre um nmero limitado de pessoas, em um espa-o pblico em que cada indivduo possa expressar-se mediante outros recursos, alm de aplausos e gritos. Quando mais pessoas dispersas geografi camente esto

envolvidas em uma deciso, mais preciso recorrer-se a uma democracia represen-tativa. nesse limiar que a autogesto questionada, apresentando-se o dilema de como conservar-se a riqueza da demo-cracia direta em outra dinmica incontor-nvel, a da democracia representativa. No incio do sculo XXI, ainda surpreende o quanto certos conceitos adquiriram, em meio sculo, um lugar legtimo no pensa-mento e na prtica democrtica, abrindo necessidade de enriquecer o conceito com todas as realizaes do planeta.

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BBANCOS COMUNITRIOS DE DESENVOLVIMENTOGenauto Carvalho de Frana FilhoJeov Torres Silva Junior

1. Os bancos comunitrios de desenvol-vimento (BCDs) podem ser defi nidos como uma prtica de fi nanas solidrias de apoio s economias populares situa-das em territrios com baixo ndice de desenvolvimento humano. Estruturados a partir de dinmicas associativas locais, os BCDs apiam-se em uma srie de fer-ramentas para gerar e ampliar a renda no territrio. Para tanto, articulam-se quatro eixos centrais de aes em seu processo de interveno: fundo de crdito solidrio, moeda social circulante local, feiras de produtores locais e capacitao em eco-nomia solidria. Diferente das prticas de microcrdito convencionais, orientadas pessoa ou organizao individual, os BCDs preocupam-se com o territrio ao qual pertencem, seja ele uma comunidade, um bairro, seja um pequeno municpio. Nesse sentido, os BCDs procuram inves-tir simultaneamente nas capacidades de produo, gerao de servios e consumo territorial. Para tanto, fi nanciam e orien-tam a construo de empreendimentos socioprodutivos e de prestao de servi-os locais, bem como o prprio consumo local. Isso porque, para alm da dissemi-nao de microcrditos com mltiplas

fi nalidades conforme as linhas de crdito defi nidas pelos bancos, seu maior objetivo e compromisso so a construo de redes locais de economia solidria mediante a articulao de produtores, prestadores de servios e consumidores locais.

Tais redes so tambm conhecidas como redes de prossumidores, pelo fato de associarem produtores e consumidores locais por meio do estabelecimento de canais ou circuitos especfi cos de rela-es de troca, o que implica uma ruptura com a clssica dicotomia entre produo e consumo, caracterstica da lgica capi-talista de organizao do funcionamento econmico. A construo de redes des-se tipo materializa a expresso concreta de uma outra economia nos territrios, a forma encontrada para se fortalecerem as economias locais, reorganizando-as na direo de um outro modo de promover o desenvolvimento, com base nos princpios da economia solidria. Os BCDs afi rmam-se como partcipes de um movimento de economia solidria, seja atuan do no mbi-to dos fruns regionais e nacionais desse movimento, seja na constituio de sua prpria rede, a rede brasileira de bancos comunitrios.

2. Uma das condies indispensveis criao de um BCD diz respeito mobi-lizao endgena do territrio, embo-ra haja vrias possibilidades de arranjo

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Binstitucional nesse sentido, mediante aportes de recursos de outras instituies. Em outras palavras, o incio de um BCD deve se dar a partir do desejo intrnseco da comunidade, ainda que existam motivao e processos de estimulao por parte de agentes externos. De todo modo, alguns requisitos devem ser atendidos, tais como a disponibilidade de: capital fi nanceiro para o fundo de crdito; recurso fi nancei-ro para pagamento das despesas operacio-nais do banco; organizao comunitria (associao, frum, conselho, etc.) que possa assumir a gesto do banco; pessoas capacitadas para as funes de agente de crdito e gerente de crdito; e assessora-mento para assimilao da tecnologia pela comunidade.

Outro aspecto salutar ao funciona-mento dos BCDs a existncia de garan-tia e controle baseados nas relaes de proximidade e confi ana mtua, ou seja, um BCD considera o cadastro formal do tomador de emprstimo apenas como um registro para o conhecimento de sua vida na comunidade. O agente de crdito do banco consulta assim a rede de relaes de vizinhana como fonte de conhecimento. Por sua vez, a cobrana do crdito ocorre mediante a introduo de um sistema de controle social extremamente indito: so os prprios moradores do territrio que passam a exercer um mecanismo de pres-so moral sobre os demais.

Em suma, quatro caractersticas resu-mem a especifi cidade dos BCDs enquanto experincia de fi nanas solidrias segun-do a prpria viso da rede brasileira de BCD: a) a coordenao do banco e a ges-to dos recursos so efetuadas por uma organizao comunitria; b) as linhas de microcrdito para a produo e o consu-

mo local pautam-se sob juros justos, que possibilitam a gerao de renda e oportu-nidades de trabalho a toda a comunidade; c) a concesso e cobrana dos emprsti-mos baseiam-se em relaes de vizinhan-a e domesticidade, impondo um contro-le muito mais social que econmico; e d) a criao de instrumentos alternativos de incentivo ao consumo local carto de crdito e moeda social circulante local reconhecida por produtores, comercian-tes e consumidores como meio efi caz para a dinamizao da economia local.

3. Na origem dos BCD, encontra-se a experincia do Banco Palmas, ocorrida em Fortaleza, no Brasil (FRANA FILHO e SILVA JNIOR, 2006). Esse banco foi criado em 1998, como fruto da ao da Associa-o de Moradores do Conjunto Palmeiras (ASMOCONP) no processo de construo do prprio bairro e melhoria das condi-es de vida naquele espao. Mais parti-cularmente, a idia de um banco comuni-trio delineou-se em face da constatao de que as condies de infra-estrutura urbana no bairro haviam avanado, porm os problemas de falta de renda e oportu-nidades de trabalho permaneciam muito signifi cativos. Os xitos obtidos por essa experincia, em termos de gerao de ren-da e reduo da excluso local, atriburam alto grau de reconhecimento institucional iniciativa. Diante dos apelos replicao dessa metodologia, foi criado, em 2003, o Instituto Palmas de Desenvolvimento e Socioeconomia Solidria, no intuito de implantar tecnologias sociais de economia solidria em parceria com diversas insti-tuies no Brasil.

A repercusso das aes do Institu-to Banco Palmas no sentido de replicar a

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Bmetodologia do banco comunitrio ini-ciou ao fi nal de 2004, com a implantao do Banco PAR, em Paracuru, CE. No ano seguinte, o Ministrio do Poder Popu-lar para a Economia Popular (MINEP), do Governo da Venezuela, aproximou-se do Instituto Banco Palmas e demons-trou interesse em transpor a experincia dos Bancos Comunitrios quele pas. O modelo de banco comunal/comunitrio foi assumido como poltica pblica de desenvolvimento pelo governo venezuela-no. No ano seguinte, em maio de 2006, foi aprovada a Lei dos Conselhos Comunais, que estabeleceu os bancos comunais como administradores de recursos outorgados pelo executivo para desenvolvimento de projetos locais. Em 2008, j se computa-vam algumas dezenas de bancos comunais em todo o pas, estimulados por uma srie de programas governamentais, mas con-duzidos principalmente pelo Ministrio do Poder Popular para a Economia Comu-nal (MINEC).

O Governo Federal brasileiro, sob orientao da Secretaria Nacional de Econo mia Solidria (SENAES/MTE), tam-bm tem entendido o BCD como produto catalisador das aes do desenvolvimento territorial ao articular, simultaneamente, produo, comercializao, fi nanciamen-to e formao cidad. As aes governa-mentais iniciaram em 2005, quando a SENAES decidiu investir no Projeto de Apoio Implantao e Consolidao de Bancos Comunitrios, proposto pelo Instituto Palmas. Desse modo, a SENAES passou a atuar, juntamente com o Insti-tuto Palmas, no apoio organizao de bancos comunitrios a fi m de consolidar essa metodologia e torn-la referncia de poltica nacional de incentivo ao crdito

para a produo, consumo e desenvolvi-mento local. No obstante, diferente do governo venezuelano, o governo brasilei-ro no constituiu ainda um marco legal ou garantiu recursos para o fundo de cr-ditos desses bancos comunitrios. Essa difi culdade foi parcialmente superada no incio de 2006, quando outro parcei-ro juntou-se iniciativa, o Banco Popular do Brasil (subsidirio do Banco do Brasil para o segmento de microcrdito e cor-respondente bancrio). Essa instituio passou a agir no suporte s iniciativas de bancos comunitrios mediante o aporte de recursos fi nanceiros constituio do fundo de crdito do Banco Comunitrio.

O Projeto de Apoio Implantao e Consolidao de Bancos Comunitrios teve um efeito importante na ampliao dos BCDs enquanto tecnologia social para o desenvolvimento socioeconmico de territrios. Em outras palavras, o Pro-jeto funcionou como um amplifi cador das parcerias e como catalisador de esforos para tornar os bancos comunitrios uma referncia de poltica de incentivo gera-o de trabalho e renda para populaes excludas socialmente. Isso fi ca evidente quando se constata uma srie de aes e parcerias estabelecidas entre essas orga-nizaes e os rgos dos governos fede-ral, estadual e municipal desde fi ns de 2005. Dado esse esforo, at o primeiro semestre de 2008 j estavam implantados cerca de 30 BCDs em diferentes cidades brasileiras.

Ainda ser necessrio haver o aperfei-oamento processual para que os BCDs possam se multiplicar de modo susten-tvel, constituindo-se em uma poltica pblica efi caz de mitigao das desi-gualdades sociais e de desenvolvimento

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Bsocioeconmico de um territrio. Trs grandes aspectos devem ser observados para a consolidao dos BCDs: 1) identi-fi cao e captao de recursos de fundos que alimentem as linhas de crdito do BCD; 2) estabelecimento de infra-estru-tura tecnolgica que torne mais efi cientes e efi cazes as operaes do banco comuni-trio; e 3) utilizao de linhas de fundos pblicos para viabilizar projetos socioeco-nmicos locais por meio da metodologia dos bancos comunitrios. Quando esta ltima meta passar a ser executada, con-tando com um amparo legal prprio, juros mais baixos e mecanismos apropriados s experincias de microfi nanas, ser dado um passo defi nitivo na consolidao da metodologia de BCDs enquanto poltica pblica.

4. Cabe indagar se os BCDs expressam uma outra economia e se esto contri-buindo para um outro modo de desenvol-vimento possvel. Em primeiro lugar, os BCDs tm vocao a promover uma cons-truo conjunta da oferta e da demanda. Eles materializam uma iniciativa associa-tiva envolvendo moradores, em um deter-minado contexto territorial, que buscam a resoluo de problemas pblicos concre-tos relacionados sua condio de vida no cotidiano, por meio do fomento criao de atividades socioeconmicas. Nesse sentido, o estabelecimento de atividades ou oferta de servios d-se em funo de demandas reais expressas pelos morado-res de certo local. A idia visa estimular, no territrio, a concretizao de um cir-cuito integrado de relaes envolvendo produtores ou prestadores de servios em articulao com consumidores ou usu-rios de servios.

Nesse tipo de economia, perde sentido a considerao da oferta e demanda como entidades abstratas, do mesmo modo que a competio deixa de ter importncia nessa lgica. O objetivo da rede instituir a ruptura com a dicotomia habitual entre a produo e o consumo, estimulando a livre associao entre produtores e consumido-res (ou prestadores de servios e usurios) e permitindo a afi rmao do conceito de prossumidores. Nessa economia de prossumi-dores, a regulao ocorre via debates pbli-cos concretos travados no espao associa-tivo, em um exerccio de democracia local em que os prprios moradores planejam e decidem sobre a oferta de produtos e/ou servios (ou seja, a criao de atividades socioeconmicas) em funo das deman-das efetivas identifi cadas anteriormente por eles prprios. O estmulo criao de fruns locais torna-se comum na prtica dos BCDs, a exemplo do frum econmi-co local (Fecol), do bairro do Conjunto Palmeiras, em Fortaleza.

Finalmente, a edifi cao conjunta da oferta e da demanda como caracterstica-chave dessa outra economia estimulada pelos bancos comunitrios supe haver ainda, no nvel da ao, uma articulao fi na entre dimenses socioeconmica e sociopoltica. A elaborao das atividades socioprodutivas conjuga-se a uma forma de ao pblica: trata-se de moradores em um determinado territrio debaten-do politicamente seus problemas comuns e decidindo seu destino. Esse processo coerente com o fato de que o banco comu-nitrio, enquanto vetor de desenvolvi-mento socioeconmico da rede, inscreve-se em uma dinmica associativa local. Tais iniciativas tm vocao a constiturem-se tambm como formas inditas de espao

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Bpblico em seus respectivos territrios de pertencimento, ensejando a idia de espaos pblicos de proximidade (LAVILLE, 1994).

Em segundo lugar, devido natureza dos servios prestados, assim como a suas fontes bastante diversifi cadas de gerao e captao de recursos, os BCDs agen-ciam diferentes lgicas em sua dinmica de funcionamento. Tais lgicas remetem a distintos princpios do comportamento econmico quando se adota uma concep-o plural acerca do funcionamento da economia real. Essa concepo ope-se interpretao habitual da economia sem-pre como sinnimo exclusivo de econo-mia de mercado. Ao contrrio, os BCDs promovem uma hibridao de princpios econmicos diversos entre economias mercantil, no-mercantil e no-monet-ria (LAVILLE, 1994). assim que a susten-tabilidade nesse tipo de iniciativa articula diferentes fontes de gerao e captao de recursos (consubstanciado na idia do fundo solidrio de investimento comu-nitrio): mercantil, pela prestao de alguns servios; no-mercantil, mediante a captao de recursos junto a instituies pblicas governamentais e no-gover-namentais, permitindo subsidiar muitas operaes e servios; e no-monetria, por meio de contribuies voluntrias e da prpria lgica solidria, traduzida em um modelo de garantia e controle social dos emprstimos fundamentado em rela-es de cooperao e confi ana.

Com base nesse mecanismo plural de sustentabilidade, cujo equilbrio de ges-to deve ser preservado em nome, acima de tudo, do imperativo solidrio como registro maior de sua ao, os BCDs afi r-mam ainda a condio de utilidade social ou

comunitria prpria sua dinmica orga-nizativa. Trata-se de iniciativas sem fi ns lucrativos, voltadas para o desenvolvimen-to do territrio onde se situam mediante o envolvimento dos prprios moradores na autogesto da iniciativa e na oferta de pro-dutos e servios diretamente vinculados s reais necessidades da populao local. Em suma, a utilidade social dos bancos comu-nitrios reside no fato de constiturem-se em organizaes radicalmente distintas de outras. Seu modo de atuar no territrio marca sua singularidade. Esta se baseia em relaes de proximidade e na mobilizao de valores e princpios como exigncias bsicas para a sua prtica, tais como a con-fi ana mtua, a participao cidad ou os mecanismos de solidariedade redistribu-tiva. Seu papel institucional de grande relevncia para o territrio, no podendo ser desempenhado de igual maneira por outro ente qualquer, seja ele uma empre-sa, uma organizao no-governamental, seja o prprio poder pblico.

precisamente esse carter de uti-lidade social ou comunitria dos BCDs, inscrito ainda em uma lgica de constru-o conjunta da oferta e da demanda (ou de fomento criao de um sistema local de prossumidores), que permite situar a natureza de alguns de seus servios como prestaes mercantis no-concorrenciais. Nesses termos, a atuao de um banco comunitrio, enquanto organizao que envolve os prprios moradores na con-dio ao mesmo tempo de profi ssionais remunerados, gestores do empreendi-mento e usurios ou benefi cirios diretos dos produtos ou servios ofertados, cria uma mais-valia social no seu territrio. Esse aspecto relevante vem somar-se ao fato de os BCDs atuarem em um campo de

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Batividades cujas demandas no so satis-feitas nem pelo mercado, nem pelo Esta-do. Por mais-valia social, devem-se con-siderar os benefcios diretos e indiretos advindos da atuao de um BCD por meio da prioridade gerao de trabalho e cir-culao da renda no prprio territrio. Na avaliao de tais benefcios, deve-se considerar ainda uma dimenso qualitati-va fundamental oriunda de sua prtica: a contribuio para a formao e qualifi ca-o das pessoas, bem como para o forta-lecimento do tecido social local mediante novos padres de sociabilidade calcados na disseminao de valores como confi an-a, lealdade e solidariedade.

A ousadia de um BCD reside na busca pela restaurao de laos e vnculos sociais seriamente degradados pelas condies mais gerais de vida das pessoas localiza-das em bairros populares, por meio de um novo tipo de relao com o dinheiro e de organizao da vida econmica local. Essa relao constri um novo tipo de

sociabilidade a partir de novas formas de relaes econmico-produtivas; logo, os servios fi nanceiros solidrios ofertados por um banco comunitrio, mesmo quan-do envolvem trocas mercantis, no podem ser postos em situao de concorrncia com outros entes pblicos ou privados. O reconhecimento da especifi cidade des-sas formas de organizao torna-se ento uma questo de suma importncia para seu desenvolvimento institucional.

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BBENS PBLICOS MUNDIAISPhilip GolubJean-Paul Marchal

1. Os bens pblicos mundiais so aqueles basilares para a humanidade. Concernem preservao da natureza, recursos natu-rais, ar puro, gua, patrimnio mundial e paz, preveno e erradicao das epi-demias mundiais, promoo da solida-riedade internacional, no caso de crise humanitria, e, de forma geral, dizem respeito a qualquer fenmeno que ultr