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51 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 51-69, fev. 2009 Diego Santos Vieira de Jesus RUMO À TEORIZAÇÃO ALÉM DO ESTADO: O DUPLO PROCEDIMENTO DE DESNATURALIZAÇÃO E TEMPORALIZAÇÃO 1 Recebido em 29 de setembro de 2007. Aprovado em 19 de maio de 2008. Este artigo tem como objetivo explicar por que um duplo procedimento de desnaturalização e temporalização oferece um primeiro passo rumo a uma teorização que aponte para a dissolução das noções de autoridade e identidade do conceito de Estado e a redefinição do problema da ordem política internacional, bem como identificar, nos debates recentes da teoria política e da teoria de Relações Internacionais, abordagens alternativas que sigam na direção desse duplo procedimento. A hipótese central cuja correção pretende-se verificar é a de que o duplo procedimento de desnaturalização e temporalização permite a desestabilização simultânea das segmentações internas que fortalecem o Estado e que o diferenciam como locus de autoridade contraposto a forças apolíticas da sociedade doméstica, e das divisões externas, que o distinguem de entidades internacionais similares. A partir dessa desestabilização, problematizam-se interpretações estatistas de autoridade, e redefinem-se discussões sobre a ordem política internacional, gerando-se novas matrizes e renovando-se o entendimento do político: organizações alternativas do espaço podem ser pensadas a partir da apreciação da diferença como meio de auto-reflexão e crítica social, bem como se pode chegar a perspectivas que considerem incoerências e ambivalências das práticas estatais e questionem o controle do Estado sobre espaços e corpos na busca de preservação de seu status ontológico e prático. PALAVRAS-CHAVE: Teoria Política; Teoria de Relações Internacionais; teoria pós-moderna; Estado; desnaturalização; temporalização. I. INTRODUÇÃO Ao conceber que o discurso moderno controverte a autoridade, mas circunscreve esse questionamento, Jens Bartelson (2001) procurou elucidar que o conceito de Estado exerce uma função constitutiva dos discursos político e científico modernos e torna-se parte não- problematizada da reflexão política a partir de iniciativas de sua própria contestação e redefinição. A conservação da autoridade virtual e simbólica do Estado repousa no seu próprio desvelo, permitido pelo espírito crítico da modernidade; particularmente pela sua problematização sistemática e pela incorporação de sua negação ao discurso: a crítica caracteriza-se como uma seqüência de transgressões discursivas motivadas pela proibição da contestação à autoridade, e a presença simbólica do Estado no discurso age como principal condicionante da realização de tais questionamentos. Para fortalecer-se como fonte de autoridade, o Estado revigora o silêncio sobre suas fundações ao expor sua superfície às críticas. Nesse sentido, o conceito de Estado – cujas predisposições são reforçadas em vez de minadas pelos críticos – é compreendido não apenas empiricamente como objeto focal da pesquisa científica, mas transcendentalmente como condicionante do conhecimento autônomo e considerado “científico”. O ataque pluralista dos teóricos da interdependência complexa (KEOHANE & NYE, 1977) e dos analistas que deram destaque ao processo de formulação das decisões de política externa (SNYDER, BRUCK & SAPIN, 1961) problematizou o valor analítico de tal conceito, mas acabou por meramente substituí-lo por equivalentes semânticos que traziam soluções estatais para questões políticas. O Estado – determinado na sua dependência de forças socioeconômicas e na aptidão de conciliar essas realidades – foi posteriormente reposicionado no 1 Agradecemos ao apoio do Conselho Nacionald e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que concedeu ao autor uma bolsa de doutorado.

Diego Santos Vieira - RUMO À TEORIZAÇÃO ALÉM DO ESTADO

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA V. 17, N 32: 51-69 FEV. 2009

    RESUMO

    Rev. Sociol. Polt., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 51-69, fev. 2009

    Diego Santos Vieira de Jesus

    RUMO TEORIZAO ALM DO ESTADO:O DUPLO PROCEDIMENTO DE DESNATURALIZAO

    E TEMPORALIZAO1

    Recebido em 29 de setembro de 2007.Aprovado em 19 de maio de 2008.

    Este artigo tem como objetivo explicar por que um duplo procedimento de desnaturalizao e temporalizaooferece um primeiro passo rumo a uma teorizao que aponte para a dissoluo das noes de autoridadee identidade do conceito de Estado e a redefinio do problema da ordem poltica internacional, bem comoidentificar, nos debates recentes da teoria poltica e da teoria de Relaes Internacionais, abordagensalternativas que sigam na direo desse duplo procedimento. A hiptese central cuja correo pretende-severificar a de que o duplo procedimento de desnaturalizao e temporalizao permite a desestabilizaosimultnea das segmentaes internas que fortalecem o Estado e que o diferenciam como locus de autoridadecontraposto a foras apolticas da sociedade domstica, e das divises externas, que o distinguem deentidades internacionais similares. A partir dessa desestabilizao, problematizam-se interpretaes estatistasde autoridade, e redefinem-se discusses sobre a ordem poltica internacional, gerando-se novas matrizes erenovando-se o entendimento do poltico: organizaes alternativas do espao podem ser pensadas apartir da apreciao da diferena como meio de auto-reflexo e crtica social, bem como se pode chegar aperspectivas que considerem incoerncias e ambivalncias das prticas estatais e questionem o controle doEstado sobre espaos e corpos na busca de preservao de seu status ontolgico e prtico.

    PALAVRAS-CHAVE: Teoria Poltica; Teoria de Relaes Internacionais; teoria ps-moderna; Estado;desnaturalizao; temporalizao.

    I. INTRODUO

    Ao conceber que o discurso modernocontroverte a autoridade, mas circunscreve essequestionamento, Jens Bartelson (2001) procurouelucidar que o conceito de Estado exerce umafuno constitutiva dos discursos poltico ecientfico modernos e torna-se parte no-problematizada da reflexo poltica a partir deiniciativas de sua prpria contestao e redefinio.A conservao da autoridade virtual e simblicado Estado repousa no seu prprio desvelo,permitido pelo esprito crtico da modernidade;particularmente pela sua problematizaosistemtica e pela incorporao de sua negao aodiscurso: a crtica caracteriza-se como umaseqncia de transgresses discursivas motivadaspela proibio da contestao autoridade, e apresena simblica do Estado no discurso age

    como principal condicionante da realizao de taisquestionamentos. Para fortalecer-se como fontede autoridade, o Estado revigora o silncio sobresuas fundaes ao expor sua superfcie s crticas.Nesse sentido, o conceito de Estado cujaspredisposies so reforadas em vez de minadaspelos crticos compreendido no apenasempiricamente como objeto focal da pesquisacientfica, mas transcendentalmente comocondicionante do conhecimento autnomo econsiderado cientfico.

    O ataque pluralista dos tericos dainterdependncia complexa (KEOHANE & NYE,1977) e dos analistas que deram destaque aoprocesso de formulao das decises de polticaexterna (SNYDER, BRUCK & SAPIN, 1961)problematizou o valor analtico de tal conceito,mas acabou por meramente substitu-lo porequivalentes semnticos que traziam soluesestatais para questes polticas. O Estado determinado na sua dependncia de forassocioeconmicas e na aptido de conciliar essasrealidades foi posteriormente reposicionado no

    1 Agradecemos ao apoio do Conselho Nacionald eDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), queconcedeu ao autor uma bolsa de doutorado.

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    foco analtico com autonomia suficiente paraexplicar os pr-requisitos de reproduo da ordemcapitalista; porm, a indivisibilidade da autoridadepoltica foi preservada, naturalizando-sesegmentaes Estado-sistema internacional eEstado-sociedade. Mais recentemente, adesnaturalizao do Estado a partir de fora estratgia retrica que destitui a simplicidadefundacional da distino entre Estado e sistemainternacional como natural ou dada e concebe-a como um artifcio cultural , e a temporalizaoa partir de dentro estratgia retrica que questionaa aparente imutabilidade da segmentao entreEstado e sociedade civil , viabilizaram, a partirde crticas imanentes, a reconstruo da histriado conceito de Estado como definidor da prpriamodernidade poltica. Porm, foram incapazes deisoladamente dissolver o Estado e repensar ascondies gerais de autoridade: num procedimentode fora para dentro, a desnaturalizao dosaspectos externos da condio de Estado preservaa separao entre Estado e sociedade e no lidacom os fatores que tornam tal segmentaopossvel; j a temporalizao, num movimento dedentro para fora, concebe a distino entre Estadoe sociedade como historicamente contingente, masa soberania externa tratada como constante trans-histrica que circunscreve o local detemporalizao (BARTELSON, 2001, p. 154-155,183-184).

    Tendo em vista que grande parte dos conceitosde ordem poltica ainda permanece condicionadaao Estado e que os principais questionamentos docontedo e da forma da autoridade preservam afonte dessa mesma autoridade, o objetivo centraldeste artigo explicar por que um duploprocedimento de desnaturalizao e temporalizaooferece um primeiro passo rumo a uma teorizaoque aponte para a dissoluo das noes deautoridade e identidade do conceito de Estado e aredefinio do problema da ordem polticainternacional. Alm disso, busco identificar, nosdebates recentes da teoria de RelaesInternacionais, abordagens alternativas que sigamna direo desse duplo procedimento. A hiptesecentral cuja correo pretendo verificar a de queo duplo procedimento de desnaturalizao etemporalizao permite a desestabilizaosimultnea das segmentaes internas quefortalecem o Estado e que o diferenciam comolocus de autoridade contraposto a foras apolticasda sociedade civil domstica, e das divises

    externas, que o distinguem de entidadesinternacionais similares. A partir dessadesestabilizao, problematiza-se interpretaesestatistas de autoridade, e redefine-se discussessobre a ordem poltica internacional, gerando-senovas matrizes e renovando-se o entendimento dopoltico: organizaes alternativas do espaopodem ser pensadas a partir da apreciao dadiferena como meio de auto-reflexo e de crticasocial, bem como pode-se chegar a perspectivasque considerem incoerncias e ambivalncias dasprticas estatais e questionem o controle do Estadosobre espaos e corpos na busca de preservaode seu status ontolgico e prtico.

    Procuro investigar a correo da suposio deque a perspectiva analtica proposta por DavidBlaney e Naeem Inayatullah (2004) aponta para adesestabilizao das segmentaes internas eexternas que fortalecem o conceito de Estado: oreconhecimento do Outro interno no-conformadoao processo de homogeneizao culturalsistemtica representa um desafio ao exerccio daautoridade do Estado sobre foras sociais numacomunidade cuja coeso e integridade procurapreservar, e o compartilhamento de experinciasde sofrimento com Outros externos visando suasuperao no pensamento e na prtica questiona arigidez de barreiras externas supostamenteimutveis entre identidade e diferena. Taisiniciativas funcionam como fontes de auto-reflexoe transformao cultural, e estabelecem aconversao entre tradies que respondem opresso nas zonas de contato, permitindopensar formas de organizao espacial alternativass demarcaes cristalizadoras do Estado.Examino tambm a suposio de que a abordagemde Phillip Darby (1998) transcende a rigidez debinarismos essencializados pelas segmentaesinternas que reificam o Estado a partir da nfasenos elementos particulares que operam fora dasregras de engajamento estipuladas para a relaoentre Estado e foras sociais e configuram-secomo limites ao exerccio efetivo do seu poder,indicando que tais elementos podem tambm serfontes de transformao sistmica.Simultaneamente, tal perspectiva questionasegmentaes externas pretensamente dadas aosalientar a cultura simbitica entre colonizador ecolonizado, a heterogeneidade de sentido e ohibridismo, o qual, em vez de se sustentarisoladamente, colocado em dilogo comperspectivas de comportamento poltico que

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    operam na base de conflitos no somente dentrode sociedades, mas tambm na interaointernacional.

    Alm disso, busco averiguar a correo dasuposio de que a abordagem de Michael Shapiro(2004) avana no sentido da temporalizao, pois,enquanto o Estado-nao concebido pelo autorcomo um ator biopoltico que traduz o corpobiolgico como social e tenta aprision-lo numaparato de sujeio que desvela o projeto particularde produo de unidade cultural etnonacional,trabalhos artsticos fora da governana culturalestatal desenvolvem mecanismos alternativos deadeso e questionam a homogeneidade das culturasnacionais e a imutabilidade dos procedimentosestabelecidos para a interao entre Estado esociedade civil, demonstrando a flexibilidade e acapacidade de transformao dessa segmentao.Simultaneamente, Shapiro desnaturaliza o Estadoao salientar que o conceito de biopoder envolveuma dimenso expansionista e militante voltadapara a conteno de ameaas ao Estado no nvelinternacional, desestabilizando segmentaessupostamente dadas entre Estado e sistemainternacional ao conceb-las como artifciosflexveis que operam demarcando a diferenatambm no nvel externo.

    Antes de prosseguir investigao, cabemalgumas observaes importantes. Primeiramente,cumpre lembrar que a simples considerao daexistncia de mltiplas identidades e de outrasorganizaes do espao que convivem com oEstado no necessariamente pressupe ultrapassare abandonar uma concepo de fronteira como aambio reguladora moderna que o conceito deEstado ajudou a cristalizar. Hoje, temos mltiplasformas de construo de territrios no globoterrestre, que vo desde a fixidez e o encaixamentohierrquico dos territrios-zona at a fragmentaoe a descontinuidade dos territrios-rede. Porm,o que ressalto que, mesmo que o sujeito possahoje construir mltiplos territrios e desenvolvero multipertencimento a experincias espaciaisintegradas e diversas, isso no necessariamentetrar uma superao da noo de fronteiraenquanto ambio reguladora, disciplinadora eexcludente, cristalizada pelo conceito de Estado:embora falemos em fronteiras diludas em facedas novas tecnologias e do desenvolvimento dociberespao ou em mltiplas fronteiras sobrepostasestabelecidas pela globalizao ou pelos processosde integrao regional, vrias dessas fronteiras

    novas, integradas, fluidas e sobrepostas at mesmo do Estado ainda prevalecerem demarcandoantagonismos, mesmo que no permaneam ondeestavam at ento. A demarcao de fronteirascontinua a significar a definio de autoridade sobreum espao, revelando-se que, mesmo que existamaior interao com a diferena presente alm dasfronteiras nacionais, isso no trouxenecessariamente o engajamento com ela, poiscontinuamos a perpetuar mecanismos de exclusodesses Outros (WALKER, 2005, p. 9). Asnovas fronteiras podem assumir formasalternativas ou difusas, mas continuam a reproduziruma concepo totalizante que o Estado enquantoinstituio responsvel pela organizao primordialdo espao no mundo moderno ajudou acristalizar. No pensamento e na prtica polticos,o conceito de Estado ainda preserva a suacentralidade ao funcionar como ponto dereferncia e condicionar o prprio pensamentosobre organizaes alternativas a ele, autorizandoformas alternativas de organizao espacial quecomplementem suas funes sem que minem asua autoridade, descartando outras que propemsua superao, abandono ou destruio ecircunscrevendo os questionamentos feitos a ele.O que proponho aqui que, para pensarmos emoutras organizaes do espao que no estejamsubmissas ao condicionamento estatal, produtivoprimeiramente questionar as fronteiras internas eexternas que fortalecem a autoridade estatal emrelao sociedade civil e ao sistema internacional,respectivamente , evidenciando sua artificialidadee arbitrariedade. O questionamento do controle queo Estado exerce sobre espaos e corpos poderepresentar um primeiro passo importante naredefinio de discusses sobre a construo daordem internacional e, assim, pensar num mundops-vestfaliano marcado sim por umamultiterritorializao e identidades distintas, masno qual a diferena seja considerada como meiode auto-reflexo e crtica social, no comodisfuno ou anomalia.

    Ademais, o fato de conceber o Estado comouma realidade discursiva no significanecessariamente a desconsiderao da presenamaterial e modelar dos aparelhos estatais na vidainternacional dos indivduos, no controle deorganizaes ou na sistematizao de processoscomerciais, financeiros e tecnolgicos. Um pontocentral do argumento a considerao de que osignificado dessa presena material depende de

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    uma rede conceitual que constitui a autoridadepoltica, confere indisputabilidade entidade estatale atribui-lhe a prerrogativa de controlar recursose de utilizar legitimamente a violncia organizada.Nesse sentido, o reconhecimento da presenamaterial do Estado no conduz necessariamente sua reificao; porm, o que pode sim levar a talreificao a compreenso desse Estado comoum fato dado e no-problematizado por suasuposta existncia como parte irredutvel darealidade internacional, algo que ser criticado maisadiante nessa abordagem. Cumpre tambmobservar que, historicamente, cidadossubmeteram-se realidade material do Estado, e,hoje, ao redor do planeta, existe uma demanda deindivduos por tal instituio, como os casos depalestinos e curdos exemplificam. Essas soapenas provas da fora do conceito que transcendea prpria discusso no mbito da produo doconhecimento: a centralidade assumida pelo Estadofez com que tal conceito fosse colocado comoreferncia para o entendimento de vrios outros,de forma que se desenvolve a perspectiva de quea instituio estatal a mais habilitada materialmente, inclusive para garantir asegurana e o bem-estar dos indivduos, sendoflexvel o suficiente na contemporaneidade paraconviver com outras organizaes espaciais quecomplementem a sua ao, mas que nonecessariamente traro o seu abandono, minarocompletamente a sua autoridade ou rompero como entendimento de fronteira que ele ajudou acristalizar. Isso limita a imaginao poltica, pois1) instituies alternativas ao Estado que poderiamser dotadas da capacidade material de preservar obem-estar desses indivduos e que garantiriam umverdadeiro engajamento com a diferena soconcebidas como utpicas ou ainda dependentesdo consentimento estatal para sua operao; 2)relega-se em segundo plano a noo de que oEstado pode ser um dos principais promotores daviolncia contra seus prprios cidados, nofuncionando como um espao coeso numarealidade dada e no-problematizada.

    A teoria de Estado subjacente ao argumentoaqui proposto traz uma crtica concepoanistrica do conceito. A perspectiva aquidesenvolvida considera esse Estado um conceitoque conduz ao exerccio de controle sobreindivduos e recursos em circunstncias histricasespecficas ao ter assumido centralidade nopensamento e na prtica polticos em tais

    circunstncias e tolhido, assim, o desenvolvimentode concepes alternativas de organizao doespao que minassem completamente a suaautoridade. Ao sinalizar que essa autoridadeconstri-se de forma performtica e interpretativa sem necessariamente ignorar a sua presenamaterial , a abordagem proposta neste artigodesestabiliza o carter supostamente essencial efundacional dessa autoridade ao evidenciar suasincoerncias e ambivalncias, abrindo assimespao para novas formas de pensamento sobre aorganizao do espao sem as amarras do conceitoestatal e permitindo a reconsiderao da diferenacomo um meio de autocrtica e de reflexo social,no como um elemento desestabilizador de umaordem estatal reificada e supostamente dada.Evidentemente, o Estado enquanto instituiojamais desapareceria completa e imediatamentediante da proposio de novas formas deorganizao do espao, nem seria ingnuo a pontode acreditar que as assimetrias materiais geradaspor ele podem desaparecer instantaneamente nasdimenses domstica e internacional. Alm disso,no existe garantia de que, ao conduzir tal processode desestabilizao das fronteiras que conferirama centralidade do conceito, o resultado doempreendimento ser bem sucedido ounecessariamente levar ao abandono ou superao desse Estado tanto na prtica polticacomo na produo acadmica. Porm, umprimeiro passo na direo de um pensamentoalternativo sobre a organizao do espao de formaa criar zonas de engajamento com a diferena esuperar as experincias de sofrimento que aorganizao estatal promoveu pode ser vlido paraa reflexo sobre a possibilidade de construo deuma nova ordem internacional que garanta o bem-estar e a segurana dos indivduos.

    Aps tais consideraes, explicitarei na seoseguinte o processo pelo qual o Estado assumiu ostatus duplo de objeto potencial e de condio doconhecimento, estabelecendo no apenas a histriapossvel e a identidade moderna, mas osparmetros da discordncia terica, de forma apreservar-se dessas problematizaes. Apontareique, embora as estratgias de desnaturalizao etemporalizao busquem questionar a autoridadee a identidade do conceito de Estado, elasisoladamente acabam fortalecendo demarcaesque conservam tal conceito; porm, teorizaesalternativas que realizem simultaneamente essascrticas podem desreificar tal conceito, abrindo

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    espao para o desenvolvimento de novas matrizesou a indicao de loci alternativos de enunciaodo poltico. Posteriormente, examinarei como asabordagens do mainstream da teoria de RelaesInternacionais reificaram o Estado e como asprincipais crticas feitas ao conceito por grandeparte das perspectivas ps-positivistaspreservaram a autoridade estatal. Antes de teceras consideraes finais, indicarei que asabordagens de Blaney e Inayatullah (2004), Darby(1998) e Shapiro (2004) apontam para a realizaodo procedimento duplo de desnaturalizao etemporalizao ao questionarem delimitaesrgidas externas e internas que fortalecem o Estadoe, a partir disso, propondo perspectivas alternativasde autoridade e identidade que no estejam restritasde maneira imutvel a um Estado supostamentehomogneo. Cumpre lembrar que, embora essadiscusso esteja pautada nos termos colocadospor Bartelson, ela apenas uma dentre tantasformas alternativas possveis de se pensarcaminhos para uma teorizao que v alm doEstado. Tal autor no ser, de forma alguma,situado como um gatekeeper que estipula termosabsolutos e nicos para uma discusso no perfildessa que ser aqui apresentada.

    II. O CONCEITO DE ESTADO E OS PROCE-DIMENTOS DE DESNATURALIZAO ETEMPORALIZAO

    As fundaes da autoridade definem-se,segundo Bartelson (2001, p. 7-9), por meio demecanismos de esquecimento de sua origem de maneira que tal autoridade antecede e constituia comunidade poltica relacionada a ela e tambmorganizam as condies de questionamento quegarantem sua reproduo. Com enfoque nosmodos de enunciao dos argumentos acerca dostatus ontolgico do Estado e nas pressuposiesda estrutura conceitual mantida pelos mltiplosdiscursos estatais, o autor desvela que as crticascompartilham condies de possibilidade com seuobjeto: ao admitirem fundaes mticas da auto-identidade conceitual do Estado como ponto inicial,tais crticas consolidam a presena fundacionaldo seu alvo. O conceito de Estado definiuparmetros da discordncia terica sem que fossesujeito contestao pela forma como aproblematizao foi delimitada: a cienticao e oquestionamento dessa ambio motivaram odeclnio da contestabilidade, j que, embora sepudesse discordar do status ontolgico do Estado,dificultava-se a concepo de autoridades alm dele

    sem que esse deixasse de ser um esforocientfico ou poltico.

    As fontes da ambigidade conceitual a partirdas quais o Estado assume sua identidade so,para Bartelson (2001, p. 10-25), as prticas dedefinio que, no esforo de clarificao dosentido, resultam na reproduo daquilo que sepropem a questionar e o posicionamentoconceitual no discurso: quanto mais central for oconceito, maior a facilidade de utiliz-lo nadefinio de outros conceitos e de coloc-lo comofundacional e constitutivo do discurso polticomoderno. A pressuposio da presena do Estadono discurso poltico resulta da lgica decentralidade e ambigidade, condicionando suaidentidade conceitual e a prpria imaginao polticapela diferenciao categrica do Estado quanto srelaes interestatais no nvel internacional e sociedade domstica e orientando questionamentosque reproduzem tal ambigidade. Transcendendoa tenso entre a necessidade de validao conceitualfilosfica e a contextualizao historicamentevarivel dos conceitos, a abordagem conceitualistade Bartelson viabiliza o entendimento do conceitode Estado como entidade discursiva autnoma emrelao ao status ontolgico de conceitos fora dotexto, mas no em relao a outras entidadeslingsticas. Os critrios de coerncia econsistncia variam no tempo por seremconceituais preservando a abertura histrica e apossibilidade de julgamento filosfico , e a histriado conceito pode ser traada em relao a outrosconceitos, mas sem que se torne uma abstraoou uma condio transcendental de subjetividade.

    Com o objetivo de entender como o Estadodespontou como objeto de pesquisa cientfica massem incorrer nas categorias reificadoras dahistoriografia tradicional, Bartelson salienta ainterdependncia lgica entre tal conceito e acincia poltica, que conquista coerncia terica eidentidade discursiva a partir da relevnciaontolgica oferecida ao Estado, num processo dedeslocamento dos atributos do objeto para o campode conhecimento que mascara problemas daidentidade estatal e disciplinar e sinaliza apressuposio da autoridade no discurso. O Estadoassume status duplo, pois, alm de objeto potencialde conhecimento, condio desse conhecimento,integral definio da histria possvel e daidentidade moderna: justapondo-se o emprico e otranscendental, ele coloca-se no apenas comofenmeno histrico desdobrado no tempo

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    resultado da evoluo , mas sua presena comomeio trans-histrico dessa evoluo torna-secondicionante de passado e presente. Eleposiciona-se como fundacional ao mesmo tempoem que inscrito como paradigma da ordempoltica. Organizam-se em categorias trans-histricas comunidades individualizadas dotadasde passados especficos um museu vivo eencapsula-se a totalidade dessa experincia numahistria universal que circunscreve ordenspolticas histricas no presente (BARTELSON,2001, p. 30-74; 182-183).

    Conceituado como um amlgama historicizadode identidade/comunidade e autoridade a partir desua diferenciao quanto s entidadesinternacionais similares e sociedade civil pelaconcepo de locus de autoridade contraposto aforas domsticas, o conceito de Estado aplicadotrans-historicamente e opera como ponto deconvergncia de uma rede conceitual que constituia autoridade da cincia poltica, naturalizandodemarcaes disciplinares e conferindo-lheindisputabilidade. Tal aplicao relaciona-se historiografia presentista e s aspiraesnomotticas da cincia poltica ligada ordem eao progresso. Oferece, assim, resposta paraproblemas polticos eternizados ao situar oEstado como fonte nica de autoridade,possibilitando investigaes do passado como seestados sempre estivessem presentes e reforandoa autoridade da cincia na sua identificao com aautoridade estatal (BARTELSON, 2001, p. 65-76).

    Uma srie de abordagens tericas de cunhops-moderno ou ps-estruturalista assumiu oEstado como contingente ao discurso e criticou ouso desse conceito nas perspectivas maistradicionais. Tais crticos afirmavam que asvertentes dominantes pressupunham o Estadocomo dado ao conhecimento poltico. Enquantoh abordagens como a de Rose e Miller (1992)que procuram desestabilizar tal pressuposio peladesconstruo das segmentaes entre Estado esociedade domstica, outras como as de Ashley(1987) e de Walker (1993) fazem-no a partir doquestionamento da demarcao rigorosa entreEstado e sistema internacional. O principalobstculo a ambos os perfis de abordagem crtica o fato de que cada forma de crtica ao Estadoacaba concebendo como dado ou no-problematizado aquilo que a outra procuraquestionar. Embora ambas tentem reconceituar oproblema da ordem poltica de forma a

    desestabilizar noes de autoridade e identidadedo conceito de Estado, elas acabam reforandosegmentaes que fortalecem tal conceito(BARTELSON, 2001, p. 150-151).

    Comeando com identidades e modos deautoridade presentes, a desnaturalizao desvelaque a diferenciao entre Estado e sistemainternacional resultado de hbitos discursivos.Porm, a dissoluo do Estado ocorre somentede fora para dentro: ao interpretar-se o Estadocomo um espao intermedirio entre o domsticoe o internacional e que parece contingente a partirde fora, negligencia-se que tal espao tambm sejaconstrudo a partir da diferenciao em relao sociedade domstica. As condies de possibilidadedessa diviso interna so marginalizadas, tendo emvista que a desnaturalizao est voltada para adesconstruo dos aspectos externos da condiode Estado. J a temporalizao procura desfazermitos de origem ou fundaes ltimas por meioda relativizao histrica da autoridade poltica aolongo do tempo e revelar a impureza daidentidade como resultado de foras histricas almdo controle da identidade constituda. Aoconceber-se a soberania como fico jurdico-poltica, a separao entre Estado e sociedade vista como historicamente mutvel, de forma queas instituies estatais so tratadas comoexpresses de tcnicas variadas de governo, nocomo sua justificativa implcita ou explicaoterica. Contudo, a soberania externa ainda tratada como constante atravs da histria, o quedelimita o espao de temporalizao possvel(BARTELSON, 2001, p. 154-155; 168-180).

    Embora isoladamente tais estratgias de crticaimanente acabem assumindo aquilo que criticam as interpretaes estatistas de autoridade eidentidade , possvel imaginar teorizaesalternativas que conduzam simultaneamente essesprocedimentos e, assim, desestabilizem noesreificadas de autoridade e identidade associadasao Estado, criando novas matrizes ou apontandooutros loci de enunciao do poltico. Enquanto adesnaturalizao das demarcaes de dentro e forapermite questionar a cristalizao da tenso entreordem e anarquia, a temporalizao concomi-tantemente viabiliza maior nfase s condiesmutveis que estabelecem padres de interaoentre Estado e sociedade. Mais especificamente,o Estado pode ser considerado uma reivindicaoespecfica do monoplio da violncia, o que permitecompreend-lo como uma possibilidade

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    contestvel cuja realizao completa impossvele cuja legitimidade depende de seu sucesso relativoem vez do contrrio. Tal Estado entendido, assim,como palco de desordem antes de apresentar-secomo fonte de identidade e ordem poltica,evidenciando-se a violncia interpretativa de suaautoridade. Ao mesmo tempo, toda poltica passaa ser concebida como internacional, j que aidia de internacional no mais ocorre numadimenso pr-dada, mas remete s prticas espao-temporalmente especficas que estabelecem taldimenso num processo de busca de supostosprincpios polticos primordiais (BARTELSON,1998, p. 321-322). A fico jurdico-poltica doEstado auto-identificado e seu corolrio osistema internacional so entendidos, naspalavras de Bartelson (1998, p. 322), comoestabilizaes momentneas das prticashistricas da poltica de poder.

    O procedimento duplo de desnaturalizao etemporalizao pode apontar para uma teorizaoalm do Estado na medida em que evidencia quenoes supostamente subjacentes ou fundacionaisso, na verdade, exerccios de controle interno eexterno em circunstncias histricas especficas.Explicita, assim, que existem entendimentosalternativos de autoridade e identidade que noesto encapsulados de forma imutvel num Estadopretensamente coeso e homogneo. Trazendo tona as ambivalncias na interao com a diferena,no apenas possvel dar-se um primeiro passona direo da desestabilizao das segmentaesinternas e externas que reificam o Estado, masapontar para uma renovao do entendimento dopoltico no processo de teorizao, que se volte,por exemplo, para a personalizao das questesda ordem internacional e para o engajamento coma diferena no nvel local e global. Com taliniciativa, encoraja-se a produo de novos corposde conhecimento que transcendam o rigor dasdemarcaes internas entre Estado e sociedade civile externas entre Estado e sistema internacional eque permitam pensar em organizaes alternativasdo espao a partir dos impulsos de regenerao eapreciao da diversidade como meio de auto-reflexo e crtica social. Alm disso, podemdesenvolver-se interpretaes que questionem aautoridade do local de enunciao dominante,proporcionem a auto-reflexo a partir daconsiderao de incoerncias e alteridades nasprticas estatais e problematizem o controle que oEstado exerce sobre espaos e corpos.

    III. O ESTADO E SEUS CRTICOS

    Antes de examinar tais caminhos alternativos,cumpre primeiramente explicar por que omainstream da teoria de Relaes Internacionaisreificou o Estado, oferecendo um tratamento no-problematizado s delimitaes internas e externasque cristalizam o conceito, e por que as principaiscrticas feitas ao conceito contriburam paraconservar a autoridade estatal. Em face multiplicidade de abordagens nesse debate, seriaimpossvel abarcar a totalidade de autoresenvolvidos; por isso, sero consideradas obras queapresentaram alguns dos principais parmetros dediscusso terica na rea nos ltimos cinqentaanos. A seleo dessas obras foi feita a partir dotratamento central oferecido por elas em relao atrs critrios indicados por Bartelson (1998):indivisibilidade dos estados, distinguibilidade entreeles e continuidade espao-temporal estatal. Aconsiderao desses elementos permite verificaro processo pelo qual se constri a acomodaodo conceito de Estado numa posio decentralidade para a explicao de outros conceitosno apenas nas obras em foco, mas naquelas queas tiveram como referncia ou inspirao. Essestrs pontos foram discutidos de forma explcitanas obras consideradas nessa pesquisa, emboraestejam tambm presentes de forma mais sutil oucoadjuvante em produes como as deMorgenthau, Bull, Wallerstein e Onuf.Evidentemente, tal critrio de seleo no isentode questionamento, nem a leitura das obras aquiapresentadas a nica possvel. Autores relevantesforam deixados de lado pela prpria limitao deespao, mas a minha expectativa a de que, apartir da anlise aqui feita, estudos futuros possamdebruar-se sobre a centralidade que tal conceitoassumiu em outros estudos relevantes na rea deRelaes Internacionais.

    Para Waltz (1979), os estados, vistos comounidades fundamentais de organizao poltica, tmautonomia suficiente em relao a suas sociedadespara buscar racionalmente interesses nacionais eso dotados de unidade e capacidade de aocoerente, executando respostas s restriessistmicas. Waltz enfatiza o contexto da ao, emque se observa a falta de autoridade central paraqual os estados possam apelar por proteo: nomeio anrquico marcado pela auto-ajuda, unidadessimilares na natureza diferem em capacidade erespondem a ameaas tomando aes que

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    impeam o crescimento de poder dos adversriose adotando uma poltica de equilbriosistemicamente induzida, que reduz a violncia masno elimina completamente a incidncia de guerra.As mudanas no comportamento desses atores eos resultados no sistema so explicados no combase na variao das caractersticas das unidades,mas na mudana na distribuio de capacidades.Para o autor, o entendimento da estrutura dosistema internacional permite explicar padres decomportamento estatais, pois os estadosdeterminam interesses e estratgias com base nosclculos de suas posies no sistema. A ligaoentre tal estrutura e o comportamento dos atores dada pela suposio da racionalidade, que permiteprever que os lderes respondero aos incentivose s restries impostas pelos seus meios (WALTZ,1979; GRIECO, 1997, p. 165-177).

    Ao promover a segmentao entre as relaesinternacionais e o contexto em que sedesenvolvem, Waltz postula generalizaes sobreuma lgica supostamente uniforme da ordeminternacional, e sua abstrao com relao aosdesenvolvimentos espao-temporais especficosimpede a considerao de dinmicas contingentes,com isso limitando a antecipao e a explicaoda mudana. Produzindo um regime sobre averdade, o autor tambm marginaliza variaesintroduzidas nos padres comportamentais dosestados pelos processos subestatais e pelosindivduos. Alm de invocar a universalidade daordem poltica internacional baseada na soberaniaa fim de cristalizar a separao entre os nveisdomstico e internacional, legitima a inevitabilidadedas relaes internacionais como zona de conflito(LEBOW, 2007, p. 415-435). O realismo estruturaladquire, assim, coerncia e identidade a partir darelevncia ontolgica atribuda ao Estado, que,alm de objeto, colocado como condio desseconhecimento. Ademais, Waltz reafirmasegmentaes desse Estado em relao a entidadesinternacionais funcionalmente semelhantes apontando que a diferenciao entre elas d-se peladistribuio de capacidades e a sociedadedomstica, em contraposio qual tem autoridadee autonomia para responder a desafios polticoseternos. Tratando os critrios de indivisibilidadedos estados, distinguibilidade entre eles econtinuidade espao-temporal estatal comoconstantes trans-histricas, Waltz concebe taisatributos como inferencialmente conectados edefinidos em termos uns dos outros, de forma a

    conservar tais elementos gerais que caracterizama condio de Estado mesmo em face demudanas na distribuio de capacidades entreestados especficos e a compreender o Estadocomo fato bruto e inteligvel por sua existnciacomo parte irredutvel da realidade internacional.Busca confirmar suposies sobre a essncia desseEstado com base numa autoridade supostamenteprimordial ou fundacional. Ao mesmo tempo, Waltzfortalece a autoridade da sua teoria ao identific-la com a autoridade do Estado, j que tal conceitona abordagem neo-realista visa a representar umarealidade poltica dada, tornando-a acessvel aoconhecimento (BARTELSON, 1998, p. 298-302).

    Na efervescncia intelectual das dcadas de1970 e 1980, diversos ataques ao realismo e aoneo-realismo foram lanados. Grande parte delesincidia sobre o pouco espao oferecido pelos neo-realistas para mudanas sistmicas proporcionadaspelas unidades, enquanto outros eram voltadospara a negao dos grandes nveis deinterdependncia econmica e a marginalizao dapoltica domstica na definio do comportamentodo Estado por tais tericos. Keohane desafiou aperspectiva de que a anarquia inevitavelmentelevava estados ao conflito, primeiramente com oconceito de relaes transnacionais que atacavaa idia de um Estado unitrio e coeso comounidade de anlise e depois com oinstitucionalismo neoliberal, que defendia que asinstituies poderiam superar obstculos cooperao. O autor destacou a importncia deoutros atores no sistema internacional alm dosestados como os subestatais, transestatais e no-estatais , numa dinmica de movimentos sociaiscomplexos que envolvia a formulao da polticaexterna e os processos transnacionais, abarcandoas questes de barganha, coalizo e compromisso(GOUREVITCH, 1999). Em vez da interao entreestados unitrios preocupados primariamente coma segurana nacional definida em termos militares,Keohane e Nye (1977) viram mltiplas reasimportantes, bem como indicaram a ruptura dahierarquia entre reas temticas as questesmilitares no eram sempre as dominantes , autilidade declinante da fora, a importncia dosregimes internacionais e a fragmentao daautoridade em cada Estado. Posteriormente, como desenvolvimento do institucionalismo neoliberal,Keohane passou a compartilhar mais aspectos comos neo-realistas: aceitava a anarquia internacionale o egosmo racional dos estados, mas mostrava

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    que egostas poderiam cooperar estrategicamentenum sistema anrquico e ressaltava a relevnciadas instituies para se evitarem trapaas.

    Elementos como interdependncia e regimesinternacionais foram acomodados dentro do neo-realismo na dcada de 1980, ao mesmo tempo emque o neoliberalismo redefiniu-se de umainterdependncia complexa para uma versoestatocntrica mais compatvel com o realismo.Houve uma maior aceitao do neo-realismo pelasua compatibilidade, aps adaptaes, com asperspectivas de escolha racional e a teoria dosjogos, que ganhavam adeptos na rea de RelaesInternacionais (KAHLER, 1997). Naquele contextode maior aproximao entre tais abordagens,Keohane (1986) props uma perspectivamultidimensional que relaxava suposies dorealismo estrutural e apontava para odesenvolvimento de melhores teorias de polticadomstica, formulao de deciso eprocessamento da informao a fim de cobrir ovcuo entre as esferas interna e externa de formasistemtica. Tal programa de pesquisa reteria aparcimnia caracterstica do realismo estrutural esua nfase nos incentivos e nas restries dosistema internacional, adaptando-as para melhorlidar com a realidade contempornea e com ocontexto da ao antes de entender a aopropriamente dita.

    Tanto na produo sobre a interdependnciacomplexa como na argumentao doinstitucionalismo neoliberal, o Estado ainda erasituado como fundao da teorizao de Keohane,j que condicionava o domnio da objetividadetanto pela permanncia da distino do locus daordem poltica internacional como pela introduode equivalentes semnticos que viabilizavam acontinuidade dessa ordem. Keohane compartilhavasuposies da tradio poltica ocidental decentralidade do conceito de Estado, reificando-o:num momento em que o conceito ainda operavacomo o princpio da identidade disciplinar, talcrtico simplesmente atestava a centralidadediscursiva desse conceito. O esforo dereconceituao terica como a reduo doEstado a componentes mais tangveis, como osatores subestatais e no-estatais, que questionavama noo do ator monoltico enfrentava o dilemade explicar a constituio dessas partes e ainterao entre elas e revelava dificuldade desolucionar tal problema sem incorporar o conceitomonista do Estado ou algum equivalente lgico

    (BARTELSON, 2001, p. 77-113). Era mantida,assim, a ambivalncia sobre a fonte de autoridadeque preservava a coeso entre grupos e indivduos.Conforme a produo de Keohane caminhou nadireo de um maior estatocentrismo com oinstitucionalismo neoliberal, reificavam-se aindamais as distines entre estados concebidos comoegostas racionais e a anarquia internacional naqual tais unidades poderiam cooperarestrategicamente, bem como entre Estado e atoresda sociedade domstica, que atuavam e interagiamnum sistema em que a maior parte dos canais deao ainda eram definidos por estados.

    Nos estudos sobre integrao regional, tambm bastante evidente a permanncia da centralidadedo conceito de Estado tanto no processo deteorizao como nas aplicaes empricas. Porexemplo, autores como Haas enfocam o ciclodiacrnico da integrao regional ao conceberema convergncia de interesses e de expectativas deelites nacionais acerca dos benefcios advindosda integrao e a nfase no papel das instituiessupranacionais como meios mais efetivos para asoluo de dilemas comuns. Os tericosneofuncionalistas reconhecem que as barganhasintergovernamentais convencionais representamapenas o mnimo denominador comum e vemque a competncia adequada de uma terceira partepode mudar as negociaes de forma a levar aresultados que representam a conciliao dasdiferenas. Se a terceira parte tiver poderes formaissuficientes, as negociaes podem apresentarresultados melhores de interesse comum(KELSTRUP, 1998, p. 29-30). Porm, comosinalizado anteriormente acerca das abordagensde orientao liberal, os neofuncionalistasproblematizam a noo do Estado como atorunitrio e destacam o papel dos atoressociopolticos na dimenso interna, mas o Estadocoloca-se novamente como condio para seconsiderar, por exemplo, a explicao daconstruo e da interao entre esses atores. Almdisso, a integrao auto-sustentada imaginada poresses autores no caso europeu no ocorreu emface de crises internacionais como as do petrleona dcada de 1970, que explicitaram a crena deque o Estado era a instituio mais habilitada acontornar os efeitos deletrios desses impactos.Autores de outras orientaes dentro dos estudossobre Integrao Regional examinam formasalternativas de organizao do espao, enfocandoperspectivas como federaes de estados

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    (CAMARGO, 2004) ou ordens neomedievais,com princpios de territorialidade e soberania sendosubstitudos por padres de identidade e deautoridade em sobreposio (HURRELL, 1995).Herz e Hoffmann (2004, p. 167-175) destacamque a dinmica dos processos de intensificaoem profundidade extenso de harmonizao daspolticas e abrangncia gama de questesinclusas das relaes entre atores pode levar criao de novas formas de governana poltico-institucionais de escopo regional e conduzir a umamultiplicidade de resultados institucionais. Porm,a desestabilizao dos limites entre o nacional e ointernacional trazidas pelos processos de integraoregional no significa que a noo de fronteiracristalizada pelo conceito de Estado tenha sidosuperada enquanto ambio reguladora da vidamoderna: ao contrrio, as novas fronteirasestabelecidas por tais processos revelam-sealtamente flexveis a ponto de ainda prevaleceremdemarcando antagonismos, mesmo que nopermaneam onde estavam at ento. A delimitaode fronteiras continua a significar a definio deautoridade sobre um espao, revelando-se comoo discurso moderno limita nossa percepo de que,mesmo que nos engajemos com os Outros almdas fronteiras nacionais, continuamos a reproduzirprticas de discriminao desses Outros(WALKER, 2005, p. 9). Nesse sentido, noes deorganizao espacial cristalizadas pelo conceito deEstado continuam sendo o parmetro seguido portais estudos, e os questionamentos feitos aoconceito so circunscritos de forma a preservar asua centralidade no processo de teorizao.

    A proposta mais pragmtica das perspectivasracionalistas ia alm do neo-realismo e doneoliberalismo ao desenvolver abordagens maismodestas que oferecessem respostas mais precisass questes do mundo ps-Guerra Fria em vez deformulaes tericas gerais. Porm, taisperspectivas limitaram-se a formular quebra-cabeas envolvendo atores individualistas eracionalidade instrumental na estrutura de jogosque abarcam idias de cooperao e conflito(KATZENSTEIN, KEOHANE & KRASNER,1998). Embora tenham oferecido uma importantecontribuio para uma reformulao maisconsistente do mainstream terico, taisperspectivas contentaram-se em apresentar novasreflexes e novos pontos focais de estudo, comoa intensidade de competio e cooperao com averificao de hipteses testveis; a importncia

    das normas e regras e seus efeitos sobrerecompensas; a distribuio de informao e asvinculaes entre reas temticas, que trabalhamcom a maior incidncia de problemas de barganhana cooperao. Continuaram, assim, a concebero Estado como elemento fundacional e paradigmada ordem poltica internacional ou, mantendo-seas suposies estatistas, simplesmentesubstituram o Estado por atores mais tangveiscomo grupos domsticos ou formuladores dedeciso oficiais, que tomavam decises calculadasem nome do Estado ou comportavam-se comoos atores unitrios das abordagens anteriores.

    Embora grande parte do ataque ps-positivistabuscasse questionar o compromisso domainstream com uma viso de cincia unificada ea adoo de metodologias das cincias naturaispara explicar o mundo social, tais perspectivastambm acabaram preservando, por diferentesrazes, a autoridade do Estado. Wendt (1992;1999) verifica que identidades so relacionais eque os atores definem seus interesses nosprocessos de definio da prpria situao. Numateoria sistmica socializada como a proposta peloautor, identidades e interesses no resultam daanarquia de forma lgica ou causal ou soelementos essenciais da anarquia, mas sosocialmente construdos. Com nfase nosprocessos sociais de interao e aprendizado,Wendt esclarece que as estruturas sociais noapenas regulam o comportamento, mas constroemidentidades e interesses, de forma que oconhecimento que os define endgeno interao. Tais estruturas da associao humanaso primariamente culturais em vez de fenmenosmateriais, de forma que o significado de forasmateriais e o contedo dos atores dependem dasidias compartilhadas nas quais esto envolvidos.Na viso de estrutura relacional de Wendt, osatores agem dentro de certa lgica e, por meio desua ao no processo, podem problematizar emudar essa lgica. Assim, enquanto Waltzdesenvolve uma teoria da recorrncia marcada porum claro determinismo estrutural, Wendt diz que,na construo de uma teoria social que inclua ainterao e a co-constituio entre agente eestrutura, a recorrncia do sistema de estados d-se por meio das idias e a mudana possvel,pois os agentes podem transformar a realidade pormeio da prtica. O agente no s construdopela estrutura, mas construtor do mundo numaconcepo que busca superar a impessoalidade e

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    o determinismo do estruturalismo tradicional e aslimitaes inerentes ao individualismometodolgico.

    Enquanto para Waltz a composio dos estados semelhante e suas caractersticas so dadas, possvel para Wendt haver formas estataisdiferenciadas como resultados de processosdistintos de construo social. Os estados sovistos por Wendt (1999) como atores corporativos,entidades auto-organizveis cujas estruturasinternas conferem capacidades para ao coletivainstitucionalizada. As identidades permitem amobilizao de fatores culturais, materiais eintelectuais que do capacidade de ao a esseEstado, concebido como ator organizacionalinserido em uma ordem institucional-legal propriedade marxista do Estado-como-estrutura, que o constitui com soberania e monoplio douso legtimo da violncia organizada propriedadesweberianas do Estado-como-ator sobre umasociedade propriedade pluralista do Estado-como-sociedade num territrio. Tal ator pr-social em relao a outros estados e pode terdiversos interesses baseado em mltiplasidentidades que variam cultural e historicamente;porm, compartilha com outros atores semelhantespropriedades essenciais em virtude de suaidentidade corporativa como Estado, tendointeresses intrnsecos e generalizveis comosobrevivncia fsica, autonomia, bem-estareconmico e auto-estima coletiva (idem, p. 233-238).

    Embora reconhea que as segmentaes entreEstado e sociedade e entre Estado e sistemainternacional so socialmente construdas e que aindivisibilidade, a distinguibilidade e a continuidadeespao-temporal que identificam o Estado socondies cuja aplicabilidade varia com o contextohistrico (BARTELSON, 1998, p. 305), Wendt(1999, p. 203-214) no problematiza a idia deque tal Estado o locus supremo de autoridadepoltica pautada numa estrutura organizacionalunificada e no-rivalizada em face das divisesinternas, nem questiona a noo de que o Estado o responsvel pela manuteno da ordem oque envolve a reproduo das condies domsticasde construo da sociedade, particularmente acoincidncia entre as fronteiras e as polticas doEstado e as fronteiras e as necessidades de grupospr-existentes sob seu controle (idem, p. 210-211) e pela proteo da integridade dessas condies

    em relao a outros estados. Alm de reificar acentralidade do Estado no estudo das RelaesInternacionais, Wendt (idem, p. 208-209; 243-244)recai no essencialismo ao conceber o Estado comoum ator homeosttico dotado de propriedades,motivaes e interesses intrnsecos aproximando-se da viso individualista de que oEstado ontologicamente anterior ao sistema deestados (idem, p. 198-199) e reconhece que, aobuscar generalizaes acerca de propriedadestrans-histricas desses atores, concebe em taisaspectos os estados como exgenos ao sistema eque agente e estrutura no so mutuamenteconstitutivos na sua totalidade.

    Com base no materialismo histrico, Cox(1986; 1993) aplicou conceitos gramscianos srelaes internacionais e desenvolveu uma visoda poltica global na qual foras sociais, estados eordens mundiais so aspectos organicamenterelacionados da realidade social, historicamenteproduzida por processos em que as relaesmateriais e os auto-entendimentos sociais estoprofundamente interligados. Assim, v os homenscomo produtores das formas histricas de vida efornece elementos para a transformao darealidade, estando atento ao compromisso com aemancipao. Em relao ao Estado, Cox v-locomo construo histrica, permitindo pens-locomo monopolizador da fora coerciva e espaoem que o consenso deve ser exercido participao de instituies, intelectuais etc.Embora o autor aponte os riscos de reduzir-se avida social, poltica e material nas relaesinternacionais s relaes interestatais, asmudanas na ordem internacional esto ligadas stransformaes do Estado e a como isso se refletenas ordens, instituies e foras que o mantm.Na atualidade, Cox v a transformao do Estadoa partir da rearticulao das foras produtivas eda internacionalizao do capital. A prxis ligapoltica e economia, estrutura e agente, liberdadee necessidade, surgindo dessa ligao anecessidade de emancipao. tambm notrioo desafio do autor rgida separao analtica entreordem domstica e internacional ortodoxa comoa diviso entre economia e poltica , que podeservir como um dispositivo que fragmenta arealidade de forma a obscurecer a relao orgnicaentre as experincias global e local. O argumentodo autor o de que a Teoria Crtica , assim,holstica, ligando questes de ordem moral,autoridade e justia s questes de eficincia, de

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    forma que nem a sociedade nem o mercado soredutveis um ao outro. Contudo, mesmo gozandode autonomia apenas relativa, o Estado e no omodo de produo ou a estrutura de classesderivados dele ainda fundamental para apreservao da coeso da ordem poltica e aresoluo do antagonismo entre classes(BARTELSON, 2001, p. 145), de modo que Coxacaba tambm por reificar tal conceito.

    J Walker (1993; 2005) apontou para apossibilidade de desestabilizao de categoriasmutuamente constitutivas entre dentro e fora e aimplementao da crtica s prticas logocntricasmodernas de oposio binria. O autor desvela que,dentro do Internacional Moderno, a preservaoda integridade soberana foi possvel a partir doestabelecimento de uma hierarquia emcircunstncias espao-temporalmente especficas,na qual o sujeito moderno coloca-se como centrointerpretativo soberano, uma realidade maior eprivilegiada ou uma presena no-problematizada, e o Outro, concebido emreferncia a tal centro, compreendido como umanegao dessa identidade e objetificado numprocesso de produo do exterior pelo sujeito.Simultaneamente, o Internacional Modernoremete a uma articulao espao-temporalmenteespecfica das relaes entre estados soberanoscomo expresses de povos e culturas particularese do sistema internacional como uma expressoda humanidade universalmente concebida. A partirdisso, desenvolvem-se a incorporao e asubjetivao do mundo ao mundo do modernoe a excluso de outros mundos, apontando-separa uma indicao especfica das opes polticase filosficas que devem ser reconhecidas,definindo-se claros limites capacidade delevarem-se em conta outras possibilidades. Amodernidade estabelecida como uma formacultural especfica (WALKER, 2005, p. 4),segmentada de outras formas espao-temporaisespecficas de vida num segundo processo deexcluso: cria-se um exterior produo desubjetividade moderna, de forma que suposiesmodernas sobre soberania e sistema internacional marcadas pela marginalizao e depreciao dadiferena asseguram sua continuidade porfortalecerem a ausncia de elementos no-modernos (idem, p. 4-6).

    Embora tenha desnaturalizado o Estadoconcebendo-o como artifcio discursivo, a

    abordagem de Walker sobre as distinescondicionantes de sua possibilidade apresentaclaras limitaes. O Estado compreendido comoarticulao historicamente especfica da relaoentre a universalidade e a particularidade no tempoe no espao, que soluciona o problema constanteda comunidade poltica; contudo, embora oprocedimento de desnaturalizao proposto porWalker pressuponha a desestabilizao dosbinarismos responsveis pela arbitrariedade dearquiteturas que constituem o Estado em oposioao sistema internacional, a dissoluo do Estado conduzida a partir de fora, no de dentro. Apesarde compreender o Estado como uma abstraolocalizada entre as dimenses interna e externa,Walker no problematiza o entendimento desseespao como segmentado da sociedade civil,preservando tal distino e as condies de suapossibilidade intocadas. Nesse sentido, ao nodesestabilizar a separao entre Estado e sociedadedomstica, traz-nos de volta s fundaes daautoridade poltica: o Estado parece contingente apartir de fora, mas a segmentao entre Estado eforas internas que o torna possvel ainda preservada no ncleo do conceito. No possvelafirmar que Walker conceba uma supostainevitabilidade do Estado por sua pretensa naturezauniversal ou dada, mas tal Estado persiste comoconceito central na sua obra ao reforar-se suapresena fundacional na imaginao poltica(BARTELSON, 2001, p. 167-169).

    IV. RUMO TEORIZAO ALM DO ESTADO

    Embora tais perspectivas tericas tenhamincorrido na reificao do Estado, uma srie deabordagens crticas vem apontando possveiscaminhos para uma teorizao que v alm desseconceito, desestabilizando as segmentaesinternas e externas que cristalizam o Estado eredefinindo o entendimento do poltico e da prpriarea de Relaes Internacionais. Em vez deencapsularem a diversidade em categorias de umcentro interpretativo soberano que macula visesculturais do Outro, Blaney e Inayatullah (2004)trazem tona a inabilidade das RelaesInternacionais na oferta de respostas criativas diferena ainda vista pelas abordagenstradicionais como ameaa ou disfuno epropem a reimaginao crtica das origens e doperfil da rea como teoria sobre relaesinterculturais a partir de uma perspectivaetnolgica. A diferena concebida como recurso

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    de auto-avaliao capaz de transformar vises doEu com relao ao Outro e sua prpria culturano momento etnolgico todoroviano. Abalizadono potencial de autodescoberta cultural deNandy, o dilogo cultural viabiliza a desestabilizaode tendncias polarizantes que objetificam asdiferenas interna e externa. Tal iniciativaproporciona respostas aos desafios da interaocom a diversidade por meio da auto-reflexo e daaliana entre crticas sociais culturalmente diversas desigualdade. Nesse sentido, as RelaesInternacionais redefinem-se como um campo deconhecimento heterolgico a partir do tratamentodas ambigidades geradas na interao com adiferena e da explorao das possibilidadesalternativas das zonas de contato psicolgico esocial, particularmente do dilogo potencial quecolabora para a elucidao mtua das culturas.Ao se abandonar a busca por uma ordemisomrfica com a provincializao das RelaesInternacionais, os particularismos da experinciaocidental com a diferena e do processo histricode delimitao espao-temporal de fronteirasrgidas so desvelados a fim de se transcendersua hegemonia (BLANEY & INAYATULLAH,2004, p. 7-17).

    Ao invs de conceberem um espao domsticono-problematizado marcado pela homogeneidadee pela imutabilidade de delimitaes naturalizadasentre a autoridade estatal e foras domsticas,Blaney e Inayatullah apontam na direo dadesestabilizao das segmentaes internas quereificam o Estado ao captarem que a diferenapoltico-cultural foi entendida no processo deconstruo dos estados modernos como elementodesestabilizador da harmonia interna. Por isso,tentou-se gerenci-la com hierarquia, erradicao,assimilao ou expulso na cruzada interna pelaunidade da comunidade poltica estatal. Atenta-se,assim, para as condies suscetveis transformao que estabelecem os padres deinterao entre Estado e sociedade, alm de seressaltar a pluralidade presente numa dimensodomstica que antes se supunha homognea ecoesa, com o destaque presena de forashistricas no-conformadas autoridade estatal.Os autores salientam que, embora se esperasseque a diversidade fosse administrada na dimensodomstica e que a construo de uma diferenainternacionalizada pudesse resolver o problemaao negociarem-se regras para o relacionamentoentre comunidades polticas, tal resposta

    hierarquizante e disciplinadora restringe oreconhecimento dos Outros internos e a apreciaodo Eu como parte do Outro alm das fronteiras. Aviolncia perpetua-se com relao s minorias no-conformadas dentro dessas unidades, edesestabiliza-se a idia essencializada do Estadocomo a autoridade provedora de segurana de umasociedade civil supostamente homognea (BLANEY& INAYATULLAH, 2004, p. 21-28; 32-45).

    Concomitantemente, a soberania externa desseEstado no tratada como uma constante trans-histrica que delimita o local dessa temporalizao:ao contrrio de examinarem a segmentao emrelao a outras unidades do sistema internacionalcomo natural ou dada, os autores salientamque a resposta hierarquizante e disciplinadora diferena domesticamente transbordou para seutratamento na esfera externa e, no processodinmico de relaes interculturais, figurou taldiferena como uma ameaa constante interditadanas fronteiras, enfrentada militarmente oucolonizada. A defesa das fronteiras externas visaa preservar a diferena fora dos limites estatais,de forma que a tolerncia entre tais unidadespolticas no nvel internacional procede doequilbrio de poder e no do reconhecimentogenuno da diversidade. Nesse sentido,simultaneamente temporalizao, Blaney eInayatullah caminham tambm no sentido dadesnaturalizao do Estado: a segmentao entredentro e fora constitutiva da sociedade deestados que consolida as delimitaesgeopolticas como receptculos espaciais dadiversidade cultural e mantm-nos refns doentendimento depreciativo da diferena operacomo pr-requisito para o adiamento do problemada diferena e a diluio de oportunidades paramaior engajamento com a diversidade, desvelandoa operao de um processo de homogeneizaocultural sistemtica acompanhado da constituiouniformizadora das unidades polticas na dimensointernacional (BLANEY & INAYATULLAH, 2004,p. 44-45).

    Alm da problematizao das estratgiastemporais de emprego das noes dedesenvolvimento e modernizao que cristalizama diferena como atraso , tal releitura crticada construo da rea pauta-se no questionamentoda concepo convencional da Paz de Vestfliacomo marco de transio para uma modernidademais tolerante e na nfase influncia deletria daGuerra dos Trinta Anos no discurso intelectual

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    RUMO TEORIZAO ALM DO ESTADO

    sobre a diferena, administrada a partir deestratgias espaciais de segmentao. Em nvelterico, Blaney e Inayatullah (idem, p. 93-125)evidenciam que a repulsa ao reconhecimento deoportunidades de tratamento da diferena comorecurso potencial sendo inclusive vedado a elastatus ontolgico independente revigorada porteorias de neomodernizao como as abordagensdo mainstream das Relaes Internacionais, quenaturalizam as delimitaes espaciais de dentro/fora cristalizando a tenso entre ordem e anarquiae protelando a resoluo do problema dadiferena ao tentar circunscrev-la dentro dosestados e essencializam a seqncia de tradio/modernidade, espacializando o tempo e situandoa diferena ao longo do espao em estgios dedesenvolvimento. Tal crtica elucida que oimpulso homogeneizante dessas teorias operanuma lgica comparativa que forja umauniformidade relativa dos sistemas polticos edesenvolve esquemas classificatrios espao-temporais hierarquizantes. A viso liberal desoberania universalizada por tais teorias, queestabelecem padres generalizveis como aconcepo de estados como unidadesfuncionalmente semelhantes e assumem umainterpretao linear do tempo.

    Demonstrando a forma como a teoria e aprtica cristalizam a integridade do imprio dauniformidade domstico num impulso dominantede localizao da diversidade como ameaa, Blaneye Inayatullah (idem, p. 203-204; 215-217)reconsideram o papel da diferena na constituioda rea de Relaes Internacionais a partir daexplorao do contra-impulso de regenerao eapreciao da diversidade como meio de auto-reflexo e crtica social. A proposta para umaperspectiva etnolgica da poltica de comparaocomo um entendimento mais holstico da diferena definindo espaos de conexo e dilogo entre oEu e os Outros externo e interno, que evidenciama especificidade histrico-cultural dosentendimentos relativiza categorias e permitepensar formas mistas de arranjos do espaoglobal que reconheam a heterogeneidade e acoexistncia das mltiplas prticas poltico-culturais. Tal esforo complexo de criao enegociao de autoridades compartilhadas esobrepostas desestabiliza a noo de espao estatalhomogneo, absoluto e rigidamente segmentadotanto em relao sociedade civil como s demaisunidades no sistema internacional.

    Superando a marginalizao da cultura e adespersonalizao da rea de RelaesInternacionais e questionando a limitao de suamatria-prima ao formalmente poltico, aabordagem crtica de Darby (1998) prope umaconcepo ainda mais ampla da disciplina aoexplorar a nfase da literatura na dimenso pessoale a relevncia da narrativa ficcional noengajamento cultural entre o local, o civilizacionale o global. Com tal iniciativa, procura encorajarnovos corpos de conhecimento que transcendama rigidez das linhas de demarcao e problematizaros pressupostos mecanicistas da teorizaodominante em Relaes Internacionais, queconcede privilgios ao centro e subestima aagncia de povos subordinados. Ao apontar queos encontros coloniais envolvem ambivalncia docolonizador e do colonizado e que podem existirmomentos de cumplicidade com a diferenalocalizada dentro e fora, a orientao pessoal ecultural da literatura desestabiliza segmentaesinternas e externas que reificam o Estado e viabilizaa contnua redefinio do entendimento do poltico.

    Tendo em vista que a poltica adquire seusentido a partir da cultura, a obra artstica torna-se um repositrio desse entendimento e, numaperspectiva inclusiva das mltiplas facetas da vidahumana, contextualiza vida cotidiana a poltica,em vez de conceb-la como uma esfera autnomade ao e pensamento. As experincias dosindivduos so contadas ao longo das do seu grupo,e, como os sistemas de troca so mediados pelaexperincia vivida, o mundo exterior porexemplo, a dimenso da interao internacional concebido em relao ao interior sociocultural,pessoal e subjetivo, que abarca formas decomportamento e emoes. A personalizao dasquestes direciona a ateno para condiesmutveis que estabelecem padres de interaosocial, e a literatura viabiliza a integrao entre omoral e o poltico, promovendo a reavaliao desensibilidades e valores. Ao reconceituarem oimperialismo, narrativas ficcionais evidenciam avulnerabilidade e a transitoriedade da supremaciaocidental e salientam contra-movimentos queintroduzem perspectivas de mudana. Ademais,explicitam que as linhas divisrias que conduzem dominao e ao absolutismo moral na rejeiodo Outro so traadas para proteo em relao insegurana, particularmente em face do desejoem relao ao Outro pelos seus elementos dediferena e sua similaridade com tempos passados(idem, p. 46-50, 71-73, 220-234).

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA V. 17, N 32: 51-69 FEV. 2009

    Ao considerar que a rea despersonalizou-secom o enfoque em atores monolticos extradosdo contexto humano e que a cultura no apenasafeta o comportamento dos estados mas estligada transformao social, Darby desnaturalizadivises rgidas que localizam espacialmente adiferena no exterior e consegue, a partir daconsiderao das obras literrias, verificar oestabelecimento de reas de congruncia,acomodao, contato cultural e sobreposio demedos e esperanas entre a identidade e adiferena. A maior inclinao ao engajamentoemocional pela literatura explicita que idias eprocessos so realizados no comportamento deindivduos e grupos. A sensibilidade moral podeestimular a reconfigurao do pensamento,dirigindo-se o foco do Estado para a subjetividadeda experincia vivida por indivduos situados emcontextos de intercmbio cultural e de negociaocom a diferena, os quais se relacionam a aspectosdas relaes intersociais e da poltica internacional,e, com isso, a questes morais integradas poltica. A redefinio do conceito de RelaesInternacionais opera a partir do desafio sconcepes estatocntricas e etnocntricas dadisciplina, compreendidas como frutos da fixaoda rea com o poder como elemento definidor dapoltica mundial e do descaso com relao adesenvolvimentos internos das sociedades doTerceiro Mundo, que poderiam afetar a dinmicade engajamento com o Norte e o sistemainternacional (idem, p. 9-19, 39-42).

    Simultaneamente problematizao daconcepo dada e reificada de segmentao externaque cristaliza o Estado, Darby (idem, p. 55-56,71-73) elucida momentos de cumplicidade eintimidade com a diferena localizada dentro dacomunidade sociopoltica. A partir disso, ainsegurana, a dvida e o temor em relao diferena que opera fora das regras de engajamentoestipuladas tambm internamente so trazidos tona pela fico e configuram-se como limites aoexerccio efetivo do poder e da autoridade delideranas estatais sobre os indivduos. Nessesentido, o autor aponta concomitantemente rumo temporalizao, num momento em que adificuldade no tratamento da diferena traz desafios estrutura do poder vigente e subverses snoes cristalizadoras de poltica, que pressupema negao do Outro interior, a marginalizao dodiscurso do Outro e a perpetuao de umaconcepo auto-referencial do exerccio do poder

    nos mbitos domstico e internacional. Indo-sealm da considerao de atributos materiais emanifestaes externas, a releitura da dominnciaa partir desse procedimento comprova que existemtraos de cultura compartilhada entre as partes os quais expem a ambivalncia da relao entredominador e dominado e refora-se o papelalegrico das categorias derivadas docomportamento interpessoal para a sondagem dopoltico, de forma a evidenciar que o pessoal poltico ou representa a extenso dele: o sentidodo poder no pode ser desvinculado dopensamento daqueles que o exercem e dos que oexperimentam.

    J Shapiro (2004) avana ainda mais noquestionamento ao problematizar conceitos deconstruo e manuteno dos estados-nao emtodos de formao de naes culturalmentecoesas, alm de promover o reconhecimento demecanismos de expresso poltica alternativos sprticas estatais de criao das culturas nacionais.O autor no somente contraria modelosreferenciais do real empregados por uma cinciasupostamente no-tendenciosa e a concepomonolgica e universalizante do sujeito deconhecimento, como salienta a operao deinteraes semiticas entre indivduos que aplicammltiplos meios de produo de significado eassumem diferentes perspectivas sobre elementosenvolvidos no entendimento. Shapiro tambmoferece um tratamento complexo linguagem:transcendendo a mera relao entre declaraes ereferentes, a perspectiva semiolgica propostaconsidera sistemas de significado como produtores no apenas referenciais e examina ainteligibilidade inter-relacionalmente num sistemasimblico. Elucida-se, assim, como perspectivasculturais particulares apontam para a imposiode ordens de significado s custas de outras. Apartir de uma perspectiva foucaultiana, Shapirodesvela que discursos de conhecimento sobrerazo ou verdade no remetem a noessubjacentes ou fundacionais, mas so geradoscomo exerccios de controle em circunstnciashistricas especficas. O poder implicado nossistemas de conhecimento compe novos objetosdiscursivos e locaes privilegiadas a partir dasquais possvel a expresso legtima e inteligvele examinado no seu carter relacional, sendoque tal poder estende-se inclusive ao corpo doindivduo, investido por relaes de dominao.

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    RUMO TEORIZAO ALM DO ESTADO

    A partir desse ponto, Shapiro permite avanarna direo da temporalizao do Estado, pois, aoampliar a esfera de subjetivao e no assumir umaretrica despolitizante da diferena, rejeita apadronizao e, ao enfocar a dinmica deencontros histricos entre perspectivas distintasde produo de significado, oferece umainterpretao que desafia a autoridade do local deenunciao dominante e proporciona a auto-reflexo a partir da considerao de incoernciase alteridades nas prticas de inteligibilidade. Talprocedimento expe no apenas a distncia entrelinguagem e o mundo de referncia, mas osprojetos silenciadores de mltiplas vozes numapoltica totalizante contida nas culturas unitriasnacionais, forjadas por um sistema nico designificado. Memrias contestadoras da produoestatal revelam que a nao no homognea oufundacional e que as segmentaes internas quefortalecem o Estado como locus de autoridade soinstveis: em nvel histrico, como o controle dosestados-nao sobre espaos e corpos foigradualmente problematizado, sua autoridademostra-se interpretativa e performtica, de formaque eles atuam visando preservao de seustatus ontolgico e prtico (idem, p. XI-XVII).

    Shapiro observa que os aspectos coercitivos eeconmicos de controle estatal foramcomplementados pelo gerenciamento dedisposies e significados dos corpos dos cidadoscom o objetivo de compatibilizar fronteirasterritoriais e culturais; contudo, as prticasmateriais e interpretativas que sustentammetafisicamente os estados-nao so desafiadas,de forma que as naes so concebidas comoprocessos contenciosos historicamenteespecficos, os quais garantem sua permannciasimblica a partir de prticas institucionalizadas.A arbitrariedade na busca de fundaes espao-temporais para a nacionalidade torna-se evidentena instabilidade do processo de construonacional: produes culturais nativas ressaltamgeografias de identidade locais em vez denacionais e revelam a incompletude da integraonacional pela mquina de captura estatal, quetenta espacializar o tempo para estabilizar suaexistncia como receptculo desse tempo ondeno h Estado, no h tempo, e, conseqentemente,no h histria ou perspectiva de futuro. Shapiroviabiliza a problematizao de segmentaesinternas que fortalecem o Estado e evidencia queo espao domstico heterogneo e as

    demarcaes entre Estado e sociedade civil somutveis. O poder no mais concebido de formaessencializada em termos do comando e daobedincia autoridade soberana, mas de prticasmltiplas que revelam a operao de novas vozescontestadoras (idem, p. 33-67).

    Simultaneamente na obra de Shapiro,transcendendo-se uma concepo limitada degovernana como simples gerenciamento depessoas num territrio, a mobilizao de mltiplosmodos de governana cultural como complementosde monoplios coercitivos compreendida comoum processo histrico de imposio de fronteirase hierarquizao de povos em nveis distintos decoeso cultural, resultantes do exerccio de poder.Alm disso, Shapiro destaca que o conceito debiopoder envolve uma dimenso expansionista emilitante, de forma que o Estado de seguranamoderno, visando a proteger sua populao, temgradualmente percebido a necessidade de conterameaas no nvel internacional. Nesse sentido, emvez de oferecer um tratamento no-problematizados divises entre Estado e sistema internacional,Shapiro caminha na direo da desnaturalizaonum momento em que verifica que as delimitaesestatais no so dadas ou estagnadas, masartifcios flexveis que preenchem uma ambioreguladora. Em seu processo de expanso, asoberania imperial envolve no apenas umamilitarizao expansionista e uma biopoltica devigilncia da diferena tambm localizada fora doEstado, mas o apoio a mltiplos gneros deexpresso que podem ser mobilizados a fim degarantir essas prticas e inibir aquelas que apontamna direo contrria. Diante da falta de antagonistasfacilmente discernveis, a representao da ameaaassume uma dimenso expansiva, de forma queescolhas violentas so feitas a fim de defender-seuma humanidade politicamente qualificada, e asdistines entre a luta contra ameaascriminalizadas na dimenso domstica e o aparatode guerra global vm sendo paulatinamentediludas, j que a soberania opera num processode estabelecimento de excees para o uso de foraextralegal (idem, p. 177-182).

    Alm da considerao histrica da diversidadede locais de enunciao de vozes definidoras dostatus do Estado-nao, Shapiro (idem, p. 26-31)busca uma abordagem terica alternativa queviabilize a crtica trajetria de discursos polticosestatocntricos e eurocntricos sobre aconstruo nacional, evidenciando que a cincia

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA V. 17, N 32: 51-69 FEV. 2009

    poltica geo-historicamente localizada ofereceuuma srie de veculos conceituais para anormalizao do espao estatal e limitou o escopode perspectivas de entendimento de mundo. Talabordagem tambm procura trazer desafios aosefeitos despolitizantes e legitimadores daperspectiva liberal sobre igualdade. Seus mritosso elucidar a resistncia homogeneizao estatale revelar que o conhecimento fruto da dinmicainterao de perspectivas em constantetransformao, no de circunstnciasessencializadas nas fronteiras reificadas do Estado-nao. Ao situar-se a produo de conhecimentono centro da anlise histrico-poltica sem apart-la da produo de poder, a nfase na resistncia inscrio de corpos em ordens semiticasimpostas por uma autoridade centralizadora e nodesafio s tentativas de homogeneizao permiteproblematizar a suposta naturalidade das prticasque as viabilizaram. Tal atitude interpretativa nosomente identifica como as prticas de poder socriadas e consolidadas, mas desconstri asconcepes deterministas de sociedade e evidenciaquo arbitrrias so as estruturas reificadoras quemarcam o pensamento.

    V. CONCLUSES

    O Estado preservou uma autoridade simblicapelo seu questionamento sistemtico no discurso;porm, a conduo simultnea dos procedimentosde desnaturalizao e temporalizao permitedesreificar as segmentaes que cristalizam ostatus ontolgico e prtico do Estado e desenvolveruma nova concepo do poltico. Transcendendoos esforos de categorizao imutvel de autoresem reificadores ou no-reificadores do Estadoe a assimilao de verses simplificadas ouestereotipadas de suas obras, a abordagem aquidesenvolvida demonstrou que, enquanto grandeparte da produo na teoria de RelaesInternacionais tem reafirmado a centralidade doEstado na imaginao poltica e limitado opensamento sobre alternativas alm dele, novoscaminhos tericos abertos que desestabilizemconcomitantemente as divises entre Estado esistema internacional e Estado e sociedade civilpermitem a identificao das incoerncias e dasambivalncias nas prticas dos estados, oquestionamento de seu poder sobre os indivduose a considerao de formas alternativas deorganizar-se o espao, problematizando as noesde segmentao rgida e absoluta e concebendo adiversidade como meio de crtica social e de auto-

    reflexo.

    Em termos analticos e prticos, Blaney eInayatullah (2004) ofereceram um passoimportante nessa direo ao problematizarem asdivises internas e externas que conduzem centralidade do conceito de Estado. A concepodo Outro interno que no foi absorto pelahomogeneizao cultural desafia a autoridadeperformtica do Estado sobre os atores sociais.Ademais, o engajamento com as experincias dosOutros externos tanto na prtica poltica como naprpria produo do conhecimento sobre adiferena pode conduzir a uma desestabilizaoda fixidez das fronteiras externas que marginalizame hierarquizam a diversidade. Com o entendimentoalternativo das zonas de contato entre o Eu e oOutro, torna-se possvel a autocrtica e oaprendizado com as experincias de outrassociedades, o que pode culminar em novas formasde organizao do espao alternativas ao Estado.J Darby (1998) tambm sinaliza nessa direoao desessencializar as demarcaes internas quecristalizam o Estado, focalizar os desvios s regrasde interao estabelecidas para o relacionamentoentre Estado e foras sociais e, ao mesmo tempo,problematizar segmentaes externas ressaltandoa cultura simbitica entre colonizador e colonizadoe o hibridismo.

    Ao conceber o Estado-nao como um atorbiopoltico que traduz o corpo biolgico comosocial, Shapiro (2004) traz tona a forma como oaparato estatal tenta aprisionar esses corpos,revelando o processo historicamente especficode produo de homogeneidade e coeso culturaletnonacional. Nesse processo, um dos mritos desua abordagem desvelar que obras de arteproduzidas fora da mquina de captura dagovernana cultural estatal elaboraram formasalternativas de adeso e colocam em xeque auniformidade das culturas nacionais e a fixidezdos processos voltados para a relao entre Estadoe sociedade civil. Ao mesmo tempo, Shapirodesnaturaliza o Estado ressaltando que o biopoderexpande-se num processo de preservao emrelao a ameaas ao Estado advindas do sistemainternacional. Com isso, ele questiona o cartersupostamente essencial de segmentaes entreEstado e sistema internacional, vendo que elas somaleveis e que cristalizam a diversidade comouma anomalia ou uma disfuno. Esta abordagem,bem como as de Blaney e Inayatullah e de Darby,

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    RUMO TEORIZAO ALM DO ESTADO

    so apenas algumas alternativas de pensarem-secaminhos para uma teorizao que v alm doEstado. Em vez de estabelecer uma direo nicapara esse empreendimento, tais abordagens apenas

    apontam questes relevantes que nos oferecempelo menos a possibilidade de dar um primeiropasso na direo de um pensamento poltico maiscrtico e emancipatrio.

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    Diego Santos Vieira de Jesus ([email protected]) Mestre em Relaes Internacionais pela PontifciaUniversidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e Professor de Relaes Internacionais da mesmainstituio.

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA V. 17, N 32: 51-69 FEV. 2009

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA V. 17, N 32: 189-193 FEV. 2009

    VERS UNE THORIE AU-DEL DE LTAT: LA DOUBLE DMARCHE DEDNATURALISATION ET TEMPORALISATION

    Diego Santos Vieira de Jesus

    Larticle a pour objectif non seulement dexpliquer pourquoi une double dmarche de dnaturalisationet temporalisation favorise un premier pas vers une thorie envisageant la dissolution des notionsdautorit et didentit du concept dtat et la redfinition du problme de lordre politique international,mais encore didentifier, dans les dbats rcents de la thorie politique et de la thorie de RelationsInternationales, des approches alternatives allant vers cette double dmarche. Lhypothse centraledont la justesse on envisage de vrifier est que la double dmarche de dnaturalisation et temporalisationpermet laffaiblissement en simultane des segments internes qui confortent ltat et qui le distinguentcomme locus dautoriti oppos des forces apolitiques de la socit domestique et des divisionsexternes qui le diffrencient des organisations internationales similaires. A partir de ce manque destabilit, on met en question les interprtations tatiques de lautorit et on redfinit les dbats surlordre politique international, tout en gnrant de nouvelles matrices et en renouvelant lentendementdu politique : non seulement des organisations alternatives de lespace peuvent tre considres partir de lapprciation de la diffrence comme moyen dauto-reflexion et de critique sociale, maisaussi on peut admettre des perpectives envisageant des incohrences et ambigits des pratiquestatiques et mettant en question le contrle de ltat sur des espaces et des corps la recherche deprservation de leur statut ontologique et pratique.

    MOTS-CLS : Thorie Politique ; thorie des Relations Internationales ; thorie post-moderne ;tat ; dnaturalisation ; temporalisation.

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    NOUVEAUX LEADERS SUD-AMRICAINS: CLIVAGE SUR LE BINME STABILIT-INSTABILIT POLITIQUE

    Rafael Duarte Villa

    Larticle traite de linstabilit politique en Amrique latine, surtout au Brsil et dans les pays composantla Rgion Andine et le Cne Sud. Nous tudions les causes de lapparition des nouveaux leaderspolitiques dans ces pays et leur rapport aux situations de stabilit ou dinstabilit politiques. Larticledfend que lavnement de nouveaux leaders en Amrique latine, qui ont merg dans un contextede stabilit et instabilit politique, ne peut tre compris seulement par des hypothses mettant enrelief les caractristiques populaires ou les dfaillances de la modernisation politique, vu que lacasuistique plus profonde de cette mergence devrait tre cherche dans de nouveaux clivagesdidentit thnique et sociale ainsi que dun nouveau modle de rapport entre mouvements sociauxet nouveaux leaders. Nous concluons que lascension des nouveaux leaders politiques dans les paysanalyss est souvent lie une crise de lgitimit du systme politique. Nous assumons aussi que le no-populisme peut tre une variable explicative de lmergence de nouveaux acteurs dans descontextes dinstabilit politique, condition que cette variable ne soit pas descontextualise.

    MOTS-CLS : lite politique ; no-populisme ; Rgion Andine ; instabilit politique ; lgitimitpolitique ; conomicisme.

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA V. 17, N 32: 181-185 FEV. 2009

    TOWARD THEORIZING BEYOND THE STATE: THE TWO-FOLD PROCEDURE OFDENATURALIZATION AND PROVIDING TEMPORALITY

    Diego Santos Vieira de Jesus

    This purpose of this article is to explain why a two fold procedure of denaturalization and providingtemporality offers the first step toward a new type of theorizing. We refer to the dissolution ofnotions of authority and identity of the State and the re-definition of the problem of the internationalpolitical order, as well as identifying alternative approaches that pursue the course offered by thistwo-fold procedure within recent debates on political theory and theories of international relations.The central hypothesis whose correctness we intend to verify here is that this twofold procedure ofdenaturalization and providing temporality (time-boundedness) allows the simultaneous destabilizationof the internal segments that strengthen the State and differentiate it as a locus of authoritycounterposed to apolitical forces of domestic society and of the external divisions that distinguish itfrom similar international entities. Through this destabilization, Statist interpretations of authority areproblematized and discussions on the international political order are re-defined, creating new matrixesand renewing our understanding of the political. Alternative forms of organizing space can therebybe thought up, on the basis of appreciation of difference as a means for self-reflection and socialcritique, and perspectives that consider the inconsistencies and ambivalence of State practices andthat question State control over spaces and bodies, in favor of the preservation of their ontologicaland practical status, can be developed.

    KEYWORDS: Political Theory; International Relations Theory; Post-modern Theory; State;denaturalization; temporalization.

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    NEW SOUTH AMERICAN LEADERSHIP: CLEAVAGES IN THE STABILITY-INSTABILITYBINOMY

    Rafael Duarte Villa

    This article looks at political instability in Latin America, particularly for the countries that make upthe Andean region, the Southern Cone and Brazil. We inquire into the causes behind the emergenceof new political leadership in these countries and the relationship that such leadership has withsituations of political stability or instability. We sustain that the emergence of new leadership in LatinAmerica, which has emerged within a dynamic of political stability and instability cannot be understoodsolely through hypotheses that give salience to populist traits or flaws in processes of politicalmodernization. Rather, deeper causal explanation for the appearance of such new leadership shouldbe sought in the new cleavages that demonstrate the renovation of elite groups, as well as theemergence of ethnic and social divisions and of new patterns of relationship between socialmovements and new leadership. We conclude that the rise of new political leadership in the countriesthat we analyze is generally linked to a legitimacy crisis within the political system. We also hold thatneo-populism may be an explanatory variable for the emergence of new actors in contexts ofpolitical instability, but care must be taken to give adequate emphasis to contextual factors.

    KEYWORDS: political elite; neo-populism; Andean region; political instability; political legitimacy;economicism.

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