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DIGESTO ECONÔMICO - MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 - ANO LXVI - Nº 463 MORTO-VIVO DO TERROR Osama bin Laden vivo, ninguém mais via. Morto, salta aos olhos do mundo. MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 ANO LXVI – Nº 463 – R$ 4,50

Digesto Econômico

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15 jun 2011

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MORTO-VIVO DO TERROROsama bin Laden vivo, ninguém mais via. Morto, salta aos olhos do mundo.

MARÇO/ABRIL/MAIO 2011ANO LXVI – Nº 463 – R$ 4,50

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3MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

MOBILIZAÇÃO ETRANSPARÊNCIA

No dia 4 de maio, o Impostômetro da AssociaçãoComercial de São Paulo (ACSP) e do InstitutoBrasileiro de Planejamento Tributário (IBPT)

ultrapassou a marca dos R$ 500 bilhões em impostospagos pelo contribuinte, somando-se as esferasfederal, estadual e municipal. Em março, a arrecadaçãode tributos federais bateu recorde e somou R$ 70,98bilhões, valor 9,69% maior que o mesmo período do anopassado e 9,8% superior a fevereiro. Se olharmos oprimeiro trimestre, o valor acumulado também foirecorde, somando R$ 226,19 bilhões apenas emtributos federais, alta de 11,96% em relação ao primeirotrimestre de 2010.

Sem dúvida, a arrecadação de tributos é vital para odesenvolvimento do País, mas a grande questão é queos valores arrecadados não retornam à sociedade emforma de serviços de qualidade, como educação,segurança, saúde, infraestrutura etc. Além doscidadãos em geral, quem também sofre com isso são asempresas, em particular as de pequeno porte, que têmde conviver com a voracidade do Fisco, cumprir asinúmeras obrigações acessórias e ainda assim seremcompetitivas.

A ACSP, no âmbito de seu Conselho de Economia(COE), vem articulando a criação de uma ferramentaque possibilite à população acompanhar os gastospúblicos. A iniciativa vem se somar aos nossos esforçosde monitorar, em tempo real, os tributos arrecadados noPaís, feito pelo Impostômetro. Se nós pagamos, temos odireito legítimo de acompanhar e exigir. É um absurdoque não haja controle do que está sendo gasto com os

recursos públicos, daí a necessidade de umaferramenta como esta, que serviria inclusive paramobilizar a sociedade em prol de uma maiortransparência por parte do governo.

Nesta segunda edição de 2011 da revista Dig estoEconômico, o destaque é a repercussão sobre a mortedo terrorista Osama bin Laden, caçado por quase dezanos pelos norte-americanos depois dos atentados àsTorres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York,em setembro de 2001. Outro destaque desta edição éuma entrevista com o professor Gunther Rudzit, doDepartamento de Relações Internacionais da FAAP,que fala das revoltas populares nos países árabes. Já oeconomista Paulo Yokota aborda a reconstrução doJapão após o terremoto e o tsunami que devastaram opaís. Em sua opinião, o Japão possui tecnologia,recursos humanos e poupança, e a catástrofe vemservindo para unir a população.

Também nesta edição, o ex-ministro da AgriculturaRoberto Rodrigues afirma em seu artigo que oagronegócio brasileiro tem uma oportunidadeespetacular de se destacar no cenário mundial – bastaque o governo defina regras claras, semintervencionismos no setor privado.

A reforma tributária, a dívida dos Estados, o votodistrital e um balanço dos 20 anos do Mercosul tambémsão temas de artigos desta edição, escritos por JoséRoberto Afonso, Geraldo Biasoto Júnior, RobertoMacedo e Paulo Roberto de Almeida.

Boa leitura!

Rogério AmatoPresidente da Associação Comercial de

São Paulo e da Federação das AssociaçõesComerciais do Estado de São Paulo

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4 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

ÍNDICE

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteRogério Amato

Superintendente InstitucionalMarcel Domingos Solimeo

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sCarlos Ossamu e Domingos Zamagna

Chefia de ReportagemJosé Maria dos Santos

Editor de FotografiaAlex Ribeiro

Pesquisa de ImagemMirian Pimentel

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto Gráfico e DiagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Ilustração e InfográficoAlfer e Max

Gerente Executiva de PublicidadeSonia Oliveira ([email protected]) 3244-3029

Gerente de OperaçõesValter Pereira de Souza

I m p re s s ã oI nte rg ra f

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

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14Crescente rebeldeCarlos Ossamu,Domingos Zamagna eJosé Maria dos Santos Yo

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22Oportunidadeespetacular!Roberto Rodrigues

25Poder políticopara o agroCesário Ramalho da Silva

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CAPAArte: MAX

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6Morte e ressurreiçãode Osama bin LadenPaulo Brito

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12Paquistão: umrefúgio previsívelJosé Maria dos Santos

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5MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

44A nova superpotênciaRoberto de Oliveira Campos

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52Reformatar areforma tributáriaJosé Roberto R. Afonso

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58Dívidas dos Estados:polêmicas e caminhosGeraldo Biasoto Junior

62Reforma e deformapolítica em jogo noCongressoRoberto Macedo C

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68Desenvolvimento histórico doMercosul: panorama de 20 anosPaulo Roberto de Almeida

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34O Japão depoisde 11 de marçoGuy Sorman Re

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28Lições do terremotoJosé Maria dos Santos Ka

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6 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

Paulo BritoJornalista, economistae mestre emComunicação eSemiótica

De todas as afirmações que possamser feitas a partir de agora sobreOsama bin Laden, a maiscontraditória é a de que ele

morreu. Na verdade, desde 11 de setembrode 2001 bin Laden não parecia tão vivo.Não que não tenha sido abatido a tiros numagrande casa em Abbottabad, Paquistão, pelatropa de elite da Marinha americana, a SEAL.Morreu, sim, e seu corpo foi lançado ao marcom as providências apropriadas paraque nunca reapareça. Mas é justamente odesaparecimento do homem mais procuradodo mundo que está ressuscitandoinquietações de vários tipos em todo oplaneta. Elas surgem nas várias dimensõesque o nome e as ações inspiradas porbin Laden podem alcançar.

Depois de morto, ele se tornou muito maisum elemento geopolítico do que vítima,mártir ou terrorista, conforme quem trate doassunto. É um dos personagem de umcomplexo cenário no qual também estãoamericanos, árabes, talibans, paquistaneses,além de todas as agências de segurançainternacionais e a ONU. Pode-se observaresse cenário de vários ângulos, mas logodepois da morte de bin Laden, cidadãoscomuns de todo mundo olharam peloângulo da segurança. Afinal de contas, se ohomem que comandou ataques quemataram 2.996 pessoas é morto após dezanos de buscas, é de se esperar reaçõesdo mesmo estilo por parte de seus amigos,colegas, seguidores ou simpatizantes.

Apesar dos acontecimentos e dessa

Newton Santos/Hype

MORTE e RESSURREIÇÃOexpectativa, o governo americano não elevouimediatamente o nível de alerta sobreterrorismo no país. Embora o noticiário dodia 1º de maio em diante tenha informadoque a Al Qaeda planejava atentados contratrens dentro dos Estados Unidos, o fato é quenão foram localizados indícios concretos deque isso pudesse acontecer, ao menos agora.Referências ao assunto, no entanto, foramachadas na casa onde bin Laden morava.Desde que a morte do terrorista foianunciada, o Departamento de SegurançaNacional (Department of HomelandSecurity) e as agências associadas (incluindoo FBI) iniciaram uma revisão das medidasde proteção tomadas em relação a todosos alvos potenciais de terrorismo nos EUA.Isso significa aumento da vigilância sobrea infraestrutura e os sistemas de transportedo país, policiamento extra e em áreasnão cobertas dos aeroportos, e tambémelaboração de novas regras para avaliaro risco de passageiros e carga que chegamaos Estados Unidos.

No resto do mundo, especialmente naEuropa, embaixadas e instalações de defesaforam colocados em alerta máximo, porcausa do temor de represálias. RonaldNoble, secretário geral da Interpol, pediuque as polícias dos 188 países membros dainstituição entrassem em alerta máximo,como prevenção às possibilidades derepresálias. Esse estado de tensão e de alertatalvez não seja muito diferente do que já vemacontecendo desde que as torres gêmeasforam destruídas – haverá um alerta após o

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7MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

de OSAMA BIN LADEN

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outro, de vez em quando um atentado contraalvos indefesos como hotéis de turismo, devez em quando a prisão de mais terroristas...Mas as passeatas e a gritaria queaconteceram em várias cidades do oriente,em especial no Paquistão, estão dando aimpressão de que multidões furiosas estãoprontas para marchar em direção aWashington para demolir a Casa Brancae aniquilar toda a população americana.No entanto, não é isso o que as autoridadesdo país esperam. O que elas esperam, sim,são tentativas de ataques mais elaborados,certeiros, devastadores. Na verdade, asideias de bin Laden para derrotar paísesinteiros contaminaram toda a Al-Qaeda enenhum organismo de segurança em todo o

mundo pode descuidar das ameaças que aorganização representa, simplesmenteporque seu chefe supremo foi morto.

Os Estados Unidos parecem ter tomadoalguns cuidados para não irritar os aliados debin Laden mais do que o necessário. Antesque seu corpo fosse lançado ao mar, porexemplo, foi feito um ritual de acordo com aprática e a tradição islâmicas, segundo umafonte do governo. O local do sepultamentotambém parece ter sido cuidadosamenteescolhido: o mar da Arábia. Qualquer outropoderia se tornar um local de peregrinação einspirar revolta, raiva e ainda mais reaçõesdos simpatizantes. Não é possível saber asconsequências se houvesse um lugar onde ocorpo de bin Laden estivesse sepultado.Como também não é possível estimar o queaconteceria se, ao invés de matá-lo, aoperação militar o tivesse prendido.

Não há resposta simples para essa questão.Fosse ele preso para ser julgado em NovaYork, fosse confinado em Guantánamo ou emqualquer outro lugar, os EUA teriam umabatata muito mais quente do que já têm comsua morte. Deixá-lo preso colocaria por muitomais tempo na mídia a discussão sobre orespeito do país aos direitos humanos. Paracomeçar, a política de direitos humanos queo governo americano construiu durantedécadas está bastante arranhada. O prestígioconseguido com sua defesa dos dissidentesda antiga cortina de ferro (os países da UniãoSoviética e seus aliados) e da América Latinafoi consumido pelas notícias de torturas emaus tratos que vazaram de inúmerasoperações militares no Iraque e noAfeganistão, assim como da prisão deGuantánamo, em Cuba. Para descobrir ondeestava bin Laden, os funcionários do governoe os militares admitiram ter usado o que eleschamam de "simulação de afogamento".Na segunda guerra mundial, os americanosenforcaram soldados japoneses justamenteporque aplicaram essa tortura em seusprisioneiros. Inventada na idade média,ela não exige que se mergulhe a cabeça deninguém na água – a pessoa é amarradasobre uma prancha, seu rosto coberto porum pedaço de pano e baldes e mais baldesde água vão sendo derramados sobre ele.A morte é uma das consequências possíveis.

O fato de bin Laden ter sido morto expõe ogoverno americano a mais uma acusação – ada violação de leis internacionais. Omar, umdos filhos de bin Laden que vive na ArábiaSaudita, escreveu uma declaração

Akhtar Soomro/Reuters

ReutersDesde 11 desetembro de 2001bin Laden nãoparecia tão vivo.É justamente amorte do homemmais procuradodo mundo queestá ressuscitandoinquietações emtodo o planeta.

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condenando a morte do pai, não só pelaviolação dessas leis, como pelo fato de que,segundo ele, seu pai não estava armado.Podia muito bem ter sido preso e levado a umtribunal como Sadam Hussein e SlobodanMilosevic, argumentou ele. O governo doPaquistão também está fazendo reclamações:uma ação de militares de outro país foirealizada em seu território sem o seuconhecimento nem autorização. É natural quenessas circunstâncias o governo reclame, masa situação do governo paquistanês não éexatamente confortável por duas razões.Primeiro, porque bin Laden morou no paísdurante mais ou menos cinco anos. É difícilpara as forças de segurança e para o exércitopaquistanês justificarem esse fato. Parapiorar, sua casa ficava numa cidade repletade quartéis, e a não mais de 500 metrosda principal academia militar do exército.É inevitável que coincidências dessa ordemgerem a suspeita de que o terrorista recebeualguma espécie de favorecimento. De outraforma, como pôde ficar tanto tempo sem sernotado e nem incomodado? A segunda razãoé que o governo paquistanês não podeenfrentar os EUA sem colocar em risco aajuda econômica e militar que recebe desde2002. No ano passado, essa ajuda somou 2,64bilhões de dólares. Para este ano, só a ajudamilitar está estimada em US$ 1,68 bilhão.Por que tanto dinheiro? Porque o governoamericano quer controlar o que for possívelno Paquistão – afinal de contas, o país temarmas nucleares, graças a um programa cujodesenvolvimento começou em 1972, comoresposta ao programa nuclear da Índia.Portanto, os americanos preferem tê-losempre como aliado e sob seu controle.

Há reclamações contra os EUA tambémpor parte da comunidade internacional,representada pela ONU. O relator especialsobre Execuções Extrajudiciais, Sumáriasou Arbitrárias, Christof Heyns, e o relatorespecial sobre a Promoção e Proteçãodos Direitos Humanos e LiberdadesFundamentais na Luta contra o Terrorismo,Martin Scheinin, querem que os EUAexpliquem como foi a ação que terminoucom a morte de bin Laden, para "permitiruma avaliação correta em termosinternacionais de direitos humanos".Esse pedido já foi feito também pelo altocomissário da ONU para Direitos Humanos,Navi Pillay, que solicitou "uma divulgaçãocompleta" dos fatos ligados à mortede Bin Laden. É evidente que isso nunca

Jewel Samad

Quatro dias após a morte de bin Laden, opresidente Barack Obama participou de

homenagem às vítimas do 11 de Setembro.

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10 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

acontecerá. As informações sobre tudo o queaconteceu e como aconteceu permanecerãoem segredo provavelmente por décadas,para não comprometer as futurasinvestigações e os agentes envolvidos nelas,e também para não revelar as tecnologiasempregadas na busca. As informações queforam passadas à imprensa americana poralguns funcionários do governo permitemconcluir que os dispositivos de vigilância eobservação montados em satélites utilizadosna caçada chegaram a tal grau desofisticação que permitem medir até a alturaaproximada de uma pessoa. Apesar disso, sódepois de entrarem no aposento em queestava bin Laden os militares tiveram 100%de certeza de que era ele quem estava lá.Até então, as informações de quedispunham não permitiam chegar a essaconclusão com certeza.

As despesas do governo americano quelevaram ao encontro e à morte do terroristasomam perto de US$ 1,3 trilhão, segundoo Serviço de Pesquisas do Congresso dosEstados Unidos. Esse valor inclui tudo o quefoi gasto nas guerras do Iraque e do

Afeganistão. Ele é gigantesco de qualquerângulo que seja olhado. Mas ao mencioná-lo,os cálculos e argumentações das autoridadesde segurança americanas sempre incluem aeconomia, de valor incalculável, em vidashumanas. Esse investimento deu agora umgrande retorno em vários aspectos: naimagem de Barack Obama, no orgulho doscidadãos americanos e na enormequantidade de informações recolhidas nacasa do terrorista pelos soldados damarinha. Além de anotações, há cerca decem "pen drives" que serão cuidadosamenteexaminados pelos especialistas durante ospróximos meses. Ali, eles esperam encontrarpistas e planos que permitam causar muitomais baixas na Al Qaeda.

Por mais que líderes da organizaçãocontinuem anunciando vingança noPaquistão, no Iêmen ou em Londres, o fatoé que ela sofreu agora enormes prejuízos eisso custará as vidas de outros seguidorese a pulverização de muitos planos. Parapiorar, seus grandes projetos de geopolíticanão se concretizaram. São anos de lutassangrentas, e apesar disso o modo de vida

Bruno Fahy/AFP

As despesas dogoverno americanoque levaram aoencontro e à mortedo terrorista somamperto de US$ 1,3trilhão, segundoo Serviço dePesquisas doCongresso dos EUA.

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ocidental continua a atrair muçulmanos;a jihad não conseguiu banir as tropasocidentais dos países islâmicos – elascontinuam no Iraque e no Afeganistão;assim como o exército indiano continua naCachemira e os russos na Chechênia. Israelcontinua a florescer. Não há um únicogoverno árabe que tenha aderido ao modelode califado proposto pela Al Qaeda.

O Pew Research Centre, que pesquisa apopularidade da Al Qaeda desde 2003,descobriu que ela está em franco declínio.E que a confiança em Osama bin Ladencontinuava a cair. Desse ano para 2011,despencou 38% entre os palestinos, 33% entreos indonésios, 43% entre os jordanianos,12% entre os turcos e 18% entre os libaneses.No Paquistão, onde a pesquisa de 2011 aindanão foi feita, a confiança no terrorista caiude 52% em 2005 para apenas 18% em 2010.Em outras palavras, os números mostramque na verdade bin Laden já estava morrendonas mentes do Islã. Aprisionado em suaprópria casa, mandando queimar o lixo paraque sequer os resíduos do seu dia-a-diachegassem ao mundo exterior, mandandorecados em vídeos exibidos na internete na rede Al Jazeera, bin Laden só poderiarestaurar sua imagem de mais temidoterrorista do mundo com outro ataque tãocatastrófico quanto o do 11 de setembro de2011. Agora, felizmente, ele não poderá maisfazer isso. Mas seus seguidores, infelizmente,tentarão: a morte de bin Laden derruba seumoral, mas ainda não há nenhum sinal deque a guerra esteja no fim.

Rizwan tabassum/AFP Asmaa Waguih/Reuters

Por mais quelíderes da Al Qaedacontinuemanunciandovingança noPaquistão, no Iêmenou em Londres,o fato é que aorganização sofreuagora enormesprejuízos e issocustará as vidas deoutros seguidorese a pulverizaçãode muitos planos.

Reprodução

SUCESSOR – De acordo com informações veiculadas pela redede TV CNN, o ex-coronel egípcio Saif al-Adel é o novo líder interinoda rede terrorista Al Qaeda, em substituição a Osama bin Laden.Saif al-Adel é o nome de guerra de Muhamad Ibrahim Makkawi.Ele é suspeito de envolvimento nos ataques a bomba a embaixadasamericanas no Leste da África em 1998 e de instruir os sequestradoresdos aviões que derrubaram as torres do World Trade Center em 2001.

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Paquistão:um refúgioprevisívelJosé Maria dos Santos

A fuga de quase dez anos de Osama binLaden acabou no dia 1º de maio último.

AFP

Embora estejam tão distantes e possuam culturas ab-solutamente diferentes, Paquistão e Polônia têmuma profunda afinidade entre si. A Geografia os lo-calizou de tal modo, que ambos se tornaram duas das

mais estratégicas passagens do planeta. No caso do Paquis-tão, a complexa Ásia Central e o conflituoso Oriente Médiofizeram ponto de encontro; em relação à Polônia, o país é ocaminho por onde passam a Europa Ocidental e a do Leste,não necessariamente nessa ordem, conforme demonstraramNapoleão e Adolf Hitler de um lado e as hordas de Átila e astropas soviéticas de outro.

Era natural, portanto, que os cerca de 882 mil km² que com-põem o território paquistanês se prestasse, desde suas primeirasorigens, a ser um cenário de guerras que explica seus espasmosde hoje, nos quais cabe, aliás, a morte de Osama bin Laden.

Em princípio, até o século VIII, aquela região do sul da Ásiaviveu em paz. Os confrontos começaram com a introdução doIslamismo por essa época, que antepôs a população hindu en-tre a mensagem de Alá e as milenares religiões do chamadocontinente indiano. A disputa religiosa passou a alimentar osenfrentamentos entre as populações. Porém, quando o domí-nio da Inglaterra foi oficializado na região, em 1856, as diver-gências acabaram sendo abafadas pela supremacia dos colo-nizadores. No entanto, as tensões foram reavivadas menos de100 anos com a independência da Índia, cujo maior protago-

nista foi Mahatma Ghandi, datada de 15 de agosto de 1947. Naocasião, ficou acertado por acordos internos e arbitragem in-ternacional que houvesse a partilha do território em dois paí-ses devido às diferenças religiosas: a Índia e o Paquistão. Fi-nalmente, em l956, foi estabelecida a República Islâmica doPaquistão, abrigando a maior concentração de muçulmanosdo planeta: 92% da população, estimada neste ano em 170,6milhões. Convenientemente, faz divisa com dois países deforte representação islâmica, respectivamente o Afeganistãoa norte e nordeste e o Irã, ao sul (a leste, suas fronteiras en-costam na Índia e na China).

Depois que bin Laden foi encontrado e sepultado no Mar daArábia, ficou relativamente fácil especular que o Paquistão se-ria um dos seus refúgios previsíveis. Onde iria um líder terro-rista ferozmente procurado, senão em comunidades onde en-contrasse boa receptividade por identificação religiosa, parti-

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13MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

cularmente em uma religião dominada pelo fervor? A respos-ta, agora, parece óbvia, mas o bem treinado aparato deinteligência dos Estados Unidos consumiu dez anos para en-contrá-la. Na verdade, bin Laden poderia estar perfeitamenteescondido no Afeganistão, onde encontraria idênticas condi-ções favoráveis, que deve ter deixado na medida em que o cer-co norte-americano se fechava por ali. É possível que os servi-ços secretos estivessem completando sua varredura no país e,simultaneamente, iniciado outra no Paquistão. ( Ninguém

precisa ser agente da CIApara afastar o explosivoIrã, colocado permanen-temente sob os holofotesdo mundo, como alterna-tiva de bin Laden para umrefúgio. E muito menos ospaíses árabes clássicos doOriente Médio dado as re-lações de mão dupla comos Estados Unidos).

Se é verdade que BinLaden gostava de guer-ras, então devia sentir-seà vontade na atmosferapredominante no Paquis-tão, própria de um paísque teve raros intervalosde tranquilidade. Convi-ve belicosamente comBangladesh, ao norte, queocupa desde l971, ano emque conquistou sua inde-pendência, as antigas ter-Ru

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ras do chamado Paquistão Oriental. E enfrenta situação pare-cida na área conflagrada de Caxemira, atualmente divida entrePaquistão e Índia e disputada pelos dois países.

Os números de sua economia não são promissores: PIB de475,4 bilhões de dólares, renda per capita de US$ 2.942. Suataxa de pobreza está entre 23 e 28% – equivalente ao nossoMaranhão. O idioma oficial é o inglês e outros 60, embora alíngua franca seja o Urdu. A propósito, Paquistão, em Urdu,significa Pais dos Puros.

Acima, cartaz impresso por um jornal após os atentados de11 de setembro de 2001; ao lado, paquistaneses pró-Osama binLaden fazem manifestação contra a morte do ex-terrorista; e abaixo,atentado do Taleban paquistanês no último dia 13 de maio.

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14 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

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Youssef Boudlal/Reuters

CRESCENTEREBELDE

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15MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

Épossível que num futuro não muito distante, aGeografia venha a ser considerada a mãe de todas asciências. Desmembrada em variadas especializações,está se metendo em tudo que se refira às questões

cruciais que vem desafiando a humanidade: meio-ambiente,superpopulação, guerras, produção de energia etc. Enquantoesse dia não chega, a matéria trata de impulsionar jovenscarreiras, como é o caso de Gunther Rudzit, 43 anos, que seorgulha de ser paulistano nascido e desenvolvido na AvenidaPaulista e adjacências. Atualmente ele é coordenador do cursode Relações Internacionais da Fundação Armando ÁlvaresPenteado (FAAP) e tem atrás de si um respeitável currículo queassinala um doutorado em Ciências Políticas pela Universidadede São Paulo e mestrado em Segurança Nacional pelaGeorgetown University, dos Estados Unidos. A porta de

entrada para esses caminhos foi sua licenciatura em Geografiapela mesma USP, em fins dos anos 80. Em princípio, ele foraseduzido pelo estudo de relevos (Geomorfologia), de climas ede sensoriamento remoto, de modo que, no momento devido,iria optar por uma dessas especialidades. Mas no quinto ano,justamente o último, travou contato com a Geopolítica e seapaixonou pelo assunto. O resultado é que se tornou umexpert em entender os bastidores de como o mundo funciona apartir dos interesses e necessidades dos países poderosos e dasua periferia. (A propósito, já foi assessor do nosso Ministérioda Defesa). Em geral, para todos geopolíticos, o planeta setorna um quebra-cabeças que não lhes exige grandes esforçospara ser montado. É nessa condição que Gunther Rudzit, netode letonianos, nos decifra os fatos surpreendentes que estãosacudindo o mundo árabe.

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16 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

Acima, protestos no Iêmen pedem a saída dopresidente Ali Abdullah Saleh. Abaixo, oex-presidente da Tunísia Zine El Abidine Ben Ali,deposto em 14 de janeiro.

Digesto Econômico - Se alguém lhe dissesse há seis meses que omundo árabe seria sacudido por revoltas no início de 2011, o que osenhor responderia?

Gunther Rudzit - Revoltaspopulareseramumapossibilida-de, pois em 2008, no auge do crescimento econômico e do en-carecimento das commodities, principalmente produtos agrí-colas, já surgiam movimentos pelo mundo contra o aumentodos alimentos. Mas ninguém esperava que essas revoltas pu-dessem derrubar governos ditatoriais que não admitiam opo-sições, ou que, quando admitiam, eram manipuladas, como noEgito. O que vem ocorrendo nos países árabes surpreendeu to-dos os analistas internacionais. A força com que tudo ocorreu,primeiro na Tunísia e depois no Egito, foi surpreendente, e sesustentou por semanas a fio, num movimento pacífico, o que euacho importante, pois isso deu força para derrubar esses dita-dores. Ter sido um movimento pacífico surpreendeu qualqueranalista. Em dezembro, não dava para imaginar isso.

Se esses levantes fossem violentos, o desfecho seria o mesmo?A pergunta é feita no sentido de que a agressividade legitimariarespostas duras dos governos para sufocá-las.

Nesse caso os governos teriam legitimidade de reprimircom o uso da força. Se protestos usam a força, isso dá legitimi-dade aos governos na mesma direção.

Khaled Abdullah/Reuters

Fethi Belaid/AFP

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17MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

(*) Em l994 a etnia Hutu (90%) de Ruanda, na África Central,reprimiu a minoria Tutsi. Foram 800 mil mortos.Em l995, tropas sérvias trucidaram cerca de 8 300 jovens bósniosem Srebrenica, na Bósnia-Herzegóvina, no Leste Europeu.Lu

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e Egito. Mas Kadafi alterou esse roteiro. Aproveitou-se daatenção do mundo voltado para a tragédia do Japão e preparoua intervenção armada contra a cidade de Benghazi, foco da re-belião. Se as forças de coalizão não agissem, haveria um ex-traordinário massacre. Ao mudar o script, Kadafi produziu re-pressão violenta em seu país e, por consequência, no Bahrein ena Síria. O Iêmen ficou no meio-termo, usando a força de se-gurança nacional, como qualquer governo democrático.

O senhor é a favor da intervenção de forças internacionais?Pessoas que se dizem intelectuais questionaram a ação, ale-

gando que não havia cadáveres e que, nesse sentido, não se po-deria tomar a iniciativa sem fatos concretos. Meu Deus! Será queprecisamos de uma nova Ruanda, uma nova Srebrenica para de-pois agir? Kadafi ordenou ataques aéreos à população indefesa.

Poderia se dizer que se trata de uma evoluçãodo pacifismo de Ghandi?

Foi isso mesmo. Em uma palestra para alunos aqui naFAAP, o professor Rubens Ricupero referiu-se a um professornorte-americano, cujo nome não recordo, que passou a pre-gar a ideia das revoltas pacíficas. Pois vários pequenos gru-pos tunisianos de resistência à ditadura local começaram a seorganizar em torno dessa proposta. E foi lá que se deu o iníciodo atual levante árabe.

"Será que precisamos denovos genocídios? De outraRuanda ou Srebrenica?*"

O senhor acha que esse é o novo motor que vai girara História a partir de agora?

Recentemente, participei de um debate no qual o professorDemétrio Magnoli colocou uma análise que apoio: a primeirafase dessa revolta terminou. Nela havia um roteiro previamen-te estabelecido: a população faz uma revolta pacífica, sustenta-a, o governo tenta negociar e acaba caindo. Foi assim na Tunísia

Suhaib Salem/Reuters

Manifestações populares levaram à queda dopresidente egípcio Hosni Mubarak. Apesardos protestos pacíficos, houve mais de 800 mortos.

Muamar Kadafi seaproveitou que a atençãodo mundo estava voltadapara a tragédia noJapão e preparou umaintervenção armadacontra a cidade deBenghazi. Seria ummassacre.

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18 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

Imagine bombas de 250 kg caindo sobre essa gente. O Ocidentenão tinha alternativa. Aliás, manter Kadafi seria mais adequadoaos interesses econômicos do Ocidente. Ele dá estabilidade à re-gião, fornece petróleo e gás. O Ocidente está trocando o certo pe-lo duvidoso. Não dá para dizer que a intervenção preservará in-teresses econômicos. É uma intervenção humanitária.

O senhor acredita em intervenções na Síria, Arábia Saudita,Bahrein e Iêmen se o caldo entornar?

Não. No caso da Líbia, houve forte pressão para que a LigaÁrabe, que reúne países árabes, aprovasse a zona de exclusãoaérea, que deu a legitimidade ao Conselho de Segurança parafazer a intervenção. Só que a Liga Árabe não tinha a clareza dasrepercussões desfavoráveis em alguns países. A Liga não vaiemitir resolução para nova intervenção. Sem isso, nenhumpaís ocidental terá legitimidade para fazê-la. Seria vista comouma ação colonialista.

"Hoje, um estadonão pode fazer

o que bem entenderno seu território"

Não haverá intervenção mesmo que governosbombardeiem civis indefesos?

Acho que os governos árabes também entenderam o recado.O uso desproporcional da força não será admitido. É previstoque um governo se defenda de rebeliões internas com gás lacri-mogêneo, cassetete, balas de borracha etc. Mas força militar con-tra civis desarmados não é mais admissível. Até mesmo Israelserá afetado. Uma ação como a que fez em Gaza, em 2009, com

uso de tanques, aviões e bombas de fragmentação será bem maiscomplicada de agora em diante. O pai do Bashar Al -Assad, daSíria, Hafez Al-Hassad, matou perto de 20 mil pessoas que selevantaram contra ele nos anos 80. Isso não é mais possível hoje,pois gerará reação internacional. Países serão cobrados por nãotomarem uma decisão a respeito. Os estados-membros da ONUaprovaram em 2005 uma resolução que estabelece não ter maisos Estados a soberania ilimitada de fazer o que bem entenderemem seus territórios. O sistema internacional torna-se responsá-vel pela vida de todos os seres humanos, inclusive de popula-ções que são ameaçadas pelos governantes.

A Rússia e China se abstiveram na votaçãopela intervenção na Líbia.

Mas essa abstenção foi um apoio não-oficial, pois ambostêm poder de veto. Foi um voto distinto da Índia, da Alemanhae do Brasil, que não estavam concordando e que não têm poderde veto. A posição da China foi particularmente significativa,pois seu governo é extremamente cuidadoso em questões deintervenção interna em outros países. Não podemos esquecerque ela tem pedra no sapato nesse tópico: o Tibete, a provínciade Xinjiang, considerada território rebelado, e Taiwan. Os pre-cedentes poderiam se voltar contra ela.

E a posição do Brasil?O Brasil tem, e isso ficou mais explícito nos oito anos de gover-

no Lula, o objetivo de ter um assento permanente no Conselho deSegurança da ONU. Isso virou o foco central da política externado governo Lula. Várias relações econômicas ficaram subordina-das a este objetivo. O Brasil tem a justificativa, que eu acho legí-tima, de querer participar das decisões importantes do mundo,pois é um país importante, ele tem de ser levado em consideração.Só que, o Brasil disse que não concorda com a medida porque elanão vai resolver a situação. Mas, ao se abster se está resolvendoalguma coisa? Não está. Qual era a alternativa? O que fazer nessa

É previsto que umgoverno se defendade rebeliõesinternas com gáslacrimogêneo,cassetete, balasde borracha etc.Mas força militarcontra civisdesarmados nãoé mais admissível.

Marwan Naamani/AFP

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19MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

situação em que o Kadafi estava usando força excessiva? O diá-logo? Todo mundo sabe o que o Kadafi sempre fez, vide que, nanoite em que foi aprovada a resolução do Conselho de Segurançapor uma intervenção armada, Kadafi disse que estava implemen-tando um cessar fogo, mas 24 horas depois estava massacrando apopulação, se reorganizando para retomar Benghazi. O Brasilneste ponto errou. Qual foi a alternativa que o Brasil apresentou?Até que eu saiba, nenhuma. Neste ponto, acho que o Brasil saiuperdendo. Diante da Inglaterra, França e Estados Unidos, o Brasilmarcou gol contra. Se haverá mudanças no Conselho de Seguran-ça, isso terá de ser aprovado pela Assembleia Geral da ONU, os192 Estados têm que dizer sim por maioria absoluta e tem de pas-sar pelo Conselho de Segurança sem veto. E quem tem veto? Chi-na, Rússia, Inglaterra, França e Estados Unidos.

Da mesma forma, a Índia, que também busca assentono Conselho de Segurança, se absteve.

O que se falou bastante é que foi a primeira vez que os Bric -Brasil, Rússia, Índia e China conseguiram articular um voto.Mas depois eu percebi que não é a mesma coisa. Rússia e Chinase absterem não é a mesma coisa que Índia e Brasil se absterem.

São categorias diferentes. Neste ponto a situação do Brasil secomplicou, Índia também, mas ela é importante para o Ociden-te numa região onde a ascensão chinesa é meteórica. A Índiaestá sabendo usar muito bem esta sua ascensão para as ques-tões regionais importantes, como um contraponto à China. Atépor isso os americanos já apoiaram a Índia numa eventual re-forma do Conselho de Segurança.

Um fato importante nestes levantes em países árabesé que os Estados são ricos e a população é pobre.

Como se mede a pobreza? Tem o IDH (Índice de Desenvolvi-mento Humano). O IDH da Líbia era até este levante de número56, melhor do que o Brasil. No caso da Líbia, não é um índice deterceiro mundo, pelo contrário, é uma posição média. Não há ex-trema pobreza na Líbia. No Iêmen há extrema pobreza, em Omãhá extrema pobreza, no Egito há pobreza, pois a população égrande e não há riquezas de petróleo. No Egito, um fator que pe-sou muito foi o custo de vida ter subido muito nos últimos anos,principalmente alimentos. Por mais que não haja extrema pobre-za nesses países, a luta pela liberdade e melhores condições eco-nômicas foi fundamental. A grande maioria da população é jo-

Louafi Larbi/Reuters

Ao mudar o script, MuamarKadafi produziu repressãoviolenta em seu país e, porconsequência, no Bahrein

e na Síria. O Iêmen estáno meio-termo.

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20 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

vem, boa parte com nível bom de educação, mas que não con-segue emprego. Então, que futuro tem essa juventude? Na horaque se conseguiu colocar pela internet essa população em con-tato com ideias de liberdade, de igualdade, de direitos funda-mentais, isso foi o estopim. Não podemos esquecer que váriosdesses países estão em estado de emergência até hoje. Veja a Síria,que desde 1963 está em estado de emergência. Bashar Al -Assaddisse que iria suspender isso, depois voltou atrás, formou umacomissão para discutir uma nova constituição, pois se suspendereste estado de emergência, ele não terá a legitimidade jurídica dereprimir as manifestações (em 19/04, o governo anunciou o suspen-são do estado de emergência, mas os protestos continuaram). Muitosdesses países não têm constituição, caso da Líbia.

"A China vem investindo hámuito tempo em um sistemarepressor eletrônico muito

grande. É quase um exército quecensura, bloqueia, persegue

aqueles que tentam se organizar."

Na China há prosperidade, mas falta liberdade. Houve algumasmanifestações na capital chinesa. O senhor acredita que esteprocesso de revoltas ocorra com mais intensidade na China?

As manifestações chegaram à China no período em que Mu-barak estava para cair. Um dos países mais preocupados comtudo o que vem acontecendo é a China. O país tem uma juven-tude gigantesca, boa parte altamente instruída, um acesso àtecnologia da informação, internet principalmente, mas qual éa diferença? A China vem investindo há muito tempo em umsistema repressor eletrônico muito grande. É quase um exér-cito que censura, bloqueia, persegue aqueles que tentam se or-ganizar. Esses países árabes, principalmente os da costa doMediterrâneo, muitos próximos da Europa e que estavam ten-tando atrair investimentos, tinham de passar uma imagem demodernidade, que é ter toda a infraestrutura de comunicaçãofuncionando. Mas eles não investiram tão pesadamente nessarepressão eletrônica. Os chineses têm esse know-how de cen-surar, vide que o Google não funciona lá como funciona nomundo ocidental, ao contrário dos países árabes. Isso passou aser fundamental para o processo desses levantes. Antes destaera digital, a figura do líder era muito importante. Para um go-verno reprimir qualquer movimento como este, bastava ir emcima dos líderes e a tendência era de o movimento perder força.Hoje, quem é o líder? A liderança é diluída na internet, em per-fis falsos, que fica mais difícil a polícia saber quem é e prender.Isso facilitou os movimentos nos países árabes.

Se as forças de coalizão não agissem, haveria um extraordinário massacre. Na foto, o presidente francês Nicolas Sarkozy.

Philippe Wojazer/Reuters

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21MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

"Não esperem dos árabesuma democracia aberta, livre,

em modelo ocidental"Essa onda de rebeldia poderá trazer uma flexibilização dareligiosidade fundamentalista em sua esteira?

Ao contrário. O que se está querendo lá é maior liberdade,mas dentro dos valores daquelas sociedades onde o valor dareligião não é o modelo ocidental. Não esperem democracia nomodelo ocidental, com partidos e linhas de programas bem de-finidas, com a separação clara entre a Igreja e o Estado. A re-ligião no mundo muçulmano é importante. Entre xiitas radi-cais, a organização política se faz em torno da religião e o Irã éo melhor exemplo. Por outro lado, entre os sunitas, mais fle-xíveis, os clérigos são importantes, mas não dão a palavra ini-cial ou final, como ocorre com os xiitas. Pode haver democra-tização na Tunísia e Egito. Mas uma democracia aberta, livre,com partidos bem definidos, não.

Parece que o mundo está mudando bastante, não?A ascensão do Ocidente se deu de 1500 a 2008. Este último

ano marca a crise financeira mundial e o incio do ocaso de Es-tados Unidos, Europa e Japão. Teremos muita instabilidadepolítica e econômica nos próximos 10 anos, conjunção perfeitapara revoltas e conflitos. Vejam a Europa: o euro não está 100%seguro. Vejam a alta do petróleo e os Estados Unidos: se o barrilcontinuar acima de 100 dólares, vai afetar a retomada econô-mica dos países desenvolvidos.

"Nossa épocaestá assistindo ao ocaso

da maior superpotência"O que significa exatamente o ocaso dos Estados Unidos?

Michael Mandelbaum, professor da John Hopkins Universi-ty, lançou um livro interessante no ano passado intitulado "A su-perpotência frugal", que trata do gigantesco impacto da crise fi-nanceira do país em sua política externa. Em resumo: lá o cober-tor ficou curto. A economia diminuiu, há um déficit de 1,4 tri-lhão de dólares., quase o PIB brasileiro. Não é possível sustentá-lo indefinidamente. Caso o governo cubra as despesas internas,não poderá atuar externamente com a desenvoltura financeiracom que fazia antes, desde a época da Guerra Fria. A propósito,Allan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve, já alertouque há um limite para o endividamento. Eles terão que cortargastos com ajuda financeira externa, operações militares etc.Greenspan lembrou que chegará o momento em que os EstadosUnidos não conseguirão agir em todas ás regiões do mundo eterão que começar a delegar a potências regionais a manutençãoda estabilidade em algumas áreas. A pequena intervenção na Lí-bia está sendo questionada. Se 200 milhões de dólares começama fazer diferença, é de se pensar se os americanos continuarão aser a superpotência do mundo. Isso terá profundo impacto geo-político no planeta. Como ficarão, por exemplo, as relações entreRússia e os países da Ásia Central, ou da China com o Japão esudeste asiático se os americanos não forem mais os garantido-res da estabilidade e da independência desses países?

Os Estados Unidosnão conseguirão

agir em todasregiões do mundo eteriam que começar

a delegar apotências regionais

a manutenção daestabilidade emalgumas áreas.

Jim Young/reuters

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22 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

Roberto RodriguesEx-ministro da Agricultura

do governo Lula,atualmente é

coordenador do Centrode Agronegócio da FGV,

presidente do ConselhoSuperior de Agronegócio

da FIESP e professor deEconomia Rural da

Unesp/Jaboticabal

Newton Santos/Hype

Investidores do mundo todo têm procurado terras paracomprar ou arrendar no Brasil, com o objetivo de produziralimentos, energia ou fibras, e pensando no negócio imo-biliário no longo prazo.

Este interesse está baseado em duas premissas.A primeira é o estudo publicado pela OCDE no fim do ano

passado, segundo o qual nos próximos 10 anos será necessárioaumentar em 20% a oferta global de alimentos para atender àdemanda explosiva devida ao incremento da renda per capita eda população nos países emergentes. O estudo aponta que, parao mundo cumprir esta meta de 20% em 10 anos, o Brasil precisacrescer 40%, o dobro da média mundial. Tal expectativa se deveao fato de termos muita terra ainda disponível para agricultura,termos a melhor tecnologia tropical do planeta e, adicionalmen-te, um produtor rural eficiente e competitivo. Aliás, trabalho fei-to pelo Reino Unido ainda mais recente que o da FAO, usando ohorizonte de 20 anos – e não apenas 10 – indica que a oferta dealimentos deve crescer 40% e a de energia 50%. E, evidentemen-

O Brasil fez a lição de casa: em 20 anos, a área plantada com grãos aumentou 29%, e a produção, 166%.

Oportunidade

Jonas Oliveira/Folhapress

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23MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

te, dado o alarmante problema do aquecimento global, a agroe-nergia – por ser renovável e emitir muito menos CO2 do que oscombustíveis fósseis (como o petróleo) – terá um papel cada vezmais relevante. E de novo, o Brasil surge como grande supridordeste produto e principal indutor da sua produção e consumoem outros países tropicais. Resta ainda, dentro desta premissa,apontar outro fato dramático: a grande dificuldade da humani-dade no século 21 é compatibilizar a crescente oferta de produ-tos agrícolas com a preservação dos recursos naturais, dentro doque se chama sustentabilidade. Ora, o Brasil já fez esta lição decasa. Basta olhar os números: em 20 anos, nossa área plantadacom grãos aumentou 29%, e a produção, 166%. Com isso, pou-pamos mais de 50 milhões de hectares de florestas.

A segunda premissa é dada pelo alto preço dos alimentos emtodo o mundo, sinalizando um período interessante de bons lu-cros na atividade rural. Os preços estão elevados por várias ra-zões. A demanda cresceu e a oferta não acompanhou este cres-cimento, inclusive por questões climáticas em várias regiões do

mundo. Com isso, os estoques caíram e os preços subiram, comoé natural. Mas, alem deste fundamento essencial, a especulaçãotambém contribuiu para a alta. Por outro lado, o protecionismoagrícola exacerbado executado pelos países ricos inibe a com-petição leal, criando barreiras muito pesadas para os países emdesenvolvimento acessarem os mercados.

É bem verdade que preços elevados atraem produtores de to-dos os países em busca de lucros, de modo que, se o clima correrbem, em pouco tempo (de dois a três anos), o estoque estaráequilibrado e os preços voltarão a cair. Com um dado: os custosde produção estarão mais altos, porque os insumos sempre fi-cam mais caros quando os produtos agrícolas encarecem.

E aí, tome endividamento e renegociação de dívida.De toda maneira, o cenário é bastante favorável no Brasil, e

esta oportunidade espetacular não pode ser perdida.Mas não há garantia de que será aproveitada.Não obstante as três vantagens comparativas já apontadas –

terra disponível, tecnologia sustentável e gente competente –

O agronegócio brasileiro vem crescendo: de 21 bilhões de dólares exportados em 2000, pulamos para 74 bilhões em 2010.

Silva Júnior/Folhapress

Espetacular!

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24 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

temos uma série de gargalos recorrentes, que não são atacadoscom a necessária visão estratégica.

É o caso da nossa precária logística, observada ano após anonos portos e rodovias brasileiras; também não temos um progra-ma de renda rural comparado aos países desenvolvidos: falta mo-dernizar o crédito rural, implantar o seguro agrícola (inclusive derenda), reformular a Política de Garantia de Preços Mínimos, en-tre outras ações. Não temos uma política comercial consistente:na última década pusemos todas as nossas fichas na OMC, mas aRodada de Doha não saiu do lugar. Neste ponto, uma ação maisagressiva contra os subsídios agrícolas dos países ricos seria ne-cessária. É isso que o Presidente Sarkozy, hoje coordenando o G20,deveria propor. Mas não terá coragem para tanto, e nós temos queser corajosos neste tema. Não fizemos acordos comerciais bilate-rais e perdemos tempo com isso. Não investimos adequadamen-te em defesa sanitária, um sério calcanhar de Aquiles, e precisa-mos colocar mais recursos em tecnologia.

Portanto, falta mesmo muita coisa para aproveitarmos estahistórica chance que o mundo nos oferece.

E, por outro lado, além de não haver um apoio articulado parao setor rural, ainda existe muita gente trabalhando contra: o go-verno impede o capital estrangeiro de comprar terra no Brasil,cria dificuldades em relação à questão ambiental (basta ver a ri-dícula polêmica em torno do Código Florestal) e não modernizalegislações obsoletas como a trabalhista, a tributária etc. É o fa-moso custo Brasil, agravado pela valorização do real.

Apesar disso tudo, o agronegócio brasileiro vai crescendo

aos trancos e barrancos. Em 10 anos, saltou de 6º maior parceiroagrícola global para o 3º lugar. De 21 bilhões de dólares expor-tados em 2000, pulamos para 74 bilhões em 2010. O saldo co-mercial do agronegócio é mais que o dobro do saldo comercialtotal do País. Gera 37% de todos os empregos e corresponde a23% do PIB nacional.

Temos apenas 72 milhões de hectares cultivados, do total de851 milhões do território brasileiro todo, e mais 180 milhões dehectares de pastos, dos quais boa parte degradadas, podendoser usada para plantio de florestas ou agricultura.

Em suma, se enfrentarmos os gargalos que nos afligem, ge-raremos milhões de empregos no País todo, e não apenas nocampo, mas também na indústria, no comércio e nos serviços.Afinal, não se produz nada na área rural sem adubo, semente,defensivo, máquinas agrícolas, equipamentos, corretivos; nãose transporta nada sem caminhão, trem, trilhos, portos; não seestoca nada sem silos e armazéns; não se faz nada sem crédito,planejamento, assistência técnica, pesquisa e extensão rural. Etudo isso é urbano.

Portanto, o agro move a gigantesca roda da economia nacio-nal e ainda alimenta nossa balança comercial, criando rendapara a cidade e o campo, agregando valor na indústria de ali-mentos e a de energia e fibras, como vestuário, fiação e moda.

Precisamos apenas de uma estratégia de governo, bem clarae articulada. Precisamos de regras não intervencionistas. Comelas, o setor privado fará sua parte com vigor, e ninguém se-gura o Brasil.

Sergio Moraes/Reuters

Se enfrentarmos os gargalos que nos afligem, geraremos milhões de empregos no País todo, no campo e na cidade.

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25MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

Poder políticopara o agro

Brasil ganhará se o governo igualar o peso político doagronegócio ao mesmo patamar dos benefícios

socioeconômicos e ambientais que o setor gera para a nação

Fernando Donasci/Folhapress

Thomaz Vita Neto/AE

O setor respondepor 25% do PIB, umterço dos empregos

e 40% do total dasexportações.

Poder políticopara o agro

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26 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

Div

ulga

ção

CesárioRamalhoda SilvaPresidente daSociedadeRural Brasileira

OBrasil ganhará se o governo dapresidente Dilma Rousseffigualar o peso político doagronegócio ao mesmo patamar

dos benefícios socioeconômicos e ambientaisque o setor gera para a nação. Cabe àpresidenta Dilma assumir o compromisso deencampar a valorização do setor rural junto aopróprio governo e à sociedade, tirando o agroda periferia do poder.

Esta posição justifica-se pelo fato que oagronegócio é a maior riqueza do Brasil.Responsável por 25% do PIB e um terço dosempregos, em 2010, o setor contribuiu com40% do total das exportações, registrandoreceita recorde de US$ 76,4 bilhões.

O bom resultado econômico se transformouem indicadores sociais positivos: maior poderaquisitivo do brasileiro em relação aosalimentos, desenvolvimento dos polosagrícolas e regiões adjacentes, conformemostrou o IBGE, e o efeito multiplicador deoportunidades e negócios que o agro irradiapara os outros segmentos da economia.

Os recentes aumentos nos alimentos sãopor razões climáticas, que interferiram nascolheitas e estoques mundiais,desequilibrando a oferta e demanda, bemcomo pela intensa ação especulativa dosfundos de investimento.

Na esfera ambiental, manutenção dasnascentes d'água, sequestro de carbonoproveniente de lavouras, pastagens eflorestas plantadas, proteção da fauna e flora,cuidados com o solo, entre outras ações, sãocontribuições gratuitas que o produtor ruralpresta à sociedade, salvo raras exceções.

O Brasil pode perfeitamente ser a potênciados alimentos, da energia limpa e dosprodutos advindos da combinação daciência com a nossa megabiodiversidade.O agro é o segmento que tem maislegitimidade para liderar este processo,porque é a atividade de natureza maisintrinsecamente ligada ao meio ambiente.

O setor tem genuína competência paracosturar alianças de interesse público paratratar da questão. O poder político para oagro dará ao Brasil a chance de planejar umaestratégia competitiva, ágil e duradoura, comfoco no desenvolvimento sustentável.

Renda

Porém, este redesenho institucional só seráviável se o setor distribuir os dividendos dasua boa performance financeira com oprincipal, mas, simultaneamente, elo maisfraco da cadeia produtiva, o produtor.Especialmente a classe média, espremida entre

Divulgação

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27MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

o poder financeiro de grandes gruposfornecedores de insumos, conglomeradosagroindustriais e gigantes varejistas.

O agro caminha bem, mas o produtor não.Segundo o Ministério da Agricultura, o valorde produção das 20 principais lavouras fechou2010 em R$ 169,41 bilhões, resultado1,5% superior ao obtido em 2009.

Contudo, o cálculo abrange apenas oque é produzido dentro das fazendas,desconsiderando, por exemplo,inflação e custos de transporte.Grosso modo, há um verniz derentabilidade em umasituação, que na ponta dolápis não é bem assim.

Paralelamente, ademanda poralimentos cresce,principalmente, nospaíses emergentes.No entanto, são cada vezmaiores as restrições deáreas agricultáveis nomundo, sendo o Brasil uma daspouquíssimas exceções.

Diante deste cenário, o produtor temque investir cada vez mais em novastecnologias, a fim de incrementar aprodutividade. São gastos com defensivos,

fertilizantes, sementes, maquinário,vacinas, suplementos, recursos humanos,ferramentas de gestão e assim por diante.

Tudo isso custa caro, mas ainda paira afalsa percepção que a atividade rural é umprocesso barato. A indústria alimentíciacobra pela inovação. O produtor nãoconsegue repassar custos, porque ele não dápreço, é refém das cotações dos mercados.

Como resolver esta intrincada equação emque é preciso aumentar a produção, de modoequilibrado com o meio ambiente e queremunere satisfatoriamente o produtor? Estaé uma solução que precisará ser encontrada.

Gestão transversal

Um caminho avança pelo estímulo aotratamento integrado do agro. No passadorecente, a pasta da Agricultura teve ótimosministros, mas seu calibre político aindaé aquém da importância do setor queela representa.

Além disso, a diversidade de políticaspúblicas vinculadas a outras áreas - mas queinterferem diretamente no agro - dificultaações concatenadas, quiçá planejamento.Sem acesso a um conjunto de temas que oinfluenciam, o setor rural fica imobilizado.

Pela sua história de superação e coragem,a presidenta Dilma tem o "DNA" daperseverança e inovação. E o novo tambémpassa pela implementação de umaplataforma de gestão transversal para o agro.

O setor precisa ter mais autoridade paradiscutir os rumos da política agrícola (crédito,

seguro, preços mínimos) e, principalmente,ter assento e voz nos fóruns de decisão

de questões relativas àinfraestrutura, meio ambiente,

trabalho, juros, tributação,negociações

internacionais,segurança alimentar ejurídica, ciênciae tecnologia,entre outras.

Exemplo seriao Ministério

da Agricultura reassumircadeira no Conselho

Monetário Nacional (CMN).Ao ser protagonista das decisões

estratégicas que o impactam, o agro,certamente, trará resultados positivosainda mais rápidos, amplos e consistentespara o País.

Como resolver estaintrincada equação

em que é precisoaumentar a produção,de modo equilibradocom o meio ambiente

e que remuneresatisfatoriamente o

produtor?

Marcos Bergamasco/Folhapress

Newton Santos /Hype

Page 28: Digesto Econômico

28 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

É provável que o economistaPaulo Yokota, 70 anos, devaà sua formação japonesa a sábiacapacidade de extrair lições

proveitosas de tragédias, no caso, orecente terremoto acompanhado detsunami no Japão. Neste depoimentoem primeira pessoa, abaixo, ele relacionauma série de tópicos otimistas e/ouesclarecedores que conseguiu enxergarpor trás das montanhas de escombros que,temporariamente, estão tumultuando asempre bem arrumada paisagem do país.Seus comentários são legitimados pela suaprofunda intimidade com o Japão. Emboranascido no Brasil, Yokota tem numerososparentes lá. Acresce que no momentoestá enriquecendo o seu já prestigiosocurrículo com um site instrutivo intitulado"Ásia Comentada", no qual coloca osinvariavelmente complexos bastidoresdo mundo asiático, particularmenteo Japão, ao alcance de todos.

Este site está sob o guarda-chuva de suaespecialíssima consultoria de assuntoseconômicos voltada para o sol nascente.Aliás, não por acaso, ele aterrissa emTóquio ou Osaka com a frequência dequem vai ao Guarujá ou à Praia Grande.Já o fez mais de 100 vezes.

Paulo Yokota deve ter sido menino-prodígio na escola. Do contrário, não seriadiretor do Banco Central no frescor dos30 anos, em 1971. E nem professor daFaculdade de Economia e Administraçãoda USP. Ou presidente de um pepinochamado Instituto Nacional de ReformaAgrária (INCRA) nos anos 80.

LIÇÕES DOTERREMOTOJosé Maria dos Santos

Yoshikazu Tsuno/AFP

Jiji P

ress

/AFP

Page 29: Digesto Econômico

29MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

O japonês estava rico,acomodado. Agora apopulação tem uma

reconstrução a fazer.Isso motiva os japoneses,

eles são diferentes dosbrasileiros, eles estão em

um arquipélago comespaço limitado. Se todos

não se ajudarem,ninguém sobrevive.

Paulo Pampolin/Hype

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30 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

A verdade

O primeiro aspecto a ser ressaltado refere-se ao noticiário que se seguiu ao terremoto etsunami no Japão. Muitas inverdades passa-ram a ser veiculadas na imprensa mundial,sugerindo a instalação de pânico no Japão.Esta circunstância fez suspeitar de uma guer-ra parecida com a guerra do petróleo que teveo Iraque e agora a Líbia como cenários. Ha-via, e há, a previsão de que nos próximos anosseriam construídas em torno de 1.700 usinasatômicas no mundo, cada uma orçada em 10bilhões de dólares. A tecnologia e a seguran-ça japonesa são consideradas pela Organiza-ção Internacional de Energia Atômica, sedia-da em Viena, a mais segura do planeta. Porcausa disso, a possibilidade de os japonesesreceberem a incumbência de muitos projetosno mundo seria elevada. Parecia haver uminteresse em destruir a boa imagem das usi-nas japonesas. Houve, é claro, terremoto etsunami de graves proporções. Mas 90% donoticiário, inclusive no Brasil, foi equivoca-do, para não dizer falso!

A reconstrução (1)

Foram levantadas dúvidas sobre a capaci-dade de reconstrução do país. Na verdade, foipassada a ideia de que a economia japonesa es-tá estagnada há 20 anos. Mas uma pergunta ésuficiente para desmontar essa suspeita: quemestá investindo na China, que vive um extraor-dinário ciclo de desenvolvimento? Metade dosinvestimentos estrangeiros naquele país, e noSudeste Asiático, é feito por empresas japone-sas. Essas empresas estão crescendo fora do Ja-pão, como, aliás, muitas empresas brasileiras –Vale, Petrobras, Odebrechet etc – trilham osmesmos caminhos, pois não se deve ficar res-trito ao país de origem. Acresce que o Japão temárea muito limitada, poucos recursos naturaise mão de obra extremamente cara. Tudo isso,além do custo elevado da tecnologia, interferena expansão dentro das próprias fronteiras. Demodo que as empresas japonesas estão cres-cendo na China, Vietnã, Índia e Sudeste Asiá-tico como um todo. Em um mundo globaliza-do, não se pode mais considerar os limites dospaíses. Existe o mundo globalizado. O que in-teressa é o Japão e suas circunstâncias juntos.

A reconstrução (2)

O terremoto e o tsunami revelaram algoimportante. Repararam que não caiu ne-

nhum prédio no Japão? A resposta está na in-dústria da construção civil japonesa, que é deponta. Um bom exemplo é a chamada Sky-Tree, que está sendo construída em Tóquio,com 624 metros de altura. Se fosse erguida noBrasil, uma torre dessas proporções teria queser assentada sobre pedras ou alguma estru-tura geológica parecida, muito forte. Porém,a Sky Tree está se apoiando sobre a areia, con-forme a tecnologia de construção dos pré-dios japoneses que se assemelha à das plata-formas marítimas, que ficam imobilizadasenquanto o mar sobe e desce, sofre efeito dosventos e de outros fenômenos meteorológi-cos. Tem elementos de compensação para seajustar a esse cenário. No entanto esse conhe-cimento fica restrito aos especialistas; nãochega ao consumo popular. No passado, eutentei, sem sucesso, vender material de cons-trução para o Japão. Há a exigência de que to-do material desse tipo seja anti-inflamável. Aexperiência demonstrou que em acidentesde terremotos sempre ocorrem incêndiosque se seguiram aos abalos. Isto ocorreu nocélebre terremoto de Lisboa (1755). Depoisem Tóquio e em São Francisco. Por outro la-do, hoje no Japão se constroem prédios de 30ou 40 andares extremamente equipados, emapenas seis meses. Amigos meus que cons-truíram casas lá, relatam que elas são todaspré-montadas. O banheiro, por exemplo,vem completo. É só encaixar no espaço. Idempara a cozinha. Uma casa é montada em doisdias. Esse quadro elimina dúvidas sobre a es-tagnação econômica do Japão e sua capaci-dade de se reconstruir. Com a sucessão deterremotos no país em março, era para havermilhares e milhares de mortos.

O risco do pânico

Outra lição da tragédia japonesa que deve serbem assimilada é o cuidado em evitar a propa-gação do pânico. O governo japonês fez um gran-de esforço nesse sentido, pois uma onda de pâ-nico inviabilizaria toda a mobilização. Um exce-lente exemplo dessa disposição foram as cenasexibidas sobre o tsumani pela rede de TV NHK.As imagens somente exibiram danos materiais:carros, barcos, casas. Não aparecem corpos enem pessoas desesperadas. Foi combinado quenão seriam divulgadas cenas como aquelas queforam vistas em episódio idêntico na Indonésia.Além disso, somente havia autorização para pu-blicar dados confiáveis. Nada de especulações. Onúmero de mortos, efetivamente, era o de corposencontrados; o de desaparecidos, conforme os

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registros policiais. Um dos piores fenômenosnessas situações, talvez o mais danoso, é o boato,que gera pânico e faz as coisas saírem do controle.Os japoneses se engajaram, colaboraram, todoscolaboraram. Significativamente, a imprensa re-velou-se a mais assustada com os acontecimen-tos do Japão. É que eles têm Tóquio como espe-lho, pois a Califórnia – leia-se Los Angeles e SãoFrancisco – está em área de risco semelhante e hámais de 60 anos ouvimos falar da possibilidadede um grande terremoto lá. Eu desconfio que elesnão têm a tecnologia de construção e nem oknow-how de defesa civil do Japão.

A cidadania na tragédia (1)

Muitos sites e blogs informaram, durante ospiores dias do terremoto, que uma garrafa deágua que normalmente custa 90 ienes estava sen-do vendida por quase 400. Mas era coisa de de-kassegui explorando dekassegui. Os japonesesnão mexeram no preço. Não houve qualquer tu-multo na distribuição de alimentos e de água;não houve qualquer conflito nos centros de abri-gos das vítimas; não houve qualquer cotoveladanas filas e nem nos postos de combustível racio-nado. Não se registrou sequer um saque.

A cidadania na tragédia (2)

Não consigo imaginar como se desenrola-ria tragédia semelhante em nosso país. Mas ofato é que precisamos aumentar a consciênciade cidadania sob situação de risco e de perigo.Nós temos pela frente, por exemplo, o aque-cimento global. As possibilidades de chuvasintensas e de inundações vão aumentar e setornar um problema particularmente crucialpara nós aqui em São Paulo. Nós construímosuma cidade toda errada. Ela ocupou as áreasde vale. Ninguém pode construir assim, poisesta circunstância canaliza toda a água. E oquadro não permite instalar estruturas bási-cas de transporte em lugares assim. As aveni-

O iene valorizouapós o terremoto.

O Japão, só nosfundos, tem cerca de500 bilhões dedólares e uma parteestá retornando.

Mike Clark/AFP

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das marginais são extremamente importantespara a cidade. Mas foram feitas sobre várzeas,eliminando a permeabilidade do rio. Há mui-ta coisa a aprender com os fenômenos natu-rais que estão acontecendo mundo a fora. Eabsorver tecnologia.

A tecnologia comanda o mundo. É ela queaumenta a eficiência e pode proporcionar me-lhor bem-estar. E eu digo isso na qualidade deeconomista e de professor de Teoria de Desen-volvimento Econômico.

A volta por cima

Em função da reconstrução, a economia japo-nesa vai crescer bem mais do que antes do ter-remoto. O japonês estava rico, acomodado.Agora a população tem uma bandeira, um de-safio, uma reconstrução a fazer. Isso motiva osjaponeses, eles são diferentes dos brasileiros,eles estão em um arquipélago com espaço limi-tado. Se todos não se ajudarem, ninguém sobre-vive. Aqui, nós moramos em um país maravi-lhoso, extenso. Se chove aqui, pode chover lá,mas não chove acolá. Não chove simultanea-mente em todo País. Vai faltar alimento no Ja-pão? Certamente sim. Eles vão precisar de maisalimentos, produzi-los mais. Por outro lado, ojaponês vai ficar mais traumatizado com usinasnucleares. Não será possível ampliá-las. Asmais velhas vão ser fechadas. Lá não há hidre-létricas, eles não podem usar carvão e petróleo,que são poluentes. O que terão que fazer? Elesvão buscar mais energia eólica e energia solar.Vão utilizar tecnologias mais seguras.

A volta por cima (2)

As siderúrgicas japonesas vão ter que produ-zir mais aço. Não é como o nosso, mas sim comligas especiais para torná-lo flexível. Hoje em dianão se usa mais aço rígido no Japão. As pontes eos prédios devem ser flexíveis. Em Yokohama háum prédio que possui um pêndulo; se o prédiovai para um lado, o pêndulo compensa pelo ou-tro. No Japão se registram diariamente de três a

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O japonês vaificar mais

traumatizado comusinas nucleares.

Lá não háhidrelétricas e

carvão e petróleosão poluentes.Eles vão buscar

mais as energiaseólica e solar.

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quatro terremotos de menor intensidade. É umagelatina, mas é firme. E como a população temtreinamento, em caso de necessidade as pessoasdescem ordeiramente do prédio e vão se reunirdisciplinadamente na praça para serem recen-seadas, conforme ensinam os manuais.

O fim da era atômica

O terremoto e o tsunami também ensinaramsobre os riscos imprevisíveis da energia nu-clear. De agora em diante haverá resistênciapopular no Japão contra as operações de usi-nas nucleares. A propósito, nós deveríamos es-tar apavorados com nossas usinas de Angrados Reis, que foram projetadas para resistir aterremotos de até quatro graus da escala Rit-cher. Nós já tivemos terremoto de 4,5 graus emoutros pontos do País. Angra tem um agravan-te: não há rota de fuga. Tem apenas a BR 101,tanto para o Rio quanto para São Paulo na qualqualquer chuva provoca desmoronamentos.Não podemos subestimar os atuais problemasde contaminação nuclear no Japão. Mas elestêm tecnologia, poupança e recursos humanospara enfrentar a situação. Por que o iene valo-rizou após o terremoto? É que o Japão, só nosfundos, há cerca de 500 bilhões de dólares.Uma parte retornou e/ou está retornando, jáque é necessário comprar bônus do tesouro pa-ra financiar as obras de reconstrução. O gover-no vai ter déficit? Vai. Ocorre que o déficit ja-ponês não tem nenhum tostão do exterior. É tu-do de japonês, é poupança dos japoneses que

está no exterior. Somente na Petrobras os japo-neses têm oito bilhões de dólares emprestados.Há dinheiro japonês nas obras do Rio Tietê, nasobras de saneamento da Baixada Fluminense.Eles também estavam discutindo projetos detrês ou quatro usinas nucleares no Brasil. Pro-vavelmente esses projetos não vão sair mais.

Uma quebra

Não posso falar seu número. Mas há no Bra-sil um banco com dezenas de bilhões de dólaresdos japoneses. Eles estão tremendo, vão ter quepedir ajuda, senão quebram, caso essa quantiaretorne para o Japão.

A lição japonesa

Os infortúnios do Japão e as maneiras comoestão sendo enfrentados nos ensinaram clara-mente que o Brasil precisa basicamente de recur-sos humanos qualificados, tecnologia e poupan-ça. No tópico dos recursos humanos, precisamosaceitar/convocar mais imigrantes. Há uma pre-visão de que o Brasil se estabilizará com 250 mi-lhões de habitantes. É pouco. A China tem quase1,5 bilhão; a Índia, 1,2 bilhão; outros países do su-deste asiático chegam a 1 bilhão cada. Isto é mer-cado. Não me digam que é uma multidão de mi-seráveis. A China tem salário médio de 40 dóla-res. Mas essa quantia equivale a 400 dólares noBrasil devido ao seu poder de compra. O que in-teressa não é câmbio, mas o poder de compra, aexpansão e fortalecimento da classe média.

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As siderúrgicasjaponesas vão terque produzir maisaço. Não é como

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torná-lo flexível.As pontes e osprédios sãoflexíveis.

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Reprodução

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O país,resilientecomosempre,continuasendo averdadeirapotênciada Ásia

O Japãodepois de11 de março

Guy SormanEditor contribuinte doCity Journal, é autorde "A Economia nãoMente" e outros livros.

Tradução: Rodrigo Garcia

Divulgação

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O terremoto que atingiu a região deSendai, no Japão, em 11 de mar-ço, foi o mais violento registradona história do país. O tremor ba-

lançou o chão por mais de dois minutos, deslo-cando o eixo da Terra e provocando um tsunamienorme que matou milhares de pessoas no nor-te do Japão e deixou um rastro de destruição emseu caminho. Somando-se à calamidade, cortesde energia causaram falhas nas bombas de refri-geração da usina nuclear de Fukushima, com orisco de derretimento de vários reatores e cau-sando evacuações em massa.

A crise – descrita pelo primeiro ministroNaoto Kan como a "pior do país em 65 anos,desde a guerra" – levou alguns especialistas apreverem que o Japão nunca vai se recuperar.Essa é uma afirmação absurda, como ficouevidente logo no rescaldo do 11 de março,quando brilharam as notáveis característicasda sociedade japonesa. Acostumado a desas-tres naturais, o povo japonês demonstroupouco pânico mesmo no auge do horror. Os sa-ques, que frequentemente são vistos após ter-remotos em outras sociedades, não ocorre-ram. O Japão se mostrou surpreendentementebem preparado: o terremoto em si, como ficoudemonstrado, causou relativamente poucosdanos nos prédios, mesmo em Sendai, graçasaos severos códigos de construção impostosapós o terremoto de Kobe, em 1995, que matou6 mil pessoas. Talvez o mais notável de tudotenha sido que a máquina de exportação dopaís foi bem pouco afetada. A produção e a en-trega de muitos produtos, indo de chips decomputadores a componentes industriais, sóficaram suspensas por poucas horas, emboraos cortes de energia tenham desacelerado oprocesso esporadicamente.

Mas, mesmo antes do terremoto, os sábioscom frequência esquecem que o Japão conti-nua sendo a principal potência e a sociedademais vitoriosa da Ásia. É verdade, como a im-prensa alardeou, que a economia chinesa cres-ceu mais do que a do Japão e agora é a segundamaior do mundo, após a dos Estados Unidos.Contudo, a China tem 10 vezes a populaçãodo Japão, o que significa que a renda per ca-pita no Japão é 10 vezes maior. E a produçãoeconômica chinesa tem pouca tecnologia,completamente diferente dos produtos sofis-ticados, desenvolvidos e fabricados pelas in-dústrias japonesas. "No fim das contas, nãoestamos em uma corrida", afirma Hideki Ka-to, um dos principais economistas do Japão epresidente da Fundação Tóquio, um centro deanálise de livre mercado.

Contudo, Kato não desconsidera o desafioda China. "Ela ter nos superado em 2010, em-bora esses números não signifiquem muito, en-fraqueceu os japoneses, dando-lhes uma sen-sação de crise."

E as crises animaram os japoneses no passa-do, observa Naoki Inose, um vice-governadorde Tóquio e respeitado historiador. Aliás, elasprovocaram o que muitos japoneses chamamdas duas grandes "aberturas" históricas dopaís. O desastre de 11 de março, junto com oavanço da China, vai provocar uma terceira?

A primeira "abertura" do Japão resultouda famosa incursão do comodoro norte-ame-ricano Matthew Perry à Baía de Tóquio em1853. Até a chegada de Perry, o Japão era ex-tremamente seletivo em negociar com omundo externo. Os únicos europeus que ti-nham direitos de comércio eram os holande-ses (porque não tentavam converter os locaisao cristianismo); eles podiam fazer negóciosem Nagasaki, desde o século 17, mas só comprodutos escolhidos pelo governo japonês.Entre os objetos que eles traziam estavam li-vros, com os quais as elites japonesas apren-deram sobre o Ocidente. Isso foi o suficientepara evitar que o Japão ficasse totalmenteisolado ou atrasado. E os poucos estrangei-ros que o visitavam ficavam maravilhadoscom a qualidade da vida diária, o comércioagitado, a música e o teatro florescentes, e asegurança e a limpeza das cidades bem orga-nizadas. Mas, depois que Perry chegou e exi-giu direitos comerciais para os norte-ameri-canos, o país se tornou mais aberto, nego-ciando livremente com o mundo e permitin-do que ocidentais morassem no Japão, amaioria em Yokohama.

A chegada de Perry também mostrou ao Ja-pão que ele tinha diante de si dois caminhos:sofrer uma colonização ocidental, como a Chi-na teve, ou se tornar tão forte quanto o Ociden-te, usando sua tecnologia. A partir de 1868,sob o imperador Meiji, o Japão escolheu o se-gundo caminho. Meiji enviou emissários àEuropa e aos Estados Unidos para aprende-rem sobre a indústria deles. Ele também con-vidou engenheiros britânicos, juristas france-ses e especialistas militares alemães para iremao Japão. Mas o caminho da modernização dopaís não foi só baseado na imitação: o Japão ti-nha muita experiência em algumas indús-trias, como têxtil e metalurgia. Infelizmente,os militares do Japão, intoxicados por seu pró-prio crescimento, acharam que finalmenteiriam erguer um império comparável com oeuropeu na África e o russo na Sibéria. A ideia

Kazuhiro Nogi/AFP

A crise – descrita peloprimeiro ministroNaoto Kan comoa "pior do país em65 anos, desdea guerra" – levouespecialistasa preverem queo Japão nuncavai se recuperar.

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chegou tarde demais, porém. O colonialismoestava acabando no mundo todo e a luta do Ja-pão por um império iria terminar na bombaatômica de Hiroshima e na derrota do país pa-ra as forças norte-americanas em 1945. Essasegunda crise – a vitória e a ocupação norte-americana – produziu uma segunda "abertu-ra", mas de um tipo diferente: Em 1947, o Ja-pão adotou uma constituição com influêncianorte-americana e se tornou uma democracia.Sua democracia cresceu mais meritocrática eindividualista, descartando todos os rema-nescentes da antiga ordem feudal.

O Japão também se tornou uma usina deforça econômica, conseguindo taxas de cres-cimento espetaculares com dois dígitos nosanos 60 e, com a economia amadurecida, sau-dáveis taxas de um dígito em grande partedos anos 70 e 80. A inovação era fantástica.Depois que a crise do petróleo em 1973 levouos preços do petróleo às alturas em todo oplaneta, os empresários japoneses foram ospioneiros em miniaturizar carros e eletrôni-cos, reduzindo os custos com energia e tor-nando o "made in Japan" um símbolo inter-nacional de emergência. As práticas empre-sariais japonesas, utilizadas principalmentena fabricação de veículos, como a produçãoJust in Time, que reduz o desperdício ao for-necer as partes só quando a produção precisadelas, e a Total Quality Management, quemelhorou radicalmente os padrões dos pro-dutos – logo se tornaram moda nas escolas denegócios dos Estados Unidos e terminaramse tornando a norma nas fábricas norte-ame-ricanas também. "Como não tínhamos ne-nhuma outra riqueza do que nossos recursoshumanos, não tínhamos outra opção a nãoser gerenciar nossos recursos melhor do queos outros países", observa Kato.

A idade do ouro durou até 1991, quando oestouro de uma bolha imobiliária levou o Ja-pão para uma profunda recessão. Duranteduas décadas, o Japão viu pouco crescimentoeconômico. O que explica a estagnação? Fu-mio Hayashi, um discípulo do norte-america-no Edward Prescott, ganhador do Nobel deEconomia, oferece uma resposta: "A econo-mia japonesa parou de crescer porque os japo-neses pararam de trabalhar". Ao imitar os nor-te-americanos e os europeus, os trabalhado-res japoneses começaram a ter férias maiores eaproveitar os fins de semana mais tranquila-mente; os servidores públicos se aposentaramcada vez mais cedo. A produção industrial dopaís caiu em proporção direta à redução dehoras trabalhadas, observa Hayashi. O rápidoenvelhecimento da população – as famílias ja-ponesas raramente têm mais de dois filhos e asmulheres, especialmente as instruídas, cadavez mais escolhem não se casar – sem dúvidatambém contribuiu para a recessão porqueprovocou uma diminuição da força de traba-lho, começando em 2005. Assim, só para man-ter os atuais níveis da produção nacional épreciso que todos trabalhem mais.

As políticas keynesianas do governo japo-nês fracassaram em acabar com a recessão.Não se passou um ano desde 1991 sem o qualo Japão não aumentasse seu gasto público,

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tentando acelerar o cres-cimento. Graças à farradas despesas, o Japãoagora tem muitas pontespara lugar nenhum e vá-rios aeroportos desne-cessár ios , mas poucocrescimento (A teoriaeconômica não é o únicomotivo para esses proje-tos; muitos políticos fo-ram acusados de recebersubornos relacionados àsobras). Imbuído do mes-mo espírito keynesiano,o banco central do Japãobaixou as taxas de jurospara zero há uma décadae as mantém lá na espe-rança de provocar novosinvestimentos com o di-nheiro fácil. Isso tambémnão funcionou, em parteporque as empresas japo-nesas, quando desejamse expandir, tendem acontar com os recursospróprios, não com crédi-to ou com o modesto mercado de capitais ja-ponês. As chamadas décadas perdidas do Ja-pão demonstraram que nem gastos públicos,nem políticas monetárias relaxadas, vão re-viver uma economia quando o incentivo aotrabalho desapareceu – uma lição que o go-verno Obama obviamente ignorou.

A licenciosidade do governo inchou gigan-tescamente a dívida pública nesse período.Hoje ela é cerca do dobro do PIB anual, umadas maiores proporções do mundo, já antesdo 11 de Março. A dívida representa um de-safio importante, mas o fato é que o Japãoatualmente detém a maior parte do dinheiropara ele mesmo comprá-lo em algum mo-mento, porque os cidadãos que investem suaseconomias em títulos do Tesouro confiam emseu Estado e não exigem um grande juro emtroca. Assim, o peso da dívida não é tão assus-tador quanto o dos Estados Unidos ou o daEuropa. No final, contudo – em uma décadatalvez, como a população do Japão continua aenvelhecer e a diminuir – a dívida vai se tor-nar realmente intimidadora. O Japão terá depegar dinheiro emprestado no mercado inter-nacional, como o Tesouro dos EUA e os euro-peus já fazem, e pagar seus credores interna-cionais com taxas de juros maiores. O peso dadívida se tornará esmagador. Economistas ja-

poneses têm pressionadoo governo a atacar o pro-blema da dívida agora,antes que seja tarde de-mais, mas os políticostêm sido irresponsáveisaté o momento. O ex-pri-meiro-ministro ShinzoAbe, um conservador,acredita que só uma rebe-lião contra os gastos dogoverno, do tipo do TeaParty, consegue desper-tar a classe política. Masessas revoltas fiscais nãofazem parte da tradiçãopolítica japonesa. É maisprovável que os impostosdo Japão, que continuambaixos em comparaçãoaos das economias maisavançadas, aumentembastante antes de as des-pesas diminuírem.

No começo de 2011, aStandard & Poor's redu-ziu a classificação de cré-dito dos títulos japone-

ses. O Japão não apresentava um grande riscode calote, mas a agência parecia preocupadacom a falta de uma estratégia eficiente para re-duzir o déficit. A redução da população japo-nesa, prevista para cair dos 127 milhões atuaispara 100 milhões em 2046, não ajuda a ques-tão. Com déficits já gigantescos, como o paísvai pagar por seu número crescente de apo-sentados? A média da expectativa de vida doJapão atualmente é a maior do mundo: 86 anospara as mulheres e 78 para os homens. Na Eu-ropa, a imigração compensou, até certo ponto,um envelhecimento da população parecido.Mas o Japão precisaria permitir que mais de500 mil trabalhadores imigrassem anualmen-te para compensar suas mudanças demográ-ficas e os japoneses implacavelmente seopõem à imigração, receosos de perturbaruma cultura muito homogênea. Só 1,7% dapopulação é estrangeira e até esses estrangei-ros – em sua maioria filipinos e chineses quetrabalham como "trainees" com tarefas queexigem pouca habilidade – só têm permissãopara ficar no máximo por três anos.

Essas dificuldades econômicas deixaram osjaponeses impassíveis, provavelmente porquenunca em sua história eles estiveram tão bem: avida tem sido confortável, os pais são ricos osuficiente para mimar seus poucos filhos, a

Jerry Lampen/Reuters

Não se passou umano desde 1991 semo qual o Japão nãoaumentasse seu gastopúblico, tentandoacelerar o crescimento.Graças à farra dasdespesas, o Japãoagora tem muitas pontespara lugar nenhume vários aeroportosdesnecessários, maspouco crescimento.

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aposentadoria é satisfatória, o sistema de saú-de é de ótima qualidade e a burocracia gover-namental é eficiente, pelo menos em compara-ção com os outros países da Ásia.

Talvez o mais surpreendente: a taxa de de-semprego tem sido de 5% ou menos há décadas.Como uma economia estagnada consegue for-necer tanto emprego? A resposta está na culturajaponesa. As empresas grandes e famosas con-sideram que é obrigação delas oferecer tantosempregos quanto forem possíveis e não demitirninguém. Para permitir que essas companhiasrealizem esse objetivo ambicioso (e obviamentenão econômico), os trabalhadores concordamcom salários flexíveis. Durante as recessões, porexemplo, eles podem não receber os bônus, quepara alguns trabalhadores representam 30% darenda anual, ou podem ter suas horas de traba-lho reduzidas. Para os menos privilegiados –que não trabalham nas principais empresas –milhares de pequenas lojas de varejo e compa-nhias de serviço agem como um amortecedorsocial. O emprego pleno no Japão é menos umaconsequência do crescimento econômico e mais

um pré-requisito social, um dever moral tantopara o empregador quanto para o empregado.Todo mundo trabalha, ou finge, até quando nãohá muito para se fazer.

De fato, os japoneses – especialmente a gera-ção mais jovem – gostam tanto da vida japonesaque aparentemente perderam o interesse pelomundo exterior. "É um sinal claro dessa presun-ção o fato que os estudantes japoneses não sen-tem mais necessidade de estudar no exterior",diz Naoyuki Agawa, um vice-presidente daKeio University. Em 1990, 59 mil estudantes ja-poneses estudaram em campus dos EUA, hoje,apenas 26 mil estudam. A presunção deles écompreensível. Afinal, um diploma de umauniversidade japonesa geralmente é o suficien-te para qualquer um conseguir um emprego de-cente em umas das principais empresas, garan-tindo um trabalho para a vida toda. Reforçandouma atitude de olhar para si mesmo entre os jo-vens, completa Agawa, existe a admiração de-sinibida dos outros asiáticos. Anualmente, cer-ca de 3 milhões de turistas da China, Taiwan eCoreia do Sul voam para o Japão, maravilhados

Jiji Press/AFP

Os pais são ricoso suficiente

para mimar seuspoucos filhos, a

aposentadoria ésatisfatória, o

sistema de saúde éde ótima qualidade

e a burocraciagovernamental é

eficiente

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com o luxo da vida japonesa. Como o colunistachinês Lu Hua escreveu numa revista de Pe-quim, o Japão já conquistou o que os chinesesprocuram: "Uma mistura perfeita de culturatradicional, amenidades modernas e liberdadepessoal". A revolução comunista chinesa podenão ter sido necessária para modernizar seupaís afinal, medita ele em privado.

Além disso, a maioria dos japoneses está sa-tisfeita com o status quo, porque ele ainda nãoprovocou uma queda significativa na renda pes-soal. Apesar de a população japonesa estar dimi-nuindo, o PIB teve um aumento médio de 1% ou2% nos últimos cinco anos. (Um aumento de 2%se traduz em US$ 800 a mais para um trabalha-dor japonês ganhando em média US$ 40 mil porano; em comparação com os US$ 400 que o os-tentoso crescimento anual de 10% traz para umtrabalhador ganhando a média da renda chinesade US$ 4 mil) O PIB do Japão consegue crescerporque sua economia provavelmente é a maisavançada tecnologicamente no mundo – e amais inovadora. As marcas japonesas não domi-nam mais o mercado consumidor como já domi-naram, é claro: os Hyundais coreanos são tãobons quanto os Toyotas, e o iPod da Apple tor-nou obsoleto o Walkman da Sony. Mas ao mudarseu foco de um mercado consumidor para ummercado de business-to-business, a indústria ja-ponesa tem tido um enorme sucesso.

Sempre que usamos um telefone celular, voa-mos num avião ou até andamos de bicicleta, es-tamos consumindo componentes "made in Ja-pan" fabricados por centenas de empresas, in-cluindo muitas de médio porte com nomes des-conhecidos no exterior. Um terço do valor de umiPhone 3G vem de componentes feitos por em-presas japonesas; só 5% vem da China, onde amão de obra barata monta o aparelho. A películainvisível protegendo a tela do telefone, bem co-mo a tela de sua TV, foi fabricada no Japão. Umterço das peças do Boeing Dreamliner 787, quedeve estrear logo, é feito de fibra de carbono cria-da no Japão. Quase todas as usinas nucleares domundo usam um reator fabricado pela Japan Ste-el Works. A Shimano domina o mercado globalde câmbio de bicicletas. A margem de lucro des-ses componentes geralmente é enorme. Empre-sas sul-coreanas, taiwaneses, alemãs e algumasnorte-americanas estão tentando competir, maso Japão tem mantido uma distância até agora.

Essa vantagem competitiva é resultado daenorme quantidade de dinheiro investido empesquisa pelo setor privado e pelo Ministério daIndústria (Meti), que trabalha bem próximo aempresas particulares. A vantagem tambémvem de um característico senso japonês de per-

feição, bem como de uma longa tradição secularde know-how industrial e fábricas de proprieda-de familiar. "Somos uma nação de engenheiros",diz Kato. "Nós terceirizamos as atividades de bai-xa tecnologia para a China e para outros países,mas o Japão nunca se desindustrializou da formaque os norte-americanos fizeram."

O impacto econômico do 11 de Março nessaeconomia avançada não será tão severo quantoalguns analistas acreditam. A região nordeste dopaís, bastante atingida, está 320 quilômetros docentro industrial do Japão. E a reconstrução já co-meçou, com fundos públicos e privados. A dívi-da pública inchada vai inchar ainda mais, é ver-dade. Mas os japoneses devem ter poupanças su-ficientes para pagar pela reconstrução, o que pro-vavelmente deve aumentar um pouco a taxa decrescimento econômico no curto prazo. Um pro-blema maior pode ser o que vai ocorrer com oprograma nuclear do Japão, que estava ganhan-do um novo reator a cada 24 meses, gera um terçoda eletricidade do país e deu ao Japão uma fortevantagem econômica na produção de energia,incluindo os reatores exportados. A crise nuclearpós-terremoto pode não só reduzir dramatica-mente a procura pelo know-how nuclear japo-nês; ela também pode levar o próprio Japão a fi-car mais dependente do petróleo estrangeiro, al-go que não é um bom presságio para o mundo in-dustrial como um todo.

Toru Hanai/Reuters

Yoshikazu Tsuno/AFP

O PIB do Japão conseguecrescer porque sua economiaprovavelmente é a maisavançada tecnologicamente nomundo – e a mais inovadora.

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Mesmo antes de março, o avanço e a crescenteautoconfiança da China abalou a presunção fe-liz, com baixo crescimento, próspera, que olhapra si mesmo, do Japão. "Estamos em crise há 20anos, mas não queríamos admitir", observa Abe."Agora a China nos acordou!" O choque teve umcomponente militar. Em outubro, uma traineirachinesa deliberadamente bateu contra um barcoda Guarda-Costeira japonesa em águas dispu-tadas perto da ilha japonesa de Senkaku, que aChina reivindica. O incidente ocorreu seis me-ses após militares norte-coreanos – que, muitosjaponeses acreditam, agiram em colaboraçãocom a China – torpedearam um navio da Mari-nha sul-coreana e um mês antes de a Coreia doNorte bombardear civis na ilha sul-coreana deYeonpyeong. Claramente, afirma Abe, a Chinaestá testando seus vizinhos. Também em 2010,

os chineses testaram os japoneses de outra for-ma, diminuindo a venda de minerais raros en-contrados principalmente na China e que são in-dispensáveis para componentes eletrônicos.

A resposta do Japão, defende Akira Kojima,deveria ser uma terceira grande "abertura". Ex-colunista do Nikkei Daily, o principal jornal denegócios do Japão e atualmente chefe da Fun-dação Nikkei, um centro de análises, Kojimaacredita que "um Japão envelhecido, que olhapara si mesmo, não será capaz de conter as am-bições de nossos vizinhos – ou enfrentar o de-safio econômico da competitividade". Mas doque consistiria essa "abertura"?

Por um lado, diz Kojima, "os estudantes ja-poneses deveriam se tornar mais globaliza-dos". Poucos deles falam inglês fluentemente,o que não é o caso de outros países asiáticos. Asgrandes organizações empresariais do Japão,reconhecendo a necessidade de uma aberturamaior, já estão oferecendo bolsas para japone-ses estudarem no exterior. Enquanto isso amontadora de veículos franco-japonesa Re-nault-Nissan tem promovido jovens executi-vos não-japoneses a posições de destaque. E asduas principais empresas de logística, Raku-ten e Fast Retailing, decidiram que o inglês seráa língua de trabalho delas no futuro.

Outra forma de "abrir" o Japão é promover suaimagem no exterior. Um jeito de se fazer isso éprestando ajuda em outros países, o que o Japãopode fazer na África, na Índia e no Oriente Médiosem ser acusado de neoimperialismo, pois o paísnunca foi uma potência colonizadora nessas re-giões. A cultura também é um bem estratégico,acredita o governo. Embora não seja frequente-mente reconhecido, o Japão é hoje o segundomaior exportador do mundo de conteúdo cultu-ral depois dos Estados Unidos: filmes, quadri-nhos, animações, música pop, moda, comida edesign japoneses são admirados em todos os lu-gares. As empresas japonesas são líderes mun-diais em desenvolvimento de software para vi-deogames. Os filmes de animação de HayaoMiyazaki rivalizam com os da Disney em popu-laridade no mundo todo. A firma de arquiteturaSANAA projetou o New Museum no Lower EastSide de Manhattan com andares parecendo cai-xas surgindo em cima da Rua Bowery. "Esse softpower precisa de reforço e promoção constan-tes", afirma Kazuo Ogoura, presidente da JapanFoundation, um braço do Ministério das Rela-ções Exteriores. Particularmente notável é o sur-gimento dos mangás, o estilo japonês de quadri-nhos, como um fenômeno global. Para explicarsua popularidade, Ogoura aponta para sua men-sagem frequentemente antiautoritária: os heróis

O impacto econômicodo 11 de Março nessaeconomia avançadanão será tão severo

quanto algunsanalistas acreditam.

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são no geral jovens comba-tendo organizações autori-tárias sinistras, um temaque ressoa entre os garotosamantes da liberdade emtodos os lugares.

Um tipo mais literal deabertura seria permitir quemais estrangeiros imigras-sem. Os defensores maisentusiasmados de umaimigração maior, incluindoKato e Kojima, propõemuma "imigração seletiva"ao estilo suíço, que aumen-taria o número de imigran-tes trabalhando no Japão epermitiria que eles ficas-sem mais tempo, contudoeles teriam de obter umcontrato de trabalho antesde entrar no país e o deixa-ria após o fim do contrato.Mas até Kato está cético queessa proposta modesta aju-daria a desativar a bombadas aposentadorias prestesa explodir. "Nenhuma denossas coligações fracas enenhum de nossos gover-nos de curta duração vão li-dar seriamente com a imi-gração ou com a dívida",afirma. "Uma alternativamelhor é considerar nossapopulação envelhecida co-mo uma oportunidade econômica". Todos ospaíses desenvolvidos, acha ele, têm de encontraruma forma de negociar com o número gigantes-co e crescente de pessoas dependentes. E o Japãoestá à frente da curva nessa questão, desenvol-vendo sistemas sofisticados que poderão reduziros custos com cuidados médicos: casas inteligen-tes, por exemplo, conectadas a controladores demovimentos, funções do corpo e alarmes quedisparam se algo parecer estar errado. Com otempo, essas inovações vão se tornar mais con-fiáveis e uma grande fonte de aumento de expor-tação, afirma Kato. Assim, a tecnologia pode re-solver o enigma da aposentadoria e ao mesmotempo atrair consumidores internacionais.

Contudo, esses reparos tecnológicos só fun-cionam até certo ponto, segundo Yoichi Funa-bashi, o mais influente colunista do Japão e ex-editor do importante jornal de centro-esquerdaAsahi Shimbum. Uma boa liderança políticatambém será necessária, não só para reduzir a

dívida pública, mas tam-bém para proteger a Ásia -e o mundo l ivre – da

agressão chinesa. Para Fu-nabashi, o desenvolvi-mento mais promissor emambas as questões é a Par-ceria Transpacífica, umorganismo iniciado porCingapura e Nova Zelân-dia e atualmente sendodebatido no Japão. A par-ceria criaria uma zona delivre comércio entre as de-mocracias do Oceano Pa-cífico, que poderia incluiros Estados Unidos, masnão a China, pelo menosnão até ela fizer reformas ese tornar uma democraciae uma boa cidadã interna-cional. Esse acordo dariaum empurrão no cresci-mento japonês, graças àindústria inovadora dopaís, e assim aliviaria o pe-so da dívida, bem comoiria deter as ambições im-periais e os maus modoseconômicos da China, co-mo a falta de respeito pelapropriedade intelectual.

A Parceria Transpacífi-ca tem um amplo apoio noJapão, incluindo os cincoprincipais jornais do país,

que geralmente estão em desacordo. Se os líderespolíticos conseguissem agir unidos e assinarem aParceria Transpacífica, acredita Funabashi, o Ja-pão se tornaria o eixo da parceria. Num país ondeos colunistas de jornais são geralmente mais res-peitados do que os primeiros-ministros, Funa-bashi aposta no sucesso da Parceria Transpacífi-ca. E se a China continuar a agir agressivamente,uma aliança será ainda mais provável. Essaagressão também vai encorajar uma coordena-ção mais forte entre as poderosas Marinhas daCoreia do Sul e do Japão. (Os militares japonesesestão bem mais equipados do que os da China,pelo menos até agora. A China ainda tem de lan-çar seu primeiro porta-aviões, que está progra-mado para começar a funcionar em 2013; o Japãojá tem inúmeros porta-helicópteros em operação.E as Forças Armadas Japonesas já cooperam bempróximas com a dos Estados Unidos, que têm ba-ses permanentes no Japão – uma presença que amaioria dos japoneses agora aceita.)

Uma boaliderança políticatambém seránecessária, não sópara reduzir adívida pública, mastambém paraproteger a Ásia – e omundo livre – daagressão chinesa.

Jaime Oide/Folhapress

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Apesar de suas preocupações com a Chi-na, Funabashi apoia uma política de "engaja-mento" do Japão com sua rival histórica – eele não acha que os cidadãos japoneses nãodevem esperar até que o governo deles deemo primeiro passo. Grupos de cidadãos e em-presas, afirma, devem começar a trabalharcom seus colegas. A Ásia terá uma chancemelhor de se tornar uma área de livre comér-cio pacífica, comparável à União Europeia,quando esses contatos se proliferarem.

Quando visitei o Japão no começo deste ano,umas semanas antes do terremoto, eu tenteiadivinhar se a geração jovem e retraída encon-traria um apelo por uma visão para fora, ex-pansiva. A maioria dos jovens que observei es-tava ocupada jogando videogames em tablets.Alguns jovens, chamados okutu, dizem que vi-vem em mundos virtuais, se conectando exclu-sivamente com outros que compartilham amesma paixão. Eles parecem patologicamentedisfuncionais. Mas quem sabe? Eles podemterminar inventando o próximo Facebook.

Apesar de toda a fascinação deles com omundo digital, os japoneses ainda leem livros.E três dos títulos mais vendidos entre os jovens

sugerem uma resposta à questão da abertura.Um sucesso recente, acredite se quiser, é umaantologia de aforismos de Friedrich Nietzsche,com mais de 2 milhões de exemplares vendi-dos. O crítico literário Akiyama Yasuo diz queesses jovens leitores esperam encontrar a feli-cidade resistindo à pressão ainda forte dos paise da comunidade na vida diária do Japão – apa-rentemente com a ajuda de Nietzsche, conside-rado como o individualista essencial! Um se-gundo livro de sucesso é mais previsível: PeterDrucker sobre gerenciamento. O guru empre-sarial da Califórnia sempre foi uma estrela noJapão. (Fique feliz com Nietzsche e faça dinhei-ro com Drucker?) E o terceiro livro, a Arte daSimplicidade, é de Dominique Loreau, umaautora francesa vivendo no Japão que pareceser apreciadora da filosofia zen.

É claro, pode-se atribuir o sucesso de Loreauà nostalgia por um Japão antigo, fechado, pré-Perry. Mas os japoneses jovens, fascinados pe-los três escritores estrangeiros, podem estarmais globalizados do que imaginam. Desde 11de março, o olhar do mundo se focou nova-mente no Japão. Talvez os japoneses estejamcomeçando a retribuir o olhar.

Gardel Bertrand/Hermis.fr

Alguns jovens,chamados okutu, dizemque vivem em mundosvirtuais, se conectandoexclusivamente comoutros que compartilhama mesma paixão.Eles parecempatologicamentedisfuncionais. Mas quemsabe? Eles podemterminar inventandoo próximo Facebook.

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AAmérica Lati-na pareceria àprimeira vista de-masiado distante, e

de poderio econômico insufi-ciente, para merecer ênfase nu-ma discussão sobre o cenário japonês do futuro. Ospaíses em desenvolvimento do Sudeste da Ásia pare-ceriam sem dúvida mais relevantes em termos de co-mércio e investimentos. Entretanto, a América Latina,no contexto global do futuro japonês, assume crescen-te importância, quer como área de comércio, quer co-mo palco de investimentos.

Lembremos, primeiramente, que alguns países donosso continente, e particularmente o Brasil, abri-gam número substancial de imigrantes do Império doSol Nascente. Sei que se somarmos os japoneses da

primeira, segunda e terceiragerações, a população de ori-

gem nipônica no Brasil daria pa-ra formar uma grande cidade ja-

ponesa. Fiéis à tradição Meiji de in-tenso esforço educacional, os japone-

ses de São Paulo – o nosso mais importante Estado –representam não mais de 4% da população total ecerca de 12% da população universitária. A primeiraonda de imigrantes foram fazendeiros e trabalhado-res agrícolas; com a segunda, se desenvolveram ati-vidades urbanas de comercialização; no terceiro es-tágio, a presença japonesa se tornou importante naindústria e tende a se reforçar continuamente com aimportação de capitais e técnicas para a indústriatêxtil, a construção naval, equipamento elétrico e,mais recentemente, a petroquímica.

A nova superpotência

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Existe outra razão para que, a despeito dasclamorosas necessidades dos países em desen-volvimento da orla asiática, o interesse do Ja-pão na América Latina deva ampliar-se. É que,enquanto no Sudeste da Ásia a penetraçãojaponesa ainda desperta suspicá-cia e provoca ressentimento, emvirtude dos traumas remanescen-tes da dominação sobre a Coreia, dainvasão da China e da ocupação deoutros países da "esfera de co-pros-peridade" durante a Segunda GuerraMundial, o surgimento do poder eco-nômico e da presença do Japão naAmérica é contemplado com um con-trapeso, até certo ponto desejável, à su-premacia norte-americana.

Consideremos, agora, os efeitos daascensão do Japão ao status de super-potência sobre a economia dos países la-tino-americanos sobre vários ângulos:como parceiro comercial, como investi-dor, como fonte de assistênciatécnica e como modelo de de-senvolvimento econômico.

Como parceiro comercial, o Ja-pão já é importante para a AméricaLatina. As exportações japonesaspara este continente atingiram, em1970, 1,2 bilhão de dólares; e as im-portações, 1,4 bilhão. A América Lati-na representou assim 5,2% de suas ex-portações e 9,2% das importações. Estecomércio, outrossim, continua aumen-tando rapidamente. A taxa de cresci-mento foi de 26%, de 1960 a 1970, nas ex-portações japonesas para a América La-tina, e de 18% nas importações. Sob váriosaspectos, o Japão tem condições melhoresdo que os Estados Unidos e a maioria dospaíses industrializados para um novo sur-to de comércio com a América Latina. Umadas razões é que os japoneses são muito maisdependentes de matéria-prima importadado que os Estados Unidos, e possuem menorfacilidade para garantir seu abastecimentodessas matérias-primas na África e na Ásia doque os países da Europa Ocidental, que aindamantêm contratos e vínculos comerciais da erada colonização. Ainda num outro ângulo, tendoquiçá maior necessidade de importar e menoresinvestimentos na exploração mineral fora desuas fronteiras, os japoneses tendem a ser maismaleáveis ao negociar com os países latino-americanos, onde movimentos nacionalistas es-tão forçando uma revisão do antigo sistema deconcessões de minerais.

Marco antonio Teixeira/O Globo

Roberto deOliveiraCampos

Economista com pós-graduação pela

Universidade GeorgeWashington (EUA), foi

diplomata e ministro doPlanejamento do governoCastelo Branco. O texto a

seguir faz parte de umaconferência feita por

Campos em um simpósiosobre o futuro da empresa

privada, realizado emKyoto, no Japão.

Digesto Econômico nº 220 -julho/agosto de 1971

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46 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

Uma terceira consideração é que a economiajaponesa possui maior grau de complementari-dade com a América Latina do que os EstadosUnidos e até mesmo a Europa Ocidental. Os Es-tados Unidos, por exemplo, concorrem com aArgentina na exportação de trigo e milho, algo-dão e soja; com o México na exportação de milhoe algodão. O Japão é nitidamente um importa-dor de alimentos e a necessidade de espaço fí-sico para a expansão industrial tende a contrair

O novo investidor

Do ponto de vista dos investimentos, a im-portância das relações entre o Japão e a Amé-rica Latina não deve ser subestimado.

Poderá causar surpresa a muitos que os in-vestimentos japoneses na América Latina sãovastamente mais importantes do que na Ásia.Na realidade, de acordo com dados de 1967, aparcela latino-americana no total dos investi-mentos externos japoneses foi de 27%, com-parada a apenas 19% para a Ásia. Esses inves-timentos na América Latina chegaram mes-mo a igualar os investimentos japoneses naAmérica do Norte, e se a recente onda de in-vestimento no Brasil para a petroquímica, mi-neração, siderurgia e construção naval for le-vado em conta, a América Latina poderá já terse tornado o mais importante escoadouro pa-ra investimentos japoneses.

São várias as motivações para o atual surtodos investimentos japoneses. Algumas sãoconvencionais e já bem conhecidas. A neces-sidade, por exemplo, de assegurar fontes for-necedoras de matérias-primas é a principalexplicação para investimentos em mineração.Outra é o desejo de conquistar posição dentrodos mercados industriais locais, protegidospor barreiras protecionistas. Mas há algunsmotivos específicos da atual conjuntura japo-nesa. A enorme e quase embaraçosa acumu-lação de reservas cambiais gera pressão inter-nacional sobre o Japão para que procure solu-ções para os problemas do superávit cambial.E dentre as três possíveis soluções – valoriza-ção do iene, afrouxamento das barreiras pro-tecionistas e exportação de capital – esta últi-ma parece ser a mais atraente, embora não sejaprovável que se revele suficiente. Isto parececriar oportunidades promissoras para que aAmérica Latina passe a importar capital deum país que, ainda que caracterizado comouma superpotência econômica, encontra-segeograficamente distante e não constitui umasuperpotência política ou militar capaz de in-fluenciar a nossa política interna.

O neocolonialismoe o clima de investimentos

A emergência do Japão como grande expor-tador de capital coincide, todavia, com umaonda de nacionalismo e de instabilidade polí-tica na América Latina, que vem deteriorandoo clima de investimento. O Chile deu uma gui-nada em direção ao socialismo, enquanto quePeru e a Bolívia adotaram políticas de naciona-

Tendo quiçá maiornecessidade de importare menores investimentosna exploração mineralfora de suas fronteiras,os japoneses tendem aser mais maleáveis aonegociar com os paíseslatino-americanos.

ainda mais o setor agrícola. Se o Japão se desin-teressasse gradualmente pela indústria têxtiltradicional, evoluindo para indústrias tecnolo-gicamente mais sofisticadas – o que seria na ver-dade uma atitude extremamente inteligente –deixando as indústrias tradicionais de tecnolo-gia mais rotineira para os países subdesenvol-vidos e para a região sul dos Estados Unidos,onde considerações políticas impedem essasubstituição tecnológica: se isso viesse a aconte-cer, essa complementaridade aumentará aindamais. Note-se que se o primeiro grande surto deexpansão das importações de minério de ferropela moderna indústria japonesa beneficiouprimeiramente a Austrália, o Brasil começa asurgir como importante fornecedor. Isso vai aoencontro da necessidade japonesa de diversifi-car suas fontes de suprimento e do desejo de, emcontrapartida, alargar o mercado brasileiro pa-ra as manufaturas japonesas.

O Peru e o Chile, importantes fornecedoresde minério de ferro e metais não-ferrosos, pro-curam também fortalecer seus laços comer-ciais com o Japão, quando mais não seja paradiminuir sua dependência em relação ao mer-cado norte-americano.

Marco Antonio Teixeira/O Globo

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lismo radical. Esses três países influenciaram aformulação da política e investimento dos paí-ses do chamado "Grupo Andino" num sentidoassaz restritivo, seja em virtude de exigência departicipação majoritária de acionistas nacio-nais, seja em virtude da exigência de naciona-lização compulsória, que obriga o investidorestrangeiro a transferir os seus investimentos àproprietários locais após determinado períodode tempo. Embora a Colômbia e o Equador ti-vessem preferido adotar um tra-tamento mais liberal para os in-vestidores estrangeiros, é duvi-doso que se arrisquem a rompercom o mercado andino apenaspara suavizar as regras sobre in-vestimentos estrangeiros.

Dentre os grandes países lati-no-americanos, México, Brasil eVenezuela remanescem como osúnicos candidatos viáveis parareceber investimentos em grandeescala, por quanto a Argentinaatravessa um período angustiosoe atribulado de instabilidade po-lítica. O México, em contraparti-da, tem logrado conciliar estabili-dade política e desenvolvimentoeconômico por longo período,embora o seu sistema político dêsinais de cansaço e haja recrudes-cências de pressões nacionalistas.A Venezuela, após longa tradiçãode instabilidade política, embar-cou agora numa experiência de-mocrática razoavelmente bem-sucedida, mas ainda demasiadafrágil e muito recente, vindo tal-vez a sofrer severo teste nos pró-ximos anos, em virtude de gritan-tes desigualdades na distribuição da renda eagudos problemas de desemprego.

O Brasil parece estar fadado a se tornar nestehemisfério a área mais propicia para o desen-volvimento dos investimentos japoneses, nãosó por causa da existência de um mercado maisamplo, mas também pela presença de uma im-portante população japonesa, crescentementemiscigenada, facilitando a aceitação cultural esocial do nissei. Nossa estabilidade políticaconstitui fenômeno recente e o Brasil ainda nãologrou formular um modelo político adequa-do, capaz de assegurar continuidade ao admi-rável progresso alcançado na organização doesforço desenvolvimentista, que propiciouuma taxa de crescimento em termos reais decerca de 9% nos últimos três anos. Pesados to-

dos esses fatores, os japoneses continuarão aencontrar no Brasil clima mais atrativo de in-vestimentos do que na maioria dos demais paí-ses em desenvolvimento, tanto na América La-tina como no Sudeste da Ásia.

Existem vantagens incontestes na condiçãojaponesa de ter atingido o status de superpo-tência econômica, sem se ter ainda tornadouma superpotência política ou militar. Pelomenos por enquanto, os investimentos japone-

ses são olhados no Brasil comouma desejável diversificação defontes de capital, e os japonesesnão exibem a presença contun-dente que aflige as grandes em-presas multinacionais america-nas, maiores em dimensão e ine-vitavelmente aspergidas pelos te-mores locais de dominação pelagrande potência, temores ridicu-lamente exagerados, mas quenem por isso podem ser sumaria-mente descartados.

Assistência técnica

Um terceiro ângulo sob o qualme proponho examinar a posiçãojaponesa é como fonte de ajuda ex-terna e assistência técnica. O Japãoocupa o segundo lugar, apenas ex-cedido pelos Estados Unidos, co-mo fornecedor de ajuda externaem termos absolutos, e está subs-tancialmente adiante dos EstadosUnidos se essa ajuda for medidacomo porcentagem do PIB. Por vá-rias razões, acredita-se que o prin-cipal empuxe do esforço japonêsna área assistencial e de ajuda téc-

nica se concentrará no Sudeste da Ásia. Isso por-que, em primeiro lugar, vários desses países en-contram-se em nível inferior de desenvolvi-mento ao encontrado na América Latina. Em se-gundo lugar, o Japão tem maior senso deobrigação moral para com aquela área, quantomais não seja para se penitenciar de passadasaventuras militares que feriram a região. Emterceiro lugar, os laços culturais entre os povosasiáticos são mais fortes, e menores as barreiraslinguísticas, que constituem sempre um fatorinibidor no que tange a assistência técnica.

É tempo de passar agora ao meu tópico favo-rito de indagação: a relevância do Japão comomodelo de desenvolvimento para a América La-tina. Isso tem muito a ver com a exportabilidadedas instituições. É assunto para outro dia.

Newton Santos/Hype

Se somarmos osjaponeses da primeira,

segunda e terceiragerações, a populaçãode origem nipônica no

Brasil daria paraformar uma grandecidade japonesa.

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O inusitado surto econômico alcançado pe-lo Japão transformou em fábula e moda o estu-do da experiência japonesa. No bojo da presen-te onda nacionalista que açoita a América La-tina, discute-se seriamente o "modelo japonês"de desenvolvimento econômico, consideradoum "modelo nacionalista de crescimento", emvirtude da ênfase dada ao protecionismo in-dustrial e do princípio de autossuficiência, quelevaram o país a sustar os investimentos du-rante a era Meiji.

É um caso curioso de "à chacun son plaisir". Osnacionalistas de esquerda aprovam o preconcei-to contra os investimentos ao longoda história japonesa, e se dispõempor isso até mesmo a perdoar omortal pecado da adoção do mo-delo capitalista. Quanto ao nacio-nalismo de direita, esses se deli-ciam quer com o aspecto chauvi-nista, quer com a tendência capita-lista do comportamento japonês.

A popularidade do modelo ja-ponês na América Latina descu-ra contudo algumas importantesconsiderações. Primeiramente,os japoneses, da mesma formaque os ingleses, embora compe-tentes na exportação de merca-dorias (os britânicos encontram-se agora algo decadente neste se-tor), são conhecidos como cria-dores de instituições não expor-táveis e moldes peculiares decomportamento coletivo.

Ademais, a simpatia naciona-lista pelo modelo japonês para aAmérica Latina baseia-se tanto emerros de história como em falsasanalogias. Na realidade, os inves-timentos estrangeiros no Japão re-presentaram papel muito mais im-portante do que geralmente se supõe. Anterior-mente à restauração Meiji, houve amplos recur-sos a cap i ta l es t range i ro na forma deempréstimos ao Shogunato, destinados princi-palmente aos financiamentos de importação denavios e material bélico; mas recursos estran-geiros foram também canalizados para algunsinvestimentos produtivos, como a usina de açode Yokosuka, financiada com capital francês.Houve também na fase do Shogunato uma em-presa de capital misto para o desenvolvimentodas minas de carvão Takoshima. Mesmo após ainauguração da era Meiji, ocorreram, de acordocom o professor Takahashi, dois exemplos deingresso de capital, um correspondente de um

empréstimo britânico para financiar parte daconstrução de estrada de ferro Tókio- Yokoha-ma, e outro destinado ao bizarro propósito depagar a aposentadoria dos samurais...

É verdade, contudo, que no período de 1873a 1879 a entrada de capital estrangeiro foi pra-ticamente nula. Paradoxalmente, parte da mo-tivação para a atitude xenofóbica do impera-dor Meiji com relação a investimentos estran-geiros tem origem no conselho de um impor-tante cavalheiro, o qual nunca foi conhecidonem por sua sobriedade, nem por sua culturaeconômica: o general Grant, presidente dos Es-

tados Unidos. Em reunião com oimperador Meiji, em setembro de1879, conforme reportado nos ar-quivos pessoais do príncipe Iwa-kura, o general Grant teria dito:

"A única coisa para que se deveatentar em matéria de emprésti-mos estrangeiros é evitar contraí-los. Se alguém toma dinheiro em-prestado e não pode pagá-lo co-mo lhe aprouver, torna-se real-mente uma criatura digna decompaixão, desprovida de força einteiramente escravizada ao cre-dor. Não há situação mais miserá-vel do que essa. Lembremo-nosdo Egito, da Espanha e da Turquiae contemplemos sua mísera con-dição. Aquilo que normalmentedeveria ser benefício para o país,torna-se pesadamente empenha-do e o que deveria ser a riqueza deum país, fica reduzido a nada nes-sas circunstâncias..." "Peço a vos-sa excelência", continuou o gene-ral Grant, dirigindo-se ao impe-rador Meiji, "que compreenda oseguinte: algumas nações gostammuito de emprestar dinheiros às

nações pobres. Por esse meio bajulam-nas etambém desrespeitam as autoridades das na-ções pobres. Seu propósito ao emprestar di-nheiro é alcançar poder político para si pró-prias, de forma que estão sempre a espreita deoportunidades para emprestar dinheiro".

A política Meiji de autossuficiência financei-ra, registrou aspectos positivos e negativos. Olado positivo foi ter tornado necessárias a extra-ção de poupança interna, através de uma drás-tica reforma tributária, e a adoção de medidasde contenção nas despesas governamentais. Is-to, por outro lado, levou ao fechamento ou a pri-vatização de empresas públicas ineficiente-mente administradas e também ao desenvolvi-

Reprodução

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49MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

mento mais interno daqueles setores já existen-tes, como a agricultura e o artesanato, quepuderam ser ativados sem novos investimentosde capital. O lado negativo é que retardou a taxade formação de capital, constituindo o fator cau-sal mais importante do fenômeno que o profes-sor Takahashi chamou de "depressão econômi-ca anormal dos anos 1880/1884", durante osquais a construção da moderna economia japo-nesa quase chegou a um ponto morto.

A importação de capital alienígena foi resta-belecida em 1898 quando se julgou que a econo-mia se havia tornado suficientemente forte pararesistir à dominação colonial. Daípor diante, os investimentos es-trangeiros aumentaram rapida-mente e, já em 1903, o Japão rece-bera 200 milhões e ienes, somaq u e a t i n g i u , e m 1 9 1 3 ,1.970.000.000 (cerca de 985 mi-lhões de dólares americanos aocâmbio da época). Parte dos in-vestimentos tomou a forma de in-vestimentos estrangeiros diretosem companhias mistas como, porexemplo, a Shibaura Works (má-quinas elétricas), a Tokyo-Eletric ea Steel Co. Os investimentos es-trangeiros em indústrias japone-sas cresceram rapidamente de ummontante de 5 milhões de ienesem 1904 para 29 milhões em 1912.

As falsas analogias

Além de uma leitura errônea da história, oexcessivo entusiasmo da América Latina pelomodelo japonês se baseia em falsas analogias.O fato é que o Japão jamais necessitou de recor-rer a nenhuma das principais funções do capi-tal estrangeiro – reforço poupança local e trans-missão de organização e tecnologia – em graucomparável ao necessário na América Latina.O Japão sempre evidenciou uma extraordiná-ria capacidade de poupança interna, não ape-nas em termos de moderado consumo de mer-cadorias, mas também por causa de suas mo-destíssimas exigência de amenidades urbanas,sob a forma de habitação e conforto sanitário.

Os latino-americanos, ao contrário, não sãofamosos por sua propensão a poupar; porfiamantes em emular os hábitos ocidentais de con-sumo, sem possuírem nem a autodisciplinados samurais, nem a ética dos puritanos!

Em segundo lugar, o Japão, através do admi-rável programa educacional do período Meiji,desenvolveu rapidamente um arsenal de pes-

soal técnico qualificado, enquanto o esforçoeducacional na América Latina tem sido ina-dequado, tanto qualitativa quanto quantitati-vamente, em virtude de ênfase dada à educa-ção humanista e literária, em detrimento daeducação técnica.

No tocante ao talento gerencial, nada existena América Latina de comparável ao estoquede liderança representado pela classe dos sa-murais, tornado disponível pela abolição do"Shogunato" em seguida à restauração Meiji.No momento que o comércio e a indústria fo-ram socialmente reabilitados com ofícios dig-

nos, a vocação guerreira dos sa-murais transmutou-se rapida-mente na busca de poder econô-mico, da mesma forma que oespírito puritano, ao legitimar ariqueza como evidência de ben-ção divina deflagrou uma febreacumulativa na Inglaterra e nosEstados Unidos.

O nível razoavelmente eleva-do do treinamento tecnológicodisponível no Japão no início daera industrial, após a SegundaGuerra Mundial, possibilitou suarápida evolução de uma forma detecnologia imitativa para umatecnologia adaptativa, passandofinalmente ao estágio da tecnolo-

gia criadora. Às vezes esses três estágios doprogresso tecnológico são simultaneamentediscerníveis em distintos setores: os japonesessão ainda imitadores em matéria de tecnologiaespacial e de computadores, mas já completa-ram a fase adaptativa no tocante à tecnologiaeletrônica e petroquímica, e são indubitavel-mente criadores de nova tecnologia na indús-tria siderúrgica, na construção naval e em algu-mas fibras sintéticas.

Se olharmos o problema objetiva e não emo-cionalmente, como os latino-americanos costu-mam fazer, chegaremos à conclusão inexorávelde que a América Latina está muito menos equi-pada do que o Japão para abrir mão dos inves-timentos estrangeiros, se quiser alcançar razoá-vel nível de desenvolvimento tecnológico e decapacidade organizacional em breve prazo.

O cenário maior

Afastar-me-ei agora destas consideraçõesprosaicas sobre a economia japonesa para dis-correr, a partir da ótica latino-americana, sobreo cenário mais amplo em que o Japão é hojeprotagonista como superpotência estreante

Reprodução

O fato é que oJapão jamais necessitoude recorrer a nenhumadas principais funçõesdo capital estrangeiro –reforço poupançalocal e transmissãode organização etecnologia – em graucomparável aonecessáriona América Latina.

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num mundo até recentemente bipolar, masque parece caminhar para um novo equilíbrio,segundo a fórmula dos 3 e ½ – Estados Unidose Rússia, a nova Europa dos Dez e o Japão comomeia superpotência.

Parece claro que a história obrigará o Japão adesempenhar um papel político muito maisimportante no Extremo Oriente, da mesma for-ma que os Estados Unidos foram catapultadosà proeminência política em decorrência da as-censão econômica ocorrida após a SegundaGuerra Mundial. Não creio que a postura do gi-gante econômico possa se conciliar indefinida-mente com uma silueta política extremamentemodesta, em que pese a posição de fé idealista,abundante entre os estadistas japoneses.

procura do bem-estar e das artes; ou seja, da-quilo que hoje se descreve pelo delicioso rótu-lo "a qualidade da vida".

Não subestimo, de forma alguma, o pesodos argumentos contrários à nuclearização doJapão, e admiro profundamente a autoconten-ção dos líderes japoneses que conosco se entre-tiveram nesta conferência, recomendandounanimemente uma postura modesta e nãoexibicionista no tocante ao poderio político mi-litar. Sem dúvida, existem razões poderosas efatos inarredáveis que aconselham esta postu-ra humilde. Primeiramente o fato de que asatuais potências nucleares vizinhas – a Rússia ea China – veriam com suspeita e inquietaçãoqualquer ensaio japonês de nuclearização.

Afinal de contas, ambos ospaíses foram, em épocas passa-das, derrotados militarmentepelo Japão, e é altamente pro-vável que sejam também der-rotados em matéria de cresci-mento econômico, sendo aliáse s t e u m c l a ro e x e m p l o d emaior eficácia do modelo capi-talista de desenvolvimento,comparativamente ao socialis-ta. Quanto aos Estados Uni-dos, sua posição tende a sermais ambivalente. Infensos,de um modo geral, à prolifera-ção nuclear prefeririam um Ja-pão não nuclearizado. De ou-tro lado, a estreia japonesa nocampo nuclear poderia servirde contrapeso ao armamentis-mo chinês e soviético.

Em segundo lugar, tem o Ja-pão uma triste experiência deatraso na implantação de uma

adequada infraestrutura social e na adoção demedidas de bem-estar e conforto, comparati-vamente ao mundo ocidental, em virtude, an-tes, de sua concentração obsessiva em gastosmilitares e, hoje, de seu gigantesco crescimentona indústria pesada.

Em terceiro lugar, os japoneses estão agoradescobrindo as sutis alegrias do poder econômi-co, sem a harmonia e o desconforto de engaja-mentos militares e sem os desapontamentos ine-rentes ao exercício da responsabilidade política,pelas superpotências, no cenário mundial.

Mas visualizo que na parte final desta décadaa Índia poderá se nuclearizar como reação à pos-tura da China. Isso criaria uma crise psicológicade prestígio e de status, o que tentaria os japone-ses a flexionar também sua musculatura tecno-lógica. Na verdade, um dos problemas das po-

Imagino que, no início da década de 1980, oJapão terá se tornado uma potência nuclear.Esta convicção não resulta de qualquer análi-se política mais percuciente, mas de uma cren-ça de certa forma ingênua na dinâmica dos"Brudenbrook", a que se refere o livro de Tho-mas Mann. Acredito que as nações, como asfamílias, atravessam ciclos: a primeira gera-ção procura a riqueza; a segunda, o poder; e aterceira, as artes. O Japão procurou anterior-mente inverter a marcha da dinâmica "bru-denbrookiana". No período de interguerra,buscou o poder antes de alcançar a riqueza.Agora, acredito, está apto a retomar o curso fa-tal da dinâmica dos "Brudenbrook". Possui ri-queza e, eventualmente, procurará o poder,enquanto os Estados Unidos marcharão gra-dualmente para um terceiro estágio, insto é, a

Jaime Oide/Folhapress

Parece claroque a históriaobrigará o Japãoa desempenharum papel políticomuito maisimportante noExtremo Oriente,da mesma formaque os EstadosUnidos após aSegunda GuerraMundial.

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tências não-nucleares é uma sensação injustifi-cada, mas real, de inferiorização tecnológica.

Acresce, ao mesmo tempo, que o enormeaumento planejado na produção de energiaelétrica termonuclear resultará em subprodu-tos físseis, enquanto que o processo de centri-fugação poderá baratear consideravelmenteo enriquecimento de urânio. Tudo isso secompõe para gerar uma tentação quase que ir-resistível, que somente poderia ser abafadaou por altos princípios morais ou por grandeaperfeiçoamento no sistema de cooperaçãointernacional. Talvez, o máximo a que possa-mos aspirar é que os japoneses se restrinjam auma postura refreada de nuclearização inter-mediária, como a da "force de frappé" france-sa. Trata-se, em termos econômicos, de umdesperdício, mas atende a considerações deprestígio de status e atenua o sentimento deinferiorização tecnológica.

Talvez devêssemos adicionar mais uma àscategorias de nuclearização alinhadas porHerman Kahn: além da capacidade agressiva eda capacidade deterrente, teríamos uma nu-clearização de prestígio.

Com relação às perspectivas mais amplas dodesenvolvimento japonês, sou menos afoito

que as predições de Herman Kahn, o qual vê oJapão sobrepujando a Rússia em 1980, e os Es-tados Unidos antes do fim do século. Vejo sé-rias limitações, algumas de difícil transposi-ção, ao indefinido crescimento japonês. Emprimeiro lugar, há o confinamento de base ter-ritorial e intimidantes problemas de poluição.Há, em segundo lugar, uma reação mundial,incipiente, de protecionismo, face ao agressivosurto exportador que o Japão teria de manterpara preservar sua altíssima taxa de cresci-mento. Note-se, em terceiro lugar, que a coesãoda sociedade japonesa e sua eficácia desenvol-vimentista poderá ser de certo modo erosadapela dissensão interna e pela diferente escalade valores sociais da nova geração, mais volta-da para o bem-estar do que para o desenvolvi-mento à outrance.

Entretanto, mesmo uma taxa de crescimentoalgo mais modesta que a atual faria do Japão umfator gigantesco nas relações mundiais. A gran-de esperança do Sudeste da Ásia, das outras na-ções em desenvolvimento, e mesmo do mundointeiro, é que o poderio econômico da nova su-perpotência seja manipulado sabiamente e mo-bilizado para servir à ideologia do desenvolvi-mento e não à excitação de conflitos.

Yuriko Nakao/Reuters

Mesmo uma taxa decrescimento algo mais

modesta que a atualfaria do Japão um

fator gigantesco nasrelações mundiais.

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REFORMATAR A REFPaulo Pampolin/Digna Imagem

REFORMATAR A REFPatricia Cruz/LUZ

Quando não se sabe onde está emuito menos para onde se querir, é inevitável ficar parado.Quando muito, propor uma mu-

dança tímida – só para dizer que seja uma refor-ma. Aparentemente essa parece ser a atual tô-nica da reforma tributária no Brasil. Todos que-rem tal reforma, mas ela é tida como uma dasmais difíceis de serem realizadas.

Um bom retrato do desconhecimento doatual estado das artes da tributação envolve adistribuição do ônus tributário entre as famí-lias. Nem por um acaso de Deus a carga médianacional atingiria igualmente todas as famíliasbrasileiras. Mas, pelas características de nossosistema tributário, ele que já era muito injusto,ficou ainda mais nos últimos anos.

Pesquisa divulgada pela FIPE (ver Zockun,2007), aponta que, em 2004, a incidência tribu-tária média representava 48,9% da renda dasfamílias do primeiro decil, com renda de até 2salários mínimos, enquanto, no outro extremo,a mesma proporção caia para 26,3% no últimodecil, das famílias com renda superior a 30 sa-lários. Posteriormente, o IPEA (2009) tambémdivulgou, ainda que em informes mais curtos,cálculos que não apenas confirmam a regressi-vidade do sistema tributário, como que ela teriasido ampliada nos últimos anos (1). Atualizadaa distribuição familiar da carga até 2008, foiconstatado novo aumento da incidência sobreos mais pobres para 53,9% da renda, contra 29%dos mais ricos (ver tabela a seguir). Pior do que asfamílias mais pobres suportarem uma carga tri-butária 86% superior à das mais ricas foi desco-

José RobertoR. AfonsoEconomista do BNDESe Doutor em Economiapela Unicamp. Este artigoreproduz parcialmentetrechos do livro Crise,Estado e EconomiaBrasileira, no prelo.

REFORMATAR A REF

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ORMA TRIBUTÁRIAbrir que tal regressividade avançou em mais deuma década no País – em que pese incentivosfiscais concedidos para bens de consumo po-pular e muitos discursos realizados. Se esta jáera mal distribuída em meados da década pas-sada, depois que foram criadas a CPMF e a CI-DE e fortemente majorados o PIS e a COFINS, ainiquidade piorou ainda mais – a carga dobrousobre a classe média alta, muito aumentou so-bre os mais pobres, enquanto o menor impactofoi sentido sobre os mais ricos.

Este debate precisa ser remetido ao cresci-mento e ao tamanho expressivo das contribui-ções na carga tributária brasileira. Quais alter-nativas para diminuir essa injustiça?

A alternativa mais comumente levantadaé aumentar a tributação da renda e, sobretu-do, do patrimônio (alguns lembram do im-posto sobre grande fortuna, nunca regula-mentado). Mas, se a riqueza é mais concen-trada do que a renda, não é simples tributá-la. Com exceções notórias, como a França(aonde impostos sobre propriedade chegampróximo de 4,5% do PIB), ou ainda Canadá,Islândia, Israel e EUA (que conseguem arre-cadar em torno de 3% do produto), a maioriados países, mesmo os mais ricos, não conse-gue extrair do capital uma parcela muito re-levante de recursos públicos. Dos tradicio-nais impostos sobre patrimônio e transmis-são, o Brasil arrecadou 1,3% do PIB em 2009.O IPVA arrecada cada vez mais que o IPTU noPaís como um todo (respectivamente, 0,64%e 0,45% do PIB em 2009). O mesmo fenômenotambém se repete quando analisados indivi-dualmente os municípios. O IPVA arrecadamais que o IPTU em 93% dos municípios – in-clusive alguns grandes, ricos e organizados(como Curitiba, Belo Horizonte, Manaus,Uberlândia e Ribeirão Preto, dentre outros;São Paulo e Rio são dos poucos em que se ar-recadam mais IPTU do que IPVA).

O imposto sobre herança é tão incipiente(0,05% do PIB ou R$ 1,7 bilhões), que arrecadaum terço a menos que a parcela federal no se-guro obrigatório para mortes no trânsito. Pior

ORMA TRIBUTÁRIAORMA TRIBUTÁRIA

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ainda, a carga do territorial ru-ral mal chega à segunda casadecimal: 0,01% do PIB (R$ 0,4bilhões). Se nem conseguimoscobrar tradicionais impostospatrimoniais, como arriscarem um difícil, para não dizerexótico, imposto sobre gran-des fortunas? Ainda assim, nahipótese (politicamente) im-possível de um brutal aumentona tributação sobre o patrimô-nio, que rendesse 1% do PIB,isoladamente pouco se muda-ria na distribuição da incidên-cia de uma carga global entre36% e 38% do PIB, dependendoda metodologia.

Imposto de renda é outro de-safio. Como substituir impostode renda das empresas pelosdos indivíduos se boa parte dosque mais ganham não são maistrabalhadores assalariados? Essa discussão es-tá umbilicalmente ligada a das contribuiçõesdos empregadores sobre a folha salarial, naqual incidem as alíquotas mais altas do mundosobre uma base de salários que em relação aoPIB deve ser das mais baixas do mundo. Com-paração internacional, com a Europa, eviden-cia uma brutal diferença no peso da economiaconstituída pela base salários: quando os salá-rios e encargos sociais respondiam por 40,9%do PIB brasileiro em 2006, a mesma proporçãoera de 64,4% na Zona do Euro, variando de60,4% em Portugal até 74,8% na Suécia emmeados da década (IPEA, 2006).

Quantos são e quem são os assalariadosque hoje estão sujeitos a maior alíquota doIRPF? É mais uma das informações preciosaspara esse debate que a Receita Federal conti-nua devendo ao País. É bem provável que estaseja uma base muito estreita e composta basi-camente por servidores e empregados do se-tor público (2) e outros poucos funcionários degrandes empresas. Majorar alíquotas do IRPFpara atingir um contingente tão limitado po-de trazer pouco resultado financeiro – se al-cançar só trabalhadores com carteira assina-da. Isso porque muitos daqueles que perce-bem as maiores renda não são alcançados pelo

IRPF – quando as recebem co-mo pessoas jurídicas.

Os trabalhadores de maiorrenda serem remunerados co-mo se empresas fossem não éum fenômeno novo nem exclu-sivo do Brasil, mas talvez a do-sagem aqui seja mais elevada.Vejamos algumas das poucasevidências disponíveis. Em2006, apenas 44,7% dos 97,5 mi-lhões que formavam a popula-ção economicamente ativa noBrasil eram contribuintes parainstituto de previdência emqualquer trabalho. Enquanto osque ganhavam mais de 10 salá-rios mínimos respondiam por30% da folha em 1988, nem che-gam perto de 10% em 2004, oque evidência a radical mudan-ça na distribuição dos emprega-dos por faixa de salário que

ocorreu no pós-Constituinte. Na última conso-lidação de IRPF divulgada pela Receita Federalpara o ano de 2003, observa-se que entre as ren-das informadas nos quadros acessórios da de-claração contrastam: de um lado, que 3,8 mi-lhões de contribuintes informaram ter recebidode décimo terceiro cerca de R$ 8,7 bilhões; de ou-tro, apenas 300 mil declararam rendas de lucrose dividendos de R$ 20,8 bilhões. Em termos mé-dios, no primeiro caso, os assalariados recebe-ram um salário médio de R$ 2,2 mil, enquantono segundo caso, um conjunto de acionistas re-cebeu R$ 5,8 mil/mês. Ou seja, as pessoas físicasque declaram ter sacado lucros e dividendos(como no caso das ditas empresas personalíssi-mas) em 2003 representavam menos de 2% dototal que entregou declaração e, em princípio,ganhavam 2,6 vezes mais que os assalariados.

O mesmo fenômeno também acaba se refle-tindo na composição das contribuições previ-denciárias clássicas. As mudanças realizadas nopós-Constituinte foram impressionantes: ao secomparar a distribuição dos empregados em1988 com a dos contribuintes em 2009: enquantodisparou os integrantes da faixa até 3 salários(de 21% para 81,4% do total), despencaram nasfaixas de maior renda, sobretudo com saláriosuperior a 10 mínimos (o peso relativo caiu de

(1) Numa primeira apuração da regressividade tributária, o IPEA(2008) inovou ao comparar a distribuição da carga tributária porrenda familiar entre 1995/96 e 2003/04: a carga aumentou em 73,4%para famílias com renda até 2 salários mínimos; o mais alto incrementofoi de 101,9% para ganhos entre 10 e 15 salários; e a menor variação,

Enquanto os queganhavam mais de10 salários mínimosrespondiam por 30% dafolha em 1988, nemchegam perto de10% em 2004, o queevidência a radicalmudança na distribuiçãodos empregadospor faixa de salárioque ocorreuno pós-Constituinte.

de 46,9%, foi imposta às rendas superiores a 30 salários(2) Em 2007, as administrações públicas (sem empresas estatais)respondiam por 42% do IR retido na fonte sobre rendimentos dotrabalho, embora certamente empregassem uma parcela muitomenor do total de trabalhadores brasileiros.

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31,5% para 7,7%), e mesmo no segmento entre 5e 10 salários (de 30% para 5,7% do total, no mes-mo período). Essa drástica mudança no perfilde contribuintes implica em sério dano parapreceito do regime de partilha em que os empre-gadores de assalariados de maior renda deve-riam subsidiar os de menor renda.

Mesmo nos últimos anos, em que as maiorestaxas de crescimento econômico resultaramem uma intensa recuperação do emprego for-mal, importa atentar para uma mudança cru-cial na composição dos contribuintes por faixade rendimento (3). Desta forma, segundo esta-tísticas da previdência social, em 2009, o con-tingente de 45,3 milhões de contribuintes em-pregados era dois terços superior ao que existiaem 2000 (incremento absoluto de 18 milhões),mas, ao desdobrar por faixa de renda, se veri-fica que só aumentou o número de contribuin-tes com renda até 3 salários mínimos (com ex-pressivas variações de +175% dos que ganha-vam até 1 salário e +163% entre 1 e 2 salário mí-nimo) e caíram em termos absolutos dasrendas superiores – em uma proporção direta,quanto maior a renda, maior o decréscimo re-lativo (variação de -58% dos contribuintes comrenda acima de 40 salários mínimos, -54% entre30 e 40 salários ou -43% entre 20 e 30 salários).

Os números são eloquentes no sentido deque a recente formalização e mesmo geraçãode novos postos de trabalho abrangeu um in-cremento de trabalhadores de baixa renda(com participação crescente dos contratadospor micro e pequenas empresas enquadradasno regime tributário simplificado) enquanto sereduziu (em termos absolutos) aqueles de ren-da mais elevada. Segundo o Anuário da Previ-dência Social, entre 2000 e 2009, o total de vín-culos com o regime geral da previdência au-mentou 75% (ou 9,4 milhões), sendo que a mes-ma variação foi de 93% no caso dos optantes doSimples contra 69% nos não optantes. Em 2009,quase um quarto dos vínculos já era vinculadoa esse regime especial de tributação.

Paradoxalmente, com essa mudança de perfilde renda dos contribuintes, quanto mais cresce ocontingente de empregados, mais se enfraqueceo princípio da subsidiariedade cruzada no qualfoi estruturado o regime geral de previdência so-cial no Brasil. Outro problema respeita ao enco-lhimento relativo da base. A massa salarial tam-bém se revela diminuta em proporção do PIB

(3) Ver informações detalhadas e completas sobre a previdênciasocial em seu anuário estatístico: a última edição, com dadosaté 2009, está disponível em http://bit.ly/fpvqul.

(4) O detalhamento dessas fontes consta da receita decontribuições divulgada pela STN em http://bit.ly/dIEIy4.

Na economiamoderna, comterceirizaçãoavançada, não hácomo discutira tributação darenda dissociadada tributaçãodos salários.

com base nas estatísticas da previdência social de2009: o somatório do valor das remunerações doscontribuintes empregados e das pessoas físicasequivalia, respectivamente, a 17,9% e 20,4% doPIB, dimensões relativamente reduzidas para otamanho da economia brasileira.

Resta aos seus gestores recorrer cada vezmais a expedientes que fogem a clássica tribu-tação dos salários na tentativa de alcançar o tra-balho organizado de outra forma. É o caso da re-tenção na fonte (ou seja, dos contratantes) no ca-so da aquisição de serviços junto a empresas es-pecializadas na alocação de pessoal (chamadade sub-rogação) – explicou 7,6% das receitas

normais de contribuições previdenciárias. Ou-tras formas envolvem o regime especial das mi-croempresas (Simples), cuja base da contribui-ção patronal é o faturamento (e não a folha), e acontribuição especial de órgãos públicos quecontratam celetistas para cargos em comissão –respectivamente, 6,3% e 8,6% do total arrecada-do em 2009. Por meio destas três rubricas (quenada têm a ver diretamente com salários, os em-pregadores recolheram (R$ 41,9 bilhões) o equi-valente a 60% do que contribuíram sobre a folhasalarial (R$ 70,3 bilhões) em 2009 (4).

Na economia moderna, com terceirizaçãoavançada, não há como discutir a tributação darenda dissociada da tributação dos salários, as-sim como distinguir mercadorias e serviços pa-ra fins de tributação. Não adianta tratar como

Masao Goto Filho/e-SIM

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caso de polícia o que é evidentemente um casode política à forma de organização e tributaçãodo trabalho no País, especialmente aquele demaior formação e renda.

Pode até ser que a melhor forma de taxar essesegmento seja via regimes especiais de presun-ção de lucro e/ou valor adicionado e os simpli-ficados para micro e pequenas empresas. Masisto não deveria resultar apenas de (mais) umaopção das autoridades fazendárias pelo princí-pio da comodidade: o que dá menos trabalhopara fiscalizar, mas permite muito arrecadar,cuja CPMF era sua expressão máxima (ao mes-mo tempo, quase sempre foi ignorado o caráterregressivo dessa contribuição, inclusive pelosdefensores da área social ou da saúde). Aliás,equívoco importante era supor que a CPMF in-cidia apenas sobre indivíduos e, como os maispobres não possuem conta bancária ou pouco amovimentam, escapariam de sua incidência e otributo ainda seria visto como progressista. Po-rém, ele incidia também sobre a pessoa jurídicae, segundo estudo da Receita Federal a partirdo ano-base 1999, menos de 10% da base daCPMF seria vinculada ao IRPF. Ao constituirmais um tributo indireto sobre produção e con-sumo e na hipótese de repassado aos preços, aprofessora Maria Helena Zockun simulou quea CPMF reproduziria e ampliaria a regressivi-dade já apontada nos estudos divulgados pelaFIPE – quanto maior a renda da família, menorera a incidência (entre os dois extremos da es-cala de renda, a CPMF equivalia a 2,19% da ren-da familiar de quem ganhava até 2 salários mí-nimos em 2004 e caia para 0,96% das famíliascom renda superior a 30 salários mínimos).

A formulação das políticas tributária e so-cial precisa considerar a composição recenteda renda disponível das famílias brasileiras.

Segundo as últimas contas nacionais divul-gadas pelo IBGE, para 2006, em que pese o forteincremento do trabalho formal nos últimosanos, ordenados e salários equivaliam a 32,6%do PIB, apenas 0,3 pontos do produto acima doobservado em 2000, e respondendo por apenas52% da renda disponível bruta das famílias (ou46% da ajustada, quando incluídas transferên-cias sociais em espécie). Mesmo incluindo osaltos encargos sociais, o total da remuneraçãodos empregados subia para 40,9% do PIB, mui-to abaixo dos padrões internacionais.

Na origem dos demais recursos, nota-seque, em 2006, as rendas da propriedade (co-mo juros, dividendos e retiradas) equiva-liam a 9,5% do PIB ou 29% do que ganharamna forma de salários (e certamente com umaconcentração muito maior). O rendimentode autônomos também equivalia à outra par-cela de 9% do PIB. Já os benefícios sociais che-gavam a 15,5% do PIB em 2006, tendo cresci-do a 1,9 pontos do produto nos últimos seisanos, de modo que já representam pouco me-nos que metade de toda a massa de saláriospaga na economia.

Dentre os benefícios, comenta-se à parte osde assistência social em numerário (dentreeles, o bolsa família), que chegaram a 0,81% doPIB em 2006 (incremento de 0,6 pontos do pro-duto desde 2000, explicando 31% do incre-mento do total de benefícios recebidos no mes-mo período). Por outro lado, as rendas de jurosrecebidas pelas famílias (5,07% do PIB em

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2006, sendo que 60% dos juros pagos na econo-mia foram pela administração pública) supe-ram em 6,2 vezes os benefícios assistenciais re-cebidos no ano. A distância entre os dois com-ponentes da renda familiar é expressiva e suadistribuição por extrato de renda, quandoaberta e cotejada as duas, deve revelar como osgastos públicos com juros são muito mais con-centrados do que os gastos públicos com assis-tência aos mais pobres.

Enfim, ao se pensar em reforma tributáriapara valer, o ideal seria montar uma nova es-trutura a partir de uma estratégia de desen-volvimento econômico e social. Em um pas-sado mais distante, quando o País era umaeconomia fechada por vocação, não haviamaiores problemas em adotar impostos "emcascata" e alíquotas marginais elevadas doimposto de renda. Agora, se a globalização éinevitável e o País se abre cada vez mais ao ex-terior, é inaceitável tributar implicitamenteas exportações (vide o pesado acúmulo decréditos pelos exportadores) e aplicar tribu-tos cumulativos por natureza (como o da mo-vimentação financeira), bem assim é desa-conselhável aplicar um imposto de rendacom alíquotas e tratamento do capital muitodiferente do adotado por outras economias,especialmente as vizinhas.

Se a reforma tributária tiver pretensões deafetar e reverter a desigualdade estrutural doPaís, é preciso repensar a tributação sobre oconsumo, diferenciar alíquotas (conforme a es-sencialidade dos bens) e avaliar o retorno dosbenefícios concedidos de forma indiscrimina-da (para que se tornem mais seletivos).

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Dívidas dosEstados:polêmicase caminhos

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Oprocesso de renegociação das dívidas dos Estadosocorrido no final da década passada foi, sem dú-vida, um dos mais importantes marcos da políticaeconômica dos últimos anos. À época, os ganhos

para os Estados se apresentaram como expressivos, porque amaior parte da dívida objeto de renegociação ao amparo da Lei nº9.496 era financiada no mercado em condições muito piores queas oferecidas pelo Tesouro Nacional. No entanto, hoje se configu-ra uma situação de inviabilidade financeira para as contas dos Es-tados, que fazem grande esforço para pagar o equivalente a 13%de suas receitas líquidas, a título de serviço da dívida renegocia-da, mas raramente veem seu estoque diminuir.

Uma questão que se vem arrastando ao longo dos anos, comrepetidas críticas de parte a parte, não poderia ser de solução sim-ples. A nosso ver, o problema necessita ser discutido à luz de duasquestões: a adequação dos parâmetros de atualização do saldodevedor a uma trajetória sustentável das dívidas renegociadas e aforma como a atual configuração das relações patrimoniais entreUnião e Estados tem impactado as contas públicas, especialmen-te no que diz respeito aos resultados fiscais dos entes federativose sua contribuição para o déficit global do setor público.

Com relação à primeira questão, o indexador escolhido pa-ra a correção dos contratos das dívidas dos Estados é certa-mente inadequado. O IGP-DI é composto de três índices, emque os preços do atacado, cujo peso é de 60,0%, são extrema-mente afetados por variações cambiais e cotações de commo-dities no mercado internacional. O ano de 2010 mostra de for-

ma inequívoca que a adoção desse critério não é consistentecom uma perspectiva concreta de redução progressiva do es-toque das dívidas estaduais a médio prazo. As projeções demercado para o IGP-DI, segundo o último Boletim Focus doBanco Central, apontam variação de 11,02% para o ano de2010. Considerando o estoque de R$ 316,4 bilhões da dívidados Estados relativa à Lei n. 9.496 e ao PROES registrado aofinal de 2009 na nota para imprensa do Banco Central, essavariação implica um ônus para os devedores ante o TesouroNacional de R$ 56 bilhões, entre juros e correção.

A distorção embutida nos fatores de reajuste da dívida é evi-dente. Se a dívida fosse corrigida pela Selic, a conta ficaria mui-to menor: R$ 30,8 bilhões. Desse modo, ao final de 2010, o Te-souro Nacional se apropriou de algo como R$ 25 bilhões ape-nas na diferença entre fatores de correção.

Registre-se, adicionalmente, que o ganho para o Tesouro podeser maior, pois, segundo a posição da Dívida Líquida do Setor Pú-blico de setembro de 2010 da publicação do Banco Central, o go-verno federal era credor de R$ 390,5 bilhões referentes à Lei nº9.496 e ao PROES. Por outro lado, a dívida dos Estados relativa àmesma Lei é de R$ 337,0 bilhões. A provável explicação dessa di-vergência entre as posições credora da União e devedora dos Es-tados é que a receita financeira auferida pelo governo federal éusada como receita geral, não sendo abatida do saldo credor ini-cial, que permanece sendo valorado pela taxa.

Do lado dos Estados, é inequívoco que há um esforço fiscal im-portante, que ultrapassa o campo financeiro e se refere ao lado

Geraldo Biasoto JuniorDiretor Executivo da Fundap e

professor do Instituto de Economiada Unicamp. O autor agradece os

comentários e o auxílio deMariaLuiza Levi e Talita Ribeiro.

Zé Carlos Barretta/Hype

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real das contas. Em 2009, segundo a Execução Orçamentária, con-solidada pela Secretaria do Tesouro Nacional, os governos esta-duais pagaram R$ 30 bilhões em serviço de dívidas, quase inte-gralmente relativas à Lei nº 9.496 (R$ 15,8 bilhões em juros eR$ 14,2 bilhões em amortizações). O esforço fiscal, no entanto, te-ve impacto quase irrelevante na evolução do estoque de endivi-damento, que caiu apenas R$ 4 bilhões entre o final de 2008 e de-zembro de 2009 (de R$ 320,2 para R$ 316,4 bilhões).

Igualmente grave é a forma como as condiçõesde financiamento da dívida dos Estados juntoà União têm impactado os resultados fis-cais. A se confirmarem as projeçõespara o IGP, quase 1,6% do PIB emtermos de redução do déficit no-minal do governo federal de2010 terá sido gerado pelo servi-ço da dívida dos governos esta-duais. Desse valor, 0,7% do PIBé exclusivamente devido à di-vergência entre os fatores decorreção das dívidas.

Mas 2010 foi ainda pior para osEstados. Com ganhos de receitas einflação, provavelmente a parte da re-ceita líquida real que deve ser paga emserviço da dívida deve aumentar cerca de13%, ampliando o gasto financeiro neste ano paracerca de R$ 34 bilhões. No entanto, a aplicação das regras contra-tuais implicará corrigir a dívida em R$ 56 bilhões. Ou seja, mesmoapós o enorme esforço de pagamento dos Estados, o estoque terácrescido aproximadamente R$ 20 bilhões.

Ao longo dos últimos anos, a questão do endividamentotem sido questionada pelos governos estaduais, na maioriadas vezes enfocando o problema do indexador que serve paracorrigir o principal. A mera troca do IGP-DI pelo IPCA repre-sentaria uma redução significativa do estoque da dívida acu-mulada de 1998 até o final de 2009. No período, a variação doIGP-DI, acrescido de 6% ao ano, foi de 413,7%, enquanto o a va-riação do IPCA, também acrescido de 6% ao ano, correspon-deu a 292,8%. A substituição do indexador pelo IPCA reduzi-ria a dívida global em R$ 74,4 bilhões. Mas essa não é a única

possibilidade. Outra alternativa, ainda, seria o uso do indexa-dor que é o parâmetro para o crédito ao setor privado ofertadopelo BNDES, a TJLP, um instrumento típico para operações delongo prazo. A dívida cairia quase pela metade.

O gráfico mostra essas alternativas e até a possibilidade deum arrocho ainda maior. Em uma perspectiva de manutenção deuma posição de força por parte da União, a hipótese acima po-deria ser confrontada com a mera utilização da taxa Selic (sem 6%

adicionais), que é justamente o custo de captação doTesouro Nacional. Nesse caso, a dívida subi-

ria 9%, com acréscimo ao estoque de finalde 2009 de cerca de R$ 30 bilhões.

Certamente, os analistas pode-riam defender fervorosamente

cada uma dessas alternativas, ecom argumentos pertinentes.A discussão seria marcada pe-la defesa da Selic, que é o custode captação do Tesouro, aoqual se contraporia a defesa da

TJLP, que é o parâmetro para ocrédito de longo prazo ofertado

pelo governo. Entre IGP-DI e IP-CA, a polêmica giraria em torno da

utilização do parâmetro referendadopelo mercado financeiro, de um lado, contra

a colagem na evolução das receitas, de outro.A discussão em torno do parâmetro de atualização do es-

toque da dívida é a materialização de uma disputa federa-tiva. Quando vista da ótica do financiamento do conjunto dosetor público brasileiro, no entanto, a questão assume ou-tros contornos.

A assunção das dívidas pelo Tesouro Nacional em 1997/98e a correspondente emissão de títulos federais foi absorvidapelo mercado financeiro à época, refletindo que era aceitávelfinanciar, à taxa de juros vigente, o governo central credor dosgovernos subnacionais. Desde então, do ponto de vista do re-sultado primário, principal indicador utilizado para aferir asustentabilidade da dívida do setor público, trata-se de uma"dívida morta", já que o primário desconta receitas e despesasde natureza financeira. Contudo, as receitas do governo fe-

Flavio Takemoto/SCX

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deral geradas pelo pagamento do serviço da dívida dos Es-tados têm tido uma contribuição importante no sentido deatenuar o déficit nominal do setor público global, que, na suaausência, seria maior, resultando em um volume superior denecessidades de financiamento e pressionando adicional-mente a dívida mobiliária federal. Em outras palavras, trata-se de um resultado que, em parte, se dá à custa do compro-metimento das receitas estaduais e da compressão da capa-cidade de gastos dos Estados.

Os que analisam o equilíbrio federativo devem se perguntarpor que uma situação como essa se mantém por tanto temposem encaminhamento técnico e político, especialmente nos úl-timos dois anos. Entre dezembro de 2008 e setembro de 2010, oscréditos do governo federal para instituições oficiais de crédi-to, com destaque para o BNDES, pularam de 1,4% para 7,4% doPIB. Hoje atingem R$ 254,5 bilhões, o equivalente a 75% do es-toque de dívida dos estados em apenas dois anos.

É pouco razoável que o País mantenha paralisados os gover-nos estaduais, tolhidos em sua capacidade de investir com re-cursos próprios e de contratar operações de crédito enquanto,sob exclusivo comando federal, uma violentíssima expansãodo endividamento público tem lugar. As cores dessa disputaficam ainda mais dramáticas se atentarmos para a MP 511, re-cém-encaminhada ao Congresso, que admite previamente umperdão de até R$ 20 bilhões ao BNDES em seus créditos juntoao Tesouro Nacional, para fazer frente à inadimplência do se-tor privado junto ao banco.

Existem saídas?

Não é nada complicado desenhar, em linhas gerais, os termosde uma paz federativa em relação a esse tema. Uma alternativarazoável seria negociar a troca do indexador daqui para frente,passando ao IPCA, que é mais estável, mais aderente à Selic e me-nos colado ao câmbio e aos preços internacionais. Ao mesmo tem-po, o governo federal poderia criar um programa de investimen-tos nos Estados, decidido conjuntamente e realizado por esses úl-timos. A parcela referente aos juros da dívida poderia ser "paga"com investimentos feitos pelos governos estaduais no âmbito doprograma. Exemplificando: em 2009, o Estado de São Paulo in-vestiu R$ 9 bilhões e pagou R$ 5,8 bilhões em juros ao Tesouro Na-cional. Na proposta, ele faria esse pagamento sob a forma de no-vos investimentos. Em paralelo, o Tesouro daria quitação da par-cela correspondente a esses encargos. Dessa maneira, São Pauloampliaria em 60% seu investimento com apoio federal e reduziriao ônus sobre sua dívida na proporção investida. O governo fede-ral perderia uma receita financeira, mas é descabido considerá-laum elemento de boa performance fiscal, já que o mais importantepara a sustentabilidade e credibilidade das contas públicas é agestão dos fluxos não financeiros. Em troca, ganharia investimen-tos em infraestrutura realizados pelos Estados, ajudando a desa-tar o grande nó de nossa economia para os próximos anos.

Logicamente, saídas existem, mas o federalismo brasileiroparece cada vez mais prisioneiro da falta de políticas, no bomsentido da palavra.

Rafael Andrade/Folha Imagem

Os créditos do governo federal para instituições oficiais de crédito, com destaque para o BNDES, pularam de 1,4% para 7,4% do PIB.

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Reforma edeforma políticaem jogono Congresso

RobertoMacedoEconomista(UFMG, USPe Harvard),professorassociado à Faape membrodo ConselhoDeliberativo daAssociaçãoComercialde São Paulo.Este artigoconstitui versãocondensada erevisada de doisoutros publicadosno jornal O Estadode S. Paulo, em15/7/2010 e7/4/11.

Newton Santos/Hype

O sistemaproporcional embuteo efeito Enéias, hojeTiririca, em que umcandidato muito

votado elege outroscom poucos votos.

E, de forma geral, há oefeito transferência,

pois o voto a umcandidato pode servir

para eleger outro,mesmo se indesejado

pelo eleitor.

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Como substantivo, deforma nãoestá no dicionário, mas cabe paraenfatizar riscos envolvidos nadiscussão sobre reforma política

ora em curso no Congresso Nacional.O assunto tem várias dimensões, e tratareiaqui do sistema para eleição de deputados evereadores, cuja necessidade de reformaé evidente, em particular para reduzir aenorme distância entre eleitores e eleitos.

Essa enorme distância é ingredienteimportante da frágil representatividadedestes últimos, e corrói seriamente as basesde uma democracia. Hoje, o contato é muito

restrito ao período eleitoral. É como sehouvesse políticos-cometas, que só aparecema cada quatro anos à cata de votos.

Os que chegam ao Poder Legislativotambém podem ser comparados acosmonautas, lançados no espaço políticopor foguetes impulsionados a votos, com olançamento representando o processoeleitoral. Esse processo, contudo, se limitaapenas àquelas partes de foguetes que logoapós o lançamento se desligam da cápsula ounave onde estão os políticos-cosmonautas.Elas se desintegram no espaço, cessando aíseu vínculo com eles.

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A partir de então os eleitos, já com impulsãoprópria, entram na órbita do espaço político,onde exercem o mandato, e passam a gerir aempreitada. A comparação para por aí, poisnão temos organismos como a NASA, queacompanha e monitora o desempenho doscosmonautas. Como resultado, nossos políti-cos-cosmonautas ficam no espaço Legislativoa comandar toda uma viagem de quatro anos,obedecendo quase que exclusivamente àssuas conveniências.

Há, assim, uma crise de representação. Umademocracia autêntica não dispensa a represen-tação eficaz. No Brasil há repetidas eleições,hoje com mais de 130 milhões de eleitores, ur-nas eletrônicas, apuração rápida e outros enga-nosos sinais de vitalidade democrática. Nadadisso garante a representação desejada.

A carência de representatividade e o despre-zo dos eleitos relativamente aos eleitores che-garam a tal ponto que há como que uma "au-tocracia parlamentar". Autocrata é termo quese aplica a um governante com poderes abso-lutos, usualmente exercidos de forma arbitrá-ria e tirânica. Hoje, o termo tem sido muito usa-do para descrever líderes de países árabes, co-mo o egípcio Mubarak, já destituído, ou o líbioKadafi, ora balançando.

Vejo nos nossos parlamentares traços seme-lhantes. Aliás, eles de novo transpareceram nofinal de 2010 quando o Congresso aprovou, emfinal de legislatura, um abusivo aumento de61,83% (!) da parcela que ganham como "salá-rio", elevando-a para R$ 26.723,13. Isto em ci-ma das já enormes verbas auto-outorgadas pe-los congressistas, de até R$ 98,3 mil mensaispara deputados federais e R$ 119,8 mil para se-nadores. Fizeram isto como num assalto e nu-ma ocasião, a de festas de fim de ano, em que asatividades dos parlamentares recebem aindamenor atenção da mídia. E, também, de formaarbitrária e tirânica, de novo revelando des-prezo tão grande pelos cidadãos que já se cre-denciam a rebeliões como as que estão aconte-cendo nos países árabes.

A falta de representatividade, aliada ao des-controle por parte da cidadania, está intima-mente ligada ao sistema adotado para a elei-ção, o proporcional. Neste sistema, cada parti-do (ou coligação) elege seus candidatos maisvotados, proporcionalmente ao total de votosrecebidos pelos seus candidatos ou pelo pró-prio partido, pois se pode votar apenas neste.

O sistema proporcional embute o efeitoEnéias, hoje Tiririca, em que um candidatomuito votado elege outros com poucos votos.E, de forma geral, há o efeito transferência, pois

o voto a um candidato pode servir para elegeroutro, mesmo se indesejado pelo eleitor. Ou se-ja, o sistema tem um quê de eleição indireta.

Tudo se desenvolve num cenário onde háum número excessivo de partidos, alguns cria-dos quase que só para se oferecerem a candida-tos e não a eleitores, com evidente fragilidadeassociativa e programática, que alcança atémesmo alguns dos maiores. E há o alto custodas campanhas, que favorece alguns candida-tos e interesses, e é particularmente elevado naeleição de deputados, disputada em todo umEstado, e para a vereança de grandes cidades.

Voto em lista

Uma das propostas em discussão no Con-gresso alteraria só um aspecto desse sistema, ede tal forma que agravaria suas distorções.Chamada de lista fechada, a proposta quer queo eleitor deixe de votar em candidatos especí-ficos, passando a votar só no partido. Os eleitosviriam de listas por partidos, nas quais os can-didatos seriam previamente enfileirados, paradepois identificar os eleitos pelos votos parti-dários. Esta proposta interessa muito ao PT, ecom sua força foi aprovada na comissão do Se-nado que trata do assunto.

Ao eliminar o voto nominal, a lista fechadaampliaria fortemente a referida e já longa dis-tância entre cidadãos e os eleitos para repre-sentá-los. Não há garantias de que reduziriacustos, pois a campanha dos partidos com suaslistas abriria espaço para uso maior de propa-ganda, entre outros aspectos, ampliando omercado para o dispendioso marketing eleito-ral. E haveria, digamos, custos relacionados aoposicionamento na lista, o qual poderia se tor-nar objeto de um grande mercado. O efeito Ti-ririca não seria necessariamente eliminado,pois partidos poderiam recorrer a celebrida-des e vulgaridades para puxar votos para sualista. Assim, de forma indireta, ocorreria tam-bém o efeito transferência. De positivo, a listafechada poderia fortalecer os partidos, mastambém robusteceria as oligarquias que hojeos comandam, podendo levar também a dis-putas "fratricidas" internas. Aspas porque elesestão longe de fraternidades.

Uma segunda ideia em discussão é a do cha-mado "distritão". Seus defensores querem quecada Estado ou município seja um "único egrande distrito", e que sejam eleitos os mais vo-tados, independentemente do partido a quepertençam. Ora, distritos são partes de um to-do e o nome perde sentido como a soma delas.Na realidade, seria um "corridão", em que, por

No Brasil hárepetidas eleições,hoje com mais de 130milhões de eleitores,urnas eletrônicas,apuração rápida eoutros enganosossinais de vitalidadedemocrática.Nada disso garante arepresentação desejada.

Chamada delista fechada, aproposta quer queo eleitor deixe devotar em candidatosespecíficos,passando a votarsó no partido. Estaproposta interessamuito ao PT.

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exemplo, na eleição para deputados federaisde São Paulo, cerca de mil corredores ou can-didatos disputariam. Ao final, os setenta maisvotados receberiam o mandato. O "distritão"levanta sobrancelhas, mas a ideia é lideradapelo vice-presidente da República, Michel Te-mer, tido como influente no Congresso, emparticular na Câmara, da qual foi presidente.

É a proposta que menos resolve as distor-ções do sistema proporcional. Não reduz a dis-tância eleitor-eleito, e o custo seria até mais al-to, pois candidatos hoje eleitos com votos deoutros teriam que gastar mais. A fragilidadepartidária seria até agravada, pois acentuaria opersonalismo. O efeito Tiririca deixaria deacontecer como carregamento ou transferên-cia, mas haveria novos Tiriricas, pois o mesmopersonalismo e a atual desilusão com os parla-mentares atrairia mais candidatos vindos daesfera do entretenimento.

A terceira proposta em debate é do voto dis-trital, em que cada Estado ou município seriadividido em distritos com número quase igualde eleitores. Num distrito, cada partido apre-sentaria um candidato, e seria eleito apenas umrepresentante distrital, tal como numa eleiçãodireta para o Executivo.

Reafirmarei meus argumentos em favor dovoto distrital, também defendido pela Asso-ciação Comercial de São Paulo. Nele, a eleição édireta, e ocorre num espaço geográfico bemmenor que um Estado, o que facilita enorme-mente o controle do eleito pelo eleitor, ao ladode reduzir sensivelmente os custos de campa-nha, e toda a bandalheira que costuma vir comseu financiamento. No caso federal, São Pauloelege 70 deputados, e cada um viria de um dis-trito, onde cada partido só teria um candidato.O número de viáveis ficaria reduzido a poucos,como na recente campanha para a Presidência,onde apenas três se destacaram. Assim, a elei-ção dos deputados seria tão direta como as depresidente, de governadores e de prefeitos.

A escolha do eleitor seria facilitada, pois émais fácil comparar poucos candidatos. O sis-tema também permitiria debates entre eles,prévias eleitorais e tudo o mais a despertar o in-teresse do eleitor pela eleição.

E, muito importante, o eleito representaria odistrito, e, assim, o variado conjunto de interes-ses nele existente. No proporcional, muitos sãoeleitos por grupos de interesses e corporações,capazes de produzir votos por todo o Estado,gerando em Brasília as correspondentes ban-cadas. Como exemplos, a rural, a dos aposen-tados e a do bingo.

Para esclarecer ainda mais o distrital, re-

corro ao exemplo de um amigo brasileiro quereside no Canadá, onde há esse sistema. Cominveja, ouvi dele: "Temos o nosso deputado,da mesma forma que temos médico, dentista,advogado e por aí afora, podendo recorrer aele, que inclusive está sempre no distrito, fa-zendo o seu trabalho e prestando contas, deolho também na reeleição." Ou seja, é umprestador de serviços.

Pergunto ao leitor: quem é o seu deputado?Quando recorreu a ele? Quando prestou con-tas do seu trabalho? Aqui o "representante" ficadistante do cidadão, e assim solto para o queder e vier. Ou mesmo para quem vier e der.

Alguns não fazem nada, outros servemseus ou outros interesses que não o do eleitor.E há também os que não prestam mesmo, mas,caras de pau, estão novamente a disputar vo-tos, como demonstra o número de 1.614 can-didatos que tiveram problemas com a Lei daFicha Limpa nas últimas eleições. Com tantoscontestados, é sinal de que o número de fi-chas-sujas comprovadas também deve serelevado, reafirmando antigas e recorrentespercepções quanto ao que se passa no mundopolítico brasileiro.

Em síntese, o voto distrital é o que mais poderesolver os problemas do sistema atual. Assim,reduziria fortemente a distância entre repre-sentantes e representados, em particular noexercício do mandato, pois o eleito teria queprestar contas dele no seu distrito, sem o quecolocaria em risco a reeleição ou a indicação desucessor. O efeito Tiririca muito provavelmen-te sairia de cena, inclusive o próprio persona-gem e similares, hoje eleitos por votos amea-

No sistema de votodistrital, o eleito teria

que prestar contas emseu distrito, sem o que

colocaria em risco areeleição ou a

indicação de sucessor.O efeito Tiririca muitoprovavelmente sairia

de cena, inclusive opróprio personagem.

Fábio Rodrigues Pozzebon/ABr

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lhados em todo o território eleitoral, como seviessem de todos os seus distritos. Em cada umseria muito difícil chegar à eleição, pois essa so-ma não seria possível, e haveria comparaçõesentre candidatos e com adversários politica-mente mais atraentes.

Quanto aos custos eleitorais, em princípiocairiam os de candidatos, pois concorreriamno espaço menor de um distrito. Contudo,dentro dele a disputa entre candidatos seriamais clara e acirrada, talvez elevando custos noconjunto dos distritos, e novamente porque oconfronto direto abriria espaço maior para apropaganda eleitoral nas suas várias formas.Mas, creio que os benefícios do distrital com-pensariam eventuais custos adicionais.

Como trazer o sistema distrital, que de fatoseria uma desejável reforma, e não as "defor-mas" do voto em lista e do "distritão"? A deci-são teria que vir de deputados federais e sena-dores, que se apoiam mutuamente para buscarvotos, e se conectam também com deputadosestaduais e vereadores com o mesmo objetivo,todos eleitos pelo sistema proporcional. Emsua maioria, não querem mudar esse sistemapodre, o que colocaria em risco sua reeleição.Ademais, é do instinto dos políticos mudançasapenas incrementais, e não radicais.

Por isso, o caminho mais viável seria come-çar o voto distrital por eleições municipais, e demodo incremental levá-la às estaduais e fede-rais. Mas, fundamental mesmo, deve ser apressão de fora para dentro do Congresso, re-petindo o movimento das "diretas já", com po-líticos e entidades da sociedade civil que en-campem a ideia. E cabe repetir também o pro-cesso de pressão de fora para dentro do Con-gresso que levou à Lei da Ficha Limpa.

Outra dificuldade é de explicar o sistema àsociedade como um todo, em busca do seuapoio, razão porque insisto em defender o votodistrital como de eleição direta para o Legisla-tivo, e comparada às que ocorrem para cargosexecutivos. O brasileiro gosta de eleições dire-tas, e a luta bem sucedida pela sua realizaçãopara a presidência da República deixou marca-da essa preferência. Trata-se, portanto, de asso-ciar o sistema distrital ao voto direto preferidopelo eleitor, pois, vale insistir, o distrital equi-vale a eleição direta também para o Legislati-vo. Em contrapartida, o sistema atual tem fortee abjeto conteúdo de eleição indireta.

Não menos importante, contudo, é tambémcombater a deforma que viria com a lista fecha-da ou com o "distritão", pois há o risco de serdesmentida a tão ouvida pregação do mesmoTiririca, de que pior do que está não fica.

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67MARÇO/ABRIL/MAIO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

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Estudantes formam um cifrão no gramadodo Congresso Nacional, em protesto ao

aumento de 61% nos salários dos parlamentares.

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68 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

Lalo de Almeida/Folhapress

Desenvolvimento hipanorama

Um bloco comercial quecaminhou para a

cooperação política

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Em junho de 1995, opresidente FernandoHenrique Cardoso se reuniucom representan-tes doMercosul.

Em dezembro de 2007, opresidente Lula posou

para foto na 34ª Cúpulados Presidentes do

Mercosul, no Uruguai.

Divulgação

Paulo Roberto de AlmeidaDoutor em Ciências Sociais, mestre em planejamento

econômico, diplomata de carreira, autor de livros e artigossobre relações internacionais, integração econômica e

política externa do Brasil (www.pralmeida.org;[email protected]). Nenhum dos argumentos

apresentados neste texto representa posições do Ministériodas Relações Exteriores ou políticas do governo brasileiro.

stórico do Mercosul:de 20 anos

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

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70 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

OMercosul – Mercado Comumdo Sul – foi criado em 1991para constituir-se como umbloco comercial coeso, com

pretensões a adotar o formato de ummercado comum. Na visão dos "paisfundadores", possivelmente ele poderiaevoluir para formas mais avançadas deorganização econômica, política e social, atéalcançar, na parte meridional da Américado Sul – e teoricamente também, a termo, noconjunto da região – um status equivalenteao adquirido, paulatinamente, pelaComunidade (hoje União) Europeia; ouseja: um espaço econômico plenamenteintegrado, com total liberdade para odeslocamento de fatores produtivos,razoável coordenação econômica (o que,no caso europeu, assumiu a forma de umamoeda comum para a maioria de seusmembros), seguida, subsequentemente ousimultaneamente,da harmonização ecoesão dos regimessociais e daspeculiaridadesnacionais eregionais, para,finalmente,alcançar a desejadaconcertaçãopolítica ediplomática, capazde fazer a Europaocidental recuperarsua antigaimportância internacional, o que implicarialograr uma expressão comum no planoexterno (defesa, segurança, política externa,negociações multilaterais).

Mesmo considerando-se apenas a faseinicial de integração econômica – qual seja,a constituição de uma zona de livrecomércio, seguida da definição técnica deuma tarifa externa comum, o queredundaria numa união aduaneira – e seudesdobramento lógico na criação de ummercado comum (aliás, determinado"constitucionalmente"), pode-se dizer quetais objetivos – que já eram os do processobilateral de cooperação e de integração,iniciado em 1986 por Brasil e Argentina –não foram alcançados. Com efeito, deve-sereconhecer que, passados vinte anos deexperimentos integracionistas, o Mercosulnão conseguiu cumprir as metasestabelecidas no Tratado de Assunção (TA),

nem parece perto de realizá-las no futuroprevisível. Ao longo dessas duas décadas,mas bem mais enfaticamente no curso daúltima década, o Mercosul parece ter seafastado de seus objetivos comercialistas eeconômicos iniciais, aliás consagrados notratado constitutivo, para converter-se numagrupamento político dotado de interessesmuito diversificados.

Teria falhado, então, o Mercosul?Absolutamente: as falhas e insuficiências doprocesso podem ser debitadas inteiramenteaos países membros, que parecem terabandonado – ao menos os seus doismembros economicamente relevantes,Brasil e Argentina – o objetivo fixado no TA,de um mercado comum regional, paracontentar-se com a liberalização parcialdo comércio recíproco e fixar-se nodesenvolvimento da cooperação políticae social, sem um conteúdo econômico

mais afirmado.Tampouco se podedizer que o blocofoi afetado por umsuposto "déficitdemocrático", oupor deficiênciasinstitucionais emseu arcabouçojurídico, sendo, aocontrário, bemmais evidentes asinadimplênciasnacionais emimplementar

decisões e resoluções conjuntas, bem comoa divergência de intenções políticas entreos países membros quanto aos objetivosmediatos e imediatos a serem perseguidos.A despeito da retórica presidencial sempreafirmada quanto à unidade de vistas entreos membros, não se pode dizer, de fato, queos objetivos nacionais quanto à utilidadeou funcionalidade do Mercosul para cadauma das economias e sociedades sejamrealmente convergentes.

As dificuldades para a consolidação ouavanço do Mercosul podem ser creditadas adois fatores de amplo escopo: de um lado,instabilidades conjunturais no planoeconômico (em diferentes formatos segundoos países), com planos parciais ouinsuficientes de ajustes; de outro, o recuoconceitual dos projetos de construção de umespaço econômico integrado na região, comabandono relativo da liberalização comercial

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recíproca e ênfase subsequente nos aspectospuramente políticos ou sociais da"integração". Quaisquer que sejam os pesosrelativos desses dois conjuntos de fatores eseus efeitos concretos sobre as intençõesproclamadas e as ações efetivas dos paísesmembros do Mercosul – e os impactosvariam muito em função dos paísesenvolvidos – cabe reconhecer o abandono(não reconhecido) do projeto original de secaminhar para instituições orgânicas maisconsentâneas com o formato de um mercadocomum, em favor de instâncias seletivas decooperação política setorial que vêmmoldando um novo perfil para o Mercosul,até seu envolvimento num conjunto de áreasnão delineadas no mandato econômico-comercial do tratado fundacional.

Feita esta síntese geral, e inicial, sobre o

desenvolvimento do Mercosul – destacandosuas características originais e as suastransformações ao longo do tempo, comuma nítida evolução do conteúdoeconômico-comercial da primeira fase paranovos campos e funções de característicasmarcadamente políticas e sociais – cabedescrever sumariamente o conteúdo dopresente texto. Uma primeira seção seguirábrevemente a formação e o desenvolvimentohistórico do Mercosul, seguida de umaexposição sobre o Mercosul econômico, ouseja, o itinerário da liberalização comercial eda integração econômica, com seus sucessose limitações. Uma terceira seção considerará

Celso Júnior/AE

As presidentes Cristina Kirchner (esq.),da Argentina, e Dilma Rousseff (dir.), doBrasil, brindam o encontro realizado em

janeiro na Casa Rosada, em Buenos Aires.

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72 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL/MAIO 2011

o Mercosul político, no conceito stricto sensu,isto é, as questões institucionais e defuncionamento interno do bloco, emespecial seu processo decisório. Finalmente,as conclusões registrarão o estado presentedo Mercosul e as perspectivas para o seudesenvolvimento futuro, o que poderia atéimplicar, teoricamente, numa revisão dosconceitos fundamentais do Mercosul e aadequação de sua estrutura institucional anovos objetivos.

Origens e desenvolvimentode um bloco comercial

O processo de constituição progressiva deum espaço econômico integrado no Cone Sul– o que não deve ser identificadonecessariamente com um projeto de mercadocomum ou com o Mercosul atual – tem de servisto no contexto dos movimentos deredemocratização e de reorganizaçãoeconômica nos países da região, numa faseem que o multilateralismo comercial pareciaceder espaços progressivamente mais amplospara o regionalismo, ou seja, a constituição deblocos comerciais discriminatórios. Projetosde cooperação e de integração emergiramnaturalmente na agenda dos países tãopronto foram liberados de seus respectivosregimes militares; foi igualmente natural queas duas maiores economias regionais seengajassem no processo, entre as quais erammais intensos, historicamente, os fluxos decomércio e de intercâmbios econômicos dediversos tipos. Argentina e Brasil derampartida, conduziram politicamente oexercício e continuam determinando, emtodas as circunstâncias, os traçosfundamentais do processo de integração noCone Sul, pelo seu formato institucional, pelasua estrutura operacional e pelo conteúdoeconômico imprimido ao bloco ao longo desuas diversas fases.

Depois de uma fase bilateral, durante aqual foram definidos os objetivos essenciaisdo processo – primeiro a cooperação e acomplementação econômica, no Programade Integração e Cooperação (1986), depois oprojeto de um mercado comum bilateral, peloTratado de Integração (1988) – passou-se àetapa quadrilateral, quando se decidiuestender o mercado comum aos dois outrosvizinhos, sendo então adotado o Tratadode Assunção para a criação de um mercadocomum (1991). A historiografia correntesobre o Mercosul não reconhece, porém, a

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mudança fundamental que representou apassagem do modelo de complementaridadegradualista encarnado nos dois primeirosinstrumentos (e seus diversos protocolossetoriais) para um modelo econômico liberale livre-cambista representado pelo TA. Entreas duas fases, pouca atenção se dá à Ata deBuenos Aires (julho de 1990) que modificousubstancialmente a metodologia e a própriacronologia da constituição de um mercadocomum bilateral Brasil-Argentina.

A Ata representou a passagem de umesquema dirigista e industrializante, comoseguido até então, para outro de cunho maiscomercialista e liberalizante, mediante acriação calendarizada de um mercadocomum (mais exatamente em 01/01/1995),ademais de estabelecer mecanismosautomáticos de desgravação comercialbilateral. A rebaixa tarifária foi operada apartir de uma redução inicial da metade dasalíquotas normalmente aplicadas e à razãode 7% a cada semestre, até chegar a 100% depreferência – ou "tarifa zero" – ao final doperíodo de transição, em 31 de dezembrode 1994, quando também deveriam estardefinidas uma Tarifa Externa Comum (TEC) eas instituições permanentes do Mercosul.

O TA, para ser mais preciso, épraticamente uma cópia ipsis litteris – com osajustes quadrilaterais que se impunham – daAta de Buenos Aires, como é possível de serfacilmente comprovado, mediante umacomparação visual de ambos os textos. Orelevante a ser destacado é a mudança defilosofia entre o Mercosul bilateral pré-1990 eo Mercosul quadrilateral pós-1991, aindaque, para todos os efeitos práticos, oaprofundamento do processo de integraçãoregional não tenha caminhado em direçãodos objetivos fixados nesses doisinstrumentos: um mercado comum comliberalização comercial plena e coordenaçãodas políticas macroeconômicas e setoriais.

A estrutura intergovernamental definidadesde a fase bilateral, e mantida no formatoquadrilateral, representou, para Brasil eArgentina, a preservação de suascapacidades nacionais em determinarpolíticas autônomas – traço característicode um entranhado soberanismo jurídico,tradicional na região – e sua opçãopreferencial por um modelo de tipo Benelux(Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo,1948), ou seja, de uma união aduaneiracompleta, em lugar do salto comunitárioque estaria implicado numa eventual

Lula Marques/Folhapress

Os presidentes Fernando HenriqueCardoso (esq.), do Brasil, e Carlos

Menem, da Argentina, participaram dereunião da Cúpula do Mercosul em 1996.

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adoção de um modelo europeu de mercadocomum unificado. O processo decisório,obviamente consensual na fase bilateral,continuou dominado pela ausência deproporcionalidade, com o que se atribui apaíses menores (como Paraguai e Uruguai)o poder de veto sobre decisões queafetariam, teoricamente, economiasgrandes e sociedades de dezenas demilhões de habitantes, a começar pelopróprio Brasil.

Independentemente da adequaçãofuncional (ou não) da estrutura institucionalintergovernamental do TA aos objetivos deum mercado comum, deve-se reconhecer odinamismo comercial e os avanços iniciais doMercosul, no sentido do crescimento dosvínculos recíprocos e o aumento geométricodo comércio, tanto para dentro como parafora do bloco. Boa parte desse crescimentonos fluxos comerciais se deve, obviamente, àredução de tarifas e à eliminação de barreiras,o que representaria bem mais um desvio decomércio do que criação de novas correntesde intercâmbio. Mas também ocorreu acriação do comércio, para dentro e para fora,na medida em que, tanto em função dereformas tarifárias conduzidasnacionalmente pelos países membros, quantoem preparação da definição e implementaçãoda TEC, as alíquotas aduaneiras foram sereduzindo paulatinamente, o que abriuespaço para a ampliação das trocas emdiversas dimensões.

Uma das primeiras medidas abrangentesdo período de transição foi a adoção de umcalendário quase completo de tarefas aserem implementadas para cumprir,segundo um esquema gradual e cumulativo,com as tarefas e requisitos envolvidos narealização da zona de livre-comércio, daunião aduaneira, até se alcançar o mercadocomum previsto (esta foi a função dochamado Cronograma de Las Leñas,aprovado em 1992). Não obstante umseguimento detalhado pelas burocraciasnacionais, o cronograma só pode serimplementado parcial e imperfeitamente, jáque a amplitude dos requisitos necessáriosao acabamento dos objetivos principaissuperava em muito a capacidade dosgovernos de empreenderem o conjunto detarefas associadas a cada um deles.

Não obstante o não acabamento das metasvinculadas ao mercado comum, foi possívelalcançar certo grau de consenso para aimplementação da zona de livre comércio –

adotada com algumas exceções, entre elas oaçúcar e a indústria automotiva – bem comopara a criação – ainda que com muitasimperfeições – da união aduaneira.Quaisquer que tenham sido as imperfeiçõesda fase de transição no acabamento dastarefas indispensáveis ao atendimento dosobjetivos do artigo 1º. do TA, esta era debastante otimismo, tanto do lado comercial,quanto do lado político. Foi nesse clima dequase euforia que se chegou a Ouro Preto, emdezembro de 1994, não para a assinatura de

Marcos D'Paula/AE

Foi possível alcançar certo consensopara a implementação da zona delivre comércio, mas com exceções,como o açúcar e automóveis.

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um novo tratado, que poderia ter sido o dacriação efetiva de um mercado comum – comtodos os requisitos do gênero – ou pelo menoso de uma união aduaneira acabada, mas deum simples protocolo, que confirmou todosos mecanismos e instituições existentes, comalguns poucos acréscimos (como o de umaComissão de Comércio) que não modificaramfundamentalmente a natureza do processo deintegração no Mercosul.

O Protocolo de Ouro Preto concedeu,alegadamente, "personalidade de direitointernacional" ao Mercosul, o que o teriahabilitado a negociar conjuntamente acordoscomerciais com parceiros individuais, naregião ou fora dela, ou com outros blocos.

Foi o caso, imediatamente após, do início doprojeto americano de uma Zona de LivreComércio nas Américas, a Alca, e, logo emseguida, das negociações bi-regionais comvistas a formar uma associação comercial coma União Europeia (ambas se arrastando pelosdez anos à frente, até sua paralisia virtual, emmeados da década seguinte).

A segunda metade dos anos 1990 ainda viuo crescimento do comércio do bloco e para obloco. Mas este já estava imerso em gravesdesequilíbrios conjunturais, embora denatureza diversa, segundo os países. AArgentina tinha encontrado a estabilizaçãomonetária por meio de um plano deconversibilidade – na verdade, a rigidezabsoluta na paridade fixa com o dólar – masnão reencontrou o caminho dacompetitividade internacional, acumulandodéficits que foram sendo artificialmentereprimidos pelo recrudescimento doprotecionismo ou cobertos pelo recursoexcessivo a empréstimos externos, até odesenlace fatal, alguns anos mais tarde.Desde 1996, a Argentina introduzia medidasrestritivas das importações, inclusive nocomércio bilateral com o Brasil, que era, aliás,o único país que lhe facultava superávitssubstantivos, geralmente feitos de comércioadministrado (petróleo, trigo e automóveis).Mas o Brasil também acusava desequilíbrioscrescentes nas transações correntes,contornados por tentativas de controle dofinanciamento externo às importações ou porigual apelo a capitais externos.

As dificuldades comerciais e de balançode pagamentos dos países membros, emespecial nas relações bilaterais dos doisgrandes e entre eles e terceiros países, levounaturalmente ao crescimento dos conflitos,com medidas abusivas de antidumpinge de salvaguardas aplicadas de maneirapuramente protecionista. Em vista dainsuficiência dos mecanismos de soluçãode controvérsias existentes no bloco – oProtocolo de Brasília tinha sido aprovadoem 1991 para funcionar apenas durante operíodo de transição – e da pouca disposiçãodos países membros em acatar laudosarbitrais não dotados de um poder diretode sanção, ocorreram, inclusive, casos detransposição de reclamações comerciais doâmbito do Mercosul para o sistema desolução de controvérsias da OMC (o queocorreu pelo menos uma vez, sendo o Brasilo reclamante e a Argentina a reclamada).A insatisfação com o sistema do Mercosul

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levou à adoção, no final da década, doProtocolo de Olivos, criando um TribunalPermanente de Revisão, que pretendiareforçar os mecanismos de solução dedisputas por meio de medidas automáticase cautelares; sua entrada em vigor nãoimpediu, contudo, a deterioração docomércio interno e o agravamento dastensões no bloco, com ameaças pelaArgentina de dolarização completa, o quesignificaria a derrocada do Mercosul.

A crise final no regime econômicoargentino, no entanto, só ocorreu mais de umano depois que o Brasil enfrentou o seupróprio inferno cambial, acumulado desde acrise mexicana de 1994-95, as turbulênciasasiáticas de 1997, situação exacerbada pela

moratória russa de julho de 1998, obrigando-o a concluir um rápido programa de socorropreventivo com o FMI e outras instituições epaíses, em outubro desse ano, por um valorsuperior a US$ 40 bilhões. O instável arranjonão suportou, entretanto, novas fugas decapitais e a ausência de ajustes internos,vindo a termo em janeiro de 1999, quando osistema de banda cambial saltou pelos ares: acotação do dólar disparou e o Brasil se viuobrigado a adotar um regime de flutuaçãocambial, complementado pouco depois porum sistema de metas de inflação.

O novo esquema permitiu orestabelecimento gradual dos equilíbriosexterno e macroeconômico, não sem antesprovocar sérios abalos na relação econômicacom a Argentina, que logo culpou o Brasilpelos problemas que sua própria camisa deforça cambial tinha criado. Ante as ameaçasde dolarização completa na Argentina, o

Sergio Moraes/Reuters

Em novembro de 2005, os presidentesLuiz Inácio Lula da Silva (esq.), do Brasil,e Nestor Kirchner (dir.), da Argentina, seencontraram em Puerto Iguazu.

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Brasil propôs, em 2000, a constituição de umgrupo de trabalho sobre convergênciamacroeconômica, que deveria supostamentetrabalhar com a harmonização de políticas eregras até chegar, eventualmente, à adoção deum mesmo regime cambial e talvez até a umamoeda comum. Dez anos depois da adoçãodo regime de paridade fixa, a Argentinaretrocedia em meio a uma das mais gravescrises de sua história econômica, feita deretenções bancárias arbitrárias, calotesinternos e de insolvência externa, que seprolongou durante anos, ao ter a Argentinaimposto unilateralmente aos credoresexternos um enorme desconto no valor facede suas emissões globais.

No plano do Mercosul, propriamente,medidas restritivas e desvios acrescidos daTEC já tinham sido adotados vários mesesantes do desenlace fatal de dezembro de2001, tendo o ministro da economiaDomingo Cavallo imposto unilateralmenteao Brasil as novas regras pelas quais aArgentina pretendia conter o comérciobilateral. As exceções nacionais e asdivergências em relação à TEC semultiplicam de todos os lados, antes edepois da grave crise enfrentada pelaArgentina a partir de 2001, com efeitosimediatos, sobretudo sobre o pequenoUruguai. O comércio regional despencouimediatamente, representando, em 2002,praticamente a metade do que ele tinha sidoaté 1999. Mesmo se fluxos e valores foramsendo paulatinamente recompostos eelevados nos anos seguintes, diversas outrasrestrições operacionais e divergênciasnormativas continuaram a vigorar,afastando ainda mais o Mercosul dosobjetivos de convergência macroeconômicae de unificação dos mercados estipulados noartigo fundamental do TA.

Para todos os efeitos práticos, a partir de2003 o Mercosul jamais voltou a ser o que eranos primeiros oito ou nove anos de suaexistência quadrilateral. Mesmo se aestagnação intermediária registrada no planocomercial foi sendo superada aos poucos, emfunção da retomada do crescimento naArgentina e nos demais países, a crise de2001-2002 deixou marcas profundas no estilode governança econômica em vigor no paísplatino, levando a retrocessos institucionais eao enfraquecimento dos compromissosanteriormente assumidos com a liberalizaçãocomercial e a abertura econômica. Para tantocontribuíram a personalidade e as políticas

adotadas pelo presidente argentino NestorKirchner (2003-2008), tanto quanto as novasorientações de política externa do governobrasileiro do presidente Lula (2003-2010),menos comprometido com as metaseconômicas e comerciais do Mercosul, e bemmais propenso a aceitar novos desvios paraobjetivos políticos e sociais supostamentemais relevantes do ponto de vista de suapolítica externa regional.

Os grandes responsáveis pelas novasorientações da política externa regional doBrasil, em especial no que se refere aoMercosul e às tentativas de sua ampliação ouextensão ao espaço regional sul-americano,foram o assessor especial do presidente Lulapara assuntos internacionais – um militanteque durante muitos anos exerceu o cargo desecretário de relações internacionais doPartido dos Trabalhadores (PT) – e osecretário-geral do Ministério das RelaçõesExteriores no período 2003-2009, diplomatade carreira. Sobretudo, este último,intimamente envolvido com a construção daintegração bilateral Brasil-Argentina nosanos 1980 e opositor declarado do Mercosulem sua versão liberal dos anos 1990,empenhou-se desde o início em reverter obloco às características que este possuía nafase mercantilista e dirigista anterior à Atade Buenos Aires e ao TA. Ele chegou,inclusive, a refazer e recolocar em vigor –como se isso fosse possível ou fosse capaz deprovocar os mesmos efeitos sistêmicos, deresto não provados – as duas dezenas deprotocolos setoriais que ele mesmo tinhanegociado a partir do PICE de 1986,saudados como estratégicos do ponto devista da integração desejável. Essesprotocolos, sem maiores funções no novoesquema livre-cambista do Mercosul,

Dez anos depois daadoção do regime deparidade fixa, a Argentinaretrocedia em meio a umadas mais graves crises desua história econômica,feita de retençõesbancárias arbitrárias,calotes internos e deinsolvência externa, que seprolongou durante anos (...)

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conformavam, nessa visão, um processo decomplementaridade inter e intra-setorial,segundo algumas linhas produtivasselecionadas pelo Estado como prioritáriaspara a integração bilateral.

O que ficou evidente, desde o início dosgovernos Lula e Kirchner, foi, de um lado, aorientação protecionista e defensiva daspolíticas econômica e comercial deste último,inclusive em detrimento da integraçãoregional; de outro, a leniência e tolerânciademonstrados pelo primeiro, e por seusprincipais assessores, sob pretexto depreservação do Mercosul e concessões de"espaços de liberdade" para que a Argentinapudesse conduzir com ampla latitude seuprojeto de "reindustrialização". De fato, o queocorreu é que, em lugar de reforçar o blocoem suas dimensões econômica e comercial,as posturas combinadas da Argentina e doBrasil terminaram por fragilizar o Mercosul,no que se refere a seus objetivos essenciais.

No lugar de comércio ou abertura econômica,novas dimensões foram sendoimpulsionadas, sobretudo nos aspectospolíticos e sociais.

Mesmo com toda a compreensão brasileiraem relação às infrações protecionistasargentinas, o processo de restauraçãoeconômica naquele país foi lento e tortuoso.A presidência Kirchner pretendeudescarregar sobre o Brasil os custos dessareconversão, propondo mecanismos decompensação automática dos desequilíbriosbilaterais que seriam acionados assim que seconstatassem superávits persistentes a favordo Brasil e defasagem cambial em supostoprejuízo da Argentina. O que se pretendia,em resumo, era voltar ao mercantilismocomercial e ao dirigismo econômico, em totalcontradição com os pressupostos e objetivosdo Mercosul, ou pelo menos do TA; em suma,seria uma permissão aberta à Argentina paradiscriminar seletivamente contra o Brasil, emclara violação dos compromissos doMercosul e em desacordo com as regras dosistema multilateral de comércio.

O esquema finalmente aprovado depois

Ricardo Moraes/Folhapress

Os presidentes Hugo Chávez (esq.), daVenezuela, e Luiz Inácio Lula da Silva(dir.), do Brasil, na 32ª Cúpula doMercosul, no Rio de Janeiro.

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de negociações difíceis entre os dois maioresmembros do Mercosul, chamadoeufemisticamente de Mecanismo deAdaptação Competitiva, não atendeucompletamente aos pleitos argentinos, masrepresentou, de toda forma, uma fraturagrave na arquitetura institucional doMercosul: como os dois sócios menores nãoaceitaram participar de uma ferramentaclaramente em contradição com osprincípios do Mercosul e em total violaçãodas regras do comércio multilateral, o novomecanismo foi colocado ao abrigo, não doACE-18 – que é o TA tal como protocolizadona Aladi – mas do ACE-14, que era a antigaAta de Buenos Aires, que converteu oprocesso bilateral Brasil-Argentina deintegração do modelo mercantilista edirigista que exibia até então para o modelo"neoliberal". O Mercosul adquiriu, assim, oduvidoso privilégio, inédito em blocoscomerciais registrados na OMC, de revertera esquemas bilaterais, apoiados eminstrumentos supostamente superados emsua trajetória institucional.

A administração brasileira do presidenteLula, interpretando o Mercosul através delentes presumidamente comunitárias – emespecial no tocante aos programas dereconversão setorial e de redução dasdesigualdades regionais existentes entre ospaíses membros da UE – considerou quecaberia ao Brasil assumir o papel daAlemanha, se apresentando, em 2004, comoo provedor líquido de recursos num projetode redução de "assimetrias estruturais"que supostamente estariam impedindoo Mercosul de se desenvolver de modoadequado. O Brasil então propôs, eos demais países aceitaram o esquema,financiar um fundo de convergênciaestrutural (Focem) à razão de 70%, quereplica o que já está sendo feito, sem aexpertise técnica, pelos organismosmultilaterais e regionais de financiamento;o sistema é obviamente limitado – ainda queo Brasil tenha comprometido recursos bemmais amplos do que os US$ 70 milhõesoferecidos – e não reduzirá de modosignificativo as assimetrias maisimportantes, que são as de políticaeconômica, não propriamente as de naturezageográfica ou de dotação de fatores.

Pelo resto da década, não ocorreuqualquer outro progresso institucional, anão ser a adoção, quinze anos depois doprazo normal, do Código Aduaneiro do

Mercosul, que deveria estar emfuncionamento desde o dia 1º de janeiro de1995; espera-se que ele possa entrar em vigorproximamente, mesmo na ausência de umaautoridade aduaneira unificada e de umregulamento que possa dispor, em basesracionais e uniformes, da renda auferida noque deveria ser um território aduaneiroúnico. A única outra decisão de importância,adotada desde a vigência da TEC, foi ocompromisso dos Estados membros, em2010, de cessar a dupla cobrança dos direitosaduaneiros de produtos importados a partirde alguma data no futuro próximo.

Estes são, basicamente, os maisimportantes desenvolvimentos no itineráriohistórico do Mercosul. Mas caberia também,referir, ainda que brevemente, à inserção dobloco no contexto sul-americano e aosprocessos de negociações regionais,bilaterais, hemisféricas ou multilaterais.Durante todo o período, o Mercosul tentouacordos comerciais com os demais membrosda Associação Latino-Americana deIntegração, sem grande sucesso, porém: umaproposta de se constituir uma Área de LivreComércio das Américas (Alcsa), feita peloBrasil em 1994, em resposta ao projetoamericano de uma Alca, não encontrourespaldo nos demais países membros daAssociação e, pelo resto da década, oMercosul negociou relutantemente a criaçãoda área hemisférica, exibindo uma atitudeque era em geral de tergiversação, comtáticas dilatórias e diversionistas. Nocontexto regional, apenas dois países seassociaram ao Mercosul, o Chile e a Bolívia,ambos em 1996, embora num formato deliberalização comercial parcial.

A partir de 2003, acordos aladianos,dotados de muitas exceções, foramconcluídos com os demais vizinhos andinos,embora com efeitos marginais sobre os fluxos

O reconhecimentointernacional do Mercosultambém deve ser consideradocomo um elementoimportante no cenário denegociações comerciais,embora esse aspecto tenha deser avaliado realisticamenteao longo do tempo.

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totais de comércio. No mesmo período, Brasile Argentina se empenhavam, com a ajuda daVenezuela, em sabotar as negociações daAlca, o que foi efetivamente conseguido naCúpula das Américas de 2005, quando oprocesso foi implodido, como aliásorgulhosamente admitido pelo presidente epelo chanceler do Brasil. Divergências entreBrasil e Argentina dificultaram, porém, asposições que deveriam ser comuns nasnegociações multilaterais da Rodada Doha daOMC e nas bi-regionais com a UniãoEuropeia. Até 2011, nenhum desses processostinha alcançado conclusões satisfatórias.

O quadro a seguir apresenta um resumoconceitual sobre as principais característicasdo itinerário do Mercosul em suas diferentesfases, tanto no plano econômico quanto nopolítico e no das relações externas do bloco,podendo ser considerado uma síntese dodesenvolvimento do bloco desde sua criaçãoà atualidade. (Veja Tabela 1)

Se algumas linhas de ruptura podem sertraçadas entre essas diferentes fases, elasprovavelmente se situariam em torno davirada do milênio, de 1999 a 2001, quando oMercosul enfrenta a grave crise econômica

do Brasil e da Argentina, e, novamente, apartir de 2003, quando sua orientação geralsofre profunda inflexão, comoexemplificado no quadro analítico seguinte,que evidencia, por sua vez, as concepçõesgerais que presidiram à sua "filosofia" deorganização e desenvolvimento ao longodo tempo. (Veja Tabela 2)

Promessas não realizadas, coordenaçãofrustrada, avanços limitados

Uma tentativa de síntese informativasobre o itinerário histórico do Mercosul,desde suas origens até a atualidade, nãopoderia deixar de identificar, em suasprincipais etapas, os traços característicos decada uma delas: otimismo comercialista,durante o período de transição, justificadopelo crescimento dos intercâmbios, paradentro e para fora do bloco em formação;realização apenas parcial, nesse período, domandato original conferido pelo TA;confirmação institucional(intergovernamental) do bloco em seuformato de união aduaneira; esta permaneceincompleta, como aliás reconhecidooficialmente, com uma TEC excessivamenteperfurada por exceções nacionais, que foram

Tabela 1

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sendo acrescidas no período subsequente,não diminuídas; dificuldades adicionais, noperíodo pós-transição, para o cumprimentodos requisitos principais do mercadocomum proposto originalmente (umobjetivo que foi, de fato, abandonado, aindaque discretamente); ocorreram, também,desvios e recuos no objetivo do próprioconceito de união aduaneira, com oenfraquecimento de seu conteúdo comercial;finalmente, na fase mais recente do processodo Mercosul – se é que se pode, de fato, falarem processo, quando a expressão rupturatalvez seja a mais adequada para o períodopós-crises brasileira e argentina –, a ênfasefoi colocada na vertente política dasiniciativas do bloco, com o envolvimento demovimentos sociais e de atores não-estataisnuma intensa agenda de encontros ereuniões de grupos de trabalho, comescassos resultados práticos (senão muitasviagens, muito papel e muita retórica).

Em qualquer hipótese, não se pode reduzira importância dos resultados positivos, entreeles: a consolidação de uma relação bilateralentre o Brasil e a Argentina que já foi muitasvezes definida – até com certo exagero –como estratégica; a implementação de umazona de livre comércio relevante para muitosatores econômicos em cada um dos países,ainda que com diversas deficiênciasfuncionais e lacunas setoriais; a cooperaçãojurídica entre os países membros, o quereforçou a boa convivência política entre osEstados e seus respectivos poderesjudiciários; o desenvolvimento de sistemasde solução de controvérsias, aindaembrionários, mas suscetíveis de garantirem,no limite, maior previsibilidade de resultadossatisfatórios nos inevitáveis litígioscomerciais entre os Estados Partes (ainda quecom descumprimentos políticos que podemjustificar um recurso eventual ao sistema daOMC). O resultado mais positivo foi, de fato,o aumento do comércio e dos investimentosrecíprocos entre os membros e, a partir daí, a

ampliação dos intercâmbios com os demaisvizinhos, a começar pelos dois associados,Chile e Bolívia (seguidos, mais tarde, peloPeru). Não se logrou constituir com oMercosul a base de uma vasta zona de livrecomércio sul-americana, como pretendidodesde 1993 (Alcsa); mas a rede de acordosaladianos negociados paulatinamente abriucaminho para a ampliação das preferênciascomerciais – hoje relativamente modestas –num futuro indefinido; o Brasil, pelo menos,foi bastante beneficiado nesse novo contexto,tendo na região o seu mais importantemercado para produtos industriais de maiorvalor agregado.

O reconhecimento internacional doMercosul também deve ser consideradocomo um elemento importante no cenário denegociações comerciais, embora esse aspectotenha de ser avaliado realisticamente aolongo do tempo. No início do processo, aunião dos membros do Mercosul oferecia asmelhores perspectivas de um reforçopositivo nas condições de barganha negocialcom parceiros mais poderosos – como EUA eUnião Europeia –, quadro que foi sendomatizado nos anos seguintes, quandodiferenças importantes de posição foramsendo reveladas na postura de um dos doisgrandes em relação a concessões que teriamde ser feitas em alguns desses processosnegociadores (na Alca, na OMC, com a UE).As limitações e resistências do ladoargentino, por exemplo, podem ter impedidoum possível avanço (não garantido, porém)em direção de uma finalização dascomplexas negociações com a UE e noâmbito da Rodada Doha.

Quaisquer que sejam os desafios externosao desenvolvimento bem sucedido doprocesso de integração do Mercosul, eles nãosão, contudo, os mais importantes ou cruciaispara a consolidação desse bloco, que éfrequentemente identificado como o maisimportante espaço econômico integrado entrepaíses em desenvolvimento, Na verdade, o

Tabela 2

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bloco Asean+China oferece, atualmente, umaconcorrência respeitável a tal classificação,ainda que como área de preferênciascomerciais, caminhando para tornar-se umazona de livre comércio, aliás, uma dasmaiores do mundo. Os principais desafios doMercosul são propriamente internos; elesderivam, em grande medida, doprotecionismo renitente que persiste nos doisgrandes sócios e também do soberanismotradicional de sua cultura política e jurídica.O bloco também padece com a indiferençadas burocracias nacionais – à exceção daquelados ministérios das relações exteriores e,parcialmente, a das agências econômicasdiretamente envolvidas nas negociações – emrelação aos requisitos integracionistas quesão por vezes atingidos negativamente pormedidas adotadas em cada um dos países emdiferentes aspectos de suas políticas setoriais.

Mais importantes ainda são os obstáculosobjetivos colocados pelos líderes políticos

nacionais – de quaisquer tendênciasideológicas – à realização das reformas queprecisariam ser feitas internamente paragarantir a internalização adequada dasnormas e decisões aprovadasconsensualmente pelos países membros.Os perigos para o Mercosul não estãoexatamente na sua reversão ou na "extinção"de fato – já que de direito não existemchances disso ocorrer, pois os mesmospolíticos que se recusam a fazer reformas,tampouco ousam reformar o funcionamentodo bloco. A perspectiva mais propriamentepessimista estaria, assim, no seuesgotamento ou estagnação, ou seja: emlugar de perseguir os objetivos ainda nãocumpridos – e talvez considerados"utópicos" atualmente – e de se esforçar porelevar padrões de coordenação de políticas –senão macroeconômicas, pelo menossetoriais, ou aquelas áreas de política fiscal,tributária e creditícia, por exemplo, que maisafetam as políticas industriais – os paísesacabam se conformando com a zona de livrecomércio incompleta que existe hoje, e com acontrafação de união aduaneira em vigor.

Alan Marques/Folhapress

O presidente Lula na solenidade deassinatura do decreto que instituiuo Mercosul Social e Participativo,em outubro de 2008.

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ACSPParcerias.pdf 26/11/2010 5:27:43 PM

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