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Digesto Econômico nº 447

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Março e Abril de 2008

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Núcleo de Promoção - ACSP

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CARTA AO LEITOR

Mais uma vez, a revista Digesto Econômico cumpre a missão que se propôs, há mais desessenta anos, que é a de debater com os seus leitores assuntos de impacto na economia e nasociedade brasileira, sempre com a opinião de especialistas renomados, que nos passam umavisão mais acurada e abrangente do mundo em rápida transformação.

Para esta edição, o destaque é a China, atual centro dos debates, seja pela forte economia,seja pelos Jogos Olímpicos, que será a maior festa do esporte de todos os tempos, grandiosacomo tudo que é made in China. Os chineses foram os responsáveis por grande parte docrescimento da economia mundial no ano passado. O seu PIB cresceu espantosos 11,9%,contra apenas 5,4% do Brasil. Com a crise imobiliária americana se espalhando pelo mundo,será o crescimento chinês que estará evitando uma catástrofe global.

Sobre este tema, diretamente de Pequim e de Guangzhou, a repórter Sonaira San Pedroescreve sobre as particularidades desse país, seus costumes e explica como os empresáriosbrasileiros podem participar de negócios na China. Para completar, o jornalista RenatoPompeu adentra pela história e pela cultura chinesa. Já o consultor Hsieh Yuan, da KPMG,mostra em quais setores o Brasil poderia se beneficiar do crescimento chinês; enquanto que oeconomista Antonio Barros de Castro, em um primoroso artigo, afirma que o centro degravidade do crescimento econômico mundial vem se deslocando para a Ásia (na próximaedição, abordaremos o crescimento da Índia, país que vem se destacando em prestação de serviços etecnologia, principalmente no desenvolvimento de softwares).

Um outro tema relevante desta edição é a ameaça de aprovação da Convenção 158 da OIT -Organização Internacional do Trabalho, que tramita no Congresso. Se aprovada, traráenormes problemas para o empresariado, pois para demitir um funcionário, a empresa teráde justificar por escrito as razões, e o processo envolverá os sindicatos e a Justiça do Trabalho.Falam sobre este assunto Almir Pazzianotto Pinto, que foi presidente do Tribunal Superiordo Trabalho, o professor José Pastore, o tributarista Ives Gandra Martins, o advogadoRicardo Nacim Saad, entre outros.

O embargo da União Européia à carne brasileira também é abordado nesta edição peloprofessor Sérgio De Zen, pesquisador da Esalq. O economista Paulo Rabello de Castroafirma, em seu artigo, que há uma tendência de agravamento da crise americana, que passoupara um segundo estágio de contaminação e que o mundo está perto de uma perigosa etapa,que é a do pânico. O sociólogo Oliveiros S. Ferreira opina a respeito da política externabrasileira frente ao conflito entre a Colômbia e o Equador, no episódio sobre o ataque doexército colombiano contra guerrilheiros das FARC em território equatoriano.

Boa leitura!

Alencar BurtiPresidente da Associação Comercial de São Paulo e da

Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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4 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL 2008

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

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Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

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fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP. CAPAIlustração: Antar Dayal/Corbis

ÍNDICE

Reprodução

18Nossa repórter noninho dos dragões

Sonaira San Pedro

Sonaira San Pedro/DC

6A China, cada vezmais próximaRenato Pompeu

22China: ameaça ouoportunidade?Hsieh Yuan

Paulo Pampolin/Hype

24No espelho da ChinaAntonio Barros de Castro

Stringer/Reuters

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5MARÇO/ABRIL 2008 DIGESTO ECONÔMICO

36Empresários em estado de alerta

Masao Goto Filho/e-SIM

46O Brasil precisa daconvenção 158?Almir Pazzianotto Pinto

48Convenção do retrocessoIves Gandra da Silva Martins

Alfer

50Os vários interessadosna carne brasileiraSérgio De Zen

56A Europa quer fechar a porteiraPatrícia Büll

Rogério Cassimiro/Folha Imagem

60O mercado de trabalho da agroindústriacanavieira: desafios e oportunidadesMárcia Azanha Ferraz Dias de Moraes

Maurício Piffer/Folha Imagem

72A Crise passaao 2º estágioPaulo Rabellode Castro

Martin Oeser/AFP

74Risco calculado ouescolha de rota?Oliveiros S. Ferreira

80O que o capitalismo não éDiogo Costa

Alfer

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Reprodução

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Renato Pompeu

Na economia,a China está

mais perto doOcidente;

politicamente,ainda está

presa aoestatismo.

Reprodução

Está para fazer trinta anos que, em dezembro de 1978, dois anos depoisda morte de Mao Zedong, à qual se seguiram a condenação da Ganguedos Quatro, que comandara a malfadada, violenta e ineficaz Revolu-ção Cultural, e um expurgo de "desviacionistas de esquerda" do par-

tido e do Estado, a Terceira Reunião Plenária do 11º Comitê Central do Partido Co-munista da China, sob a então nova liderança de Deng Xiaoping, decretou o fim domaoísmo como bandeira política e econômica, e o manteve apenas como bandeiraideológica do regime chinês, segundo artigo do pesquisador americano GregoryAlbo publicado na revista Socialist Project.

Foi então iniciado um esboço muito precário de abertura política, com a con-denação da "luta de classes em escala de massa", mas principalmente foi introdu-zido o "trabalho do partido pela modernização socialista", ou seja, a combinaçãodo "ajuste pelo plano" com o "ajuste pelo mercado". As empresas estatais e as co-munas agrícolas adotaram práticas de mercado, como a demissão por falta de ren-tabilidade e o estabelecimento de preços segundo a fórmula custos mais lucro.

A partir de 1979, foram criadas zonas econômicas especiais, em que passarama vigorar práticas plenamente capitalistas, com empresas privadas e capitais es-trangeiros, que aproveitaram os baixos salários vigentes na China, para se d e-senvolverem rapidamente. Essas zonas eram situadas perto de Hong Kong eTaiwan, para atrair mais facilmente seus capitais. Tudo isso deveria ocorrer semmaior liberalização política e sempre sob o comando do Partido Comunista. Asfórmulas de liberalização econômica e autoritarismo político se mantêm até ho-je, com um crescimento econômico de continuidade ininterrupta, em proporçãosem paralelo nos países plenamente capitalistas, não se sabendo se esse carátercontínuo se deve exclusivamente à extrema liberalização econômica nos seto re sindustrial, comercial e de serviços, inclusive nas empresas estatais (que c o n c o r-

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rem entre si), liberalização que permitiu umdinamismo excepcional à economia chinesadurante décadas, ou se se deve em algumaparte, como argumenta a própria liderançachinesa, ao controle exercido pelo domíniodo Estado nos setores energético e, principal-mente, bancário – as crises de energia não fo-ram totalmente evitadas, mas as crises finan-ceiras, até agora, sim.

É isso que a liderança chinesa chama de "so-cialismo de mercado", a rigor só diferente, co-mo dizem muitos especialistas, do capitalis-mo com empresas estatais de grande porte vi-gente na Grã-Bretanha entre a Segunda Guer-

r a M u n d i a l e o g o v e r n oThatcher, pela extrema preca-riedade da situação dos traba-lhadores na China.

O grande problema é quehá uma grande contradiçãoentre a liberalização econô-mica e o autoritarismo polí-tico. O fato é que, economi-camente, a China está cadavez mais próxima do Oci-dente – politicamenteainda está presa ao seumilenar estatismo, que émuito anterior à toma-da do poder pelos co-munistas. Se, porém,como diz a própria

doutrina oficial na Chi-na, o marxismo, os fatores econômicos

sempre são mais decisivos do que os fatorespolíticos, não é demais esperar que, nas próxi-mas décadas, a liberalização política torne aChina ainda mais próxima dos países ociden-tais. Afinal, desde a liberalização econômicade 1978, houve um forte movimento pela de-mocracia, só esmagado pelo massacre da Pra-ça da Paz Celestial em 1989 – e não é segredoque as novas gerações de chineses estão insa-tisfeitas com as condições políticas atuais.

Como se aproximar dos chineses

De todo modo, autoridades e empresáriosda China estão ansiosos para entrar em con-tato com seus pares de todos os outros paísesdo mundo. Afinal, segundo Carlos Tavares

de Oliveira, assessor da Confederação Nacio-nal do Comércio, que lida com o comércio ex-terior há mais de 60 anos e desde 1971 vemchamando a atenção das autoridades e em-presários do Brasil para a importância de re-lacionar-se com a China, o antigo Império doMeio, somado a Hong Kong e Macau, já estásuperando os Estados Unidos como primeiropaís no comércio internacional, que no seu ca-so supera 3 trilhões de dólares anuais. Olivei-ra, ou Carlos Tavares, como prefere ser cha-mado, com suas décadas de experiência, dádois conselhos importantes a quem quiser fa-zer negócios com empresas chinesas.

O primeiro conselho é de que o caminhomais frutífero para a lida com negocianteschineses, como já descobriram mais de 400empresas multinacionais dos Estados Uni-dos, Japão e União Européia, é a associaçãocom empresas da China, sejam estatais, sejamprivadas. Os chineses se sentem mais segurosnesse tipo de empreendimento, e a associa-ção, mesmo com estatais, foi adotada em se-tores estratégicos, como a indústria automo-bilística, o campo do petróleo. A principalempresa privada brasileira, até agora, a terfeito associação com uma empresa da China,no caso estatal, foi a Embraer.

O segundo conselho de Carlos Tavares é"não forçar a barra", nunca pressionar, nuncainsistir, não esperar resolver as coisas logo noprimeiro encontro, ou no segundo ou no tercei-ro – deve-se respeitar o tempo dos chineses,suas preocupações. Devem ser realizadas nu-merosas reuniões, no café da manhã, no almo-ço, no jantar, alternando-se a China e o Brasilcomo sede das reuniões, até que os chineses sejulguem preparados para dar a resposta final.

Segundo Carlos Tavares, os negociadoreschineses gostam de receber presentes, como acamisa da Seleção Brasileira. Não se deve demaneira nenhuma conversar sobre política, ousobre religião, que são assuntos tabus na Chi-na. Em contrapartida, os chineses gostam deconversar sobre futebol, esportes em geral, so-bre teatro, turismo. Gostam de ser convidadospara visitar o Brasil.

Atenção especial deve ser dada ao compor-tamento nas refeições na China. Um jantar denegócios neste país consta de oito pratos segui-dos, e não se deve comer muito dos primeiros

Livro de CarlosTavares deOliveira contao início dacivilizaçãochinesa até asrelaçõescomerciaiscom o Brasil.

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pratos que forem oferecidos, pois senão o es-trangeiro pode se encher de comida e não que-rer comer dos pratos principais, servidos ao fi-nal, o que é interpretado como ofensivo. Car-los Tavares recomenda prestar atenção espe-cial ao prato chinês para ocasiões especiais, opato laqueado. Assim que os comensais se as-sentam, vão sendo servidas iguarias de pato,como asas, pé, coração e outros miúdos, mas oconvidado deve se conter na degustação des-ses pratos deliciosos, pois senão não poderácomer o prato principal, o próprio pato, que éservido ao final e deve ser comido como re-cheio de sanduíches com pão e temperadocom molho de soja.

Também é importante, para manter conver-sas, ter noções abrangentes sobre a milenarcultura chinesa. Para isso é útil ler livros sobrea China, como os do próprio Carlos Tavares,que incluem China – o que é preciso saber, lança-do em 2004, e China, origens da humanidade, aser lançado nos próximos meses, ambos pelaAduaneiras, de São Paulo. Neste último livro,Carlos Tavares conta como os chineses são res-ponsáveis por mais de setenta entre as princi-pais invenções humanas. Além das mais co-nhecidas, como a bússola, a pólvora, o papel ea imprensa, as invenções chinesas incluem acerveja, o vinho, o próprio futebol, as cartas denavegação. Carlos Tavares julga que já estáprovado que navegantes chineses atingiram aAmérica bem antes de Colombo. Ele sabe doque está falando: afinal, já em 1992, ele lançou,pela Foglio, do Rio de Janeiro, o livroChina, su-perpotência do século 21 – lema que só muitosanos mais tarde se tornou um lugar comum –,com prefácio do empresário Horácio Coim-bra, da Cacique, a primeira empresa brasileiraa se ter estabelecido na China.

Até que esses encontros se tornassem pos-síveis, no entanto, no decorrer de milênioshouve muito desencontros entre a China e oOcidente.

As origens remotas do afastamentoentre Oriente e Ocidente e a suarecente aproximação e seu futuro

Durante milênios, apesar de contatosmais freqüentes e mais intensos do que secostuma imaginar, Ocidente e Oriente vive-

ram trajetórias separadas e diferenciadas. Àprocura da origem dessas diversidades, mui-tos estudiosos chegaram à conclusão de que oque caracteriza o Ocidente é o individualis-mo e o que caracteriza o Oriente é o coletivis-mo, ou, mais exatamente, o comunalismo. Is-so teria uma explicação remota no tempo. Asprimeiras comunidades humanas se dedica-ram à caça, pesca e coleta, e os seres humanosse organizavam em tribos. Em seguida, com osurgimento da agricultura, apareceram asprimeiras aldeias; depois, federações de al-deias comandadas por uma cidade. Nessa fa-se, nas aldeias e nas cidades, surgiram os pri-meiros governos e forças armadas, sustenta-das por tributos arrecadados primeiro em es-pécie. Em troca de serem sustentados pelos

O povochinês temmais de 7

mil anos dehistória e háindícios que

descobrirama América.

Reprodução

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agricultores e lavradores, administradores esoldados regulavam as relações sociais e eco-nômicas, e protegiam a sociedade contra in-vasores e agressores.

Pouco a pouco foram se organizando fede-rações de cidades, em reinos e impérios, emparticular para controlar a distribuição daságuas dos rios e córregos entre as proprieda-des agrícolas familiares, que eram constituí-das de posseiros livres, mas controlados, poistinham de cumprir cotas de produção e de tri-butos. Não havia escravos nas propriedadesagrícolas, mas sim no serviço doméstico, nasobras públicas, como canais, templos, e noserviço militar. Aliás, não se pode falar empropriedades agrícolas, pois todas as terraseram de propriedade da comunidade, na pes-soa do rei ou imperador, que atribuía a possede cada terreno e de cada empresa a verdadei-ros funcionários públicos nomeados, esque-ma semelhante funcionando para a nomea-ção de arrecadadores locais de tributos e ad-ministradores, que chefiavam soldados ar-mados. Isto prevalecia em todo o mundoentão civilizado, na Mesopotâmia, Irã, Índia,China, Meso-América, Peru.

Foi então que ocorreram, por volta de 2 milou 1.500 anos antes de Cristo, os eventos de-cisivos que diferenciaram Ocidente e Orien-te. Invasores vindos do norte e do leste ocu-param o território que hoje constitui a Gréciae, mais tarde, a Itália, e transformaram em es-cravos os agricultores que lá se encontravam,em propriedades individuais outorgadas aosprincipais chefes invasores. Surgiam ao mes-mo tempo, no Ocidente, o escravismo agríco-la, a propriedade privada e o individualismodos proprietários, enquanto nas outras par-tes do mundo continuavam a prevalecer apropriedade comunal, na pessoa do sobera-no, e o comunalismo

Desde então, a história do Ocidente, se-gundo muitos estudiosos, passou a oscilarentre a liberdade e a igualdade. A liberdadedos proprietários individuais permitia queos mais capazes dentre eles ocupassem maisespaço social, econômico e cultural, e os pro-prietários menos favorecidos, baseados emque eram igualmente proprietários, exigiamigualdade de direitos, particularmente di-

reitos políticos. Surgia então, pela primeiravez na história, na Grécia antiga, a noção dedemocracia, ou seja, a noção de igualdade dedireitos políticos entre os proprietários – jáque os não proprietários, ou seja, naquelaépoca, os escravos, estavam excluídos dequalquer direito.

Fora do Ocidente, entretanto, a oscilaçãoera entre comunidade e eficiência. Suce-diam-se períodos em que prevalecia o comu-nitarismo, a noção de que cada um fazia par-te de um todo social e cada um tinha um lu-gar bem definido e sempre digno dentro dasociedade, e períodos em que prevalecia abusca de eficiência, em que os mais eficientesgarantiam privilégios a que os menos efi-cientes não tinham acesso.

Dentro dessas linhas, segundo muitos pes-quisadores, é que teriam ocorrido os percal-ços históricos subseqüentes. No Ocidente, apropriedade individual se transmutou de es-cravista em feudal e, depois, em empresarial.Os antigos escravos se transmutaram em ser-vos semi-livres, que tinham de trabalhar par-te do tempo nas terras do senhor feudal, mas,fora disso, trabalhavam em suas próprias ter-ras e, além do necessário para a subsistência,tinham direito de dispor livremente do exce-dente, isto é, de vendê-lo a particulares. Daíem diante a história é bem conhecida, a datransição para a sociedade empresarial, emque continuou a prevalecer progressivamen-te a noção de democracia, a noção de igualda-de de direitos políticos entre os livres pro-prietários, primeiro restrita aos proprietáriosde empresas, e depois, ao longo dos séculos19 e 20, estendida também para os proprietá-rios inicialmente só de si mesmos, os assala-riados, capazes, ao contrário dos escravos edos servos, de dispor livremente, em tempointegral, no mercado de trabalho, das suasaptidões de trabalho e da possibilidade denegociar seu preço. Essa seria a história dademocracia ocidental.

Uma contraprova indireta dessa tese é o ca-so excepcional do Japão. Neste, por volta daIdade Média européia, os antigos funcioná-rios públicos nomeados para administrar ca-da região e arrecadar os impostos de que ti-nham de reservar grande parte para o gover-

Ópera dePequim:em meio àonda demodernizaçãoe influênciasdo Ocidente, ogoverno lutapara mantervivas astradições.

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no central do imperador, se revolta-ram para aumentar suas partes dostributos e se transformaram em se-nhores feudais, isto é, em proprie-tários individuais semelhantesaos europeus da mesma época. Is-so facilitou a transformação dasociedade japonesa numa socie-dade empresarial semelhante àssuas contrapartidas na Europae na América. Essa seria a raizdo fato de a democracia de li-vres proprietários, seja de em-presas, seja de suas própriaspessoas, ter triunfado tam-bém no Japão.

Na Rússia, em que preva-lecia uma situação interme-diária entre o Ocidente e o

Oriente, foi possível instalar-se uma economia empresarial, mas sob a égi-de e o controle do Estado, primeiro do Estadotzarista, depois do Estado comunista e em se-guida do Estado pós-comunista, em que atendência maior não tem sido a oscilação en-tre a liberdade e a igualdade e a prevalênciada democracia, mas sim a antiga oscilação en-tre a comunidade e a eficiência e a prevalênciado autoritarismo.

A China seguiu trajetória mais semelhante àda Rússia do que à do Japão, com exceção deque o Estado pós-comunista que controla aeconomia empresarial continua dirigido porcomunistas. Resta à história no futuro decidirse, após um período de predomínio da eficiên-cia, se sucederá na China novo período de co-munitarismo, ou se, como no Japão, mas emcircunstâncias diferentes, os proprietáriospassarão de controlados a livres, a mão-de-obra passará a poder negociar livremente oseu preço no mercado e assim se constituirãoas condições de instauração de uma democra-cia semelhante à ocidental e à japonesa.

O cotidiano da China atual

Mas como é, em termos mais concretos, a vi-da dos chineses, que constituem um quinto dapopulação do mundo e levam adiante a econo-mia mais dinâmica do planeta. Um dos livros

mais importantes a ter saído no Brasil recente-mente sobre a China é, sem dúvida, Um brasi-leiro na China – O olhar de um jornalista estrangei-ro sobre o país que mais cresce no mundo, de Gil-berto Scofield Jr., correspondente do jornal ca-rioca O Globo em Pequim, editado pelaEdiouro. Sua principal contribuição parece sero desmentido à visão muito difundida de que aChina seria um país parecido com o Japão. Aocontrário, segundo Scofield, o país não é nadazen e tranqüilo, nada disciplinado e organiza-do. Como se pode ver na foto que ilustra a capado livro, em que pessoas que andam de bicicle-ta seguem diferentes direções, seja qual for oponto da pista onde estejam, correndo o riscopermanente de colisões, a paisagem urbana daChina é um caos tanto no trânsito de veículos eno tráfego de pedestres, como nas novas cons-truções que se sucedem ininterruptas pratica-mente em toda a cidade, em meio à poeira e aobarulho, e sob uma espessa nuvem de poluiçãoabsolutamente sem controle.

Não existe, na milenar cultura chinesa, a no-ção de fila, que só agora o governo está fazendocampanha para implantar, por causa dasOlimpíadas. A insegurança permanente se re-pete nos meios de transporte público, em queos que querem entrar no metrô, que sempresão uma massa de pessoas, se chocam com osque querem sair, que invariavelmente são ou-tra massa de pessoas – e nesse entrechoquevencem os mais fortes. Pois o governo não con-segue impor a noção de que os que saem dometrô têm precedência sobre os que entram,como acontece em quase todos os países. Tam-bém os motoristas de veículos não têm a noçãode via preferencial nos cruzamentos, que sem-pre são um palco de desafios.

Por trás de todo esse caos urbano, estão asenormidades demográficas da China. Afinal,nesse país se concentra um quinto de toda a po-pulação mundial. Há muitos anos já que o go-verno estabeleceu um pesado imposto sobreos rendimentos do casal que tenha mais de umfilho e se estima que finalmente a vasta popu-lação da China vá começar a se estabilizar e emseguida vá cair, a partir de 2040. Por enquanto,os casais vão procurando meios de driblar essa"proibição de ter mais de um filho". Como oshomens são considerados mais importantes

Um brasileiro naChina: livro dojornalistaGilberto ScofieldJr. abordacomportamento,história, cultura,economia eoutros assuntosvariados.

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do que as mulheres, e numa prática que anti-gamente era mais comum, se dava "um jeito"(infanticídio) se o primeiro bebê fosse menina,e assim por diante, até que nascesse um meni-no – a tal ponto que, nas gerações mais jovens,há bem menos mulheres do que homens e boaparte destes estão condenados à solteirice vi-talícia. Mais recentemente, se descobriu quemesmo mulheres férteis, se fizerem tratamen-to de fertilidade antes reservado às inférteis,aumentam as chances de terem gêmeos, casoem que não se aplica a "lei do segundo filho" –e o resultado é que há um número excepcional-mente grande de nascimentos de gêmeos nasmaiores cidades chinesas.

Na China, como nos países muçulmanos, oshomossexuais continuam sendo malvistos, co-mo eram no Ocidente até a segunda metade doséculo 20. Afinal, na Grã-Bretanha de até então,o homossexualismo era muitas vezes conside-rado crime. Os homossexuais chineses, até2001, eram considerados oficialmente doentesmentais; afinal, a Associação Psiquiátrica Ame-ricana só retirou o homossexualismo da lista dedoenças mentais nos anos 1950.

A China alardeia que lá vigora a liberdadereligiosa, mas isso só é válido para os cultosconsiderados leais ao regime. No caso dos ca-tólicos romanos, só se toleram os que não re-conhecem o papa; no caso dos budistas tibeta-nos, só se toleram os que não reconhecem o Da-lai Lama e sim o Panchen Lama, nomeado pe-las autoridades chinesas. Seitas como a FalunGong não são toleradas e seus membros sãosistematicamente perseguidos e mesmo deti-dos, presos e condenados.

A China não constitui um Estado-nação esim um Estado multinacional, em que as et-nias não chinesas, como os tibetanos e os uigu-res, são oprimidas, sem autonomia política esempre sofrendo tentativas de desenraiza-mento cultural. Aliás, ao longo da história, amaior parte dos Estados, como o Império Ro-mano, foram multinacionais mas nos últimosséculos, e com a difusão cada vez maior da eco-nomia empresarial, que precisa de mercadosunificados culturalmente, tem vigorado cadavez mais a tendência a Estados nacionais, co-mo mostram a dissolução, no começo do sécu-lo 20, do Império Otomano e do Império Aus-

tro-Húngaro, e, no fim do século passado, daUnião Soviética e da Iugoslávia. Os recentesacontecimentos no Tibete mostram que o Es-tado multinacional chinês também corre ris-cos de dissolução.

Quanto à política entre os próprios chine-ses dominantes, existem muito dissidentes,desde pró-ocidentais até comunistas radi-cais que querem eliminar a iniciativa priva-da. Quando adquirem alguma força, ou re-percussão internacional, esses dissidentesficam sujeitos a ser demitidos de seus em-pregos, destituídos de seus cargos, detidos eaté mesmo condenados à prisão.

Temas polêmicos no cinema e naliteratura

Até que ponto a cultura chinesa contemporâ-nea reflete esses conflitos e até que ponto vale apena ler a ficção chinesa e assistir a filmes chine-ses para conhecer melhor o país? Assuntos po-lêmicos – sexo, religião e política – têm presençabem menor no cinema chinês do que, por exem-plo, no americano e europeu. Quando se assiste aum filme chinês, é preciso verificar se ele é ori-ginário de Hong Kong ou Taiwan, onde as regrassão mais liberais, ou se é provindo da China.Neste último caso, o filme pode estar liberado

O governoestabeleceu umpesado imposto

sobre osrendimentosdo casal que

tivesse mais deum filho.

Simon Zo/Reuters

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para passar no exterior, em particular em festi-vais, mas pode não ser liberado para passar naprópria China.

A primeira exibição de cinema na China datade 1896, em Xangai. O primeiro filme chinês foifeito em 1905, pela Ópera de Pequim, A Batalhade Dingjunshan. Nos anos 1920, técnicos ameri-canos ajudaram companhias chinesas a realizar

filmes de entretenimento; nosanos 1930 surgiram os chamados"filmes esquerdistas". Durante aocupação japonesa, poucos fil-mes foram feitos nas regiõesnão ocupadas, em especial emXangai, com nacionalistas ecomunistas disputando a in-fluência sobre os cineastas.Com a ofensiva japonesa emmúltiplas regiões, cineastaschineses chegaram a reali-zar filmes pró-Japão.

Com a vitória sobre oJapão, e em meio à guerracivil em que os comunis-tas iam conquistandocada vez mais territórios

nacionalistas, foi retomada a in-dústria cinematográfica, denovo em Xangai, e a obra-pri-ma desse período, de 1948, éPrimavera numa cidadezi-nha, do diretor Fei Mu, filmeque foi considerado o me-lhor de todos os tempos naChina, num festival emHong Kong, em 2004. Noentanto, desde a tomadado poder pelos comunis-tas, até a última virada deséculo, estava proibidocomo "direitista".

De 1949 a 1966, istoé, entre a RevoluçãoComunista e a Revo-

lução Cultural, foram feitos maisde 600 filmes de longa-metragem e mais de 8mil rolos de curtas, documentários e dese-nhos, praticamente todos de propaganda po-lítica, com diretores, técnicos e atores larga-mente treinados em Moscou, e sempre com

sua "ideologia" variando de acordo com os hu-mores das autoridades dominantes. Os avan-ços foram principalmente técnicos, em espe-cial nos desenhos animados, em que foramaproveitadas as milenares técnicas chinesasde pintura, recorte em papéis, teatro de som-bras e de bonecos. Um desses desenhos, Con-fusão no Céu, dos Irmãos Wan, teve êxito in-ternacional no começo dos anos 1960.

Nessa época, ocorreu um abrandamento dacensura e os filmes adquiriram um carátermais chinês do que soviético, como o famosoDestacamento Vermelho de Mulheres, lança-do pelo diretor Xie Jin, em 1961.

Mas em seguida veio a longa noite da Revo-lução Cultural, com seus efeitos catastróficos decensura e perseguição tendo durado até o fimdos anos 1970, praticamente até 1978, quandocomeçou a grande abertura econômica e a pe-quena abertura política vigentes até hoje. Poucosfilmes foram realizados durante a RevoluçãoCultural, o único importante sendo, em 1971,uma versão musical e de balé do Destacamento,e a maioria dos filmes anteriores foi proibida.

Quando houve a primeira e ainda tímida li-beralização, nos anos 1980, o cinema já tinha deenfrentar a concorrência da televisão e nuncamais alcançou o pico de 4 bilhões de entradasvendidas, em 1959. Além disso, as autoridadeschinesas viam como politicamente incorretasas produções mais populares, de aventuras eartes marciais, tão difundidas no mundo intei-ro, mas por Hong Kong e Taiwan e não pela Chi-na Popular. De todo modo, então surgiram oschamados "filmes das cicatrizes", de descriçõesdos horrores das perseguições, homicídios, tra-balhos forçados e delações da Revolução Cul-tural, como Chuva ao entardecer, de Wu Yi-gong, de 1980; A cidade do hibisco, de Xie Jin,de 1986. Esses filmes, no entanto, ainda se-guiam, formalmente, o chamado "realismo so-cialista". Mas então, nos fins dos anos 1980, co-meçou um grande período de filmes de arte,com diretores revolucionários esteticamente,como Chen Kaige e Zhang Yimou apresentan-do filmes como Rei das crianças (1987) e o famo-so Lanternas Vermelhas (1991); e a partir daí orealismo socialista praticamente sumiu das te-las, substituído até por filmes policiais e a res-peito de temas sobrenaturais.

A primeiraexibição decinema naChina datade 1896, emXangai.O primeirofilme chinêsé de 1905

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No entanto, desde os anos 1990, com a inten-sificação da repressão política a partir do Mas-sacre da Praça da Paz Celestial em 1989, os fil-mes mais interessantes do cinema chinês passa-ram a ser feitos, semiclandestinamente, poramadores, com tomadas longas e som local,num estilo documentarista. Filmes menos am-biciosos artisticamente e documentalmente,mas com grandes recursos de produção, têm si-do feitos em co-produções com empresas es-trangeiras, em geral de aventuras, como Herói,de 2002, ou Botão de Jasmim, mais recente. Ficaclaro, de todo modo, que assistir a filmes chine-ses, embora permita conhecer a cultura chinesae os costumes dos chineses, não permite ter umaidéia muito nítida sobre o cotidiano chinês con-temporâneo, suas agruras e suas bonanças. Issoé muito mais tarefa da literatura, em especial daliteratura dos autores exilados.

Do clássico ao contemporâneo

Textos em chinês existem pelo menos desdeo século 14 antes de Cristo, mas o primeiro au-ge da literatura clássica, como os livros de

Confúcio e Lao Tzu, além do I Ching, ocorreu apartir de 600 anos antes de Cristo. Embora te-nham sido proscritos no auge do comunismo,quando se queria criar uma sociedade nova apartir do zero, o confucionismo, com sua metade bem-estar social e o estabelecimento dosdeveres recíprocos de governantes e governa-dos, e o taoísmo, com seu cultivo da vida ínti-ma e pessoal, são até hoje influentes na China,como também os textos budistas posteriores.O I Ching goza de fama mundial.

Sucederam-se ao longo dos séculos obras-primas da poesia, como O livro dos cantares(da mesma época de Confúcio), e da prosa, co-mo O Romance dos Três Reinos, que se refere aacontecimentos do século 3 d.C., mas deve tersido escrito mil anos depois. Do século 18 é oromance considerado mais importante da lite-ratura chinesa, Sonho da Câmara Vermelha,do autor Tsao Hsueh Chin, sobre as aventurasamorosas de um cortesão.

A partir da instauração doregime republicano em 1911,começaram a aparecer tradu-ções de obras de autores oci-dentais, o que influenciou aliteratura que se seguiu, emque os grandes nomes daprosa foram, até a tomadado poder pelos comunis-tas, Guo Moruo e MaoTun. Logo após 1949, im-pôs-se o realismo socia-lista, mas num curto pe-ríodo, chamado dasCem Flores, nos mea-dos 1950, foram auto-rizados outros esti-los. Isso porém foiuma verdadeira ar-madilha, pois os quese atreveram a publicar obrasnão realistas-socialistas logo passaram a serperseguidos como "direitistas", ainda antes datristemente famosa Revolução Cultural de1966-1976, dez anos em que milhares de pes-soas com formação superior foram condena-das a se "reeducar" trabalhando na lavoura.

Com a morte de Mao em 1976 e a ascensãode Deng em 1979, começaram as primeiras li-

À esq., cartaz dofilme LanternasVermelhas, querecebeu prêmio

no Festival deVeneza. Abaixo,

capa do livro AMontanha e o

Rio, de Da Chen.

Divulgação

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16 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL 2008

beralizações também na literatura. Surgiram a"literatura dos machucados", relatando osdesmandos da Revolução Cultural, e a litera-tura feminista, pela primeira vez na história daChina, com nomes como Zhang Jie. Mas, de-pois do Massacre da Paz Celestial em 1989, osmelhores autores passaram a publicar ou emTaiwan ou em países como os Estados Unidos.Em 2000, Gao Xingjian se tornou o primeirochinês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura.Nascido em 1940, foi denunciado pela própriaesposa durante a Revolução Cultural, que o

condenou a trabalhar como lavra-dor. Reabilitado, passou a poder

viajar para o exterior a partir de

1979, publicando obras de um realismo pessi-mista que sempre incomodou as autoridadeschinesas. Sua peça Ponto de ônibus foi proibi-da em 1983; o ônibus levava dez anos para che-gar, como o fim da Revolução Cultural. Desde1987, vive em Paris.

O autor chinês não exilado mais importanteé Su Tong, autor dos livros que deram origemaos filmes Lanternas Vermelhas, sobre as rela-ções familiares anteriores ao comunismo, emque o homem podia ter várias esposas, e Botãode Jasmim, sobre a tragédia das vidas de avó,filha e neta em meio aos tumultos da históriamoderna da China.

Mas uma visão da literatura da China não es-taria completa sem a menção aoutros autores exilados, comoDa Chen, radicado nos Esta-dos Unidos desde os anos1980, do qual foi publicado noBrasil o romance A montanhae o rio, editado pela NovaFronteira. Trata-se de umaobra de grande arte, que apre-senta um imenso painel da vi-da chinesa desde depois daRevolução Cultural até tem-pos mais recentes. É a históriade dois irmãos que não se co-nhecem, um deles filho legíti-mo de um alto oficial militar, fi-lho que é criado em meio ao lu-xo e ao requinte cultural dasmais altas rodas de Pequim, e ooutro seu filho ilegítimo, cria-do em meio à miséria de uma

aldeia da fronteira com o Vietnã e à violência dereformatórios. O filho legítimo e rico se tornadissidente pró-democracia e o filho ilegítimo epobre se torna agente do governo comunista.Ambos alternam períodos de prisão e de poder– como mostra a história chinesa recente, lá umdos caminhos mais fáceis para o poder é a pas-sagem pela prisão e um dos caminhos mais fá-ceis para a prisão é a passagem pelo poder.

Estatal, mas não estática

Como mostram os livros de Da Chen, deCarlos Tavares e Scofield, a sociedade chine-sa pode ser ainda largamente estatal, mas es-

Antonio Milena

Mark Ralston/AFP

Apesar daproximidade, aChina não éparecida com oJapão. O paísnão é nada zen,como afirma ojornalistaGilberto ScofieldJr. em seu livro.

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17MARÇO/ABRIL 2008 DIGESTO ECONÔMICO

tá longe de ser estática. Outro livro importan-te, para conhecer a China, foi publicado eminglês, The China Fantasy, em que o autor, opesquisador americano James Mann, contacomo os dirigentes dos Estados Unidos bus-cam ignorar a repressão na China e mantêmboas relações com o governo repressor chi-nês, embora em outras partes do mundo pro-curem combater governos como os de Cuba,Venezuela e mesmo Rússia, em nome dos di-reitos humanos. A situação descrita porMann, entretanto, passou recentemente poralgumas mudanças – o governo americanoapoiou os rebeldes tibetanos em março últi-mo num grau bem maior em relação à ajudaque vinha prestando aos dissidentes chine-ses pró-ocidentais.

De todo modo, fica bem claro que uma so-ciedade industrial e empresarial só pode ter asua economia planejada, como na antigaUnião Soviética e na China Popular de antesde 1978, se se mantiver num único patamartecnológico. Ou se for possível, o que nuncafoi o caso, fazer todas as empresas do mesmoramo mudarem ao mesmo tempo o seu pata-mar tecnológico. É a concorrência que faz de-senvolver a tecnologia, pois pode ser possí-

vel a um país, dentro de de-terminados limites, plane-jar a indústria e, menos, aagricultura, o comércio eos serviços – mas não épossível planejar o de-senvolvimento tecnoló-gico, já que nunca se sa-be qual vai ser o resul-tado de cada pesquisa.A concorrência é quedesenvolve a tecno-logia. Por isso as an-tigas economias pla-nejadas da UniãoSoviética e da Chi-na Popular se tor-naram defasadast e c no l o g i ca m e n-te, como ainda são Cuba e aCoréia do Norte, e por isso a nova China,com concorrência inclusive entre as estataisdo mesmo ramo, se tornou a nação mais di-nâmica e mais tumultuada do mundo con-temporâneo. Resta ver se seu regime políticopoderá sobreviver a eventuais problemaseconômicos maiores.

Acima, capa dolivro de JamesMann, quemostra como osEUA ignoram arepressão naChina. Ao lado,o trânsitosempre caóticode Pequim.

Claro Cortes/Reuters

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Nossa repórterno ninho dosdragões

Sonaira San Pedroenviada especial à China

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Sonaira San Pedro/DC

Na China, é preciso deixar de lado todoaquele papo zen. Ao desembarcar nopaís, a primeira coisa que se observa éo superlativo. A começar pelo aero-

porto, recém-inaugurado Terminal 3, maior domundo e que impressiona pela arquitetura. Alémdos muros do aeroporto, tem gente demais, obrasdemais, bicicletas demais, carros demais e uma pró-pria lógica chinesa no meio desse caos que somenteeles entendem. Tudo parece exagerado e grandioso.Também pudera: estamos falando de um país queabriga um quinto da população mundial, ou 1,3 bi-lhão de habitantes, e de uma economia que cresce ataxa de 10% ao ano há mais de uma década. E que,além disso, passa por uma transformação aceleradaa tempo de ser apresentada oficialmente ao mundoem três meses, nos Jogos Olímpicos de Pequim,quando 1,7 milhão de estrangeiros devem desem-barcar no país e bilhões de pessoas assistirão os jogosde algum outro lugar do mundo.

É tamanho o interesse do mundo no país, que aOlimpíada de 2008 já é considerada um sucesso an-tes mesmo de o relógio marcar 8 horas, 8 minutos e8 segundos, no dia 8 de agosto, quando a pira doNational Stadium será acesa.

Além dos investimentos do governo chinês deUS$ 34,6 bilhões para a preparação do evento, ospatrocinadores desembolsam US$ 1,5 bilhão dedólares, ou o triplo do valor arrecadado nos Jogosde Atenas, há quatro anos. Os chineses continuamsupersticiosos e acreditam que o número 8 (diz-se

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ba e tem som parecido com o equivalente a rico) tragaboa sorte. Para um país que, por muitos anos aceitouapenas o esporte como manifestação coletiva possí-vel, já há expectativas de grandes investimentos es-trangeiros também por conta dos Jogos Asiáticos, queacontecem na região industrial do Cantão em 2010, eque deverão consumir mais US$ 27 bilhões em inves-timentos de infra-estrutura.

E é na região do Cantão, mais especificamente nosarredores de Guangzhou – capital da província deGuandong – e Shenzhen – colada à Hong Kong – queestá a grande maioria das fábricas chinesas. Montado-ras de carro, indústrias de aparelhos eletrônicos emgeral e siderúrgicas se espalham pela região. Ali, bai-xos custos de produção são financiados, principal-mente, pela mão-de-obra local barata e muito produ-tiva, por impostos e custos de infra-estrutura relativa-mente baixos e a desvalorização do renmibi, a moedalocal, em relação ao dólar. "Todas as empresas domundo estariam na China, se pudessem", afirmou asócia da empresa Win Business, Ling Wang, que hácinco anos assessora empreendedores brasileiros que

Na China, tudoparece

exagerado egrandioso, o

trânsito caótico,as filas debicicletas,

a aglomeraçãoem frente à

Cidade Proibidaem Pequim. No

destaque eabaixo, EstádioNacional, palco

dos JogosOlímpicos.

Sonaira San Pedro/DC

Antônio Milena

Liu Jin/AFP

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20 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL 2008

planejam fazer negócios com chineses.Ela contou o caso curioso da companhia alemã

Thyssenkrupp, que foi literalmente desmontada e semudou fisicamente de Dortmund para a cidade chi-nesa de Jingfeng, em 2002. Cerca de 250 mil toneladasde equipamentos foram enviados para o oriente,além de 40 mil quilos de documentos que explicavamonde deveria ser colocado cada parafuso da empresana hora da remontagem. "A fábrica foi reconstruídaexatamente como era na Alemanha e esse caso ilustrabem o que é a competitividade entre os mercados",disse a especialista.

Negócios da China

"A China é tão interessante para empreendedoresque querem se mudar para lá como para quem querimportar mercadorias. Mas, muitas vezes, eles nãotêm noção de como se dá o primeiro passo para isso",diz Ling Wang, que mostra o caminho. O primeiropasso é procurar câmaras de comércio, empresas es-pecializadas neste tipo de assessoria e associaçõesde empresários. "Eles darão toda a assistência quevocê precisar: desde como agir baseado nas diferen-ças culturais, a ajuda com intérpretes, os melhoreslugares para visitar, as missões comerciais, assistên-cia jurídica", disse.

Mas antes de contatar qualquer empresário chinês,entender a diferença cultural na área de negócios é es-sencial. Longe da ansiedade dos brasileiros, que pre-ferem resolver os negócios no primeiro encontro, oschineses gostam de aprofundar relações e não econo-mizam tempo em reuniões ou jantares para conhecer

melhor a pessoa com quem eles querem tratar. Por isso,ir à China com agenda apertada é perda de tempo.

As melhores entradas para o mercado chinês sãoas feiras de negócios. A mais disputada delas, porabrigar novidades de diferentes setores de produ-ção, é a Canton Fair, que acontece em Guangzhouduas vezes por ano e acaba de fechar sua primeiraedição de 2008.

Mas, antes de embarcar em uma das diversas mis-sões comerciais para o evento, que partem do Brasillevando empresários brasileiros, é melhor fazercontato com os empreendedores chineses que vocêdeseja visitar. "Porque não adianta chegar lá e pegarpanfleto para mandar e-mail depois que voltar aoBrasil", afirmou o encarregado das missões comer-ciais da China Trade Center, Adalberto Almeida. "Épreciso contatá-los antes pois, já no início das con-versas, você verá que as mensagens eletrônicas e ostelefonemas não serão respondidos prontamente.Os chineses são cautelosos no começo de um relacio-namento."

Ao final de um encontro de negócios, é esperada atroca de presentes entre os futuros parceiros comer-ciais. Convites para novos encontros mostram que areunião foi bem sucedida e aceitá-los é uma maneirade demonstrar que você também tem interesse em es-treitar o relacionamento – e fechar negócios, claro.

Nas primeiras vezes que esteve na China, há oitoanos, o empresário catarinense Zany Leite sentiu umpouco de dificuldade para se entrosar com os "chi-nos", mas adaptar-se à cultura local foi questão detempo. "No começo, eles são fechados, mas depoisque sentem confiança em você, podem se tornar seusmelhores amigos", disse, enquanto esperava um vôode Pequim para Guangzhou, para participar da Can-ton Fair. "E sem amizade não tem negócio".

Hábito peculiar dos chineses, lembrado pelo em-presário, é a dificuldade que este povo tem em dizer"não". Em uma negociação, se eles discordam doscaminhos que estão sendo tomados, simplesmentemudam de assunto ou tentam desviar a atenção pa-ra outro ponto da conversa de forma sutil. "É precisosensibilidade para pegar essas coisas no ar", afirmouLeite. "O melhor é não forçar a situação e deixar ascoisas acontecerem no tempo certo". Ou melhor, notempo dos chineses.

A arte da pechincha

Longe das mesas de negociações e da intenção deestreitar relacionamentos para se manterem negóciosduradouros, nos mercados populares chineses a regraé barganhar antes de fechar qualquer compra. E issovale até para os preços mais atrativos. Não se preocupe

Sonaira San Pedro/DC

Canton Fair: feira de negócios, que ocorre duas vezes por anoem Guangzhou. Uma das principais portas de entradapara empresários que desejam participar do mercado chinês.

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se você não fala chinês. O chinglês (mistura do idiomalocal com o inglês) praticado pelos vendedores ajudana negociação. Os comerciantes locais aprendem pa-lavras-chave em inglês para discutir com os estrangei-ros. "Luka, Guda!", costumam gritar os vendedorespara chamar a atenção de quem passa pelos estandesdo Silk Street Market, mercado onde se vende de tudoe é o terceiro destino mais visitado de Pequim, atrásapenas das Muralhas e da Cidade Proibida. Eles pe-dem para olhar o produto e, em bom chinglês adian-tam que é de boa qualidade. Se o visitante não der amínima para o vendedor, ele lhe puxa pelo braço paraavisar que vai dar desconto: "Chipa, Frenda!", ou ba-rato para o novo amigo.

Vale a pena negociar antes de fechar qualquer ne-gócio e o comerciante já vem com a calculadora emmãos para o momento da barganha. Se você não acei-tar o preço sugerido, ele vai lhe pedir para digitarquanto você quer pagar. A dica é oferecer um valorbaixíssimo, apenas 20% do preço originalmente ofere-cido. E, aí, começa a guerra dos preços. Mas não se con-tente com a primeira redução que conseguir. Conquis-tado o primeiro desconto, peça ainda mais barato três,quatro, cinco vezes e economize mais da metade dosseus reminbis para as próximas compras. "Os comer-ciantes colocam os preços lá no teto porque sabem quetodo mundo vai pedir desconto e a gente põe o preço láembaixo porque também quer tirar vantagem. Fazparte da cultura e é quase uma arte chinesa a negocia-ção", disse a estudante universitária Xiao Zheng."Muitos ocidentais que chegam aqui se empolgamporque acham que os preços são muito baixos. Mas, seeles pechincharem, ainda podem pagar menos".

Explosão do consumo

A classe média emergente chinesa e um mercadocom 1,3 bilhão de consumidores potenciais cha-mam cada vez mais a atenção de grandes marcasmundiais. O aumento da renda dos chineses, soma-do à vontade que eles têm de tirar o atraso de anos dedemanda reprimida de consumo, são a grande jus-tificativa para que quase todas as grifes do mundoestejam na China e, ainda, com projetos ambiciososde expansão no país.

O crescimento das vendas de varejo cresce 20% acada ano, o que ajuda a explicar a inflação de 8% so-mente no primeiro trimestre de 2008. Os carros, hojeo bem mais desejado pela classe média chinesa, vãotomando o lugar das bicicletas nas ruas das grandescidades. Os donos de telefones celulares já ultrapas-saram os de aparelhos fixos.

Nos mercados chineses, shoppings centers quecheiram à tinta fresca, recheados de artigos das me-

lhores grifes mundiais, são inaugurados no lugar deantigas lojas de departamento soviético. E as marcasestão de olho nos chineses que não se importam emcolocar a mão no bolso para ostentar grifes.

A segunda maior loja do mundo da Louis Vuit-ton, por exemplo, fica em Xangai (a primeira está emParis). Na onda deste consumo enlouquecido, amarca mineira Arezzo inaugura sua primeira loja nacosmopolitana Xangai. "O foco é o mercado de luxoe o plano é abrirmos 207 pontos-de-venda da marcaem território chinês até 2016", disse o diretor de ex-pansão e franquias da Arezzo, Mário Goldberg. "Aslojas serão exatamente iguais às do Brasil e vende-remos não somente os produtos, mas o conceito damarca neste novo mercado." Ainda em 2008, as ci-dades de Pequim, Guangzhou e Shenzhen abriga-rão lojas da grife brasileira.

O master franqueado e parceiro da Arezzo naChina é o grupo Prime Su-cess, representante de mar-cas como Adidas e detentorda rede de lojas de calçadospopulares Shoe Box. En-quanto no Brasil, um produ-to da marca mineira custa oequivalente a US$ 90, naChina ultrapassará os US$150. Todos os modelos serãoexportados do Brasil para opaís asiático, com detalhesdos calçados e acessóriosmais refinados que os brasi-leiros e adaptados ao gostoda consumidora chinesa.

Nas feiras livres, pechinche para economizar seusreminbis, pois os vendedores sempre colocam opreço inicial muito acima do real. Abaixo, estandeda Nissan na feira Beijing AutoShow 2008.

Reinhard Krause/Reuters

Frederic J. Brown/AFP

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Hsieh YuanDiretor doChina Desk daKPMG no Brasil

Divulgação AChina, conhecida nos anos 70 como"Dragão Adormecido", despertou e, aolongo das últimas duas décadas,apresentou atividade econômica

intensa, acumulando resultados positivos econquistando gradativamente posições político-econômicas antes limitadas aos países do G7.

Vivendo o momento mais favorável em todasua história, a China, apesar de ainda preservarvalores originados do sistema comunista, segueem direção à convergência de ações com ainiciativa privada nas esferas internacional,Estado Central, província e município. Sendoassim, verifica-se o desenvolvimento do setor dematéria-prima bruta e processada, além daaquisição de marcas globais de alta tecnologia –um exemplo é a compra da divisão de PCs daIBM pela Lenovo, aquisição das empresas RCANorte Americana e Thomson Francesa pelagigante de eletrônicos chinesa TCL.

China: ameaça

Paulo Pampolin/Hype

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O sistema financeiro chinês, focado nodesenvolvimento econômico do país, adotamedidas sólidas, visando resultados a médio elongo prazo. O mesmo pode-se dizer a respeitoda política de comércio internacional, quemesmo mantendo alguns valores protecionistas,apresenta uma equipe experiente denegociadores e defensores da quebra de barreirascomerciais. Outro ponto a favor da economiachinesa é o crescimento constante deinvestimentos estrangeiros no país, consideradoum dos principais alvos das multinacionais.

Entretanto, saciar o apetite do "gigante"demanda ainda o desenvolvimento dedeterminados setores, como Agricultura eEnergia. Neste cenário, encontra-se uma grandeoportunidade para o Brasil se firmar como playerimportante no mercado global.

O setor com maior potencial de crescimento é ode Petróleo e Gás, localizado, principalmente,nas áreas de Tarim, Turpan e Hami, no centro-oeste do país. O desenvolvimento da plataformasubmarina é outro foco de interesse dos países,uma vez que a China não apresentaconhecimento tecnológico suficiente paraexploração em águas profundas.

A área de Agricultura, até então muitoconcentrada na região Sul, tende a se expandirrumo às áreas mais ao norte, gerando anecessidade por expressivos investimentos. Ocrescimento continuo da renda dos trabalhadoresnas províncias litorâneas possibilita o aumentodo "apetite" do consumidor chinês por proteínasde maior qualidade e diversidade. Este cenáriobeneficia os produtores brasileiros decommodities, e abre espaço para produtos commaior valor agregado e abertura de itens ainda

restritos como ovinos e bovinos.Hoje, cerca de 70% da energia consumida no

país é proveniente do carvão, localizado emreservas estimadas em mais de 700 bilhõestoneladas. Na tentativa de identificar novasfontes, a construção de hidrelétricas ganhadestaque, uma vez que o potencial hídrico éestimado em 600 milhões kilowatts. Osbiocombustíveis também são vistos comoalternativa energética favorável à redução dapoluição ambiental. Além disso, cerca de trêsdezenas de usinas termonucleares estão sendoplanejadas. As diretrizes do governo centralsobre metas de melhoria da eficiência energética,assim como os percentuais para diversificaçãosão grandes desafios para o país.

Sob o aspecto do desenvolvimento industrial,é preciso focar na melhoria de eficiência dasempresas estatais por meio dos processoscontinuados de governança corporativa, dedesenvolvimento de novos negócios de altatecnologia e de migração das companhiasbaseadas na região costeira para o centro-oeste dopaís. Outra demanda que também deve sersaciada rapidamente nas províncias do interiorda China é a continuidade da renovação da infra-estrutura, por meio de construção de estradas,portos, ferrovias e aeroportos.

O cenário chinês atual apresenta, cada vezmais, oportunidades reais de negócios ao Brasil.Principalmente nas áreas de agronegócios,mineração e de energia, com fornecimento desoja, minério de ferro e petróleo,respectivamente. Além disso, o País participoucom os chineses na construção da maiorhidrelétrica do mundo e no primeiro jatocomercial sino-brasileiro.

ou oportunidade?

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24 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL 2008

NO ESPELHODA CHINA

"Strategic thinking helpsus take positions in a

world that is confusingand uncertain. …

speculative judgements… are the essence of

strategic thinking,and they can be the

starting points fortaking a position".(1)

Divulgação

Antonio Barrosde CastroAssessor daPresidência doBNDES e ProfessorEmérito da UFRJ

Stringer/Reuters

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26 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL 2008

Poucos questionam hoje a idéia de que o centro degravidade do crescimento econômico no mundovem se deslocando para a Ásia, e mais concreta-mente para a China. Esta última economia, com o

PIB expresso em PPP, já equivale a quase 50% do PIB nor-te americano e o seu crescimento, no período 2002 a 2006,explicou 29% do crescimento da economia mundial.Aliás, se a China e os Estados Unidos mantiverem o cres-cimento dos últimos 10 anos – uma hipótese otimista, emambos os casos –, os dois países passariam a ter tamanhosemelhante no curto intervalo de 10 anos.

Não é a primeira vez que o centro de gravidade docrescimento da economia mundial se desloca. É bastanteconhecido o fato de que nas primeiras décadas do século20 completou-se o deslocamento do centro do capitalis-mo da Inglaterra para os Estados Unidos – e os historia-dores acrescentam que entre os séculos XVII e XVIII umamudança desta natureza transferiu da Holanda para a In-glaterra a liderança do nascente capitalismo.

De acordo com Raul Prebish, ao negar, na prática, aclássica divisão internacional do trabalho, entre umcentro provedor de manufaturas e a periferia, provedo-ra de alimentos e matérias primas, a ascensão da econo-mia norte-americana mudou radicalmente as oportuni-dades da América Latina - e muito particularmente deseu país, a Argentina. Este marcante episódio chama aatenção para um dos pontos tratados neste trabalho:deslocamentos deste tipo, raros na história, têm enor-mes implicações. A Argentina, por exemplo - que comoa Austrália e a Nova Zelândia havia sido beneficiada pe-la divisão internacional do trabalho centrada na Ingla-terra – frente ao declínio relativo inglês, teve que buscaroutras soluções para voltar a crescer. Por outro lado, aascensão dos Estados Unidos beneficiou inequivoca-mente o Canadá - mas não parece em absoluto ter au-mentado as chances da Espanha e de Portugal.

Alguns países estão tendo, nos mais recentes anos, assuas oportunidades mais que multiplicadas, revolucio-nadas, pela ascensão chinesa. Entre as economias maisclaramente alavancadas encontram-se algumas inte-grantes do continente africano. Em outros casos, contu-do, a China pode ter trazido mais problemas que opor-tunidades, sendo de se destacar, a este respeito, o ocor-rido com algumas economias da América Central e,possivelmente, com o México.

No próprio continente europeu, as conse-qüências da ascensão chinesa parecem ser

enormes e, mais uma vez, diferenciadas.Assim, por exemplo, a economia italia-

na (e a indústria muito particularmente) parece haver per-dido posições e rumo, enquanto a Espanha (que poderia,em princípio, ter um destino semelhante ao da Itália), me-diante combinação de políticas públicas e criatividade em-presarial, parece estar desenvolvendo, paulatinamente,novas e amplas oportunidades de negócios. A sumária re-ferência a estas duas economias sugere dois ensinamen-tos. Primeiramente, o resultado das translações de que es-tamos falando não está predeterminado, podendo mos-trar-se de uma importância decisiva as escolhas feitas (aíincluída a inanição e a paralisia) pelas políticas públicas,em associação com as empresas. Além disto, fica tambémsugerido que o possível proveito tirado por uma economiade uma mudança sistêmica do tipo aqui focalizado podenão surgir direta e imediatamente. Tende, na realidade, adepender da sua capacidade de desenvolver novas opor-tunidades – inclusive em outros espaços, estes, sim, é depresumir-se, diretamente afetados pelo deslocamento docentro de gravidade do crescimento mundial. Concreta-mente: a Espanha está explorando oportunidades de in-vestimento em infra-estrutura na América Latina – quevêm sendo nitidamente ampliadas por pressões de de-manda procedentes, direta ou indiretamente, da China.

A redistribuição das oportunidades bem como dos en-traves ao crescimento depende, numa primeira instância,das características dominantes no centro ascendente – so-bretudo na medida em que elas se revelem originais oumesmo inéditas. No que segue apontaremos sumaria-mente algumas das características da economia chinesa,destinadas a balizar decisões mundo afora. A ênfase no pe-culiar não provém apenas do excepcionalismo chinês. De-corre também, decisivamente, de que estamos aqui bei-rando a história, campo em que as diferenças contam de-cisivamente. Afinal, como já foi elegantemente dito, "a his-tória constitui uma amostra de tamanho um"(2).

1) Com uma Formação Bruta de Capital superior a 40%do PIB, a economia chinesa se tornou um sorvedouro dosmateriais e insumos que corporificam os investimentos.Isto contribuiu decisivamente para a explosão da deman-da de máquinas, metais e energia, estando na base dos de-sequilíbrios verificados nos respectivos mercados. Não

(1) Strategy`s strategist: An interview with Richard Rumelt.Mckinsey Quarterly 2007/Number 4(2) Pant, P.N., e Starbuck, W. H. "Review of Forecasting andResearch Methods", Journal of Management,junho de 1990, citado em Mintzberg, Henry,The Rise and fall of Strategic Planning,The Free Press, 1994.

Preliminar sobre o atual deslocamento do centro de gravidade do crescimento mundial.

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apresentaremos aqui cifras – amplamente disponíveis –sobre o deslocamento do patamar de preços das commo-dities daí derivado. Cabe apenas lembrar que esta é umamudança crítica, que na realidade quebra uma tendência(ao declínio dos preços das commodities) datado, pelomenos, do pós-guerra da Coréia. Também não é precisoinsistir em que esta reviravolta se encontra na base do rá-pido crescimento de numerosas economias, que em úl-tima análise passaram a ser membros do mundo sinocên-trico (3). A esse propósito cabe acrescentar que, desde quefartamente dotada de recursos naturais inexplorados,quanto menos desenvolvida – ou mais destruída – se en-contrar uma economia, às vésperas de sua inserção nomercado sino-cêntrico, mais rápido crescerá: seja por ób-vios efeitos base (parte-se de muito pouco); seja porquenão há que promover a reconversão/adaptação de im-portantes atividades anteriores. O caso de Angola, eco-nomia que cresce presentemente a 20% ao ano, tragica-mente ilustra o que acaba de ser dito. Em suma, para ocrescimento destas economias, o fato bruto de dispor dematérias primas não só é mais importante do que a cons-tituição de sólidos fundamentos, como (numa inusitadainversão de ordem) permite que eles sejam rapidamentegerados, a partir do boom de commodities.

2) Em segundo lugar parece-nos adequado chamar aatenção para o seguinte fato: o atual candidato a uma po-sição central tem, entre suas características maiores, a detransformar-se a uma velocidade historicamente desco-

nhecida – o que não deve surpreender, tido em conta oritmo avassalador a que nele avança a Formação Bruta deCapital. A intensidade das mudanças a que estamos nosreferindo permitiu que a China rapidamente passasse daexportação de pequenas manufaturas de baixo valor e re-duzido conteúdo tecnológico, à exportadora de eletrôni-cos (inicialmente apenas montados na China), e a um am-plo esforço recente de substituição de importações (4 ),acompanhado de adensamento das cadeias de valor.Aliás, no estágio já alcançado de desenvolvimento, aspróprias autoridades chinesas admitem, ao que parece,que a economia deixou de ser competitiva – frente aoVietnã e a Bengladesh - em determinadas manufaturasde baixo valor unitário. Por outro lado, e saltando para opólo oposto, países mais sofisticados industrialmente doque a China têm que ter em conta que suas vantagensconstruídas podem durar muito pouco. Como ilustraçãoda rapidez das mudanças, e das dificuldades que daí po-dem derivar, faremos uma breve referência ao setor má-quinas e equipamentos.

Em diversos segmentos, os equipamentos chinesesdo tipo standard que começavam a chegar ao Brasil porvolta de 2004/5 apresentavam preços imbatíveis. Pornão oferecer assistência técnica pós-venda para os com-paradores, no entanto, os equipamentos ficavam mui-tas vezes em desvantagem competitiva. Mas a respostachinesa em alguns casos mostrou-se rápida e, possivel-mente, contundente, mediante a colocação no mercadode produtos supostamente concebidos como "descartá-veis" – o que praticamente elimina a questão da assis-tência técnica!

A segunda característica significa que as empresas eeconomias que buscam reposicionar-se, tendo em vistaa erupção da China, devem entender de partida, que asoportunidades e ameaças serão freqüentemente redefi-nidas, havendo neste sentido que atirar sobre alvos mó-

(3) Castro, Antonio Barros, "From semi-stagnation togrowth in a sino-centric market", Revista deEconomia Política, janeiro-março de 2008(4) Cui, Li & Hussain, Syed, Is China changing its stripes?The shifting structure of China’s External Trade and itsImplications. Fundo Monetario Internacional, abril de 2007.

AFP

Com uma Formação Brutade Capital superior a 40%do PIB, a economiachinesa se tornou umsorvedouro dos materiaise insumos (...)

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veis. Alternativamente, podem, claro, tentar desenvol-ver especializações que não sejam facilmente colocadasem cheque pelo avanço chinês. Voltaremos a este tema,mas fica desde já registrado que tanto a dinâmica em-presarial, quanto a natureza das políticas públicas deapoio às empresas até agora vigentes, devem ser seria-mente repensadas, em decorrência da mutação em cur-so no meio ambiente econômico.

3) Certas soluções que vêem sendo desenvolvidas naChina – assim como certas soluções norte-americanasno passado – parecem fadadas a ter imensas repercus-sões. Uma ilustração parece aqui cabível. Como é bemsabido, o modelo T da Ford e o salário de U$ 5,00 ao diaa ele associado, encontram-se na base da revolução doconsumo de massas, ocorrida pioneiramente nos Esta-dos Unidos, e difundida no pós II Guerra Mundial paraa Europa e em outras regiões. Pois bem, existe um fenô-meno análogo na atual experiência chinesa. Trata-se deuma nova e dramática onda de barateamento dos bensde consumo eletroeletrônicos, cujo caso emblemáticoparece ser a evolução verificada, desde o VCR (video-cassette recorder) até o atual DVD.

O produto tinha, ao começar a ser montado na Chi-na, preços que o mantinham fora do alcance dos tra-balhadores chineses. No que possivelmente constituia primeira grande contribuição moderna chinesa, emmatéria de inovação redutora de custos, o preço doproduto foi rapidamente reduzido (até cerca de US$30 por unidade). Conseqüentemente, entre 1994 e1999, as marcas chinesas saltaram de 34% para 93% domercado local (5). Atenção: os baixos salários chinesescontribuíram para a redução inicial dos custos e pre-ços – mas não explicam a drástica redução verificadanesta notável experiência.

Existe aqui, sem dúvida, uma interessante analo-gia com o caso Ford T – sendo que no caso chinês foi opoder aquisitivo dos salários que subiu fortemente,via queda de preços do produto final. Lembremo-nos,a propósito, que a solução Ford influenciou fortemen-te outras empresas e indústrias. Algo semelhante re-produziu-se na China, através da multiplicação dosprodutos (eletro-eletrônicos de consumo, equipa-mentos de transporte tipo duas rodas e certas máqui-nas) que vêm sendo levados a mercado a preços porvezes referidos como "chineses". Como não poderiadeixar de ser, os impactos daí derivados (vantagens,

perda de espaço de produtos tradicionais etc)são múltiplos. Exemplificando: motocicletas

chinesas, vendidas porum quarto dos pre-

ços até recentemen-

te praticados, difundem-se hoje, aceleradamente, nosudeste asiático, revolucionando o transporte naque-las regiões (6).

Repercussões da característica que estamos comen-tando certamente já estão presentes na América Latina -e são parte integrante da revolução do consumo de mas-sas presentemente em curso no Brasil. Não faltam aliásevidências de que a mutação em foco está se alastrando– inclusive pela marcante presença da Índia(7) no grupode países que está promovendo a drástica redução decustos e preços de certos tipos de manufaturas.

É difícil exagerar a importância deste último fenôme-no, originariamente evidenciada no moderno padrãochinês de crescimento. Curiosamente, se no caso nortea-mericano a difusão entre os trabalhadores dos moder-nos gadgets de consumo surge associada à notória ri-queza do país, a réplica chinesa significa, inicialmentepelo menos, um grande esforço para difundir um kitmoderno de consumo, numa população cujos saláriosainda se encontravam entre os mais baixos do mundo. Aversão chinesa da revolução do consumo de massas é,portanto, profundamente diversa. Justamente por isso,no entanto, pode atingir o consumo dos pobres do mun-do, vindo a revelar-se ainda mais influente que a versãonorte-americana da revolução do consumo de massas.

O anterior também significa, que se até recentementea voracidade chinesa no tocante ao consumo de metais eenergéticos tinha em boa medida por base o brutal ritmochinês de investimento, presentemente, uma crescentecontribuição provém dos ex-pobres, que passam a tam-bém consumir, exemplificando, eletricidade, alumínioe cobre. Advirta-se a propósito, que ainda quando a ver-são chinesa (ou mesmo, possivelmente, indiana) dasmodernas manufaturas seja, por unidade, muito menosconsumidora de energia e metais do que os produtos tí-picos norte-americanos (e ainda quando o consumo demetais e energia por unidade de PIB seja, também, sig-nificativamente menor), a pressão sobre os recursos na-

(5) Feng, Lu e Ling, Mu, Learning by Innovating – Lessonsfrom the Development of the Chinese Digital Video Player,citado em Zonenschein, Claudia Nessi, O Caso Chinês naPerspectiva do "Catch-Up" e das Instituições Substitutas.Tese de Doutorado, Universidade Federal Rural do Rio deJaneiro, 2006(6) Fuller, Thomas, Produtos Baratos da China Facilitama Vida de Vizinhos, O Estado de São Paulo, 30 de dezembrode 2007.(7) Prahalad, C. K., A Riqueza na Base da Pirâmide,Bookman, 2006.

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turais da terra tende a aumentar, dada a espetacular ex-pansão do contingente de consumidores "modernos".

Dado tudo o que precede, não deve surpreender o fa-to de que esteja ocorrendo no mundo, surda, e, em certoscasos, inconscientemente (em particular entre as econo-mias emergentes), algo a que poderíamos nos referir co-mo uma corrida de reposicionamentos. Esta corrida,que teve início nas economias vizinhas da China, temnecessariamente por referência as tendências pesadasderivadas da ascensão chinesa – bem como as respostasa ela dadas por outras economias(8). Seus resultados, se-guramente, não amadurecem rapidamente, mas delasderivam conseqüências que podem desde já ser pensa-das, debatidas e transformadas em insumos das estra-tégias de empresas e Estados.

Como reação às novas tendências, tendem a multipli-car-se as demandas por inovações e soluções de toda or-dem. O estresse daí derivado, por sua vez, influencia asrelações Estado-mercado. Afinal, deve haver mais espa-ço para políticas públicas, num mundo submetido a umestresse de soluções – o que parece ter sido demonstradodurante as guerras mundiais do século passado. Alémdisto, a convergência tecnológica presentemente exis-tente na fronteira das técnicas indica que as soluções aserem buscadas requerem mais cooperação do que nopassado, entre as empresas, entre estas e os poderes pú-blicos, bem como com os Institutos de Pesquisa e as Uni-versidades. A valorização das políticas industriais e tec-nológicas centradas na inovação surge, pois, como umcorolário de tudo isto.

Políticas públicas e estratégias frentea uma forte e duradoura mudança dasameaças e oportunidades.

Faremos no que segue alguns comentários a propó-sito das políticas públicas e estratégias em princípio ca-bíveis, frente a uma ampla redistribuição das oportuni-dades e ameaças, em decorrência do deslocamento docentro de gravidade do crescimento mundial.

O texto se limita à família das economias complexas,mas não maduras. A primeira restrição elimina econo-mias, que antes da emergência da China já haviam acei-to uma forte redução do grau de diversificação/com-plexidade. Quanto à não maturidade, referimo-nos aofato de que as economias em questão não se encontramainda navegando no que já foi referido como a intermi-nável fronteira do conhecimento.

Isto não significa, contudo, que elas não disponhamde competências específicas que lhe permitam, em de-terminados campos, realizar incursões para além do es-tado nas economias maduras.

Para facilitar a comunicação recorreremos a um es-quema no qual estão presentes três tipos de políticas pú-blicas: a "proteção" a atividades ameaçadas; o "apoio aoreposicionamento", visando uma maior sintonia com asalterações verificadas no meio ambiente econômico; e a"busca do futuro", ou seja, o apoio à construção/explo-ração de oportunidades até o presente apenasvislumbradas.

É importante frisar que as mesmas políti-cas estão presentes nas três estratégias esbo-çadas, residindo a diferença nos graus: "do-minante", com uma "presença significativa",ou meramente "residual". ̀

Finalmente, e quanto às estratégias pro-priamente ditas (que compreendem, em

(8) Tais tendências foram sumariamente apontadas em "Fromsemi-stagnation to growth in a sino-centric market", ob cit, eestão sendo tentativamente especificadas num trabalho em co-autoria com Francisco Eduardo Pires de Souza.

Reuters

Existe aqui, sem dúvida, umainteressante analogia com ocaso Ford T – sendo que no casochinês foi o poder aquisitivodos salários que subiufortemente, via queda depreços do produto final.

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diferentes graus, os três tipos de políticas públicas)teremos em conta três espécies: o Entrincheiramento( ); a Estratégia Adaptativa ( ), e a Estratégia Trans-formadora ( ).

No que segue comentaremos, sumariamente, cadauma das estratégias.

A estratégia , de entrincheiramento, busca protegera industria como ela é, frente a mudanças recentementesurgidas, que a prejudiquem ou ameacem. Assinale-se,a esse respeito, um contraste entre a proteção do tipoque acaba de ser referido, e aquela concedida quando aindústria ainda está sendo implantada. Neste últimocaso as empresas (não raro principiantes) tratam de ad-quirir e dominar capacitações de que raramente o paísdispõe – mas que já são tradicionais em outras econo-mias. Elas se movem por interesses próprios, mas têm,também, a missão histórica de incorporar novas com-petências ao acervo de que o país dispõe. No caso emfoco, porém, a proteção (demandada, possivelmente,pelas próprias empresas), tenta, quando muito, preser-var competências, que além de amplamente domina-das, podem já estar se tornando arcaicas.

Mas há ainda alguns sérios riscos. Por exemplo, osproprietários dos ativos podem (justificadamente, tal-vez, havendo a este respeito grande assimetria de infor-mações) considerar a sua posição já seriamente ameaça-da, ou mesmo definitivamente perdida. Em tais casos, a

proteção por eles pleiteada trará alívio apenasmomentâneo, o patrimônio particular

dos donos terá sido beneficiado - e os órgãos públicos te-rão funcionado como balcão de atendimento a reclamos.Além disso, não é demais acrescentar, nos próprios seg-mentos ameaçados, empresas particularmente criativasjá estarão possivelmente desenvolvendo soluções inova-doras – que correm o risco de serem desestimuladas pelaproteção oferecida ao "entrincheiramento".

A proteção pode no entanto se revelar proveitosa – paraa empresa e para o país – desde que combinada com efe-tivas mudanças, que tragam consigo o reposicionamentode empresas. Mas isto requer que ao invés de se proteger opassado, assumam-se firmes compromissos de mudança:as empresas, bem como as políticas públicas, deverãoapoiar ativamente o reposicionamento. Nestes casos, po-rém, já estaríamos ingressando na próxima estratégia – emque se privilegiam saídas, pelo menos, adaptativas.

Convém advertir que a proteção (ou medidas ad hoc to-madas nesta direção), pode surgir como o tipo de respostaa que, espontaneamente ou a curto prazo, se tende.

Primeiramente, porque a profundidade das mudan-ças que vêm pela frente não terá sido percebida – sendoas dificuldades atribuídas a circunstâncias passageirasou a erros de política. Confirma esta predisposição o fa-to de que o sistema de representação das atividades tra-dicionais encontra-se já montado, e não costuma ser di-fícil mobilizar trabalhadores e autoridades locais para adefesa de posições ameaçadas. Por contraste, respostascriativas ao novo quadro requerem políticas públicasque, não raro, ainda têm de ser concebidas e aprovadas

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exigindo, possivelmente, a revisão de normas e costu-mes, e o aprendizado de novas práticas.

O anterior não significa, seguramente, que a defesa ja-mais tenha mérito. Mas deve constituir, rigorosamente, aexceção. Aliás, como mostra o quadro I, em caráter resi-dual, ela está presente nas duas outras estratégias. Mas aproteção surge, nas outras estratégias, acompanhada deoutras iniciativas, que por contraste com o entrincheira-mento, buscam combinar defesa com avanço. A bem di-zer, nelas a proteção não significa recusa a entrar no (no-vo) jogo. Recorde-se, a propósito, que nos tempos herói-cos da industrialização a proteção era concedida paraque se pudesse, justamente, entrar no jogo!

A proteção de posições ameaçadas, enfim, gera bene-fícios imediatos – sendo por isto mesmo politicamenteatraente. O entrincheiramento como solução maior, noentanto, frente a mudanças de grande magnitude, e vistaa questão do ponto de vista do País, traz em si um graveerro de diagnóstico. Não é uma resposta à altura do de-safio e, sobretudo, não gera futuro. A bem dizer, a pro-posta nem deveria ser referida como estratégia. Afinal,um comportamento adequadamente referido como es-tratégico deve possuir visão de futuro, para o que é in-dispensável ter em conta a conduta, os objetivos e os pla-nos de ação dos atores que estão entrando em cena.

Duas considerações devem ser feitas, antes de se fo-calizar a segunda e a terceira estratégias.

Primeiramente, a agenda das políticas públicas estáse movendo, em direção a posturas pró-ativas, numgrau impensável nas últimas décadas do século XX.Não caberia tentar sequer explicar este importantíssi-mo deslocamento – que pode certamente ser abordadode diferentes pontos de vista. Cabe apenas registrá-lo e,na perspectiva deste trabalho, sugerir que entre as suasrazões de ser figure, destacadamente, o retorno de ques-tões relativas à alocação de recursos – ou genericamen-te, de oferta – praticamente banidas da agenda de po-

líticas públicas (especialmente na América Latina) nasúltimas décadas do século XX (9).

É claro que esta importante mudança foi reforçadapelo prestígio das experiências asiáticas, em que a pró-atividade das políticas constitui uma característicamaior. Presentemente, a insegurança energética levouos Estados Unidos a um ostensivo intervencionismo nocampo energético. Não é menos evidente que os espaçosde atuação das políticas públicas pró-ativas estão tam-bém sendo ampliados e reforçados pela tomada deconsciência dos problemas ecológicos. Através delauma lente de aumento foi dramaticamente colocada so-bre certos limites físicos do mundo econômico, fazendocom que questões de oferta deixem de ser tratadas (ou,melhor dito, ignoradas) de acordo com abordagem eco-nômica típica do final do século passado. Por fim, o pró-prio deslocamento do centro de gravidade do cresci-mento para a China, ao atrair e/ou empurrar as econo-mias em várias direções – desejados, ou não pelas res-pectivas sociedades e governos – vem dando a suacontribuição para a restauração das questões alocativascomo uma temática (também) de governo (10).

As empresas podem ser concebidas como um portfó-lio de recursos, o que inclui, com destaque, capacitações.A partir deste acervo as mudanças nelas se dão, em con-dições normais, por aprendizado e, digamos, evolução.A emergência da China e as transformações por ela indu-zidas, porém, caracterizam uma autêntica ruptura danormalidade e o surgimento de novas tendências. Emoutras palavras esta-mos, no caso, diante deum fenômeno essencial-mente histórico e único.

Face a uma ruptura deste ti-po, as empresas devem indagar-se sobre as suas chances no novocontexto, tendo assim início ostrabalhos para a elaboração deuma estratégia de segundo tipo,dita adaptativa.Cabe, neste caso,

(9) Em seu último livro, Dani Rodrik afirma, na introdução eperemptoriamente: "A marca do desenvolvimento é a mudançaestrutural – o processo pelo qual se retira recursos dasatividades tradicionais, de baixa produtividade, para atividadesmodernas, de alta produtividade.Vide One Economics ManyRecipes. Princeton University Press, 2007, p. 7.(10) Sobre o tema do fortalecimento das políticas pró-ativasnos Estados Unidos, veja-se o estimulante artigo StateActivism in an Age of Globalization: BringingDevelopment Strategy Back in, de Linda Weiss, apresentadono seminário da Ford Foundation sobre The role of the Statein a Global Era, São Paulo, novembro de 2007.

A emergência da China eas transformações por elainduzidas, porém, caracterizamuma autêntica ruptura danormalidade e o surgimentode novas tendências.

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preliminarmente, um trabalho de reavaliação dos recur-sos, visando definir como a empresa se vê diante das no-vas circunstâncias. Esta operação nada tem de simples.

Seu ponto de partida é, necessariamente, um esforçopara distinguir, na poeira dos fatos, o que deve ser efe-tivamente tido como reflexo das novas "tendências pesa-das", devendo portanto perdurar. Segue-se, mudando oprisma de análise, o delicado balanço daquilo que podeser tratado com as competências já existentes, versus oque requer o desenvolvimento de novas competências.Além disto, há a questão do timing: como distribuir os es-forços entre as oportunidades (e ameaças) imediatamen-te percebidas, vis à vis os objetivos presumivelmente al-cançáveis somente a médio ou longo prazo?

As possibilidades de resposta a estas indagações fo-ram seguramente multiplicadas pelas tecnologias da in-formação – ampliando-se com isto as possibilidades dereposicionamento adaptativo. Mas a maior maleabilida-de assim adquirida pode também introduzir elementosde uma crise de identidade nas empresas. E esta crise deidentidade rebate nas políticas públicas, que devem de-cidir em que medida fomentar, preferencialmente, esteou aquele tipo de reposicionamento e, indo mais longe,tentar afetar os resultados para a economia, em termos deum novo perfil produtivo e tecnológico. Mas, neste caso,já estaríamos no limiar da terceira estratégia.

Voltando à segunda, parece plausível considerar queas mudanças integrantes da estratégia adaptativa re-querem o seu tempo de maturação – bem como o apoiode terceiros. No que toca ao tempo, é importante - e ca-racteriza a estratégia adaptativa, por contraposição aoentrincheiramento - uma certa presteza no reconheci-mento de que certas mudanças vieram para ficar, e têmque ser efetivamente enfrentadas. No que tange aoapoio de terceiros, referimo-nos sobretudo à importân-cia decisiva para o reposicionamente substantivo dasempresas, de colaboração, parcerias, bem como o recur-so a instituições integrantes do Sistema Nacional de Ino-vação. Isto implica dizer que a adoção de uma estratégiaadaptativa requer a existência - pelo menos em estágioembrionário - de um Sistema Nacional de Inovação.

Enquanto a estratégia de entrincheiramento tende aamarrar as empresas no passado, a estratégia adaptati-va visa liberar possibilidades contidas, mas não ainda(devidamente) aproveitadas, nas empresas. Torna-se,assim, de grande importância saber até que ponto o es-tado da economia foi, nos mais recentes anos, propício àexploração do potencial das empresas. Assim, se a eco-nomia está emergindo de um longo e conturbado perío-do em que diversas vezes as empresas foram capazes devislumbrar possibilidades, mas o contexto dificultou a

sua exploração, é de presumir-se que há muito a fazernuma perspectiva "adaptativa": há, presumivelmente,diversas soluções "na gaveta".

Além do que acaba de ser dito, a estratégia adaptativadeve ter criteriosamente em conta o fato de que, comoconseqüência da emergência chinesa, algumas compe-tências se desvalorizam, enquanto outras, até então pou-co utilizadas, podem adquirir grande importância. É bas-tante plausível, no entanto, que o efetivo reposiciona-mento, característica maior desta estratégia, requeira,também, novas regras e novos atores. Em suma, políticaspúblicas, que vão do estímulo ao esforço tecnológico a,digamos, mudanças de regulação, se fazem necessárias,atuando no mais das vezes como catalizadores das deci-sões privadas. Mas, apesar de apoiar ativamente a evo-lução dos negócios, a estratégia adaptativa só residual-mente tem em conta transformações da economia. Estetipo de mudança, como já foi anunciado, é prerrogativada terceira estratégia, daqui por diante comentada.

As trajetórias e prevêem ambas, além de um míni-mo residual de proteção, o ativo apoio a reposicionamen-tos das empresas, num grau que varia entre dominante esignificativo. A grande diferença entre elas reside, por-tanto, na busca de um futuro diferente. Trata-se, como vi-mos, do objetivo dominante em (daí o nome estratégiadetransformação),eausenteem .Insistindo:naterceiraestratégia o tom não é dado por esforços que pretendam aadaptação evolutiva às novas circunstâncias e, quanto aofuturo, não se espera que ele seja espontaneamente en-gendrado por decisões tomadas, uma a uma, pelas em-presas, com ou sem apoio de políticas públicas. Na rea-lidade uma estratégia de transformação faz diferença, namedida em que vislumbre possibilidades que só podemser alcançadas mediante esforços cooperativos e concen-trados, em busca de uma certa visão de futuro.

Observe-se que em se tratando de economias que con-tinuam enfrentando condições iguais ou, pelo menos, se-melhantes, àquelas com que se deparavam no passado re-cente (podendo, assim, ser vistas como rolando sobre tri-lhos), a hipótese de que as decisões atomisticamente de-finidas sejam capazes de gerar resultados satisfatóriospara a economia como um todo tem a seu favor fortes ar-gumentos. Afinal, na ausência de mudanças estruturais equebras de tendência, é bastante razoável supor que osatores dispõem de experiência acumulada sobre o que sepode esperar das (discretas) mudanças com que se defron-tam. Em última análise, trata-se de reajustar quantidadesproduzidas e preços - que se movem, ambos, dentro de in-tervalos razoáveis, e tendem a repetir reações conhecidas.Na medida, porém, em que tendências sejam quebradasou postas sob suspeição, há uma falência ou esvaziamento

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do conhecimento, e surge uma carência de coordenação.Vale dizer, os atores não mais podem se guiar por um con-junto de saberes aos quais cabia, em última análise, coor-denar as suas decisões. O novo quadro é, a rigor, qualita-tivamente diverso, havendo nele um déficit de referências,que leva os atores a se sentir como se pertencessem a umsistema que deixou de existir. Diante deste déficit de refe-rências, estratégias de transformação fazem a diferença.

Adaptações ocorrerão, devendo, no âmbito de umaestratégia transformadora, ter o futuro como importan-te referência. A blindagem de certas posições pode tam-bém ser, excepcionalmente, acolhida. Mas o que devedar o tom, se é verdade que estamos diante de um gran-de deslocamento (como, por exemplo, a redefinição docentro de gravidade do crescimento da economia mun-dial), são as transformações. Para este efeito, as tendên-cias pesadas não deveriam ser tomadas apenas como al-terações profundas e duradouras das condições comque se depara no mercado. Elas devem ser vistas – e tra-tadas – como mudanças que guardam diversas possibi-lidades, não plenamente reveladas. Desde que percebi-das, eleitas como prioridades, e amparadas por medi-das de apoio, tais possibilidades podem incitar respos-tas criativas, o desenvolvimento de novas soluções, oredesenho da geografia econômica, e, mesmo, a re-con-figuração do tecido econômico e social.

A escolha das transformações a serem priorizadas re-quer a elaboração de visões do futuro. Estas, aindaquando abertas a correções e aperfeiçoamentos, e desdeque acompanhadas de propostas consistentes, persua-sivas, privilegiadas por políticas eficazes, e amparadaspor revisões da regulação, tendem a coordenar, poten-ciar e dar rumo às transformações.

Cabe por fim insistir em que, dada a complexidade ecrescente convergência das tecnologias contemporâ-neas, ao se atingir e mesmo ultrapassar a fronteira das so-luções conhecidas, a conjugação de esforços públicos eprivados adquire elevado grau de importância. Mas isto

também sugere ser inexeqüível (e indesejável), tentar se-quer conceber, uma só estratégia para a economia comoum todo. Faz sentido conceber "frentes estratégicas", reu-nindo conjuntos articulados de propostas, ali onde se vis-lumbre grandes possibilidades. Este método de trabalhopoderia ter início com dois ou três casos, onde se daria umvalioso aprendizado quanto ao tratamento estratégico deblocos de questões. Nos comentários finais, a seguir apre-sentados, será feita sumária referência a possíveis frentesestratégicas para a economia brasileira, hoje.

Sobre a crise de identidadeda economia brasileira.

A crise de identidade a que nos referimosnada tem de esotérica. Hong Kong e Taiwan a en-frentaram há algo como duas décadas, e outras ex-periências de acomodação se seguiram, mais ou me-nos exitosas ou problemáticas. O Brasil está, pois, nestesentido, apenas ingressando num processo de transfor-mação por que outros já passaram.

Já circulam, na imprensa, opiniões sobre os novos ru-mos que a economia brasileira deveria, supostamente,tomar. Para muitos, especialmente no exterior, o Brasilestaria fadado a assumir a sua condição de superdotadoem recursos naturais. E desta forma viria complementarum novo, diferente e rico mundo, que teria a China poreixo industrial, onde a Índia seria a principal fonte for-necedora de serviços, e o Brasil seria o grande provedorde alimentos ( 11 ) .

A simplicidade radical desta fórmula – que parece ecoara referência do hino nacional ao "gigante pela própria na-tureza" – tem tudo para provocar, no Brasil, as mais iradasreações. Mas há nela um elemento de verdade que poderáse fazer sentir no futuro, ou, melhor dito, que já está se fa-zendo sentir – e pode, daqui por diante, ganhar crescenteimportância. Para entendê-lo cabe lembrar dois fatos.

Primeiramente, o planeta terra tornou-se pequeno paraas necessidades dos consumidores modernos – que estãosendo rapidamente multiplicados na Ásia, na América La-tina e na África. É fácil constatar este fato, que combinadoàs tecnologias comercialmente em uso, e aos recursos na-

Tadeu Vilani/Folha Imagem

Pela ótica da dotação do fator terra, nãoparece absurda a idéia de que o Brasildeveria assumir-se como "fazenda domundo", em contraposição à "fábrica domundo" em que a China veio a converter-se (97% das exportações chinesas são deprodutos industrializados).

(11) Cohen, Jorge, "Futuro presidente precisa olhar para osul". O Estado de São Paulo, 7 de janeiro de 2008.

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turais efetivamente à disposição das economias, não po-deria senão gerar uma forte mudança de preços relativos,em benefício das commodities tornadas escassas.

O segundo grande fato consiste em que , se por umlado esta situação acarreta o stress tecnológico já ante-riormente referido, por outro, e a curto prazo, só parecehaver uma solução: ampliar o mapa de recursos natu-rais exploráveis. E é aqui que entra o Brasil, com uma po-sição verdadeiramente avantajada. O país, dispõe, semter em conta a Amazônia e o Pantanal, de cerca de 80 mi-lhões de hectares agriculturáveis. Mais que isto, usa co-mo pastagem algo como 200 milhões de hectares – va-lendo-se para tanto de uma relação cabeça de gado/hec-tare que pode ser progressivamente reduzida, de formaa liberar enormes quantidades de terra, inclusive para aexploração combinada pecuária/agricultura.

Combinados, os dois fatos, feitas as ressalvas cabí-veis, e acrescentados as ponderações que se queira jus-tificadamente fazer, sobra certamente muito espaço (li-teralmente) para tomar a sério a divisão internacionaldo trabalho acima apontada. É claro que o Brasil não é oúnico país a dispor de recursos naturais que podem serutilizados para saciar a voraz demanda da indústriamundial, e a fome das populações que estão emergindoda mera subsistência. A África também dispõe, e Ango-la, em particular, possui 88 milhões de hectares de terrasaptas, das quais presentemente só utiliza cerca de 3,6milhões(12). Mas esta é uma grande exceção, e os demaispaíses, em regra, não chegam sequer perto destas cifras,no tocante à disponibilidade de terras aproveitáveis.

O anterior significa que pela ótica da dotação do fatorterra, não parece absurda a idéia de que o Brasil deveriaassumir-se como "fazenda do mundo", em contraposi-ção à "fábrica do mundo" em que a China veio a conver-ter-se (97% das exportações chinesas são de produtos in-dustrializados). E, no entanto, esta proposta não faz sen-tido. E isto por diversas razões. Vejamos algumas.

Uma elevada proporção da agricultura neste país cons-titui uma atividade alta e crescentemente sofisticada, ca-racterizada pelo conhecimento técnico e o manejo criterio-so das condições de produção. Sua eficiência é potenciadapor insumos, máquinas e equipamentos, não raro conce-bidos e desenvolvidos para as condições peculiares aopaís. Em resumo, a terra, em si, é apenas um suporte daprodução – e a agricultura (especialmente o agronegócio)tem múltiplos engates, a montante e a jusante com a indús-tria. (13) Vista a questão por este prisma, entende-se que oBrasil, na medida em que venha a acentuar a sua condiçãode potência agrícola, deve também ser considerado can-didato a uma posição de peso no conjunto de atividadesindustriais (e de serviços) que, no nível de sofisticação em

que a agricultura vem sendo praticada no país, acompa-nha a produção agrícola. Voltaremos brevemente ao temamais adiante, mas fica desde já sugerido que a contrapo-sição fazenda x fábrica, contida na proposta anterior, nãotem sentido nas condições contemporâneas, e, muito par-ticularmente, no Brasil.

Retomando a questão, agora pelo prisma manufatu-reiro, deve-se reconhecer, de partida, que a economiabrasileira dispõe de um sistema industrial cuja diversi-dade só tem paralelo, entre as economias emergentes,na China e na Índia. Este sistema foi em boa medidamontado muito antes da emergência chinesa. Seguiu-se, do ponto de vista industrial, um longo e tenebrosoinverno, que manteve praticamente congelada a estru-tura industrial – mas não impediu que as empresas serenovassem, intensamente e sob vários pontos de vista.Em diversos ramos isto permitiu que pelo menos asmaiores e melhores empresas reconhecidamente atin-gissem o estado das artes internacional. Além disto,grandes, médias e pequenas empresas – as que sobre-viveram, claro – têm dado provas de grande maleabili-dade, o que dá testemunho do rico patrimônio de capa-citações de que dispõe o país, no plano manufatureiro.

É, em suma, com este patrimônio de capacitações que oPaís conta para enfrentar as condições que estão sendo ge-radas pelo deslocamento tectônico por que presentementepassa a geografia econômica mundial. O desafio é grande:de um momento para o outro deixamos de ser uma eco-nomia de baixos salários – que dispõe, no entanto, de umamplo e variado leque de atividades industriais.

A esta complexa questão se combina, sempre na pers-pectiva da alocação de recursos, uma infra-estrutura, namelhor das hipóteses, sofrível. A China, que investe eminfra-estrutura 11,5% do PIB, encontra-se numa posiçãomuito melhor, enquanto a Índia está seguramente pior.

Estamos, no entanto, genérica e comparativamente,bem colocados no que toca ao patrimônio de competên-cias. E demos a sorte de que a invasão das importações chi-nesas chega ao Brasil quando, finalmente, foi superada afragilidade macroeconômica – que durante um quarto deséculo impediu as empresas de ir além da reatividade fren-te às condições imediatamente percebidas no mercado, e

(12) Biofuels "superpower" Angola soon to be self-sufficient infood production. FAO, Biopact web block, Janeiro de 2007.(13) Mendonça de Barros, José Roberto e Mendonça de Barros,Alexandre Lajóz, "A revolução do agronegócio/agroindústriacom base na economia do conhecimento" em Velloso, JoãoPaulo dos Reis (Org), O desafio da China e da India e aresposta do Brasil.José Olympio, 2005.

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ao governo de apoiar, sustentadamente, o crescimento.Ajuda, também, o fato de que a revolução informática já seencontra amplamente difundida no país. Em tais circuns-tâncias torna-se possível, com a presteza e a eficácia per-mitidas pelas competências e a informatização, fazer pla-nos para o futuro – condição mínima para que uma novaidentidade seja conscientemente perseguida.

Há indícios de que na esfera das empresas um intensoreposicionamento já teve início. Do segundo trimestre de2006 ao terceiro trimestre de 2007, a Formação Bruta de Ca-pital tem crescido ao ritmo anualizado de 14,9%. No nossoentender, diversas medidas de política em favor da indús-tria e da retomada do crédito, estão contribuindo para estedesempenho. Além disto, o PAC, ao colocar como foco dediversas políticas públicas o investimento (referimo-nos,inclusive, aos PACs setoriais), e ao introduzir uma siste-mática de metas e de acompanhamento das metas, está ni-tidamente mudando a cultura de governo – que passa adar grande atenção à alocação de recursos. A avaliação dasperspectivas de crescimento desta economia não é, porém,a temática deste trabalho. Registremos, apenas, adicional-mente, que vista a questão pela ótica aqui adotada, o pos-sível atraso de diversos investimentos é de se lamentar;mas é, também, pouco relevante. Afinal, o que está emquestão – aqui, como em diversos outros países – é a re-definição da economia frente ao novo contexto mundial.

Em outro trabalho pretendemos discutir o conteúdodas "frentes estratégicas" que caberia, no nosso enten-der, privilegiar, numa estratégia transformadora (a, natipologia anteriormente apresentada). E, para finalizar,voltaremos por um momento às razões pelas quais nãofaz sentido, para a economia brasileira, um esquema demera complementaridade com as regiões famintas dematérias primas e alimentos.

O Brasil vem sendo referido como um dos integrantesdo quarteto BRIC. Contam para colocá-lo nesta catego-ria, não apenas a farta dotação de recursos naturais degrande valor, como o fato de que aqui se encontra a quintamassa populacional do mundo. O primeiro fato nosaproxima da Rússia, enquanto a população introduz umtoque quase asiático. Mas esta última característica, queno passado teria um sentido pejorativo, hoje adquire um

outro significado. A geografia conta, mas a demografia,também, no mundo em que estamos entrando.

Com efeito, parece cada vez mais funcionar algo quecomeçou a ficar evidente, pioneiramente, na China, hámais de dez anos. Referimo-nos ao fato de que as empre-sas líderes da indústria mundial se deram conta de queestabelecer-se naquele país, praticamente deixara de seruma escolha - passando a ser uma necessidade. Explica-se: sendo o mercado chinês enorme (por influência da po-pulação e dos preços chineses), dinâmico, e bastanteidiossincrático, vantagens ali adquiridas poderiam defi-nir o futuro das empresas. Surgia com isto uma nova for-ma de profecia auto-cumprida. Uma grande populaçãoleva à expectativa de um grande potencial de crescimen-to, o que provoca uma corrida para assumir posições, queconfirma e acentua a atratividade da economia.

No limite, e generalizando o raciocínio, o anterior sig-nifica que o crescimento industrial passa a ser uma prer-rogativa das nações dotadas de grandes contingentespopulacionais. Evidentemente, os preços "chineses"têm aqui uma função crítica. A eles cabe acionar o cír-culo virtuoso em foco. Algo semelhante pode estar co-meçando a ocorrer no Brasil, onde os baixos preços dasmanufaturas procedentes da China, que de início (diga-mos em 2005) ameaçavam moer e canibalizar a indús-tria brasileira, estão, somados à revolução do crédito eàs políticas sociais do governo, contribuindo para am-pliar as escalas nos mercados de consumo popular.Mais concretamente, estão dando a sua contribuição pa-ra a incorporação das classes C e D, excitando com isto oapetite investidor dos capitais, forâneos ou não.

Dado o conjunto de poderosos motivos aqui listados,a economia brasileira não se encontra fora do jogo in-dustrial. Isto não significa que não deverá especializar-se. Mas esta especialização não deve se dar, nem à modadas economias recém conduzidas ao modelo primárioexportador, nem na forma como tradicionalmente se es-pecializam as economias maduras: por produtos. Às"frentes estratégicas" caberia, no nosso entender, definiramplos campos de especialização, próximos à fronteiradas técnicas: os biocombustíveis, e sua cadeia consti-tuem um bom exemplo.

Aly Song/Reuters

A China, que investe em seu setorde infra-estrutura nada menosdo que 11,5% do Produto InternoBruto, encontra-se numa posiçãomuito melhor, enquanto que aÍndia está numa posiçãoseguramente bem pior.

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Empresáriosem estadode aler ta

Da esquerda para adireita, José MariaChapina Alcazar,Alencar Burti,Ricardo Nacim Saade José Pastore.

A possibilidade de aprovação noCongresso Nacional da Convenção158 da Organização Mundial doTrabalho (OIT) exige mobilização daclasse patronal de todo o País

Masao Goto Filho/e-SIM

Em novembro de 1996, o presidente FernandoHenrique Cardoso denunciou e vetou a Con-venção 158 da OIT, ao ser alertado dos resulta-dos desfavoráveis que ela traria. Agora, ela está

novamente tramitando no Congresso Nacional, com re-comendação da Presidência da República.

Esta Convenção cria uma pesada burocracia para odesligamento dos empregados, obrigando o emprega-dor a justificar por escrito as razões do desligamento, e seo empregado não concordar com as razões, inicia-se umacontenda, que poderá ter a participação dos sindicatos. Ese o impasse não for resolvido rapidamente, o assunto irápara a Justiça do Trabalho e caberá a um juiz julgar se háou não motivos para a demissão.

A possibilidade de aprovação desta Convenção preo-cupa toda a classe empresarial. Para discutir o assunto, aAssociação Comercial de São Paulo realizou uma reu-nião-plenária no dia 3 de março, comandada por AlencarBurti, presidente da ACSP e FACESP, e que contou com apresença de especialistas e lideranças empresariais, entreeles o advogado Ricardo Nacim Saad, o professor José Pas-tore, o economista Marcel Solimeo, entre outros. Reprodu-zimos a seguir os trechos mais importantes do debate.

Alencar Burti

Vamos abordar um assunto urgente, que já está noCongresso Nacional, com recomendação da Presidênciada República. Trata-se da Convenção aprovada na OIT,que tem nuances técnicas extremamente delicadas, queimplicam em grande ônus para as empresas se não hou-ver uma mobilização do empresariado, pois a seu favorconta um grande apoio das centrais sindicais. O assuntoé simpático para os empregados, mas não se observa quena seqüência criará uma impossibilidade das empresas

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em contratar funcionários, que no futuro não poderãodemitir, ou se o fizer, haverá um custo imprevisível, por-que não sabemos quanto custará essa ação. Para discutiresse tema, contamos com a honrosa presença do dr. Ri-cardo Nacim Saad, que tem uma grande vivência nessaespecialidade da área jurídica.

Ricardo Nacim Saad

Aqui estamos para falar sobre a Convenção nº 158, daOrganização Internacional do Trabalho, relativa ao tér-mino da relação de emprego por iniciativa do emprega-dor. Antes, porém, acredito que é necessário fazermosum retrospecto das garantias que a nossa legislação con-fere aos empregados, lembrando, primeiro, que a Conso-lidação das Leis do Trabalho, de 1943, assegurava ao tra-balhador despedido, sem justa causa, uma indenizaçãocalculada na base da maior remuneração percebida naempresa, pelo número de anos de serviço prestado. Por-tanto, uma dispensa imotivada resultava no pagamentode uma indenização ao trabalhador.

Além disso, a CLT garantia a estabilidade no empre-go para aqueles que alcançassem dez anos de serviçosprestados ao mesmo empregador. Embora a CLT sejade 1943, a Constituição Federal de 1946acolheu essas garantias, incluindo-asno artigo 165, entre aquelas assegura-das ao trabalhador. Essa indenização eestabilidade acabaram por criar paraas empresas em geral um passivo tra-balhista considerável, que impediauma mobilidade, uma flexibilização,que essas empresas pudessem operaruma fusão ou incorporação, tal o volu-me desse passivo trabalhista – algumasempresas chegaram até a encerrar assuas atividades.

Mas o fato é que nenhum governo atéo momento se atreveu – se é que possousar essa expressão – a interferir na esta-bilidade e nessa garantia reservada aostrabalhadores. Isso gerou muitos confli-tos entre empregados e empregadores.Muitas empresas passaram a despedir otrabalhador quando chegava a noveanos e seis meses de atividade. Essa for-ma de dispensa de empregados acaboulevando o problema para a Justiça doTrabalho, que por sua vez passou a decidir reiteradamen-te, formando assim uma jurisprudência, que esse tipo dedispensa era considerado obstáculo à garantia do direitodo trabalhador. Depois, as empresas começaram a despe-dir empregados com nove anos de atividade. A jurispru-dência também se movimentou no sentido de tambémconsiderar como obstáculo à garantia de trabalho.

No primeiro governo militar após a Revolução de1964, na presidência do Marechal Castelo Branco, se ar-

quitetou uma forma de garantia para o empregado des-pedido sem ou por justa causa. Assim foi concebido oFundo de Garantia por Tempo de Serviço, FGTS, para quese afastassem de vez aquelas normas da CLT, que gera-vam problemas para a atividade empresarial. A primeiraversão desse projeto foi considerada inconstitucional,porque o projeto simplesmente eliminava a estabilidade.Então, foi preciso uma nova versão. O caminho encontra-do foi o seguinte: o empregado fica com o direito de optarentre as regras da CLT ou as do Fundo de Garantia porTempo de Serviço. Essa lei foi aprovada em 1966 e entrouem vigor em 1967. É escusado dizer que a médio prazo, aestabilidade foi extinta quase que completamente, por-que a partir daí a admissão dos empregados era feita me-diante a opção pelo novo sistema.

Um sistema que apresentava algumas vantagens, co-mo por exemplo, se o empregado fosse despedido porjusta causa, continuava tendo na sua conta vinculada doFundo de Garantia os depósitos feitos pelo empregador.Essa era uma das vantagens acenadas pelo sistema.Além disso, se cogitou de usar o Fundo de Garantia paraa aquisição de casa própria pelo trabalhador, levanta-mento do depósito em caso de matrimônio da emprega-da , e assim por diante.

Após a aprovação da lei, tivemos a Constituição de1967, que incorporou esse princípio da opção entre umsistema e outro, o que foi mantido também na EmendaConstitucional nº 1, de 1969.

A Constituição de 1988 eliminou de vez a garantia da es-tabilidade, fazendo incluir no artigo 7º tão somente a ga-rantia do FGTS, porém, no item primeiro do artigo 7º, estádito o seguinte: entre as garantias asseguradas ao trabalha-dor – relação de emprego protegida contra despedida ar-

A Constituição de 1988 eliminou de vez a garantia da estabilidade,fazendo incluir no artigo 7º tão somente a garantia do FGTS (...)

Rafael Hupsel/Luz

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bitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complemen-tar, que preverá indenização compensatória dentre outrosdireitos. Isso é o que diz o inciso I do artigo 7º da Consti-tuição atual. Nas disposições transitórias, artigo 10, constao seguinte: até que seja promulgada a lei complementar re-ferida no inciso I, fica limitada a proteção citada, com au-mento de quatro vezes a multa do FGTS. Até então, na dis-pensa imotivada do trabalhador, o empregador ficavaobrigado a depositar uma multa de 10% calculada sobre omontante da conta vinculada do empregado.

Nas disposições transitórias ficou estabelecido o se-guinte: até que a lei complementar venha a ser editada,essa multa passará a ser de 40%. E agora mais 10%. Já sepassaram quase 20 anos de vigência dessa Constituição eaté hoje não se cuidou de elaborar um projeto que se con-vertesse em lei essa proteção do inciso I do artigo 7º. Esseé o quadro atual da nossa Constituição.

Vamos retornar a 1982. A Organização Internacional doTrabalho é uma entidade pública, criada pelo Tratado dePaz em 1919. O chamado Tratado de Versalhes aprovou,na sua Conferência Internacional do Trabalho, a Assem-bléia Geral da OIT, uma convenção que recebeu o número158, que se refere ao término do contrato de trabalho poriniciativa do empregador. A aprovação e a conseqüente vi-gência da Convenção no país do Estado membro é um tan-to quanto complexa. Embora aprovada em 1982, somenteem 1992 é que o Congresso Nacional brasileiro aprovouum Decreto Legislativo tornando efetiva a vigência dessaconvenção coletiva no Brasil, que é membro da OIT. Masnão termina aqui o processo que torna essa Convenção vi-gente. Uma vez aprovada a Convenção, deve ser levada adepósito na Diretoria Geral da OIT. E o governo brasileiro,embora tenha aprovado essa convenção em 1992, só levoua depósito em 1995, ou seja, três anos depois. Uma vez feitoo depósito, entra em vigor somente um ano depois. Então,tivemos que aguardar o espaço de um ano para ter vali-dade interna. Mas ainda assim, o processo não terminou, épreciso que o presidente da República baixe um decreto,colocando em vigência aquela convenção aprovada. Está-vamos em abril de 1996.

Pouco tempo depois, o governo brasileiro resolveu de-nunciar essa convenção. O então Ministro do Trabalho,Paulo Paiva, preparou uma mensagem para o presidenteda República, visando a denúncia dessa Convenção. Ve-jam alguns trechos dessa mensagem, que no meu modode ver são absolutamente válidos ainda hoje.

Diz o seguinte: Tornou-se a Convenção 158 um proble-ma que supera o âmbito das lides trabalhistas para alcan-çar inegável repercussão no quadro das relações econô-micas nacionais e internacionais.

Essa talvez é a principal razão do reduzido número deadesões, sendo que poucos Estados membros aderiram aessa convenção.

No plano internacional, o visível desconforto de Esta-dos soberanos inseridos ou determinados a agir com con-

vicção em prol de sua inserção no quadro das relações eco-nômicas mundiais, em admitir que a sua legislação nacio-nal, ou sua ordem jurídica, mesmo que não legislada, sofratamanhas limitações na órbita trabalhista, quer no que dizrespeito ao direito patronal de dispensar, quer no que atin-ge o direito do trabalhador às reparações daí advindas.

Ante o empenho de modernizar a legislação trabalhis-ta situado no objetivo maior do governo federal de oti-mizar a produtividade e qualidade no âmbito das empre-sas, e a negociação entre essas e seus empregados, a Con-venção 158, da OIT, tem inspirado movimento oposto,que fomenta a intervenção estatal e reduz o círculo demobilidade dos interlocutores.

Além disso, no momento em que estudos voltados pa-ra a administração pública trazem conclusões acerca dodesestímulo à produtividade, que se apresenta na esta-bilidade conferida a muitas categorias profissionais, se-ria contraditório estendê-la sem quaisquer critérios aostrabalhadores do setor privado.

A reação do setor produtivo privado seria inevitável eencontraria plena justificativa na quebra de um princípiode incongruência entre políticas públicas.

Ressalte-se que no Mercosul somente o Brasil aderiu aesta Convenção, procedimento ocorrido em toda a Amé-rica pela Venezuela, que ainda não tinha como presidenteHugo Chávez, e tal análise, porém, não deve ser única,mas reiterada periodicamente, para que a constante alte-ração das circunstâncias não isole ou escravize a nação,por conta de compromissos assumidos no passado, osquais, se puderam ter algum apelo positivo no momentode sua assunção, representam depois obstáculos ao bomdesenvolvimento das diretrizes governamentais.

Então, foram estas as razões que levaram o Ministro doTrabalho da época a sugerir ao presidente da República adenúncia dessa Convenção.

E quero ainda me referir ao seguinte: o jornal O Estado deS.Paulo (de 2 de março), faz a seguinte indagação – acabarcom a demissão sem justa causa é uma boa idéia? Não,71%; sim, 29%. E temos aqui dois artigos de dois especia-listas, um criticando a convenção e outro apoiando. O queapóia, o título do artigo diz bem do seu espírito: A garantiado emprego nunca teve a simpatia dos capitalistas.

É essa convenção que agora querem ressuscitar. Amensagem que foi para o Congresso Nacional é visandoaprová-la novamente e há um movimento nos dois sen-tidos, aqueles mais à esquerda querendo que ela volte avigorar no País, e o empresariado de um modo geral, osempregadores, que se posicionam contrariamente.

Portanto, é preciso uma ação junto ao Congresso Nacio-nal visando a impedir que um novo decreto legislativo co-loque essa convenção em vigor. Acredito que isso não po-derá ser resolvido em curto prazo. A experiência da apro-vação da vez anterior demorou alguns anos. Até o Con-gresso Nacional aprovar o decreto legislativo, a matériaser levada a depósito na diretoria geral da OIT, e finalmen-te vigorar internamente, acredito que teremos pela frenteuns dois ou três anos. Esta é a minha avaliação.

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José Pastore

Esta Convenção cria uma burocracia bem mais pesadapara o desligamento dos empregados, porque o empre-gador é obrigado a apresentar por escrito as razões dodesligamento. E se o empregado não concordar com asrazões, entra numa contenda, que poderá ter a participa-ção dos sindicatos. E se o impasse não for resolvido ra-pidamente, o assunto irá para a Justiça do Trabalho e ojuiz resolverá, avaliando o motivo alegado pela empresa.Se o juiz não avalizar, não concordar com o motivo, o em-pregado terá que continuar no posto de trabalho.

Tudo isso acrescenta uma grande burocracia para as em-presas, como também acrescenta um custo extraordinário,porque a empresa terá que manter o empregado que dese-jaria desligar e terá que manter uma relação interna intensade conversas, reuniões com sindicatos, que eleva em muitoo custo do fator trabalho, que causará problemas futuros, ouseja, as firmas que puderem, repassarão os custos para ospreços dos serviços e mercadorias, mas outras empresas te-rão que absorver esses custos, o que afetará a competitivi-dade dessas empresas. Então, é um problema muito sério.

Dentre os motivos que podem ser alegados pela empresapara despedir o empregado legalmente, de acordo com aConvenção, destaca-se a dificuldade eco-nômica. Mas acontece que a empresa teráque demonstrar essa dificuldade econômi-ca. Imaginem uma empresa ter que de-monstrar em juízo, ou para o sindicato, quenão está bem, que está com dificuldades degestão. Essas dificuldades podem ser pas-sageiras. Todos passam por dificuldadesmomentâneas, mas quando isso tem queser exposto publicamente, todos sabem queisso afeta a credibilidade da empresa, afetao valor da ação na Bolsa de Valores, dificultaa captação de créditos, afeta sua imagem, oseu relacionamento com os fornecedores,com os consumidores etc. Então, é um pro-blema realmente complicado, razão pelaqual apenas cinco países desenvolvidos as-sinaram essa Convenção, que são Finlân-dia, França, Espanha, Portugal e Suécia. Edos outros 29 países que assinaram temos oGabão, Iêmen, República Central Africana,Santa Lúcia, Mali, tantos outros países nãodesenvolvidos, países onde não existemempregos, que podem se dar ao luxo de as-sinar essa convenção. Os outros países desenvolvidos nãoquiseram nem saber dessa Convenção, porque isso criauma complicação muito grande, um custo enorme e parapiorar a situação, acabará acarretando prejuízos para o pró-prio trabalhador, porque se fecharmos a porta de saída, lo-gicamente será fechada a porta de entrada.

Portanto, o empresário pensará muitas vezes, relutarámuito para admitir um novo empregado, porque ele sabeque no momento da dispensa, enfrentará uma burocracia,

um custo alto e talvez até outros problemas. Quero dizerque dentre esses outros problemas, devemos considerarque essa situação eleva o nível de conflito entre empregadoe empregador. Se a empresa apresenta uma razão para oempregado ser demitido e ele não aceitar, estará instalado oconflito. Então, estará elevado o nível de conflito dentro daempresa. Isso ficará se arrastando. E nos países que ratifi-caram essa Convenção, demora de 6 a 12 meses para se des-pedir um empregado. Nesses países não existe Justiça doTrabalho com poder normativo, como temos no Brasil.

Elevar o nível de conflito dentro de uma empresa geratambém um custo, porque isso contagia os demais em-pregados. Não haverá um ambiente propício para as boasrelações de trabalho.

Esses fatos precisam ser bem explicados para a socie-dade, principalmente para os parlamentares que votarãoa matéria, porque para eles é muito tentador apoiar essasmedidas, que renderão votos, ainda mais se juntarmosesse problema com as propostas de redução da jornada detrabalho, sem a redução de salários: será uma usina de vo-tos, no meu entendimento. Basta um cidadão vir na Praçada Sé e pedir voto, dizendo que é do partido do presidenteLula, e que acabou de ser mandada para o Congresso Na-cional uma medida pela qual o patrão não poderá mais

despedi-lo, que trabalhará menos e ganhará o mesmo sa-lário. Não temos dúvida que todos concordarão.

Então, é um sério problema, porque existe esse compo-nente político que o presidente Alencar Burti ressaltou,como também é um problema sério do ponto de vista eco-nômico, porque acabará afetando o próprio incentivo aoinvestimento. Se complicarmos a vida do trabalho dasempresas, vamos desestimular os investimentos e a pró-pria geração de empregos.

O empresário pensará muitas vezes para admitir um novo empregado,pois terá dificuldade no momento da dispensa.

Patrícia Cruz/Luz

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Esse problema está no Congresso Nacional, acho quejá foram ressaltadas algumas linhas de ação da socieda-de. A primeira linha, na minha sugestão, é informarbem as pessoas, para que o assunto seja levado a todas asempresas. De minha parte, produzi um material didá-tico que explica bem o que é a Convenção, para que ser-ve, se o Brasil precisa assinar ou não, quais as conse-qüências disso tudo, de forma a informar os empresá-rios. A segunda linha é uma atuação junto aos parla-mentares, para também informá-los. E a terceira linha éuma atuação mais direta na Comissão de Relações Ex-teriores da Câmara dos Deputados, que é aonde chegoua mensagem. É a primeira comissão da Câmara a exa-minar a matéria. Parece que o presidente Arlindo Chi-náglia pediu urgência para a apreciação da matéria.Acho que é importante que todos aqueles que querem obem do Brasil, se aproximem desses parlamentares paraexplicar as conseqüências da matéria na vida dos em-pregadores e empregados. O presidente dessa comissãoé o deputado Marcondes Gadelha. Essa comissão tem 15membros que poderão ser contatados. Se aceitarmosmais essa complicação advinda dessa convenção, pode-remos travar o mercado de trabalho.

Ricardo Nacim Saad

Quero aproveitar a oportunidade, depois do comen-tário do professor José Pastore, para dizer que a constru-ção civil teve um incremento enorme em 2007 – na cidadede São Paulo cresceu 153% o emprego formal, e espera-mos para o ano de 2008, a criação de 1 milhão e 250 milempregos formais no setor da construção civil.

Agora, só com a notícia dessa Convenção 158, os cons-trutores já estão pensando o que fazer com toda essa mão-de-obra, porque, quando é construído um prédio, quan-do termina essa construção, o que fazer com todos essestrabalhadores? Não poderá dispensá-los? Essa Conven-ção afetará o setor da construção civil.

José Maria Chapina Alcazar

É estarrecedor o que vem pela frente. O nosso País estápassando por uma migração de mão-de-obra, saindo dosetor industrial e indo para o setor de serviços, e o Dr. Ri-cardo Nacim Saad lembrou muito bem que a construçãocivil começa a sentir o impacto da proposta dessa Con-venção. Portanto, quero dizer para reflexão, ficou claroque em termos de legislação devemos continuar com amobilização. As entidades e todas as suas lideranças, nãodevemos deixar de trabalhar, procurando defender o queé melhor para o nosso Brasil.

Juntamente, teremos a reforma tributária que tambémserá outro problema a ser tratado, que está pegando osempresários despreparados e com muitas dificuldades.

Um fato que o governo provavelmente não está contan-do, com a apresentação dessa Convenção, é realmente o in-centivo para que as empresas nacionais deixem o nosso

País, porque no setor industrial, grandes empresas já estãose estabelecendo em outros países, por exemplo, a Gerdau.Outro dia, ouvi o Secretário da Fazenda falando a esse res-peito e achando que seria ótimo para o País. Acho que dessamaneira estaremos gerando empregos para a populaçãodos países vizinhos, ou até para outros países do mundo,onde a burocracia é menor, onde a legislação e o relaciona-mento com os trabalhadores é mais simples, onde a cargatributária é mais animadora.

No Brasil, com esses incentivos que são liderados pelasclasses trabalhadoras, pelas centrais sindicais, pareceque estão pensando em 1940, tentando engessar a nossalegislação, que já está paralisada. Sobre isso pouca coisatem sido comentado. Portanto, nós como lideranças te-

Ao terminar a construção de um prédio, o que fazer comtodos esses trabalhadores? Não poderá dispensá-los?

Andrei Bonamin/Luz

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mos que trabalhar, porque está dependendo dos parla-mentares na Câmara dos Deputados e do Senado. Vamosmontar uma vigília para que isso não seja aprovado, docontrário será um desastre para o País. O setor de servi-ços, que vem gerando mais empregos no momento, é oque será mais atingido, assim como o setor da construçãocivil, mas todo o setor de serviços está em crescimento, in-clusive, com a geração de empregos.

Portanto, essa medida é desestimuladora e só nos restatrabalhar procurando elucidar os parlamentares na Câmarados Deputados e no Senado. Não temos outra alternativa.

Gastão Alves de Toledo

Toda essa matéria acabará de alguma maneira sendodecidida pelo Supremo Tribunal Federal. Digo isto por-que o decreto do presidente da República, de 1996, quedenunciou a convenção, foi contestado pela CONTAGcom uma ADIN, que ainda não recebeu decisão definiti-va do Supremo Tribunal Federal.

Mas o que pretende a CONTAG? Pretende dizer que opresidente da República sozinho não pode denunciaruma convenção internacional, ou seja, da mesma formaque foi aprovada pelo Congresso e promulgada pelo pre-sidente, para que saísse do ordenamento brasileiro, tam-bém teria que ser revogada pelo Congresso e pelo presi-dente da República.

Essa tese é muito controvertida. Existem aqueles quepensam desta maneira e os que dizem o contrário, ou seja,que o presidente sozinho poderá denunciar uma conven-ção. E suponhamos que o STF diga que o presidente nãopoderia denunciar a convenção. Nesse caso, ela não teriasido efetivamente denunciada, ou seja, passaria a viger noBrasil, porque o decreto seria nulo, e sendo nulo, os efeitosda declaração retroagem à data do decreto. Então, a con-venção que foi denunciada em 1997, estaria vigendo noBrasil. Isso, evidentemente, viria prejudicar o projeto dogoverno de fazer aprovar novamente a convenção, porqueo STF diria que ela nunca saiu do ordenamento brasileiro.Mas, vamos supor que o STF diga que realmente o presi-dente pode denunciar uma convenção, e, portanto, ela nãoexiste hoje, e o Congresso Nacional, de alguma maneirapoderá aprovar a Convenção.

Dessa maneira caberia uma ação de inconstitucionali-dade junto ao STF para discutir os termos e a forma deaprovação da Convenção, porque a Constituição Federaldiz no artigo 7º, que cabe à lei complementar dispor sobreesse assunto. O STF teria que dizer se a Convenção inter-nacional faz as vezes de uma lei complementar ou não. Ouseja, se seria necessário, a despeito da aprovação da Con-venção, que houvesse uma lei complementar regulando amatéria, ou se ela seria ou não auto-aplicável no Brasil. Se oSTF disser que ela é auto-aplicável, e não precisa de nenhu-ma lei complementar, teremos outro questionamento, ouseja, os termos da Convenção são integralmente aplicáveisao Brasil, porque o artigo 7º da Constituição fala em inde-nização compensatória. Então, caberia ao STF dizer se em

face da Convenção a indenização compensatória foi ounão excluída do ordenamento brasileiro.

Portanto, parece que há um extenso caminho a ser tri-lhado. Em primeiro lugar, em relação à ADIN que existe;em segundo lugar, em relação ao projeto que existe; e, ain-da, um terceiro projeto que existe no Congresso Nacional,este sim propondo uma lei complementar, que copia pra-ticamente a Convenção 158. A meu ver, há três questões aserem acompanhadas de perto: a questão da ADIN, quefoi proposta pela CONTAG em 1996 e ainda não foi jul-gada, o projeto do governo enviado no mês passado pelopresidente da República ao Congresso Nacional, e o pro-jeto de lei que diz respeito à regulamentação do artigo 7ºpor lei complementar, que repete a Convenção 158. Todosesses assuntos, como disse inicialmente, tenderão deuma maneira ou de outra, a parar no Supremo TribunalFederal, que dará a última palavra em relação à constitu-cionalidade ou não, quer da forma de aprovação da con-venção, quer do aspecto substantivo dela, ou seja, se po-deria retirar do ordenamento brasileiro o princípio dacompensação ou da indenização.

José Pastore

Acho que foi muito oportuna a explicação dada peloDr. Gastão Alves de Toledo, porque o lado jurídico acon-tece dessa maneira mesmo, é um capítulo jurídico à parte,extenso como foi dito, porque entrar com uma ADIN e es-perar não sei mais quanto tempo, entrar com outra ADIN,é uma questão que precisamos seguir de perto.

No meu entendimento, o presidente Lula, ao mandarpara o Congresso Nacional a Mensagem 59, não é das coi-sas piores, é a minha opinião. Não sou advogado, mas en-tendo, por exemplo, que o presidente Fernando Henrique,através de um decreto, denunciou a Convenção, ou seja,não permitiu a vigência dessa convenção, porque issoafronta o nosso ordenamento jurídico. Acho que seria piorse o presidente Lula tivesse apresentado um outro decretoanulando o decreto anterior e fazendo entrar em vigor aConvenção desde já. Então, o presidente Lula mandouuma medida para o Congresso ratificar a Convenção. Essaquestão jurídica precisa ser equacionada, porque o ladopolítico, no que diz respeito às eleições, precisa ser traba-lhado, mesmo que mais tarde precisemos entrar com umaADIN para anular essa convenção.

Na Câmara Federal o governo tem ampla maioria,mas temos cerca de 220 deputados que querem ser pre-feitos em suas cidades. Ora, para quem quer ser prefeitoé uma ação importantíssima. E o deputado pouco se im-porta se a medida é constitucional ou não, mas ele quermostrar o que ele fez, para angariar votos, e, muito de-pois é que eles vão refletir sobre a questão da constitu-cionalidade. Embora não devamos descuidar da partejurídica, acho que esse assunto será resolvido no STF.No meu entender, o problema deveria abortar no aspec-to político, ou que as comissões que examinarem a men-sagem, que abram audiências públicas, aumente os pra-

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CUT pressionaCongressopelaaprovação

Valter Campanato/Abr

De acordo com dados do Ministério do Trabalho,cerca de 1,3 milhão de trabalhadores foramcontratados no País no ano passado. Mas quase

1,6 milhão perderam o emprego no mesmo período. Sóno Estado de São Paulo, foram 434 mil contratações e 369mil demissões. A Central Única dos Trabalhadores(CUT) vai usar esses indicadores para tentar convencer oCongresso a aprovar a Convenção nº 158 da OrganizaçãoInternacional do Trabalho (OIT).

Desde que uma mensagem presidencial pedindo aaprovação das normas chegou ao Congresso, emfevereiro, entidades empresariais acompanham compreocupação o andamento da proposta e vislumbramum cenário nada animador caso seja aprovada. AAssociação Comercial de São Paulo (ACSP) e aConfederação Nacional da Indústria (CNI) já iniciaramum movimento para mostrar que a Convenção nº 158 éum retrocesso numa economia globalizada, afeta acompetitividade das empresas, abre brechas para acirrarconflitos entre patrões e empregados e pode reverter osbons índices de contratações.

No último levantamento do Cadastro Geral deEmpregados e Desempregados (Caged), a oferta deempregos com carteira assinada bateu novo recorde emmarço, com a abertura de 206,5 mil novas vagas. Dejaneiro a março, foram criados 554,4 mil empregosformais. "Com uma trava na saída, fecha-se a porta deentrada. As empresas vão pensar duas vezes antes decontratar", prevê o especialista em relações no trabalho,professor José Pastore.

Do outro lado, dirigentes sindicais defendem que osprocedimentos a serem seguidos pelo empregador antesdo desligamento de um trabalhador tornarão maistransparente a relação entre as partes, além de coibir asdispensas imotivadas, que são uma realidade do país."Por falta de regras, as demissões, hoje, são uma farra,

um desrespeito ao trabalhador", diz o presidente daUnião Geral dos Trabalhadores (UGT) e Sindicatos dosComerciários de São Paulo, Ricardo Patah.

De acordo com o sindicalista, chamam a atenção ashomologações de contratos de trabalho no comérciopaulista em janeiro deste ano, na comparação com omesmo mês de 2007: passaram de 3.613 para 6.214."A aprovação de regras restritivas vai inibir asdispensas no setor, já que os empregadores serãoobrigados a justificá-las".

Para o ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho(TST), Vantuil Abdala, o mais antigo no tribunal, antes dese discutir os efeitos da Convenção nº 158 no mercado detrabalho, o País precisa de uma reforma em seu sistemasindical que, na sua visão, é "viciado" em decorrência dacobrança obrigatória de impostos e contribuições."Como recebem uma arrecadação cativa, os sindicatos noBrasil não lutam para bem representar os trabalhadores.Em outras palavras, se fossem autênticos e atuantes,sequer precisaríamos dessa Convenção", resume.

De acordo com o ministro, a Convenção, caso sejarealmente aprovada, não vai produzir efeito sobre onúmero de ações trabalhistas. Isso porque ostrabalhadores, de modo geral, não recorrem ao Judiciáriopara reclamar direitos enquanto vigora o contrato detrabalho. "Pelo menos 90% dos processos que recebemossão ajuizados por ex-empregados", calcula.

Polêmico, o assunto será discutido em audiência públicano próximo dia 14 de maio na Comissão de RelaçõesExteriores, com a participação de sindicalistas, ministros erepresentantes de entidades empresariais. Antes de ir aplenário para votação da Câmara dos Deputados, o textoterá um longo caminho a percorrer, já que será analisadopelas Comissões do Trabalho e Constituição e Justiça.Depois, será levado ao Senado, onde passará por diversascomissões. (Silvia Pimentel)

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zos. Se conseguirmos adiar essa votação até o mês de ju-lho, teremos o recesso, e depois em agosto os deputadosnão querem votar as matérias.

Portanto, há uma estratégia política de pelo menos pos-tergar essa votação. Isso depende da atuação da sociedadejunto aos parlamentares no Congresso, principalmente,junto aos presidentes e relatores das comissões.

Ricardo Nacim Saad

Quero lembrar que, quando o ministro Paulo Paivaelaborou a mensagem para a denúncia da Convenção158, concomitantemente ele apresentou um anteprojetode lei complementar para regular o inciso I do artigo 7º.

E por outro lado, é preciso lembrar que a própria Con-venção 158, no seu artigo 17, disciplina a denúncia peloEstado membro. A única exigência diz: que todo membroque tiver ratificado a Convenção poderá denunciar, noperíodo de dez anos, a partir da data inicial de entrada emvigor, mediante um ato comunicado para ser registradoao Diretor Geral da Repartição Internacional do Traba-lho. Isso parece que o Brasil fez. Foi registrado esse ato.

Carlos Alberto Nicolini

Quero relatar um problema e fazer a per-gunta em seguida. Pertenço à área de teleco-municações, que tem uma quantidade de fun-cionários empregados muito grande. A minhaempresa, especificamente, tem 6 mil funcioná-rios, dos quais sou responsável por 1.600 em-pregados. Dentre esses funcionários o turn-over é muito alto, temos 7% a 8% ao mês.

Então, queria que os senhores imaginassemse não pudéssemos mais mudar esses funcio-nários. E por que mudamos os funcionários?Porque são funcionários que hoje estão envol-vidos com alta ineficiência e também com frau-des, roubos, que são os famosos roubos de ca-bos de energia e de telecomunicações, comovemos todos os dias nos jornais. Fora isso, ain-da temos outros empecilhos na troca de funcio-nários. Citamos o fato de que o funcionário sin-dicalista tem estabilidade de cinco anos dentrodas empresas. A pessoa pode fazer o que qui-ser na empresa que não pode ser demitida, anão ser que se indenize o funcionário pelo pe-ríodo que falta desse mandato.

Existe um fato curioso, se um funcionário é preso porum delito grave, como roubo de cabos, ele não pode sermandado embora por justa causa, tem que se declarar co-mo abandono de emprego. Então, se ficar preso 29 dias evoltar no trigésimo dia, tem que ser readmitido, mas seficar preso 31 dias, podemos demiti-lo por abandono deemprego. E só isso, porque não posso julgá-lo como mauelemento se ficar apenas 29 dias preso, mesmo que ele te-nha furtado os cabos.

Existem outros problemas sérios como, por exemplo,não podermos contratar cooperativas, muito embora te-nham CNPJ, sejam legais em todo o País, pois o INSS en-tende que as empresas não podem contratar a mão-de-obra das cooperativas. Isso tem sido um transtorno naempresa, apesar de as cooperativas serem formadas portrabalhadores regularmente registrados, todos eles, pa-gam INSS, pagam todos os tributos, mas o Ministério Pú-blico entende que são ilegais, que são fraude. Então, o go-verno permite que as empresas sejam abertas, mas o Mi-nistério Público entende que seja uma forma ilegal de ser-viço. Assim, não podemos contratar as cooperativas.

Portanto, existe esse fator de contarmos com funcioná-rios ineficientes, que atualmente podemos demitir. Fica,portanto, a pergunta: existe o contrato por prazo deter-minado? Com a adoção da Convenção, não seria o caso decontratarmos os empregados com menores encargos so-ciais, ou isso seria também suprimido?

José Pastore

Esse problema demonstrado pelo companheiro estaráse multiplicando, porque no seu setor de serviço há umagrande rotatividade de mão-de-obra. Mas existem outros

setores com intensa rotatividade em virtude da próprianatureza do serviço. Há setores que dependem mais damão-de-obra terceirizada do que do quadro fixo de fun-cionários. Agora, o terceiro também será atingido pelaConvenção 158. Dessa maneira, será elevado o custo. Sefor contratar esse serviço, será por um custo maior, por-que estará fornecendo uma mão-de-obra que custa muitomais, porque sobre esse custo incidirão todos os encargosque incidem sobre o contratante – e contratado e contra-tante terão os mesmos encargos sociais.

Patrícia Cruz/Luz

Com a adoção da Convenção, não seria o caso de contratarempregados com menores encargos sociais?

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Então, se está sendo onerado no fator trabalho, pas-sará isso para o contratante. Realmente, as complica-ções são grandes. Há um outro problema com relaçãoao conflito trabalhista. Há pouco tempo o STF aprovoua substituição processual, que permite ao sindicatoacionar a empresa por qualquer motivo sem nenhumaprocuração do representado, ou até contra a vontadedo representado. Num caso desses, a empresa despedeo empregado, alega um motivo, o empregado não con-corda, mas para o empregado ficar brigando com a em-presa não tem condições, ou prefere ser anônimo. Osindicato, usando o meio do substituto processual, po-derá fazer a defesa de muitos trabalhadores que estãona rotatividade, elevando ainda mais o nível de confli-to que já temos. Então, essa Convenção é muito preo-cupante. Não há dúvida.

Carlos Alberto Nicolini

Na verdade, os sindicatos já estão se reunindo e reivin-dicando esse direito de poder demitir ou não. Os sindi-calistas estão se antecipando à Convenção, propondoque só poderá ser permitida a demissão com a autoriza-ção do sindicato. É uma antecipação da Convenção.

Alencar Burti

Esse é o grande problema que estamos vendo, por issoque nos apressamos em discutir essa situação, porque háum movimento muito grande das centrais sindicais, dese unirem em torno dessa medida. E como o processo demobilização para eles é muito mais fácil do que para nósempresários, é por isso que estamos nos reunindo.

Portanto, através da CACB (Confederação das Associa-ções Comerciais e Empresariais do Brasil) estarei movimen-

tando as Federações das Associações Co-merciais dos Estados, para que atuem juntoàs lideranças políticas, para sensibilizá-lase demonstrar as conseqüências que pode-rão advir de uma ação impensada no mun-do globalizado, onde a competição é muitogrande. Se não tivermos a capacidade decompetir em todos os setores, as conse-qüências serão muito mais graves do queapenas a relação de emprego.

Ricardo Nacim Saad

Quero ainda lembrar que essa questãode entenderem que essa convenção cole-tiva já está em vigor, isso ocorreu em 1992,e muitos juízes já aplicaram a convençãocoletiva mesmo antes de entrar em vigorinternamente. Vamos assistir a esse fatonovamente, porque "cada cabeça, umasentença". Tivemos naquela época umasérie de artigos doutrinários em ambos os

sentidos, e o ex-Ministro Arnaldo Sussekind, que foi pre-sidente do TST e um dos autores da Consolidação dasLeis do Trabalho, e o único ainda vivo, demonstrou atra-vés de artigo publicado na Revista LTr, que haveria plenacompatibilidade entre a convenção e o inciso I, do artigo7º da CLT. Então, foi uma grande autoridade pensandodessa forma e externando o seu ponto de vista. De modoque vamos ter problemas também na área jurídica.

Marcel Domingos Solimeo

O grande problema é que vivemos uma república sindi-calista. Qual seria a necessidade do governo mandar agorapara o Congresso a ratificação dessa Convenção? Em breveestará enviando o projeto de reforma tributária, que temuma série de temas pendentes para discussão no CongressoNacional. Será que tudo isso não será apenas para agradaros setores sindicais? Por outro lado, o governo está repas-sando cem milhões de reais para as centrais sindicais. Até ascentrais sindicais que antes estavam divididas, agora estãotodas unidas. Mas isso passou de uma vez no Congresso.

Então, essa perspectiva que pode demorar dois ou trêsanos, a ratificação dessa Convenção, a realidade hoje éoutra, não só no Congresso como no Executivo. Precisa-mos ficar muito atentos ao fato. Seria interessante depoisdistribuirmos para todos os diretores e conselheiros, a re-lação dos deputados da Comissão de Relações Exterio-res, e quem tiver contato com esses parlamentares, mes-mo individualmente, tentar pressioná-los. E cabe tam-bém às entidades empresariais procurarem atuar emconjunto, porque os favoráveis à Convenção estão uni-dos nessa questão, como também estão unidos na con-quista das 40 horas de trabalho semanais.

Precisamos também esclarecer os trabalhadores, por-que é claro que se fecharmos a porta de saída, conse-

Os sindicalistas estão se antecipando à Convenção, propondo que sópoderá ser permitida a demissão com a autorização do sindicato.

Andre Porto/Folha Imagem

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qüentemente ficará estreita a porta de entrada. Já vimosesse filme em outras oportunidades. Mas existe umponto adicional: enquanto isso não for aprovado e en-trar em vigor, as empresas farão uma limpeza, ou seja,despedirão muitos empregados. Portanto, haverá con-seqüências contra o próprio trabalhador. O risco é sem-pre o Judiciário querer aplicar antecipadamente a ques-tão, mas mesmo assim, acho que o risco para o empre-gado é muito sério.

Então, acho que precisamos trabalhar nas várias fren-tes. O fato de esclarecer aos empregados é muito impor-tante, porque devemos demonstrar que o patrão não temnenhum interesse em demitir o bom empregado, porqueisso gera custo. Todo trabalhador consciente sabe que ébom empregado, por isso não tem nenhuma razão paratemer essa relação.

Ricardo Nacim Saad

Quero lembrar que a OIT tem uma estrutura tripartite,ou seja, tem três representantes, um do governo do Esta-do-membro, um dos empregadores e um dos emprega-dos. Os delegados governamentais e os patronais, naOIT, não votaram pela aprovação da Convenção 158, emesmo assim foi ao Congresso Nacional, que a aprovou.Eles não levaram em consideração nem o governo – é ver-dade que se tratava de um governo militar – e nem as en-tidades patronais, mas acolheram o que os trabalhadoresvotaram naquela assembléia.

Alencar Burti

Caros amigos, nestas breves reflexões que realiza-mos, embora com grande substância, pela presença deilustres especialistas que expuseram as conseqüênciasque advirão com a adoção dessa Convenção 158 daOIT, é importante que todos nós tenhamos consciênciadessa realidade. Não adianta transferir aos deputadosou a quem quer que seja a responsabilidade. Nós, in-dividualmente, como cidadãos brasileiros, como em-presários, como empreendedores, devemos assumiruma grande parcela dessa responsabilidade.

Uma conseqüência terrível poderá acontecer se nãoatuarmos de maneira eficiente. Precisamos ser competi-tivos no mundo. As grandes corporações estão compe-tindo entre si e podem afetar a saúde econômica do País.Devemos entender que além da inovação, da evolução eda tecnologia, precisamos de uma legislação tributária eeconômica competitiva, que facilite o ingresso da nossaeconomia no mercado mundial. Se não entendermos esseprocesso, ficaremos para trás. É importante que o debatedesse assunto (assim como a reforma tributária que estáem discussão, e a outra reforma importante que é a refor-ma política) aconteça, porque temos um Congresso sub-metido à vontade do Executivo. É importante que come-cemos a trabalhar para uma mudança da estrutura jurí-dica do processo político do nosso País.

Fotos: Masao Goto Filho

É preciso uma ação junto aoCongresso Nacional visando aimpedir que um novo decretolegislativo coloque essaconvenção em vigor. Acredito queisso não poderá ser resolvido emcurto prazo.

Ricardo Nacim Saad

Nos países queratificaram essa Convenção,demora de 6 a 12 meses parase despedir um empregado.Nesses países não existeJustiça do Trabalho compoder normativo, comotemos no Brasil.

José Pastore

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46 DIGESTO ECONÔMICO MARÇO/ABRIL 2008

OBRASIL PRECISA DA

AlmirPazzianotto PintoAdvogado, foi Ministrodo Trabalho epresidente do TribunalSuperior do Trabalho(www.pazzianotto.com.br).

É legítima a preocupação que assalta asclasses empresariais, a propósito damensagem do presidente da Repúbli-ca ao Congresso Nacional, solicitan-

do a ratificação do Convênio 158 da OIT, apro-vado em 1982.

O polêmico documento, cujas raízes encon-tram-se na Recomendação 119/1963, fixa, noartigo 4, que "Não se determinará o término docontrato de trabalho a menos que para issoocorra uma causa justificada relacionada à ca-pacidade ou conduta do trabalhador ou basea-da nas necessidades de funcionamento da em-presa, do estabelecimento, ou do serviço". Se-guem-se 22 dispositivos destinados a discipli-nar o princípio geral.

Passaram-se 20 anos entre a mera Recomen-dação e o imperativo Convênio, durante osquais o mundo, as relações econômicas, os mé-todos deprodução e os sistemas de trabalho,experimentaram profundas mudanças, quecontinuaram a ocorrer como fruto da globali-

Ichiro Guerra/Folha Imagem

se, ainda, limitado rol das faltas graves do em-pregado no art. 482 e, no 483, estão inscritas ashipóteses em que o empregado poderá consi-derar-se injustamente demitido.

A CLT prescreve normas gerais de tutelado trabalho, iniciadas com dispositivos rela-tivos à identificação profissional, à duraçãodo trabalho, aos períodos de descanso, salá-rio mínimo, férias anuais, segurança e medi-cina do trabalho. Em seguida vêm normasespeciais sobre bancários, ferroviários, mú-sicos, serviços de estiva, jornalistas, quími-cos. A Consolidação cuida, ainda, da nacio-nalização do trabalho, da proteção ao traba-lho da mulher e do menor.

Não bastassem as prescrições acerca docontrato individual, a CLT cuida das con-venções e acordos coletivos de trabalho, daestrutura sindical, do Ministério Público eda Justiça do Trabalho.

Não há ângulo das relações de emprego e detrabalho que tenha desprezado pelo legisla-

dor, ou que não se encontre elucidado pela ju-r i s p ru d ê n c i a .

Sobre o Brasil não recai a pecha de omisso noterreno da legislação social. Pelo contrário,possui avançado conjunto legislativo, cujaaplicação é fiscalizada pelo Ministério do Tra-balho, Ministério Público do Trabalho e Justiçado Trabalho.

A conversão do documento internacional,em lei ordinária interna, oferece o perigo de re-tomada de discussões em torno de problemasresolvidos, com soluções sedimentadas emSúmulas e Orientações do TST, ou do STF.

Pense-se, a título de exemplo, no emprega-do dispensado por empresas do porte do Ban-co do Brasil, Volkswagen, Petrobras, ou nosprogramas de reestruturação com demissõesincentivadas. Pergunta-se: ao Judiciário Tra-balhista ficaria atribuída competência jurisdi-cional para intervir, impedir ou anular os des-ligamentos, depois de indenizados, sob o fun-damento de que a causa determinante das dis-pensas não ficou demonstrada?

Lembra-se que o Judiciário Trabalhista pos-sui 1.327 Varas devidamente preenchidas, e

zação e das facilidades trazidas pela engenha-ria da informática.

Em 1985 o Convênio 158 obteve as ratifica-ções exigidas para entrar em vigor, mas, aindahoje apenas 34 dos 184 países membros da OITa incorporaram à legislação interna.

O debate sobre o controvertido tratado in-ternacional não deverá reduzir-se à questão dodireito do empregador dispensar empregado,ou da eliminação dessa garantia fundamental.É obrigatório refletir acerca dos reflexos que aratificação trará à legislação trabalhista brasi-leira, onde, a começar pela CLT, são numerosasas garantias oferecidas aos empregados, sobquaisquer ângulos que sejam examinados oscontratos de trabalho.

O aviso prévio, tratado no Convênio sob otítulo "prazo de pré-aviso", está disciplinadona CLT do art. 487 ao art. 491. O valor da inde-nização, em caso de demissão sem justa causa,é fixado pelo art. 10, I, do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias. A estabilidadeprotege dirigentes sindicais, trabalhadoresacidentados, empregadas gestantes e inte-grantes efetivos e suplentes das CIPAs. Tem-

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269 criadas, à espera de instalação. Dispõe de24 Tribunais Regionais e do Tribunal Superiordo Trabalho. A cada Juiz, Desembargador ouMinistro é assegurado o direito de julgar deacordo com a sua livre convicção.

Diante do conflito entre o Convênio 158 e alegislação vigente, quantos anos, ações, de-bates, artigos, livros, congressos e seminá-rios seriam necessários até a consolidação daJ u r i s p ru d ê n c i a ?

O projeto que resultou na Lei do Fundo deGarantia do Tempo de Serviço foi recebido, em1966, com hostilidade por dirigentes de sindi-catos profissionais da época, eis que tinha porobjetivo o término da estabilidade após 10anos de serviço à mesma empresa (art. 492 daCLT), e a substituição da indenização previstano art. 477, caput, por depósitos compulsóriosno FGTS. Com o passar dos anos, o Fundo re-velou-se benéfico e útil, sendo incorporado, naConstituição, ao rol dos direitos fundamentaisdos trabalhadores. Hoje é tido como conquis-ta, da qual não renunciam organizações sindi-

cais e assalariados.Uma das dúvidas que aflora é se a ratifica-

ção do Convênio 158 provocaria o desapareci-mento do sistema Fundo de Garantia, com a li-beração dos empregadores do recolhimentodos depósitos mensais, ou se haveria sobrepo-sição dos benefícios da norma internacional edas normas internas.

A Constituição da República, no art. 7º, I, ga-rante aos trabalhadores urbanos e rurais "rela-ção de emprego protegida contra despedidaarbitrária ou sem justa causa, nos termos de leicomplementar, que preverá indenização com-pensatória dentre outros direitos".

A lei complementar que daria efetividade aodispositivo constitucional não existe, e o Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias(ADCT), prescreve que, até ser promulgada a leicomplementar exigida, "fica limitada a proteçãonele referida ao aumento, para quatro vezes, daporcentagem prevista no art. 6º, caput e § 1º, daLei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966".

Até este momento, passados vinte anos, oPoder Legislativo manteve-se omisso em rela-ção à lei complementar exigida.

A omissão do legislador federal deve ser in-terpretada como reconhecimento da comple-xidade da matéria alusiva à garantia legal deemprego, o que torna obrigatória a preserva-ção do art. 10, I, do ADCT.

A prudência exige que nada seja feito, nesseterreno, de maneira precipitada, pois o riscoque se corre é o da multiplicação de conflitos eações judiciais, com forte desestímulo aos in-vestimentos em setores produtivos.

Melhor seria dar-se início à reforma da en-velhecida legislação trabalhista, providênciaaguardada por milhões de jovens e adul-tos, que estão à espera de opor-tunidade em estreitomercado de trabalho.

Normas obscu-ras, como a do ar-tigo 4 da Con-venção 158 ,acabam porse convertere m f o n t e s

de conflitos ao serem incorpora-das, de maneira forçada, a reali-dades específicas.

A lei jamais foi boa garantia demanutenção do emprego. Ade-mais, quando a folha de pagamentotorna-se por demais onerosa sem-pre restará a possibilidade de en-cerrar o negócio, ou transferi-lopara ambientes juridicamentemais acolhedores.

O p re s i d e n t e F e r n a n d oHenrique Cardoso ratificou oConvênio 158 em janeiro de 1995.Ao se dar conta dos efeitos, rapida-mente voltou atrás. Ao invés de críti-cas, a atitude corajosa do ex-presidente me-rece aplausos, pois teve o condão de evitarque novos problemas continuassem a semultiplicar, tumultuando, ainda mais, o liti-gioso terreno das relações de trabalho.

Talvez o presidente Lula aceite permutar aratificação da Convenção 158 pela aprovaçãoda Convenção 87. Sem dúvida alguma, o Paísser-lhe-á eternamente agradecido.

CONVENÇÃO 15 8

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oLuiz Prado/LUZ

Ives Gandra daSilva Martins,

Professor Emérito daUniversidade Mackenzie

(em cuja Faculdade deDireito foi Titular de Direito

Econômico e de DireitoConstitucional).

A Suprema Corte já decidiu quantoaos tratados internacionais, se de-veriam ingressar na ordem jurídi-ca com o nível de norma superior,

de legislação complementar ou se ingressa-riam com "status" apenas de lei ordinária.

Adotou, o Pretório Excelso, a tese de que otratado internacional, quando ratificado, in-gressa no direito brasileiro como se lei ordi-nária especial fosse.

Outra não foi a decisão do STF, em bem co-locado voto do relator da ADIN 1480-3-DF, Mi-nistro José Celso de Mello. Ao examinar a pos-sibilidade de a Convenção 158 da OIT compora ordem jurídica nacional, inviabilizou tal de-siderato, por entender que matéria constitu-cionalmente reservada à lei complementarnão pode ser objeto de ratificação, nem mesmopor força do artigo 49, inciso I, da C.F.

Transcrevo a ementa desse julgado: "AçãoDireta de Inconstitucionalidade – Conven-ção n. 158/ OIT – Proteção do Trabalhadorcontra a despedida arbitrária ou sem justacausa – Arg6uição de ilegitimidade consti-tucional dos atos que incorporaram essaconvenção internacional ao direito positivointerno do Brasil (Decreto Legislativo n.68/92 e Decreto n. 1.855/96) – Possibilidadede controle abstrato de constitucionalidadede tratados ou convenções internacionaisem face da Constituição da República – Ale-gada transgressão ao art. 7º, I, da Constitui-ção da República e ao art. 10, I do ADCT/88 –Regulamentação Normativa da proteçãocontra a despedida arbitrária ou sem justacausa, posta sob reserva constitucional delei complementar – conseqüente impossibi-lidade jurídica de tratado ou convenção in-ternacional atuar como sucedâneo da Leicomplementar exigida pela constituição

(CF, Art. 7º, I) – Consagração constitucionalda garantia de indenização compensatóriacomo expressão da reação estatal à demissãoarbitrária do trabalhador (CF, Art. 7º, I, C/C oArt. 10, I do ADCT/88) – Conteúdo Progra-mático da Convenção n.158/OIT, cuja apli-cabilidade depende da ação normativa dolegislador interno de cada país – possibili-dade de adequação das diretrizes constan-tes da Convenção n. 158/OIT às exigênciasformais e materiais do estatuto constitucio-nal brasileiro – pedido de medida cautelardeferido, em parte, mediante interpretaçãoconforme a Constituição".

De rigor, refere-se, o eminente magistra-do, ao artigo 7º, inciso I, da lei suprema, doseguinte teor: "I - relação de emprego prote-gida contra despedida arbitrária ou sem justacausa, nos termos de lei complementar quepreverá indenização compensatória, dentreoutros direitos".

Como se percebe, a matéria objeto da Con-venção OIT 158 teve tratamento constitucio-nal posterior a sua formulação, implicandoaprovação mediante o veículo especial da leicomplementar. Vale dizer, a Convenção é deimpossível ratificação e se seus fundamen-tos tiverem que ser levados ao Congresso Na-cional, terá que ser sob a forma de projeto delei complementar, que exige maioria absolu-ta nas duas Casas, para aprovação.

Parece-me, pois, que, se pretender o Go-verno – neste fantástico "avanço do retroces-so", abraçando teses superadíssimas, já nosfins do século XX e começo do século XXI –aprovar novo pedido de ratificação do trata-do, incorrerá na mesma violação da tentativaanterior. Vale dizer, a ratificação nascerá – senascer – maculada pelo vício de manifesta in-constitucionalidade.

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Sérgio De ZenProfessor daEsalq/USP epesquisador doCepea/Esalq/USP

Divulgação Leonardo Colosso/Folha Imagem

Os váriosinteressadosna carnebrasileira

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O que significam,para a Europa, asexportações decarne brasileira?

E para o Brasil? O que queremoscomo produtores de carne? Es-tas duas perguntas são funda-mentais para nortear o futuro dapecuária, seja ela bovina, suína eavícola. Para responder, é preci-so saber as verdades econômicasde cada segmento da cadeia produ-tiva, incluindo o governo. O que está ocorrendohoje com a carne bovina, seguramente, podeocorrer com a carne de frango, além do que di-ficulta também a abertura do mercado europeu

à carne suína brasileira.O Brasil é um país que pode suprir a Europa;

tem condições de atender às mais diferentesdemandas da Europa, seja dos 12 países maisricos, dos 15 países da zona do Euro ou mesmodos 27 da União Européia ampliada. Isso im-plica em ofertar animais terminados em con-finamentos, ou a carne "commodity", ou mes-mo a carne de baixo valor.

Para os brasileiros, as exportações de carnebovina para a Europa têm um efeito muito maismonetário que de volume. Em valor, as expor-tações de carne bovina representam cerca de32% da receita total; em volume, 15,2% do totalexportado e 3% do total de abate brasileiro.

Dentro da porteira, fica fácil entender a van-tagem competitiva do Brasil quando se com-param os custos de produção nacional com ode países europeus. Aqui, em 2006, produzir100 kg de carne bovina custava entre US$ 180 eUS$ 200, sendo que o produtor apurava com avenda cerca de US$ 190. O produtor brasileiro,portanto, foi forçado a buscar mais eficiência eprodutividade para se manter na atividade.

Na Irlanda, que atualmente é o país europeuque mais luta contra as importações de carnebrasileira, o rebanho é por volta de 3 milhõesde cabeças, e o produtor despende cerca deUS$ 430 por 100 kg de carne produzida, rece-bendo cerca de US$ 300 pela venda da carne emais US$ 7 de subsídio direto. Portanto, essesprodutores também estão se descapitalizan-do. Em 2003, porém, os irlandeses gastavamcerca de US$ 380 para produzir os 100 kg decarne, recebiam US$ 280 com a venda do pro-duto e mais US$ 130 de subsídio do governo.

Como se vê, nos últimos anos, ocorreu umamudança da política agrícola comum da Euro-pa que gerou descontentamento dos produto-res daquele bloco. Como eles não conseguiramsensibilizar a Comissão Européia de agricul-tura para evitar tais mudanças, passaram a in-vestir contra as importações do Brasil.

O subsídio é o motivo fundamental peloqual a rastreabilidade funciona bem na Euro-pa, pois cada produtor declara os animais e re-cebe um pagamento do governo. Lembrandoque nos momentos de crise aguda, tanto da va-ca louca quanto da febre aftosa, o sistema ex-pôs muitas falhas.

A indústria européia também não tem mui-ta vantagem em relação à indústria brasileira.A indústria brasileira, por raízes históricas,tem um padrão de funcionamento e controleque atende à demanda do mercado europeu.Por isso, sempre teve facilidades em atender àdemanda desse mercado. No custo operacio-

Yuri Cortez/AFP

O produtorbrasileiro foiforçado a buscareficiência parapoder se manterna atividade.

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nal padrão, um frigorífico brasileiro gasta cer-ca de US$ 180 por carcaça, enquanto um fran-cês, US$ 400 e um holandês, US$ 550. Esses nú-meros mostram, portanto, que, do ponto devista econômico, as exportações paraEuropa têm uma razão muito viável.

O terceiro grande interessadonessa história é o consumidor brasi-leiro que, em uma análise simplista,poderia ser beneficiado com a maioroferta de carne devido à suspensãodas vendas para a Europa e reduçãode preços. Mas os números mostramque isso não ocorreu. E por que não?

Neste ponto, é preciso entender a di-nâmica das exportações para a Europa. O boipode ser fracionado em cerca de 420 produtosdiferentes, entre carnes e subprodutos - em ge-ral, são 12 cortes na parte traseira do boi, 5 nadianteira mais a chamada de "ponta de agulha",que é a costela. O mercado europeu concentrasuas compras nos cortes traseiros: filé mignon,alcatra, contrafilé, coxão mole e coxão duro; osdemais ficam para o mercado interno.

Xando P./Folha Imagem

Um frigoríficobrasileiro gastaUS$ 180 porcarcaça; já umholandês,US$ 550.

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Os preços dos cortes exportados para o mer-cado europeu são elevados e isso explica a razãopela qual pequenos volumes representam gran-des receitas. Por exemplo, o quilo de filé mignoné vendido para a Europa por cerca de R$ 52,00; aalcatra, por R$ 14,00 e o contrafilé, por R$ 17,00.No mercado atacadista interno, esses cortes sãocomercializados em torno de R$ 14,00/kg, R$8,00/kg e R$ 9,00/kg respectivamente.

Como o frigorífico não pode tirarapenas esses cortes da carcaça, é obri-gado a comercializar a picanha, ma-minha e outros cortes no mercado in-terno a preços que, por vezes, é infe-rior ao valor que precisaria ter para co-b r i r s e u s c u s t o s e m a n t e r s u a smargens. A diferença vem das exportaçõespara a Europa. O consumidor brasileiro é be-neficiado pelas promoções do varejo dos cor-tes não exportados.

Um exercício com uma planta padrão de umfrigorífico que abate 1.000 cabeças por dia, su-pondo uma margem líquida de 5%, mostra quetal unidade industrial teria dois caminhos paramanter essa margem sem as exportações para aEuropa. Um deles é manter os preços pagos pe-

lo boi gordo e reajustar os preços da carne aoconsumidor com vistas a manter a margem decomercialização, isto supondo que fosse possí-vel o repasse de preços dos frigoríficos para ovarejo. Outro é reduzir os preços do boi paramanter os preços da carne, neste caso supondoque fosse possível repassar aos produtores as

reduções de preços. Neste exemplo, no caso dereajustar a carne ao consumidor, o aumen-to deveria ser da ordem de 20%; doutra for-ma, o valor da arroba do boi teria de cair porvolta de 17%.Isso é apenas um exercício hipotético,

uma vez que o frigorífico não tem capacidadede repassar integralmente esses valores aoatacado/consumidor e tampouco de reduziro preço do boi. Além disso, a elevação dos pre-ços da carne causa redução de consumo e, porconseqüência, novos preços de equilíbrio dacarne e do boi.

O quarto interessado é o consumidor euro-peu. Ele precisa saber, entre outros aspectos,que toda a exigência à carne brasileira não é fei-ta, por exemplo, para a carne proveniente deBotsuana, país africano onde ocorreu um focode febre aftosa em 2006, mas que comercializa

O consumidorbrasileiro ébeneficiado pelaspromoções dovarejo dos cortesnão exportados.

Patrícia Santos/AE

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com carne bovina com a Europa sem cotas ousobretaxas. Ainda no aspecto de qualidade,merece destaque o fato de que a Irlanda teve osprimeiros casos de vaca louca. Além disso,tem a questão do preço. O italiano paga cercade R$ 70,00 por quilo de filé mignon e o inglês,R$ 80,00/kg de contrafilé. Até que ponto esseconsumidor está informado dessas questões?

Por fim, vale citar ainda que produtores, fri-goríficos e consumidores precisam ficar atentospara as falsas promessas, acusações e especula-ções. O agente fundamental deste jogo é o gover-no, que tem a função de regulamentar e fiscalizaros procedimentos ao longo da cadeia. Para isso,o Governo Federal recolhe impostos de todos oselos da cadeia. Do abate até a de-sossa, por exemplo, a indústriapaga 29% de impostos.

Esses valores entram nos cofres do governoe deveriam pagar, por exemplo, os gastos coma regulamentação e fiscalização do setor. Aquestão da rastreabilidade foi estabelecida pa-ra atender a uma demanda dos europeus, sen-do que o governo brasileiro assumiu as tarefasde regulamentação e fiscalização. Vale lem-brar que nenhuma carne sai do Brasil sem oaval do Serviço de Inspeção Federal (SIF). Por-tanto, é muito difícil para qualquer pessoa dogoverno atribuir ao produtor ou ao frigoríficoa culpa pelo não funcionamento do sistema.Estes podem ter suas parcelas de culpa, mas di-ficilmente agiriam sem que o governo tivesseconhecimento.

A questão é saber se o Brasil está disposto amanter o mercado, conquistado com grandesdificuldades e, se estiver, quais serão as açõesefetivas neste sentido? A questão de rastreabi-

lidade necessita de muito investimento comvistas a se criar um produto confiável não

apenas para a carne bovina que vai parao mercado europeu, mas para todos os

produtos alimentícios ofertados pa-ra os brasileiros ou estrangeiros. Pa-

ra a indústria, o benefício é ter um pro-duto confiável e, para o produtor, a ras-

treabilidade pode ajudar na gestão do seunegócio. Enfim, das exigências da Europa, épossível tirar proveito para melhorar as condi-ções de todos os elos da cadeia produtiva.

Ed Ferreira/AE

O ministro daAgricultura,ReinholdStephanes, serveum churrasco depicanha aoministro russoSerguey Dankvert.

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O Brasil é o maior exportador de carne bovina domundo, e o segundo maior produtor. De cadatrês quilos de carne exportada, um quilo possuia marca brasileira. Mas todos esses atributos

não impediram que a União Européia (UE) suspendesse a im-portação de carne brasileira in natura, sob a alegação de insu-

A EUROPA QUER

Rogério Cassimiro/Folha Imagem

ficiência de garantias sanitárias e de qualidade na cadeia pro-dutiva de gado no País. O embargo foi anunciado no dia 30 dejaneiro, passou a valer em 1º de fevereiro e já mostra reflexos nabalança comercial - pelo menos no quesito volume.

De acordo com estatísticas da Associação Brasileira dasIndústrias Exportadoras de Carne (Abiec), no primeiro bi-mestre deste ano, o Brasil exportou 362 mil toneladas de car-ne bovina, uma queda de 16,6% em comparação com o mes-mo período do ano passado. Especificamente para o bloco

Patrícia Büll

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FECHAR A PORTEIRA

europeu, os embarques totalizaram 76,7 mil toneladas, umaqueda de 19% entre os períodos analisados. Em contrapar-tida, houve um crescimento de 17% em valores, totalizandoUS$ 806,9 milhões. "Esses números mostram que a suspen-são temporária da importação de carne brasileira pelaUnião Européia causou pouco impacto, pois o que perde-mos em tonelada, conseguimos recuperar em preço", afirmao presidente da Abiec, Marcus Vinícius Pratini de Moraes.

Segundo Pratini de Moraes, a carne brasileira in natura comer-

cializada no exterior teve reajuste médio de 65% em janeiro sobreo preço praticado no mesmo período de 2007. O motivo foi o cres-cimento da demanda pela própria UE, que pressionou os preços."Acredito que essa demanda extra se deu para que a União Eu-ropéia pudesse estocar o produto antes de iniciar o embargo", afir-mou Pratini de Moraes. Os impactos foram sentidos principal-mente na categoria in natura, que teve retração de 24,7% na quan-tidade embarcada para o exterior no primeiro bimestre deste anosobre igual período de 2007. Já a exportação de carne bovina in-

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dustrializada ficou estável, com pequena alta de 0,71%, enquantomiúdos tiveram expansão de 49%.

Apesar da recuperação dos preços no primeiro bimestre, eda liberação de 106 fazendas para exportação no final do mêsde fevereiro, no longo prazo o embargo poderá trazer mais da-nos à balança comercial brasileira. Afinal, a União Européia éum importante parceiro comercial para o setor, pois segundo aAbiec, responde por aproximadamente 11% das exportaçõesnacionais de carne e por 25% das receitas totais. "A União Eu-ropéia compra para 27 países, além de ser um mercado refe-rencial para outros 160 para os quais o Brasil vende. Portanto,é um mercado importante tanto do ponto de vista econômicoquanto da credibilidade", afirma Cesário Ramalho da Silva,presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB). E para ele, oBrasil perdeu credibilidade na questão da defesa sanitária.

"A discussão para o atual embargo passa principalmente pe-la rastreabilidade. Mas rastreabilidade e sanidade andam jun-tas e nós ainda estamos trabalhando para melhorar as condiçõespara controle de febre aftosa, por exemplo", diz Ramalho. Se-gundo ele, os produtores não têm sequer a confirmação da efi-ciência da vacina contra a doença. "Nós ainda estamos fazendoa lição de casa. Quando tudo isso estiver perfeito, aí sim teremosque ir à Europa para negociar as regras impostos pela União Eu-ropéia e tentar minimizar seus efeitos sobre o Brasil."

Desastre anunciado

Embora o embargo tenha efetivamente começado em 31 de ja-neiro, Brasília tinha sido avisada em dezembro de 2007 de que aimportação de carne bovina seria suspensa, caso não fosse exclu-sivamente proveniente de pastos selecionados que respeitassemas regras sanitárias em vigor na UE. Por exigência do próprio blo-co europeu, o Brasil utiliza o Sistema Brasileiro de Rastreabilida-de da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (Sisbov). Apesardisso, a UE colocou em dúvida o sistema, utilizando esse argu-

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mento para suspender as importações, que foram parcialmenteretomadas no dia 27 de fevereiro.

Apesar de autoridades brasileiras reconhecerem algumas fa-lhas no Sisbov - que passará por mudanças nos próximos meses -elas salientam que não foi apenas isso que motivou o embargo.Por ocasião da suspensão das importações, o próprio ministro daAgricultura, Pecuária e Abastecimento, (MAPA) Reinhold Ste-phanes, disse que o custo de produção brasileira é cerca de um

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terço do custo europeu, o que atrapalha a concorrência local.A Standard & Poor's do Brasil apontou essa mesma questão

em relatório divulgado na segunda quinzena de março. "Emborao foco das discussões seja a questão sanitária, é amplamente sa-bido que a posição de baixo custo dos produtores brasileiros atre-lada à crescente presença deles no mercado global criam dificul-dades para os processadores internacionais de carne, que apre-sentam custos mais elevados, produzirem e exportarem seusprodutos a preços competitivos para os grandes mercados con-sumidores como, por exemplo, Europa", aponta o relatório.

Próximos passos

Em resposta às exigências da UE para encerrar o embargo àsexportações de carne brasileira, o Ministério da Agriculturaanunciou que o Sisbov passará por uma reformulação signifi-cativa em um prazo de 30 a 60 dias. Embora não tenha deta-lhado que mudanças serão essas, representantes do ministérioafirmam que haverá participação de representantes de toda acadeia produtiva de carne e de especialistas internacionais pa-ra a reformulação do sistema de rastreabilidade.

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Joel Silva/Folha Imagem

A proibição da queima da cana-de-açúcar comométodo de despalha faz acelerar a mecanização

da colheita, com impactos negativos sobre onúmero de empregados da lavoura canavieira.

O mercado de trabalhoda agroindústria

canavieira: desafiose oportunidades

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Márcia AzanhaFerraz Dias deMoraesProfa. Dra. doDepartamento deEconomia, Administraçãoe Sociologia daESALQ/USP.O artigo foi originalmentepublicado na RevistaEconomia Aplicada

Joel Silva/Folha Imagem

Ocrescimento da produção de açúcar e álcool,devido ao aumento do uso de álcool combustível,tanto no Brasil quanto para atender a demandaexterna, bem como por causa do crescimento das

exportações de açúcar, traz ótimas perspectivas para o setor.Contudo, a proibição da queima da cana-de-açúcar como métodode despalha faz acelerar a mecanização da colheita, comimpactos negativos sobre o número de empregados da lavouracanavieira, visto que serão criados empregos na indústria doaçúcar e do álcool, mas haverá redução dos mesmos na áreaagrícola. Ademais, haverá mudança no perfil requerido dotrabalhador agrícola, atualmente de baixa escolaridade. Em2005, segundo a PNAD, havia 519.197 empregados na culturada cana-de-açúcar do Brasil, cuja escolaridade média era de 3,9anos de estudo; 70% tinham até quatro anos de estudo e, destes,154.598 podem ser considerados analfabetos funcionais (até 1ano de estudo). Considerando-se que muitos são migrantes dosEstados mais pobres do Brasil, evidencia-se a necessidade depolítica pública nos locais de origem, dado o cenário de reduçãode demanda pelos trabalhadores de baixa escolaridade.

Divulgação

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Mudanças institucionais importantes, tanto noBrasil como em outros países, resultaram numanova fase de crescimento da agroindústria cana-vieira nacional, impulsionada por perspectivas

de aumento da demanda tanto por açúcar como por álcool.No âmbito internacional, uma maior consciência sobre a re-

lação entre o uso de combustíveis fósseis e as mudanças climá-ticas incentivaram a procura pelo álcool combustível, dados osefeitos líquidos positivos na absorção de CO2. Internamente, oaumento das vendas de carros bicombustível, impulsionou ademanda pelo álcool hidratado, ocasionando reversão da ten-dência declinante do uso deste produto, que se verificou atémeados de 2003.

Quanto ao mercado de açúcar, a vitória do Brasil, Austráliae Tailândia, importantes países produtores de açúcar, no pai-nel aberto pelo Brasil na Organização Mundial do Comércio(OMC) sobre subsídios às exportações de açúcar branco pra-ticados pela União Européia, sinalizou expansão da produçãonos países competitivos, dentre os quais se destaca o Brasil.

Este novo crescimento da agroindústria canavieira temimpactos – positivos e negativos – em toda a cadeia produtivado açúcar e do álcool, e sua sustentabilidade tem sido ampla-mente analisada. No que se refere aos impactos sobre o meioambiente, citam-se os efeitos sobre a qualidade do ar nasáreas urbanas e rurais, sobre o clima global, sobre a oferta deágua, ocupação e preservação do solo, emprego de agrotóxi-cos e fertilizantes.

Sob a ótica social, a despeito dos praticamente um milhão deempregos formais gerados somente nos três setores – cana-de-açúcar, açúcar e álcool – e apesar das perspectivas de geraçãode novos postos de trabalho nas indústrias do açúcar e do ál-cool devido à expansão do setor, muito se tem escrito sobre osempregos agrícolas – especificamente dos cortadores de cana-de-açúcar – principalmente sobre as condições de trabalho, aopagamento por produtividade, ao uso da terceirização na con-tratação dos cortadores e da migração de trabalhadores de ou-tros Estados, que vêm principalmente para São Paulo para tra-balhar no corte da cana-de-açúcar.

Além destes temas, duas mudanças institucionais internasrelevantes sinalizam redução da colheita manual com conse-qüente redução e mudança de perfil do empregado agrícola,visto que ambas aceleram o processo de mecanização da co-lheita: a primeira é a antecipação da proibição da queima noEstado de São Paulo e a outra é o efetivo cumprimento das nor-mas regulamentadoras do mercado de trabalho agrícola noBrasil, por exemplo, a Norma Regulamentadora 31 (NR 31).Segundo estimativas da União da Agroindústria do Açúcar(UNICA), haverá redução de aproximadamente 114 mil em-pregados na lavoura canavieira até safra 2020/2021.

Portanto, dados a importante expansão deste setor, as mu-danças institucionais recentes e os conseqüentes impactos so-bre o mercado de trabalho, propõe-se neste artigo uma refle-xão sobre o mercado de trabalho do setor de cana-de-açúcar,açúcar e álcool.

Neste trabalho, objetiva-se apresentar a evolução dos indi-cadores sociais deste setor e discutir os impactos das principaismudanças institucionais sobre mercado de trabalho, priori-zando a discussão sobre o setor agrícola.

2 - FONTE DE DADOS

Os dados socioeconômicos foram extraídos da PesquisaNacional por Amostra de Domicílios (PNAD) (1), do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (diversos anos) edos Registros Administrativos do Ministério do Trabalho eEmprego (RAIS) (2), do Ministério do Trabalho.

Os dados da PNAD foram extraídos para empregados daatividade cana-de-açúcar (código de atividade 01105). Parase analisar a evolução dos dados dos três setores (cana-de-açúcar, açúcar e álcool), utilizou-se como fonte de dados pri-mários os Registros Administrativos do Ministério do Tra-balho e Emprego (RAIS), do Ministério do Trabalho, cujo al-cance é de 90% deste setor organizado da economia e apre-senta somente o emprego formal. Os dados foram extraídospara as classes 01139 (cultivo de cana-de-açúcar), 15610 (usi-nas de açúcar), 15628 (refino e moagem de açúcar) e 23400(produção de álcool).

É importante observar que os dados de PNAD e dos RAISnão são comparáveis, visto que as metodologias da coletados dados de ambas diferem completamente: os RAIS cons-tituem-se de censo do mercado formal de trabalho, sendo oquestionário respondido pelo empregador, enquanto naPNAD a entrevista ocorre no domicílio do trabalhador. Nes-te caso, a unidade de análise é o estabelecimento, sendo quea resposta do entrevistado refere-se ao emprego na ativida-de principal do estabelecimento (ou seja, se na unidade agrí-cola existirem outras culturas, se a cana-de-açúcar for con-siderada pelo empregado a atividade principal, entende-seque é empregado do setor de cana-de-açúcar). Contudo,usualmente observam-se as mesmas tendências dos dadosde ambas as bases.

3 - REVISÃO DE LITERATURA

Nesta seção, procurou-se abordar as principais questõesque influenciam o mercado de trabalho da agroindústria ca-navieira: a proibição da queima da cana-de-açúcar e o paga-mento por produtividade.

1 - INTRODUÇÃO

(1) A PNAD fornece um panorama da ocupação formal e informal doBrasil, sendo elaborada desde 1967 (de forma descontínua). Possuicaráter amostral, sendo que seu desenho é estabelecido a partir docenso populacional de 1991 e de 2000, e permite a expansão dosresultados para todas as áreas do País.(2) A RAIS possui informações de caráter sociodemográfico eprofissional, podendo ser agregada/desagregada ao longo dos eixostemporais (1986 a 2000) espaciais (nacional regional, estadual,municipal), econômico, natureza jurídica dos estabelecimentosempregadores e portes dos estabelecimentos.

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3.1 - Proibição da queima da cana-de-açúcar comométodo de despalha

Conforme Paes (2007), a queima da palha da cana-de-açúcarcomo método de despalha (eliminação da palha e folhas secas)é prática usual em quase todos os 97 países que a produzem.No Brasil, ainda é uma prática comumente usada na colheitamanual da cana, que é realizada após o emprego do fogo paradespalha, com posterior corte e transporte. A queima préviada cana-de-açúcar aumenta a produtividade do trabalhador,porque evita a retirada da palha da cana.

3.2 - Legislação sobre a queima da cana-de-açúcar

As normas que regem a questão das queimadas são de âmbitofederal, estadual e municipal. O Decreto Federal nº 2.661, de8/7/98, estabelece a eliminação gradual da queima da cana-de-açúcar. Conforme Paes (2007), são estabelecidas também asáreas de proibição de queima, como faixas de proteção nas pro-ximidades de perímetros urbanos, rodovias, ferrovias, aeropor-tos, reservas florestais e unidades de conservação, entre outros.

Alguns Estados produtores estabeleceram normas especí-ficas para tratar a eliminação da queimada, dentre eles Mato

Grosso do Sul, Goiás, Paraná e São Paulo. Conforme Idea News(2007), no Mato Grosso do Sul, a Lei nº 3.357, de 9 de janeiro de2007, estipula que a eliminação da queima deve acontecer numprazo de 20 anos, iniciando em 2006, num percentual de 5% aoano. Nas áreas não mecanizáveis, a eliminação começa em2010, na mesma proporção anual. Segundo a mesma fonte, emGoiás, a Lei nº 15.834, de 23/11/2006, estabelece a redução gra-dativa da queimada, com extinção total em 2028.

No Estado de Minas Gerais, por meio do Decreto nº39.792/98, que regulamenta a Lei Estadual nº 10.312/98, é per-mitida a queima de forma controlada, com autorização préviado órgão competente. No Paraná, existe um projeto de lei paraproibir queimada até o final de 2010, aguardando votação naCâmara Estadual. Alagoas e Pernambuco, principais Estadosprodutores da região Norte/Nordeste, não têm legislação es-pecífica sobre o tema.

São Paulo, que na safra 2006/2007 foi responsável por 63% detoda a cana-de-açúcar produzida no País, por 63,3% da produçãode álcool e por 65% da produção de açúcar, é o Estado que tem omenor prazo para a eliminação total da queima. A Lei Estadual nº10.547, de 2 de maio de 2000, estipula os procedimentos, proibi-ções, regras de execução e medidas de precaução a serem toma-dos quando do emprego do fogo em práticas agrícolas. Nos ter-

São Paulo responde por 63% de todacana-de-açúcar produzida no País.Na foto, moagem de cana na usina

Santo Antônio, em Sertãozinho.

Edson Silva/Folha Imagem

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mos da lei, é necessário que, antes do emprego do fogo, o inte-ressado requeira ao poder público a expedição de "Autorizaçãode Queima Controlada", sendo a Secretaria do Meio Ambienteresponsável para expedir a referida autorização.

Em setembro de 2002, foi promulgada a lei nº 11.241, que es-tipula um cronograma gradativo de extinção da queima da cana-de-açúcar, iniciado na safra 2002, e determinando que tal práticadeve ser totalmente banida neste Estado até o ano de 2021 emáreas mecanizáveis, e até 2031 em áreas não mecanizáveis. Con-tudo, em junho de 2007, foi assinado um protocolo de cooperaçãoentre o governo do Estado de São Paulo e a União da Agroindús-tria de São Paulo – UNICA – denominado Protocolo Agroam-biental, que visa à antecipação da eliminação da queima no Es-tado de São Paulo. Apesar de o protocolo não ter força de lei, ouseja, não substituir a Lei Estadual nº 11.241, e não ser obrigatórioas usinas aderirem ao mesmo, houve grande aceitação e a expec-tativa é que a grande maioria das usinas assine o protocolo. (3)

A principal mudança advinda do protocolo refere-se aoprazo para a eliminação da queima. As usinas e produtoresque aderirem ao mesmo deverão antecipar, nos terrenos comdeclividade até 12%, o prazo final para eliminação da queima-da, de 2021 para 2014, adiantando o percentual de cana nãoqueimada, em 2010, de 50% para 70%. Nos terrenos com de-clividade acima de 12%, o prazo final é de 2031 para 2017,adiantando o percentual, em 2010, de 10% para 30%. Outrasmedidas referem-se à não utilização da queima na área de ex-pansão de canaviais; não permitir queima de subprodutos(por exemplo, bagaço de cana) a céu aberto; proteger as matasciliares; proteger e reflorestar as nascentes; desenvolver planode conservação do solo e dos recursos hídricos; adotar boaspráticas para o descarte de embalagens vazias e minimizar apoluição atmosférica na indústria.

Ainda no Estado de São Paulo, tem havido diversas tentativas,por meio de promulgação de leis municipais e ações civis públi-

cas, visando à proibição imediata das queimadas. Citam-se as ci-dades de Americana, Ribeirão Preto, Limeira, Paulínia, São Josédo Rio Preto, Botucatu, São José do Rio Pardo. Embora na maioriados casos tenham sido revogadas por meio de Ações Diretas deInconstitucionalidade (ADINs), interpostas contra as Leis Muni-cipais que proíbem a queima de cana, fica claro que parcela dasociedade requer que a eliminação da queima aconteça antesmesmo dos prazos estipulados pela legislação pertinente.

Contudo, é importante lembrar que existe um balanço en-tre a redução das queimadas e o número de empregados en-volvidos com a colheita manual da cana-de-açúcar: a proi-bição da queima induz à mecanização, processo que tende ase acelerar a partir de agora, com a antecipação dos prazospara eliminação da queima.

A produtividade do trabalhador com a colheita da cana cruamanual cai muito (em média de 6 toneladas por dia por em-pregado para 3 toneladas por dia por empregado), o que invia-biliza a adoção desta prática em ambiente de livre mercado. Acolheita mecânica da cana crua é economicamente mais efi-ciente, dados os menores custos de produção, além do fato deas próprias convenções coletivas de trabalho estipularem queo corte manual deve ser de cana queimada, dadas as dificul-dades encontradas no corte manual da cana crua.

Conforme Paes (2007), a mecanização da colheita foi implan-tada no Brasil na década de 1980, e vem crescendo por três fa-tores principais: em meados da década de 1980, pela escassez demão-de-obra ocorrida durante o Plano Cruzado e, mais recen-temente, pela redução de custos e pela pressão ambiental paraque a colheita da cana seja feita sem queimar. Segundo o autor,no Estado de São Paulo, em 1997, a proporção da colheita me-canizada era ao redor de 18%, tendo alcançado 42% em 2006. Naregião Centro-Sul, este percentual foi de 35% em 2006 e, da mes-ma forma que para o Estado de São Paulo, observa-se tendênciacrescente de mecanização. Na região Norte-Nordeste, a propor-ção de colheita mecanizada é bem menor, ao redor de 10%.

É interessante observar que, no Estado de São Paulo, a ve-locidade de adoção da colheita mecanizada varia bastante en-tre as principais regiões produtoras do Estado – Ribeirão Pretoe Piracicaba: enquanto na região de Ribeirão Preto estima-seque a mecanização tenha atingido em torno de 60% da colheita,em Piracicaba esta proporção é ao redor de 20%. Este fato podeser explicado por diversos fatores: (i) a região de Ribeirão Pretoé plana, favorecendo a mecanização com as máquinas atual-mente disponíveis, enquanto mais de 70% das terras de Pira-cicaba têm declividade superior a 30%; (ii) a estrutura fundiá-ria entre ambas também é diferente – enquanto na região deRibeirão Preto existe a predominância de grandes produtores,com escala que justifica a compra de uma colheitadeira, em Pi-

Maurício Piffer/Folha Imagem

A produtividade do trabalhador com a colheitada cana crua manual cai em média pela metade.

(3) O Grupo Cosan, que detém 17 usinas de açúcar e álcool, foi oprimeiro a assinar o Protocolo Agroambiental no dia 21/9/2007, nacidade de Piracicaba. Em 2007, o Grupo Cosan colhe cerca de 40%de sua cana sem o emprego do fogo. Até 2001, pretende-se chegar a80%, com investimentos de US$100 milhões na compra de 200colheitadeiras (Jornal de Piracicaba, 22/9/2007, p. A-7).

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racicaba a grande maioria é de pequenos produtores, que nãosão capitalizados para adquirirem colheitadeiras mecânicas,além de não terem escala de produção eficiente para a colheitamecânica; (iii) o movimento sindical dos trabalhadores na re-gião de Ribeirão Preto tem maior grau de organização, comelevado poder de barganha (4),, tendo incentivado a adoção dacolheita mecânica bem antes da legislação entrar em vigor.

A tendência de mecanização da colheita, principalmente naregião Centro-Sul, é irreversível e tende a se acelerar por diver-sos motivos. Além dos anteriormente citados, nos anos recen-tes, as usinas estão investindo em co-geração de energia elétricaa partir da queima de bagaço de cana, para comercialização deenergia neste mercado. Além do bagaço, a palha também podeser utilizada como matéria-prima para a co-geração de energiaelétrica, o que estimula as usinas a deixarem de queimá-la.

Portanto, além dos fatores institucionais – a legislação proi-bindo a queima da cana-de-açúcar e a aplicação mais efetiva dalegislação trabalhista – a mecanização tende a se acelerar tam-bém em função do aumento de competitividade das usinas,principalmente com o desenvolvimento de colheitadeiras me-nores, mais baratas e com tecnologia que permita a colheita emterrenos com maior declividade.

3.3 - Impactos sobre o emprego

A questão que emerge é que a mecanização da colheita al-tera o perfil do empregado: cria oportunidades para tratoris-tas, motoristas, mecânicos, condutores de colheitadeiras, téc-nicos em eletrônica, dentre outros, e reduz, em maior propor-ção, (5) a demanda dos empregados de baixa escolaridade(grande parte dos trabalhadores da lavoura canavieira têmpoucos anos de estudo), expulsando-os da atividade. Este fato

implica a necessidade de alfabetização, qualificação e treina-mento desta mão-de-obra, para estar apta a atividades que exi-jam maior escolaridade.

Segundo estimativas da UNICA, sem se considerar os fun-cionários envolvidos na gestão e administração da produção,no Estado de São Paulo, entre as safras de 2006/2007 e2020/2021, o número de empregados envolvidos com a pro-dução de cana-de-açúcar, açúcar e álcool passará de 260,4 milpara 146,1 mil, ou seja, haverá uma redução de 114 mil empre-gos neste período, conforme exposto na Tabela 1.

Observa-se que na indústria é esperado um aumento de 20mil empregados, enquanto na lavoura canavieira o número pas-sará de 205,1 mil empregados para 70,8 mil, ou seja, uma quedade 134,3 mil. A previsão é que não haja colheita manual na safra2020/2021. Para que parte dos empregados agrícolas sejam rea-locados para as atividades do corte mecânico, é necessário es-colaridade maior do que a da grande maioria dos empregados.

Guilhoto et al. (2002) estudaram os impactos diretos e in-diretos sobre o emprego, utilizando um modelo inter-regio-nal de insumo-produto para a economia brasileira de 1997,nas cinco macrorregiões, considerando especificamente o se-tor de cana-de-açúcar.

Os autores consideraram dois cenários possíveis: (i) mecani-zação de 50% da colheita na região Norte-Nordeste e 80% na re-gião Centro-Sul, sem alteração dos níveis de produtividade; (ii)mesmas hipóteses, alterando-se a produtividade – aumento de20% tanto para a colheita manual como mecânica. Os autores en-contraram que a redução do número de empregados devido àmecanização da colheita são de aproximadamente 243 mil no ce-nário I e 273 mil no cenário II. Ao se considerar o nível de esco-laridade, os autores encontraram que as maiores perdas serão jus-tamente para aqueles empregados com até três anos de estudo.

Tanto inovações tecnológicas quanto mudanças no ambien-te institucional têm impactos importantes sobre o emprego.Ricci et al. (1994) destacam que, na área agrícola, podem ser ci-tados três níveis de inovação tecnológica com impactos sobre omercado de trabalho: (i) inovações mecânicas – afetam a inten-sidade e ritmo da jornada de trabalho; (ii) inovações físico-quí-micas – modificam as condições naturais do solo e elevam aprodutividade do trabalho; (iii) inovações biológicas – inter-ferem na velocidade de rotação do capital e do trabalho.

(4) Conforme Ricci et al. (1994), na região de Ribeirão Preto, a grevedos colhedores de cana em 1984, quando 100% da cana era colhidamanualmente, paralisou as usinas de açúcar e mostrou a força dostrabalhadores e a dependência das empresas. Desde então, houveincentivo para a adoção gradual da colheita mecanizada.(5) Uma colheitadeira substitui ao redor de 80 cortadores de cana.

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Os autores citam os principais impactos decorrentes dasinovações mecânicas na lavoura canavieira: redução do tempodas tarefas realizadas, redução da demanda por mão-de-obra,redução da mão-de-obra residente na propriedade e mudançaqualitativa na demanda por trabalhadores; já que as novas ati-vidades – tratorista, motoristas, operadores de máquinas – re-querem maior grau de especialização dos trabalhadores.

Em São Paulo, conforme informação dos sindicatos patro-nais, atualmente o carregamento, transporte e cultivo da cana-de-açúcar são 100% mecanizados, sendo a colheita aproxima-damente 40% mecanizada. Portanto, a colheita, que em médiarepresenta 30% do custo de produção da cana-de-açúcar, ain-da utiliza um grande contingente de homens e máquinas(guinchos, caminhões).

3.4 - Pagamento por produção

Outra questão que faz parte da agenda de discussões do mer-cado de trabalho do setor de açúcar e álcool é a forma de paga-mento da colheita da cana-de-açúcar que, atualmente, é o paga-mento por produção. Além da cana-de-açúcar, outras atividadesagrícolas também adotam o pagamento por produtividade, taiscomo algodão, amendoim, café, laranja, limão e tangerina.

A remuneração por produção tem ampla base legal: é pre-vista no artigo 457, § 10 da Consolidação das Leis do Trabalho(CLT), bem como tem incontroversa aceitação doutrinária e ju-risprudencial. Da mesma forma, é prevista em normas coleti-vas de trabalho, para diversas culturas. (6) Desde 1984, com acriação do "Grupo Cana", passaram a existir as convenções e

acordos de trabalhos específicos para o setor canavieiro, cujasnormas estipulam: piso salarial, remuneração do bituqueiro,reajustes salariais, valor da tonelada de cana de 18 meses, e ou-tros cortes e cláusulas sociais específicas.

A limitação existente é que deve ser garantido ao trabalha-dor um salário mensal nunca inferior ao mínimo, conforme oartigo 78 da CLT.

Contudo, apesar de ser previsto pela legislação aplicável, eestar presente em vários acordos coletivos de trabalho, diver-sos autores têm questionado o pagamento por produtividadedos empregados da lavoura canavieira.

Balsadi (2007) indica melhorias em diversos indicadores so-cioeconômicos ao longo do tempo, tais como a redução do tra-balho infantil, o aumento do nível de formalidade, os ganhosreais de salário, o aumento de alguns benefícios recebidos e oaumento da escolaridade dos empregados. O autor salienta oelevado percentual de trabalhadores com carteira assinada, oque possibilita acesso à aposentadoria, e destaca que a culturada cana-de-açúcar é uma das atividades com maior nível deformalidade do emprego. Basaldi também trata dos ganhosreais de salários entre 1992 e 2005 que, segundo o autor, con-siderados os dados da PNAD, foram de 34,5% para os empre-

(6) Por exemplo, a Convenção Coletiva de Trabalho "SetorCitricultura", no Estado de São Paulo, firmada por 20 SindicatosProfissionais Rurais e pela Federação de Agricultura do Estado deSão Paulo – FAESP, para o período de 1/7/2006 a 30/6/2007.

Moacyr Lopes Jr./Folha ImagemAs novas atividades, como tratoristas,motoristas, operadores de máquinas,requerem maior grau de especialização.

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gados permanentes com residência urbana, de 17,6% para ospermanentes rurais, de 47,6% para os temporários urbanos ede 37,2% para os temporários rurais. Ainda de acordo com oautor, ao longo do tempo, aumentaram os benefícios recebidospelos trabalhadores, tais como crescimento dos auxílios trans-porte e alimentação para todas as categorias, além do auxíliomoradia para os residentes rurais e do auxílio saúde para osempregados permanentes com residência urbana.

Porém, Balsadi (2007) destaca que, apesar das melhoriasdos indicadores citados, ainda existem condições adversasprincipalmente para os empregados temporários ocupadosna colheita manual da cana-de-açúcar, e também têm ocorridomortes de trabalhadores nos canaviais. O autor cita diversasreportagens de jornal que associam as mortes ao sistema de pa-gamento por produtividade. Da mesma forma, Alves (2006)associa este sistema de pagamento às mortes nos canaviais.

Até o momento não existem estudos científicos que demons-trem o nexo causal entre a forma de pagamento e as mortes an-teriormente citadas. Porém, no Estado de São Paulo, o Ministé-rio Público do Trabalho da 15ª Região, responsável por 600 mu-nicípios de São Paulo, anunciou em 2006 que pretendia entrarcom uma ação civil pública para tentar eliminar na Justiça o sis-tema de remuneração por produção para o pagamento dos em-pregados da lavoura canavieira, por acreditar que o mesmo po-

de ser o causador das mortes de cortadores de cana-de-açúcar.O fim do pagamento por produção não é consensual entre os

sindicatos profissionais, visto que existe parcela de trabalhado-res que é a favor do mesmo. A UNICA (conforme publicado noEstado de São Paulo, 14/9/2006, caderno B-11) é contrária aofim do pagamento por produção, porém destaca que a entidadebusca nas usinas garantir o efetivo cumprimento das normas vi-gentes, visando ao pagamento correto dos cortadores conformeestipulado nas convenções coletivas de trabalho.

4 - RESULTADOS:EVOLUÇÃO DOS INDICADORES SOCIAIS

Inicia-se a análise com a evolução do número de trabalhado-res formais envolvidos na produção de cana-de-açúcar, açúcar eálcool, para as duas regiões produtoras e o total do Brasil, para osanos de 2000 a 2005. Nota-se pela Tabela 2 que, para o Brasil co-mo um todo, entre 2000 e 2005, considerando-se os três setores(cana-de-açúcar, açúcar e álcool) conjuntamente, houve aumen-to expressivo de 52,9% do número de empregados, que passoude 642.848 em 2000 para 982.604 em 2005, em conformidade como crescimento do setor. Em 2005, ao redor de 63% dos empre-gados formais estavam na região Centro-Sul do País.

A Tabela 3 traz o número de empregados formais por região

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produtora e por setor: cana-de-açúcar, açúcar e álcool. Percebe-se que o crescimento dos empregados formais das usinas deaçúcar (101,9%) e destilarias de álcool (88,4%) do Brasil foi maiordo que o dos trabalhadores rurais (16,2%) envolvidos com a pro-dução de cana-de-açúcar, provavelmente em decorrência doprocesso de mecanização da colheita de cana. É importante ob-servar que, neste período, houve crescimento da produção decana-de-açúcar: em 2000, a produção nacional foi de 325,33 mi-lhões de toneladas e, no de 2005, foi de 419,56 milhões (Minis-tério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2005); ou seja,um crescimento da produção da ordem de 28,9%. Nota-se tam-bém que, em 2000, ao redor de 55% do total eram empregadosrurais e, em 2005, sua participação caiu para 42,2%.

Considerando-se a distribuição por Estado, de forma agre-gada para os três setores, tem-se, conforme os dados dos RAIS,que 39,2% dos empregados eram do Estado de São Paulo, se-guidos por Pernambuco (15%), Alagoas (14,1%), Paraná (7%),Minas Gerais (5,6%), Goiás (3,6%), Mato Grosso (2,6%) e MatoGrosso Sul (2,4%). Os demais Estados tinham individualmen-te menos de 2% dos empregados.

A seguir, são analisados os dados para o Estado de São Pau-lo, o maior produtor nacional. Os dados dos RAIS captam so-mente o emprego formal e, dada a alta informalidade da agri-cultura nacional, não trazem informações sobre grande parce-

la dos empregados. Contudo, para o Estado de São Paulo, in-formações da PNAD indicam que a formalidade do setor decana-de-açúcar era de aproximadamente 94% em 2005, razãopela qual considera-se factível o uso dos RAIS para análise dosdados dos empregados da lavoura canavieira para São Paulo.ATabela 4apresenta distribuição dos empregados formais pa-ra São Paulo em 2005, por setor e por idade.

Observa-se que, em 2005, aproximadamente 57,2% dos385.533 empregados eram da produção de cana-de-açúcar, se-guidos pelos da indústria do açúcar (34,2%) e pelos da indús-tria do álcool (8,6%).

Ao se considerar a faixa etária dos 220.517 empregados agrí-colas, observa-se que a maior proporção (28,4%) tinha entre 30a 39 anos, seguidos pelos empregados de 18 a 24 anos (25,3%) e25 a 29 anos (19,3%). Nota-se proporção considerável (17,6%)de empregados na faixa de 40 a 49 anos.

Para se analisar a evolução dos indicadores sociais daprodução de cana-de-açúcar no Brasil, optou-se por anali-sar os dados da PNAD, que captam tanto o emprego formalquanto o informal.

A Tabela 5 traz a evolução do número de empregados da la-voura canavieira do Brasil, por regiões e para São Paulo. Con-siderando-se os dados para o Brasil, observa-se uma redução de16,9% no número total de empregados entre 1981 e 2005, a des-

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peito do crescimento importante da produção de cana, que pas-sou de aproximadamente 133 milhões de toneladas na safra1981/1982 para 386,6 milhões de toneladas na safra 2005/06(aumento de 190%). Este fato pode ser explicado pelo aumentoda produtividade do trabalhador e principalmente pela meca-nização da colheita da cana-de-açúcar, que aumenta a demandapor mão-de-obra qualificada e reduz, em maior proporção, a de-manda por empregados com escolaridade menor. A análise dosdados para São Paulo indica que o número de empregados agrí-colas manteve-se praticamente constante entre 1981 e 2005 (de154.751 para 153.719), mas neste período o crescimento da pro-dução foi de aproximadamente 245% (passou de 70,4 milhõespara 242,8 milhões de toneladas de cana), indicando menor nú-mero de empregados por tonelada colhida.

Quanto à formalização (empregados com carteira assinadaentendidos como formais e sem carteiras como informais), no-ta-se que a participação dos empregados formais do setor decana-de-açúcar no Brasil tem aumentado ao longo do tempo.Considerando-se os dados agregados para o Brasil, estes pas-saram de 37,2% em 1981 para 72,9% em 2005. A região Norte-Nordeste, em 1981, tinha 35,1% de empregados formais, em

2005, aumentou para 60,8%; na região Centro-Sul a proporçãofoi de 40,7% em 1981 para 85,8% em 2005. O Estado de São Pau-lo, o maior produtor de cana-de-açúcar do Brasil, apresentouos melhores indicadores: a formalização passou de 40,5% em1981 para 93,8% em 2005. Pode-se notar que, embora a forma-lidade esteja aumentando de forma geral, o número de empre-gados informais (aproximadamente 100 mil trabalhadores)ainda é muito elevado na região Norte-Nordeste.

A evolução dos salários médios para três períodos distintos,separados por região produtora, e a escolaridade média dosempregados da cana-de-açúcar para o Estado de São Paulo en-contram-se na Tabela 6.

Observa-se que a escolaridade média dos trabalhadores em2005 é de 3,5 anos de estudo, e que, apesar de ser baixa, a esco-laridade tem evoluído positivamente para o Brasil e também paratodas as regiões analisadas. Em São Paulo, a escolaridade médiaem 2005 foi de aproximadamente 5 anos. Nota-se que os saláriossão positivamente correlacionados com a escolaridade média.

Em relação aos salários médios, verifica-se que em São Pauloeles são mais altos que as demais regiões em todos os períodos.Em 2005, o salário médio pago em São Paulo, de R$ 649,01, foi

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50% maior que o salário médio do Brasil como um todo, e maisdo que o dobro do salário médio da Região Norte-Nordeste.

A Tabela 7, por sua vez, apresenta a evolução do número deempregados por faixa de anos de estudo para o Brasil como umtodo. Observa-se que em 1981 a grande maioria dos emprega-dos (95,4%) tinha até 4 anos de estudo, sendo que aproxima-damente 355 mil trabalhadores podiam ser considerados anal-fabetos funcionais, pois declararam ter até 1 ano de estudo.Constata-se importante melhora deste quadro ao longo do pe-ríodo analisado, visto que em 2005 os empregados analfabetosrepresentavam 29,8%.

Apesar da evolução positiva no nível de escolaridade dostrabalhadores do setor de cana-de-açúcar no Brasil entre 1981e 2005 – a escolaridade média passou de 2,2 anos de estudo pa-ra 3,9 – ressalta-se que ainda é muito baixo: 70,1% dos empre-gados da lavoura de cana-de-açúcar do Brasil em 2005 tinhamaté 4 anos de estudo, sendo que 29,8% (ou seja, 154.598 empre-gados) podem ser considerados analfabetos funcionais (decla-raram ter até 1 ano de estudo).

Em São Paulo, para o ano de 2005, a escolaridade era maisalta, mas ainda existia grande número de empregados compoucos anos de estudo. Do total de 153.719 empregados,28.504 empregados tinham até 1 ano de estudo, que represen-tavam 18,6% do total. Destes, 21.593 eram analfabetos. Na fai-

xa de 2 a 4 anos de estudo incompletos, existiam 29.358 empre-gados e, com 4 anos completos, eram 29.364. Num cenário demaior mecanização neste Estado, que requer empregados comescolaridade maior, observa-se que um grande número depessoas não estará qualificado para as novas posições.

5 - CONCLUSÕES

A expansão da agroindústria canavieira, impulsionada pe-lo uso do álcool combustível em substituição à gasolina no Bra-sil e em outros países, bem como pela expectativa de aumentodas exportações de açúcar em decorrência da redução das po-líticas protecionistas da União Européia, colocou este setor emevidência tanto interna como externamente.

Espera-se o surgimento de muitas oportunidades para pro-fissionais qualificados e, numa análise de equilíbrio geral, ha-verá uma dinamização da economia em muitas indústrias deinsumos e no setor de serviços, o que abre excelentes oportu-nidades para estes profissionais.

Neste ambiente de crescimento, mais do que nunca as ques-tões ambientais e sociais vêm à tona, e são diariamente discu-tidas nos meios acadêmicos, jornais, televisão e outros veícu-los de comunicação. No lado social, o debate foca-se principal-mente nas condições de trabalho dos cortadores de cana-de-

Neste ambiente de crescimento, mais do quenunca as questões ambientais e sociais vêm àtona, e são diariamente discutidas (...)

Bruno Miranda/Folha Imagem

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açúcar e no sistema de pagamento por produção. A discussão,sob ótica ambiental, versa principalmente sobre a possibilida-de de destruição da Floresta Amazônica e outros biomas, e so-bre a questão das queimadas.

Contudo, parece que o trade off entre a proibição da queimae o desaparecimento do emprego no corte de cana-de-açúcarfoi, até o momento, pouco analisado.

Não se trata de defender a volta da queima da cana-de-açúcarcomo método de despalha. A mudança está dada e a sociedadereclama pela sua extinção. Da mesma forma, ninguém há de sercontrário ao cumprimento da legislação e normas trabalhistasexistentes pelos produtores de cana-de-açúcar, sejam eles a in-dústria do açúcar e do álcool ou fornecedores de cana.

O que se procura trazer para reflexão neste artigo é a falta deescolaridade dos mais de cem mil empregados da cultura dacana-de-açúcar que perderão seus empregos. Ainda que estaquantidade possa estar superestimada, metade deste valorainda é um número muito alto.

Ao lado dos bons indicadores sociais – praticamente elimi-

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nação do trabalho infantil, aumento da formalização – a esco-laridade, apesar de ter evoluído positivamente ao longo dotempo, ainda é muito baixa. Existe um grande contingente deempregados analfabetos no corte da cana-de-açúcar. E partedestes vem de outras regiões para trabalhar em São Paulo, on-de encontram trabalho na lavoura da cana.

Por que um trabalhador sai de sua região de origem, muitasvezes deixando esposa e filhos, para enfrentar este trabalhoque, apesar de importante e ser o sustento de sua família, é ár-duo e difícil? Provavelmente porque ele não encontra trabalhona sua cidade ou Estado de origem.

E quais ações e políticas públicas estão sendo feitas para en-frentar este problema social de grande porte? Muitas empre-sas no Estado de São Paulo já implantaram programas de al-fabetização e requalificação de parte da mão-de-obra, visandoa adequação em outras atividades. Mas não é suficiente. É im-portante que se inicie a discussão sobre as políticas públicas,principalmente nas regiões de origem, necessárias para lidarcom tema tão complexo.

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Walter Alves/O Popular/Futura Press

Muitas empresasno Estado deSão Paulo jáimplantaramprogramas dealfabetização erequalificaçãode parte damão-de-obra,visandoa adequaçãoem outrasatividades.

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cr ise mundial de crédi to dá s inais evidentesde estar passando para o seu 2º estágio de conta-minação.

Trata-se de um ciclo, cujo quadrante de baixa começaao final da euforia anterior, para cair, eventualmente, no pânico,após passar pela desalavancagem e, finalmente, começar a dissipar-se na deflação de rendas e preços .

São, portanto, pelo menos cinco estágios bem identificados.1) dúvida (sobre a euforia sem fim)2) desalavancagem3) pânico4) contratação de rendas5) estabilização (deflação de preços)A novidade em relação aos casos clássicos de grandes especula-

ções, seguidas de desastre financeiro, desde o inicio da era moderna(século XVIII) reside no fato de ser, pela primeira vez, uma crise "on-line" e "real-time", isto é, monitorada e interferida, minuto a minuto,pelas autoridades monetárias.

Desde seus primeiros sintomas, em fev/07, há exatos doze meses,as autoridades envolvidas têm se desdobrado para conter o espa-lhamento do "vírus" da desconfiança. Foram vários os anti-histamí-nicos empregados: (1) a palavra; (2) a ação sobre juros (3) a injeção daliquidez (4) a ação sobre moedas (5) o socorro à solvência. A palavraé o remédio mais barato (e também o mais caro) das intervenções.Através da palavra da autoridade (o "statement" oficial) os merca-dos, se confiantes no declarante, tendem a aprumar-se. É o que vi-nha acontecendo desde o primeiro semestre/07 e, especialmenteapós o rápido colapso das bolsas em agosto. Declarações confiantesdo FED e de vários economistas do "establishment" deram gás à re-cuperação de alguns mercados, por algum tempo.

No caso do Brasil, retardatário no ciclo de alta, os aplicadores ain-da tiveram como descobrir argumentos para ampliar significativa-mente sua margem de valorização dos papéis em bolsa. Na China, ofenômeno ocorreu até outubro. Mesmo em Nova York, até fins desetembro, o mercado ainda parecia imune ao que estava por acon-tecer que, não obstante, já acontecia no âmbito fechado da minguan-te liquidez interbancária.

Portanto, na era internética, da quase simbiótica interação entreautoridades e agentes nos mercados, o ditame parece vir destes para

A Crisepassa ao2º estágio

Maurício Lima/AFP

BM&F - Bolsa Mercantil ede Futuros, em São Paulo

Arko Datta/Reuters

Bolsa de Valores deMumbai, na Índia

Bolsa de Valores deNova York (NYSE)

Hiroko Masuike/AFP

A

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Mônica Zarattini

Paulo Rabellode CastroDoutor emEconomia pelaUniversidade deChicago (EUA), évice-presidente doInstituto Atlântico,chairman da SRRating e presidenteda RC Consultores

aquelas, ou seja, o comando do que "se quer enxergar" provém domercado e "é lido" e interpretado pelas autoridades, as quais rara-mente têm força (financeira ou moral) para contraditar a opiniãop re d o m i n a n t e .

Tal simbiose, se de um lado facilita a vida em comum, de autori-dades e mercados, manifesta pela maior suavidade dos ajustes e me-nor volatilidade relativa, tampouco é uma harmonia sem custos, àsvezes elevados. É que o "jogar para o mercado", como segue fazendoo FED (e, aliás, como tem feito com "maestria" o BC do Brasil) – numaespécie de "escola Greenspan" de decolagens rápidas e aterrissagenssuaves – as autoridades tornam uma parte de sua atuação pró-ciclica,ou seja, esticam o quadrante de alta nos EUA pelo juro baixo tantoquanto, no Brasil, tem estendido o quadrante de baixa pelo juro alto.

Foi o que Bernanke fez, logo que percebeu a crise em que estavametido.

Ao invés de administrar a liquidez seletivamente, como se pro-pôs a fazer, inicialmente, através do programa MLEV – Master Li-quidity Enhancement Vehicle – que jamais decolou, o FED acabouapelando para a injeção generalizada de recursos, através dos cortesde juros, como foram os quatro realizados desde agosto, em seqüên-cia tão abrupta que não aguardou o calendário das reuniões perió-dicas do Board.

O mercado já "leu e entendeu" as palavras e atos de Bernanke. Opresidente do FED é temente à crise. Engolirá os ditames do mer-cado. Com isso, a desalavancagem, que é o segundo estágio, só pas-sa a valer quando anunciada publicamente. O estágio inicial, da dú-vida entre ser ou não ser uma crise, entre ser ou não ser uma recessão,entre ser ou não ser um ajuste, afinal, foi estendida de agosto atémarço deste ano – um recorde absoluto em matéria de procrastina-ção de efeitos e de suavização de solavancos. Porém, o custo da pas-sagem muito lenta ao segundo estágio é o adiamento da desalavan-cagem de posições nos vários mercados, inclusive o de "commodi-ties". Por isso, o reconhecimento oficial do estado de crise, com di-reito a foto de autoridades reunidas e declarações diretas da CasaBranca, só ocorreu agora, em 17 de março de 2008, data que marca oinício do estágio dois, da desalavancagem.

Neste estágio dois – indicado pela queda de vários preços de com-modities – é esperada a parte mais dolorosa e difícil para os espe-culadores longos (os comprados) cujas perdas só então tendem a segeneralizar. Este é o exato momento em que hoje se encontram osmercados, dançando na ponta do abismo. Por vezes, é possível re-duzir ou mitigar a chance de ocorrer uma fuga em massa de um oude vários mercados, em geral os mais alavancados e alongados.Quando tal não é possível a mitigação do ímpeto de fuga, sucede-sepânico, que nada mais é do que um ajuste abrupto dos preços de ati-vos, em geral da ordem de 20 a 30%, sobre o ponto mais alto da es-peculação anterior.

Em que estágio o pânico (estágio três) tende a ocorrer? Justamentequando a liquidez monetária básica ou essencial (moeda à vista) seencontra mais afluente ou oferecida. Em outras palavras, a mesmaliquidez injetada agora pelo FED, que reduz os efeitos mais dolo-rosos da crise é a mesma que poderá fornecer para a combustão dopânico. A política do BC americano contém esta " impropriedade"escondida: ao mitigar os efeitos colaterais da contaminação do ví-rus, elas aprofundam, em boa medida, seus outros efeitos danosos,deixando os mercados mais à "mercê de um "dia de cão" ("day of re-ckoning", na terminologia americana) no futuro próximo.

Martin Oeser/AFP

Bolsa de Valores deFrankfurt

China Daily/Reuters

Bolsa de Valores dePequim

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Risco calculado

A violação daf ronte i ra doEquador pelaC o l ô m b i a d e u

origem a uma crise política(que por muito pouco não setransformou numa crise político-militar) na fronteira Norte do Brasil. A so-lução diplomática a que se chegou não elimi-nou os problemas que ocasionaram essa crise,já que o governo de Quito – justamente ofen-dido, e malgrado haver aprovado, da mesmaforma que o de Bogotá, a resolução da OEA –insiste em que a Colômbia assuma culpa, in-clusive pela morte de um cidadão equatorianoque, tudo indica, estava no acampamento dasFARC bombardeado pela aviação colombia-na, ou perto dele.

Sobre a violação da fronteira pode-se dizerpouca coisa: a ação colombiana, de fato, violounormas do Direito Internacional. Na históriadas relações internacionais há um precedente: oataque contra território da Tunísia realizado pe-lo Exército francês durante a guerra da Argélia(1954-1962). Na ocasião, o Comando francêsdisse ter agido na perseguição de guerrilheirosargelinos que se haviam refugiado na Tunísia,ao amparo da soberania territorial de que go-zam os Estados. Para o Comando francês, essaação teve base no que dizia ser o Direito de Per-seguição – inovação do Direito Internacional. AColômbia não invocou princípio novo algum,mas poderia tê-lo feito – tivesse poder para tan-to – tentando resguardar sua posição perante acomunidade internacional. Ao não o fazer, pre-feriu aceitar a admoestação da OEA, com o queficou no ar uma questão: pode um Estado abri-gar guerrilheiros que pretendem subverter a

Nelson Almeida/AE

Oliveiros S.FerreiraDoutor em CiênciasSociais pelaFaculdade deFilosofia, Letras eCiênciasHumanas/USP,escritor e jornalista

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ordem jurídica e a ordem pública de outro Es-tado, dando-lhes abrigo a qualquer pretexto?Esta questão ficou sem clara resposta.

O incidente fronteiriço permitiu que se co-nhecesse melhor a posição da diplomacia bra-sileira. Aliás, não apenas dela; muitos setorespolíticos adotaram posição semelhante – o queevidencia que está ganhando forma entreaqueles que nos governam (no Executivo e nachamada "Base aliada" no Congresso) uma po-lítica externa que tudo indica obedece à dire-triz do presidente da República.

A posição do Governo foi deixada clara pordeclarações do ministro das Relações Exterio-res. Para Celso Amorim, a longa duração daação guerrilheira e o elevado número de refénsque as FARC mantêm prisioneiros fazem quehaja um "problema colombiano" que ultrapas-sa as fronteiras e deve ser resolvido por açãodiplomática regional. O deputado Aldo Rebe-lo concorre nessa posição, ao mesmo tempobalizando a ação do Itamarati: "A hábil e eficaz

diplomacia brasileira pode tomar iniciativaspara pôr fim ao conflito interno da Colômbia,onde não haverá solução militar. Cabe ao Bra-sil conduzir a reconciliação nacional, numacordo semelhante ao que foi feito em Angola[entre o MPLA e a Unita], outro país irmão queconseguiu sair, pela mediação, de uma guerracivil de quase trinta anos".

O deputado Rebelo propõe, assim, que oBrasil seja mediador entre as FARC e o governoUribe. Outra não é a sugestão do ex-presidentecolombiano Samper, que vê o Brasil com con-dições bastantes para mediar entre um gover-no constitucional e uma força guerrilheira (cu-ja ação é sabidamente criminosa à luz do Có-digo Penal da maioria dos países civilizados).O importante a assinalar na posição de Samperé que a mediação brasileira deve contar com, senão buscar o apoio de Chávez, pois o presiden-te da Venezuela é o único, segundo Samper,que mantém contatos com as FARC.

Bem vistas as coisas, o "problema colombia-no" ultrapassou há algum tempo as fronteiras denosso vizinho – apenas que não no sentido regio-nal estrito, mas internacional, na medida em queo "problema" já dera origem ao "Plano Colôm-bia", pelo qual os Estados Unidos prestam auxí-lio financeiro e assistência militar à Colômbia pa-ra combater o narcotráfico, identificado com aguerrilha. Visto desse prisma, o problema co-lombiano já se tornou regional – e a diferença en-tre a posição brasileira e a dos Estados Unidos éque o governo de Washington não busca inter-mediar negociações entre o governo colombianoe as FARC – antes quer aniquilar a guerrilha.

Compreende-se que Samper pretenda que oBrasil seja mediador. Afinal, como colombiano,

ou escolha de rota?

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deseja ardentemente que o confronto acabe. Jáse compreende menos a preocupação do gover-no brasileiro. Afinal, essa força guerrilheira, asFARC, atua na Colômbia há muitos anos semque governo algum se tivesse preocupado coma sorte que corriam as instituições democráticasnaquele país. O "Plano Colômbia" não foi feitopara defender as instituições democráticas co-lombianas; foi elaborado para atender interes-ses domésticos norte-americanos, quais fossemeliminar fornecedores de droga. O interessebrasileiro merece, assim, uma consideraçãomais profunda que aquela inspirada pelo dese-jo de "apaziguar e buscar soluções, não para sevaler da radicalização dos antagonistas e ficarcom as sobras" como sentenciou o deputado Al-do Rebelo no artigo que publicou na "Folha deS.Paulo" de 4 de abril. É na difícil busca de com-preender os motivos que levaram o governobrasileiro a, só agora, manifestar-se como se es-tivesse despertando para a gravidade da situa-ção, que devemos nos dedicar.

Quais são os dados do "problema colombia-no"? Em primeiro lugar, a Colômbia é um paísque se situa na fronteira Norte do Brasil, emposição geográfica que merece atenção, poisos dois países comunicam-se, diríamos, pelaAmazônia, que alguns consideram "res nul-lius" ou, mais civilizadamente, de interesse daHumanidade. Depois, tem-se, em Bogotá, umgoverno constitucional, consagrado pelo votopopular em eleições consideradas livres reali-zadas apesar das pressões das FARC. Em ter-ceiro lugar, assiste-se há décadas a uma açãoguerrilheira que não esconde sua filiação ideo-lógica, donde os fins últimos que persegue ao

combater o governo constitucional. Essa açãoguerrilheira provocou o surgimento de forçaspara-militares antagônicas, cuja ação é igual-mente desestabilizadora, que usam de méto-dos ilegais (inclusive o recurso à droga) parasustentar suas operações. Diferentemente dasFARC, não almejam tomar o poder; contentar-se-iam com o prolongado coma institucionalque garante que sua ação, para os bem situa-dos, seja necessária em decorrência da incapa-cidade de o Estado colombiano garantir demodo eficaz sua segurança. Em seguida, nãose pode esquecer o fato de que houve tempo –não muito longínquo – em que para negociarcom a guerrilha, o governo colombiano desmi-litarizou vasta área do território, disso nada re-sultando. Igual exigência é feita, hoje, pelasFARC para iniciar conversações não sobre acessação das hostilidades, mas sim sobre a li-bertação dos reféns. Em quinto lugar, há os re-féns. É nesse ponto que convém nos determosum instante, antes de cuidarmos do último,mas não derradeiro componente da crise, a in-tervenção de Chávez.

Os reféns. Qualquer análise que se faça do"problema colombiano" não deve esquecer quehá anos as FARC mantêm reféns sem que o as-sunto tivesse transcendido as fronteiras, poisdiz respeito aos familiares, primeiro, e depoisao governo de Bogotá. As cerca de 500 pessoasque se encontram em poder dos guerrilheirosnunca, até alguns meses atrás, mereceram aten-ção de qualquer governo sul-americano, dosEstados Unidos ou europeu e muito menos dosmeios de comunicação não-colombianos.Quando se deu a mudança política, logo em se-guida transformada em notícia nos meios de co-municação? Creio poder dizer que a partir domomento em que Chávez anunciou que algunsreféns seriam libertados e que convocara obser-vadores de diversos governos amigos para as-sistir ao lance – que tinha características deshow publicitário. Mesmo quando se conside-ra, isoladamente, o caso da senhora Betancourt,não se pode ter outra visão das coisas.

O que há de especial no "caso Betancourt"?Há meses, antes de Chávez anunciar a liberta-ção próxima de alguns reféns, a senadora (ci-dadã colombiana e francesa, não devemos es-quecer) não era notícia. Por um momento foilembrada, quando o governo francês (Chiracse não me falha a memória) tentou resgatá-laem operação desastrada em que o espaço aéreobrasileiro foi violado numa demonstração ine-quívoca da atenção que Paris dá a algumas re-gras comezinhas de cortesia diplomática. De-pois não se falou mais no assunto. Foi a partir

Álvaro Uribe: opresidente daColômbia éacusado de serintransigente aonegociar com osguerrilheiros dasFARC a libertaçãodos reféns.

Juan Carlos Ulate/Reuters

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da intervenção de Chávez e do gesto das FARClibertando em seguida, espontaneamente,quatro reféns sem importância política inter-nacional, que a senhora Betancourt passou aser notícia obrigatória, mobilizando inclusiveo governo francês – em ações que as própriasFARC proclamaram ser "ingênuas".

Os reféns, mas especialmente a senhora Be-tancourt, transformaram-se no grande trunfopolítico das FARC. Entenda-se: publicitário.Enquanto a senadora estiver viva, falar-se-á deseu precário estado de saúde – e as televisõesmostrarão retrato seu, sentada, a fisionomiacombalida e magra. Se e quando morrer, haveráquem responsabilizará as FARC por sua morte– mas outros, talvez a maioria dos que costu-mam ser politicamente corretos na sua análisedos fatos, irão procurar outro responsável pelodesfecho trágico desse seqüestro, que poderiater sido resolvido, para tranqüilidade de todose das relações franco-colombianas, não fora aalegada intransigência de Uribe em negociar.

Aos poucos, lentamente, como convém pa-ra o convencimento da opinião pública, estásendo montado o "processo Uribe". Quais se-rão as peças de acusação? Afirmar-se-á que,em algum momento de sua vida, ele teve con-tato com narcotraficantes; que, como presi-dente, aceitou que narcotraficantes (e guerri-lheiros apanhados fazendo esse tipo de negó-cio) fossem extraditados para ser julgados nos

Estados Unidos; que concordou e permitiuque os Estados Unidos transferissem gruposmilitares para o território colombiano, passan-do a ser um mero instrumento da administra-ção Bush; pior ainda, foi com o auxilio da CIA,infiltrada nos serviços de inteligência do Exér-cito equatoriano, que descobriu o local ondeestava o líder das FARC morto no ataque aoacampamento guerrilheiro no Equador; que aincorporação de para-militares à vida civil émero blefe; que recusa-se a desmilitarizargrande área do território colombiano para quenela se iniciem as conversações sobre a solturados reféns, inclusive, evidentemente, a senho-ra Betancourt. Diante dessas "evidências", eleserá condenado, com tanto maior rigor se a se-nhora Betancourt vier a falecer.

A intervenção de Chávez – único a ter con-tato com as FARC... – além do propósito publi-citário, teve alcance político. É para ele queconvém atentar, agora.

Poderíamos dizer que a iniciativa do presi-dente venezuelano, fazendo de intermediárioentre ele próprio e as FARC para conseguir a li-bertação de reféns decorreu da análise de al-guns indícios de que sua pregação bolivariananão está tendo o êxito esperado. Preferimos dei-xar de lado essa hipótese, pois aceitá-la seria fa-zer um estrito processo de intenções. Fixemo-nos no que é de conhecimento público: paraChávez, as FARC nada mais são do que dissi-

A Intervenção deHugo Chávez

(acima, à esq.),além do propósitopublicitário, tevealcance político.

Acima, o presidenteLula e o assessorMarco Aurélio

Garcia: Brasil seriaum bom mediador?

Pedro Rey/AFP

Sergio Lima/Folha Imagem

Sergio Dutti/AE

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dentes políticos que recorreram às armas por-que não encontraram espaço político para afir-mar "democraticamente" suas posições. Nãodisse, mas fica claro que o reconhecimento docaráter "dissidente" da facção guerrilheira pela"Comunidade Bolivariana" – e depois pelos go-vernos que não desejam contrariar as posiçõesdo governo de Caracas – implica reconhecer asFARC como beligerantes com todas as conse-qüências disso à luz do Direito Internacional.

Não nos custa voltar um instante à guerrada Argélia. A partir de fins de 1954, a Frente deLibertação Nacional (FLN) desencadeouações terroristas (assassinando franceses e ar-gelinos que concordavam com a presença daFrança no território) tendo em vista conseguira independência do país. Ainda que não tives-se havido declarações formais nesse sentido, aFLN foi reconhecida como beligerante pelaURSS e inclusive pelo Egito, com o que pôdeformar um Governo argelino no exílio, fazen-do de Ferhat Abbas seu presidente. Governono exílio porque a FLN não tinha controle efe-tivo de parte alguma do território argelino.

A situação na Colômbia não se assemelha àda Argélia em 1954 ou até 1962, quando deGaulle concluiu a paz e consentiu em que o paísse tornasse independente. Em primeiro lugar,na Colômbia não se trata de uma luta pela in-dependência, mas para a conquista do poder etransformação de fio a pavio das relações eco-nômicas, sociais e políticas internas, para nãodizer a fixação de uma nova postura internacio-nal; depois porque as FARC controlam parte doterritório ou sobre ela exercem dominação ain-da que não permanente. O reconhecimento doGoverno Provisório da Argélia por diferentesgovernos não alterou a relação da França com aFLN. Diferente será se um governo sul-ameri-cano reconhecer a beligerância da guerrilha:daí à constituição de um Governo em territórioocupado será um passo, que se completará como reconhecimento desse "governo insurgente"por outros da Comunidade Bolivariana – naqual se incluem, como é sabido, Venezuela, Cu-ba, Nicarágua, Bolívia e Equador.

Esses são os dados do problema. Com oque podemos voltar à posição brasileira. EmHaia, o presidente Luis Inácio Lula da Silvaafastou qualquer pronunciamento oficial dogoverno sobre a situação na Colômbia, masdeixou claro que poderá tomar uma iniciati-va qualquer se para tanto for solicitado porUribe. Em outras palavras, deixou claro queo Brasil está pronto a ser mediador, desdeque para tanto seja convidado (aliás, um me-diador não se oferece; é sempre convidado

pelas partes...). Samper não pediu mais queisso, e não há dúvidas de que são mais de umos governos que desejam que o Brasil ocupeo lugar de que Chávez tomou conta. A me-diação transformaria, de fato e de direito, o"problema colombiano" num problema re-gional, como quer o chanceler Amorim.Quais as conseqüências desse passo, que se-ria saudado por todos os bem pensantes co-mo a afirmação da liderança brasileira e co-mo um gesto para conseguir que, humanita-riamente, sejam libertados os reféns?

Não custa dizer, antes de tudo, que seria umamediação difícil, na medida em que as FARC po-derão exigir a libertação de todos os guerrilhei-ros presos e, como já o fez, também a de dois com-panheiros que cumprem penas de prisão nos Es-tados Unidos. Esse é pormenor, dirão os que ou-vem estrelas. Vamos a outras considerações.

Um mediador só podeexercer sua função se elepróprio reconhecer asduas partes como "interlo-cutores válidos", isto é,com (perdoem-se a pala-vra) legitimidade. A me-nos que aja como a Políciaquando negocia para li-bertar pessoas que foramfeitas reféns por salteado-res. Ao conversar com oscriminosos, a Polícia ga-rante sua vida em troca dalibertação dos reféns, mascom a condição de que ossalteadores concordemem ir passivamente para aprisão. Ao aceitar mediarentre o governo colombia-no e as FARC, o Brasil esta-rá reconhecendo a guerri-lha como interlocutor váli-do. Em outras palavras,deixará assente para a co-munidade internacionalque há um impasse estra-tégico entre o governo eaqueles que o querem der-rubar e, ipso fato, procla-mando que as autoridadesde Bogotá não têm maiscondições políticas decombater militarmente aguerrilha.

Donde se seguirá que,havendo a mediação, apresença norte-americana

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será desnecessária, pois haverá o reconheci-mento por parte do Brasil (e de outros gover-nos, especialmente os da Comunidade Boliva-riana) de que a droga é atividade secundáriaque poderá ser combatida pela polícia. Afirma-do isso por todos os que desconfiam das inten-ções dos Estados Unidos, o Plano Colômbia nãoterá mais razão de ser. O presidente Lula da Sil-va, nessa eventualidade, dividirá os louros como presidente coronel Hugo Chávez.

Em artigos que divulguei em w ww.ol iv ei-ro s . c o m . b r , sustento que a tentativa de regiona-lizar o "problema colombiano" – e agora, os es-forços para que haja a mediação brasileira –tem como objetivo não apenas fazer que asFARC sejam reconhecidas como "insurgentes"(seria melhor dizer desde já beligerantes) eafastar os Estados Unidos da Colômbia, pri-meiro, depois da América do Sul ou pelo me-

nos da região Norte-Noroeste. O importante aassinalar é que, como observado atrás, a me-diação brasileira ou de qualquer outro gover-no significará a morte política do governo Uri-be e o reconhecimento de que o recurso às ar-mas para buscar impor uma política é legíti-mo, mesmo numa democracia, bastando, paraque a ação seja legitimada, que haja um oumais governos que a tenham não por açãoguerrilheira, contrária às normas democráti-cas, fora da lei, mas sim como" "insurgente",vale dizer, dissidente...

É possível que a intenção da diplomaciabrasileira não seja reconhecer a legitimidadede um movimento guerrilheiro como asFARC. É possível – o resultado, porém, de in-sistir em que o problema é regional e em que oBrasil poderá ter alguma coisa a dizer se for so-licitado, é o que acabamos de apontar.

AFP

Guerrilheiro das FARC(esq.) e a ex-candidata àpresidência da Colômbia,Ingrid Betancourt(acima), mantida comorefém há seis anos:ao tomar o lugar deChávez, a mediaçãobrasileira transformaria,de fato e de direito, o'problema colombiano'num problema regional,como quer o chancelerCelso Amorim.

João Wainer/Folha Imagem

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Alfe

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Foi Karl Marx quem cunhou o depreciativo termo "ca-pitalismo" para identificar um sistema econômico quehavia recebido de Adam Smith uma expressão maisdescritiva e bonita: "sistema de liberdade natural". A

origem negativa do termo é um dos motivos pelos quais a dis-cussão sobre o capitalismo necessita de um esclarecimento. Se-ja para atacá-lo ou defendê-lo, é importante entendermos pri-meiro o que o capitalismo não significa.

O capitalismo não é exclusivamente "capitalista". A acumu-lação de capital é um fato existente em qualquer sociedade, in-dependentemente de sua estrutura política e econômica. MaxWeber já dizia em A ética protestante e o espírito do capitalismo que"a ganância pelo ouro é tão antiga quanto a história do ho-mem". E que onde o capitalismo era mais atrasado encontrava-se "o reino universal da absoluta falta de escrúpulos na buscados próprios interesses por meio do enriquecimento". No en-tanto, as pessoas ainda encaram o capitalismo como um orde-namento moral, um modo de vida em que a acumulação de ri-queza é o bem superior. Mas a defesa do capitalismo não sig-nifica a defesa de um homo economicus, cuja única preocupa-ção na vida é ganhar dinheiro. Há muitas coisas maisimportantes do que a acumulação de capital, como a família, areligião, a arte e a cultura. E isso realça a importância da eco-nomia de mercado. É verdade que no livre mercado há maisoportunidade para aquele que pretende enriquecer, mas nele ofilósofo também tem mais oportunidade de aprender e o ar-

tista tem mais oportunidade dese expressar. E é por meio do

livre mercado que o filantro-po, a pessoa que deseja aju-

dar o próximo, dispõe demais recursos para fazerassistência social, pois,através do sistema de

preços livres, pode utili-zar seus recursos de forma

mais eficiente.O capitalismo não é a buro-

cracia internacional. As pes-soas de esquerda costumam

identificar pelo termo "neoliberal", tanto as reformas moder-nizadoras que diminuem a participação do Estado na econo-mia, quanto as organizações inter-governamentais como oBanco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Como neo-liberalismo e capitalismo são termos intercambiáveis no dis-curso vulgar, o FMI e o Banco Mundial aparecem como braçosoperadores do capitalismo internacional. Essa confusão tam-bém costuma ser feita por pessoas de direita que, definindo-sepor sua oposição sem reservas à esquerda, acabam defenden-do instituições burocráticas como se fossem partes integrantesdo sistema capitalista. Nesse caso, a esquerda tem razão em de-nunciar a arrogância de agências internacionais, que nadamais são do que uma forma de planejamento central de largaescala. Enquanto o liberal entende que a prosperidade depen-de da utilização do conhecimento e dos incentivos dispersosna sociedade, os burocratas internacionais acreditam que po-dem comandar o desenvolvimento econômico na Zâmbia ouem Guiné-Bissau de seus escritórios em Washington e NovaYork. O resultado não tem sido animador. O jornalista AndrewMwenda, de Uganda, continua sem resposta para sua pergun-ta sobre exemplos históricos de países que tenham realmenteprosperado graças à ajuda externa. De 1975 a 2000, o continenteafricano recebeu em auxílio externo uma média de 24 dólaresper capita por ano. Entretanto, o PIB africano per capita dimi-nuiu a uma taxa média anual de 0,59%. Durante o mesmo pe-ríodo, o PIB per capita do sul asiático cresceu a uma média de2,94%, apesar de ter recebido em auxílio externo uma média deapenas 5 dólares per capita a cada ano. Políticas de abertura demercado têm um efeito mais positivo do que o planejamentointernacional financiado por impostos. Na verdade, em vez decriar economias de mercado ativas e autônomas, as políticasdo Banco Mundial diminuem a dependência dos governos porsua própria população, já que a receita não vem dos tributosextraídos do desenvolvimento econômico doméstico, mas dasnegociações com outros burocratas. O poder da população étransferido para essas organizações, criando uma cultura dedependência em que a miséria local apenas aumenta o poderde barganha dos governos que recebem auxílio externo. O re-sultado é a perpetuação da miséria.

O capitalismo não é a política norte-americana. Apesar de os

O que ocapitalismonão é

Diogo CostaEditor do site

OrdemLivre.org epesquisador do

Cato Institute.

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Estados Unidos historicamente terem tido um de seus pilaresno livre mercado, grandes contribuições para a compreensãodo capitalismo foram feitas em outros paises. Sem contar que,ultimamente, o governo americano tem feito um ótimo traba-lho de difamação do nome do livre mercado. O crescimentonos gastos da atual administração superam a de qualquer ou-tro presidente desde o democrata Lyndon Johnson, criador doprograma assistencialista da Great Society. George W. Bush foio primeiro presidente americano a assinar um orçamento demais de 2 trilhões de dólares. E também foi o primeiro presi-dente americano a assinar um orçamento de mais de 3 trilhõesde dólares. Um aumento que inclui gastos significativos naprevidência social e saúde pública, além dos gastos bélicos. Asrecentes aventuras no Oriente Médio também não podem serconsideradas políticas pró-capitalistas. A própria guerra e apermanência no Iraque são um experimento socialista de es-cala internacional, que já custou mais de 1 trilhão de dólares ecerca de 30 mil vidas. Liberais defensores do capitalismo nãoacreditam que nações são violentamente construídas por meioda política, mas que se desenvolvem espontânea e pacifica-mente. É o socialismo que defende a prosperidade planejada.E o que o governo americano tem feito no Iraque é um plane-jamento de longo alcance.

O capitalismo não é a defesa irrestrita das grandes corpora-ções. Os defensores do livre mercado entendem que os negóciospodem tanto servir quanto prejudicar a população em geral. Emum sistema intervencionista, toda empresa que quer aumentaro seu lucro tem duas opções: investir em produtividade, paracompetir pelos consumidores, ou investir em lobby político, pa-ra competir pelos favores políticos. A competição para servir àsociedade é capitalismo, a competição para servir ao governo émercantilismo. São os mercantilistas que defendem legislaçõesprotecionistas de corporações contra a competição estrangeira edoméstica. Os liberais defendem um mercado aberto, em que amanutenção de um negócio depende do oferecimento de ser-

viços e produtos que satisfaçamao consumidor.

O capitalismo não é a per-petuação das elites. São os

oponentes do capitalis-mo que, ao defendermaior concentração depoder nas mãos de po-

líticos e burocratas,constroem um sistema

corrupto e estático, no qualhá pouco espaço para a mo-

bilidade social e pouca opor-tunidade para o desenvolvi-

mento da criatividade humana. Há doses de capitalismo em di-ferentes sociedades do mundo, mas não há uma sociedade ondea economia seja puramente livre, e nem o Brasil está entre as eco-nomias mais livres do mundo. Na verdade, de acordo com o ran-king de liberdade econômica publicado anualmente pelo FraserInstitute, do Canadá, o Brasil encontra-se no 101º lugar entre 168países examinados, empatado com Paquistão, Etiópia, Bangla-desh e Haiti. No Brasil, há excesso de burocracia para a entradae a permanência no mercado, uma legislação trabalhista rígida,que empurra os trabalhadores para a informalidade e uma le-gislação tributária que já foi considerada pelo Fórum Econômi-co Mundial como a mais complexa de todo o mundo. Os opo-nentes do livre mercado insistem no controle governamental daeconomia para resolver os problemas que foram criados pelopróprio governo. Defender o livre mercado é defender a estru-tura de um sistema econômico dinâmico em que se estimula aprodução de riquezas e se permite a mobilidade social.

O capitalismo não é a defesa do tratamento desigual das pes-soas. Há diversas formas de tornar as pessoas mais iguais. Osigualitários normalmente não pretendem torná-las mais iguaisem conhecimento ou em beleza, mas em recursos, pelo menosem alguns recursos que consideram fundamentais. É bem ver-dade que o livre mercado não se baseia na igualdade de recur-sos. Mas isso não significa um tratamento desigual das pessoas.A igualdade liberal, da qual floresce o capitalismo, é a igualdadede direitos, a igualdade perante a lei. Isso significa que as ques-tões de justiça e o uso da sua liberdade no mercado não depen-dem de quem você é, mas do que você faz. O capitalismo é umsistema econômico de cooperação mútua, apoiado em uma es-trutura de direitos na qual prevalece a igualdade jurídica entreas pessoas. As pessoas no livre mercado não são iguais em "dis-tribuição de renda", mas são iguais em liberdade.

Por fim, capitalismo não é socialismo. O capitalismo não éuma imposição do governo, nem o mercado é uma ideologia emque a teoria necessariamente precede a prática. O capitalismo ésimplesmente o que ocorre quando as pessoas têm liberdade pa-ra fazer trocas, apoiadas em direitos de propriedade bem defi-nidos. É o socialismo que necessita da mobilização social paraalcançar um objetivo comum entre todas as pessoas. O socialis-mo precisa da pregação e da concentração de poder na autori-dade manipuladora. O socialismo é a politização da vida eco-nômica, é um discurso interminável do Fidel Castro, é a trans-formação de tudo o que é belo e espontâneo no dirigismo rígidoda política. O livre mercado é apenas o conjunto de ações deagentes humanos livres sobre a alocação de recursos escassos.Se os propósitos desses agentes são morais, a ordem gerada seráigualmente moral. E é quando nós conseguimos sinceramentecompreender e avaliar o capitalismo que passamos a ter o dis-cernimento para defendê-lo ou atacá-lo.

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