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A carga de novidades que chega aos nossos portos JULHO/AGOSTO 2013 – ANO LXVIII Nº 474 – R$ 4,50 DIGESTO ECONÔMICO - JULHO/AGOSTO 2013 - ANO LXVIII - Nº 474

Digesto Econômico - Nº 474

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A carga de novidades que chega aos nossos portos.

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A carga denovidades que chega

aos nossos portos

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3JULHO/AGOSTO 2013 DIGESTO ECONÔMICO

Infraestrutura: um gargalo queimpede o desenvolvimento

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Uma carga que chega de navio ao Porto de Santos fica mais de 16 diasesperando a liberação, enquanto que em outros países mais eficientes essetempo é de apenas 3 dias. Hoje, os terminais de Santos estão abarrotados

de contêineres, que esbarram nos limites de suas capacidades físicas, resultandoem ineficiências na forma de custos adicionais, maior tempo de trânsito demercadorias, encarecendo as mercadorias e prejudicando empresários econsumidores. Este é um dos motivos de o custo da logística no Brasil estar entre osmais elevados do mundo, fazendo com que o País perca competitividade.

No início de dezembro do ano passado, o governo publicou a Medida Provisória595, conhecida como MP dos Portos, que fixava novas regras para a exploração,concessão, autorização e arrendamento para a iniciativa privada de terminais demovimentação de carga em portos públicos. A MP foi votada e alterada em maio esancionada com vetos pela presidente Dilma Rousseff em junho. Esses vetos aindapodem ser derrubados pelo Congresso. Por essa razão, os empresários aindaaguardam uma melhor definição do cenário para anunciarem investimentos nesta área.

Ao longo de sua história, a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) tem se empenhado na questão damodernização dos portos brasileiros. Criou o COMUS – Comitê de Usuários dos Portos do Estado de São Paulo,que em outubro estará completando 20 anos de atividades. Foi das reuniões e eventos promovidos por essecomitê que surgiu o Projeto Porto 24 Horas, que se tornou uma realidade. Em abril deste ano, a SecretariaEspecial de Portos (SEP) anunciou o Programa Porto 24 Horas, com vistas a facilitar operações portuáriasininterruptas, 24 horas por dia nos sete dias da semana, incluindo-se feriados. Por enquanto, fazem parte doPrograma os portos de Santos, Rio de Janeiro, Vitória, Suape, Paranaguá, Rio Grande, Itajaí e Fortaleza.

Em meados de agosto, o ex-ministro e governador José Serra proferiu uma palestra na sede da ACSP. O temafoi "Desenvolvimento brasileiro e seus principais problemas". Como não poderia deixar de ser, o ex-governadorcriticou os baixos investimentos do governo em infraestrutura, inclusive nos portos. Segundo ele, o Brasil,dentro de uma classificação de 140 países, está entre os 10 últimos em matéria de investimento público emproporção ao PIB. Entre os países em desenvolvimento, a Tailândia investe quatro a cinco vezes mais emproporção ao PIB do que o Brasil.

Outra questão de infraestrutura que estamos debatendo nesta edição é o aproveitamento do lixo urbano naprodução de energia, que mereceu um evento realizado também na ACSP, com a presença de diversosespecialistas. Segundo informações dos palestrantes, a Noruega, um dos maiores exportadores de petróleo egás natural do mundo, com abundância também de reservas de carvão mineral, importa lixo de diversos paíseseuropeus e o transforma em energia. Já no Brasil, os mais de 5.600 municípios produzem mais de 55 milhões detoneladas de lixo, que não são aproveitados. Mais da metade desse volume, perto de 30 milhões de toneladas,tem destinação inadequada em lixões e aterros, sem nenhum controle ou aproveitamento eficaz.

Boa leitura

Rogério AmatoPresidente da Associação Comercial de

São Paulo e da Federação das AssociaçõesComerciais do Estado de São Paulo.

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4 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

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ÍNDICE

6Bastidores da visita

do papa ao BrasilDa redação

10Remédio contra a faltade política econômicaDa redação

16Linhas paralelas:

manifestações e eleiçõesDenis Rosenfield

18Em busca de ventos melhoresCarlos Ossamu

CAPAFoto: Joel W. Rogers/Corbis

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5JULHO/AGOSTO 2013 DIGESTO ECONÔMICO

22A urgência do Porto 24 HorasJosé Cândido Senna

46Espionagem,denúncia e traiçãoCarlos Ossamu

56A energia está no lixo

Da redação

52Audacter calumniare,semper aliquid haeretOlavo de Carvalho

64A Constituição brasileira

aos 25 anosPaulo Roberto de Almeida

44As aparências

enganamRoberto Luis Troster

34O porto de Santos

e suas crises

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6 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

Bastidores da visita

Desde meados de março, quando o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi esco-lhido papa, adotando o nome Francisco, uma homenagem a São Francisco de Assis, omundo todo tem se encantado com sua simplicidade, carisma e bom humor. Faltavauma prova de fogo, a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que ocorreu de 22 a 28 de

julho no Rio de Janeiro. Os olhos do mundo estavam voltados para o evento, a primeira viageminternacional do novo chefe da Igreja Católica.

O primeiro episódio não foi dos mais felizes, principalmente para as autoridades bra-sileiras: depois do desembarque no aeroporto do Galeão, o carro onde estava o papa Fran-cisco ficou preso em um congestionamento e uma multidão avançou sobre o veículo, paradesespero dos seguranças. Mesmo assim, o pontífice não fechou os vidros do carro, nãopareceu ter medo, pelo contrário, saudou e tocou as pessoas. Um dos momentos mais bo-nitos da visita do papa foi na volta de Aparecida para o Rio, na quarta-feira (24/07). Haviachovido bastante e ao descer do helicóptero para entrar no avião, o papa Francisco viu vá-rias pessoas na grade do aeroporto e foi até elas para saudá-las, não se importando com alama e a grama molhada.

O padre Alexandre Awi Mello secretariou o papa Francisco na JMJ e acompanhou de perto oseu dia a dia. Na edição de março/abril (Digesto Econômico nº 472) entrevistamos o padre Ale-xandre, que contou um pouco sobre a personalidade do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio,recém eleito papa, o primeiro latino-americano a alcançar o posto mais alto do catolicismo. Os

Papa Franciscodesfila depapamóvel em suavisita ao Santuáriode Aparecida (SP).

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O padre Alexandre Awi Mellosecretariou o papa na Jornada

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dois se conheceram em 2007 durante a Conferência EpiscopalLatino-Americano em Aparecida (SP), conviveram intensa-mente durante 20 dias e se tornaram amigos, trocando sempre e-mails e correspondências. Acompanhe nesta entrevista a visitado papa Francisco ao Brasil pelo olhos de quem o seguiu de per-to durante todo o evento.

Digesto Econômico - O papa Francisco, nesta sua visita ao Brasil,leu alguma revista brasileira?

Alexandre Awi Mello -ODigesto Econômico, porque euentreguei pessoalmente aquela edição com a minha entrevista(nº 472 de março/abril). Eu já havia mandado a revista para oVaticano para que ele lesse a entrevista, só que parou na Secre-taria de Estado – tem muita coisa que não chega a ele. Quandoeu o encontrei, na terça-feira (23/07), tinha um exemplar e en-treguei a ele contando sobre a entrevista. No dia seguinte, elefalou que havia lido e disse: "Foi boa a entrevista, mas acho quevocê exagerou um pouco. Você não deve idealizar tanto a mi-nha imagem", como me dando uma bronca.

Como é o processo de redação dos discursos e das homilias, o papaFrancisco tem uma assessoria?

Em grande parte é ele mesmo quem redige, mas ele se deixaassessorar. Para a Jornada Mundial da Juventude, ele já chegoucom os discursos prontos, feitos em Roma. Ele certamente teveajuda de algumas pessoas que deram ideias, que o ajudaram. Temum padre, o Bruno Lins, um carioca que é da Secretaria de Estadono Vaticano, que também o ajudou bastante, ensinou o papa apronunciar as palavras em português – os textos dos discursostinham anotações para que ele não errasse na pronúncia, na en-tonação das palavras. Ele se preocupa em se comunicar bem etambém de ser espontâneo na comunicação. Para a classe dirigen-te e os bispos do Celam (Conferência Episcopal Latino-America-no) ele falou em espanhol, pois ele já disse que prefere falar emespanhol porque se sente mais à vontade, fica mais espontâneo.

Na chegada do papa Francisco ao Brasil houve aquele incidente,quando a comitiva errou o caminho, parou em um congestionamentoe foi cercado por populares. Ele fez algum comentário a respeito?

do papa ao BrasilDa redação

Fiéis enfrentaram achuva e o frio para

acompanhar a visitado papa Francisco

a Aparecida.

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Fizeram essa pergunta para ele, que disse que em nenhummomento teve medo das pessoas ou da situação. De fato, vemosque ele também não tem medo de responder perguntas, de darsuas opiniões. Parece que ele sente uma grande paz interior, estábem tranquilo, sem ser prepotente, sem achar que sempre temrazão, ao contrário, quando ele não sabe uma coisa ele diz quenão sabe. Ali, nesse episódio, ele fazia questão de ficar com a ja-nela aberta, ele queria mesmo este contato com o povo, isso erabem consciente. Claro que ele não estava prevendo que iria cairem um congestionamento, mas em relação ao papamóvel, ele jáhavia dito que não queria vidro, pois ele veio justamente para tercontato com as pessoas e seria um absurdo ficar em uma redomade vidro. O mesmo princípio do papamóvel ele usou no carro ea gente mantinha as duas janelas abertas.

Como eram os seguranças que acompanhavam a comitiva?Eles eram sempre muito cordiais, traziam as crianças para o

papa beijar, eles sabiam que não se tratava simplesmente de fa-zer uma segurança, mas permitir que o papa estivesse com aspessoas de forma segura. Eles sabiam que o papa, algumas ve-zes, poderia sair do carro, eles recolhiam as coisas que as pes-soas jogavam para ele. Claro que não deixavam que as pessoasavançassem, mas no momento em que o papa demonstravaque queria que a pessoa se aproximasse, eles deixavam.

Mas na chegada, quando o carro do papa ficou preso nocongestionamento, os seguranças ficaram apreensivos, cercaram ocarro e empurraram as pessoas.

Ali houve um problema de segurança. Quem puxava o com-boio era a Polícia Federal, com policiais do Brasil inteiro e pelo me-nos aqueles que estavam no comando não eram do Rio. Eles real-mente se perderam, era para entrar na pista central e eles entra-ram na lateral e pegaram o congestionamento. Foi somente nestemomento que houve tensão, depois não houve problemas.

Um momento marcante foi a visita do papa a Aparecida e o senhorestava acompanhando o momento em que ele estava junto àimagem. Ele chegou a fazer algum comentário nesta hora?

O papa Francisco é um devoto, um romeiro. Ele queria ir aAparecida simplesmente como romeiro, assim como ele vai àBasílica Santa Maria Maggiore (em Roma) sem avisar, reza e vaiembora. Percebe-se uma devoção muito profunda, a gente viu aimagem de perto, pela capela de cima. Ele fez a sua oração – tam-bém não é uma pessoa de ficar horas rezando, se tem gente emvolta ele reza e sai, sempre de maneira piedosa e discreta. Aindaem relação à visita a Aparecida, ele sabia que iria ter uma mul-tidão, mas ver aquelas pessoas debaixo de chuva e frio, isso lhechamou muito a atenção. Também aquela quarta-feira (24/07)foi o primeiro grande contato que ele teve com o povo dentro doprograma oficial da Jornada. Isso realmente o comoveu, a gentepercebia que ele estava muito sensibilizado pela fé das pessoas.Por isso ele procurava ter contato, descia do carro. Depois damissa no Santuário de Aparecida nós fomos para o SeminárioBom Jesus. O povo continuava na rua, eram vários quilômetros,estava cheio dos dois lados. Acho que isso realmente o comoveu.Um momento bonito neste dia em Aparecida foi na volta ao Riode Janeiro, quando descemos do helicóptero em São José dos

Campos para pegar o avião. Havia uma grande quantidade depessoas nas grades, estava chovendo, fazendo frio, havia gramamolhada e lama. O papa fez uma cara de preocupação, comopensando: "coitada dessa gente". Ele foi até a grade e cumpri-mentou e conversou com as pessoas. Ele não se importou em su-jar os sapatos, foi um gesto muito bonito, sobretudo pelo carinhocom que olhava para as pessoas.

O papa Francisco demonstrou conhecer a história de Aparecida?Muito, basta pegar o texto que ele fala para os bispos bra-

sileiros. Trata-se de uma teologia de Aparecida. Ele fala que nofundo, a história de Aparecida pode servir de exemplo de co-mo deve ser a missão da Igreja. Os pescadores que estavam de-sapontados, Deus interveio, ele conta os detalhes, basta entrarno site do Vaticano e ler. O Dom Damasceno estava encantado.No próprio discurso em Aparecida ele demonstrou muito co-nhecimento. Uma coisa que precisa ser dita, ele estava impres-sionado pela Conferência Episcopal de Aparecida em 2007, is-so o marcou profundamente e foi lá que nos conhecemos. Umadas minhas funções nesta visita do papa era a de revisar os dis-cursos, ver se faltava alguma coisa, sugerir alguma comple-mentação, ele estava muito consciente do que iria falar. A genteestava no meio desse trabalho e em um momento ele olhou pa-ra mim e disse: "Isso me faz lembrar Aparecida, mas não sepreocupe, não vamos ficar até às duas da manhã". Acho queessa vivência que tivemos em Aparecida foi um dos motivospelo convite para ajudá-lo nesta visita. Em muitos momentosde seus discursos, principalmente para os bispos, ele tocou emassuntos que saíram da Conferência em Aparecida em 2007.

Como ocorreu o convite para que o senhor secretariasse o papanesta visita?

O convite veio quase dois meses antes da Jornada. O núncioapostólico me ligou e disse que o papa gostaria que eu fosse in-térprete dele. Na verdade, fiz muito pouco o trabalho de intér-prete. O único momento foi no encontro com os menores priva-dos de liberdade, pela forma como os meninos falavam, usandogírias. Mas na prática, não foi necessário. Se tivesse sido somentepara ser intérprete, realmente não teria muita necessidade, poisele se comunicou bem o tempo todo. Não foi necessário quandoele conversou com a presidente Dilma, com o governador, o pre-feito – estes eram momentos que talvez se precisasse de um in-térprete, mas não foi necessário. Mas depois de alguns dias, fuiinformado que iria ficar na própria residência Assunção, onde opapa ficou hospedado, com tarefas de um segundo secretário –em geral, os papas têm dois secretários e o segundo secretário dopapa, que é um argentino, não veio nesta viagem. Eu estava alipara assessorá-lo no que ele precisasse e uma das coisas que elequeria de mim, por ser brasileiro, era a questão dos discursos.Por exemplo, não estava claro para ele a questão das manifes-tações populares. Sabíamos que as pessoas esperavam algumapalavra sobre as manifestações. Fizemos uma adaptação de umtexto para deixar mais claro qual era a recomendação que ele fa-zia, que no fundo era favorecer o protagonismo dos jovens. De-pois, na entrevista que concedeu à TV, ele deixou mais claro, dis-se que não conhecia a realidade exata das manifestações, masum jovem que não protesta "no me gusta".

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Em relação a essa entrevista exclusiva para a Rede Globo, na viagemde vinda, o papa disse aos jornalistas que o acompanhavam no aviãoque não dava entrevistas. No fim, ele surpreendeu e concedeu essaprimeira entrevista. Como isso ocorreu?

No voo de ida, não foi ele quem disse, foram os próprios jor-nalistas que disseram: "Nós sabemos que os repórteres não são oseu santo de devoção, então o senhor deve estar se sentindo co-mo Daniel na cova dos leões". De fato, na ida ele preferiu não daruma entrevista ampla, mas conversou com cada um e no finalprometeu que daria uma entrevista. De fato, a entrevista que eledeu na volta é excelente, está toda no site do Vaticano, vale a pe-na ler. Fiquei surpreso com muita coisa que ele disse, é uma en-trevista de uma hora e vinte minutos. No domingo, dia 21, o jor-nalista Gerson Camarotti, que escreve muitas coisas sobre o Va-ticano, e acabou de lançar um livro sobre os segredos do Con-clave, me procurou e perguntou se seria possível durante asemana algum tipo de contato com o papa. Então, quando tiveoportunidade, perguntei para Sua Santidade se em algum mo-mento ele gostaria de dar uma entrevista. Ele disse que sim, queme indicaria o momento. Não toquei mais no assunto, foi elequem veio me falar para ver o melhor momento e horário. Mar-camos então para quinta-feira (25/07). Ele só pediu uma coisa:que a entrevista somente fosse ao ar depois que ele partisse. Eutambém me surpreendi com a facilidade com que ele concordouem dar a entrevista. Ele conhecia o livro do Camarotti, disse queleu alguns trechos. Outros bispos também conhecem o jornalis-ta e acho que por isso ele sentiu confiança.

Quando ele foi embora, o papa deixou alguma coisa com o senhor,deu alguma bênção?

Sim, é costume quando alguém tem uma audiência com o pa-pa ele deixar alguma coisa. No caso, estive com ele logo na terça-feira de manhã, tivemos uma conversa mais informal, pergun-tou o que eu estava fazendo, pois só nos vimos pessoalmente em2007, e ele me deu um livro com imagens de Nossa Senhora,muito bonito, também um medalhão com a Via Sacra e depoisdeu alguns terços e cartões, que são mais protocolares nesse mo-mento. Depois, pedi a ele que abençoasse outras coisas que eutinha levado. Dei a ele uma imagem de Nossa Senhora e aí acon-teceu algo curioso: ele pediu que eu passasse depois para aben-çoar a imagem. Mas ele é o papa, ele podia abençoar a imagem.E ele disse: "A sua bênção vale tanto quanto a minha".

Aquele jovem professor que falou no Teatro Municipal, a impressãoque deu é que o papa ficou muito comovido, não é mesmo?

Sim, acho que todos os testemunhos foram bem escolhidos,principalmente o encontro com jovens em tratamento contradrogas, que era um encontro privado. Teve uma das jovens quefalou muito, ela tinha uma carta de duas páginas. Era para serum encontro rápido, informal e ela leu tudo. Com toda paciên-cia, o papa escutou tudo, não a interrompeu. Nesse encontro, opapa em nenhum momento foi moralista. Disse para elas con-tinuarem assim, serem boas pessoas, que estava rezando porelas, abençoou as coisas que os jovens haviam trazido, foi umencontro bem tranquilo.

Em entrevista, o papa disse: "Se uma pessoa é gay e busca Deus, quem

sou eu para julgá-la"? Isso seria uma mudança na postura da Igreja?Essa entrevista ocorreu no avião, na volta do papa. Ficamos sa-

bendo pela imprensa. A jornalista questionou por que ele nãoabordou temas como aborto, casamento de homossexuais. Elerespondeu que essas coisas todo mundo sabe o que a Igreja pensae que não era necessário repetir. Ela ainda perguntou qual era opensamento do papa. Ele respondeu: "O mesmo da Igreja, poissou filho da Igreja". Ele disse também que se tratava de falar coisaspositivas para os jovens. Ele também disse que os gays não devemser marginalizados, mas integrados à sociedade. O próprio Ca-tecismo da Igreja fala que não devemos discriminar, temos de aco-lher as pessoas. Ele menciona a própria tradição da Igreja e a com-preensão que ela tem. Não vejo, pois, como mudança de doutrina,mas uma postura que primeiro acolhe e não tem intenção de fazerqualquer tipo de juízo. Em primeiro lugar, devemos oferecerDeus, o acolhimento, e foi um dos temas que ele mais insistiu emsua visita. Um tema que ele falou muito é o da Igreja que é mi-sericordiosa, que acolhe, vai ao encontro. Mesmo nos temas po-lêmicos não devemos colocar a doutrina à frente do amor. Issorealmente não ajuda em nada para uma Igreja que deseja estarpróxima às pessoas, que quer acolhê-las estejam ou não em pe-cado, dentro ou fora da Igreja. Se você quer ser realmente acolhe-dor, ser o rosto de um Deus que é amor, a gente não pode começarcom o que divide. Este papa fala sempre da cultura do encontro.

Depois de uma semana intensa de convívio, como foi a despedida?Nós nos despedimos muito rápido. De tarde, após o almoço,

ele falou: "Já tenho que me despedir de você?" O papa é incri-velmente pessoal e bem-humorado. Por exemplo, um dia euestava ao lado do papamóvel, no chão, e levei uma criança paraele beijar, foi a única vez que eu fiz isso. De noite ele brincou:"Então você já entrou na onda e está me levando crianças?" Masele então perguntou se já tínhamos de nos despedir. Disse queainda não, que eu iria junto ao aeroporto e lá a gente podia sedespedir. E na despedida, no meio de um monte de gente, aúnica coisa que ele disse foi: "Reze por mim".

Segundo Mello, opapa é incrivelmente

bem-humorado.

Alessandro Buzas/Estadão Conteúdo

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10 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

Remédio contraa falta de

política econômicaDa redação

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José Serra: o grande gargalo é o baixoinvestimento, tanto no setor público como privado.

Avida política de José Serra teve início nos anos60. Foi presidente da União Nacional dosEstudantes (UNE) entre 1963 e 1964, ano emque o golpe militar o forçou a buscar exílio no

exterior. Viveu no Chile e nos Estados Unidos, onde fezseu doutorado em Economia pela Universidade deCornell. No Brasil, Serra tinha estudado Engenharia naEscola Politécnica da Universidade de São Paulo.

De volta ao País depois de 14 anos, foi professor daUnicamp e pesquisador do Cebrap. Em 1983, foinomeado Secretário de Economia e Planejamento doGoverno Franco Montoro, em São Paulo. Em 1986, foieleito Deputado Federal Constituinte, tendo sido orelator da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento eFinanças. Em 1990 elegeu-se novamente DeputadoFederal, tendo sido líder do PSDB na Câmara. Em 1995

foi eleito Senador por São Paulo. Foi Ministro doPlanejamento entre 1995 e 1996 e Ministro da Saúde entre1998 e 2002. Foi candidato a Presidente da República em2002, tendo perdido no segundo turno. Em 2004, JoséSerra elegeu-se Prefeito de São Paulo, e em 2006 foi eleitoGovernador do Estado. Em 2010, candidatou-senovamente à Presidência, tendo obtido 44 milhões devotos no segundo turno das eleições.

No último dia 12 de agosto, José Serra proferiu umapalestra na Associação Comercial de São Paulo (ACSP),mostrando a sua visão sobre os grandes problemasbrasileiros. Na ocasião, Serra criticou a política econômicabaseada no consumo, os baixos investimentos públicos, amá qualidade dos investimentos do governo, a alta cargatributária, o custo Brasil e a falta de planejamento do atualgoverno. Veja a seguir os principais trechos da palestra.

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11JULHO/AGOSTO 2013 DIGESTO ECONÔMICO

Principais problemas brasileiros

O tema "Desenvolvimento brasileiro e seus principaisproblemas" merece ser abordado em um primeiro ponto naseguinte perspectiva: estamos no fim de um ciclo no Brasil.Este ciclo, que se esgotou mais claramente entre 2010 e 2011,teve características muito peculiares. A primeira é um cres-cimento moderado do PIB da ordem de 3% ao ano e decli-nante na média hoje em dia. Outra característica é um cres-cimento puxado pelo consumo e de baixo investimento – es-ta é uma característica importante. Por exemplo, se pegar-mos 2008 para 2012, o consumo cresceu três vezes mais doque o investimento no Brasil, em valores reais. Isso é repre-sentativo de um tipo de desequilíbrio quefoi se formando ao longo deste ciclo e foiuma característica importante, inclusiveproveitosa para o governo do ponto de vis-ta político.

Também vemos baixo investimento, nãoapenas na esfera privada, mas principal-mente na esfera pública, no que se refere àinfraestrutura. As razões são diferentes: naesfera privada, basicamente pela questãoda concorrência externa de produtos im-portados e da falta de perspectiva na in-dústria. No que se refere ao setor público,existe uma falta de habilidade do governoem investir e fazer parcerias. O problemanão é a falta de dinheiro, não me alinhoàqueles economistas que dizem que o go-verno investe pouco porque não tem di-nheiro. Não é esta a razão do baixo nível deinvestimentos. O Brasil, dentro de umaclassificação de 140 países, está entre os 10últimos em matéria de investimento públi-co em proporção com o PIB, chegou a ser oantepenúltimo na escala mundial dos quemenos investem. Países em desenvolvi-mento como Tailândia investem quatro acinco vezes mais em proporção com o PIBdo que o Brasil. Isso, naturalmente, acu-mulou problemas, gargalos, para o desenvolvimento, masfoi uma característica deste modelo.

Também houve um aumento muito rápido das importa-ções e uma lentidão das exportações. Paralelamente, umaentrada abundante de capitais na economia. O déficit emconta corrente no Brasil começou, salvo engano, em 2007,apesar da situação extraordinariamente favorável na áreacomercial para o Brasil, devido ao aumento dos preços deprodutos agropecuários e minerais nos quais o País foi se es-pecializando. Mesmo assim, o déficit em conta corrente co-meçou a acontecer em 2007. No último ano foi de 3% e hojecaminha para 4% do PIB, que é um número alto, ainda maispelas condições em que a economia está funcionando – po-deria não ser um grande problema, mas nas condições de se-miestagnação, de desindustrialização e de crescimento len-to das exportações, isso é um problema.

Oportunidade jogada fora

Outra questão, que viabilizou as condições anteriores, é a re-lação juro e câmbio. O Brasil permaneceu, durante muitosanos, com a moeda mais sobrevalorizada do mundo em ter-mos de evolução ao longo do tempo. Nem mesmo na crise de2008/09 o País baixou os juros, como aconteceu na maior partedos países. O Brasil aumentou os juros ainda no começo da cri-se e quando houve a quebra do Lehman Brothers, demorouquatro meses para baixar os juros. Isso, evidentemente, teveconsequências sobre o câmbio. Na época, jogamos uma opor-tunidade de ouro pela janela. O câmbio foi desvalorizado pelacrise, mas sem inflação. Era uma oportunidade de ouro, pelo

menos para manter um resultado nesta área.Mas trabalhou-se com muito empenho pararevalorizar a moeda. O que aconteceu, então,foi aquele fenômeno do Big Mac mais caro domundo, não porque faltou carne, trigo, pãoou a mão de obra seja muito cara, simples-mente pelo efeito da moeda. O melhor exem-plo é o do turismo – chegamos a 15 bilhões dedólares em déficit no setor, com o turismobrasileiro vazio e o de fora mais barato. Pas-samos a ser grandes importadores de turis-mo – quando alguém vai para fora é uma im-portação que a gente faz. É um item de gran-de desequilíbrio na balança de conta corren-te de pagamentos.

Ao mesmo tempo, como mencionei,houve um processo de desindustrializa-ção, diminuição da fatia da indústria noPIB. Chegamos agora ao nível de 1946/47em matéria de fatia da indústria no PIB, al-go em torno de 13% a 14%. É uma situaçãodramática esse retrocesso e paralelamentenos tornamos mais dependentes de produ-tos agropecuários e minerais para a nossainserção na economia internacional, comose voltássemos aos anos antes de 1930, nomodelo de exportador de produtos do se-tor primário. Ao contrário do que outras

pessoas falam, não sou contra o Brasil exportar agromine-rais, só que dá para fazer de tudo – os EUA fizeram isso aolongo de sua história, sempre foram um grande exportadoragrícola, de petróleo e ao mesmo tempo de produtos indus-triais. Não há contradição entre uma coisa e outra.

Bonança externa, crédito e carga tributária

O fato é que este modelo faturou uma situação de bonançaexterna como eu nunca vi, não me lembro de nada parecido emmatéria de euforia externa, não só na relação de troca com o ex-terior, exportação e importação, mas também quanto ao custodo dinheiro. Depois de 2008, a taxa de juros ficou entre zero e1%. Nunca houve uma abundância tal em matéria de moedano mundo inteiro, o que facilitou muito a entrada de capitais noBrasil, porque era a maior remuneração do mundo. Só quero

O problema não éa falta de dinheiro, nãome alinho àqueleseconomistas que dizemque o governo investepouco porque não temdinheiro. Não é estaa razão do baixo nívelde investimentos. OBrasil, dentro de umaclassificação de140 países, está entreos 10 últimos em matériade investimento públicoem proporção como PIB, chegou a ser oantepenúltimo na escalados que menos investem.

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lembrar que reserva de 300 bilhões de dólares é uma coisa boa,mas o passivo externo é de 800 bilhões. O passivo externo somao que não é contabilizado como dívida – um investimento, porexemplo, não consta como dívida, mas é propriedade estran-geira e pode ser convertido.

Ao mesmo tempo, houve um aspecto importante até paraexplicar o que depois aconteceu, que foi a tremenda expansãodo crédito ao consumidor, que começou também com aquelecrédito consignado, que não foi objeto de uma estratégia, poisqualquer que tivesse sido o governo teria surgido, mas quefuncionou muito para turbinar o consumo. As margens de en-dividamento naturalmente cresceram e terminaram sendo umdos fatores de esgotamento do ciclo.

E por último, um problema que é central aqui na ACSP, ondefoi inventado o Impostômetro na gestão de Guilherme Afif,que é a questão da carga tributária. É um paradoxo: uma cargatributária altíssima e em elevação e investimento governa-mental baixo e até declinando em alguns períodos. É um pa-radoxo. E o que teve no meio? No meio estiveram juros, evi-dentemente, e expansão de gastos de outra natureza que não

investimento. A carga tributária é a maior dos países emergen-tes em proporção ao PIB. Essa carga vem acompanhada de umaumento grande de renúncia fiscal. A renúncia fiscal no Brasilé superior a R$ 150 bilhões, e não é apenas em relação ao Sim-ples e Super Simples, que custam R$ 30 bilhões, tem R$ 120 bi-lhões que não é isso. O importante é que, se tenho R$ 120 bi-lhões que não são pagos, quem paga está pagando mais, estácobrindo essa diferença, tem o preço por outro lado.

Mudança de cenário

Este modelo se esgotou, porque a bonança externa aca-bou, não há nenhum quadro de depressão econômica mun-dial, terminou aquela expansão acelerada, mudou o sinal. AChina passou a crescer menos, em vez de crescer 10% estácrescendo 7%, o que significa duplicar o PIB a cada dez anos.O Brasil já teve essa época, duplicava o PIB a cada dez anos.A Europa está com problemas – como economista, acho mui-to difícil ver a Europa redinamizada, porque eles têm o nóinstitucional do euro. Um dos maiores equívocos que eu co-nheço na história da economia do século 20 é a moeda euro,porque acabou com política monetária nacional e criou umarigidez muito grande. Já os EUA, acho, estão em fase de re-cuperação, mas isso já tem outra contrapartida, que é o di-nheiro se tornar mais caro. Em um país com 4% de déficit em

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ton Santos/Hype

De 2008 a 2012, o consumocresceu três vezes mais do queo investimento no Brasil, emvalores reais. Este ciclo, agora,chegou ao fim.

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conta corrente do PIB, o dinheiro mais caro é um problema.Além disso, os EUA voltam com muita competitividade.Um exemplo é o shale gás (gás de xisto), tirado do xisto be-tuminoso – os alemães faziam isso na 2ª Guerra Mundial, eraum processo altamente poluente, mas os americanos conse-guiram uma tecnologia que baixou o custo para 4 dólares aunidade que se costuma medir. No Brasil, o custo é 12 a 13dólares e no mercado internacional, o custo é 8 dólares. Ima-ginem a competitividade na energia e no insumo de produ-ção. Ou seja, os EUA vão voltar com agressividade, comcompetitividade, não é aquela economia com aqueles gi-gantescos déficits do passado.

Sem política comercial

Outro aspecto crítico é o limite que chegou a falta de políticacomercial no Brasil. Uma coisa é o câmbio, outra coisa é o custoBrasil e outra é política comercial, que o Brasil não tem. Vocêspegam tratado de livre comércio, deve ter havido uns 400 nosúltimos 10 ou 12 anos no mundo. O Brasil fez apenas 3, um comIsrael, que é um parceiro pequeno, o outro com a Palestina, pa-ra que o governo não parecesse pró-semita, e o terceiro com oEgito, que ainda nem assinou. Isso é a política comercial doBrasil. Por que isso? Por dois motivos: primeiro, que inventa-ram a coisa do multilateralismo – somos um país grande, só so-

luções de comércio multilaterais. Isso é inteiramente na con-tracorrente do mundo, todos fazendo acordos bilaterais, comoPeru, Chile, EUA, e o Brasil lá quietinho, de stand by. Segundo,por causa do Mercosul. O Brasil quis fazer em quatro anos oque a União Europeia levou 40 anos, porque tem de diferenciara zona de livre comércio de união alfandegária. Uma coisa ézona de livre comércio, que é o que os países do Pacífico estãofazendo, deixando o comércio mais livre entre eles, outra éuma política comercial comum com o resto do mundo, as ta-rifas e tudo mais.

Com o Mercosul, o Brasil renunciou a soberania de sua po-lítica comercial. Nós temos de ouvir o Paraguai, Uruguai e Ar-gentina, e agora Venezuela. Eu não tenho problemas com a Ve-nezuela, se é ditadura, não é ditadura. O problema da Venezue-la entrar no Mercosul não é esse. É que ela passa a ter poder deveto sobre a política brasileira. Quando eu era ministro da Saú-de, fui à Índia para abrir o mercado brasileiro para os medica-mentos genéricos – olhando a Índia, ninguém acredita que elapossa produzir medicamentos de alta qualidade, mas produz,tem 20 indústrias muito boas e são os campeões dos genéricos.

Maurício de Souza/D

C

Em portos, se passou décadassem fazer nada. A soja que

vem de Mato Grosso atéSantos custa tanto quanto a

ida para a China.

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Como havia resistência em comprar genérico aqui, dos labo-ratórios já instalados, eu fui atrair capital indiano e importar daÍndia. Na época chamei o Itamaraty e sugeri fecharmos algumacordo com a Índia, mas eles disseram que tinha de levar o Uru-guai, o Paraguai e a Argentina, que não têm interesse. O Uru-guai e o Paraguai têm 1/50 do PIB brasileiro e a Argentina 1/3.Nós entramos porque era moda criar blocos. Lembro-me queem 1993, antes de o Mercosul estar instalado, escrevi um artigona revista Exame contra o Mercosul, eu dizia que era como se orabinho abanasse o elefante.

Mas eu estava falando dos fatores de contenção do ciclo ereinando sobre tudo tem o famoso custo Brasil. Na média dosnossos parceiros comerciais, o custo Brasil é de 25%. Como eumeço isso? Eu meço pegando um produto de um parceiro mé-dio, tiro o que ele pagou no país em impostos, custos de infraes-trutura, custo de administração tributária, custo financeiro,zero tudo e aplico os números brasileiros. Esse produto pas-saria a custar 25% mais. Ou seja, produto que vem de fora tem25% em média menos custos do que o produto produzido noBrasil em igualdade de condições. Mas não é ineficiência den-tro do estabelecimento, é da porta para fora, só tributação dá15% desses 25%.

Soluções para o Brasil

Eu acho que, o que causa mais ansiedade no Brasil hojenão é tanto o fim do ciclo, mas é a saída do fim do ciclo paraoutro. Esperamos que seja uma curva para cima, mas paraisso tem de ter política, senão não sobe. Eu não sou daquelesque dizem soltem o mercado que acontece tudo – não acon-tece nada, tem de ter políticas para isso. E não tem tido. Qualera a questão essencial de uma estratégia? Era subir o inves-timento público. Tem demanda, tem ponto de estrangula-mento. O que eu aprendi sempre na vida é que a gente in-veste onde tem ponto de estrangulamento, sobretudo emum país em desenvolvimento. Qual é o estrangulamento ho-je no Brasil? É a infraestrutura. O que foi feito? Nada e não épor falta de dinheiro e nem por falta de parceria.

Vou dar um exemplo do potencial que tem na área de estra-das. Quando eu era governador, mudamos o modelo de con-cessão do Estado. Antes, o pagamento pela concessão era va-riável no leilão e nós fixamos, era à prazo e fizemos à vista epusemos a tarifa em leilão. O fato é que em seis estradas nósarrecadamos para o Tesouro R$ 5,5 bilhões para investir em ro-dovias, que não só as pedageadas, pois a rede é imensa, e R$ 8,5bilhões de investimentos comprometidos, num total de R$ 14bilhões com seis estradas. Imaginem o que dá para fazer na es-fera federal com essas BRs todas Brasil afora. O governo fede-ral também não descentraliza. Tem uma estrada de São Pauloaté Mato Grosso, a parte paulista está ótima, a deles é um de-sastre e o governo federal em vez de ceder para o governadorde Mato Grosso fazer, não cede, mas também não sai de cima,fica controlando.

Com dinheiro abundante, a área privada é um bom negó-cio, inclusive quando os juros começaram a cair. Porque naconcessão, a sua facilidade é inversamente proporcional aosjuros, quanto mais baixo os juros, mais fácil atrair capital,

pois os custos diminuem para o investidor. Foram feitas al-gumas concessões mal feitas com pedágio onde não tinha,sem compromisso de investimento e sem venda de outorga,ou seja, não adiantou nada. Isso em 2007. Passaram-se cincoanos, não deu certo porque queriam regulamentar a taxa delucro. É evidente que, quando se vai fazer uma concessão deestrada, se calcula a taxa de retorno, mas ela não entra nocontrato, é só para que o governo tenha uma ideia dos mo-vimentos. Se o capital privado aceita e investe, moderniza etem um lucro maior, sorte deles, isso faz parte do mercado.Mas eles queriam regulamentar o mercado, coisa que nãoexiste no mundo. O resultado é que não fizeram.

Em portos, se passou décadas sem fazer nada. A soja quevem de Mato Grosso até Santos custa tanto quanto a ida para aChina. Os chineses agora estão fazendo livros brasileiros. AChina importa na nossa celulose, faz papel, imprime, mandade volta para o Brasil e é mais barato que o transporte São Paulo- Rio de Janeiro. Aí é o tal do custo Brasil.

Paulo Pamplolin/H

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O que eu aprendi sempre na vidaé que a gente investe onde tem ponto deestrangulamento, sobretudo em um país emdesenvolvimento. Qual é o estrangulamentohoje no Brasil? É a infraestrutura. O que foifeito? Nada e não é por falta de dinheiro enem por falta de parceria.

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O pré-sal

Ainda no tocante às parcerias, tem casos como o da Petro-bras. Havia um sistema de concessão bom, mas foi proibido naConstituinte – nos anos 70, o Geisel, que era nacionalista, abriuas concessões. O Severo Gomes, que era ministro da Indústriae Comércio, se demitiu por causa disso. Chegou a Constituintee proibiu, por voto do Jarbas Passarinho, que era homem doregime militar, mas que foi contra abrir o setor de petróleo. Nogoverno Fernando Henrique abrimos com emenda constitu-cional e as concessões funcionaram uma maravilha, foi quemdescobriu o pré-sal e a concessão passou a pagar royalties eparticipação especial. Em vez de manter esse modelo, inven-taram um modelo de partilha, que fez a gente coloca dinheiro,todos nós pusemos, deu-se R$ 150 bilhões para a Petrobras nu-ma maquiagem – não parece que foi gasto público mas foi, in-ventaram um pretexto de que estava comprando ativo. E a Pe-trobras tem de participar de cada poço e ela não tem capaci-dade administrativa para isso. Este é um dos fatores de quebrada Petrobras. Era um modelo que vinha funcionando bem.

O trem bala

Uma coisa extraordinária é o projeto do trem bala, que é semprioridade nenhuma. Tem Rio de Janeiro e São Paulo, ambas en-

garrafadas pelo trânsito. Tem que investir onde? No metrô, nostrens urbanos. Solução de médio prazo não tem outra. Mas bo-laram o projeto do trem bala. A falta de capacidade executiva nosajudou, porque eles definiram o projeto em 2007 e foi indo, indo,indo. Na época, eu era governador e disse para o BNDES estudara viabilidade. Claro que o BNDES é contra, toda a administraçãofederal é contra, não falam, mas são. Contratamos a engenhariada PUC do Rio de Janeiro para mostrar que não tinha demanda,não se justifica. Mas como eles não sabiam fazer projeto, faltou oprojeto executivo, então foi atrasando, por sorte. Há incapacidadeaté para fazer projeto errado.

Mas o projeto continua na ordem do dia. Eu fiz os cálculos -tem números divulgados, falam de R$ 30 bilhões, mas na ver-dade são R$ 70 bilhões, pois tem de contar isenções tributárias,reserva de contingência, infraestrutura. Com R$ 70 bilhões euencho as grandes cidades do Brasil de metrô. Não é dinheiro doTesouro, é dinheiro que vai ser mobilizado para isso. A descul-pa, que acho até engraçada, é de absorver a tecnologia. Mas R$70 bilhões? Quanto vale essa tecnologia? Traz aqui quem do-mine essa tecnologia, paga um salário de 1 milhão de dólares,qualquer coisa é melhor do que isso.

Thales Stadler/AE

Foram feitas algumasconcessões mal feitas, sem

compromisso de investimentoe sem venda de outorga.

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Linhas paralelas:manifestações e eleições

Ueslei Marcelino/Folha Imagem

Denis RosenfieldGraduado em Filosofiapela UniversidadeAutônoma do México,Doutor de Estado pelaUniversidade de Paris IPanthéon Sorbonne eprofessor titular deFilosofia daUniversidade Federaldo Rio Grande do Sul

A tualmente, o Brasil corre em duas li-nhas paralelas, as manifestaçõespopulares, oriundas das Jornadasde Junho, e o processo eleitoral.

Eventualmente, as duas linhas se tocam, umainfluenciando a outra, sem que se tenha umprognóstico, minimamente acurado, do quepode acontecer no próximo ano. Em todo caso,as eleições foram muito antecipadas, de tal mo-do que o País deverá conviver com as incerte-zas próprias de um ano que não deveria serpropriamente eleitoral, já o sendo, e com ma-nifestações que podem irromper a qualquermomento. Acrescente-se a isto o aparecimentode atores políticos que usam a violência en-quanto instrumento de ação, para que se com-plete esse cenário de incertezas.

Devemos, preliminarmente, caracterizar asJornadas de Junho, para distingui-las das usur-pações que foram logo propostas. As manifes-tações mostraram o País se acordando de umalonga letargia, como se a corrupção, a má qua-lidade dos serviços públicos, as tarifas de ôni-bus e impostos elevados fossem uma espéciede sina, à qual os cidadãos deveriam simples-mente se acomodar. Um fenômeno análogo acataclismos da natureza que, por piores que se-jam, não estão ao alcance da ação humana.

As jornadas possibilitaram mostrar a nãonaturalidade dos fenômenos econômicos, so-ciais e políticos, trazendo-os ao alcance daqui-lo que pode ser transformado. A corrupção po-de ser controlada, os serviços públicos podemser de melhor qualidade, as tarifas dos trans-portes podem ser melhores e os impostos po-dem ser reduzidos, tudo isto dentro de uma no-va concepção da política e da cidadania.

Note-se que a característica básica das Jor-nadas de Junho foi a manifestação espontânea,não instrumentalizada, da sociedade civil, quesurgiu autonomamente como um ator pro-priamente político. Não aceitou mais ser mani-pulada, como se tudo devesse sofrer sem ne-nhuma reação. Sua mensagem foi basicamentea de um não a esse estado de coisas. E esse não

incluiu as administrações municipais, esta-duais e federal, com especial destaque para aPresidência da República, por encarnar o po-der nacional. O PT, neste sentido, tornou-se umobjeto de crítica e repúdio, pois, tendo chegadoà Presidência para mudar tudo o que estava aí,terminou produzindo o Mensalão, símbolomesmo do que não deveria existir.

Em um segundo momento, o governo e o PTviram-se obrigados a uma resposta, pois se en-contraram com uma situação de caráter com-pletamente inusitado. O partido e os movi-mentos sociais a ele subordinados foram sim-plesmente enxotados das ruas e suas bandeirasforam rasgadas. Situação impensável há ape-nas um ano atrás. Optaram, então, pela hetero-nomia, o controle externo e o aparelhamento.

Tentaram, neste sentido, apropriar-se da ruavia mobilização da CUT, UNE, MST e movi-mentos sociais "organizados", no que foi pro-clamado como devendo ser uma grande grevegeral, a do dia 11 de julho de 2013. O resultadofoi um fracasso total, mostrando uma comple-ta dissociação entre esses movimentos sociaisorganizados, na verdade, aparelhados parti-dariamente, e a voz das ruas.

Quiseram impor a sua própria voz, como sedas ruas fosse. Foi colocada na boca do povo aconvocação de uma Assembleia Constituintee, depois, de um Plebiscito, como se essa fosse aresposta adequada, quando nada mais era doque uma usurpação. O fiasco foi completo.Desde então, o governo insiste em uma pauta jáultrapassada, enquanto o PT tenta impor suasbandeiras tradicionais, aí incluindo, segundoResolução do Diretório Nacional de 29 de julhode 2013, uma radicalização da democracia, en-tendida como "luta pelo socialismo". O divór-cio entre as ruas, o governo e o PT se acentua.

Note-se, neste sentido, que não apenas o PT es-tá em questão, mas todos os partidos e a classepolítica em geral, tendo-se tornado objetos dedescrédito geral. As pesquisas que mostram umdescontentamento e uma desconfiança em rela-ção aos distintos partidos, ao Poder Legislativo e

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a alguns Estados mais atingidos, como Rio de Janeiro, PMDB, eSão Paulo, PSDB, são uma clara sinalização de que as coisas nãodeveriam permanecer como estão. É a hora da mudança e, no en-tanto, a classe política em geral não a deseja, tergiversa e procuratudo fazer como se nada tivesse acontecido. O descolamento en-tre a classe política e a cidadania tende a aumentar.

Junte-se a isto, criando um clima de maior instabilidade, oaparecimento de propostas revolucionárias de extrema es-querda, angariando simpatias em partidos de esquerda, quevisam a uma transformação socialista da sociedade brasileira.Bandeiras contra o direito de propriedade, o agronegócio, aconstrução civil e os meios de comunicação são levantadas. Anovidade aqui consiste em que a violência é tomada como ummeio totalmente justificado.

Em um caso, na Resolução do PT, temos a proposta de so-cialismo por intermédio de eleições e radicalizações como a"democratização dos meios de comunicação", em outro, a mes-ma proposta socialista, só que por intermédio da violência.

Observe-se a leniência dos governos estaduais, co-mo os de São Paulo e Rio de Janeiro, que são os maisatingidos por esses atos violentos. As respectivas po-lícias militares revelam por seu comportamento ummedo de agirem, quando seria uma atividade de inte-ligência relativamente simples encontrar os responsá-veis e as organizações que estão por detrás dessas ma-nifestações. É como se houvesse uma espécie de pactode silêncio em relação a elas, com os governadores Al-ckmin e Cabral hesitando na cobrança de responsabi-lidades. É como se temessem o politicamente correto.

A sociedade civil brasileira tem se mostrado coe-rente com o espírito das Jornadas de Junho, não em-barcando no uso da violência. Pesquisas mostram, in-clusive, o repúdio a tais atos, exibindo um amadure-cimento desta mesma sociedade. Ela diz não ao atualestado de coisas, porém dentro do estado de direito,almejando um aperfeiçoamento das instituições de-mocráticas e não a sua eliminação. Ou seja, a socieda-de brasileira não compactua com a violência e com es-sas posições esquerdizantes.

O clima de descontentamento, no entanto, continuapairando no ar. Nada de relevante foi feito e os apro-veitadores, violentos e partidários, procuram tirar omaior benefício da situação. Alguns são tomados pordevaneios bolivarianos. O descolamento entre os cida-dãos e a classe política pode voltar a irromper a qual-quer momento, com interferências manifestas no pro-cesso eleitoral do ano que vem.

No contexto atual, o jogo eleitoral está zerado. Nãohá bola de cristal que possa prognosticar o que acon-tecerá em outubro de 2014. Apesar de a presidente Dil-ma, na pesquisa do Datafolha do dia 11 de agosto, termostrado uma pequena recuperação de sua posição,nada lhe assegura, nas condições atuais, a sua reelei-ção. O candidato tucano, Aécio Neves, até agora, nãoconseguiu decolar, sendo, ainda, prejudicado pelasmovimentações de um outro tucano, José Serra, que, sese apresentar por outro partido, tende a inviabilizar a

candidatura do senador mineiro. O governador pernambuca-no Eduardo Campos não conseguiu despontar em nenhumapesquisa, ficando abaixo de dois dígitos.

Por enquanto, a grande novidade consiste na candidaturade Marina Silva, que está progredindo consistentemente,mantendo a segunda posição com aumento de suas intençõesde voto. Soube ela com seu discurso antipolítico e antipartido,identificar-se com as ruas que nela se reconhecem. Contudo,sua candidatura, além de sua fraca base partidária – inexisten-te até o momento –, enfrenta contradições muito fortes entresua postura ideológica conservadora, evangélica, e a sua sim-patia por valores que contestam essa sua mesma postura, o quelhe garante acesso à juventude.

Os partidos e os candidatos continuarão ziguezagueandoao sabor das circunstâncias, tendo como pano de fundo tanto avolta das manifestações quanto a irrupção da violência. O cli-ma é de instabilidade, não sendo, favorável, neste sentido aosnegócios e a uma correção de rumos da economia.

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No alto, manifestantes protestam quanto a má qualidade dosserviços públicos. Acima, a ex-senadora Marina Silva, cuja

candidatura para 2014 vem se firmando após as manifestações.

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contêiner leva 16 diaspara ser liberado.

Em busca de ventos melhores

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Com uma costa de 8,5 mil quilômetros navegáveis,o Brasil possui um setor portuário que movimentaanualmente cerca de 700 milhões de toneladas dasmais diversas mercadorias e que responde, sozi-

nho, por mais de 90% das exportações. O sistema portuáriobrasileiro é composto por 34 portos públicos, entre marítimos efluviais. Desse total, informa a Secretaria Especial de Portos, 16são delegados, concedidos ou tem sua operação autorizada àadministração por parte dos governos estaduais e municipais.Existem ainda 42 terminais de uso privativo e três complexosportuários que operam sob concessão à iniciativa privada.

Com o argumento de definir um novo marco regulatório,que traga mais investimentos e modernidade aos portos bra-sileiros, o governo federal publicou em dezembro do ano pas-sado a MP 595, conhecida como MP dos Portos. Após intensasdiscussões e rebelião da base aliada do governo, a MP foi apro-vada no Congresso e sancionada pela presidente Dilma Rous-seff no início de junho com vetos.

Nesta entrevista, José Cândido Senna, coordenador do Comitêde Usuários de Portos e Aeroportos do Estado de São Paulo (CO-MUS), da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), fala daapreensão que domina hoje o ambiente de negócios no setor, jáque a MP foi aprovada em meio a muita hostilidade, do funcio-namento dos portos e onde estão os principais gargalos. Uma car-ga que chega de navio ao Porto de Santos fica mais de 16 dias es-perando a liberação, enquanto que em outros países esse tempo éde 3 dias; o custo de logística no Brasil está entre os mais elevadosdo mundo. Tudo isso faz com que o País perca competitividade.

Digesto Econômico - A MP dos Portos foi sancionada com vetos emjunho último. Em sua opinião, a nova lei deve trazer melhorias emodernidade ao setor?

José Cândido Senna - Ainda há a ameaça de os vetos dapresidente Dilma serem derrubados, tendo em vista a revoltada base aliada do governo. O que muda é o fato de ter termi-nais privados fora do porto organizado, que irão operar compessoal contratado pela CLT. A Secretaria de Portos ficou res-ponsável em aprovar a concessão desses terminais privati-vos. Na minha avaliação, de um modo geral, ela é positiva.Mas como a Medida Provisória tramitou e foi aprovada commuito estresse, em meio às outras discussões de serviços pú-blicos, como rodovia, ferrovia, energia, o ambiente de negó-cio tende a ser mais hostil, os potenciais investidores estão es-perando a poeira baixar, aguardam as apreciações dos vetosda presidente, estão fazendo as contas, vendo para onde so-pram os ventos. É importante destacar que, dias após a MPdos Portos ser promulgada, em 6 de dezembro de 2012, o go-verno anunciou apoio ao Programa Porto 24 horas, depoisconsolidado em abril deste ano como alternativa para o au-mento da capacidade. O mesmo governo que entende que de-va haver investimento em infraestrutura física, é o mesmoque em abril colocou oito complexos portuários dentro doPrograma Porto 24 horas. O governo entende que, por meiode ganhos de produtividade, sem fazer nenhum investimen-to em infraestrutura física, é possível aumentar a capacidadede movimentação de transporte de cargas.

Para entendermos toda essa questão, o senhor poderia explicarcomo funciona um porto?

Primeiramente, há a figura do transportador marítimo, tam-bém chamado armador, que traz o navio ao porto. O navio seaproxima da barra para entrar no porto e para fazer as mano-bras, precisa da praticagem. Trata-se de um serviço feito por re-bocadores, que ajudam a posicionar o navio no trecho de cais on-de o navio encosta, chamado de berço. Em seguida tem a amar-ração, para que o navio não fique balançando. Entram a bordorepresentantes dos órgãos anuentes, que formalizam a chegadado navio e autorizam o início da operação de carga e descarga.

Quais são esses órgãos anuentes?Basicamente a Polícia Federal, Receita Federal, Anvisa, a au-

toridade portuária, Ministério da Agricultura, Ministério daSaúde, Capitania dos Portos. Verificado alguns documentos,os órgãos atestam que o navio está em condições de iniciar asua operação.

As cargas são de diversas naturezas: granéis sólidos, comominério de ferro, soja, milho; granéis líquidos, como petróleo eseus derivados, sucos, óleos vegetais. Tudo aquilo que não émovimentado a granel é a chamada carga geral. A carga que éacondicionada, embalada, esta é a de maior valor agregado portonelada, que ao longo dos últimos anos, nos portos brasilei-ros, vem sendo conteinerizada – a carga que antes vinha soltaem sacaria, caixaria ou paletes, passaram a vir em contêineres.Essas cargas passaram a ser vistas como o "filé mignon" do co-

José Cândido Senna: o governo anunciouapoio ao Programa Porto 24 Horas.

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mércio internacional brasileiro por via marítima. Os contêine-res acondicionam produtos semi-industrializados, industria-lizados, manufaturados e semimanufaturados.

Como se organizam os diversos atores que atuam no porto?Na água, primeiramente têm os armadores. Eles explora-

ram os diversos tráfegos internacionais, como a Costa Oeste eLeste Americana. Golfo do México, Norte da Europa, Mediter-râneo, Sudeste Asiático, Extremo Oriente, entre outros – as di-versas áreas do globo são delimitadas. Na área dos contêineres,por uma questão de economia, hoje prevalece em grande parte,os chamados joint services, o serviço combinado.

Como funciona esses joint services?Suponha que haja três armadores – A, B e C. Eles resolvem ex-

plorar em conjunto uma região, por exemplo, o Extremo Oriente.O armador A tem clientes, por exemplo, na região de Araraquara.Ele quer que sejam clientes fiéis, que sempre usem os seus servi-ços quando quiserem enviar ou trazer produtos do ExtremoOriente. Os armadores B e C também possuem clientes e desejamessa fidelidade. Atuando em conjunto, eles podem oferecer via-gens com mais frequência – se antes cada um fazia uma viagempor mês, agora fazem uma a cada dez dias. É um sistema similarao que existia antes na ponte aérea Rio-São Paulo.

Além dos armadores, no varejo também há outras empresasatuando. Quais são elas?

Há outra figura na área marítima muito importante, que é ochamado NVOCC, sigla para Non Vessel Operator CommonCarrier. Ele funciona como um agente, vai até o armador e negociaum determinado espaço em um contrato de longo prazo. Ele pegaesse espaço e comercializa no varejo. É igual a um agente de tu-rismo, que vai até a empresa de aviação e bloqueia determinadonúmero de acentos para cada voo para Nova York. Ele faz um con-trato de longo prazo, garantindo para o transportador uma recei-ta, quer tenha passageiro ou não. Nesse contrato ele consegue umabatimento, mas corre o risco de não conseguir passageiros paratodos os acentos. O NVOCC visa, sobretudo, a carga consolidada– um contêiner pode suportar 24 toneladas de peso ou 31 metroscúbicos de volume. O agente tem vários clientes e precisa acomo-dar as mercadorias até a capacidade máxima do contêiner. As car-gas precisam ser compatíveis física e quimicamente, não se podecolocar inseticida com alimentos, ou sacarias com produtos pon-tiagudos, já que poderão ocorrer danos. É preciso uma inteligên-cia para também compatibilizar origem e destino das cargas.Além do NVOCC, há o agente de carga, que também atua no va-rejo, mas em um nível menor, bloqueando muito menos espaço –-enquanto o NVOCC bloqueia espaços para 1 mil contêineres, oagente de carga trabalha com 10 a 20 espaços.

Como é a organização em terra?A operação começa com os órgãos anuentes, que fazem a li-

beração do navio para a o início das operações de carga e des-carga. Uma vez feito isso, é preciso acompanhar essa carga e éneste ponto que estão as grandes encrencas hoje no Brasil. Équando aparecem, de forma clara, as ineficiências daquilo quese convencionou chamar a vertente logística do "custo Brasil".

Se considerarmos que o produto saiu de Araraquara e foi paraLyon, na França, o custo logístico de sair do ponto de origematé o cais, pronto para entrar no navio, representa 65% do totaldos custos. Com os outros 35% se paga o frete oceânico e otransporte até o ponto de destino. A grande parcela da inefi-ciência hoje está em território brasileiro.

Quais as razões dessa ineficiência?São diversas. Na área dos contêineres, após 2008, com a crise

financeira mundial, o País entrou em um processo de desindus-trialização. O contêiner é um meio de armazenamento de cargade produtos industrializados. Com a desindustrialização, co-meçou um processo de substituição de produto brasileiro porimportado, ajudado pela valorização do real, do custo Brasil,carga tributária, encargos sociais. Assim, as exportações brasi-leiras de contêineres, que eram preponderantes, a partir de 2009houve uma inversão – hoje, estimo que a importação de contêi-neres cheios responda por 55% do total de movimentação, fican-do os 45% restantes para a exportação. Podemos ver isso no Por-to de Santos, que deve representar entre 40% e 45% dos contêi-neres movimentados nos portos brasileiros.

Vemos hoje os terminais marítimos congestionados deco nt ê i n e re s.

No modelo de negócio dos terminais que movimentamcontêineres, receitas de armazenagem têm hoje um peso re-levante, principalmente sobre cargas de importação. Aí co-meçam as encrencas. O navio chega, começa a descarga, ooperador faz a chamada presença de carga. Daí até a efetivasaída da carga do terminal, o tempo médio em que ela fica ar-mazena é de 16,5 dias, uma brutalidade. A média dos portosmais eficientes é de 3 dias.

Por que isso acontece?Há de se investigar as razões. Não é justo atribuir este fato

somente aos órgãos anuentes. Há uma parcela de culpa dospróprios importadores, de seus despachantes, e há outros ato-res que trabalham em torno desta carga. Essas ineficiências es-tão concentradas nos processos de conferência e desembaraçoaduaneiro das mercadorias dentro do terminal molhado ondeo navio atraca ou em um terminal adjacente, chamado de ter-minal retroportuário alfandegado, para onde se transfere amercadoria que chegou ao terminal molhado e se faz ali todoprocesso de conferência e desembaraço aduaneiro.

Quais as consequências desse grande tempo de permanência dasmercadorias no terminal?

As consequências são as mesmas de uma mesa de restauran-te. No horário de pico, se cada cliente ocupar a cadeira por duashoras, o restaurante estará lotado e não conseguirá atendermais clientes. Se cada cliente ocupar a cadeira apenas meia ho-ra, o restaurante ficará mais vazio e conseguirá atender maisclientes. Em qualquer lugar, seja um restaurante, um estacio-namento ou no terminal, quanto mais próximo da sua capaci-dade, maiores as chances de gerar ineficiências. Hoje, os ter-minais de Santos estão abarrotados de contêineres, que esbar-ram nos limites de suas capacidades físicas, resultando em ine-

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ficiências brutais na forma de custos, tempo detrânsito de mercadorias, que são variáveis de com-petitividade para quem vende e compra.

Neste contexto, como entra o Programa Porto 24 horas?Entra como um instrumento de racionalização pa-

ra que se possa, assim que haja presença de carga, demaneira ininterrupta, receber as declarações de im-portação, de exportação, as de trânsito aduaneiro,processá-las de forma contínua 24 horas por dia, setedias por semana, de tal forma que se possa reduzir otempo de permanência de contêineres nos terminaisda Baixada Santista. Com isso, aumenta-se a eficiên-cia logística de toda região. Quando se retém cargas,há uma propensão de se reter veículos – para umamesma quantidade de carga a ser movimentada, secoloca mais veículos em circulação para fazer o mes-mo transporte. Se uma carreta teria condições de fa-zer duas viagens por dia, transportando dois contêi-neres, por causa da retenção, ela consegue fazer ape-nas uma viagem, necessitando duas carretas paratransportar dois contêineres. Hoje, a carreta esperapelo menos quatro horas para receber o contêiner. Es-se problema hoje começa a interferir na mobilidadeurbana da Baixada. Esse problema só será atenuadoquando se der ao sistema logístico ganhos efetivos deprodutividade, é preciso reduzir esse tempo de per-manência de maneira brutal. Caso se consiga dimi-nuir de 16,5 dias a permanência no terminal para 5,5dias. Cada vaga ocupada hoje por um contêiner teráum ganho de 200%. Mais de 95% das cargas que saemdos terminais são movimentadas por carretas e as ro-dovias estão extremamente sobrecarregadas, haven-do menos tráfego entre as 20h e 6h. (Leia mais sobre oPrograma Porto 24 horas na pág. 22)

completa 20 anos

Comitê de Usuários dos Portos do Estado de São Paulo (COMUS),órgão de consulta da Associação Comercial de São Paulo (ACSP),

coordenado por José Cândido Senna, iniciou os seus trabalhos em ou-tubro de 1993. A recomendação para a criação do fórum foi feita no con-texto das conclusões e recomendações do seminário "Modernizaçãoportuária – perspectivas para o setor privado", promovido pela enti-dade em São Paulo, no dia 15 de junho daquele ano. O evento procurouanalisar as repercussões da Lei 8.630/93, à época recém promulgada,que abriu espaço para as Associações Comerciais representarem inte-resses de proprietários e consignatários de mercadorias nos Conselhosde Autoridade Portuária (CAPs) e nos Conselhos de Supervisão dosÓrgãos Gestores de Mão de obra (OGMOs).

No início dos anos 2000, o COMUS incorporou os portos secos daRegião Metropolitana de São Paulo ao foco das suas atividades, pro-curando entender as suas interrelações com o Porto de Santos, naperspectiva de racionalização da logística porta a porto, na expor-tação, e porto a porta, na importação. Em face do apoio daquelas ins-talações na logística de exportações e importações por via aérea, oreferido fórum passou também a dar atenção a usuários dos Aero-portos Internacionais de Cumbica e Viracopos. O COMUS alterou asua denominação para Comitê de Usuários dos Portos e Aeroportosdo Estado de São Paulo.

O objetivo do Comitê é promover a disseminação do conheci-mento de questões relacionadas à eficiência dos portos e aeroportoslocalizados no Estado de São Paulo, no contexto de sistemas logís-ticos de exportadores e importadores, com vistas a tornar seus pro-dutos continuamente mais competitivos, por meio de reduções per-manentes de preços de serviços logísticos e de tempos das respec-tivas operações.

Outro objetivo é facilitar o acesso de exportadores e importado-res, usuários daquelas instalações, a dados e informações sobre ofuncionamento das mesmas para permitir o conhecimento da for-mação de custos de operadores logísticos e a sua repercussão nospreços por eles cobrados, bem como nos custos de estoques.

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O Programa Porto 24 Horas trará eficiêncialogística em toda a Baixada Santista.

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Zé Carlos Barretta/Hype

A urgênciado Porto 24 Horas

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José Cândido SennaEngenheiro civil e economista, pós-graduado em engenharia industrial, com MPApela Harvard Kennedy School. Coordenou projetos para o GEIPOT/ Ministério dosTransportes nas áreas portuária e de marinha mercante, bem como de transporteintermodal com foco no Programa "Corredores de Exportação", promovido peloMinistério. Foi professor do Programa de Mestrado em Engenharia de Transportes doInstituto Militar de Engenharia - IME, participando de trabalhos voltados à análise dedesempenho de terminais de contêineres. Há mais de 20 anos desenvolve, pelaConTrader Comércio Exterior, projetos e negócios de comércio internacional. Nomomento, coordena o Projeto EXPORTA,SÃO PAULO para a FACESP e a São PauloChamber of Commerce. É membro nato do Conselho Consultivo da ACSP, sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC e Conselheiro doConselho Superior da Indústria da Construção - CONSIC da FIESP. Desde a suacriação na ACSP, em 1993, é Coordenador Geral do Comitê de Usuários dosPortos e Aeroportos do Estado de São Paulo - COMUS.

Porto de Santos,abarrotado de contêineres

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1. Considerações iniciais

Em abril deste ano, a Secretaria Especial de Portos (SEP)da Presidência da República anunciou o ProgramaPorto 24 Horas, com vistas a facilitar operaçõesportuárias ininterruptas, 24 horas por dia nos sete dias

da semana, incluindo-se feriados. Na primeira etapa, foramcontemplados Santos, Rio de Janeiro e Vitória. Na segunda, ainiciativa se estendeu a Suape, Paranaguá, Rio Grande, Itajaíe Fortaleza.

Tais medidas foram anunciadas durante os debates da MP595, posteriormente transformada na Lei 12.815, principal refe-rência do marco regulatório portuário em vigor. Em face das in-certezas acerca do seu estímulo, em curto prazo, a novos empre-endimentos que proporcionem acréscimos de capacidade deportos, o Programa foi instituído em momento oportuno, pois asua efetiva implementação ensejará a ampliação da oferta deserviços portuários, notadamente de contêineres, por meio deganhos de produtividade de ativos existentes.

Com o formato anunciado, a implementação do Programa,em especial no complexo portuário santista, vai ao encontro deresultados de discussões promovidas, desde setembro de2007, pelo Comitê de Usuários dos Portos e Aeroportos do Es-tado de São Paulo (COMUS), da Associação Comercial de SãoPaulo (ACSP). Naquela ocasião, a decisão de incluir o Porto 24Horas em sua pauta foi tomada a partir da constatação de que

as operações de transporte e movimentação de contêineres decomércio internacional no complexo estavam com tempos detrânsito e custos crescentes em nível de "pagadores de contas",quais sejam importadores e exportadores.

A crise econômica mundial de 2008 repercutiu no Porto deSantos, que experimentou, no ano seguinte, declínio nos fluxosde contêineres da ordem de 16%. Esse arrefecimento encobriucertas ineficiências, retardando as decisões que só agora estãosendo tomadas, em virtude da extraordinária gravidade dosatuais gargalos logísticos. O nó no transporte e na movimenta-ção de contêineres, que alguns analistas vinham prevendo, tor-nou-se mais rígido no início de março último por causa da an-tecipação do escoamento para o exterior de parte da safra recor-de de grãos, da ordem de 190 milhões de toneladas, em especialde soja. Em Santos, o açúcar e o milho também apresentarammovimento relevante. Em face da expressiva predominância douso de carretas e caminhões no escoamento dessas cargas, a tra-dicional disputa por espaços em rodovias na área de influênciado Porto, bem como nas vias de acesso a seus terminais se agra-vou, com a formação de enormes filas de veículos, aguardandoinstruções para a descarga.

Neste trabalho, pretende-se mostrar a importância do re-ferido Programa para diminuir as ineficiências atuais e as quedeverão ser observadas na logística de contêineres no com-plexo portuário santista até o final desta década, quando no-vos projetos portuários e rodoviários poderão entrar em fase

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O nó no transporte e na movimentação decontêineres tornou-se mais rígido no iníciode março último por causa da antecipaçãodo escoamento da safra recorde de grãos

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operacional. Para tanto, serão examinados osfluxos de cargas da navegação de longo cursoe da cabotagem, bem como discutidas as ca-racterísticas básicas do transporte e da movi-mentação das mesmas na região.

Em seguida, serão destacadas as competên-cias da Comissão Nacional das Autoridadesnos Portos (CONAPORTOS), em especial naarticulação de órgãos anuentes de importaçãoe exportação, indispensável para a implemen-tação do Porto 24 Horas. A discussão do seuconceito e a maneira pela qual poderá contri-buir para a eficiência da logística de contêine-res será feita levando-se em conta os aspectoseconômicos e operacionais nos acessos terres-tres e marítimos ao Porto, bem como as inter-relações entre os chamados "terminais molha-dos", os retroportuários alfandegados e os por-tos secos de zona secundária aduaneira. A con-solidação de "usuários 24 horas" e os possíveisresultados da efetiva implementação do Pro-grama serão considerados no contexto do "des-pertar de um novo porto".

2. Fluxos de granéis sólidos e decontêineres pelo Porto de Santos

Os fluxos de granéis sólidos pelo Porto deSantos costumam, normalmente, apresentarcrescimento em março da ordem de 50% em re-lação ao mês anterior, evoluindo no restante doano até atingir o pico em agosto ou setembro,permanecendo em níveis menores até o finaldo ano. No período 2001/2012, a taxa de cres-cimento anual do embarque de grãos, conside-rando-se a navegação de longo curso e a de ca-botagem, foi de 11,3% (Gráfico 1).

No primeiro semestre de 2013, os embar-ques de grãos pelo cais santista atingiram21,1 milhões de toneladas, valor 30% supe-rior ao verificado em igual período do anoanterior, conforme mostra o Gráfico 2. A sojae o açúcar destinados ao exterior responde-ram por 84% desse total.

No caso dos contêineres, após o declínioobservado em 2009, os fluxos de exportaçãode unidades cheias da navegação de longocurso experimentaram crescimento anual de6,1% até 2012, enquanto os de importaçãocheios evoluíram à taxa de 18,3%, passando aresponder por 55% do total de unidadescheias de comércio internacional, em TEUs(twenty foot equivalent units - unidades equi-valentes a contêineres de 20 pés), de acordocom o Gráfico 3. Na cabotagem, os crescimen-tos anuais no mesmo período foram, respec-tivamente, de 7,2% e de 15,8% para as unida-

Gráfico 1

Gráfico 2

Gráfico 3

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des cheias embarcadas e desembarcadas, deacordo com Gráfico 4. Os contêineres cheiosembarcados foram responsáveis, em 2012,por 52% do total dessas unidades. Em basessemestrais, cabe registrar o crescimento de8,4% dos contêineres de importação cheios danavegação de longo curso, nos primeiros seismeses de 2013 comparativamente a igual pe-ríodo de 2012 (Gráfico 5).Na cabotagem, ocrescimento observado das unidades embar-cadas cheias foi de 19,6%, enquanto as desem-barcadas experimentaram declínio de 18,9%,no mesmo período (Gráfico 6).

Para ambas as navegações, é importante re-gistrar as taxas de crescimento bem superio-res às verificadas para a economia como umtodo. A de importação em contêineres prove-nientes do exterior está associada à deteriora-ção da balança comercial brasileira, com au-mento de importações e perda de competiti-vidade de produtos exportados. Por outro la-do, o forta lec imento da navegação decabotagem é influenciado pelo aumento doscustos rodoviários, ocasionado pela precarie-dade do estado de conservação de grande par-te das estradas, e pelo declínio das taxas reaisde juros que diminuem os custos financeirosde estoques em trânsito no mar, permitindoganhos de competitividade do transporte ro-do-hidroviário em relação ao rodoviário, nu-ma perspectiva porta a porta.

Os custos de transporte, manuseio e esto-cagem de mercadorias de importação e ex-portação pelo Porto, bem como seus temposde trânsito, que já estavam em elevação nosúltimos anos, tornaram-se ainda maiores e,em alguns casos, imprevisíveis. Cancela-mentos de contratos e pedidos de comprado-res estrangeiros ou a redução de preços deprodutos exportados em razão do não cum-primento de prazos de entrega trazem incal-culáveis prejuízos a exportadores e à ima-gem do País como fornecedor de produtosagrícolas e manufaturados. Concorrentesamericanos e argentinos estão-se aprovei-tando dessa situação para conquistar clien-tes de produtos brasileiros.

Acresça-se a essas ineficiências o brutaltranstorno a residentes e trabalhadores que,diariamente, se deslocam entre municípios daBaixada Santista, em especial os de Praia Gran-de, São Vicente, Santos, Cubatão e Guarujá. Háregistros de viagens recentes, no início da ma-nhã, entre o centro de Santos e a Vila Parisi, navizinha Cubatão, de mais de quatro horas deduração. Entre os atingidos pelo congestiona-mento de rodovias e vias urbanas estão traba-

Gráfico 4

Gráfico 5

Gráfico 6

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lhadores e executivos de empresas de serviços logísticos degranéis e contêineres, bem como os próprios servidores de ór-gãos anuentes de comércio internacional.

3. Aspectos básicos da logística de contêineresenvolvendo o complexo portuário santista

A conferência e o desembaraço de mercadorias importa-das em contêineres para a sua posterior liberação no comple-xo portuário santista são realizados no "terminal molhado"ou no retroportuário alfandegado. Na primeira categoria,existem quatro unidades já consolidadas, sendo três na mar-gem direita do estuário e um na esquerda. Neste ano, dois no-vos terminais estão entrando em operação, localizados em la-dos opostos. Para a liberação em terminal retroportuário, ocontêiner é deslocado ao amparo da Declaração de Transfe-rência Eletrônica (DTE). Uma vez liberadanessa região, a mercadoria segue para o seudestino como carga solta em carretas ou cami-nhões convencionais ou no próprio contêinerem que veio do exterior.

Para a liberação em porto seco e em CentroLogístico Industrial Aduaneiro (CLIA) de zo-na secundária, o contêiner deve ser removidodo "terminal molhado" num prazo de até 48 ho-ras após a presença de carga nesse local, a fimde que não incorra no primeiro período de ar-mazenagem. O deslocamento é feito em regi-me de trânsito aduaneiro, respaldado em De-claração de Trânsito Aduaneiro (DTA).

Na exportação, de um modo geral, a libera-ção é feita no próprio "terminal molhado", on-de os contêineres chegam provenientes de ins-talações de transportadoras ou de Recintos Es-peciais para Despacho Aduaneiro de Exporta-ção (REDEX). Em alguns casos, as unidades decarga já estufadas partem de portos secos ou deCLIAs de zona secundária.

Para um conjunto de 72 portos secos eCLIAs estabelecidos no País, 31 estão locali-zados no Estado de São Paulo, estando nove deles na Baixa-da Santista. São considerados, juntamente com as quinzeinstalações portuárias marítimas "secas" de uso público, ter-minais retroportuários alfandegados.

Para importadores, o tal conjunto apresenta facilidades deadequação do seu capital de giro às despesas de nacionaliza-ção de produtos, quando estes são admitidos no regime de en-treposto aduaneiro de importação. Com o fracionamento dolote importado e o início das vendas, o importador ajusta seufluxo de caixa realizando despachos parciais de importação.Na armazenagem, em face da forte concorrência entre opera-dores, as tarifas cobradas são significativamente menores doque as praticadas em "terminais molhados" e em outros locaisde zona primária, como aeroportos e pontos de fronteira.

Além de aliviar o congestionamento do complexo portuá-rio, a maior participação de portos secos e CLIAs em fluxosde produtos importados, sobretudo em contêineres, abre,

nesses locais, perspectivas de acesso de exportadores a uni-dades vazias, eliminando-se assim a parcela do custo detransporte das mesmas de um determinado depósito até assuas instalações. O contêiner cheio pode ser liberado dire-tamente para o porto em regime de trânsito aduaneiro, evi-tando-se despesas adicionais de movimentação e estoca-gem em áreas próximas da zona primária. Essa nova funçãode tais recintos contribuirá para a redução de "passeios" decarretas entre a Baixada e o interior do País, com menosemissões de CO2, na medida em que evite o retorno de uni-dades vazias para depots da região, as quais, subsequente-mente e com certa frequência, são requisitadas por exporta-dores para fazerem a estufagem de produtos nas suas pró-prias dependências.

A propósito, vale destacar que a base de importadores deSão Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato

Grosso, considerada a "área de influênciaprimária" do Porto de Santos, cresceu 27% de2008 a 2012, passando de 20,2 mil a 25,7 milimportadores ao fim do período, dos quais21,4 mil com domicílio fiscal em municípiospaulistas. Vários empreendedores passarama fazer negócios com produtos importados e,no afã de desenvolvê-los, certamente estãocuidando pouco da racionalização de seusprocessos logísticos, encarecendo-os desne-cessariamente. Por outro lado, a quantidadede exportadores naqueles Estados diminuiu13%, com as maiores quedas tendo sido ob-servadas nos estados de Goiás, Minas Geraise São Paulo, respectivamente, de 10,3%, 9,3%e 4,3%. Entre outros fatores, tal fato está as-sociado à retração da atividade econômicada Argentina e dos EUA e à perda de compe-titividade de produtos brasileiros relaciona-da à valorização do real frente ao dólar, bemcomo aos componentes do "Custo Brasil" emque as ineficiências da logística de importa-ções e exportações são certamente um dosmais relevantes.

A articulação operacional de "molhados" com aqueles recin-tos de zona secundária sob controle aduaneiro contribuirá so-bremaneira para descongestionar o complexo portuário, coma redução do número de viagens de carretas associada à dimi-nuição de fluxos de importação para terminais retroportuáriosalfandegados da Baixada, amparados em Declarações deTransferência Eletrônica (DTEs).

Admitindo-se que a quase totalidade das cargas de impor-tação tenham como destino pontos da área de influência pri-mária do Porto, a transferência das mesmas, nacionalizadas ounão, para locais mais próximos dos estabelecimentos de im-portadores permite que se evitem viagens de carretas entre osmolhados e os retroportuários, bem como entre estes e depó-sitos de transportadoras, aliviando o fluxo de veículos no com-plexo portuário. A escolha do local mais adequado para a odespacho de importação deverá ser feita pelo importador, as-sistido por seu despachante aduaneiro.

Na armazenagem,em face da forteconcorrência entreoperadores, as tarifascobradas sãosignificativamentemenores do que aspraticadas em'terminais molhados'e em outros locaisde zona primária,como aeroportos epontos de fronteira.

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4. A importância da CONAPORTOS

Coincidentemente, o lançamento do Programa Porto 24 Ho-ras ocorreu no momento em que os parlamentares avaliavam ediscutiam centenas de emendas à MP 595, já mencionada. TalMedida foi promulgada em dezembro de 2012 juntamentecom os Decretos 7.860 e 7.861, voltados, respectivamente, à re-gulamentação dos serviços de praticagem e à integração de ati-vidades de órgãos anuentes de importação e exportação. Comeste objetivo, foi criada a Comissão Nacional das Autoridadesnos Portos - CONAPORTOS, formada por representantes denove ministérios e da Agência Nacional de Transportes Aqua-viários (ANTAQ), estando previsto o funcionamento de co-missões locais em cada porto organizado.

A de Santos foi instalada no dia 8 de abril último, com a pau-ta voltada para o Porto 24 horas. Entre as competências da CO-NAPORTOS, cabe destacar a que diz respeito à promoção de"alterações, aperfeiçoamentos ou revisão de atos normativos,procedimentos e rotinas de trabalho que otimizem o fluxo deembarcações, bens, produtos e pessoas, e a ocupação dos es-paços físicos nos portos organizados, para aumentar a quali-dade, a segurança e a celeridade dos processos operacionais."Dessa forma, a Comissão poderá facilitar o descongestioname-no do complexo santista, valendo-se, entre outros, dos dispo-sitivos do Ato Declaratório Executivo COANA nr 6, de 2 deabril pp, que elimina a lacração pela Receita Federal de contêi-

neres que chegam aos portos brasileiros pelo transporte ma-rítimo, posteriormente submetidos ao regime de trânsitoaduaneiro rodoviário. A dispensa ficará condicionada à inte-gridade dos lacres de segurança aplicados à unidade de cargapelo transportador marítimo, que serão considerados, para to-dos os efeitos legais, cautela fiscal adotada por esse órgão.

Tal simplificação promoverá maior articulação de "termi-nais molhados" com portos secos e CLIAs de zona secundária,uma vez que, ao facilitar a remoção de contêineres para essesrecintos num prazo inferior a 48 horas, após a presença de car-ga nos "terminais molhados", evitará que a mesma incorra noprimeiro período de armazenagem nessas instalações. É im-portante destacar o impacto dessa articulação na redução dotempo de permanência de contêineres em pátios de "terminaismolhados" e retroportuários de contêineres, condição básicapara os tão almejados ganhos de produtividade. Em diversascircunstâncias, a cobrança da estocagem inicial inviabiliza atransferência de cargas para o interior.

A firme atuação da CONAPORTOS reforçará o ambienteinstitucional para a efetiva e permanente implementação doProjeto Porto 24 Horas, com as características, os custos e os be-nefícios a seguir discutidos.

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Para um conjunto de 72 portos secos eCLIAs estabelecidos no País, 31 estãolocalizados no Estado de São Paulo,

estando nove deles na Baixada Santista.

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5. Porto 24 Horas - conceitos e principaiscaracterísticas

O Porto 24 Horas significa a operação portuária ininterrup-ta, 24 horas por dia, nos sete dias da semana. No Brasil, o seuconceito está fortemente ligado a fluxos de contêineres, em es-pecial aos de comércio internacional. Em face da enorme im-portância do suporte de instalações retroportuárias na opera-ção dos chamados terminais "molhados", a iniciativa envolvetambém o retroporto. Esse aspecto, no caso do complexo por-tuário santista, é de suma relevância.

A concepção do Projeto evoluiu a partir da constatação deque, além de embarques e desembarques contínuos no cais, éfundamental que o restante dos terminais portuários e retro-portuários de contêineres (pátios, armazenagem, recepção eexpedição), opere sem interrrupções. O funcionamento plenodos mesmos e dos depósitos (depots) de con-têineres vazios, exige, entre outros, ajustes noshorários de atendimento de suas áreas admi-nistrativa e operacional.

Destaque-se ainda a necessidade da exten-são do expediente de órgãos anuentes, medidaanunciada no lançamento do Programa, com otrabalho sendo ampliado não só para períodosnoturnos, mas também nos fins de semana e fe-riados. Tal mudança agilizará a autorizaçãopara os navios iniciarem as operações de cargae descarga, ocupando menos tempo de cais.Com o aumento dos turnos de trabalho, as Ins-petorias das Alfândegas e as outras repartiçõesintervenientes registrarão e processarão maisrapidamente, em horários contínuos de traba-lho, as Declarações de Exportação (DEs eDSEs) e as Declarações de Importação (DIs eDSIs), bem como as Declarações de TrânsitoAduaneiro (DTAs). Estas, em particular, sãoessenciais para maior articulação operacionaldo complexo portuário com os portos secos eos CLIAs de zona secundária aduaneira. Taisprocedimentos agilizam os despachos de ex-portação e de importação, bem como a autorização do trânsitoa d u a n e i ro .

Essencialmente, o que está em discussão com o Porto 24 Ho-ras é a ampliação da oferta de serviços logísticos, sobretudo osportuários, por meio de ganhos de produtividade dos ativosfixos existentes, com o uso mais racional dos mesmos, ou pormeio de novos investimentos em infraestrutura física, tais co-mo terminais, equipamentos, sistemas de controle de tráfego,entre outros itens, com expressivas implicações ambientais.No complexo santista, a variável-chave para tais ganhos é otempo de permanência (dwell time) de contêineres, sobretudoos de importação cheios da navegação de longo curso em pá-tios de terminais "molhados" e retroportuários. A estimativapara 2013, desde a presença de carga no terminal "molhado"até a sua liberação na área de expedição é de 16,5 dias. Ele é de-terminante da formação de estoques ou empilhamentos cres-centes que esbarram nas capacidades estáticas de estocagem,

causando grandes ineficiências logísticas, como, por exemplo,os elevados tempos de atendimento a carretas para retiradas eentregas de contêineres.

Admitindo-se, por exemplo, que se possa reduzir o tempomédio para 5,5 dias, a capacidade dinâmica das áreas de esto-cagem daquelas unidades nos terminais aumentará 200%. Tra-ta-se, portanto, de um novo complexo portuário dentro doatual, com os mesmos ativos.

Sob a ótica de importadores e exportadores, os ganhos deprodutividade repercutirão favoravelmente em condicio-nantes básicos da rentabilidade de negócios e, por conseguin-te, da competitividade de seus produtos, pois reduzirão osseus tempos de trânsito, criando também condições para a di-minuição de preços de serviços logísticos de contêineres. Aconsecução deste objetivo exigirá ampla disseminação deconceitos e informações atinentes ao Porto 24 Horas junto a

todos os atores da cadeia logística de comérciomarítimo internacional, indicando-se a ma-neira pela qual esse Projeto poderá contribuirpara a superação total ou parcial das ineficiên-cias logisticas mencionadas.

6. Aspectos econômicos eoperacionais nos acessosterrestres ao Porto de Santos

Considerando-se a participação da ordemde 75% e 95% do modal rodoviário, respectiva-mente no transporte de granéis sólidos e con-têineres de importação e exportação, entre ocomplexo santista e pontos de origem e destinona sua área de influência, fica clara a importân-cia estratégica do complexo Anchieta/Imi-grantes, bem como das rodovias Padre Manoelda Nóbrega e Cônego Domênico Rangoni paraassegurar a fluidez dessas cargas. A relaçãofluxo de veículos/capacidade dessas estradasmostra que elas trabalham com baixos níveisde serviço em diversos horários de dias úteis,havendo reservas de capacidade no período

das 20h00 às 6h00 e em finais de semana comuns.O crescimento de estoques de contêineres provenientes

do exterior em pátios de "molhados", ocasionado pelo au-mento de seu tempo de permanência, vem expulsando des-ses terminais áreas originalmente destinadas à pré-estiva-gem de unidades de exportação, fazendo com que instala-ções do tipo REDEX e de transportadoras rodoviárias con-solidem papel de relevo no apoio às operações de embarquede contêineres. A intensificação do seu uso nos últimos anosvem acarretando a elevação de despesas de transporte e mo-vimentação de produtos, tais como estocagem, estufagem,handling in/out, transporte de ponta REDEX/terminal mo-lhado, entre outros itens, reduzindo a competitividade deexportadores. A elevação de mais de 50% das Terminal Han-dling Charges (THCs), nos últimos dois anos, contribuiu pa-ra agravar essa situação.

Acresça-se o fato de que a retenção de contêineres de im-

Essencialmente,o que está emdiscussão com oPorto 24 Horas é aampliação da ofertade serviços logísticos,sobretudo osportuários, por meiode ganhos deprodutividade dosativos fixos existentes,com o uso maisracional dos mesmos,ou por meio de novosinvestimentos eminfraestrutura física.

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portação cheios por longos períodos, circulando mais lenta-mente, deixa-os menos disponíveis para as operações subse-quentes de exportação, obrigando os transportadores marí-timos a manterem na Baixada estoques de unidades vaziasem níveis maiores do que os prevaleceriam caso a logísticafosse mais eficiente. Em consequência, os congestionamen-tos de áreas portuárias e retroportuárias, bem como das viasde acesso se agravam, afetando, inclusive, as mobilidades in-terurbana e urbana já destacadas.

Nesse contexto, a promulgação da Lei 12.619/12, conhecidacomo "Lei do Descanso ou da Soneca", exige que os tempos detrânsito rodoviário de contêineres sejam significativamente re-duzidos para evitar o encarecimento de fretes e a falta de car-retas. A título de ilustração, a aplicação de dispositivos da novaregulamentação no transporte de 150 km entre Santos e Jundiaípode representar a inviabilidade do retorno da carreta à origemno mesmo dia, diminuindo a oferta de transpor-te rodoviário, aumentando assim o represa-mento de cargas de importação na Baixada.

Admitindo-se não apenas o tempo médiode carregamento de quatro horas em terminal"molhado" ou retroportuário de contêineres,contado a partir da saída da carreta de insta-lações da transportadora na região, mas tam-bém as três horas de viagem acrescidas deuma hora para o descarregamento no destino,chega-se a um total de oito. As meias horas dedescanso do motorista exigidas a cada quatrode trabalho e a hora de refeição elevam o totala dez. Adicionando-se a viagem de três horasde regresso a Santos, chega-se a um tempo to-tal de treze horas, das quais três "extras", si-tuação insustentável dos pontos de vista tra-balhista e econômico.

Diante desse quadro, a transportadoraorientará seus motoristas a pernoitarem emJundiaí, retornando a Santos no dia seguinte.Num primeiro momento, essa medida provo-ca a diminuição da oferta de carretas. Em faceda pressão para o transporte de uma certaquantidade de contêineres em determinado período, as trans-portadoras tendem a aumentar a frota em circulação, agravan-do o congestionamento na Baixada.

Do ponto de vista dos "pagadores de contas", importadorese exportadores, é importante entender os elementos que for-mam os custos para operadores logísticos e a maneira pela qualsão, total ou parcialmente, repassados aos preços de serviços.Os fretes rodoviários aumentam por causa da elevação de cus-tos das transportadoras, subtraindo parcelas da competitivi-dade dos produtos.

Os problemas no transporte e na movimentação de contêi-neres ora apontados fazem o complexo portuário mergulharnum círculo vicioso de ineficiências logísticas crescentes, fatoque agrava as mobilidades interurbana e urbana na região. Onó logístico, de início mencionado, corre o risco de tornar-seainda mais agudo, sobretudo nos meses de pico do escoa-mento das safras de grãos.

7. Aspectos econômicos e operacionaisnos acessos marítimos e nos terminais"molhados" do Porto de Santos

No que tange ao transporte marítimo internacional de con-têineres, é importante ressaltar que a conclusão de obras deaprofundamento e alargamento não só de canais de acesso aportos brasileiros, mas também de suas bacias de evolução,custeadas pelo Programa Nacional de Dragagem, permitirá aoperação com embarcações de grande porte (super post Pana-max). Estas, de maior comprimento do que as anteriores, ocu-pam maiores extensões de cais, deixando, portanto, menosberços disponíveis para carga e descarga. Essa redução exigeganhos efetivos das pranchas (em toneladas ou contêine-res/navio.dia), com os berços trabalhando a taxas de ocupaçãoque assegurem, para os armadores, relações economicamente

viáveis entre os tempos de espera para atracar eos de atracação. Nos últimos anos, tais ganhosforam aparentemente insuficientes para ga-rantir essas condições, uma vez que foram ob-servados não apenas cancelamentos de escalasde navios, mas também a constante formaçãode filas para atracar.

Nesse contexto, cabe ressaltar que os esto-ques crescentes de contêineres em pátios determinais molhados, ocasionados pelo aumen-to do dwell time, na medida em que atinjam assuas capacidades estáticas, provocam inefi-ciências operacionais que se propagam até osberços, acarretando a diminuição do rendi-mento no cais. Pátios lotados comprometem aeficiência das transferências de contêineres docostado dos navios para as pilhas e destas parao costado, em operações "carrossel".

Destaque-se também o fato de as embarca-ções de maior porte trabalharem com consigna-ções (contêineres movimentados por atracação)maiores, requerendo, portanto, mais espaços li-vres na retaguarda dos berços, o que pressupõemaior celeridade na movimentação de contêine-

res nos chamados "terminais molhados". Em Santos, de 2001 pa-ra 2012, as consignações médias evoluíram de 461 para 978TEUs, devendo ter crescimento expressivo nos próximos meses,com a chegada de navios maiores que também deverão promo-ver maior concentração de contêineres destinados a outros por-tos brasileiros ou provenientes dos mesmos. A efetiva articula-ção das linhas da navegação de longo curso com as de cabotagempermitirá a consolidação de serviços alimentadores (feeder ser-vices), fortalecendo o papel concentrador do Porto (hub port).

A quantidade de berços e os espaços livres de estocagem decontêineres estão aumentando neste ano, com a entrada em ope-ração de mais dois "terminais molhados", sendo um localizado àmargem esquerda do estuário santista, e outro à direita. O plenofuncionamento deste depende da conclusão de obras de draga-gem, cujos prazos têm sido continuamente dilatados, em virtu-de de problemas ambientais para a remoção de sedimentos e dequestões operacionais com a empresa de dragagem. Ambos os

No que tange aotransporte marítimointernacional decontêineres, éimportante ressaltar quea conclusão de obrasde aprofundamento ealargamento não só decanais de acesso aportos brasileiros, mastambém de suas baciasde evolução, custeadaspelo Programa Nacionalde Dragagem, permitiráa operação comembarcações grandes.

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empreendimentos estão aumentando a capacidade de movi-mentação portuária que poderá ser rapidamente ocupada, casose confirmem as previsões de crescimento de cargas de impor-tação do exterior e da cabotagem, bem como a maior concentra-ção de contêineres em Santos, com origem ou destino em outrosportos brasileiros e nos de Montevidéu e Buenos Aires. Casoprevaleçam as intensas remoções de contêineres desembarca-dos da navegação de longo curso para terminais retroportuáriosalfandegados da Baixada, a rodovia Cônego Domênico Rango-ni e outras vias do complexo portuário deverão sofrer uma so-brecarga de fluxos de carretas, passando a operar com níveis deserviço ainda mais baixos.

A entrada em operação dos novos terminais, além de au-mentar a quantidade de itinerários rodoviários a serem percor-ridos pelos contêineres tanto de importação quanto de expor-tação, vai exigir maior flexibilidade e agilidade de importado-res, exportadores, agentes marítimos e outros prestadores deserviços para posicionar o contêiner no "molhado" onde o na-vio atracará. Vale lembrar que no contexto dos cerca de 20 "ser-viços combinados" (joint services) existentes, pelos quais os es-paços (slots) nas embarcações são compartilhados entre os "transportadores associados", vários são concorrentes entre siem certas áreas geográficas por eles atendidas no exterior.

É o caso, por exemplo, de um exportador com carga desti-nada ao Porto de Bangcoc, na Tailândia. Caso o seu contêinernão tivesse embarcado no navio programado para o dia 20 deabril último num terminal da margem esquerda, a melhor al-ternativa teria sido reagendar o embarque para o dia 24 de abrilem um dos terminais da margem direita. O pleno funciona-mento do compartilhamento de espaços exigirá maior fluidezentre as vias urbanas e interurbanas de ligação dos seis termi-nais, para evitar que o contêiner fique para ser embarcado napróxima viagem, acarretando ônus adicional ao exportador. Arodovia Cônego Domênico Rangoni, que já desempenha papelimportantíssimo na ligação de instalações logísticas de umamargem à outra, passará a ter papel crucial para a viabilidadedaqueles serviços marítimos.

8. Consolidação de "usuários 24 horas"

As experiências bem-sucedidas e ainda incipientes de ope-rações noturnas de recepção e expedição de contêineres, em"terminais molhados" de Santos, envolvem, principalmente,carretas e trens que transportam unidades de importaçãocheias de terminais de ambas as margens para pontos da área

de influência do Porto. As mercadorias liberadas em determi-nado dia seguem para destinos não alfandegados na madru-gada do dia seguinte. Essas operações, embora contribuam pa-ra o descongestionamento do complexo santista, ainda não sãoconsideradas ideais, pois estão pouco sincronizadas com achegada de navios e não são caracterizadas como trânsitoaduaneiro respaldado pela DTA.

À noite, por vários motivos, as operações rodoviárias tradicio-nais são relativamente pouco desenvolvidas. O principal diz res-peito à não percepção por embarcadores (importadores e expor-tadores) de vantagens pecuniárias associadas a deslocamentos emovimentação noturnos de cargas. Prêmios de seguro-transpor-te são mais altos para viagens à noite do que as realizadas duranteo dia. Estima-se que mais de 75% dos roubos de cargas no Paíssejam realizados num raio de 200 km da cidade de São Paulo, áreaque abrange a Baixada, com maior incidência durante a madru-gada. Diversas seguradoras impõem limites de valor aos benstransportados à noite para emitirem apólices de seguro.

Há ainda restrições de ordem operacional envolvendo flu-xos de exportação. Nas situações em que a estufagem de con-têineres é feita em Recintos Especiais para Despacho Aduanei-ro de Exportação (REDEX) ou em instalação logística de outranatureza, a ordem para a retirada do contêiner vazio do depó-sito designado pelo transportador marítimo, bem como o seuposterior transporte àqueles estabelecimentos, de um modogeral, é processada das 8h00 às 16h30, o que inviabiliza retira-das de unidades vazias após esse horário. A devolução de con-têineres vazios utilizados em importações também enfrenta asmesmas dificuldades. Os operadores de depósitos não perce-bem demandas noturnas por seus serviços e alegam terem con-dições de apenas suportar encargos trabalhistas e outros cus-tos referentes a períodos diurnos de dias úteis.

Para que fluxos noturnos de contêineres de importação e ex-portação se materializem, as ações deverão ocorrer tanto do ladoda oferta quanto do da demanda de serviços. A decisão gover-namental, ao anunciar o Programa Porto 24 Horas, de estenderos horários de atendimento de órgãos anuentes para períodosnoturnos, finais de semana e feriados, cria as condições iniciaispara os tais ganhos de produtividade em terminais "molhados"e retroportuários, ampliando, assim, a oferta de serviços. Em fa-ce das elevadíssimas "deseconomias" observadas em sistemaslogísticos envolvendo o complexo, o Estado estará bancando a"chegada da demanda", evitando as tão frequentes alegações deque "não há cargas 24 horas por que não há serviços contínuos",ou "não há serviços porque não há cargas".

Do lado da demanda, a atração de "importadores e expor-tadores 24 horas" será concretizada na medida em que estesp e rc e b a m :

(1) reduções nos tempos de trânsito de seus produtos e/ou(2) reduções nos preços de serviços logísticos numa pers-

pectiva porto a porta, na importação, e porta a porto, na expor-tação. A perspectiva de diminuição de custos financeiros de es-toques de mercadorias, num cenário que aponta para a eleva-ção dos juros reais nos próximos meses, deverá também serconsiderada tanto por importadores quanto por exportadores,que buscam continuamente ganhos de competitividade.

O pleno funcionamento docompartilhamento de espaços exigirá maiorfluidez entre as vias urbanas e interurbanasde ligação dos seis terminais, para evitarque o contêiner fique para ser embarcadona próxima viagem, acarretando ônusadicional ao exportador.

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Cabe destacar que as diferenças de tempos e preços de serviçosdiurnos vs. noturnos, que favoreçam as operações durante à noi-te, poderão, basicamente, ocorrer em duas situações:

(i) com a intervenção do Poder Público, nas esferas federal,estadual e municipal, tornando mais atraentes as operações no-turnas. Além da extensão do horário de atendimento de órgãosanuentes à noite, em finais de semana e em feriados, medidascomplementares deverão ser adotadas. Entre estas, destacam-sea cobrança de pedágios diferenciados, no horário das 20h00 às6h00, para carretas com origem ou destino em instalações docomplexo portuário; a vigilância ostensiva pela Polícia Rodo-viária e pela Polícia Militar em rodovias na área de influência doPorto; o monitoramento por câmeras de carretas e caminhõesnessas vias, bem como a iluminação pública nos acessos a ins-talações logísticas e em áreas adjacentes às mesmas. A liderançado Poder Público no sentido da efetiva implementação do "Porto24 Horas" ensejará a adoção de posturas e procedimentos deoperadores de terminais molhados e retroportuários, em espe-cial de suas áreas administrativas e operacionais, bem como dedepósitos de contêineres vazios, para que toda a cadeia logísticade contêineres opere harmoniosamente e de maneira ininter-rupta, 24 por dia nos sete dias da semana;

(ii) com a manutenção do "status quo" ou do quadro atualcom poucas intervenções, incapazes de promoverem reduçõesexpressivas de estoques de contêineres de importação cheios

da navegação de longo curso nos terminais já mencionados,acarretando custos e tempos de trânsito crescentes para usuá-rios. Neste cenário, os valores para essas variáveis em opera-ções diurnas atingirão níveis suficientemente altos para viabi-lizarem a movimentação e o transporte de contêineres à noite.Em tal contexto, o equilíbrio logístico do complexo portuárioestará seriamente comprometido, com riscos de grandes con-gestionamentos, com reflexos negativos na circulação não ape-nas de cargas, mas também de pessoas.

Em ambos os cenários, o papel do "usuário 24 horas", de-sempenhado por importadores e exportadores, será consoli-dado com a crescente demanda por serviços logísticos notur-nos na região. Sua oferta acompanhará a ampliação dos expe-dientes dos órgãos anuentes, bem como das áreas administra-tiva e operacional dos atores logísticos já mencionados.

Ressalte-se ainda o caráter "gerador de empregos" do Porto24 Horas na Baixada Santista e, possivelmente, na sua área deinfluência primária, em especial nos portos secos e nos CLIAsque trabalharão de maneira articulada com o complexo por-tuário. Estes deverão também ajustar seus horários de funcio-namento, ampliando-os para períodos noturnos, finais de se-mana e feriados.

Mau

ricio

de

Souz

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O pleno funcionamento docompartilhamento de espaços exigirámaior fluidez entre as vias urbanas e

interurbanas de ligação dos terminais

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Nos órgãos anuentes, os quadros de servidores deverão seraumentados na medida em que se esgotem as opções de rema-nejamento interno de pessoal e entre outras repartições do Go-verno Federal. As despesas referentes à contratação de pessoaldeverão ser analisadas sob o ponto de vista da sociedade emcotejo com os benefícios oriundos da efetiva implementaçãodo Porto 24 Horas, associados à ampliação da oferta de servi-ços logísticos e aos ganhos de competitividade de produtos im-portados e exportados em contêineres.

9. Conclusões - o despertar de um "novo porto"

A análise dos atuais gargalos logísticos no complexo por-tuário santista pode também ser feita numa perspectiva histó-rica. Os atuais recintos alfandegados no retroporto, compreen-dendo portos secos, CLIAs e Instalações Portuárias Marítimas"secas" de uso misto, evoluíram a partir do conceito dos Ter-minais Retroportuários Alfandegados (TRAs), implementa-dos na região nos anos 80. A decisão de instalá-los veio parasocorrer a administração portuária, à época vinculada ao Sis-tema PORTOBRÁS, que não tinha condições de investir na mo-dernização de suas instalações e de seus equipamentos, exigi-dos na movimentação e estocagem de contêineres. Tal artifíciofoi reconhecido como "amortecedor" (buffer) ou "válvula regu-larizadora" de fluxos para o cais e deste para fora do Porto. Asoperações tipo "carrossel", atualmente realizadas entre esseponto e o pátio de estocagem de "molhados", eram feitas dire-tamente com os TRAs.

Vale lembrar que, àquela época, já se reconhecia a importân-cia da racionalização da logística de contêineres, sobretudo osde exportação, como poderoso instrumento para assegurar acompetitividade de produtos brasileiros, em especial de ma-nufaturados. O tão almejado crescimento sustentado das ven-das ao exterior envolve a inserção de micro, pequenos e médiosempresários no comércio internacional, ampliando a base ex-portadora e, com isso, mitigando os riscos a ele inerentes. Aconsecução desse objetivo requer, inequivocamente, proces-sos e procedimentos logísticos não apenas racionalizadores,mas sobretudo inovadores.

O panorama do referido complexo hoje e nas próximas déca-das é outro. Por Santos, passam fluxos de importação e expor-tação da ordem de 26% do total nacional, em dólares. O Portoconcentra cerca de 40% dos contêineres daquele comércio porvia marítima, havendo espaço para crescimento dessa participa-ção na medida em que tenha condições de promover o desen-

volvimento de serviços alimentadores, com uma eficiente arti-culação das linhas da navegação de longo curso com as da ca-botagem e da grande cabotagem, abrangendo os portos de Mon-tevidéu e Buenos Aires. A consecução desse objetivo exigeganhos efetivos de eficiência na movimentação portuária e re-troportuária de contêineres,com a eliminação de viagens evitá-veis de carretas e caminhões no complexo portuário.

A redução do tempo de permanência de contêineres nos"terminais molhados" e retroportuários alfandegados, envol-vendo o registro e o processamento mais rápido de declaraçõesde exportação, de importação e de trânsito aduaneiro, para aimediata liberação de mercadorias e contêineres, é condiçãofundamental para tais ganhos. A consecução desse objetivo,em caráter de urgência, é de responsabilidade não apenas deórgãos anuentes, mas também dos atores privados da cadeialogística de comércio marítimo internacional de contêineres,compreendendo,entre outros, importadores, exportadores,seus despachantes aduaneiros, os próprios operadores de ter-minais, incluindo-se os de contêineres vazios

Nesse contexto, o atual modelo de forte articulação de termi-nais "molhados" com retroportuários alfandegados, com deslo-camentos apoiados nas mencionadas DTEs, deverá ser substi-tuído por maior participação de portos secos e CLIAs de zonasecundária. A intensificação de trânsitos aduaneiros, ampara-dos em DTAs, em especial para os produtos de importação comvocação para entreposto aduaneiro, será feita assegurando-se aliberdade de escolha de importadores acerca do local mais con-veniente para a conclusão de despachos de importação. O mes-mo princípio também norteará as decisões de exportadores arespeito de suas operações aduaneiras. Entre os pontos discu-tidos para os tão almejados ganhos de produtividade do com-plexo santista, essa mudança de modelo é das mais urgentes.

Acresça-se a esse quadro a necessidade de suporte à crescenteprodução de óleo e gás na Bacia de Santos, atividade que deman-dará, entre outros elementos, espaços em terra e instalações deacostagem de embarcações. As atividades turísticas, em plenaexpansão com o crescimento de cruzeiros marítimos, requer nãoapenas áreas e instalações portuárias, mas também vias de aces-so às mesmas. Tudo isso reforça o reconhecimento dos valiosís-simos ativos logísticos já existentes e do seu uso mais racional. Aimportância estratégica de espaços ainda disponíveis, cuja ocu-pação levará em conta a sua preservação ambiental, deverá serconsiderada na revisão do Plano de Desenvolvimento e Zonea-mento (PDZ) do Porto, em estreita harmonia com o planejamen-to estratégico da Região Metropolitana da Baixada Santista.

Em tal contexto, a efetiva implementação do Porto 24 Ho-ras, além de proporcionar o aumento da oferta de serviços lo-gísticos por meio de ganhos de produtividade das instalaçõesonde são realizados, consolidará o conceito de logística ca-denciada, em que as sucessivas operações de contêineres se-rão previamente agendadas com seus executores. A plena ar-ticulação de "terminais molhados" e retroportuários de con-têineres com aqueles de zona secundária proporcionará a re-dução de tempos de trânsito de produtos importados eexportados, condição fundamental para que se tornem maiscompetitivos. Essa iniciativa também criará condições para aredução de preços de serviços logísticos, contribuindo, as-

As atividades turísticas, em plenaexpansão com o crescimento de cruzeirosmarítimos, requer não apenas áreas einstalações portuárias, mas também vias deacesso. Tudo isso reforça o reconhecimentodos valiosíssimos ativos logísticosjá existentes e do seu uso mais racional.

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sim, para os tão almejados ganhos decompetitividade do comércio interna-cional brasileiro.

A formulação de políticas públicas queassegurem ganhos contínuos de produti-vidade de ativos logísticos existentes noPorto de Santos e na sua área de influênciaé um dos maiores desafios que os Gover-nos Federal, Estadual e dos municípiosda região têm para os próximos cinco a oi-to anos, período de maturação de novosemprendimentos de vulto em rodovias eferrovias, bem como no próprio Porto,tendo a Lei 12.815 como principal referên-cia do marco regulatório portuário.

Ao longo desta década, caso se mante-nha o "status quo" já caracterizado, o cená-rio é de agravamento de congestionamen-tos de terminais, sobretudo os retropor-tuários alfandegados, bem como das men-cionadas rodovias, comprometendo acompetitividade de produtos importadose exportados. A segregação de carretas ecaminhões carregados de grãos e contêi-neres nas faixas e no acostamento da Cô-nego Domênico Rangoni e os pré-agenda-mentos de descargas em terminais, bemcomo os estacionamentos reguladores defluxos que estão sendo instalados na re-gião são medidas meritórias, porém insu-ficientes para assegurar a fluidez perma-nente de volumes crescentes de cargas nospróximos anos,. mesmo admitindo-se a participação otimista,em 2017, de 30% das ferrovias no transporte de granéis sólidos econtêineres, com a conclusão dos projetos em andamento. Osbaixos niveis de serviço nas rodovias na área de influência doPorto em horários diurnos de dias úteis exigem o aproveitamen-to das suas capacidades no horário das 20h00 às 6h00, permitin-do que todo o complexo portuário funcione ininterruptamente,com as funcionalidades do Porto 24 Horas.

A implementação exitosa do Projeto ora discutido serviráde referência para outros portos brasileiros, chamando a aten-ção de autoridades e de atores da cadeia logística de contêine-res para a importância de medidas que ampliem a oferta de ser-viços por meio de ganhos contínuos de produtividade de ins-talações onde são realizados. No caso do complexo portuário

santista, em face das questões relacionadas às mobilidades in-terurbana e urbana, é fundamental o engajamento de toda apopulação que se desloca entre municípios da região e entreestes e os da Região Metropolitana de São Paulo.

O pleno funcionamento do Porto 24 Horas, com as caracte-rísticas ora discutidas e com o prévio agendamento de opera-ções em instalações logísticas, em especial nos "terminais mo-lhados", tanto de grãos quanto de contêineres, nos retroportuá-rios alfandegados e nos depósitos de unidades vazias, permi-tirá o desenvolvimento de logística sincronizada, alargandoas perspectivas de Santos vir a se tornar o grande Hub Port decontêineres do Atlântico Sul, com vigoroso desenvolvimentoda navegação de cabotagem, antiga aspiração da comunidademarítimo-portuária da região.

Mau

ricio

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Souz

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O pleno funcionamento doPorto 24 Horas permitirá

o desenvolvimento delogística sincronizada,

alargando as perspectivasde Santos vir a se tornarum grande Hub Port de

contêineres.

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34 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

John

Phi

llips

Texto publicado noDigesto Econômico nº 11

Outubro de 1945

O PORTO DE SANTOSE SUAS CRISES

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Inaugurado em 1892, o Porto de Santos passou por diversas crises, mas nãoparou de se expandir, atravessando todos os ciclos de crescimento econômico

do País e foi responsável pelo desenvolvimento do Estado de São Paulo.

John

Phi

llips

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36 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

As lições dopassado nunca devemser esquecidas. E ocongestionamento doPorto de Santos foiuma dura lição.Lembremo-nos dela,agora que os atuaisembaraços nos servemde advertência.E comecemos a agir,desde já, para afastaros perigos futuros.

Toda gente tem se preocupado, nestes últimos três meses,com a crise que está assolando o Porto de Santos, ocasio-nando prejuízos graves às classes produtoras de São Pau-lo, que efetuam por aquele porto toda a sua importação e

exportação. Os industriais, comerciantes e agricultores, tendo emvista a gravidade que tal crise, se se prolongar por algum tempo,trará para o desenvolvimento da produção paulista, já se dirigi-ram aos poderes públicos, que compreendendo a importância deuma solução imediata para o caso, enviaram a Santos o ministroda Viação e Obras Públicas, a fim de estudar, in loco, o melhor re-sultado de, pronta e eficazmente, normalizar tal situação.

É, pois, bastante oportuno, num momento em que há um in-teresse geral para solucionar a questão, fazermos um retros-pecto, embora perfunctório, do Porto de Santos e suas crisesanteriores. Um pouco da história desse cais e dos males por que

já passou servirá para uma melhor compreensão dos aconte-cimentos atuais, ao mesmo tempo em que essa vista pelo pas-sado poderá possibilitar uma solução mais adequada e dura-doura para a crise de agora, a fim de que, periodicamente, nãoestejamos, como até então, com o Porto de Santos em crise.

Antecedentes históricos

A primeira autorização para dotar o Porto de Santos de docas eoutros melhoramentos que estavam se fazendo urgentementenecessários foi concedida pelo Governo Imperial em agosto de1870, a uma companhia que seria organizada pelo Conde de Es-trela e o Dr. Francisco Praxedes de Andrade Pertence. Os conces-sionários não puderam, entretanto, sequer dar início às obras, ca-ducando, por isso, a autorização que lhes fora dada.

Arquivo/Estadão Conteúdo

Instalaçãopneumática no

Porto de Santos paradescarga de trigo;

ao fundo, edifício doMoinho Paulista

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Em 1879 foi nomeada pelo Governo Imperialuma comissão de engenheiros para estudar oPorto de Santos e fazer o "levantamento de suaplanta e do projeto das obras" necessárias. Tãonecessárias que a Associação Comercial de San-tos, em memorial dirigido ao Governo do Impé-rio naquele mesmo ano, dizia – "A construção deum cais simples é hoje uma questão vital, tantopara salubridade de nossa cidade, como para osinteresses do nosso comércio". Reconhecendo is-so, o governo abriu uma concorrência para a rea-lização das obras e mais tarde a Assembleia Pro-vincial de São Paulo solicitava que, dada a urgên-cia das obras, fossem elas confiadas ao próprioGoverno Provincial, o que, por decreto de 1882,que anulava a concorrência já citada, foi conce-dido. Como, porém, até 1884 as obras não tives-sem sido iniciadas, foi novamente autorizada asua realização por particulares. Esse fato causousérias apreensões e desconfianças à Câmara Mu-nicipal de Santos e à Associação Comercial local,e um jornal do tempo escrevia, refletindo essa in-quietação: "Por que razão a Província de São Pau-lo não leva avante as obras do Porto de Santos? Aconcessão lhe havia sido feita com favores excep-cionais, ela não fez as obras à custa de seus cofrese nem encontrou quem, com vantagem para o co-mércio e para o Governo, as executasse. É quenem o Governo Provincial e nem particularesqueriam comprometer, na realização daqueleserviço, grandes capitais que, aos olhos deles,não encontrariam justa compensação. A falta deconfiança no resultado da empresa foi, sem dú-vida alguma, o que arredou o Governo da Pro-víncia da execução desta obra!".

E em 1885, a Associação Comercial de Santospleiteava para o comércio a construção das obras:"Ninguém pode melhor que o comércio conhe-cer de suas próprias necessidades, e melhor pro-videnciar sobre a sua prosperidade, e sendo emdefinitivo que o mesmo comércio tem de pagar omelhoramento projetado, ninguém melhor doque ele pode encarregar-se de sua realização, as-sim como da distribuição das taxas, de modo anão serem atrofiadas as suas forças produtoras".

No ano seguinte, em um decreto assinadopor Antônio da Silva Prado, então Ministro daAgricultura, o Governo Imperial declaravasem efeito a concessão feita à Província em1882, em virtude desta ainda não ter dado co-meço à execução das obras de melhoramentosdo porto no prazo estabelecido. Nesse mesmoano, o engenheiro Domingos Sérgio de Sabóiae Silva é designado pelo Governo para fazerum exame do porto, apresentando em julhoum relatório sobre o qual se basearia a concor-rência aberta em outubro, vencida por José Pin-

Um pouco da história desse caise dos males por que já passou,servirá para uma melhorcompreensão dos acontecimentos

Reprodução

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38 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

to de Oliveira, Cândido Gaffrée. Eduardo P.Guinle e outros. E a 20 de julho de 1888, entreestes concessionários e o Governo Imperial re-presentado pelo Ministro Antônio Prado, foiassinado o contrato para as obras de melhora-mentos do Porto de Santos, que deviam iniciar-se dentro de seis meses a partir daquela data.

O Diário de Notícias, que se editava em SãoPaulo, comentou: "O cais de Santos vai serconstruído, o que equivale a dizer que a Pro-víncia vai possuir um dos maiores e dos maisalmejados dos seus melhoramentos", e o co-mércio e a imprensa em geral saudavam e con-gratulavam-se com Antônio Prado.

Justificava-se, na verdade, o entusiasmo rei-nante, de vez que a construção do cais e os ou-tros melhoramentos projetados não podiammais ser adiados. "O estado do porto", informa-va a Associação Comercial de Santos em 1887, "écada vez pior". Já não há ponto onde possa atra-car um navio sem encalhar, o serviço faz-se cominsano trabalho e dispêndio de dinheiro". E oJornal do Comércio, do Rio, referindo-se a essetempo, escrevia poucos anos depois: "O litoralapresentava aspecto repugnante. Nas marés al-tas, as águas cresciam até perto das ruas, e nasbaixas, ficava descoberta uma grande faixa delodo, a que se juntavam os detritos da cidade,produzindo emanações fétidas".

Os melhoramentos do porto

Em que consistiam os melhoramentos a serintroduzidos no Porto de Santos, e pelos quaistanto clamavam as classes produtoras da pro-víncia e a imprensa do País? O contrato entãofirmado esclarece esse ponto, informandoquais seriam as obras principais: "um cais eaterro entre o extremo da ponte velha da Estra-da de Ferro e a Rua Brás Cubas, estabelecimen-to de uma via dupla de um metro e sessentacentímetros de bitola para o serviço de guin-dastes e vagões de carga e a construção dos ar-mazéns precisos para a guarda das mercado-rias", guindastes hidráulicos, ao invés de guin-dastes a vapor, e mais uma "faixa de 20 metrosao longo do cais para depósito de mercadoriasdurante as operações de carga e descarga".

A extensão do cais foi fixada em 866 metros,mas já em julho de 1889 o Governo Imperial au-torizava o seu prolongamento por mais 122 me-tros, que se estenderiam em direção do rio Saboó.Em 1890, sob o Governo Provisório, novo decretopermitia que o cais se estendesse cerca de 844 me-tros, indo até o Paquetá. E dois anos mais tarde,outro decreto autorizava o seu prolongamentoaté os Outeirinhos, numa extensão de 2.848 me-

tros, perfazendo um total de 4.720 metros. Tantasalterações serão facilmente compreendidas, sa-bendo-se que o projeto sobre o qual estavam sen-do feitos os melhoramentos fora baseado noexercício de 1884-85, quando a importação eraapenas de mais ou menos 130 mil toneladas e aexportação não ultrapassava 80 mil, e ainda à ne-cessidade de conservação de profundidade, reti-ficação das sinuosidades do litoral etc.

A primeira crise - 1892

O ano de 1892 assinala a primeira grande cri-se do Porto de Santos, crise de grandes propor-ções e que causou vultosos prejuízos. As péssi-mas condições do porto, todo em obras (em fe-vereiro daquele ano só 260 metros de cais esta-vam prontos e foram entregues ao tráfego), afalta de recursos da Alfândega, incapaz de aten-der às necessidades normais do serviço, e aindaa São Paulo Railway, que diante do desenvolvi-mento, cada vez mais crescente, do movimentode importação e exportação, não podia satisfa-zer cabalmente os transportes exigidos. Tudo is-so contribuiu para que o porto se visse em situa-ção das mais lamentáveis, à qual deve ser acres-cida a febre amarela, que por esse tempo gras-sava por toda cidade em caráter epidêmico.

Em 1890, procurando corrigir as enormesdeficiências da Alfândega, o Ministério da Fa-zenda ordenara a construção de dois arma-zéns. Mas o que era isso em face das exigênciasde uma grande importação e de uma exporta-ção em grande desenvolvimento?

Estatísticas da época informam que a impor-tação de 1890 sofrera um aumento de 352% sobrea de 1880. A exportação de café em 1880-81 foi de1.804.388 sacas de 60 quilos; no decênio seguinte- 1889-90, atingiu a 2.041.503 sacas. Quanto ao va-lor oficial da importação, foi, em 1880-81, de8.563:667$389; em 1889-90 de 30.202:260$077.Diante dessa expansão, o que resolveriam doisarmazéns apenas e o cais todo em obras, e mais adeficiência do transporte ferroviário?

Para uma ideia exata da crise existente, estetrecho de um memorial da Associação Co-mercial de Santos, de junho daquele ano, ébastante esclarecedor: "Cálculos exatos mos-tram que fechado hoje o porto, a São PauloRailway teria serviço ininterrupto para umano no transporte de mercadorias existentesaqui!" E num apelo ao Presidente da Repúbli-ca, assim se exprimiam os comerciantes e in-dustriais de São Paulo, descrevendo a situa-ção do porto: "Sem cais e sem meios de descar-gas, assolado pela febre amarela e pela varío-la, com uma alfândega desmantelada, que

O ano de 1892assinala a primeiragrande crise do Porto deSantos, crise de grandesproporções e que causouvultosos prejuízos. Aspéssimas condições doporto, todo em obras (emfevereiro daquele ano só260 metros de caisestavam prontos e foramentregues ao tráfego), ea falta de recursos daAlfândega, incapaz deatender às necessidadesnormais do serviço.

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não possui um guindaste, que não possui armazéns para re-ceber e acondicionar mercadorias, que não possui pessoalsuficiente para conferir e despachar com a indispensávelpresteza, que não possui os mais necessários utensílios, ten-do a sua baía coalhada de navios que esperam a longos mesesque lhes chegue a vez de descarregar, tendo as ruas e praçasda cidade atulhadas de mercadorias de toda espécie, expos-tas ao tempo e à rapinagem, vendo morrer diariamente a tri-pulação dos navios em estadia, dizimada pela febre amarela,tal é o triste espetáculo que hoje oferecem o porto e a cidadede Santos aos olhos do mundo inteiro".

As mercadorias importadas não podiam ser regularmen-te descarregadas, e a Alfândega não tinha recursos paraabrigá-las. Esse serviço começou a ser realizado, então, pormeio de pontões, sendo os volumes depositados em alva-rengas, "em navios que se transformavam em armazéns flu-tuantes, conservando a mesma carga durante seis, oito, dez,doze meses", informa o Jornal do Comércio, do Rio, em ar-tigo de 1896 referente àquele tempo. Mas os pontões vierama faltar também, e as mercadorias eram depositadas ao lon-go da praia, sujeitas ao tempo e ao roubo. Sobre isso escreviaa Associação Comercial de Santos em seu memorial: "A ga-tunagem tem tomado súbito impulso; quadrilhas para talfim organizadas dão caça às mercadorias assim abandona-das, e a Polícia sente-se impotente para dominar essa novaindústria". A deficiência da São Paulo Railway acarretavamaiores dificuldades para a Alfândega e os meios de trans-porte entre esta e a ferrovia, cuja distância era de pouco maisde um quilômetro, tomou um caráter de verdadeira explo-ração. O carreto que normalmente custava de 1$000 a 2$000a tonelada, passou a ser cobrado 10$000 e 12$000.

A Associação Comercial, calculando em 800.000 toneladas asmercadorias que anualmente passavam pela cidade e cujo carretofora majorado de 10$000 por tonelada, orçava em 8 mil contos oprejuízo sofrido pelo comércio somente nesse transporte. Os pon-tões eram alugados por 15$000 até 350$000 e existiam cem deles

no porto. Tomando-se uma média de 200$000 para cada um, o to-tal atinge 7.3000:000$000, referente ao que pagava o comércio poresses armazéns flutuantes. É ainda o memorial da Associação Co-mercial de Santos que informa ter o frete subido de 50% a 100%, oque resultava num aumento de 13.000:000$000, sendo as estadiasestipuladas até em 400$000 diários. A soma dessas despesas:

Preços dos carretos - 8.000:000$000Locações de pontões - 7.000:000$000

Acréscimo de frete marítimo - 13.000:000$000Estadia de navios - 2.500:000$000

Total - 30.500:000$000

Isso dá bem uma ideia do gravame sofrido pelas classes pro-dutoras com a crise, isso sem mencionarmos os prejuízosoriundos dos roubos, estragos etc.

Serzedelo Corrêa, então Ministro da Viação e Obras Públi-cas foi verificar pessoalmente a situação do porto que tantoalarma estava causando. E quatro anos depois, falando na Câ-mara dos Deputados sobre o que vira, disse: "Era medonho oespetáculo de Santos, tudo quanto tinha fortuna, tudo quantoera comércio, tudo quanto tinha interesse radicado ao solo, àprodução e ao desenvolvimento de São Paulo, desanimadodiante da crise extraordinária que atormentava o porto, se re-signava ao prejuízo e abandonava riquezas colossais".

Entre outras providências que ordena para dar solução à cri-se, uma há que vai resolvê-la em grande parte: o prolongamen-to do cais, em curto prazo, até a ponte da estrada de ferro. Sen-do a crise, como já se depreendeu, sobretudo de transporte, fá-cil é verificar como essa providência viria, realmente, ajudarbastante na solução do impasse tremendo.

Progresso e desenvolvimento do porto

Passada a crise que assolara o porto em 1892-93, prossegui-ram-se os trabalhos da construção do cais e seus melhoramen-tos, e no princípio do século o desenvolvimento ali verificado

Arquivo/Estadão Conteúdo

Lançamento do primeiro bloco de pedra do trecho do cais Paquetá-Outeirinhos, colocado à entrada do canal da doca.

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era dos mais acentuados. Com o incremento da lavoura cafeeira,Santos estava quase a alcançar o movimento do porto do Rio deJaneiro, e os anos que vão de 1900 a 1909 apresentam os seguin-tes dados, de confronto com o total das tonelagens de registrodas embarcações de entradas e saídas nos dois portos:

1900 - Santos (1.726.837 ton.) - Rio (3.388.951 ton.)1905 - Santos (3.382.109 ton.) - Rio (5.939.559 ton.)1909 - Santos (6.678.354 ton.) - Rio (9.886.600 ton.)

E em outubro de 1910, mostrando que a tonelagem verifi-cada no Porto de Santos passara de 44% para 67% da registradapara o Rio. O Estado de S. Paulo informava que Santos era, já, oterceiro porto do continente, divulgando os seguintes dados:

Buenos Aires - 16.999.992 (ton.)Rio de Janeiro - 9.886.600 (ton.)Santos - 6.678.354 (ton.)

Recordando o valor da importação dos anos de 1880-81 e1889-90, atrás citado, com o valor da importação (direta e porcabotagem) do ano de 1909, temos os seguintes algarismos:

1880-81 - 8.563:667$3891889-90 - 30.202:260$0771909 - 158.207:242$000

Estes números demonstram como o porto vinha se desen-volvendo, a ponto de a imprensa preconizar que, não tardariamuito, ele igualaria o do Rio de Janeiro. E isso acontecia apesardas obras em andamento, e de inúmeros melhoramentos ne-cessários, pois em 1910 os armazéns gerais se encontravam em"fase embrionária", e ainda não estavam prontos alguns arma-zéns externos e de bagagem, além de estarem faltando apare-lhos mecânicos para transporte e embarque de mercadorias.

Não obstante em 1910, o Porto de Santos era bem diferente da-quele outro terrível de 1892. E o (jornal) Times, de Londres, lem-brando isso, escrevia em dezembro desse ano: "Aqueles que co-nheceram o Porto de Santos 18 ou 20 anos atrás, ficarão certamen-te maravilhados diante dos melhoramentos por que passou ... Acidade de Santos, vestígio malsão, em 1892, de tempos coloniais,tornou-se um conhecido porto de saúde".

A segunda crise

"Digno de apreciação se torna, cada vez mais, o movimentodeste porto", escrevia Leopoldo Bulhões sobre Santos, em 1910,no seu relatório de Ministro da Fazenda. E acrescentava: "O seuaparelhamento tem-lhe permitido, pontual e satisfatoriamente,atender ao comércio, à lavoura e às indústrias do Estado de SãoPaulo, às exigências e necessidades consequentes do seu maiordesenvolvimento". Na verdade, com o cais se estendendo desdea estação da estrada de ferro até os Outeirinhos, num total de4.800 metros, o Porto de Santos, embora com falta de vários me-lhoramentos, como acentuamos, era já capaz de despachar, emdez dias, um navio trazendo 12.000 toneladas de carga.

O movimento do porto é intensíssimo e quase que somenteo café é que lhe dá vida. Afonso de Taunay informa que o mo-vimento das estradas do "grão de ouro" em Santos, foi naque-le ano, de 8.296.508 sacas, das quais 6.835.122 foram embar-

cadas. Por esse ano e o seguinte acentuava-se a elevação docusto de vida, que resultou, em 1912, numa agitação das clas-ses operárias em Santos, da qual participaram os trabalhado-res do cais, exigindo melhorias de salários, de vez que, lê-seno manifesto publicado pela Federação Operária daquela ci-dade a 26 de maio: "nos lares proletários lavra a fome negra, amiséria horripilante". Uma primeira greve dos trabalhado-res, em junho, é logo terminada. Mas em agosto, e prosseguin-do até 10 de setembro, 2.100 homens que executavam o ser-viço de carga e descarga, permanecem inativos, no que entãose chamava uma "parede". Esta greve, e as que, em vários por-tos do mundo, se verificaram por essa época, e mais um ines-perado surto de importação e exportação, acumularam demercadorias a faixa do cais e dificultaram o embarque e de-sembarque das mercadorias. O ano de 1892 foi recordado. Ede fato era a segunda crise que assolava o Porto de Santos.

Para se ter uma ideia do surto a que nos referimos, demons-trativo da extraordinária capacidade econômica do Estado,basta lembrar que em 1911, a exportação total do País foi de68.838.892 libras esterlinas, das quais 32.140.966 couberam aSão Paulo. Quanto à importação, foi, para todo o Brasil, de52.796.016 libras esterlinas, cabendo ao Porto de Santos12.834.956. Estatísticas da época revelam, ainda, o seguinte:em 1913 a importação subiu o dobro do que fora em 1910, e aexportação, que em 1910 foi de 451.000 toneladas, sobe a663.000 em 1913. De 1910 a 1913, incluindo a cabotagem, é esteo movimento do Porto de Santos:

1910 - 1.265.805 ton.1911 - 1.577.480 ton.1912 - 1.879.807 ton.1913 - 2.203.608 ton.

Em outubro de 1912, a baía coalhada de navios à espera dedescarga, e o cais abarrotado de volumes, as Companhias deNavegação fazem um protesto judicial contra "o estado em quese encontra o porto", onde as mercadorias permaneciam "ex-postas ao sol, às chuvas, às tempestades, à espera de transpor-tes por espaço incalculável de tempo". Como em 1892, a novacrise preocupa o comércio, a lavoura e a indústria, e causa-lhesprejuízos consideráveis. A guerra, que começa no ano seguintee vai até 1918, é que resolve a crise do porto destes anos de 1912-13, de vez que baixando sensivelmente o movimento de expor-tação e importação, possibilita a regularização dos serviços.

Os anos da Grande Guerra

Os algarismos que apresentamos em seguida, referentes àimportação e exportação estrangeira de 1913 até o fim da con-flagração, em 1918, ilustram bem o enorme decréscimo que severificou no movimento do porto, durante aquele período:

1913 - 2.2003.000 ton.1914 - 1.550.897 ton.1915 - 1.550.578 ton.1916 - 1.475.503 ton.1917 - 1.223.000 ton.1918 - 1.159.000 ton.

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O pequeno movimento do porto, durante esses anos, foiaproveitado para a construção e adaptação de uma série deobras e melhoramentos que se impunham. Para depois daguerra esperava-se, também, que a importação e a exportaçãotomassem, de novo, um grande impulso, e era necessário que ocais estivesse aparelhado para esse desenvolvimento. Foramconstruídos, então, tanques para depósito de óleo combustí-vel, um frigorífico com capacidade para 1.800 toneladas de car-ne (essa guerra transformou o País de importador de carne emexportador) e vários armazéns externos. Para atender ao co-mércio do café, prejudicado pela falta de transporte marítimo,foram construídos seis armazéns com capacidade para 400.000sacas de café cada um, e montaram-se máquinas para imuni-zação de cereais. Outras obras, tais como calçamentos, linhasférreas etc. foram levadas a efeito nesse período em que o cais"ficou em parte vazio".

A grande crise de 1925

Os anos que se seguem à guerra e vão até 1924 foram paraSão Paulo anos de grande produção, de enorme expansão eco-nômica a lhe atestar um esplêndido progresso.

A imigração, que durante a guerra oscilou entre 15.000 e20.000 imigrantes por ano, foi a 44.500 em 1920, a 39.600 em1921, a 38.600 em 1922 e em 1923 atingiu 60.000. A produçãoagrícola, que em 1900 era de 1.127.838 toneladas, é dobradaem 1921, quando sobe a 2.244.420 toneladas. As cargas, portoneladas, que as estradas de ferro transportaram em 1919atingem a 4.584.540, e dez anos depois, em 1920, as estatísti-cas apresentam este número: 8.187.139. As fábricas de algo-dão, que durante o ano de 1915 produziram 121.589.728 me-tros de algodão, produzem em 1923 quatro vezes mais -488.380.092 metros. Esse progresso fabuloso, de que estamos

Arquivo/Estadão Conteúdo

O desenvolvimentoprogressivo domovimento de

importação-exportação,trouxe, como

anteriormente, umgrande acúmulo

de mercadorias parao porto. A crise que

ocorreu entre 1923-25foi uma das mais graves

da sua história.

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dando apenas alguns índices, não poderiadeixar de se refletir no Porto de Santos, prin-cipal escoadouro da produção paulista.Acrescente-se a isso a regularização do movi-mento importador naturalmente aumentado.E temos, nos sete anos que vão de 1918 a 1924,os seguintes algarismos, a atestar um novogrande movimento para o porto:

1918 - 1.159.546 ton.1919 - 1.588.544 ton.1920 - 1.690.508 ton.1921 - 1.475.531 ton.1922 - 1.643.197 ton.1923 - 2.066.428 ton.1924 - 2.274.083 ton.

O desenvolvimento progressivo do movi-mento de importação-exportação, trouxe, comoanteriormente, um grande acúmulo de merca-dorias para o porto. Esse congestionamento,que teve seu começo em fins de 1923, perdurouaté 1925 e foi, sem dúvida, o mais grave.

É verdade que o porto contava com váriosmelhoramentos de importância, realizados jus-tamente com o fito de atender a expansão que seprevira para o pós-guerra. Com 4.720 metros li-neares de cais construído e utilizável, o apare-lhamento para carga e descarga mostrava que,em comparação ao porto do Rio, o de Santos es-tava em melhores condições, pois que aquelepossuía 90 guindastes para 2.035.844 toneladas,segundo o cotejo feito em relação ao movimentogeral de mercadorias, em 1923. Quanto aos ar-mazéns, Santos possuía 26, abrangendo 55.611metros quadrados de área coberta, aos quais, in-forma Hildebrando de Araújo Góes, no seu "Re-latório" para a Inspetoria Federal de Portos, Riose Canais, deviam ser juntados mais 10.809 me-tros quadrados, "pois os pátios compreendidosentre os armazéns foram parcialmente cobertose estão sendo utilizados para abrigo e guarda demercadorias". À vista disso, concluía o mesmoengenheiro que "a crise de abarrotamento, ma-nifestada ultimamente no grande porto santis-ta, é a meu ver mera consequência da sensívelfalta de material rodante nas estradas de ferroque o servem". Não foi outra, igualmente, a opi-nião da Associação Comercial de São Paulo,nem dos seus estudos sobre o assunto, ao dizer:"o fator predominante, senão exclusivo da crise,foi a deficiência do serviço ferroviário entre San-tos e o interior". E a verdade é que normalizada asituação a 10 de setembro de 1925, verificou-seque no primeiro semestre desse ano a tonela-gem das mercadorias importadas foi superiorem 36% à de 1924, e esteve 43% acima do segun-do semestre de 1924.

Infelizmente não possuímos maiores dadossobre essa crise, o certo é que o congestionamen-to do Porto de Santos nesses anos de 1923 a 1925ocasionou um prejuízo de 300.000 contos, co-menta o estudo preliminar mandado realizarpela Associação Comercial na época, "mais doque o capital necessário para a construção de umnovo porto e de uma nova estrada de ferro".

O congestionamento de 1945

O ano de 1929 assinala nova crise do porto,mas sem consequências graves. Foi um dosmuitos momentos em que o cais começou a serabarrotado de mercadorias, mas cuja soluçãofoi imediata, ou quase. Já a crise deste ano de1945, se não for prontamente solucionada, po-derá ter consequências profundas na econo-mia do Estado. Como em 1914-18, este períodode guerra foi de relativa calma para o Porto deSantos, tendo baixado bastante o seu movi-mento. Mas já a paz está preconizando umgrande desenvolvimento e uma grande expan-são para os anos próximos. E como nos seteanos que vão de 1919 a 1925, a nova fase que seinicia agora será, sem dúvida, de grande traba-lho e grande produção.

A crise portuária que estamos presenciando,segundo o depoimento de várias firmas e agên-cias de vapores ouvidas pela imprensa, se devea dois motivos principais, um dos quais, comosempre, é a falta de vagões da estrada de ferropara levar ao interior a mercadoria descarrega-da. O segundo foi a diferença de taxas de arma-zenagem entre São Paulo e Santos. EnquantoSão Paulo viu bastante alteradas essas taxas,Santos manteve-se nos preços de sempre, don-de resulta a preferência que os donos das mer-cadorias importadas têm, de deixá-las nos ar-mazéns do porto. Essas, as duas razões princi-pais, às quais se podem aduzir várias outras, co-mo número insuf ic iente de doqueiros(recentemente houve uma greve no porto, quesem dúvida incidiu no atual congestionamen-to), falta de equipamento e um visível desequi-líbrio, como notou um repórter que lá esteve fa-zendo observações, entre os serviços da estiva eos das docas. Com referência à incapacidade detransporte das ferrovias que servem o porto, no-tadamente a São Paulo Railway, informa Her-milo G. Pacheco, em recente reportagem para aFolha da Noite, desta Capital, que o movimentogeral do porto sobe a 12.000 toneladas diárias,sendo necessários, então, para o respectivo es-coamento, cerca de 800 vagões. Ora, em média aSão Paulo Railway fornece apenas 300 vagõesdiários, que comportam apenas 3.600 tonela-

A crise portuáriaque estamospresenciando, segundoo depoimento de váriasfirmas e agências devapores ouvidas pelaimprensa, se deve a doismotivos, um dos quais,como sempre, é a faltade vagões da estradade ferro para levar aointerior a mercadoriadescarregada.O segundo foi adiferença de taxas dearmazenagem entreSão Paulo e Santos.

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das. É fácil prever como o excesso de volumes acumulados dia-riamente causa, rapidamente, o congestionamento do porto.

Conclusão

A série de crises sofridas pelo Porto de Santos, e que acaba-mos de narrar, mostram como a todo o momento está aquele caissujeito a um congestionamento cujas consequências redundamem prejuízos consideráveis. Até então essas crises têm sido re-solvidas de emergência, que afastando o perigo momentâneo,não o isenta de tornar a aparecer daí a seis meses ou um ano. Ora,tendo-se em vista o crescente desenvolvimento industrial donosso Estado, o Porto de Santos em estado permanente de vés-pera de crise se constitui um sério embaraço e mesmo umaameaça ao nosso progresso. Através de todas as crises por elesofridas, poder-se-á verificar que as causas sempre foram – pelomenos as causas maiores – a insuficiência do tráfego ferroviário.Aí, sem dúvida, está o fulcro da questão. Mas a regularização dofornecimento de vagões do cais será suficiente para atender aogrande desenvolvimento que se espera para esses anos de pós-guerra? Quando da crise de 1925, falou-se muito no aparelha-mento do Porto de São Sebastião, que serviria como subsidiárioao de Santos. É, realmente, uma solução interessante? O exameda situação das ferrovias e do Porto de São Sebastião foge aosobjetivos desta exposição sobre o Porto de Santos e suas crises.Contando as dificuldades por que tem passado o nosso princi-

pal escoadouro, quisemos mostrar apenas os perigos a que es-tamos constantemente expostos, se não forem tomadas provi-dências sérias no sentido de que para o futuro essas crises ces-sem de vez. Quanto à solução delas, pelo melhor equipamentodas estradas de ferro ou pela abertura do Porto de São Sebastião,constituirá um tema para um próximo estudo.

Bibliografia

Sobre as questões do Porto de Santos, é bastante numerosa, já,a bibliografia existente. Neste estudo foi de grande e essencialutilidade o trabalho do Sr. Hélio Lobo sobre "Docas de Santos",Rio, 1936, do qual extraímos os principais dados e informaçõesque publicamos. Foram consultados, ainda, os seguintes auto-res e publicações: Alfredo Lisboa - "Crise do Porto de Santos"; "Asolução das crises do Porto de Santos", estudo elaborado pelaAssociação Comercial de São Paulo; "A crise do Porto de San-tos", estudo preliminar elaborado pela Associação Comercial deSão Paulo; Hermilo G. Pacheco, "Desorganizado o Porto de San-tos", in Folha da Noite, de 10/07/1945; Relatórios das diretoriasda Associação Comercial de Santos e São Paulo, referente a vá-rias épocas; Boletim do Departamento Estadual de Estatística,nº 8, de agosto de 1944; Hildebrando de Araújo Góes, Relatórioapresentado ao Ministro da Viação, in Diário Oficial da União,de 12/01/1024; O. Weinschenck, A crise do Porto de Santos;Afonso de E. Taunay, História do Café no Brasil, vol. 11º.

Arquivo/Estadão

Ao longo de suahistória, o Porto deSantos passou por

diversas melhorias eampliações para

atender a demanda.Na foto, construção do

primeiro armazémdo porto paulista.

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As aparênciasenganam

Um dos pilares do regime de metas inflacionárias é acomunicação. O Banco Central do Brasil produz to-dos os meses centenas de páginas e de tabelas cominformações sobre a economia e detalha todos os

pormenores das decisões do Copom: o comunicado após a reu-nião, a ata na quinta-feira seguinte, o relatório de inflação tri-mestralmente e a nota à imprensa de política monetária e ope-rações de crédito do SFN todos os meses, além de pesquisas,apresentações e entrevistas.

Analistas e jornalistas dissecam esse vasto material para ava-liar o preço do dinheiro, seu custo e sua dinâmica ao longo dotempo. É uma tarefa importante para que todos possam fazerescolhas intertemporais mais seguras. Entretanto, o resultado éimitado, não por falha dos diagnósticos, mas em razão de queinformações fundamentais não são divulgadas com clareza.

A mais essencial de todas é a meta de inflação, um mistério.Com certeza não é 4,5% tal qual definido pelo Conselho Mo-netário Nacional. As estimativas não convergem para esse nú-mero nos próximos cinco anos. Pelo contrário, a dispersão dasprojeções aumenta em vez de diminuir quando se estende ohorizonte, refletindo a incerteza sobre a evolução dos preços.Há especulações de que a meta pode ser o teto da banda, 6,5%,ou um valor inferior ao do ano passado, 5,84%, ou ainda umnúmero redondo, como 5,5% ou 6,0%. Fica a indagação.

Além da indefinição, há uma percepção de que o regime demetas de inflação foi trocado para outro de metas de IPCA. Oíndice produzido pelo IBGE, que deveria ser tratado como umreflexo da evolução dos preços na economia como um todo é oobjeto de ações voltadas para controlar seu resultado, como ocongelamento de tarifas de ônibus ou adicionar mais etanol àgasolina sem reduzir seu valor. O indicador parece ter se trans-formado em um objetivo da política econômica. Para baixar afebre do paciente, esfria-se o termômetro.

Nas informações sobre o crédito, ocorre algo semelhante. Maisdados e mais abrangentes foram adicionados na nota à imprensa,como os direcionados, algo louvável. Entretanto, deixaram foraum essencial para entender a dinâmica dos financiamentos, que éa adição das taxas dos cartões. O preço de uma modalidade que éusada por menos de 1% dos financiamentos foi incluído, mas fi-cou fora outro que representa 75% dos tomadores.

Uma distorção que permanece é que para o cálculo da mar-gem (spread) e da taxa média, computa-se o valor médio pon-derado pelas concessões do dia, o que é corretíssimo. Entretan-to, para chegar à média mensal do sistema financeiro, utiliza-se o saldo de crédito existente.

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45JULHO/AGOSTO 2013 DIGESTO ECONÔMICO

Roberto Luis TrosterSócio da Troster & Associados,é doutor em Economia pelaUSP, foi economista-chefe daFebraban e da ABBC eprofessor da USP e da PUC-SP

Ilustrando, supondo que há dois produtos apenas no sistema,um financiamento imobiliário de R$ 900,00 já concedido, que custe10% ao ano, e nesse mês, há apenas uma concessão de cheque es-pecial de R$ 100,00 com juros 110%. Usando-se essa metodologia, ataxa média será de 20% ((900x10+100x110)/(900+100)), entretantousando a ponderação de concessões será de 110%. Fica a dúvida dequal é a mais correta.

Na nova nota à imprensa, além dos avanços, também se deveregistrar um retrocesso. É a exclusão da tabela "Saldos por va-lor". Faz diferença, e muita, a evolução dos financiamentos emcada segmento. O impacto de uma operação de um bilhão dereais é diferente que o de um milhão de financiamentos de milreais cada. O crédito para o pequeno tomador vinha apresen-tando uma contração real forte, um problema grave que omitira informação não resolve.

Há mais confusão com taxas. Em janeiro, a Anefac calcula a taxamédia para a pessoa física em 88,6% e o Banco Central em 24,6%.Essas diferenças tiram credibilidade das duas instituições e dificul-tam o trabalho dos que acompanham a evolução do crédito.

Outra concepção equivocada na transparência ocorre com o ca-dastro positivo. Foi aprovado e pode ter uma contribuição impor-tante na redução das margens de crédito e da inadimplência. Masserá tênue, muito aquém da potencial, em razão do tratamento as-simétrico dado ao credor, com muitas informações, e ao devedor,com poucos esclarecimentos. Uma percepção melhor do financia-do induz a decisões mais prudentes.

O ponto do artigo, é que há espaço para aprimoramentos na di-vulgação de informações. Abundam evidências empíricas mos-trando que mais transparência tem efeitos benéficos no crédito e napolítica de juros. A credibilidade do Banco Central tem um viés de-flacionário, aumenta a potência da política monetária, melhora aprevisibilidade de decisões dos agentes econômicos e induz a de-cisões mais criteriosas na tomada de financiamentos.

A literatura especializada prova que mais transparência reduz ainflação e a inadimplência. São dois problemas que afligem a eco-nomia brasileira. Um terceiro, mais grave, é a complacência. A ca-da dia que passa, a inflação torna-se mais resiliente e a dinâmica docrédito mais anêmica. É hora de mudar.

O quadro econômico é propício para alterações de rota: a eco-nomia está crescendo pouco, mas crescendo, há espaço para re-duzir a taxa neutra, a pressão inflacionária é controlável, há ca-pacidade ociosa na oferta de crédito e, o mais importante, o go-verno tem apoio popular e está determinado a reduzir os juros eaumentar o volume de financiamentos.

O que fazer? O primeiro passo é "Pão, pão, queijo, queijo". Aincerteza é mais prejudicial que os juros para decisões de inves-timentos e financiamentos.

Um complemento é fazer ajustes na meta de inflação e na banda.Subir a meta para 5,5% este ano e definir a dos próximos seis anosdecrescendo 0,5% cada ano, até chegar a 2,5%. Isso deve ser acom-panhado com um estreitamento da banda, para 1,5% este ano, re-duzido para 1,0%, a partir de 2016. O afunilamento da faixa reforçaa credibilidade do BC e a sinalização de que em quatro anos a in-flação ficará abaixo dos 4,5% é importante para romper o piso dasexpectativas que está se cristalizando.

Enfim, mais transparência não vai eliminar todos os proble-mas da política monetária e do crédito, mas ajuda.

Luludi/Luz

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46 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

ESPIONAGEM,DENÚNCIA

e TRAIÇÃOCarlos Ossamu

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Edward Snowden, ex-analista de inteligência daCIA que revelou ogigantesco programa deespionagem dos EstadosUnidos. Acusado de roubode informações e traiçãopelo governo americano,Snowden se encontraatualmente na Rússia.

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47JULHO/AGOSTO 2013 DIGESTO ECONÔMICO

No dia 5 de junho, o jornal britâni-co The Guardian publicou umareportagem sobre um gigantes-co programa de espionagem dos

Estados Unidos, afirmando que a NSA - Natio-nal Security Agency coleta informações telefô-nicas e de e-mails de milhões de americanos.Dois dias depois, o jornal americano TheWashington Post publicou outras informaçõessobre esse programa de vigilância, que supos-tamente tinha a colaboração de empresas comoMicrosoft, Facebook, Google e outras empre-sas do Vale do Silício. A fonte de ambos os jor-nais foi Edward Snowden, 29 anos, ex-analistade inteligência que prestou serviços terceiriza-dos para a NSA.

Depois das reportagens, Snowden foi acu-sado de roubo de informações e traição. Fugiupara Hong Kong e depois para a Rússia, ondeficou mais de um mês na zona de trânsito doaeroporto Sheremetyevo antes de receber umvisto temporário de permanência no país. Seas denúncias de Snowden tivessem sido feitasantes de 11 de setembro de 2001, talvez ele fos-se tratado como um herói, mas hoje ele é pro-curado como traidor. Veja nesta entrevista aopinião do ex-ministro e embaixador RubensRicupero sobre o caso Snowden e a espiona-gem americana.

Digesto Econômico - Em sua opinião, como seriamtratados hoje pelo governo americano casoscomo o do Pentagon Papers (1971) e Watergate(1972), em que informações secretas vazarampara a imprensa?

Rubens Ricupero - O ataque de 11 de se-tembro de 2001 alterou de maneira significa-tiva a psicologia do povo americano. Introdu-ziu um elemento de insegurança que os ame-ricanos não tinham em relação ao exterior. OsEUA sempre se orgulharam de ser um paísprotegido das grandes guerras por causa dadistância, dos dois oceanos, eles nunca sofre-ram uma invasão de outro país. Isso acaboucom os acontecimentos do ataque terrorista.Acho que isso explica o fato de a reação da opi-nião pública americana não ser a mesma da-quela época. Na ocasião, como os movimen-tos contra a Guerra do Vietnã e ao presidenteNixon eram fortes, o próprio Congresso e aopinião pública condenaram o uso desses mé-todos de espionagem. Hoje, há uma atitudetolerante em relação a isso. Acham, no fundo,que é um mal necessário.

Qual a sua avaliação em relação às denúnciasde Edward Snowden?

É curioso ver que as revelações atuais deEdward Snowden atingem uma agência que ti-nha sido muito investigada nos anos 70, no cur-so dos acontecimentos após o Watergate. De-pois que Nixon renunciou, houve uma reaçãotão forte contra as manipulações, gravações, asoperações clandestinas, que o senado america-no instalou uma comissão. Nesta investigação,em que os funcionários americanos foramobrigados, sob juramento, a revelar o que fa-ziam essas agências, vieram à tona muitas re-velações que hoje já foram esquecidas. Porexemplo, se revelou que os EUA tinham maisde 12 agências de inteligência de diversos ta-manhos, mas que essa agência em particular, aNational Security Agency (NSA) era de longe amaior, com o maior orçamento. Revelou-setambém que o tamanho desta agência se deviaao fato de que ela se ocupava estritamente dascomunicações telegráficas e telefônicas, isso hámais de 40 anos.

Quando o senhor era embaixador nos EUA, ogoverno brasileiro sabia desse esquema deespionagem?

As investigações do Congresso revelaramque a NSA armazenava cópias de todos os te-lefonemas e comunicações por telégrafo e telexde todas as missões estrangeiras nos EUA – emalguns casos eles quebravam o código, quandointeressava, outros eles guardavam o materialpara que, se houvesse necessidade no futuro,tivessem material suficiente para quebrar o có-digo. Nessa época eu era chefe do setor políticoda embaixada do Brasil e escrevi relatóriosalertando o Itamaraty que os americanos siste-maticamente violavam a comunicação de to-

Rubens Ricupero:Todos os grandespaíses praticamespionagem e

é provável que oBrasil tenhaagências que

façam o mesmo.

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48 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

das as embaixadas e consulados. Exatamente como agora, elesusavam da complacência de empresas privadas de manuten-ção dos sistemas de comunicação e agentes deles, com unifor-mes e credenciais dessas empresas, entravam nas embaixadaspara colocar dispositivos de escuta e de transmissão. Às vezes,quando havia reformas nas embaixadas, eles faziam essas ins-talações para violar os cofres. Tudo isso está nos arquivos, nãohá nenhuma novidade, foi há 40 anos. Em 1991, voltei aos EUAcomo embaixador e tinha como pressuposto que todas as mi-nhas conversas telefônicas ou telegráficas eram violadas. Eunuca disse ou escrevi nada que pudesse causar embaraços aoBrasil, mas às vezes eu usei deliberadamente conversações te-lefônicas para passar certos recados aos americanos que eu nãopoderia fazer diplomaticamente. Eu nunca tive ilusões, sabiaque eles espionavam tudo.

Espionagem é uma das práticas mais antigas da sociedade,não é mesmo?

Todos os grandes países praticam espionagem e é provávelque o Brasil tenha agências que façam o mesmo em relaçãoaos países vizinhos. Claro que ações dessa natureza podemviolar leis internacionais, a Convenção de Viena, as relaçõesdiplomáticas, mas seria uma ingenuidade imaginar que al-gum grande país no mundo, ou nem tão grande assim, nãofaça da prática da espionagem uma coisa corriqueira. O quemudou foi a dimensão, com o fato de que hoje em dia, com ainternet, com as telecomunicações e os satélites, aumentoumuito a capacidade de espionar outros países. Os EUA e ou-tros países têm satélites que fotografam o Brasil o tempo todo,eles têm informações em tempo real sobre o que aconteceaqui. Ninguém pode ter a ilusão de que está imune a isso. Issosempre houve, mas o que é diferente agora é que, além de es-pionar governos e empresas, agora estão espionando indiví-duos, suspeitos de terrorismo.

Em 2010, o site Wikileaks publicou diversos documentosconfidenciais americanos; este ano, o técnico em tecnologiaEdward Snowden denunciou um gigantesco esquema deespionagem dos EUA envolvendo pessoas no mundo todo. Asdenúncias não estão ficando mais frequentes?

Os americanos chamam esses denunciadores de "soprado-res de apito" (whistle blower), o sujeito que sopra o apito paradenunciar alguma coisa ilegal. A primeira lei americana esti-mulando funcionários a revelarem atos ilegais vem da décadade 1790, como também a primeira lei sobre traição, que é o Al-lien Act (1798), que vem da época do segundo presidente ame-ricano, John Adams. Eles sempre estiveram presentes, de umlado o desejo de estimular a denúncia de que o governo estáengajado em atividades ilícitas, de outro lado, a tendência dereprimir isso, acusando o denunciador de ajudar o inimigo, detraição, ao revelar segredos. Imaginar que se possa eliminar is-so é também uma fantasia. Estarão sempre presentes, em todosos países, em todas as épocas – de um lado o desejo de defenderos direitos de privacidade, e de outro, as exceções em nome dasegurança, da ordem pública, do bem coletivo, do combate aoterrorismo, do combate à lavagem de dinheiro. Isso a gente vêem inúmeras manifestações.

O senhor poderia exemplificar?O combate à lavagem de dinheiro é um exemplo. No Brasil

existem regras que em outros países seriam consideradas in-vasivas, por exemplo, qualquer operação de mais de R$ 10 mil,o banco tem de comunicar ao Coaf (Conselho de Controle deAtividades Financeiras). Isso, na Inglaterra ou EUA, seria con-siderado um absurdo, mas no Brasil se faz isso por conta da cor-rupção, da lavagem de dinheiro, e curiosamente ninguém re-clama. O que se reclama é que, apesar disso, o Coaf não foi ca-paz de detectar fatos como o Mensalão. Este é apenas um dosexemplos dos muitos casos que, em favor de um valor, que nes-te caso é o combate à corrupção, à lavagem de dinheiro, se li-mitem certos direitos à privacidade.

E quanto à violação de correspondências e e-mails?A Declaração dos Direitos Humanos tem o artigo 12, que

garante a todo indivíduo, que a sua família, sua casa, a sua cor-respondência não sejam violadas por razões ilegais e arbitrá-rias. Este mesmo dispositivo aparece no Pacto Internacionaldos Direitos Civis e Políticos, no Artigo 17. Na Convenção In-teramericana da OEA dos Direitos Humanos, este é o Artigo11. Então, todos esses grandes pactos internacionais, dosquais os EUA fazem parte, assim como o Brasil, teoricamentegarantem a privacidade da correspondência, mas essas ga-rantias nunca receberam um reforço através de uma conven-ção ou pacto específico. É uma garantia geral, que é interpre-tada pelas comissões e pelos juristas no sentido de que a cor-respondência não pode sofrer violações arbitrárias e ilegais,mas se aceita que haja circunstâncias que se limite esse direitoà privacidade. Para poder violar a privacidade, primeiro épreciso que haja uma lei que permita isso. Em segundo lugar,é preciso que essa violação à privacidade seja justificada porum bem maior, por exemplo a ordem pública, o bem-estar ge-ral. Terceiro: a ação que o governo pratica tem de ser propor-cional e razoável, não pode ser uma coisa contra tudo e contratodos. Em quarto lugar, tem de ter uma ordem judicial. Então,há certas garantias, certos limites que deveriam ser invoca-dos, mas infelizmente o que acontece é que neste terreno es-pecífico, o desenvolvimento dos meios eletrônicos foi tão gi-gantesco, é tão invasivo, que não se acompanhou com uma le-gislação, tanto nacional como internacional.

Como seria essa convenção ou pacto específico sobre privacidade?Todos os avanços que se teve em matérias de novas armas

acabaram provocando convenções internacionais sobre essasarmas. O caso mais famoso é o das armas químicas da PrimeiraGuerra Mundial, com um grande acordo internacional proi-bindo esse tipo de arma e que tem funcionado bem. Para as ar-mas atômicas existe um tratado de não proliferação nuclear,assim como existem acordos sobre armas bacteriológicas. Po-rém, não existe um grande acordo sobre a guerra cibernética.No fundo, essa questão de privacidade faz parte do problemada guerra cibernética. Tivemos vários episódios recentes, emque se desconfiou que certos países intervieram para desorga-nizar a internet de países vizinhos. Foi o caso da Rússia com aEstônia, em um momento que piorou muito as relações entre osdois – esse país, que fez parte da União Soviética, sofreu um

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ataque massivo, que praticamente paralisou a internet de lá.Há queixas periódicas dos americanos contra os chineses.Também há problemas com os hackers. Não é o mesmo caso doSnowden, mas tudo isso faz parte do mesmo conjunto de pro-blemas, criados pela tecnologia.

No início de agosto, ministros das Relações Exteriores do Mercosulforam até a ONU reclamarem dessa espionagem dos americanos.

Nessa recente manifestação coletiva, os ministros das rela-ções exteriores se encontraram com secretário-geral da ONU emanifestaram indignação, protestaram, mas não se chegou apropor uma ação concreta, pois os próprios ministros se dãoconta de que faltam instrumentos legais para isso. A Alemanha,no meio dessa agitação, foi mais longe e curiosamente aqui nãose divulgou isso. Como houve muita indignação na Alemanha,por causa da colaboração do governo alemão, o governo propôsao Conselho das Nações Unidas dos Direitos Humanos – hojenão é mais Comissão, é Conselho dos Direitos Humanos – , a ne-gociação de uma convenção sobre os direitos à privacidade – es-se direito existe, mas é genérico. A convenção seria para discutirquando e como esse direito poderia sofrer limitação. O governoalemão propôs isso talvez por saber que é impossível, é difícilimaginar que os americanos iriam aceitar negociar e ainda quenegociasse, que o Senado aprovasse, pois qualquer novo trata-do tem de ser aprovado pelo Senado.

Por que seria difícil a aprovação desse acordo?Os americanos, há muitos anos, manifestam menos dispo-

sição de negociar tratados que limitem a sua soberania. Comoeles podem muito, eles não querem ter nenhuma limitação,

tanto que há várias convenções de Direitos Humanos e da OIT(Organização Internacional do Trabalho) que eles nunca rati-ficaram, algumas eles nem assinaram, outras assinaram e vol-taram atrás depois. Apesar de o Obama ter dito que é favorávelao multilateralismo, na prática não se viu isso em momento al-gum, ele já está no segundo mandato e nunca partiu dele ne-nhuma grande iniciativa multilateral que redundasse na limi-

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Ao lado, osjornalistas

Bob Woodward eCarl Bernstein,

do jornalWashington Post,

que denunciaram ocaso Watergate,

com base eminformações

passadas por uminformante. O caso

culminou com aqueda do presidente

Nixon (abaixo).

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50 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

tação da soberania americana. É muito pouco provável, pelocurso atual e pela superioridade esmagadora que os america-nos têm nessa área, que eles aceitem se autolimitarem. Qual-quer convenção internacional é uma autolimitação da sobera-nia daqueles que assinam. Quem tem muito poder, normal-mente prefere usá-lo, e os americanos estão convencidos deque usam esse poder com moderação, que não usam para co-meter injustiças ... é a convicção deles. Eles usam isso contrasuspeitos de praticarem terrorismo, organizar atentados. Te-mos uma situação com falta de um quadro jurídico internacio-nal, que teria de ser negociado na ONU ou na União Interna-cional das Telecomunicações, onde o Mercosul apresentou assuas queixas. Mas até agora, as propostas que o Brasil fez, deuma internet que fosse governada globalmente e não pelosamericanos, caiu em ouvidos surdos, não houve apoio inter-nacional suficiente, sobretudo daqueles que detêm o poder.

O senhor acredita que haverá novas denúncias?Do Wikileaks para cá, o vazamento de informações sigilosas

tem ocorrido com mais frequência. Um dos motivos é que esseaparato de segurança cresceu tanto, envolve tantas pessoas,que fica difícil guardar segredos. O segredo é mais bem guar-dado quanto menos pessoas souberem dela. Hoje em dia, o quevemos é que os americanos ampliaram muito essas agências.Tem uma certificação que se chama Security Clearance, que é aautorização de segurança. Quando se vai trabalhar em deter-minados postos, onde há acesso a segredos, a pessoa será in-vestigada para saber se pode ou não receber a Security Clea-rance. Eles têm uma quantidade enorme de pessoas que rece-bem esta certificação. Algumas publicações informam quechegam a 4,8 milhões de indivíduos, dos quais um terço nãosão funcionários do governo, são de empresas terceirizadasque tem algum grau de Security Clearance. Há diversos graus,até mesmo para o pessoal que, em uma mudança, tem de trans-portar caixas de papelão de arquivos dos escritórios – lá den-tro, pode ter documentos que ele poderia violar. Já entre os quetêm a Top Secret Clearance, que é mais restrito, o jornalWashington Post, em 2010, dizia em artigo que eram 850 milamericanos com essa certificação, um número absurdo. Vi umnúmero recente, atribuído ao atual diretor da National Secu-rity Agency (NSA) dizendo que o número cresceu e estaria em1,2 milhão. Quando se tem tanta gente assim, inclusive de bai-xa hierarquia, como é o caso do soldado Bradley Manning, nocaso do Wikileaks, ou mesmo o Edward Snowden, que era umfuncionário jovem de uma empresa contratada, a possibilida-de de evitar esse tipo de coisa é muito menor.

Caso se descobrisse que o governo americano cometeu uma faltamuito grave, a posição americana em relação à espionagemm u d a ri a ?

Acho que isso só iria mudar se os governos dos países pode-rosos, a começar pelos EUA, considerem que isso é mais umavulnerabilidade do que uma vantagem. A descoberta de umafalta não concretiza essa hipótese. No caso de Watergate foi umpouco isso, a revelação de que o governo americano invadia asede do Partido Democrata, e por isso caiu o presidente, era umacoisa gravíssima, mas no entanto a espionagem não acabou, tan-

to que 40 anos depois eles estão fazendo em grande escala. Ain-da que acontecesse de provar que eles tinham feito alguma coisaextraordinariamente injusta e errada, isso iria causar um emba-raço enorme, poderia causar até o impeachment do presidente,mas se o problema de segurança dos EUA continuasse e eles es-tivessem convencidos de que esses métodos mais ajudam doque prejudicam, eles vão continuar. Sou muito cético em relaçãoa isso, porque nesse particular, os países muito poderosos têminteresses comuns. Nenhum deles é completamente imune à es-pionagem do outro – os EUA não conseguem neutralizar intei-ramente os chineses e vice-versa. O mesmo se aplica aos russos,ingleses, franceses, israelenses.

O senhor acredita que o presidente Obama tem controle sobreessas agências de inteligência, ele sabe o que elas fazem?

Acho que sim, ele sabe quem é e tem instrumentos atravésdaqueles que trabalham com ele no setor de segurança nacio-nal de controlar isso. A minha opinião é que ele tem usado essesinstrumentos, pois verificou que em alguns casos trouxe bene-fícios. Uma analogia é o uso desses aviões não tripulados, osdrones, para assassinar pessoas. Isso começou com os israelen-ses com foguetes e os americanos desenvolveram muito isso.Este também é um tema bastante discutível, pois alguns con-sideram uma violação terrível aos direitos, já outros acham quenão, que os EUA têm o direito, já que estão em guerra com osterroristas – e que na guerra o direito à vida sofre uma suspen-são. O inimigo você mata. Este é um tema que se discute inten-samente nos EUA. No entanto, este governo do Obama temusado muito mais esses métodos (de eliminação do inimigo), jáque foram aperfeiçoados. Provavelmente, usar drones é maiseficiente do que enviar tropas para ocupar o país. Como ele vaiconseguir atingir líderes da Al-Qaeda escondidos nas monta-nhas do Paquistão, que não permite que os EUA entrem comtropas? Eles usam esses drones, é um mal menor e é eficiente, oPaquistão não gosta, protesta, mas não pode fazer nada.

No caso da morte de Osama bin Laden no Paquistão, em 2011, osEUA enviaram um tropa de elite para matá-lo.

Sim, eles invadiram o país, claramente violaram a sobera-nia do Paquistão. Os americanos acharam que a invasão sejustificava pelo interesse nacional deles, o bin Laden era o ini-migo público nº 1, declarou guerra à América, provocouaqueles atentados. Existe hoje na vida internacional contem-porânea muitos problemas que já citamos, como lavagem dedinheiro, tráfico de drogas, corrupção, segurança individual,terrorismo etc., são inúmeros os exemplos em que regras an-tigas, as normas e as leis, se aplicam muito imperfeitamente,pois a sofisticação tecnológica fez com que essas regras pas-sassem a ser relativas.

Haveria razões para os americanos espionarem o Brasil?O Brasil tem muito pouca experiência nesta área. Graças a

Deus não temos problemas com islamismo ou de terrorismo,desde o fim do regime militar. A gente pergunta se é verdadeaquilo que se denunciou, de que os americanos teriam uma ba-se aqui e que o Brasil era um dos países mais espionados. Faltaexplicar, se isso for verdade, por que eles espionaram tanto o

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Brasil? Não seria pelo fato de o Brasil ser umapotência nuclear e nem por ser uma potênciamilitar; tampouco pela guerra cibernética. Porque teriam feito isso? Para saber o que o Brasilpensa em diplomacia? Dificilmente eles desco-bririam um segredo novo, pois as posições bra-sileiras em geral são muito transparentes. Se-gredos comerciais e industriais? Também é di-fícil imaginar que esta seria a razão. O que meocorre é que poderia ser algo ligado ao tráficode drogas, que é uma obsessão deles e o Brasilserve de rota. É um ponto que o governo bra-sileiro deve investigar, se é verdade, em quemedida e o que se fez. Os americanos convida-ram uma missão para dar explicações. O gover-no deve prosseguir, investigar as razões, nãofoi uma atitude amistosa e afinal de contas oBrasil não é um país hostil a eles, como sistema-ticamente são a Bolívia e a Venezuela. Isso queeles fizeram com o avião do presidente bolivia-no Evo Morales foi um ato inominável, fizeramporque é presidente de um país pequeno e fra-co, foi uma humilhação. Isso dá a dimensão atéque ponto eles estão disposto a ir para castigaras pessoas que eles consideram traidoras.

Denunciar abusos é louvável, mas será quecompensa? Veja a situação de Julian Assange,ainda refugiado na embaixada do Equador emLondres, e de Edward Snowden, que conseguiuagora um visto de um ano na Rússia.

Nestes e em outros casos, o papel das pes-soas que denunciaram foi muito útil, pois per-mitiu revelações importantes. Se não fossemelas, muitos desses crimes de guerra não se-riam conhecidos. Como disse a comissária deDireitos Humanos, é fundamental que hajaprocessos legais que permitam que pessoasdenunciem atividades ilegais. Caso contrá-rio, se cai naqueles processos do Julgamentode Nuremberg, em que os acusados sempredizem que seguiam uma ordem do governo.Todos aqueles nazistas disseram que estavamcumprindo ordens. Mas há ordens que sãoimorais, que vão contra a ética, contra a justi-ça. Deve haver um estatuto que proteja as pes-soas que tenham a coragem de denunciaraquilo que é imoral, ilegal, injusto, mas semcolocar em risco a segurança dos países. Porisso é que falta essa negociação entre os paísessobre este tema.

Ricardo Moraes/Reuters

O jornalista GlennGreenwald (esq.) e oseu companheiro,

o brasileiroDavid Miranda,

que foi detido pelapolícia britânica

no aeroportode Londres.

A polícia britânicaapreendeu o celular,computador e pen

drives do brasileiro,com base em uma lei

antiterrorismo.

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52 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2013

Audacter calumniare,semper aliquid haeret

(Calunie sem medo, algo sempreacabará colando - Francis Bacon)

Divulgação

Olavo deCar valhoJornalista, escritor eProfessor de Filosofia

Se há um conceito essencial para a com-preensão das lutas políticas no mundo,é o de desinformação. Ao mesmo tem-po, não há conceito que seja menos

compreendido – e não raro propositadamentemalententido – pela quase totalidade dos co-mentaristas políticos, intelectuais acadêmicos e"formadores de opinião" em geral, os quais as-sim acabam desnorteando o público que teriamo dever de orientar.

A confusão mais usual é a de desinformação efalsa informação. Nada mais frequente, comefeito, do que ler nas páginas dos jornais o termo"desinformação" aplicado a alguma informa-ção, de qualquer tipo ou fonte, que se deseja ro-tular como falsa. Com o agravante de que a men-sagem assim qualificada nem sempre é falsa, ésimplesmente um fato que o "formador de opi-nião" deseja negar ou encobrir.

A palavra é aí usada como mero instrumen-to de polêmica ou de propaganda, quandonão ela própria para fins de desinformaçãopropriamente dita.

A diferença entre a desinformação e a simplesinformação falsa é a seguinte: se um jornal so-viético, ou, hoje em dia, um jornal russo publicauma acusação caluniosa contra os EUA, isso éfalsa informação. Falsa informação é mentiraalardeada pela boca de um inimigo ou concor-rente. Já se essa mesma mentira, em vez de sairno Pravda, sai no New York Times ou noWashington Post por obra de um agente ou co-laborador russo ou soviético infiltrado na reda-ção desse diário americano, então, aí sim, é umcaso genuíno de desinformação.

Só há desinformação quanto a mentira não édita por um inimigo, por uma instituição ou pes-soa sabidamente hostil, mas por alguém da in-teira confiança da vítima. A falsa informação já

vem com o rótulo de coisa hostil; tem credibili-dade mínima e às vezes, para desmoralizá-la,basta citar-lhe a fonte. A desinformação, aocontrário, tem alto nível de credibilidade e nãoparece, ao menos num primeiro instante, umaarma de guerra psicológica ou instrumento depropaganda, e sim o traslado fiel e neutro deum fato puro e simples.

Um exemplo clássico é a lenda do "Papa deHitler". Lançada pela primeira vez pela RádioMoscou em 3 de junho de 1945, simplesmentenão pegou. Tantas celebridades judaicas apare-ceram defendendo a reputação de Pio XII e agra-decendo os esforços heroicos que ele fizera parasalvar judeus da perseguição nazista, que a acu-sação de cumplicidade com Hitler soou imedia-tamente como uma farsa comunista.

Melhor sorte veio com a tentativa seguinte,quando a peça de Rolf Hochhuth, O Vigário(Der Stellvertreter) obteve sucesso mundial emereceu até uma versão cinematográfica. Atese ainda era a mesma, mas o autor era umdramaturgo alemão ocidental sem ligaçõesaparentes com o comunismo. Aí a falsa infor-mação já se transfigurou em desinformaçãogenuína. O fato de que a coisa fosse apenasuma obra de ficção não atenuava em nada oseu impacto, pois a mídia em geral afirmavaque o enredo era baseado em ampla pesquisade documentos. Na verdade, os "documentos"tinham sido todos produzidos pela KGB sob asupervisão direta do General Ivan Agayants,chefe da seção de desinformação da inteligên-cia soviética, que chegara a redigir pessoal-mente algumas partes da obra. A maçarocadesordenada de centenas de páginas foi trans-formada em espetáculo teatral viável pelasmãos de Hochhuth com a ajuda de Erwin Pis-cator, conhecido diretor teatral comunista.

O trabalho dodesinformante sóatinge a perfeiçãoquando se começaa repetir e ampliarespontaneamenteas calúnias.

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A peça despertou alguma suspeita porque apresen-tava não só Pio XII, mas também vários personagensjudeus, como colaboradores de Hitler. Mesmo as-sim foi valentemente defendida por boa parte da mí-dia ocidental. Hochhuth só veio a ser desmascaradodécadas mais tarde, quando apareceu, junto com ohistoriador inglês David Irving, negando a realida-de do Holocausto. O homem era um pró-nazista queconsentira em colaborar com a KGB, seja sob chan-tagem, seja – o que hoje se considera mais provável –como profissional contratado.

Nesse ínterim, a repercussão mundial da peça emesmo as polêmicas que suscitou prepararam o ter-reno para o sucesso de Hitler's Pope (1999), do jor-nalista inglês John Cornwell, que, embora feito empedaços pelo historiador Ralph McInnerny (Defa-mation of Pius XII, St. Augustine's, 2001) e pelo ra-bino David G. Dalin em The Myth of Hitler's Pope:How Pope Pius XII Rescued Jews from the Nazis(Regnery, 2005), ainda é levado a sério por muitagente. Embora Cornwell saísse bastante desmorali-zado quando se provou que as "pesquisas aprofun-dadas" que ele alegara ter feito na Biblioteca do Va-ticano não haviam passado de duas visitas rápidas,até hoje não se sabe de qualquer ligação dele com aKGB, mas isso é justamente o melhor da história. Se-gundo a doutrina clássica da desinformatsiya, o tra-balho do desinformante só atinge a perfeição quan-do, após o estímulo inicial vindo de fora, gente dedentro da própria nação visada começa a repetir eampliar espontaneamente as calúnias inventadaspela KGB, seja por desejo de autopromoção, seja poracreditar sinceramente que está fazendo grande jor-nalismo e até servindo à pátria. Willi Münzenberg,criador da maior rede de desinformação midiáticacomunista na Europa nos anos 30 do século XX, cha-mava a esse processo "criação de coelhos": a KGB sótinha de fornecer o primeiro casal.

Quando a história das origens da peça de Hochhu-th foi contada inicialmente na National Review em2007 pelo general romeno Ion Mihai Pacepa (o oficialde mais alta patente da inteligência soviética já deser-tado para os EUA), um dos primeiros a colocá-la emdúvida foi o historiador Ronald Rychlak, assessor dadelegação do Vaticano na ONU. Seis anos de pesqui-sas convenceram-no da autenticidade da narrativaao ponto de fazer dele o co-autor do livro em que ogeneral dá mais detalhes a respeito (Disinformation:Former Spy Chief Reveals Secret Strategies for Un-dermining Freedom, Attacking Religion and Promo-ting Terrorism, WND Books, 2013).

Nos manuais de ensino da KGB, a palavra desin-formatsiya nunca foi usada para designar a simplesarte ou vício de mentir, mas uma ciência em sentidopleno, parte integrante da dialética revolucionária,e a técnica requintada que dela decorria.

Uso o exemplo da mídia e do show business só

porque é o mais visível. Nos casos mais decisivos, adesinformação não vem enxertada em jornais, espe-táculos ou noticiários de TV, mas em trabalhos cien-tíficos, em documentos oficiais, em análises tecno-es-tratégicas e em mil outros canais mais próximos dogovernante que se deseja atingir. Quanto mais próxi-mos, melhor. O caso mais célebre é o de Harry DexterWhite, assessor econômico e homem de confiança deFranklin D. Roosevelt, tão próximo que morava naprópria Casa Branca, e que por isso mesmo foi coop-tado pela KGB para passar ao presidente a quota dedesinformação econômica necessária para orientar apolítica externa americana, durante anos, num sen-tido favorável à URSS e desfavorável à própria naçãoamericana e seus aliados ocidentais. Roosevelt lia to-da a papelada acreditando piamente que se tratavade análises objetivas. Se imaginasse que uma só da-quelas páginas vinha pronta do exterior, teria no mí-nimo reexaminado tudo com olhos críticos, em vezde dar a esse material a credibilidade que deu.

Se a desinformação por meios técnicos e diplomá-ticos basta às vezes para moldar decisões cruciais dogoverno-alvo e jogá-lo contra ele mesmo, a desinfor-mação por via de jornais, da TV ou da indústria doshow business pode determinar mudanças profun-das e duradouras na mentalidade popular ao ponto dedesfigurar a cultura nacional e fazer dela uma arma deguerra psicológica contra a nação-alvo. O efeito não étão espetacular na escala imediata, mas, a longo prazo,é uma força histórica praticamente irresistível.

O observador leigo, quando nota a guinada radi-cal da cultura americana à esquerda, desde os anos1960, um longo processo sem o qual um homem tãocomprometido por ligações com terroristas e agen-tes comunistas como Barack Hussein Obama jamaisteria chegado à presidência meio século depois,imagina que foi tudo um fenômeno histórico-socialespontâneo, autóctone – e, sem o menor estudo ouaveriguação, reagirá histericamente à sugestão deque houve por trás de tudo a ação sorrateira, perti-naz e sistemática da KGB. Isso acontece especial-mente em países sem uma classe dominante culta epreparada, como é precisamente o caso do Brasil.Não se encontrará, nas altas esferas da nossa políti-ca, do nosso empresariado e mesmo das nossas For-ças Armadas, um único estudioso que possa ser ditoseriamente um "especialista" em sovietologia e maisainda em desinformação. Nunca vi sequer, nessesmeios, alguém que tivesse notícia dos desenvolvi-mentos teóricos e estratégicos mais recentes do mar-xismo, posteriores à queda da URSS. Por isso a rea-ção aí dominante é a do senso comum ingênuo, quejulga tudo por uma impressão de verossimilhançaextraída da experiência cotidiana mais próxima e,reforçado pela opinião concordante da mídia popu-lar, se crê muito seguro de si quando pronuncia osjulgamentos mais irrealistas (cansei-me de ouvir es-

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sa gente dizer, de 1999 até 2008, que o Foro de SãoPaulo não existia ou era inofensivo).

Quem quiser ter uma noção da amplitude do do-mínio exercido pela inteligência soviética sobre osrumos da cultura e da política americanas desde osanos 30 do século passado, resultando na virada dosanos 60 e em todas as consequências que não cessa-ram de multiplicar-se até agora, que pare de imagi-nar que o mundo da política é o que sai na Folha de S.Paulo ou no "Jornal da Globo", e trate de buscar es-tudos especializados, como o livro do general Pace-pa ou o recente American Betrayal: The Secret As-sault on Our Nation's Character, de Diana West (St.Martin's Press, 2013).

Mas, uma vez superadas as confusões primárias arespeito do que seja desinformação, um segundoequívoco, desta vez quase sempre proposital, entraem cena. É a ideia de que a desinformação é um ins-trumento de uso generalizado entre os serviços secre-tos, de modo que, por exemplo, a CIA espalhava de-sinformação contra a URSS, como a KGB espalhavacontra os EUA. Isso é puro gerenciamento de danos.A viabilidade das operações de desinformação re-pousa inteiramente na possibilidade de infiltrargrande número de agentes e colaboradores na mídia,no sistema educacional, no show business, no Parla-mento etc e dar-lhes os megafones para que façam acaveira do seu país e sugiram aos seus governos umapolítica antinacional. Essa possibilidade só existe nasdemocracias ocidentais, onde a liberdade de opiniãoinclui uma grande margem de manobra para quemdeseje fazer denúncias contra o próprio governo, cri-ticar a cultura nacional e promover internamenteaquilo que veio a se chamar a "cultura antagônica".Nos países comunistas, todos esses meios de difusãosão controlados diretamente pelo governo, e o espaçopara críticas é praticamente nulo, enquanto nas de-mocracias é praticamente ilimitado.

Hoje sabe-se, só para dar alguns exemplos entremuitos, que, desde o fim da II Guerra pelo menos, aelite comunista e pró-comunista dominou quase queintegralmente a indústria do show business nos EUA(v. Red Star Over Hollywood: The Film Colony'sLong Romance With The Left, de Ronald e Allis Ra-dosh, Encounter Books, 2005), e a historiografia uni-versitária americana (v. John Earl Haynes & HarveyKlehr, In Denial: Historians, Communism & Espiona-ge, Encounter Books, 2003). Desde a abertura dos Ar-quivos de Moscou, sabe-se também que, ao assinalara presença de algo entre cinquenta e oitenta agentessoviéticos nos altos escalões do governo americano, omalfadado senador Joe McCarthy só errou por exces-so de precaução: eles eram centenas (v. Blacklisted byHistory: The Untold Story of Senator Joe McCarthyand His Fight Against America's Enemies, de M.Stanton Evans, Three Rivers Press, 2009). E hoje emdia, em número bem maior, os comunistas e seus co-

laboradores já não ocupam somente discretos cargosde confiança na burocracia estatal: brilham no Con-gresso americano e diariamente recitam de novo e denovo, com leves alterações e sob os aplausos de quasemetade do eleitorado, os mesmos chavões difamató-rios postos em circulação pela KGB mais de meio sé-culo atrás. É a "cultura antagônica" consagrada comocultura nacional (v. The Enemy Within: Communists,Socialists and Progressives in the U.S. Congress, dopesquisador neozelandês Trevor Loudon em parce-ria com Ronald S. Stubbs, CreateSpace IndependentPublishing Platform, 2013). É humanamente concebí-vel que algum serviço secreto ocidental tenha jamaisconseguido infiltrar uma plêiade tão majestosa de de-sinformantes na mídia soviéti-ca, chinesa ou cubana, no gover-no soviético, chinês ou cubano?Definitivamente: a desinfor-matsiya é uma técnica comunis-ta e só foi usada em escala signi-ficativa pelos governos comu-nistas – como ainda hoje é usadapela ditaduras da Rússia e daChina, sob um verniz ideológi-co levemente alterado.

Se querem um exemplo dedesinformação genuína e delarga escala realizado aqui mes-mo no Brasil, será que precisareilembrar-lhe a ocultação com-pleta da existência do Foro deSão Paulo, durante dezesseisanos, por todos os grandes ór-gãos de mídia deste País, semexceção? É desinformação au-têntica porque, enquanto essesórgãos da "mídia burguesa" co-laboravam gentilmente comuma operação-abafa sem aqual, conforme confessou opróprio sr. Lula, o Foro jamaispoderia ter-se tornado o poderde dimensões continentais em que se tornou, ao mes-mo tempo a "mídia alternativa" da esquerda os acu-sava de ultradireitistas e hiperconservadores, sobre-pondo à camuflagem uma segunda camada de des-pistamentos e desconversas.

Quem quer que, diante desses fatos, insista em re-petir o mantra de que "o comunismo acabou", é por-que tem um QI de papagaio treinado. Como não es-tou escrevendo para essa gente e sim para pessoassérias, tenho a certeza de que meus leitores não im-provisarão uma opinião na base do argumentum adi g n o ra n t i a m ("se não chegou ao meu conhecimento, éporque não aconteceu), mas terão a prudência de leros livros aqui recomendados e admitir que o assuntoé mortalmente sério.

A viabilidade dasoperações dedesinformação repousainteiramente napossibilidade de infiltrargrande número deagentes ecolaboradores namídia, no sistemaeducacional, no showbusiness, no Parlamentoetc e dar-lhes osmegafones para quefaçam a caveira do seupaís e sugiram aos seusgovernos uma políticaantinacional.

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A ESTÁ NO LIXO

Marcio Fernandes/AE

Da redação

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Apesar de mais de 70% da matriz energética brasi-leira ser de origem hídrica, constituindo o siste-ma mais barato de produzir eletricidade em todoo mundo, as tarifas estabelecidas hoje no Brasil

estão entre as mais altas do mundo, agravando o custo Brasile tornando as nossas empresas, especialmente as indústrias,cada vez menos competitivas em relação às concorrentes es-trangeiras.

A Noruega, um dos maiores exportadores de petróleo e gásnatural do mundo, com abundância também de reservas decarvão mineral, importa lixo de diversos países europeus e otransforma em energia. Em Oslo, metade da cidade e a maioriadas escolas são aquecidas pela queima do lixo doméstico, re-síduos industriais, resíduos tóxicos dos hospitais e até apreen-sões de drogas, que são queimadas.

No Brasil, os mais de 5.600 municípios produzem mais de 55milhões de toneladas de lixo, que não são aproveitados. Me-tade desse volume, perto de 30 milhões de toneladas, tem des-tinação inadequada em lixões e aterros, sem nenhum controleou aproveitamento eficaz. Para debater estas questões, no fimde junho, a Associação Comercial de São Paulo realizou o se-minário "O aproveitamento do lixo urbano na produção deenergia", coordenado pelo vice-presidente e coordenador doConselho de Infraestrutura da ACSP, Luiz Gonzaga Bertelli.Acompanhe a seguir as principais palestras do evento.

LUIZ GONZAGA BERTELLIVICE-PRESIDENTE E

COORDENADOR DO CONSELHO DE

INFRAESTRUTURA DA ACSP

Este tema faz parte do elencode outras questões ligadas à in-fraestrutura, como saúde, educa-ção e segurança, todas importan-tes para o crescimento sustentá-vel do Brasil. Sem infraestruturanão haverá desenvolvimento.

Excetuadas as metrópoles bra-sileiras, os serviços de limpeza pública no Brasil, como todos sa-bemos, é precário, decorrente de contratos celebrados entre pre-feituras e empresas privadas nacionais. Existe, como nós sabe-mos, uma comprovada má qualidade dos serviços, tanto do re-colhimento do lixo, como de sua destinação final e doaproveitamento dos resíduos sólidos de forma generalizada.Prevalece ainda a relevância da destinação do lixo urbano, in-dispensável para assegurar a melhor qualidade de vida da nos-sa população e preservação do meio ambiente, evitando a emis-são de gases poluentes e a contaminação dos cursos de água.

Em outros países mais desenvolvidos, com muita eficácia,graças às inovações tecnológicas, visando o aproveitamento

ENERGIA

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da energia contida nos resíduos, coletados pelos serviços pú-blicos de limpeza urbana, este aproveitamento já acontece. Es-tima-se que existam 900 usinas de incineração de resíduos ur-banos sólidos, implantadas em 35 países, movimentando mi-lhões de toneladas anuais. Pelo o que se consta, no Brasil exis-tem poucas instalações, entre elas o aterro Bandeirantes, nacapital paulista, e outra na Universidade Federal do Rio de Ja-neiro, na Ilha do Fundão. A usina paulista é baseada em biogás,a do Rio, em processo tecnológico de incineração. Ambas, ge-rando energia, tão indispensável ao desenvolvimento, masque ficou tão cara.

Outro levantamento demonstra que a quantidade de resí-duos sólidos de mais de 5.600 municípios brasileiro já supera55 milhões de toneladas, que não são aproveitados. Metadedesse volume, perto de 30 milhões de toneladas, tem destina-ção inadequada em lixões e aterros, sem nenhum controle ouaproveitamento eficaz.

Desde 2010, vigora no Brasil uma lei específica sobre a po-lítica nacional de resíduos sólidos, que determina, entre outrasmedidas, o fim dos lixões até o ano de 2014, meta que eu achoabsolutamente impossível de ser alcançada. A legislação temprovocado iniciativas de várias origens, embora a nosso verainda extremamente modestas. Esta casa está empenhada emfazer mais pelo tão ambicionado desenvolvimento sustentá-vel do nosso País e da nossa metrópole, com emprego crescentede inovações tecnológicas, energias renováveis e limpas. Nes-te contexto, assume posição de relevância a destinação do lixourbano das nossas cidades.

Energia e desenvolvimento

Apesar de mais de 70% da matriz energética brasileira ser deorigem hídrica, constituindo o sistema mais barato de produ-

zir eletricidade em todo o mundo, as tarifas estabelecidas hojeno Brasil estão entre as mais altas do mundo, agravando o cus-to Brasil e tornando as nossas empresas, especialmente as in-dústrias, cada vez menos competitivas em relação às concor-rentes estrangeiras.

O governo do Estado de São Paulo anuncia em breve o lan-çamento do Plano Paulista de Energia (PPE). Em uma conversaque tivemos com o secretário de Energia, ele mencionou queprevê a ampliação da participação de fontes renováveis e oaproveitamento dos resíduos sólidos na matriz energética doEstado no período de sete anos. Como maior produtor nacio-nal de etanol, extraído da cana-de-açúcar, o Estado de São Pau-lo possui enorme potencial de conversão de resíduos da indús-tria sucroalcooleira, como é o caso do bagaço, da palha e da vi-nhaça, que são subprodutos da produção do açúcar e do álcool,oriundos do processamento da cana, transformando essesprodutos em energia elétrica, gás e vapor, com tecnologias queo Brasil tem o domínio. O potencial estimado para a geração debioeletricidade da cana, só no nosso Estado, já supera 14 milmegawatts. Para ter uma ideia do que isso significa, equivale auma usina Itaipu. Isso só no Estado de São Paulo, aproveitandoos resíduos oriundos das usinas paulistas, mas infelizmente is-so ainda não ocorre.

Aproveitamento do lixo

Tomamos conhecimento que em Oslo, na Noruega, se im-porta lixo da Inglaterra, da Irlanda e da Suécia. Em Oslo, me-tade da cidade e a maioria das escolas são aquecidas pela quei-ma do lixo doméstico, resíduos industriais, resíduos tóxicosdos hospitais e até apreensões de drogas, que são queimadas.De navio ou de caminhão, incontáveis toneladas de lixo viajamde regiões onde há excessos de resíduos para queimá-los e

Bertelli: "Desde 2010,vigora no Brasil umalei específica sobrea política nacional

de resíduos sólidos,que determina, entre

outras medidas, ofim dos lixões até o

ano de 2014,meta que eu achoabsolutamente

impossível de seralcançada".

Marcelo Casal Jr/ABr

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transformá-los em energia. Isso na Noruega, um dos maioresexportadores de petróleo e gás natural do mundo, com abun-dância também de reservas de carvão mineral.

Em breve, a população brasileira alcançará 200 milhões dehabitantes, com uma produção média diária de 200 toneladasde lixo, que possibilitariam a produção de energia, tendo o lixocomo combustível, gerando em torno de 2 mil megawatts des-ta fonte. Seria a mesma produção de uma central nuclear comoAngra 1, que hoje praticamente abastece o Rio de Janeiro. Tal-vez em breve os nossos edifícios e residências poderão contarcom a produção de energia elétrica que consomem. Tudo issopara reduzir o consumo de combustíveis fósseis, cuja tendên-cia é torna-se cada vez mais caros.

DIÓGENES DEL BELPRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO

BRASILEIRA DE EMPRESAS DE

TRATAMENTO DE RESÍDUOS

(ABETRE)

Nós atuamos no gerenciamen-to e destinação de resíduos, aAbetre não representa a ativida-de de limpeza urbana, embora al-gumas de nossas associadas tam-bém atuem neste campo. Atua-mos nos processos de tratamento

e processamento de resíduos, atividade que ainda prevalece adisposição em aterros – os lixões ainda são a principal desti-nação do lixo no Brasil. Na atividade empresarial, predomina adisposição em aterro, mas as nossas associadas também atuamem atividades de coprocessamento em forma de cimento, in-cineração, tratamento biológico, remediação de água e solocontaminados, recuperação de materiais e reciclagem – masnão no sentido do comércio de produtos recicláveis.

Neste cenário de recuperação energética, na linha do biogásde aterros sanitários, há seis empreendimentos no Brasil: os ater-ros Bandeirantes e São João, em São Paulo, que são os mais an-tigos, o de Salvador (BA), dois menores em Uberlândia (MG) eum em Cariacica (ES), que tem uma capacidade instalada da or-dem de 70 megawatts. A outra rota que vamos falar aqui, que épela incineração para recuperação de energia, esta ainda nãofunciona no Brasil, não há nenhum empreendimento prático – ado Rio de Janeiro (Ilha do Fundão) ainda opera como um projetopiloto, não virou um grande empreendimento.

Vou falar da recuperação energética e de como ela está sendoabordada na questão das políticas públicas. Embora os resíduossólidos sejam um tema apaixonante, a gestão de resíduos nãodeve ser conduzida por paixões. No desenvolvimento da Polí-tica Nacional de Resíduos, que nós da Abetre acompanhamosdesde a nossa fundação há 16 anos, este tema acaba sendo con-trovertido. Por volta de 2007/08, o governo federal fez um an-teprojeto para a Política Nacional de Resíduos, que foi apresen-tado em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, naqual eu estava representando a Abetre. Foi colocado esses pon-tos de hierarquia de destinação etc., e na ocasião, o então depu-tado Luciano Zica afirmou que a lei não deveria abordar tecno-

logias, no sentido de eleger ou proibir alguma tecnologia, masuma em particular ele tinha dúvidas, que era a incineração. Eleachava que deveria ser proibida, mas que tinha optado em nãocolocar na lei. E encerrou a sua apresentação nessa comissão daCâmara com um slide onde estava escrito: "Deus recicla e o dia-bo incinera". É neste sentido que eu digo que não devemos tratarisso de modo que a paixão se sobressaia, e sim pela questão téc-nica, com estudos, com avaliações, que é o que tem sido feito.

Muitas dessas discussões estão, no meu entender, fora de fo-co, pois ficam colocando, por exemplo, a incineração e recupe-ração de energia como uma concorrente da reciclagem, e já foidecidida que a prioridade é para a reciclagem dos materiais,isso foi colocado na Política Nacional de Resíduos. Assim, a re-cuperação energética é uma tecnologia que vem para aprovei-tar aquilo que você pode retirar dos materiais antes de enca-minhá-los ao aterro, respeitando essa política. Embora sejauma questão controvertida, ela foi tratada cuidadosamente naPolítica Nacional de Resíduos Sólidos.

Gerenciamento de resíduos

Às vezes, a redação não é muito feliz, pode dar margens aoutras interpretações, mas neste caso acho que foi cuidadosa.Adotou-se como conceito que a legislação ambiental – achoque batalhamos muito para isso durante a elaboração do pro-jeto – deveria ser neutra em relação às tecnologias, senão elainibe. Qualquer legislação ambiental que iniba uma rota tec-nológica acaba fechando as portas para qualquer desenvolvi-mento e inovação dentro daquela linha – ninguém sabe o quepode sair do desenvolvimento. O Congresso acabou adotandoessa ideia de não restringir processos e deixaram o caminhoaberto para que se estabeleça critérios e padrões para esses pro-cessos. E na recuperação energética de resíduos, isso compre-ende basicamente limites de emissão, requisitos de eficiênciaenergética e critérios de localização.

O Brasil fixou em lei essa hierarquia de gerenciamento deresíduos, isso já era consagrada pela literatura e pelos profis-sionais da área, e determinou uma série de instrumentos, comoplanos de gestão, os incentivos econômicos e mecanismo de li-cenciamento ambiental, que vão gerir esse processo, os empre-endimentos e os processos de licenciamento de acordo com es-sas prioridades. Nós sempre entendemos que não cabe a umainstância federal definir qual é a tecnologia adequada, o quepode ou não fazer. Ela deve definir regras, é uma política pú-blica e é para isso que ela serve.

Em nossa legislação ficou, felizmente, consagrado isso, quea recuperação energética é, primeiramente, uma destinaçãoambientalmente adequada, isso está expressamente incluídona legislação. E ela está colocada como subordinada a hierar-quia de prioridades de gestão e gerenciamento. Mais do queisso, ela está expressamente autorizada no Parágrafo 1º do Ar-tigo 9º, onde diz: "Poderão ser utilizadas tecnologias visando arecuperação energética dos resíduos sólidos urbanos". Aquicabe um adendo: quando este projeto foi aprovado na Câmarados Deputados e foi para o Senado, esse parágrafo tinha essaexpressão: "após esgotadas todas as possibilidades de gestãoenumeradas no caput". Isso, nós do setor de resíduos, enten-

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demos como uma redação até um tanto capciosa, que davamargem a interpretações muito subjetivas, aquilo que os juris-tas chamam de termo jurídico não determinado, que fica a cri-tério do administrador público tomar sua decisão.

Então, nós encaminhamos para o Senado algumas suges-tões, dentre elas a de suprimir essa expressão "após esgotadastodas as possibilidades de gestão", porque esgotada para mimpode significar uma coisa e outra para outra pessoa. Tem de serclaro isso na legislação. Felizmente, o Senado acatou essa su-gestão. Na época, fomos criticados por mandar ao Senado su-gestões, fomos o único setor a mandar, mas foram sugestõestécnicas – das cinco supressões do Senado, quatro foram su-gestões da Abetre. Uma delas era um artigo que proibia a dis-posição de resíduos no solo, ou seja aterros sanitários, em áreasde preservação permanente. Isso impediria uma série de em-preendimentos em saneamento, uma pequena nascente, umpequeno curso d'água ou um morro com inclinação de 45 graussão áreas de preservação permanente, e essas condições ocor-rem frequentemente nos locais de disposição.

Por isso, o próprio Código Ambiental e resoluções do Co-nama anteriores expressamente abriram exceções para a im-plantação de empreendimentos em APPs para a área de sanea-

mento e energia, pois às vezes é preciso passar uma linha detransmissão nessa área. A proibição pura e simples derrubariatodo esse mecanismo que já existia há décadas. Felizmente, opróprio Ministério do Meio Ambiente concordou com isso.

Demora na aprovação

Temos o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, que foi previstona legislação. Ele começou a ser elaborado em 2011, logo depoisda publicação da lei, mas até hoje ainda não foi decretado. Já foiaprovado pelos quatro conselhos (Conselho Nacional das Cida-des, Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de MeioAmbiente e Conselho Nacional de Recursos Hídricos) e essaproposta final passou por uma série de audiências públicas, pe-los conselhos e foi colocado no site do Sinir (Sistema Nacional deInformações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos) e está aindaaguardando ser aprovado pelo Conselho Nacional de PolíticaAgrícola, que praticamente não existe mais, ficou um nó legal, eser decretado pela presidente.

Cabe lembrar que a versão levada aos conselhos e depois pu-blicada apareceu com um conjunto de diretrizes estratégicasvoltadas para a regionalização, que foi colocado pelo Ministério

Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

Na linha do biogás de aterros sanitários, há seis empreendimentos no Brasil;os aterros Bandeirantes (fotos) e São João, em São Paulo, são os mais antigos.

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do Meio Ambiente depois de aprovado pelos quatro conselhos.Esse processo não foi debatido. Acho que fui a única pessoa defora que descobriu isso – costumo ser chato nesse ponto, leio ecomparo as coisas. E apareceram essas diretrizes, que foram su-geridas por consultorias do Ministério do Meio Ambiente. OPlano Nacional de Resíduos é composto por diretrizes, que sãodesdobrados em estratégias e depois têm metas quantitativas,basicamente percentuais. Na redução de resíduos úmidos, nes-sa diretriz também está incluída o desenvolvimento de outrastecnologias, visando a geração de energia a partir da parcelaúmida dos resíduos, que é basicamente o orgânico.

Outra diretriz, voltada à qualificação da gestão de resíduossólidos urbanos, e mais cinco estratégias que a acompanham,foi a que mencionei anteriormente, que surgiu depois de o pla-no ter passado pelos conselhos. As primeiras estratégias falamde regionalização, mas a quarta estratégia diz: "não apoiar comrecursos do Orçamento Geral da União ou de financiamento osempreendimentos para destinação final de rejeitos originadosde resíduos sólidos urbanos, ou que visem ao tratamento dosmesmo resíduos por recuperação energética, que não guar-dem distância mínima de 80 quilômetros de outro empreendi-mento regularmente licenciado, procurando regionalizar eimpor restrições para a implantação de empreendimentos".Ela tem uma lógica voltada para a escala, mas também é umainterferência de política pública, que não sabemos se é boa ounão, e como pode ser aplicado na prática. Na realidade, é ape-nas uma restrição ao apoio de recursos federais.

Incineração e reciclagem

Outros pontos da legislação, a Resolução Conama 316, de2002, já vinculava a incineração de resíduos urbanos a um planode metas, que levassem em dez anos a 30% de reciclagem. Muitagente diz que nunca ouviu falar nisso – me refiro aos formula-dores de políticas públicas. Às vezes, as pessoas se esquecem quea legislação não surge sozinha, ela está no meio de um sistemalegal. Isso estava condicionado desde 2002, alguns criticam,acham que o setor de resíduo quer incinerar tudo, mas não é isso.Queremos dar soluções de acordo com que a sociedade necessitae a incineração e a recuperação energética é uma delas.

Outro ponto é a Resolução Conama 264, de 1999, que trata decoprocessamento de resíduos. Muitos afirmam ainda que éproibido o coprocessamento de resíduos urbanos. Não é isso, aresolução diz que não é permitido os resíduos domiciliaresbruto, sem qualquer previa separação e tratamento. O Brasil játem uma atuação neste sentido desde 2007, é uma empresa láem Cantagalo, uma de nossas associadas, que faz o coproces-samento de resíduos urbanos do município após passar poruma central de triagem nas cooperativas.

Outro ponto importante no Estado de São Paulo é a Reso-lução SMA 79, de 2009. Ninguém mais do que São Paulo seaprofundou tanto na recuperação energética de resíduos urba-nos, se antecipou à Política Nacional de Resíduos e criou umaregulamentação para disciplinar o licenciamento de novosempreendimentos para esta área. Acho que é uma iniciativalouvável, que dá parâmetros até mais restritivos do que a na-cional. É importante dizer que ninguém traz um empreendi-

mento novo no Brasil olhando padrões antigos, o empreende-dor foca sempre nos padrões mais avançados, pois ele olha aperenidade de seu investimento, a continuidade do negócio.

Recuperação energética

Na Política Nacional de Resíduos, voltando ao ponto do Ar-tigo 9º, depois daquela supressão do Senado, que criou um malestar, se estabeleceu no Decreto 7.404 que a recuperação ener-gética seria disciplinada por um ato conjunto entre os minis-térios do Meio Ambiente, Minas e Energia e Cidades. Foi cria-do um grupo de trabalho (GT 2), que começou no primeiro se-mestre de 2012, houve quatro reuniões com debates acalora-dos, mas conseguimos fazer valer as posições do setorempresarial, na linha de que isso não concorre com a incine-ração, que deve ser sujeito ao licenciamento – havia um esboçode regulamento, era uma prerrogativa do governo federal re-gulamentar, mas até agora não foi feito, o grupo foi encerradoem maio, mas o decreto não saiu até agora.

A posição da Abetre é que muitas das discussões sobre re-cuperação energética estão fora de foco. É errado compararsuas vantagens e desvantagem com a reciclagem, pois esta éprioritária e não é uma concorrente. A recuperação energé-tica é uma alternativa que concorre mais com o aterro sani-tário e visa evitar a disposição em aterro de matérias que ain-da possam ter uma recuperação energética. Achamos que alegislação ambiental deve ser neutra em relação às tecnolo-gias. A lei não deve restringir processos e sim estabelecer cri-térios e padrões de qualidade ambiental dos processos. Na re-cuperação energética de resíduos isso compreende basica-mente limites de emissão, requisitos de eficiência energética ecritérios de localização.

Outro ponto que defendemos é que a recuperação energé-tica de resíduos urbanos não é conflitante com o objetivo de au-mentar significativamente a reutilização e a reciclagem. Os da-dos internacionais mostram que, a medida que cresce a recu-peração energética, cresce também o aproveitamento de ma-teriais recicláveis, porque tudo anda junto, é uma melhoria noprocesso de gerenciamento de resíduo.

A nossa opinião na Abetre é que a decisão quanto as alter-nativas tecnológicas para a destinação dos resíduos sólidosurbanos é da competência dos municípios. Não cabe ter umadecisão em escala federal determinando qual tecnologia omunicípio deve usar. O município é o titular dos resíduos ur-banos e cabe a ele fazer a avaliação tecnológica, estudar a suarealidade socioeconômica e ambiental para escolher se vai fa-zer recuperação energética, só um tratamento biomecânicoou utilizar outra tecnologia. O município avalia, inclui emseu plano municipal – a legislação estabelece como esse planodeve passar por aprovações, por consultas públicas e deba-tes, mas a decisão é local.

Por fim, a regulamentação, que esperamos que saia logo, nãodeve dar margem à insegurança jurídica. Combato muito essasredações que são acertadas na mesa, todo mundo sai satisfeito,mas quando aquilo vai para a vida prática, tem que chamar ad-vogado, judicializar, tem interpretações diferentes, e a gente sóperde tempo para tocar a nossa atividade econômica.

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SUANI TEIXEIRA COELHODIRETORA DO CENBIO DA USP

Um gráfico da Aneel de 2012mostra a potência instalada noBrasil da biomassa. Ao lado dacana, que tem uma potência ins-talada muito elevada, pelo apro-veitamento do bagaço, e do licornegro, no setor de papel e celulo-se, temos quase como um patinhofeio o biogás, que só não é o piorporque atrás dele vêm os resí-duos de casca de arroz, que são bastante incipientes, mas queestão progredindo rapidamente na região Sul do Brasil. A gen-te percebe que o aproveitamento energético que temos de re-síduos sólidos urbanos ainda é essencialmente biogás, mesmoassim bastante reduzido.

Quando a gente pensa nas diferentes opções de recuperaçãoenergética, nós não podemos esquecer que temos uma amplagama de opções. Nos tratamentos térmicos, ao lado da incine-ração, temos também a gaseificação e o tratamento com plas-ma, que em graus diferentes são tecnologias em desenvolvi-mento. Na parte de tratamentos de resíduos biológicos, a gentetem o tradicional aterro e o biodigestor, que pode ser então in-corporado na tecnologia de tratamento mecânico biológico.

No caso dos aterros, gostaria de chamar a atenção para umaexperiência que vivi pessoalmente, quando fui secretária ad-junta de Meio Ambiente na primeira gestão do governador Al-ckmin – o professor José Goldemberg era o secretário da pasta.Já naquela época, tomamos conhecimento da grande dificul-dade em licenciamento de novos aterros no Estado de São Pau-lo. Não somente por falta de regiões que fossem ambiental-mente adequadas, segundo os critérios da Cetesb, mas tam-bém porque muitas vezes a Cetesb até encontrava uma áreaque pudesse ser adequada. Mas quando a discussão ia para asaudiências públicas, havia uma rejeição da população local eoutros setores da sociedade civil. Às vezes, essa rejeição eramuito grande. Em vários empreendimentos de aterro, em lo-cais ambientalmente aceitáveis, a aprovação não passava nasaudiências públicas.

Passeio do lixo

Desde aquela época temos três gargalos importantes nas re-giões de São Paulo, Campinas e Baixada Santista, onde temosgerações de resíduos sólidos de forma expressiva, com altoscustos para disposição em aterros e sem aterros para disponi-bilizar – os resíduos produzidos no Litoral Norte sobem a serrapara o planalto, é um passeio do lixo.

Isso foi um dos motivadores do estudo que fizemos para aEmae (Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A.), de

helvio Romero/Estadão

Segundo dados da Aneel, o bagaço de cana-de-açúcar tem potência instalada de quase 10 mil megawatts

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forma a analisar diferentes opções para o aproveitamento dolixo. Em termos de tecnologias, já foi comentado o caso de bio-gás. Como exemplo, temos o aterro sanitário da Essencis(Caieiras), onde fizemos um pequeno projeto de geração deenergia com biogás interligada à rede. Foi um projeto de pe-queno porte, com um motor de 200 KW. No início, o aterro nãoestava interessado, mas deixaram que fôssemos lá olhar, poisera um projeto do Ministério de Minas e Energia, e acabaramaceitando. Para a nossa felicidade, ficamos sabendo que, a par-tir do ano que vem, eles vão instalar um sistema de geração deenergia de grande porte a partir do biogás, inclusive pedindocrédito de MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo).

Resistência à incineração

Quando eu era secretária adjunta de Meio Ambiente, par-ticipava das reuniões de trabalho no Conama e me lembro quena época houve um movimento para se aprovar uma resoluçãoproibindo o processo de incineração no Brasil – foi por volta de2004 ou 2005. Houve uma discussão grande e os argumentosque usei era que, do ponto de vista científico, isso não tinha ló-gica, não se pode proibir uma tecnologia, mas ter definições deparâmetros ambientais, que garantam que aquela tecnologiaseja segura do ponto de vista ambiental, social etc, mas não sepode proibir uma tecnologia, isso não é científico. Na ocasião,se criou um grupo de trabalho para se discutir a questão de dio-xina e furano dentro do Conama.

Em visita que fizemos a uma planta de incineração em Por-tugal, chamada Valorsul, nos arredores de Lisboa, converseicom uma diretora. Além de me dar os dados técnicos da plantade incineração, conversamos um pouco sobre essa questão po-lítica da interação com a sociedade civil. Comentei que no Bra-sil havia essa preocupação e queria saber se em Portugal tam-bém havia. Ela me mostrou um livro grosso com recortes de jor-nais e revistas, com pessoas fazendo passeata no local que es-tava sendo construída a unidade, dizendo não à incineração,vão matar nossas crianças. Hoje, a planta está lá, devidamentelicenciada. Na porta, tem um painel com medição em temporeal das dioxinas e furano, cujos valores médios são muitoabaixos dos limites definidos pela União Europeia. Por outrolado, o que estava no limite era a emissão de NOx, como tudoque vem da biomassa. Chamou-me a atenção porque todomundo fica brigando por causa das dioxinas e furanos, mas oque estava mais próximo do limite eram as emissões de NOx,que é um precursor do ozônio e precisa ser olhado.

Outra questão que me chamou a atenção lá é sobre a viabi-lidade econômica. Conversamos muito sobre isso, eu tinha nú-meros que na época, em 2009 ou 2010, a Secretaria de Energiatinha feito de custo da energia gerada para uma planta de 1.200toneladas por dia de incineração e tinha chegada a R$ 320 o me-gawatt/hora, o que ficaria difícil de viabilizar. Conversandocom a diretora da Valorsul, ela disse que a planta, a grosso mo-do, teve um investimento de 174 milhões de euros, dos quais 94milhões foram doação da União Europeia. Informou-me as ta-rifas que os municípios e particulares pagavam para dispor olixo, de 20 a 40 euros por tonelada. Com tudo isso, a planta seviabilizou com a venda da energia elétrica a 84 euros o me-

gawatt/hora, em torno de R$ 240, na tarifa verde que a UE con-sidera. Isso me pareceu razoável, pois eu tinha aquele númerode R$ 320 que a Secretaria de Energia tinha feito. A dúvida é aquestão da viabilidade econômica, mas que eu imagino quedeva estar sendo resolvida, já que temos uma planta em fase delicença prévia, já autorizada pela Aneel.

Trabalho insalubre

Gostaria de fazer um comentário adicional, que é a questãodos catadores, que é polêmica. A gente tem que cuidar disso,mas tem também de pensar que, por melhor que seja essa si-tuação, pois se tem uma geração importante de empregos paraos catadores, mas será que é isso que queremos para os nossostrabalhadores? Será que a gente não consegue capacitá-los pa-ra que façam uma atividade que seja um pouco menos preju-dicial à saúde? Por mais que se tenha equipamento de proteçãoe capacitação, esta questão fica. A gente acompanhou bem deperto uma situação, guardada as proporções, que foi a dos cor-tadores de cana no Estado de São Paulo.

Quando o professor Goldemberg mandou para a Assem-bleia e conseguiu aprovar a lei que estabelecia os dead line paraa eliminação da queimada de cana, houve uma discussão mui-to grande, que iria gerar um desemprego enorme na zona ru-ral. Hoje em dia se tem no setor uma série de programas em queesses cortadores de cana estão sendo requalificados para se-rem aproveitados na própria indústria, nas colheitadeiras decana, na construção civil. Acabamos conseguindo, aos poucos,que houvesse uma melhoria na qualidade do trabalho daque-les cortadores de cana. Eu imagino que a sociedade como umtodo também tenha esta expectativa de que consigamos fazerisso também para os catadores. Acho que a atividade é uma so-lução importante atualmente para a geração de emprego, masnão podemos considerar que seja uma solução definitiva, pre-cisamos ser capazes de ter ideias mais interessantes para a ge-ração de empregos de melhor qualidade.

Tecnologia combinada

Outra tecnologia que analisamos neste projeto da Emae foi otratamento mecânico biológico, que nada mais é que uma com-binação de reciclagem com biodigestão anaeróbica. O que po-de ser reciclado vai para a reciclagem, o que é orgânico vai paraum processo de biodigestão anaeróbica, onde então temos ageração de energia a partir do biogás, da fermentação anaeró-bica. Tem vantagens, pois reduz a quantidade de resíduos só-lidos urbanos, mas não aproveita energeticamente todo o re-síduo, só o que é possível de ser tratado com biodigestão anae-róbica, o que for resíduo orgânico.

Nós não incluímos neste estudo da Emae a tecnologia de ga-seificação, pois ainda é incipiente, tanto no Brasil como nomundo. Tivemos alguma experiência em um pequeno projetona Amazônia com gaseificação com casca de cupuaçu em umacomunidade isolada, mas isso ainda é para uma escala piloto,ainda precisa de algumas adaptações. Mesmo do ponto de vis-ta de maior porte, todas as grandes plantas que faziam gasei-ficação no mundo fecharam, não conseguiram limpar o gás pa-

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ra alimentar uma turbina a gás, que é o sistema mais eficiente.As poucas plantas que ainda têm no mundo são para uso tér-mico, onde a limpeza do gás não é tão sofisticada. Por isso, dei-xamos de lado a gaseificação, pois achamos que não era umacoisa para o curto prazo. A tecnologia de plasma, então, nempassamos perto.

Se compararmos as tecnologias, o aterro é uma tecnologiaconhecida e dominada, as dificuldades são de encontrar áreas,problemas na conversão dos motores – temos duas opções, oumotores, ou microturbinas a gás. Os motores têm eleva emis-são de NOx, as turbinas tem baixas emissões de NOx, mas sãocaras. Fizemos um projeto conjunto com a Sabesp e chegamosa esse resultado. Temos agora um projeto em uma estação detratamento de esgoto em Belo Horizonte com a Cemig, que estáinstalando 6 microturbinas de 200 KW, mas é um projeto P&Dda Aneel e a viabilidade econômica ainda vai ser discutida.

Cidades pequenas

Uma questão que gostaria de levantar é a dos pequenos mu-nicípios. Quando a gente pensa em uma planta de 20 MW para825 ou 1.200 toneladas por dia de resíduos, estamos falando degrandes municípios, grandes concentrações. Em incineração,até onde conseguimos olhar no mundo, não existe plantasabaixo de 5 MW. Quando vou trabalhar com municípios de 60mil habitantes, tenho 60 toneladas por dia, gerando 1 MW. Paraum município ainda menor, de 5 mil pessoas, com 5 toneladaspor dia, vou gerar apenas 75 KW. O que a gente tem nessa ca-pacidade é a gaseificação, que tem aqueles problemas já co-mentados. Dos mais de 5 mil municípios do País, 1 mil pos-suem menos de 10 mil habitantes. A maioria desses pequenosmunicípios ainda tem lixões, que precisam, no mínimo, seremrecuperados. De acordo com a nova Política de Resíduos Só-

lidos, temos que pensar o que fazer. Comentaram-me que mui-tos prefeitos de pequenos municípios, se antecipando ao deadline de 2014, estão firmando Termos de Ajustamento de Con-duta (TAC) com o Ministério Público, preocupados em nãoconseguirem se adequar à nova legislação.

Comparação

Fizemos um estudo chamado "Avaliação de Ciclo de Vida(ACV) Comparativa entre Tecnologias de AproveitamentoEnergético de Resíduos Sólidos". O que fizemos foi compararas tecnologias de aterro, tratamento mecânico biológico e in-cineração em uma região hipotética no litoral. Fizemos a com-paração, através de uma metodologia científica, chamadaAnálise de Ciclo de Vida, que considera todo o processo, desdea chegada do lixo na estação de transbordo até a sua disposiçãofinal. Junto com essa discussão, nós incluímos também os as-pectos econômicos, de mercado e sociais. Tivemos uma equipeque estudou a questão dos catadores, o cenário de quanto lixopoderia ser reciclado com os catadores para que eles fossemdevidamente incorporados no processo.

Fizemos dois cenários, o cenário 1 sem reciclagem e o cená-rio 2 com reciclagem, baseados nesses critérios econômicosque a equipe definiu, comparamos essas três tecnologias parauma região na Baixada Santista, com 1.200 toneladas por dia,sendo 90% resíduos sólidos urbanos e 10% de lodo, a pedido daEmae, pensando a questão do tratamento de esgoto. Nestesdois cenários, a potência instalada com aterro fica bem menor,pois o aterro só aproveita a parte orgânica, dando 3,9 MW nocenário 1 e 3,1 MW no cenário 2. Na incineração, a produção ébem maior, ficando 27,5 MW (cenário 1) e 24,5 MW (cenário 2).E no tratamento mecânico biológico, 9,6 MW e 7,5 MW de po-tência instalada, respectivamente.

Robson Fernadjes/AE

A produção debiogás através do

tratamento dedejetos animais

em propriedadesrurais é uma das

linhas de pesquisasdo Cenbio - Centro

Nacional deReferência em

Biomassa, da USP.

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Paulo Robertode AlmeidaDoutor em CiênciasSociais, diplomatade carreira.(www.pralmeida.org;[email protected])

Ocontexto que presidiu à elabora-ção da Constituição de 1988 foi oda crise dos regimes socialistasna Europa oriental, mas os pro-

cessos não tinham sido consumados no mo-mento dos debates constituintes. O Brasil nãodispunha, à época, de partidos conservadores,ou de um que fosse realmente liberal, no sen-tido clássico, comprometido com os princípiosda liberdade dos mercados, de um papel redu-zido para o Estado no terreno econômico e a fa-vor de uma abertura econômica real, tanto pa-ra fluxos de capitais e de investimentos diretos,quanto para o câmbio e contratos externos.

A maior parte dos partidos estava compro-metida com "causas sociais", sendo que o parti-do dissidente do regime, o Partido da Frente Li-beral, se pretendia também social em seus pro-pósitos de redução de desigualdades e de cor-reção dos desequilíbrios dos mercados. Nãosurpreende, assim, que tenha havido forte pres-são para a aprovação de conteúdo social em di-versos capítulos do novo texto constitucional.

Num ambiente exacerbado pela crise econô-mica, pelo baixo crescimento e pelo estrangu-lamento externo, manifestou-se entre os con-gressistas constituintes a reação esperada nosentido de encontrar bodes expiatórios exter-nos, o que aliás correspondia a anos de acusa-ções infundadas sobre a responsabilidade in-ternacional – credores, investidores, FMI – pelacrise brasileira. Outro fator a influenciar qua-litativamente a disposição dos constituintesfoi a mobilização de meios políticos em tornode teses antagônicas às que tinham vigoradodurante o regime militar, independentementede sua racionalidade intrínseca, ou de umaanálise de custo-benefício de cada uma das me-didas então cogitadas para liberar o Brasil dochamado "entulho autoritário". Finalmente, oCongresso Constituinte abriu-se ao recebi-mento de "sugestões" por parte da sociedade, oque gerou número significativo de propostas,todas elas tendentes a conceder benefícios agrupos específicos ou à população geral, semque se cogitasse exatamente dos meios existen-

tes, ou a serem criados, para o seu atendimentopela via estatal.

O resultado foi a promulgação de uma cartaconstitucional eivada de peculiaridades e de de-talhamentos jamais encontrados em outros do-cumentos do gênero, fazendo dela um verda-deiro contrato social, prometendo benefíciossem fim a uma sociedade que não se questio-nou, e não foi questionada, sobre os meios e fun-dos para atender a generosa lista de direitos au-toconcedidos. A assim chamada "Constituição-cidadã" constitui, na verdade, um dos mais for-midáveis ataques à racionalidade econômica ja-mais perpetrados na história constitucional bra-sileira. Todas as advertências feitas por econo-mistas sensatos, inclusive contra os aspectosmais discriminatórios e xenófobos em relaçãoao capital estrangeiro – que depois foram emgrande medida eliminados pelas emendasconstitucionais aprovadas no início do primeiromandato de Fernando Henrique Cardoso – fo-ram negligenciadas, e a Carta foi aprovada naeuforia geral em outubro de 1988.

Um novo regime econômico nascia ali, ecom ele uma decorrência automática das gene-rosas promessas feitas pelos constituintes aopovo brasileiro em geral, e a grupos de interes-se organizados em particular: o aumento con-tínuo, constante, ainda que gradual, da cargatributária em todos os níveis da federação, emfunção, justamente, da imensa agenda de bon-dades criadas pelos constituintes, aplaudidaspela vasta maioria da população. Havia umacrença, infundada, mas generalizada, de quemecanismos distributivos centralmente apli-cados seriam capazes de superar certas cons-tantes da história econômica do Brasil, quaissejam, os superlucros do setor privado, o "ar-rocho salarial", a concentração de renda nas ca-madas já ricas e de terras pelos latifundiários,ou, de forma geral, a falta de investimentos pú-blicos com foco em serviços coletivos.

Essa crença, derivada de uma interpretaçãosocial-distributiva da organização social ali-mentou a outra crença, também infundada, masigualmente forte e disseminada, de que cabia ao

A Constituição brasileiraDivulgação

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Estado aplicar e monitorar mecanismos de dis-tribuição da renda em favor dos desprovidos,independentemente de qualquer cálculo decusto-benefício das medidas implementadas esem estudos técnicos bem embasados sobre osdesvios que sofreriam esses mecanismos pelaação corporativa dos "representantes do povo"e de toda a burocracia organizada no Estado,ademais dos grupos de interesses setoriais.

Estabelecidas essas considerações de cará-ter geral, a tarefa de identificar esses mecanis-mos e seus efeitos deletérios sobre o sistemaeconômico pode agora ser empreendida combase no próprio texto constitucional (O textoda Constituição, na versão utilizada para esteensaio, pode ser consultado no seguinte link:h t t p : / / w w w. p l a n a l t o . g o v. b r / c c i-vil_03/Constituicao/Constituicao.htm).

A Constituição "Cidadã": distribuindobondades para todos

Já o Preâmbulo da Carta estabelece o compro-misso dos constituintes com a instituição de "umEstado Democrático, destinado a assegurar oexercício dos direitos sociais e individuais, a li-berdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-mento, a igualdade e a justiça como valores su-premos de uma sociedade fraterna". Ainda queanódinos, genéricos ou simplesmente de bom-senso, tais princípios são reveladores do espíritoe da mentalidade dos constituintes, e que se re-flete também no que se poderia chamar de "cons-ciência coletiva" da maioria da população. Ao co-locar a "igualdade" como valor supremo do País,ainda que no seguimento da liberdade, a socie-dade expressa seu comprometimento com umobjetivo que não é autorrealizável, ou básico, co-mo o da liberdade, já que, tendo em conta a rea-lidade objetiva das desigualdades estruturais einerentes às relações sociais entre as pessoas, a"igualdade" como valor supremo teria de serconstruída por algum tipo de pacto social. Esta éuma velha questão que divide a humanidade e asescolas filosóficas, desde o Iluminismo, pelo me-nos, ao colocar de um lado a tradição liberal clás-

aos 25 anos: um caso especial deesquizofrenia econômica

Arquivo ABr

O deputado Ulysses Guimarães,presidente da Assembleia NacionalConstituinte, exibe a Constituição

Cidadã, como ele a chamou.

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sica, privilegiando as liberdades individuais, que teriam de sersacrificadas se a segunda tradição, a da engenharia social tivessede ser efetivada, do outro lado. Essa visão perpassa todo o textoconstitucional e se revela num sem número de dispositivos.

A mesma visão igualitarista e promotora de direitos coleti-vos perpassa o conjunto das propostas orientadoras da vidanacional, como se pode constatar desde o Título I, relativos aosPrincípios Fundamentais da República Federativa do Brasil.Esta tem como fundamentos, entre outros princípios, "os va-lores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (Art. 1º, IV), e seusobjetivos fundamentais (Art. 3º) são, pela ordem: "I – construiruma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvol-vimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalizaçãoe reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover obem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, ida-de e quaisquer outras formas de discriminação."

Em outros termos, não basta a sociedade ser livre, o que de-veria ser uma condição básica, inerente ao ser humano, paraque cada um possa buscar sua felicidade e sua prosperidade,nos seus próprios termos, ou seja, em total liberdade (respei-tada a liberdade dos demais membros da comunidade), mas seproclama a intenção de construir – o verbo não é inocente – umasociedade justa e solidária.

Já se observou que a Constituição brasileira é pródiga em di-reitos e menos enfática quanto às suas contrapartidas. Numacontagem linear, constatou-se a existência de dezenas e deze-nas de "direitos", quase duas centenas, e menos de duas deze-nas de "deveres", sendo que estes invariavelmente estão vin-culados a deveres que o Estado possui em relação à sociedade.Da mesma forma, o conceito de "eficiência" comparece duasvezes, unicamente, sendo uma relativa à segurança pública e aoutra aos mecanismos de controle interno. Por fim, o conceitode "produtividade" só aparece três vezes, nos artigos 39 e 218,mas com exceção de uma menção a programas de produtivi-dade, as outras duas menções se referem a prêmio de produ-tividade e ganhos a esse respeito que os empregadores têm odever de assegurar a seus trabalhadores. Em resumo, a cartaconstitucional brasileira se apresenta como um imenso ma-nancial de direitos, favores e benefícios, em favor de indiví-duos ou de grupos inteiros, com um número menor de deve-res, geralmente vinculados a encargos do Estado.

Não é preciso ressaltar a prolixidade do texto constitucional,bem como sua extensão, provavelmente inédita nos anais cons-titucionais mundiais. Pode-se, no entanto, observar que esse de-talhamento excessivo, essa obsessão com a constitucionalizaçãode cada aspecto, por vezes o mais anódino possível, da vida na-cional, obriga, necessária e consequentemente a um trabalho in-findável de revisão do texto constitucional a cada etapa de dis-cussão em torno de políticas públicas. Não estranha, assim, que asemendas constitucionais – e também novas disposições transitó-rias – venham se acumulando a cada ano, à razão de quase trêsemendas para cada um dos 25 anos desde a sua promulgação.Uma consulta à base de dados do Senado Federal, em04/08/2013, revela a existência de 73 emendas constitucionais,várias delas emendando emendas anteriores, sendo que a últimaaprovada no Congresso, relativa à criação de tribunais regionaisfederais, à revelia do próprio texto constitucional, pode ainda ser

declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.A primeira seção substantiva da Constituição, Título II, Dos

Direitos e Garantias Fundamentais, apresenta, em seu capítuloI, os "direitos e deveres individuais e coletivos", mas curiosa-mente, ele contempla muitos direitos, mas nenhum dever, oque pode ser um indicativo do mencionado desequilíbrio con-ceitual apontado acima. Em todo caso, esse capítulo contém oArt. 5º, que trata das garantias individuais, entre elas o "direitoà vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade",mas "nos termos seguintes":

"XXII - é garantido o direito de propriedade;XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;"Em outros termos, impõe-se à propriedade uma não definida

"função social", o que pode abrigar vários tipos de interpretação,sempre a cargo do Estado ou de seus representantes. Contradi-toriamente, o inciso XX desse mesmo artigo diz que "ninguém po-derá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado", mastal dispositivo não parece coadunar com o recolhimento compul-sório, pelo Estado, do valor da remuneração de um dia de traba-lho de cada assalariado em favor de um sindicato ao qual ele nãoestá obrigado a associar-se. Existem, na Constituição, diversasobrigações compulsórias desse tipo, que na prática restringem aliberdade individual de cada um, assim como impõem restriçõesao usufruto da propriedade ou de ativos legítimos.

O Art. 6º, Capítulo II, "Dos Direitos Sociais", foi emendadoduas vezes, em 2000 e em 2010, sempre para acrescentar novosdireitos aos originalmente inscritos pelos constituintes: ade-mais daqueles relativos à "educação, saúde, o trabalho, o lazer,

Elza Fiuza/ABr

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a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e àinfância, a assistência aos desamparados", como constante dotexto inicial, foram acrescentados, nas duas emendas (26 e 64),os relativos à alimentaçãoeàm o ra d i a , presumivelmente criandomais uma obrigação para o Estado, que terá de contemplar es-ses direitos dos cidadãos, sem que se especifique sua forma deprestação e, sobretudo, sobre os custos incorridos. Seria inte-

ressante conhecer quantos Estados no mundo garantem, emsua legislação suprema, tais tipos de direitos, e se eles os fazemseguir de medidas ativas visando garantir na prática esses di-reitos elementares pela via das políticas públicas.

O Art. 7º, relativo aos direitos dos trabalhadores urbanos e ru-rais, estipula uma relação generosa de benefícios sociais e labo-rais, impingindo sobre o contratualismo direto que poderia ser

No capítulo referenteaos Direitos Sociais, aConstituição diz que

todos os cidadãos têmdireito à saúde,

educação, o trabalho, olazer, a segurança, aprevidência social, a

proteção à maternidadee à infância, a assistência

aos desamparados.A estes foramacrescentados

os direitos relativosà alimentação e à

moradia, criando maisobrigações ao Estado,sem que se especifiquesua forma de prestaçãoe, sobretudo, sobre os

custos incorridos.

Divulgação

Newton Santos/Hype

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estabelecido entre os agentes econômicos primários, acarretan-do, como é de se esperar, uma série de custos efetivos ao empre-gador que não existem em outros países, ou que são deixados pa-ra livre negociação, individual ou coletiva. Esses direitos repre-sentam encargos por vezes excessivos para as empresas – sejamelas pequenas ou grandes – e, consequentemente, diminuem suacompetitividade no confronto com ofertantes de outros países.

Todos os direitos, em seu conjunto, fazem com que a folhasalarial de uma empresa, correspondente aos vencimentos pa-gos efetivamente aos trabalhadores, seja acompanhada de ou-tra série de encargos, praticamente em montante equivalente,que onera excessivamente o sistema produtivo nacional, tor-nando-o pouco competitivo em relação a similares de outrospaíses. Muitos desses dispositivos não precisariam figurar nacarta constitucional, podendo ser inscritos na legislação infra-constitucional, ou até serem deixados ao livre arbítrio e à ne-gociação direta entre as partes. No caso do Brasil, existe umatendência excessiva à regulação compulsória das relações so-ciais, o que, ademais de seus efeitos econômicos imediatos, co-mo os aqui evidenciados, traduz uma indisfarçável compul-são à restrição das liberdades individuais em favor de regrascompulsórias emitidas pelo Estado, numa aproximação claraaos modelos corporativos, ou formalmente fascistas, já descar-tados pela história e pela racionalidade econômica.

O dispositivo que comanda a "irredutibilidade do salário,salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo", tambématua para impedir a necessária adequação das despesas comesse tipo de insumo aos momentos de recessão ou diminuiçãoda dinâmica da demanda, fazendo com que a empresa tenhade despedir funcionários (mas aí também incorrendo em ou-tras despesas, sob a forma de indenizações e multas relativa-mente importantes). De fato, a legislação laboral no Brasil in-terfere na capacidade do empresário determinar livremente,em negociações diretas, o volume e o preço do fator trabalho,um dos insumos mais relevantes do processo produtivo. Omesmo impedimento vale, aliás, para setor público, obstadoconstitucionalmente de regular seus gastos com pessoal, inde-pendentemente da situação das contas públicas.

A Constituição "estatal": reduzindo o espaçoda livre iniciativa

Um dos defeitos mais habituais da Constituição é o de garantirdireitos sem se preocupar com os custos associados de sua pres-tação. Assim, por exemplo, o § 3 do Art. 17, no capítulo sobre ospartidos políticos, diz que os "partidos políticos têm direito a re-cursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão,na forma da lei." Ora, é evidente que tanto o fundo partidárioquanto esse "acesso gratuito" aos meios de comunicação são co-bertos pelos impostos pagos por todos os cidadãos, quando namaior parte dos países os partidos políticos, associações de direitoprivado, devem responder eles mesmos por suas despesas, combase nas contribuições de seus associados ou quaisquer outrasfontes, segundo regras legais. No Brasil, por exemplo, um partidonão pode receber recursos de fontes estrangeiras, um resquíciodos velhos tempos do "ouro de Moscou", quando o Partido Co-munista era sustentado pela União Soviética.

O Título III está dedicado à organização do Estado, sendo queo capítulo da organização político-administrativa admite, emseu Art. 18, a criação de novos estados e municípios através deplebiscito e de lei complementar federal. Ora, tendo ocorrido,logo depois de promulgada a Constituição, a criação de númeroexcessivo de municípios sem qualquer viabilidade econômica,o assunto teve de ser regulado pela emenda constitucional nº. 15(1996), dada a absoluta dependência das novas unidades detransferências federais, em vista de sua total incapacidade emdispor de recursos próprios. Mesmo com essa limitação, estima-se que praticamente a metade das unidades primárias da fede-ração não consegue fazer funcionar seus serviços essenciais(saúde e educação, por exemplo, mas crescentemente seguran-ça e mesmo o quadro funcional) com base unicamente em seuspróprios recursos, dependendo, por conseguinte, da redistri-buição de verbas federais, o que sempre constitui foco de ten-sões políticas, de barganhas, quando não de chantagens recípro-cas por ocasião de projetos importantes para o Executivo, que équem controla a maior parte dos recursos públicos.

Mais adiante, em dispositivos do Título III, relativos à organi-zação política, a Constituição abriu caminho para o aumentoconstante dos gastos públicos nos estados, ao fazer correspondero número de deputados estaduais ao triplo da representação fe-deral (Art. 27) e ao fixar ao máximo de 75% sua remuneração comrespeito à dos federais. Ora, no Brasil, qualquer limitação pelo tetode salários, subsídios, vencimentos ou quaisquer outros tipos deprebendas acaba sendo também um piso, além do qual várias ca-tegorias insistem em subir mediante expedientes de duvidosa va-lidade legal, de escassa legitimidade e quase nenhuma moralida-de (mas que ainda assim subsistem durante anos a fio de batalhasjudiciais até as mais altas instâncias desse poder).

Outros dispositivos abusivos existiam no capítulo IV (dosMunicípios), cujo Artigo 29 estipulava, na redação original,um número de 9 até um máximo de 21 vereadores nas locali-dades de até 1 milhão de habitantes; esse número podia ir até 55vereadores nos municípios de mais de 5 milhões de habitantes.Conhecendo-se o espírito perdulário da classe política nosmais diferentes rincões do País, é evidente que ocorreu umaocupação pelo teto dos limites constitucionais, com o decor-rente aumento extraordinário dos gastos com a vereança e ser-viços associados. O assunto teve de ser regulado pela emenda58 (2009), impondo limites mais estritos a vencimentos e des-pesas, o que não quer dizer que os gastos tenham sido redu-zidos com a expansão e consolidação da profissão de políticoprofissional nas últimas décadas.

Da mesma forma como ocorre, aliás, com os deputados esta-duais (e em diversas outras categorias de servidores públicosigualmente), os vereadores têm seus subsídios fixados numa de-terminada proporção dos ganhos daqueles, o que certamente setraduz num alinhamento pelo teto de todos esses vencimentos.

A remuneração dos servidores públicos tem sido, desdesempre, um dos maiores problemas do Estado brasileiro, cons-tantemente dominado por práticas patrimonialistas, nepotis-tas e fisiológicas, de forma geral, que fazem da grade salarialuma selva indescritível de regulamentos e disposições, che-gando até mesmo a esse outro ridículo constitucional de se terde fixar numa Carta Magna até quanto podem ganhar diferen-

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tes categorias de funcionários públicos. Regis-tre-se que o assunto do teto constitucional foiobjeto de longos anos de tergiversações e de-longas, por parte de representantes dos três po-deres, até que se chegou à fórmula – constan-temente desrespeitada, registre-se desde logo– do limite correspondente ao subsídio mensalde um ministro do STF, aplicando-se a partirdaí proporções correspondentes numa escaladecrescente (emenda 41, 2003).

Aplica-se igualmente aos funcionários públi-cos a irredutibilidade dos subsídios e vencimen-tos (inciso XV do Art. 37), o que significa que,mesmo em situação de grave comprometimentodas contas públicas, ou de crise econômica, o se-tor público, à diferença de qualquer outro setorda economia privada, terá de continuar arcandocom as despesas, como se nada estivesse ocor-rendo. Registre-se, também, que a isonomia devencimentos entre os funcionários dos três pode-res, assegurada no Art. 39, é em grande medidauma obra de ficção, tendo em vista a enorme dis-paridade entre eles, com o Judiciário exibindouma média salarial que corresponde aproxima-damente a três vezes à do Executivo. Para fins deaposentadoria, finalmente, emenda constitucio-nal (20, 1998) teve de estabelecer que os proven-tos não poderão exceder a remuneração do ser-vidor no cargo efetivo, em vista dos inúmerosabusos que vinham ocorrendo até então.

A Constituição "parlamentar": muitosprivilégios, baixa produtividade

Os maiores problemas econômicos do proces-so legislativo não são decorrentes, explicitamen-te, de disposições constitucionais, mas de certasinterpretações "especiosas", quando não fanta-siosas, quanto ao sentido que se deve dar às me-didas executivas aprovadas pelo Congresso, emprimeiro lugar, o orçamento, a peça básica da go-vernança em qualquer democracia consolidada.Subsiste uma interpretação, jamais explicitadano texto constitucional, de que a peça orçamen-tária anual, aprovada sob formato de lei peloCongresso, é apenas "autorizativa", e não impo-sitiva, cabendo então ao Executivo, segundo seupróprio arbítrio, realizar "contingenciamentos"dos montantes de despesas autorizados. Tenta-tivas parlamentares para tornar explicitar e obri-gatória a característica "impositiva" do orçamen-to anual, por meio de emenda constitucional,também precisariam ser confrontadas à práticados próprios congressistas de aumentar, arbitra-riamente, a receita prevista no projeto original doExecutivo para então acomodar emendas parla-mentares que excedem o total de recursos.

Registre-se, desde logo, para a Câmara, queo princípio constitucional da proporcionalida-de da representação não é de fato assegurado,uma vez que se impõe um piso e um teto para onúmero de deputados, o que redunda numatotal desproporção de número de votos reque-ridos entre os eleitos nos menores estados e nosmaiores. Esse diferencial também tem efeitoseconômicos, ao conceder um poder decisóriobem maior a estados e regiões que, proporcio-nalmente, contribuem com uma base fiscal re-duzida para os recursos da federação, sendo defato recebedores líquidos de verbas federais.

A deformação da representação parlamentar– não derivada exatamente da última elaboraçãoconstitucional, mas de um ato institucional im-posto durante o regime militar, em 1977 – tornadifícil alcançar-se uma administração racionaldos recursos públicos, uma vez que coloca emcampos opostos estados e regiões dependentesde transferências federais e os pagadores líqui-dos do sistema de compensações. Assim, regi-mes especiais – zonas francas, ou fundos de de-senvolvimento – são aprovados sem qualquerbase técnica ou justificativa econômica mais so-fisticada, apenas com o apoio de determinadascoalizões políticas que se revelam dominantes.

A Constituição "econômica": equívocosem cadeia

Depois da relativa liberalidade federalistada Constituição de 1891, e da sua baixa intru-são na vida econômica, a Constituição "corpo-rativa" de 1934 deu a partida para a progressivainterferência do Estado na vida econômica,bem como para a tendência à monopolizaçãoestatal de um número crescente de atividadesprodutivas e de serviços públicos, até entãofornecidos em bases privadas e, em grande me-dida, por investimentos diretos estrangeiros.O nacionalismo econômico dos anos 1930 cres-ceu significativamente nas décadas seguintes,com alguma contenção no regime de 1946, ten-do voltado com redobrado vigor a partir do re-gime militar de 1964.

A Constituição de 1988, discutida e aprova-da numa fase de socialismo declinante, masainda não completamente derrocado, foi víti-ma do velho espírito estatizante de que sempreesteve imbuído o Brasil. Mesmo se o estatismoexacerbado que havia caracterizado países eu-ropeus no decorrer do pós-guerra estava em re-versão, naquela década, ele continuou suamarcha gloriosa no Brasil, apenas parcialmen-te revertido pelas reformas liberalizantes doprimeiro mandato do governo Fernando Hen-

Aplica-seigualmente aosfuncionários públicosa irredutibilidade dossubsídios e vencimentos,o que significa quemesmo em situação degrave comprometimentodas contas públicas,o setor público, àdiferença de qualqueroutro setor da economiaprivada, terá decontinuar arcando comas despesas, como senada estivesseocorrendo.

A Constituição de1988, discutida eaprovada numa fase desocialismo declinante,mas ainda nãocompletamentederrocado, foi vítima dovelho espírito estatizantede que sempre esteveimbuído o Brasil.

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rique Cardoso. A despeito de não terem sido revertidas as pri-vatizações da segunda metade da década de 90, o estatismo re-crudesceu, inclusive com redobrado vigor, a partir da mudan-ça de orientação política em 2003.

As novas definições de governo foram facilitadas pelo espí-rito dirigista, e centralizador, da carta constitucional. O Art.170, inaugurando o Título VII, Da Ordem Econômica e Finan-ceira, repete a orientação já contida no inciso XXIII do Art. 5,segundo a qual a propriedade deve atender à "sua função so-cial", o que constitui, obviamente, uma abertura a vários tiposde interpretações "especiosas". Alguns dos dispositivos eco-nômicos mais deletérios para o pleno desenvolvimento da ini-ciativa privada no País e para uma ampla inserção da econo-mia nacional nos circuitos internacionais tinham sido oportu-namente corrigidos no primeiro mandato do governo Fernan-do Henrique Cardoso, como discutido a seguir.

O Art. 21, do Capítulo II (Da União) do Título III, dizia, na suaformulação original, que compete à União, "XI - explorar, dire-tamente ou mediante concessão a empresas sob controle acionárioes ta ta l, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão dedados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegu-rada a prestação de serviços de informações por entidades dedireito privado através da rede pública de telecomunicações ex-plorada pela União", o que estava na origem da falta crônica detelefones, no atraso e nos altos custos dos serviços de telecomu-nicações, bem como no hábito perfeitamente ridículo de se listara posse de uma linha telefônica entre os bens arrolados na de-claração anual de imposto de renda. Pelo menos a emenda 8(1985) abriu esse tipo de serviço à iniciativa privada, embora a leio tenha feito de forma claramente cartelizada, o que ainda res-ponde pelos preços abusivos do setor.

O inciso anterior, porém, permanece válido: "X – manter o ser-viço postal e o correio aéreo nacional", o que explica a falta deopção ante o monopólio estatal, ou o recurso aos poucos servi-ços autorizados por ofertantes privados a preços proibitivos. Aprodução de energia, a navegação aérea, os serviços de trans-portes nacionais, bem como os portos de qualquer tipo tambémfiguram sob a competência da União, no mesmo Artigo 21 (in-ciso XII), embora eles possam ser explorados mediante autori-zação, concessão ou permissão, o que não garante que essastransações possam ser feitas em ambiente de perfeita concorrên-cia, de regulação transparente ou com a rapidez e a qualidadeadequados, o que também explica a notória má qualidade e osaltos preços da infraestrutura brasileira de forma geral.

Dentre os fatores mais comumente apontados pelo setor pri-vado como responsáveis pela sua falta de competitividade in-ternacional (e no próprio mercado interno) estão, depois dosaltos impostos, a falta de infraestrutura e de serviços de trans-portes e de comunicações comensuráveis com as necessidadesdo País, pateticamente indicado como uma das dez maioreseconomias do mundo; comprovadamente, o Estado brasileironão fez o seu dever de casa nesta área. Os dez anos de governoLula não conheceram nenhuma mudança sensível nessa área,a não ser a aprovação delongada, tardia, problemática, de umalei relativa às parcerias público-privadas, que aliás permanecesubutilizada. De forma geral, o estatismo militante desse pe-ríodo redundou, entre outras consequências nefastas para di-

versos setores de atividades reguladas pelo Estado, num níti-do esvaziamento, pelo governo, das agências reguladoras deEstado, o retorno ou transferência de várias de suas atribuiçõesaos ministérios setoriais, bem como designações políticas (esindicais) nas instâncias diretivas desses órgãos, com clarosprejuízos para a dinâmica econômica.

O governo Fernando Henrique Cardoso tinha se empenhadoem corrigir algumas das distorções mais relevantes medianteuma série de emendas constitucionais que foram votadas logo aoinício de seu primeiro mandato, como evidenciado a seguir. O Ca-pítulo III (Dos Estados Federados) do Título III (Da Organizaçãodo Estado), por exemplo, também reservava a empresas estatais,consoante o ânimo estatizante dos constituintes, a exploração dosserviços de gás canalizado (Art. 25, § 2), o que foi oportunamenteaberto a regimes de concessão pela emenda 5 (1995).

Um outro bloco de disposições nacionalistas, estatizantesou xenófobas, também reformadas no mesmo processo, com-parecia no Título VII, relativo à "Ordem Econômica e Financei-ra". O Art. 170, em seu inciso IX, estabelecia, dentre os Princí-pios a serem observados na atividade econômica o "tratamen-to favorecido para as empresas brasileiras de capital nacionalde pequeno porte"; por discriminatória, a nova Redação dadapela emenda 6 (1995), determinou que o tratamento favorecidoé "para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leisbrasileiras e que tenham sua sede e administração no País", ouseja eliminou-se o qualificativo do "capital nacional". O Art.176, por sua vez, estipulava que as "jazidas e demais recursosminerais e potenciais de energia hidráulica pertencem à Uniãoe somente podiam ser efetuados mediante autorização ou con-cessão da União, "no interesse nacional, por brasileiros ou em-presa brasileira de capital nacional…"; a mesma emenda ful-minou o conceito de "capital nacional". Já o Art. 171, que con-cedia benefícios e favores às empresas nacionais, com discri-minação explícita, foi revogado em sua total idade,desmantelando, assim, o tratamento desigual concedido àsempresas registradas no País, mas cujo controle pertencesse aresidentes e domiciliados estrangeiros.

Dotados de impacto ainda mais importante sobre a capaci-dade do País de atrair investimentos, os dispositivos discrimi-natórios contidos nos artigos 177, sobre a exploração de petró-leo, e 178, sobre a predominância de armadores e navios debandeira brasileira, foram modificados no mesmo sentido pe-las emendas 9 e 7, respectivamente, ambas de 1995, eliminandoigualmente a interdição feita aos investidores estrangeiros. Fi-nalmente, o Art. 122, vedando a participação do capital estran-geiro na propriedade de empresas de comunicação, foi flexi-bilizado pela emenda 26, de 2002, remetendo o assunto à legis-lação complementar. Estes são alguns exemplos – não consi-derando a legislação infraconstitucional dotada de váriosoutros requisitos de tipo discriminatório – de como o consti-tuinte original continuava a exibir uma das característicasmais tradicionais do brasileiro médio: amar o capital estran-geiro, mas detestar o capitalista estrangeiro. Como observoucerta vez o economista e diplomata Roberto Campos, o Brasilsempre demonstrou as maiores desconfianças em relação aoinvestimento direto estrangeiro, preferindo fiar-se no capitalde empréstimo, até o limite do endividamento.

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A Constituição dos "direitos sociais": sem qualqueranálise dos custos

O Título VIII (Da Ordem Social), encerra, como se sabe, a vi-são generosa, e totalmente antieconômica, dos constituintes, aodeterminar a prestação universal, não discriminatória, de diver-sos serviços públicos coletivos, sem que jamais tenha sido efe-tuada alguma avaliação sobre os diferentes modos de prestaçãodesses serviços, seus custos associados, os modos de gestão ouos ganhos de eficiência e de produtividade que poderiam resul-tar de uma administração alternativa à prestação diretamenteestatal. Esse título já tem como abertura uma reafirmação damesma ideologia igualitarista que perpassa indistintamente emdiversos capítulos constitucionais, como revelado em seu Art.193: "A ordem social tem como base o primado do trabalho, ecomo objetivo o bem-estar e a justiça sociais." Em outros termos,ainda que não expresso formalmente, resta entendido que o Es-tado é chamado a cumprir encargos que, em outros sistemasconstitucionais, são deixados ao arbítrio da própria sociedade,ou de pessoas livres, buscando sua felicidade e prosperidade in-dividuais através de suas atividades privadas num regime eco-nômico funcionando em bases de mercado.

Os destaques mais relevantes, clássicos em sua inconsciênciaeconômica, se referem à saúde e educação, como ilustrado a se-guir. O Art. 196, por exemplo, diz que "A saúde é direito de todose dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e eco-nômicas que visem à redução do risco de doença e de outrosagravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços pa-ra sua promoção, proteção e recuperação." Da mesma forma, oArt. 205, repete a mesma cantilena, ao afirmar que "A educação,direito de todos e dever do Estado e da família, será promovidae incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao plenodesenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da ci-dadania e sua qualificação para o trabalho." Não sem surpresa,propostas se sucedem, se alternam, se repetem, ininterrupta-

mente ao longo do último quarto de século, no sentido de tentargarantir um naco privilegiado dos recursos públicos para essesdois setores, mediante a imposição de um percentual garantidodo orçamento para essas alocações setoriais (sendo que o Brasiljá aplica uma proporção das receitas públicas comparável à ob-servada em outros países como percentual do PIB dirigido a es-ses dois serviços coletivos).

O problema do seu financiamento estava, aliás, identificadodesde a origem, em ambos os casos. O capítulo dedicado à saúde,por exemplo, estipula, em seu Art. 198, emendado em 2000 (nº.29), que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípiosaplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde re-cursos mínimos", a serem estabelecidos em Lei complementar. Atendência, como esperado, foi a vinculação de parcelas constan-tes do orçamento, vinculadas ao crescimento do PIB, sem qual-quer critério quanto aos ganhos de produtividade a serem even-tualmente obtidos com aperfeiçoamentos da gestão setorial, oque redunda, obviamente, em gastos constantes, até crescentes,independentemente de outros fatores incidentes, que não o pró-prio orçamento setorial. No caso da educação, o Art. 212 diz que"A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Es-tados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento,no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida aproveniente de transferências, na manutenção e desenvolvi-mento do ensino." Como no caso anterior, tanto quanto na ques-tão de atribuição de um percentual fixo do PIB, imediato ou pro-gressivo – como, por exemplo, 10% para a educação – são me-didas irracionais do ponto de vista econômico, incompatíveiscom princípios sólidos de gestão pública, que devem sempre vi-sar resultados, não obrigar a gastos carimbados.

A seguridade social, objeto do Capítulo II desse mesmo tí-tulo, contém outros exemplos de descompasso entre a realida-de econômica e as bondades constitucionais, na verdade, nestecaso, maldades cometidas contra o setor privado e a criação deriqueza e emprego. Como em outros capítulos e dispositivos já

Wilton Júnior/AE

A produção de energia,a navegação aérea, osserviços de transportesnacionais, bem como osportos de qualquer tipotambém figuram sob acompetência da União,embora eles possam serexplorados mediante

autorização, concessãoou permissão.

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enunciados aqui, a Carta também garante, no inciso IV do Art.194, a "irredutibilidade do valor dos benefícios", o que, portan-to, congela os gastos públicos em montantes pré-fixados (cons-tantes, se não crescentes), independentemente das flutuaçõesdas receitas governamentais. O mais relevante, porém, se re-fere ao financiamento desse importante instrumento de polí-tica pública, como evidenciado a seguir.

As fontes de financiamento da seguridade social são as maisamplas possíveis, cabendo essa responsabilidade a toda a socie-dade, como estabelecido no Art. 195. As contribuições sociais in-cluem: a "folha de salários", a "receita ou o faturamento das em-presas" e o "lucro" (o que, no seguimento do anterior, já implicabitributação, ou seja, duplicação da base tributável). Mais ainda,segundo o inciso IV desse artigo, são também chamados a con-tribuir o "importador de bens ou serviços do exterior, ou de quema lei a ele equiparar", o que é propriamente extraordinário, se con-siderarmos que no bem importado não houve nenhuma presta-ção de bens ou serviços coletivos para o seu fornecimento à so-ciedade. Essa última inclusão foi feita pela emenda constitucional42, de 2003, e se revela como mais uma das imposições cumula-tivas, arbitrárias – no limite, ilegal, em si – impostas contra toda asociedade por um Estado famélico por recursos privados. Nãocontentes com todas as possibilidades de arrecadação, os cons-tituintes, possivelmente já prevendo que estavam criando umogro insaciável, fizeram inscrever no § 4º ao mesmo artigo a se-guinte disposição: "A lei poderá instituir outras fontes destinadasa garantir a manutenção ou expansão da seguridade social...", ouseja, se trata de uma porta aberta a novos e contínuos avanços dosistema público sobre a riqueza privada, ou social.

Independentemente, porém, do volume corrente e de quaissejam as fontes de financiamento do sistema previdenciário –geral e do setor público –, o fato é que a arrecadação tem de sernecessariamente crescente, tendo em vista a rápida transiçãodemográfica já em curso no Brasil. Os mecanismos deficientesem vigor nessa área – um sistema baseado na repartição e nãona capitalização de contas individuais e sua administração porfundos setoriais – acarretam a diluição das receitas no caixa ge-ral do Tesouro, dificultando a correta contabilização das diver-sas rubricas de entradas e dispêndios. Essa incorporação uni-ficada também não permite que esses recursos sejam usadospara fins de investimentos produtivos, por exemplo, o que po-deria aumentar o capital dos fundos para pagamentos a futu-ros aposentados e pensionistas, quando a relação de depen-dência deve inevitavelmente aumentar.

Cabe também chamar a atenção para a manipulação de algunsgrandes fundos de empresas estatais segundo os interesses do go-verno, o que também pode acarretar perdas para os contribuintes,uma vez que as decisões governamentais são tomadas funda-mentalmente em função de critérios políticos, por vezes com umabase técnica extremamente deficiente quanto à rentabilidade dasaplicações. Em qualquer hipótese, o Brasil já teria de estar discu-tindo, no Congresso e fora dele, a questão da extensão do períodode contribuições em função do aumento da esperança de vida,bem como eventual redução de benefícios para categorias atual-mente privilegiados do setor público, em relação ao regime geral,uma vez que é previsível o aumento dos desequilíbrios contábeisdo sistema em seu conjunto. Nas circunstâncias atuais, com uma

influência excessiva das corporações sindicais sobre as políticasde governo, parece pouco provável que um debate desse tipo, deredução de benefícios e ampliação dos requerimentos de aposen-tadoria, ganhe espaço no debate público.

Ademais dos "direitos sociais", os constituintes se preocupa-ram igualmente com os direitos culturais, sempre atribuindo aoEstado medidas gerais de provimento desses bens intangíveis,que normalmente deveriam estar à disposição da sociedade se-gundo suas preferências individuais, não dirigidas por um corpode burocratas públicos. Não é o que prevê, porém, a seção relativaà cultura do mesmo título, uma vez que seu Art. 215 estabeleceque "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos cul-turais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incenti-vará a valorização e a difusão das manifestações culturais." Seuprimeiro parágrafo também compromete o Estado com diversasoutras políticas ativas: "O Estado protegerá as manifestações dasculturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outrosgrupos participantes do processo civilizatório nacional."

Não contentes com esses encargos genéricos, os novos tute-lares da cultura brasileira que, consoante sua vocação dirigista e

No caso da educação, o Art. 212 definepercentuais mínimos para Estados e

Municípios aplicarem na manutenção edesenvolvimento do ensino.

Paulo Pampolin/Hype

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estatizante, assumiram o dever de cuidar de todos os brasileiroscomo se fossem seres incapazes de suas próprias expressões cul-turais, incluíram um parágrafo inédito através da emenda cons-titucional nº. 45 (2005), que prevê não apenas um "Plano Nacio-nal de Cultura", como todos os seus penduricalhos culturais, in-clusive com a "valorização da diversidade étnica e regional". OArt. 216 define, de forma totalmente redundante, diversos bensdo patrimônio cultural brasileiro e torna o Poder Público res-ponsável pela proteção, promoção e a concessão de incentivospara a produção dos valores culturais. Não contentes, ainda,com todas as ações tuteladas, nova emenda constitucional (nº.71, 2012), cria um bizarro "Sistema Nacional de Cultura", que serege, entre outros princípios, pela "diversidade das expressõesculturais" e que pretende realizar a "integração e interação naexecução das políticas, programas, projetos e ações" nessa área,atendendo também a uma estranha "transversalidade das po-líticas culturais". Ainda pouco satisfeitos com todo esse ativis-mo governamental em torno de bens intangí-veis, os militantes da cultura querem a "amplia-ção progressiva dos recursos contidos nos orça-mentos públicos para a cultura" (inciso XII do §1º), o que promete, para não variar, o estabele-cimento de "sistemas de financiamento à cultu-ra" (inciso VI do § 2º). Não é surpreendente, as-sim, que logo se tenha sugerido uma "bolsa-cul-tura", previsivelmente oferecida sob a forma devale-cinema, vale-teatro ou qualquer outra me-dida do gênero no "país da meia entrada".

Mas o Estado-babá não permite que qualqueroutro setor da vida pública ou privada dos cida-dãos escape a seus cuidados abrangentes e sem-pre bem intencionados. O Art. 217, por exemplo,estabelece que "É dever do Estado fomentar prá-ticas desportivas formais e não-formais, comodireito de cada um"; seu § 3º promete que "O Po-der Público incentivará o lazer, como forma depromoção social", o que significa que o Estadonão pretende abandonar os cidadãos nem mes-mo em seus momentos de lazer. O zelo perfeccionista dos cons-tituintes de 1987-88 não deixou, como se vê, nenhum campo aodesabrigo da proteção benévola do Estado, muito embora elesnão se tenham preocupado da mesma maneira em acelerar o cres-cimento econômico e expandir a riqueza social, como forma desustentar o extremo ativismo dos poderes públicos em todas asáreas de interesse social, coletivo ou privado, sem o que parecedifícil cobrir os custos da onipresença e onipotência do Estadobrasileiro na vida dos brasileiros.

Em algumas passagens, os dispositivos constitucionais setornam tautológicos, ou francamente ridículos, como em algu-mas passagens do Capítulo IV (Da Ciência e Tecnologia), cujoArt. 218 também promete que "O Estado promoverá e incenti-vará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitaçãotecnológicas". O dirigismo irrefreável dos constituintes compa-rece já no § 2º, alertando que "A pesquisa tecnológica voltar-se-ápreponderantemente para a solução dos problemas brasileiros epara o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regio-nal", como se os cientistas e pesquisadores brasileiros não pu-

dessem se dedicar prioritariamente a problemas da humanida-de em geral, ou a trabalhos puramente especulativos.

Mais ridículo ainda é o Art. 219, que nos ensina que "O mer-cado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado demodo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômi-co, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País,nos termos de lei federal." O que seria do patrimônio nacional seele não contasse com um mercado interno? Na mesma linha,também ficamos sabendo, pelo Art. 225, que "A Floresta Ama-zônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o PantanalMato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional..."Ainda bem que os constituintes se encarregaram de nos lembrartão importantes acréscimos ao nosso patrimônio.

O mesmo patriotismo entranhado se manifestava na redaçãooriginal do Art. 222, que reservava a brasileiros natos a proprie-dade de empresas jornalísticas e de comunicações, mas umaemenda (36) de 2002 estendeu a faculdade a empresas constituí-

das sob as leis nacionais, diminuindo o grau exa-cerbado de discriminação e de xenofobia dosconstituintes de 1987-88. Mas a mesma emendanão escapou do patriotismo simplório no mesmoartigo, uma vez que o § 3º do mesmo Art. 222 es-tabelece que uma lei específica "também garan-tirá a prioridade de profissionais brasileiros naexecução de produções nacionais". Todas essasmanifestações de nacionalismo extremado sãosempre prejudiciais ao crescimento e expansãodas indústrias culturais – ou quaisquer outras –no sistema econômico nacional, uma vez que re-duzindo a possibilidade de aportes e investimen-tos estrangeiros numa ampla gama de atividadesque poderiam tornar mais dinâmica vários as-pectos da vida brasileira. Países mais abertos são,por definição, sempre mais avançados e desen-volvidos do que aqueles introvertidos e temero-sos de qualquer influência estrangeira.

O Estado-babá retorna com furor redobradono Art. 227, que em sua nova redação, revista,

ampliada e acrescida pela emenda 65 (2010), assegura que "É de-ver da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, aoadolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vi-da, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissiona-lização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à con-vivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de to-da forma de negligência, discriminação, exploração, violência,crueldade e opressão." Não se duvide que o Estado se encarre-gará – como já faz, mas ainda pretende fazer muito mais – de cui-dar integralmente de todos esses seres frágeis, sem descuidar,obviamente, do idoso, que merece vários capítulos, e políticasinteiras, de defesa, de proteção, de promoção, em diversos tiposde atividades enriquecedoras.

Compatíveis com esse espírito são todas as medidas que as-seguram prestação gratuita (pelo Estado) ou a preços reduzidos,pelo setor privado, de diversos serviços culturais ou de trans-portes – ou de todos aqueles que a imaginação sempre fértil dosmilitantes da fraternidade e da justiça social assim determinar -e que redundam na distribuição de benefícios demagógicos

O zeloperfeccionista dosconstituintes de 1987-88não deixou, como se vê,nenhum campo aodesabrigo da proteçãobenévola do Estado,muito embora eles nãose tenham preocupadoda mesma maneira emacelerar o crescimentoeconômico e expandira riqueza social.

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sempre em detrimento do cidadão-contribuinte e de empresá-rios privados. Os custos, diretos e indiretos – e os desvios e a cor-rupção associados a quaisquer tipos de prestações públicas defavores com recursos arrancados da sociedade – não são jamaisconsiderados pelos legisladores e pelos militantes do Estado-providência nessa extensão infinita de bondades atribuídas pe-lo alto. Poucos líderes políticos, poucos planejadores governa-mentais parecem se preocupar com o ambiente insuportávelque o manancial de generosidades públicas cria para o setor pri-vado, ou, de resto, para todos os cidadãos-trabalhadores e con-tribuintes, uma vez que todas essas medidas, sem exceção, exi-girão constantes aportes de recursos em favor do Estado (ou emdiminuição do faturamento das empresas) e agravarão os níveisjá exageradamente elevados de carga fiscal.

Uma Constituição economicamente esquizofrênica

Não cabe estender ainda mais as demonstrações de irraciona-lidade econômica contidas na maior parte dos dispositivos cons-titucionais que pretendem assegurar a todos os brasileiros sua co-ta de felicidade terrena, se possível assessorados, assistidos, aju-dados e financiados por um Estado generoso, concebido pelosconstituintes como sendo capaz de pensar em tudo que o que po-deria contribuir para a construção de uma sociedade justa, frater-na e igualitária. Que a Constituição tenha sido elaborada de formaimprovisada, sem estudos de impacto suficientes, é prova, porum lado, o número exageradamente elevado de emendas cons-titucionais, aliás, um processo interminável, em todos os camposde sua indiscutivelmente ampla abrangência. Um estudo espe-cífico sobre a natureza, a motivação e, sobretudo, a duvidosa pe-renidade dessas emendas – já que constantemente corrigidas pornovas emendas –, bem como sobre as inúmeras disposições tran-sitórias – as originais e aquelas acrescidas ao longo do tempo –revelaria, por outro lado, o caráter verdadeiramente esquizofrê-nico do texto constitucional, aliás essencialmente mutável em to-dos os seus termos, exceção feita às chamadas cláusulas pétreas(algumas até sujeitas a dúvidas interpretativas).

A concepção básica da Constituição, seu espírito indisfar-çável é a vontade de se corrigir limitações materiais da socie-dade mediante um simples fiat legislativo. Parecem apenas terse esquecido, os constituintes originais e todos aqueles que mi-litam, desde então, por ampliar ainda mais a cornucópia de ge-nerosidades estatais, de que todas essas intervenções públicas,todas as medidas tomadas em favor de indivíduos ou de gru-pos, todos os programas de desenvolvimento e de promoçãode bondades estatais requerem, como é natural no mundo real,alguma provisão, incontornável, de ativos reais (de tipo finan-ceiro ou outro), que precisam ser extraídos de alguma ativida-de concreta. Esta não é, obviamente, nem pode ser, o processode elaboração de leis pelas duas casas do poder legislativo, ouo ambiente algo surrealista dos escritórios da burocracia esta-tal, domínios nos quais parece reinar o moto perpétuo dos re-cursos infinitos e sempre disponíveis.

A exposição aqui conduzida sobre vários – não todos – osdispositivos constitucionais possuindo algum impacto diretoou indireto sobre a vida econômica do País permitiu revelarque os constituintes originais, assim como seus sucessores,

atuaram e atuam sempre com uma visão grandiosa da felici-dade geral da sociedade e do aperfeiçoamento econômico e so-cial do País, mas numa ignorância tão crassa dos efeitos eco-nômicos das medidas e dispositivos aprovados que só nos ca-be culpá-los por ingenuidade, embora alguma incultura ele-mentar também possa explicar a falta de lógica e deconsistência econômica no curso adotado até aqui. Trata-se deuma espécie de corrida desenfreada em direção do bem-estar eda prosperidade, apenas que desprovida das bases materiaisindispensáveis a esse tipo de empreendimento grandioso.

O equívoco elementar é obviamente o de pretender assegurarpor via legislativa o aumento e a distribuição de riquezas uni-camente produzidas pelo setor privado, o menos protegido ouincentivado num documento maciço, destinado a criar felicida-de por meio de leis e decretos governamentais, num desconhe-cimento surpreendente de quais são as fontes de recursos comque devem trabalhar todos os legisladores e os burocratas esta-tais. O viés distributivista, anti-propriedade privada, dirigista eintervencionista é evidente em praticamente todos os títulos ecapítulos da Constituição e não resta dúvida de que as mesmasconcepções que animaram os constituintes de 1987-88 na suavasta obra de correção de desigualdades e de injustiças perma-necem intactas, talvez até mais desenvolvidas, nos legisladoresque teoricamente seguem o espírito da Carta que já cumpriu oseu primeiro quarto de século com um número de emendas e dedisposições transitórias provavelmente superior ao de artigoscompletos de diversas outras constituições estrangeiras.

Um dos erros, entre muitos, dos constituintes – desculpável,talvez, pela sua generosidade intrínseca, e de boa-fé – foi a depretender construir um regime de bem-estar social, um sistemasocial-democrático avançado, característico de países da Euro-pa ocidental, antes que o Brasil tivesse galgado patamares maiselevados de acumulação de riquezas e graus igualmente eleva-dos de produtividade do trabalho. A maior parte dos paísesavançados criou uma rede – por vezes excessivamente generosa– de benefícios sociais, depois de terem alcançado níveis satis-fatórios de renda e riqueza; o Brasil pretendeu fazê-lo num pa-tamar ainda baixo de acumulação de fontes sustentáveis de cria-ção de riquezas. O Estado distributivista – e intervencionista, ca-be lembrar igualmente – é incapaz de fazê-lo nas condiçõesatuais do contrato social criado pela Constituição de 1988; o pró-prio Estado, que no passado foi um indutor razoável do cresci-mento econômico e do desenvolvimento tecnológico, tornou-se, atualmente, até por força dos muitos interesses corporativossurgidos no bojo da Constituição, um obstrutor desses mesmosprocessos de crescimento e de desenvolvimento.

Tais erros podem ter sido cometidos pelos constituintes nacrença ingênua de que estavam distribuindo o bem e repartindouma riqueza desigualmente distribuída na sociedade. A cons-tatação de que a via escolhida leva a impasses estruturais comoos aqui constatados deveria promover uma conscientização e aadoção de uma outra rota. Persistir nos equívocos cometidosnuma época de redenção do autoritarismo e de afirmação de di-reitos sociais não seria mais ingenuidade ou simples ignorância.Representaria uma demonstração de estupidez econômica in-compatível com o nível de educação política – mas talvez nãoeconômica – já alcançado pela sociedade brasileira.

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Data Cadernos Setor 12 de março Construção Civil Constr.Civil/Imob. 01 de abril Energia Elétrica Energia 25 de abril Contabilidade, Auditoria & Consultoria Serviços 03 de junho Pós-graduação Educação 12 de junho Franchising Comércio & Serviços 25 de junho Automação Comercial Tecnologia 16 de julho Dia do Comerciante Comércio 22 de julho Padarias Alimentos e Bebidas 14 de agosto Tecnologia, Software e Serviços Tecnologia 21 de agosto Previdência Privada Finanças 05 de setembro Turismo e Hotelaria Indústria e Serviços 17 de setembro Logística Logística 20 de setembro Contador Serviços 04 de Outubro Micro & Pequenas Empresas Empreendedorismo 11 de outubro Seguros Finanças 16 de outubro Shopping Centers Comércio 06 de novembro Responsabilidade Ambiental Sustentabilidade 12 de dezembro Natal Comércio

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