552

digitalsource - Portal Conservadorportalconservador.com/livros/Marc-Bloch-A-Sociedade-Feudal.pdf · Depois de recapitular o meio e de definir a mentalidade, o autor analisa os vínculos

  • Upload
    ngoliem

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • http://groups.google.com.br/group/digitalsource

    MMaarrcc BBlloocchh

    AA SSOOCCIIEEDDAADDEE FFEEUUDDAALL

    http://groups.google.com.br/group/digitalsource

  • Fabricador

    de instrumentos de trabalho,

    de habitaes,

    de culturas e sociedades,

    o homem tambm

    agente transformador

    da histria.

    Mas qual ser o lugar

    do homem na histria

    e o da histria na vida do homem?

  • Ttulo original : La societ Fodal

    Editions Albin Michel, Paris

    Traduo de Emanuel Loureno Godinho

    Reviso de Edies 70

    Capa de Alceu Saldanha Coutinho

    Reservados os direitos para todos os pases de Lngua Portuguesa

    Av. Duque de Avila, 69 r/c Esq. - 1000 - LISBOA

    Telefs. 55 68 98 - 57 20 01

    Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES

    Rua Conselheiro Ramalho, 330-340 - So Paulo

    Digitalizado e Formatado Por:

    Uther Pendragon & Dayse Duarte

  • MMMAAARRRCCC BBBLLLOOOCCCHHH

    AA SSOOCCIIEEDDAADDEE

    FFEEUUDDAALL

  • NDICE*

    Apresentao .......................................................................................... 11

    Introduo - orientao geral da investigao ....................................... 13

    .

    PRIMEIRO TOMO

    A FORMAO DOS LAOS DE DEPENDNCIA

    Primeira parte O MEIO

    Primeiro livro AS LTIMAS INVASES

    CAP. I - Muulmanos e Hngaros

    1. A Europa invadida e cercada ..................................................... 20

    2. Os Muulmanos ......................................................................... 21

    3. A ofensiva hngara .................................................................... 25

    4. Fim das invases hngaras ......................................................... 29

    .

    CAP. II - 4 Os Normandos

    1. Caractersticas gerais das invases escandinavas ...................... 34

    2. Da incurso possesso ........................................... .................. 39

    3. As possesses escandinavas: a Inglaterra ................. ................. 42

    4. As possesses escandinavas: a Frana ........................ ............... 47

    5. A cristianizao do Norte .................................... ....................... 52

    6. Em busca das causas ................................... ............................... 57

    .

    CAP. III - Algumas consequncias e alguns ensinamentos das invases

    1. A desordem ....................................................................... ......... 62

    2. O contributo humano: o testemunho da lngua e dos nomes ..... 66

    3. O contributo humano: o testemunho do Direito e da Estrutura

    Social .............................................................................................. 72

    4. O contributo humano: problemas de provenincia .................... 75

    5. Os ensinamentos ........................................................................ 77

    .

    Segundo livro AS CONDIES DE VIDA

    E A ATMOSFERA MENTAL

    CAP. I -Condies materiais e tonalidades econmicas

    1. As duas idades feudais ............................................................... 83

    2. A primeira idade feudal: o povoamento ..................................... 84

    3. A primeira idade feudal: a vida de relao ................................ 86

    4. A primeira idade feudal: as trocas ............................................. 91

    5. A revoluo econmica da segunda Idade feudal ...................... 94

    .

    CAP. II -Maneiras de sentir e de pensar

    1. O Homem perante a Natureza e a durao ................................. 99

    2. A expresso .............................................................................. 102

    * Este ndice informa a paginao da edio digitalizada. No decorrer do texto foram inseridas, entre

    colchetes, as marcas de paginao referente edio original para maior fidelidade de consulta

    acadmica.

  • 3. Cultura e classes sociais ........................................................... 107

    4. A mentalidade religiosa ........................................................... 110

    .

    CAP. III - A memria colectiva

    1. A historiografia ........................................................................ 117

    2. A Epopia ................................................................................. 122

    .

    CAP. IV - O Renascimento Intelectual na Segunda Idade Feudal

    1. Algumas caractersticas da nova cultura .................................. 134

    2. A tomada de conscincia ......................................................... 138

    .

    CAP. V - Os fundamentos do Direito

    1. O imprio do costume .............................................................. 141

    2. As caractersticas do direito consuetudinrio .......................... 145

    3. As renovaes dos direitos escritos ......................................... 149

    .

    Segunda Parte - OS LAOS DE HOMEM PARA HOMEM

    Primeiro livro - OS LAOS DE SANGUE

    CAP. I - A slidariedade da linhagem

    1. Os Amigos Carnais .............................................. ................ 154

    2. A vendetta 157

    3. A solidariedade econmica ..................................................... 163

    .

    CAP. II - Caractersticas e vicissitudes do lao de parentesco

    1. As realidades da vida familiar .................................................. 167

    2. A estrutura da linhagem ........................................................... 170

    3. Laos de sangue e feudalismo .................................................. 175

    .

    Segundo livro - A VASSALIDADE E O FEUDO

    CAP. I - A homenagem vasslica

    1. O homem de outro homem ...................................................... 178

    2. A homenagem na era feudal .................................................... 179

    3. A gnese das relaes de dependncia pessoal ........................ 181

    4. Os guerreiros domsticos ......................................................... 185

    5. A vassalidade carolngia .......................................................... 191

    6. A elaborao de vassalidade clssica ....................................... 195

    .

    CAP. II - O feudo

    1. Benefcio e feudo: a tenure salrio ....................................... 198

    2. O chasement dos vassalos ........................................................ 204

    .

    CAP. III - Perspectiva europeia

    1. A diversidade francesa: Sudoeste e Normandia ....................... 213

    2. A Itlia ..................................................................................... 214

    3. A Alemanha ............................................................................. 217

    4. Fora da influncia carolngia: a Inglaterra anglo -saxnica e a

    Espanha dos reinos asturo-leoneses ............................................. 218

    5. Os feudalismos de importao ....................................... .......... 226

  • .

    CAP. IV - Como o feudo passou ao patrimnio do vassalo

    1. O problema da hereditariedade: honras e simples feudos .... 229

    2. A evoluo: o caso francs ...................................................... 233

    3. A evoluo: no Imprio ........................................................... 237

    4. As transformaes do feudo, vistas atravs do seu direito

    sucessrio ..................................................................................... 239

    5. A fidelidade no comrcio ......................................................... 249

    .

    CAP. V - O homem de vrios senhores

    1. A pluralidade das homenagens ................................................ 252

    2. Grandeza e decadncia da homenagem lgia ........................... 256

    .

    CAP. VI - Vassalo e senhor

    1. O auxlio e a proteco ............................................................ 261

    2. A vassalidade em lugar da linhagem ....................................... 267

    3. Reciprocidade e rupturas .......................................................... 271

    .

    CAP. VII - O paradoxo da vassalagem

    1. As contradies dos testemunhos ............................................ 274

    2. Os vnculos de direito e o contacto humano ............................ 279

    .

    Terceiro livro - OS VNCULOS DE DEPENDNCIA

    NAS CLASSES INFERIORES

    CAP. I - O senhorio

    1. A terra senhorial ....................................................................... 283

    2. As conquistas do sistema senhorial .......................................... 285

    3. Senhor e foreiros (tenanciers) .................................................. 292

    .

    CAP. II - Servido e liberdade

    1. O ponto de partida: as condies pessoais na poca franca ..... 299

    2. A servido francesa .................................................................. 305

    3. O caso alemo .......................................................................... 312

    4. Na Inglaterra: as viciss itudes da vilanagem ............................. 316

    .

    CAP. III - Rumo s novas formas do regime senhorial

    1. A estabilizao dos encargos ................................................... 322

    2. A Transformao das relaes humanas .................................. 326

    .

    SEGUNDO TOMO

    AS CLASSES E O GOVERNO DOS HOMENS

    Primeiro livro - AS CLASSES

    CAP. I - Os nobres como classe de facto

    1. O desaparecimento das antigas aristocracias de sangue .......... 330

    2. Dos diversos sentidos da palavra nobre, na primeira idade

    feudal ........................................................................... ................. 333

    3. A classe dos nobres como classe senhorial .............................. 336

  • 4. A vocao guerreira ................................................................. 337

    .

    CAP. II - A vida nobre

    1. A guerra ................................................................................... 341

    2. O nobre em sua casa ................................................................ 347

    3. Ocupaes e distraces .......................................................... 351

    4. As regras de conduta ................................................................ 355

    .

    CAP. III - A cavalaria

    l. A investidura ............................................................................. 363

    2. O Cdigo de Cavalaria ............................................................. 368

    .

    CAP. IV - A transformao da nobreza de facto em nobreza de direito

    1. A hereditariedade da investidura e o enobrecimento ............... 372

    2. Constituio dos descendentes de cavaleiros em classe

    privilegiada .................................................................................. 378

    3. O direito dos nobres ................................................................. 380

    4. A excepo inglesa .................................................................. 383

    .

    CAP. V - As distines de classe no interior da nobreza

    1. A hierarquia do poder e da categoria ....................................... 386

    2. Minesteriales e cavaleiros-servos ............................................ 391

    .

    CAP VI - O clero e as classes profissionais

    1. A sociedade eclesistica no feudalismo ................................... 401

    2. Vilos e burgueses .................................................................. 409

    .

    Segundo livro - O GOVERNO DOS HOMENS

    CAP. I - As justias

    1. Caractersticas gerais do regime judicirio .............................. 414

    2. A diviso das justias ............................................................... 417

    3. Julgamento pelos pares, ou julgamento pelos senhores? ......... 425

    4. A margem do desmembramento: sobrevivncia e factores novos

    ....................................................................................................... 427

    .

    CAP. II - Os poderes tradicionais: realezas e Imprio

    1. Geografia das realezas ............................................................. 432

    2. Tradies e natureza do poder real .......................................... 437

    3. A transmisso do poder real: problemas dinsticos ................. 441

    4. O Imprio ................................................................................. 448

    .

    CAP. III - Dos principados territoriais s castelanias

    1. Os principados territoriais ........................................................ 453

    2. Condados e castelanias ............................................................ 459

    3. As dominaes eclesisticas .................................................... 461

    .

    CAP. IV - A desordem e a luta contra a desordem

    1. Os limites dos poderes ............................................................. 469

    2. A violncia e a aspirao paz ................................................ 472

  • 3. Paz e trguas de Deus .............................................................. 474

    .

    CAP. V - Rumo reconstituio dos estados: as evolues nacionais

    1. Razes do reagrupamento das foras ....................................... 484

    2. Uma monarquia nova: os Capetos ........................................... 486

    3. Uma monarquia arcaizante: a Alemanha ................................. 490

    4. A monarquia anglo-normanda: feitos de conquistas e

    sobrevivncias germnicas ........................................................... 493

    5. As nacionalidades .................................................................... 496

    .

    Terceiro livro - A FEUDALIDADE

    COMO TIPO SOCIAL E A SUA ACO

    CAP. I - A feudalidade como tipo social

    1. Feudalidade ou feudalidades: singular ou plural? .................... 503

    2. As caractersticas fundamentais da feudalidade europeia ........ 505

    3. Um corte atravs da histria comparada ................................. 509

    .

    CAP. II - Os prolongamentos da feudalidade europeia

    1. Sobrevivncias e revivescncias .............................................. 512

    2. A ideia guerreira e a ideia de contrato ..................................... 515

    . BIBLIOGRAFIA ................................................................................ 518

    .

  • AA FFEERRDDIINNAANNDD LLOOTT

    Homenagem de respeitoso e reconhecido afecto.

    J foi dito, e com muita justia, que a obra de Marc Bloch, professor da Sorbonne,

    renovou a viso histrica tradicional da Idade Mdia. No presente volume, o leitor

    encontrar o essencial do pensamento deste historiador que se situa entre os maiores,

    apesar de a sua carreira ter sido tragicamente abreviada pela sua morte herica na

    Resistncia, em 1944.

    Ele o historiador exemplar que estudou o passado em todos os aspectos ao

    mesmo tempo e utilizando todos os meios que podem servir a histria. A vastido da

    sua documentao impressionante. No se contenta com as fontes propriamente ditas,

    que emprega com toda a prudncia... e com os trabalhos chamados de segunda mo, que

    examinou cuidadosamente. Recorre lingustica: a etimologia das palavras, as suas

    mudanas de formas e de sentido, a toponmia e a onomstica fornecem-lhe

    informaes preciosas... Utiliza as canes de gesta... Arqueologia, geografia social,

    costumes agrrios: nada h que lhe escape. Em suma, a partir dos fenmenos

    particulares e localizados, eleva-se o mais possvel at explicao geral que sempre,

    terminantemente, de ordem psicolgica. (H. Berr).

    Europa de Oeste e do Centro... perodo dos meados do sculo IX at aos

    primeiros decnios do sculo XIII: eis, no espao e no tempo, os limites do presente

    volume... Dentro destes limites, o tema de Marc Bloch a sociedade chamada feudal.

    Pode discutir-se a validez de tal rtulo, mas isso no tem importncia: existe uma

    realidade a que se aplicou esta designao e existe uma estrutura social que caracteriza

    esta realidade; esta estrutura que o autor se prope analisar da forma mais completa

    possvel.

    Esta anlise pretexto de pginas absolutamente notveis, porque mergulham na

    intimidade do passado, porque provocam a reflexo sobre a atitude do homem dessa

    poca perante a natureza [Pg 009] e a durao e, de um modo geral, sobre os dados

    psicolgicos que so a prpria essncia da histria (H. Berr).

    Depois de recapitular o meio e de definir a mentalidade, o autor analisa os

    vnculos de homem para homem que caracterizam o sistema feudal, numa espcie de

    participao que esses vnculos criaram: todo um complexo de relaes pessoais, de

  • dependncia e de proteco, resulta na vassalagem. Existe uma subordinao, do cimo

    ao fundo da escala social, dos indivduos uns aos outros, com tudo o que ela implica,

    tanto no plano moral como no plano econmico. Acima dos que trabalham e at acima

    daqueles que rezam, esto os que batalham e para os quais a guerra a razo de

    viver.(M. Bloch).

    Avaliar-se- quais foram os diversos papis desempenhados pela Igreja; depois,

    qual foi a aco da realeza, por um lado, e por outro, a da fora burguesa, causas de

    declnio e de desagregao do feudalismo. A cidade, a comuna, o juramento dos

    iguais: foi esse, diz Marc Bloch, ... o fermento propriamente revolucionrio,

    violentamente adverso a um mundo hierrquico. Uma nova fora nascia, pouco a

    pouco, em frente aos castelos que haviam sido durante vrios sculos os nicos pontos

    de cristalizao do poder.

    Este livro, que se tornou um clssico, est na base de toda a documentao sria

    sobre a Idade Mdia. Alm do mais, a aco de um sbio como Marc Bloch, que no

    abordou nenhum assunto que no tenha enriquecido, nunca acaba, pois, sublinha Henri

    Berr, incessantemente imprime aos historiadores impulso para ir mais longe. O

    objectivo que lhe era mais caro era o da L'volution de l'Humanit (A Evoluo da

    Humanidade): nunca permitir que o leitor se esquea de que a histria conserva todo

    o encanto de uma pesquisa inacabada.

    PAUL CHALUS

    Secretrio-Geral

    do Centro Internacional de Sntese

    Nota: Este trabalho rene os tomos XXXIV e XXXIV bis da Bibliothque de

    Synthse Historique Lvolution de l'Humanit, fundada por Henri Berr e dirigida,

    depois da sua morte, pelo Centre International de Synthse, do qual foi tambm o

    criador.

    [Pg 010]

  • IINNTTRROODDUUOO

    ORIENTAO GERAL DA INVESTIGAO

    No h mais de dois sculos que, sob o ttulo La Socit Fodale, um livro pode

    ter a esperana de dar antecipadamente uma ideia do seu contedo. No que o objectivo

    em si seja muito antigo. Sob a sua forma latina - feodalis - data da Idade Mdia. Mais

    recente, o substantivo feudalismo remonta, no mnimo, ao sculo XVII. Porm, um e

    outro termo conservaram ao longo do tempo um valor estritamente jurdico. Sendo o

    feudo, como veremos, um modo de posse dos bens reais, considerava-se feudal aquilo

    que se relacionava com o feudo - assim se exprimia a Academia - e feudalidade no s

    a qualidade de feudo como os encargos prprios desse tipo de posse. Tratava-se, disse

    em 1630 o lexicgrafo Richelet, de termos palacianos, no de histria. Quando se

    largou o sentido desses vocbulos at ao ponto de serem usados para designar um estado

    de civilizao? Governo Feudal e feudalismo figuram, nesta acepo, nas Lettres

    Historiques sur les Parlements, publicadas em 1727, cinco anos depois da morte do seu

    autor, o conde de Boulainvilliers.1 Este o exemplo mais remoto que uma investigao

    bastante cuidadosa me permitiu descobrir. Talvez que outro investigador venha a ser um

    dia mais feliz. Este curioso homem, Boulainevilliers, que era ao mesmo tempo amigo de

    Fnelon e tradutor de Espinosa, e acima de tudo virulento apologia da nobreza, a qual

    considerava oriunda dos chefes germnicos, com menos inspirao e mais cincia, uma

    espcie de Gobineau* antecipado - somos tentados facilmente pela ideia de fazer dele,

    at mais completa informao, o inventor de uma nova classificao histrica. Pois, em

    verdade, disso mesmo que se trata e os nossos estudos [Pg 011] conheceram poucas

    fases to decisivas como aquele momento em que os Imprios, dinastias, grandes

    sculos, cada um colocado sob a invocao de um heri epnimo, em suma, todos esses

    velhos moldes oriundos de uma tradio monrquica e oratria, comearam a ceder o

    lugar a um outro tipo de divises, baseadas na observao dos fenmenos sociais.

    1 Histoire de l'ancien gouvernameni de la France avec XIV Lettres Historiques sur les Parlements ou

    tats-Gnraux. Haia, 1727. A quarta carta tem por ttulo Dtail du gouvernement fodal et de l'tablissement des Fiefs (t. I, p. 286) onde se l: Alarguei-me no extracto desta ordem, por a julgar

    adequada a dar uma ideia exacta do antigo feudalismo. * Gobineau - diplomata e escritor francs, autor do Essai sur l'ingalit des races humaines, cujas teses

    influenciaram os adeptos do racismo germnico, e de algumas obras de fico. (N. do T.)

  • No entanto, estava reservado a um escritor mais ilustre dar o direito de cidadania a

    esta noo e ao seu rtulo. Montesquieu tinha lido Boulainvilliers. O vocabulrio dos

    juristas, alis, no o assustava; e a linguagem literria, apenas por ter passado pelas suas

    mos, no iria sair mais enriquecida com os despojos da gria forense? Se, ao que

    parece, ele evitou a palavra feudalismo, demasiado abstracta, sem dvida, na sua

    opinio, foi ele, incontestavelmente, quem imps ao pblico culto do seu tempo a

    convico de que as leis feudais caracterizaram um momento da histria. Do nosso

    pas, as palavras, com o seu contedo, passaram s outras lnguas da Europa, ou

    simplesmente copiadas ou, como em alemo, traduzidas (Lehnwesen). Finalmente a

    Revoluo, erguendo-se contra o que subsistia ainda das instituies baptizadas outrora

    por Boulainvilliers, acabou por popularizar o nome que, com intenes totalmente

    opostas, ele lhe havia dado. A Assembleia Nacional, diz o famoso decreto de 11 de

    Agosto de 1789, destruiu completamente o regime feudal. Daqui em diante, como pr

    em dvida a realidade de um sistema social cuja runa custara tantos sacrifcios?2

    No entanto, esta palavra, votada a uma sorte to favorvel, preciso confessar que

    era mal escolhida. evidente que as razes que, na origem, decidiram a sua escolha

    parecem bastante claras. Contemporneos da monarquia absoluta, Boulainvilliers e

    Montesquieu consideravam que a fragmentao da soberania entre uma multido de

    pequenos prncipes ou at de senhores de aldeia, era a singularidade mais

    impressionante da Idade Mdia. Era esta caracterstica que eles julgavam exprimir ao

    pronunciarem a palavra feudalismo, pois quando falavam de feudos, referiam-se umas

    vezes a principados territoriais, outras a senhorios. Mas, na realidade, nem todos os

    senhorios eram feudos, nem todos os feudos eram principados ou senhorios. Podemos,

    sobretudo, duvidar de que um tipo de organizao social to complexo possa ser

    rigorosamente qualificado, seja por causa do seu aspecto exclusivamente poltico, seja,

    se tomarmos feudo em todo o rigor da sua acepo jurdica, por uma forma de direito

    real, entre muitas outras. As palavras, todavia, so como moedas muito usadas, fora

    de circularem de mo em mo perdem o seu relevo etimolgico. Na sua utilizao

    actual, feudalismo e sociedade feudal abrangem um conjunto intrincado de

    imagens em que o feudo propriamente dito deixou de figurar em primeiro plano. Com a

    [Pg 012] condio de tratar estas expresses apenas como rtulos, daqui para o futuro

    2 Entre os Franceses cuja botoeira ostenta hoje uma fita ou uma roseta vermelhas, quantos sabem que um

    dos deveres impostos sua ordem pela sua primeira constituio de 19 de Maio de 1802 era

    combater... qualquer empreendimento tendente ao restabelecimento do regime feudal?

  • consagrados, de um contedo que ainda no foi definido, o historiador pode servir-se

    deles sem mais remorsos do que aqueles que sente o fsico quando, desprezando a

    lngua grega, se obstina em chamar tomo a uma realidade que ele passa o seu tempo

    a fragmentar.

    Trata-se de uma grave questo saber se outras sociedades, em outros tempos ou

    sob outros cus, no tero apresentado uma estrutura assaz semelhante, nos seus traos

    fundamentais, do nosso feudalismo ocidental, a ponto de merecerem, por seu lado, ser

    denominadas feudais. Voltaremos a encontrar esta questo no fim deste livro, mas ele

    no lhe dedicado. O feudalismo cuja anlise vamos tentar fazer aquele que, em

    primeiro lugar, recebeu esta designao. Como quadro cronolgico, a investigao, sob

    reserva de alguns problemas de origem ou de prolongamento, limitar -se-, portanto, a

    esse perodo da nossa histria que se estendeu, mais ou menos, dos meados do sculo

    IX at aos primeiros decnios do sculo XIII; como quadro geogrfico, situar-se- na

    Europa de Oeste e Central. Ora, se as datas no merecem outra justificao alm do

    prprio estudo, os limites de espao, pelo contrrio, parecem exigir um breve

    comentrio.

    A civilizao antiga centrava-se em redor do Mediterrneo. Escrevia Plato que

    da Terra habitamos apenas esta parte que se estende desde o Faso at s Colunas de

    Hrcules, espalhados em volta do mar como formigas ou rs em redor de um charco.3

    Apesar das conquistas, estas mesmas guas, decorridos muitos sculos, permaneciam o

    eixo da Romania. Um senador da Aquitnia podia fazer a sua carreira junto do Bsforo

    e possuir vastos domnios na Macednia. As grandes oscilaes dos preos agitavam a

    economia desde o Eufrates at Glia. Sem os trigos da frica, a existncia da Roma

    imperial no poderia conceber-se, tal como, sem o africano Agostinho, a teologia

    catlica no existiria. Em contrapartida, transposto o Reno, comeava o imenso pa s dos

    Brbaros, estranho e hostil.

    Ora, no limiar do perodo a que chamamos Idade Mdia, dois profundos

    movimentos nas massas humanas tinham vindo destruir este equilbrio - no nos

    compete aqui averiguar em que medida ele j estava abalado por dentro - para o

    substituir por uma constelao de desenho bem diferente. Primeiro foram as invases

    3 Fdon, 109 b.

  • dos Germanos, depois as conquistas muulmanas. Na maior parte das regies

    compreendidas outrora na fraco ocidental do Imprio, por vezes uma mesma

    dominao, a comunidade dos hbitos mentais e sociais, em todo o caso, unem [Pg 013]

    futuramente as terras de ocupao germnica. Pouco a pouco veremos juntarem-se a

    elas os pequenos grupos celtas das ilhas, mais ou menos assimilados. Pelo contrrio, a

    frica do Norte prepara-se para seguir outros destinos. O regresso ofensivo dos

    Berberes tinha preparado a ruptura, o Islo consuma-a. Alis, nas margens do Levante,

    as vitrias rabes, ao fixarem nos Balcs e na Anatlia o Antigo Imprio do Oriente,

    tinham feito deste o Imprio Grego. As comunicaes difceis, a estrutura social e

    poltica muito especial, a mentalidade religiosa e a ossatura eclesistica muito diferentes

    das da cristandade isolam-na, cada vez mais, das cristandades do Oeste. De facto, se, a

    Leste do continente, o Ocidente se expande largamente sobre os povos eslavos e

    propaga em alguns deles, juntamente com a sua forma religiosa prpria, que o

    catolicismo, os seus modos de pensar e at algumas das suas instituies, as

    colectividades que pertencem a este ramo lingustico no deixam de prosseguir, na sua

    maioria, uma evoluo plenamente original.

    Limitado por estes trs blocos - o maometano, o bizantino e o eslavo-

    incessantemente ocupado, alm disso, desde o sculo X com o alargamento das suas

    fronteiras instveis, o feixe romano-germnico estava seguramente longe de apresentar

    em si mesmo uma homogeneidade perfeita. Sobre os elementos que o compunham

    pesavam os contrastes do seu passado, demasiado vivos para no prolongarem os seus

    efeitos at ao presente. Mesmo a, onde o ponto de partida foi quase idntico, com a

    continuao, certas evolues bifurcaram. No entanto, por muito acentuadas que tenham

    sido essas diversificaes, como poderamos deixar de reconhecer, acima delas, uma

    tonalidade de civilizao comum: a do Ocidente? No apenas com vista a poupar ao

    leitor o aborrecimento de pesados adjectivos que, nas pginas que vo seguir-se, onde

    poderia esperar-se ler Europa Ocidental e Central, ler-se- muito simplesmente

    Europa. Na verdade, que importa a acepo do termo e os seus limites, na velha

    geografia fictcia das cinco partes do mundo? O que conta o seu valor humano. Ora,

    onde germinou e se desenvolveu, para depois se espalhar pelo globo, a civilizao

    europeia, seno entre os homens que viviam entre o Tirreno, o Adritico, o Elba e o

    Oceano? Isso mesmo sentiram j, mais ou menos obscuramente, o cronista espanhol

    que, no sculo VIII se comprazia em qualificar de europeus os Francos de Carlos

    Martel, vitorioso contra o Islo, ou, cerca de duzentos anos mais tarde, o monge saxo

  • Widukind, glorificando Oto o Grande, que tinha repelido os Hngaros, como o

    libertador da Europa.4 Neste sentido, que o mais rico de contedo histrico, a

    Europa foi uma criao da alta Idade Mdia. J existia quando se iniciaram para ela os

    tempos feudais propriamente ditos. [Pg 014]

    Aplicada a uma fase da histria europeia, nos limites fixados deste modo, a

    palavra feudalismo tem sido largamente objecto de interpretaes por vezes quase

    contraditrias, como veremos; a sua prpria existncia atesta a originalidade

    instintivamente reconhecida ao perodo que ela qualifica. De tal modo que um livro

    sobre a sociedade feudal pode definir-se como um esforo para responder a uma

    pergunta posta pelo seu prprio ttulo: quais foram as singularidades que mereceram a

    este fragmento do passado ter sido destacado dos seus vizinhos? Por outras palavras, o

    que nos propomos tentar aqui a anlise e a explicao de uma estrutura social, com as

    suas conexes. Tal mtodo, a afirmar-se fecundo pela experincia, poder ser

    empregado noutros campos de estudos, limitados por fronteiras diferentes e espero que

    a novidade deste empreendimento far perdoar os seus erros de execuo.

    A prpria amplitude da investigao, concebida deste modo, tornou necessrio

    dividir a apresentao dos resultados. O primeiro tomo descrever as condies gerais

    do meio social, depois a constituio dos laos de dependncia de homem para homem,

    os quais, acima de tudo, conferiram estrutura feudal a sua cor prpria. O segundo

    dedicar-se- ao desenvolvimento das classes e organizao dos governos. sempre

    difcil talhar na matria viva. Pelo menos, como o momento que viu simultaneamente as

    classes antigas definirem os seus contornos, uma classe nova, a burguesia, afirmar a sua

    originalidade e os poderes pblicos sarem do seu longo enfraquecimento, foi tambm

    aquele em que comearam a diluir-se, na civilizao ocidental, os traos mais

    especificamente feudais, dos dois estudos sucessivamente oferecidos ao leitor - sem que

    tenha sido possvel fazer entre eles uma separao estritamente cronolgica - o primeiro

    ser, sobretudo, o da gnese e o segundo o da evoluo final e seus prolongamentos.

    Mas o historiador no tem nada de homem livre, pois do passado apenas conhece

    aquilo que esse passado quer mostrar-lhe. Por outro lado, quando a matria que tenta

    abarcar demasiado vasta para lhe permitir despojar-se pessoalmente de todos os

    4 Auctores Antiquissimi (Mon. Germ.), t. XI, p. 362; WIDUKIND, I, 19.

  • testemunhos, ele sente-se sem cessar limitado, na sua investigao, pelo estado das

    pesquisas. Evidentemente, no encontraro aqui a descrio de nenhuma dessas guerras

    rendilhadas de que a erudio, mais do que uma vez, ofereceu o espectculo. Como

    suportar que a histria possa ceder o lugar aos historiadores? Pelo contrrio, procurei

    nunca dissimular, fossem quais fossem as suas origens, as lacunas ou imprecises dos

    nossos conhecimentos. No temi, com isso, correr o perigo de repelir o leitor. Ao invs,

    seria por apresentar sob um aspecto falsamente esclerosado uma cincia [Pg 015] que

    toda movimento que se correria o risco de atrair sobre ela o tdio e a frieza. Um dos

    homens que mais avanou na compreenso das sociedades medievais, o grande jurista

    ingls Maitland, dizia que um livro de histria deve fazer fome. Fome de aprender e,

    sobretudo, de investigar, compreenda-se. Este livro no tem desejo mais forte do que

    abrir o apetite a alguns estudiosos.5

    [Pg 016] Ttulo

    [Pg 017] Pgina em branco

    [Pg 018] Pgina em branco

    5 Qualquer trabalho de histria, por pouco que se destine a um pblico relativamente vasto, levanta um

    problema prtico dos mais perturbantes ao seu autor: o das referncias. A equidade exigiria, talvez, que

    fossem multiplicados, nas notas, os nomes dos doutos trabalhos sem os quais esse livro no existiria. Porm, com o risco de incorrer na desagradvel reprovao por ingratido, julguei que poderia deixar

    bibliografia, que se encontra no fim do volume, o cuidado de guiar o leitor nos caminhos da literatura erudita. Pelo contrrio, tomei como norma nunca citar um documento sem proporcionar aos

    trabalhadores um pouco experientes o meio de encontrar a passagem visada e de verificar a interpretao. Se a referncia no estiver expressa porque as informaes fornecidas pela prpria

    exposio, e na publicao donde extrado o testemunho, a presena de ndices bem feitos bastam para tornar fcil a busca. No caso contrrio, uma nota serve de flecha indicativa. Num tribunal, a final, o

    estado civil das testemunhas muito mais importante do que o dos advogados.

  • PPRRIIMMEEIIRROO TTOOMMOO

    A FORMAO DOS LAOS DE DEPENDNCIA

  • PRIMEIRA PARTE

    OO MMEEIIOO

    PRIMEIRO LIVRO

    AASS LLTTIIMMAASS IINNVVAASSEESS

    CAPITULO I

    MMUUUULLMMAANNOOSS EE HHNNGGAARROOSS

    I. A Europa invadida e cercada

    Vedes desabar sobre vs a clera do Senhor... S h cidades despovoadas,

    mosteiros em runas ou incendiados, campos reduzidos ao abandono... Por toda a parte o

    poderoso oprime o fraco e os homens so semelhantes aos peixes do mar que

    indistintamente se devoram uns aos outros. Assim falavam, em 909, os bispos da

    provncia de Reims, reunidos em Trosly. A literatura dos sculos IX e X, as cartas, as

    deliberaes dos conclios, esto cheios destas lamentaes.Tenhamos em considerao,

    na medida em que o desejarmos, a nfase e o pessimismo natural dos oradores sagrados.

    Mesmo assim, neste tema continuamente orquestrado e, alis, confirmado por tantos

    factos, somos forados a reconhecer algo mais do que um lugar comum. Evidentemente,

    naquele tempo, as pessoas que sabiam ver e comparar, nomeadamente os clrigos,

    tinham a sensao de viver numa odiosa atmosfera de desordens e de violncias. O

    feudalismo medieval nasceu no seio de uma poca infinitamente perturbada. Em certa

    medida, ele nasceu dessas mesmas perturbaes. Ora, entre as causas que contriburam

    para criar ou manter um ambiente to tumultuoso, algumas existiam completamente

    estranhas evoluo interior das sociedades europeias. Formada alguns sculos antes,

    no escaldante cadinho das invases germnicas, a nova civilizao ocidental, por seu

    lado, aparecia como uma cidadela sitiada ou, melhor, mais do que semi-invadida. E por

    trs lados ao mesmo [Pg 019] tempo: ao sul, pelos fiis do Islo, rabes ou Arabizados;

    a este, pelos Hngaros, ao norte, pelos Escandinavos.

  • II. Os Muulmanos

    Dos inimigos que acabamos de enumerar, o Islo era decerto o menos perigoso.

    No que devamos apressar-nos a falar em decadncia, a seu respeito. Durante largo

    tempo, nem a Glia nem a Itlia tiveram algo a oferecer, entre as suas pobres cidades,

    que se aproximasse do esplendor de Bagd ou de Crdova. O mundo muulmano, com

    o mundo bizantino, exerceu sobre o Ocidente, at ao sculo XII, uma verdadeira

    hegemonia econmica: as nicas moedas de ouro que circulavam ainda nas nossas

    regies saam das oficinas gregas ou rabes, ou ento-tal como muitas outras moedas de

    prata imitavam-lhes as cunhagens. E se os sculos VIII e IX viram quebrar-se, para

    sempre, a unidade do grande califado, os diversos Estados erguidos dos seus destroos

    mantinham-se ainda potncias temveis. Mas da em diante, tratava-se menos de

    invases propriamente ditas do que de guerras de fronteiras. Deixemos o Oriente, onde

    os Basileis das dinastias amoriana e macednica (828-1056) penosa e valentemente

    procederam reconquista da sia Menor. As sociedades ocidentais apenas se chocavam

    com os Estados islmicos em duas frentes.

    Em primeiro lugar, a Itlia Meridional, que era como que o terreno de caa dos

    soberanos que reinavam sobre a antiga provncia romana de frica: emires aglabitas de

    Cairuo, depois, a partir do incio do sculo X, califas fatimidas. A Siclia havia sido

    pouco a pouco conquistada pelos Aglabitas aos Gregos, que a dominavam desde

    Justiniano e cuja ltima praa forte, Taormina, caiu em 902. Ao mesmo tempo, os

    rabes tinham-se instalado na pennsula. Atravs das provncias bizantinas do Sul eles

    ameaavam as cidades, semi-independentes, do litoral tirreno e os pequenos principados

    lombardos de Campnia e do Beneventino, mais ou menos submetidos ao protectorado

    de Constantinopla. Ainda no princpio do sculo XI eles estenderam as suas incurses

    at s montanhas da Sabina. Um bando que estabelecera o seu reduto nas alturas

    arborizadas do Monte Argento, prximo de Gaeta, s foi aniquilado em 915, depois de

    vinte anos de pilhagens. Em 982, o jovem imperador dos Romanos, Oto II, o qual,

    de origem saxnica, nem por isso deixava de considerar-se, no s em Itlia como fora

    dela, o herdeiro dos Csares, partiu conquista do Sul. Caiu na espantosa loucura,

    tantas vezes repetida na Idade Mdia, de escolher o Vero, para arrastar para essas terras

    escaldantes um exrcito habituado a climas diferentes e, enfrentando, em 25 de Julho,

    na costa oriental da Calbria, as [Pg 020] tropas maometanas, sofreu diante delas a

    derrota mais humilhante. O perigo muulmano continuou a pairar sobre essas regies

  • at ao momento em que, durante o sculo XI, um punhado de aventureiros, vindos da

    Normandia francesa, guerreou indistintamente Bizantinos e rabes. Ao unirem a Siclia

    com o sul da pennsula, criaram finalmente um Estado forte que iria, no s fechar para

    sempre o caminho aos invasores, mas tambm desempenhar, entre as civilizaes

    latinas e o Islo, o papel de um brilhante intermedirio. Assim, em territrio italiano, a

    luta contra os Sarracenos, iniciada no sculo IX, prolongara-se durante largo tempo.

    Mas com oscilaes de pouca importncia, no que respeita conquista de territrio, de

    uma e de outra partes. Especialmente para o catolicismo ela interessava apenas como a

    terra extrema que era.

    A outra linha de choque situava-se em Espanha. A, para o Islo, j no se tratava

    de correrias ou de efmeras anexaes; ali viviam em grande nmero populaes de f

    maometana e os Estados fundados pelos rabes tinham os seus centros nessa mesma

    regio. Nos comeos do sculo X, os bandos sarracenos no haviam esquecido ainda

    completamente o caminho dos Pirinus. Mas tais incurses distantes eram cada vez

    mais raras. A reconquista crist, iniciada no extremo norte, apesar de muitos reveses e

    humilhaes, progredia lentamente. Na Galiza e nos planaltos do nordeste que os emires

    ou califas de Crdova, localizados demasiado longe, no sul, nunca tinham chegado a

    dominar com mo muito firme, os pequenos reinos cristos, ora desmembrados, ora

    reunidos sob o domnio de um nico prncipe, estendiam-se desde os meados do sculo

    XI at regio do Douro; o Tejo foi alcanado em 1085. Junto dos Pirinus, ao invs, o

    curso do Ebro, apesar de to prximo, continuou muulmano durante bastante tempo;

    Saragoa apenas foi conquistada em 1118. Os combates, que alis no excluam de

    modo algum relaes mais pacficas, no seu conjunto, somente conheciam curtas

    trguas. Esses combates imprimiram nas sociedades espanholas uma marca original. No

    que respeita Europa de alm desfiladeiros; apenas influram nela na medida em que-

    especialmente a partir da segunda metade do sculo XI - forneceram sua cavalaria

    ocasies brilhantes, frutuosas e piedosas aventuras, ao mesmo tempo que aos

    camponeses deram a possibilidade de se estabelecerem em terras despovoadas aonde

    eram atrados pelos reis ou pelos senhores espanhis. Mas, paralelamente s guerras

    propriamente ditas, convm no esquecer as pilhagens e assaltos. Foi sobretudo desse

    modo que os Sarracenos contriburam para a desordem geral do Ocidente.

    Desde longa data que os rabes foram marinheiros. Dos seus redutos de frica,

    de Espanha e sobretudo das Baleares, os seus [Pg 021] corsrios percorriam o

    Mediterrneo Ocidental. No entanto, nessas guas que poucos navios demandavam, o

  • ofcio de pirata propriamente dito era pouco rendoso. No domnio do mar, os

    Sarracenos, como os Escandinavos na mesma poca, viam sobretudo o meio de atingir o

    litoral para a praticarem frutuosas incurses. Desde 842 que subiam o Rdano at perto

    de Arles, e pilhavam as duas margens na sua passagem. A Camargue servia-lhes ento

    de base normal. Mas em breve um acaso iria proporcionar-lhes, com um ponto de

    partida mais seguro, a possibilidade de alargarem consideravelmente as suas pilhagens.

    Em data que no podemos precisar, provavelmente cerca de 890, uma pequena

    nau sarracena, vinda de Espanha, foi lanada pelos ventos contra a costa provenal,

    prximo da povoao actual de Saint-Tropez. Os seus ocupantes ocultaram-se durante o

    dia e, depois, quando caiu a noite, massacraram os habitantes de uma aldeia vizinha.

    Montanhosa e arborizada - chamava-se ento terra dos freixos ou Freixedo (Freinet) 6

    - esta parcela de terreno era favorvel defesa. Tal como o haviam feito, pela mesma

    poca, na Campnia, os seus compatriotas do Monte Argento, os nossos homens

    fortificaram-se num monte, no meio de espinhosos macios e chamaram a si outros

    companheiros. Assim nasceu o mais perigoso dos covis de salteadores. Com excepo

    de Frjus, que foi saqueada, no parece que as cidades, defendidas pelas suas muralhas,

    tenham sofrido directamente dessa proximidade, mas no litoral, nas cercanias, os

    campos foram abominavelmente devastados. Os salteadores de Freinet, alm do mais,

    aprisionavam numerosos cativos que vendiam nos mercados espanhis.

    Em breve estenderam as suas incurses para alm da costa. Pouco numerosos,

    decerto, no parece que se tenham aventurado facilmente pelo vale do Rdano,

    relativamente povoado e interceptado por cidadelas ou castelos. O macio dos Alpes,

    pelo contrrio, permitia que pequenos grupos avanassem, de serra em serra ou de

    silvado em silvado: com a condio, j se v, de serem bons trepadores. Ora, oriundos

    da Espanha das Sierras ou do montanhoso Magreb, estes Sarracenos, no dizer de um'

    monge de Saint-Gall, eram verdadeiras cabras. Por outro lado, os Alpes, apesar da

    sua aparncia, no ofereciam um terreno para desprezar, no que respeita a incurses. Ali

    se abrigavam frteis vales, sobre os quais era fcil cair de imprevisto, de cima dos

    montes circundantes. Tal como Graisivaudan. Aqui e alm, elevavam-se algumas

    abadias, presas apetecidas entre todas. Acima de Suse, o mosteiro de Novalaise, cuja

    maioria dos religiosos fugira, foi pilhado e incendiado a partir de 906. Pelos vales

    circulavam especialmente pequenos grupos de viajantes, mercadores ou romeiros que

    6 o nome cuja lembrana conservada no nome actual da aldeia de La Garde-Freinet. Mas, situada

    beira-mar, a cidadela dos Sarracenos no se situava em La Garde, que fica no interior.

  • iam rezar junto dos tmulos dos apstolos. Nada havia de [Pg 022] mais tentador do que

    esper-los na passagem. Cerca de 920 ou 921, peregrinos anglo-saxes foram mortos

    pedrada num desfiladeiro. Estes atentados repetiram-se da em diante. Os djichs rabes

    no temiam aventurar-se espantosamente longe, para o Norte. Em 940, so assinalados

    nas imediaes do alto vale do Reno e no Valais, onde incendiaram o ilustre mosteiro de

    Saint-Maurice d'Agaune. Pela mesma poca, um dos seus bandos crivou de flechas os

    monges de Saint-Gall, que faziam uma procisso pacificamente em redor da sua igreja.

    Este bando, pelo menos, foi disperso pelo pequeno grupo que o abade reuniu

    apressadamente; alguns prisioneiros, levados para o mosteiro, deixaram-se

    heroicamente morrer de fome.

    Policiar os Alpes ou os campos provenais ultrapassava as foras do Estado

    daquele tempo. No havia outra soluo seno a de destruir o reduto, no Freinet. Mas a,

    um novo obstculo se levantava: era quase impossvel cercar essa praa forte sem a

    isolar do mar, por onde vinham os reforos. Mas nem os reis da regio - a oeste os reis

    de Provena e de Borgonha, a leste, o de Itlia- nem os condes, dispunham de frotas. Os

    nicos marinheiros experimentados, de entre os cristos, eram os Gregos, os quais,

    alis, tal como os Sarracenos se aproveitavam disso para se fazerem corsrios. No fora

    Marselha, em 848, pilhada por piratas da sua nacionalidade? De facto, por duas vezes,

    em 931 e 942, a frota bizantina apareceu diante da costa de Freinet, chamada, pelo

    menos em 942 e provavelmente j onze anos antes, pelo rei de Itlia, Hugo d'Arles, que

    tinha grandes interesses na Provena. As duas tentativas no resultaram. De tal maneira

    que, em 942, Hugo, virando a casaca ainda no decorrer da luta, planeou aliar-se aos

    Sarracenos com vista, com a ajuda destes, a fechar a passagem dos Alpes aos reforos

    pedidos por um dos seus competidores perante a coroa lombarda. Depois o rei da Frana

    Oriental - hoje, diramos da Alemanha - Oto o Grande, em 951, fez-se rei dos

    Lombardos. Trabalhava deste modo para edificar na Europa Central e at em Itlia, uma

    potncia que ele desejava fosse, como a dos Carolngios, crist e geradora de paz.

    Considerando-se o herdeiro de Carlos Magno, cuja coroa imperial viria a cingir em 962,

    julgou ser sua misso fazer cessar o escndalo das pilhagens sarracenas. Tentou

    primeiro a via diplomtica, procurando obter do califa de Crdova a ordem de mandar

    evacuar Freinet. Depois, pensou em empreender ele prprio uma expedio, mas no

    chegou a faz-lo.

    Entretanto, em 972, os salteadores fizeram uma captura importante. No regresso

    de Itlia, Maeul, abade de Cluny, na rota do Grand Saint-Bernard, no vale do Dranse,

  • caiu numa emboscada e foi levado para um desses esconderijos da montanha que os

    Sarracenos utilizavam frequentemente, na impossibilidade de alcanarem [Pg 023] a sua

    base de operaes em cada surtida. S foi libertado mediante a entrega de um pesado

    resgate pago pelos monges. Ora Maeul, que havia reformado tantos mosteiros, era o

    venerado amigo, o director espiritual e, se tal se pode dizer, o santo familiar de muitos

    reis e bares. Nomeadamente do Duque de Provena, Guilherme. Este alcanou no

    caminho de regresso o bando que havia cometido o sacrlego atentado e infligiu-lhe uma

    dura derrota; depois, agrupando sob o seu comando vrios senhores do vale do Rdano,

    pelos quais mais tarde seriam distribudas as terras recuperadas para o cultivo,

    organizou um ataque contra a fortaleza do Freinet. A cidadela, desta vez, sucumbiu.

    Para os Sarracenos, foi o fim das piratarias terrestres de grande envergadura.

    Naturalmente, o litoral da Provena, como o da Itlia, continuava exposto aos seus

    ataques. Ainda no sculo XI, vemos os monges de Lrins preocuparem-se activamente

    com o resgate dos cristos que piratas rabes tinham raptado e levado para Espanha; em

    1178, uma investida fez numerosos prisioneiros, perto de Marselha. Mas o cultivo dos

    campos, na Provena costeira e subalpina, pde recomear e os caminhos dos Alpes

    tornaram-se to seguros como o eram o das montanhas europeias. Tambm, no prprio

    Mediterrneo, as cidades comerciais da Itlia, Pisa, Gnova e Amalfi, haviam passado

    ofensiva, desde o comeo do sculo XI. Pela expulso dos Muulmanos da Sardenha,

    perseguindo-os at aos portos do Magreb (a partir de 1015) e da Espanha (em 1092),

    comearam a limpeza destas guas, cuja segurana, pelo menos relativa - o

    Mediterrneo no conhecer de novo at ao sculo XIX- era to importante para o seu

    comrcio.

    III. A ofensiva hngara

    Como pouco antes haviam feito os Hunos, os Hngaros ou Magiares tinham

    surgido na Europa quase subitamente e j os escritores da Idade Mdia, que os

    conheciam at demais, se admiravam ingenuamente de que os autores romanos no os

    tivessem mencionado. A sua histria primitiva, alis, para ns mais obscura do que a

    dos Hunos. De facto, as fontes chinesas que, muito antes da tradio ocidental, nos

    permitem acompanhar a pista dos Hiung-Nou, so omissas a tal respeito. Certamente

    que estes novos invasores pertenciam tambm ao mundo, to bem caracterizado, dos

    nmadas da estepe asitica: povos muitas vezes de linguagens diferentes, mas

  • espantosamente semelhantes pelo gnero de vida que lhes era imposto por condies

    comuns de habitat; pastores de cavalos e guerreiros, alimentados pelo leite das suas

    montadas ou pelos produtos da caa e da pesca que exerciam; acima de tudo, inimigos

    figadais dos lavradores das redondezas. [Pg 024]

    Pelos seus traos fundamentais, o magiar entronca no tipo lingustico chamado

    ugro-finlands ; os idiomas de que hoje mais se aproxima so os de alguns povoados da

    Sibria. Mas, no decurso das suas deambulaes, o contedo tnico primitivo havia-se

    fundido com numerosos elementos da lngua turca e sofrido a forte influncia das

    civilizaes deste grupo7.

    A partir de 833, vemos os Hngaros, cujo nome aparece ento pela primeira vez,

    atormentar as populaes sedentrias - khanat khazar e colnias bizantinas - nas

    cercanias do mar de Azov. Bem depressa ameaam constantemente cortar o caminho do

    Dnieper, naquele tempo via comercial extremamente activa, por onde, de porto em

    porto, de mercado em mercado, as peles do Norte, o mel e a cera das florestas russas, os

    escravos comprados em vrios lugares, iam sendo trocados pelas mercadorias ou ouro

    fornecidos por Constantinopla ou pela sia. Porm, novas hordas, sadas depois deles

    detrs dos Urais, os Petchenegos, perseguem-nos sem trgua. O caminho do sul est-

    lhes vedado, vitoriosamente, pelo Imprio Blgaro. Assim acossados e enquanto uma

    das suas fraces preferiu embrenhar-se na estepe, mais longe, para leste, a maior parte

    deles passaram os Crpatos, cerca de 896, para se espalharem pelas plancies do Tisza e

    do Danbio Mdio. Estas vastas extenses, tantas vezes devastadas pelas invases,

    desde o sculo IV, constituiam no mapa humano da Europa desse tempo uma enorme

    mancha branca. Solides, escreveu o cronista Regino de Prm. No deve tomar-se a

    expresso demasiado letra. As variadas populaes que outrora tinham tido ali

    importantes centros, ou que apenas haviam passado por l, tinham provavelmente

    deixado atrs de si alguns grupos retardatrios. Especialmente tribos eslavas bastante

    numerosas tinham-se infiltrado naquelas paragens pouco a pouco. Mas o habitat

    permanecia, sem dvida, muito escasso, do que prova a modificao quase completa

    da nomenclatura geogrfica, incluindo a dos cursos de gua, depois da chegada dos

    Magiares. Por outro lado, depois de Carlos Magno ter aniquilado o poderio Avaro,

    nenhum Estado solidamente organizado fora capaz de oferecer uma resistncia sria aos

    Grupo lingustico da Europa, de lngua no indo-europeia, ao qual pertencem os Hngaros, Finlandeses,

    Lapes e Samoiedas. (N. da T.) 7 O prprio nome de Hngaro (Hongrois) , provavelmente turco. Tal como, talvez, pelo menos num dos

    seus elementos, o de Magiar, que, alis, parece no se ter aplicado primitivamente seno a uma tribo.

  • invasores. S os chefes pertencentes ao povo dos Morvios tinham conseguido

    recentemente constituir, no ngulo noroeste, um principado com certo poder e j

    oficialmente cristo: a primeira tentativa, em suma, de um verdadeiro Estado puramente

    eslavo. Os ataques hngaros destruiram-no, definitivamente, em 906.

    A partir desse momento, a histria dos Hngaros toma um aspecto novo. J no

    possvel chamar-lhes nmadas, no verdadeiro [Pg 025] sentido da palavra, pois

    encontram-se estabelecidos nas plancies que hoje tm o seu nome. Dali, porm,

    lanam-se em bandos sobre os pases vizinhos. No pretendem conquistar terras, o seu

    nico fito a pilhagem, para regressarem em seguida, carregados com o produto do

    saque, ao seu lugar permanente. A decadncia do imprio blgaro, aps a morte do czar

    Simeo (927), abre-lhes o caminho da Trcia bizantina, que saqueiam por vrias vezes.

    O Ocidente, especialmente, menos defendido, atraa-os.

    Cedo haviam entrado em contacto com ele. Desde 862, antes mesmo de

    transporem os Crpatos, uma das expedies tinha-os levado at aos limites da

    Germnia. Mais tarde, alguns deles tinham sido contratados, como auxiliares, pelo rei

    desse pas, Arnulfo, durante uma das suas lutas contra os Morvios. Em 899, as suas

    hordas caem sobre a plancie do P; no ano seguinte, sobre a Baviera. Da em diante,

    no se passa ano nenhum em que os anais dos mosteiros da Itlia, da Germnia e em

    seguida tambm da Glia, no registem, ora numa provncia ora noutra, pilhagens dos

    Hngaros. A Itlia do Norte, a Baviera e a Subia foram as que mais sofreram; toda a

    regio na margem direita do Enns, onde os Carolngios tinham estabelecido postos de

    fronteira e distribudo terras pelas suas abadias, teve que ser abandonada. Mas as

    investidas depressa atingiram terras situadas para alm desses limites. A amplitude do

    caminho percorrido poderia confundir a nossa imaginao se no tomssemos em linha

    de conta que as longas caminhadas pastoris, a que os Hngaros outrora se haviam

    sujeitado percorrendo espaos imensos e que continuavam a praticar no crculo mais

    restrito da inculta plancie do Danbio, tinham sido para eles uma escola maravilhosa; o

    nomadismo do pastor, j naquele tempo tambm pirata da estepe, tinha forjado o

    nomadismo do bandido. Para noroeste, o Saxe, ou seja, o vasto territrio que se estendia

    desde o Elba at ao Reno Mdio, foi atingido a partir de 906 e desde ento, saqueado

    por vrias vezes. Na Itlia, so assinalados at Otranto. Em 917, pela floresta dos

    Vosges e pelo desfiladeiro de Saales, insinuaram-se at s ricas abadias que se

    agrupavam em redor do Meurthe. Da em diante a Lorena e a Glia do norte tornam-se

    um dos seus terrenos familiares. Dali se aventuram at Borgonha e at mesmo ao sul

  • do Loire. Homens das plancies, no receiam por isso atravessar os Alpes sempre que

    preciso. Foi pelos atalhos desses montes que, no regresso de Itlia, em 924 caram

    sobre a regio de Nimes.

    Nem sempre evitaram os combates contra foras organizadas; travaram alguns,

    com resultados variveis. No entanto, geralmente, preferiam avanar furtivamente

    atravs das terras: verdadeiros selvagens, que os chefes conduziam s batalhas

    chicotada, mas soldados temveis e hbeis, quando era preciso combater, nos [Pg 026]

    ataques de flanco, encarniados na perseguio e engenhosos para sarem de situaes

    difceis. Se era preciso atravessar um rio ou um canal veneziano, apressadamente

    fabricavam barcas de peles ou de madeira. Para descansarem, erguiam as suas tendas de

    habitantes da estepe, ou entricheiravam-se dentro de alguma abadia abandonada pelos

    monges, para, a partir dali, baterem as redondezas. Astuciosos como primitivos,

    informados conforme as necessidades pelos embaixadores que enviavam frente,

    menos para negociar do que para espiar, depressa tinham apreendido os meandros, assaz

    pesados, da poltica ocidental. Mantinham-se ao corrente dos interregnos,

    particularmente favorveis s suas incurses, e sabiam aproveitar-se das desavenas

    entre os prncipes cristos para se porem ao servio de um ou de outro dos rivais.

    Algumas vezes, segundo o uso comum aos bandidos de todos os tempos, faziam-

    se pagar uma soma em dinheiro pelas populaes que prometiam poupar; por vezes

    exigiam mesmo um tributo regular: a Baviera e o Saxe durante alguns anos tiveram que

    sujeitar-se a esta humilhao. Mas estes processos de explorao apenas eram

    praticveis nas provncias limtrofes da prpria Hungria. Mais longe, contentavam-se

    com matar e pilhar, abominavelmente. Tal como os Sarracenos, no atacavam as

    cidades fortificadas; quando se arriscavam a isso, geralmente fracassavam, como

    acontecera a quando das suas primeiras incurses cerca do Dnieper, junto s muralhas

    de Kiev. A nica cidade importante que tomaram foi Pavia. Eram temidos sobretudo nas

    aldeias e nos mosteiros, frequentemente isolados nos campos ou situados nas

    imediaes das cidades, fora das muralhas. Acima de tudo, parece, preferiam fazer

    prisioneiros, escolhendo cuidadosamente os melhores, no reservando, por vezes, entre

    uma populao passada a fio de espada, seno as mulheres novas e os rapazinhos: sem

    dvida para as suas necessidades e prazeres e, principalmente, para vender. Quando

    calhava, nem se importavam de colocar este gado humano nos prprios mercados do

    Ocidente, onde os' compradores nem sempre eram escrupulosos; em 954, uma rapariga

  • nobre, capturada nas cercanias de Worms, fo i posta venda nesta cidade 8. Na maior

    parte das vezes, arrastavam os infelizes at s regies do Danbio para os oferecerem

    aos traficantes gregos.

    IV. Fim das invases hngaras

    Todavia, em 10 de Agosto de 955, o rei da Frana Oriental, Oto o Grande,

    advertido de uma incurso sobre a Alemanha do Sul, combateu, nas margens do Lech,

    um bando hngaro que ia de regresso. Venceu-os, depois de um sangrento combate e

    tirou partido da perseguio. A expedio de pilhagem, castigada desse [Pg 027] modo,

    seria a ltima. Da em diante, tudo se confinou, nos limites da Baviera, a uma guerra

    fronteiria. De acordo com a tradio carolngia, Oto depressa reorganizou os

    comandos da fronteira. Foram criadas duas zonas de proteco, uma nos Alpes, sobre o

    rio Mur e outra, mais ao norte, sobre o Enns; esta ltima, depressa conhecida pelo nome

    de comando de leste - Ostarrichi, que ns transformmos em ustria (Autriche) -,

    atingiu desde o final do sculo, a floresta de Viena, e em meados do sculo XI, a Leitha

    e a Morvia.

    Por muito brilhante que tenha sido uma faanha isolada, como a batalha do Lech,

    e apesar de toda a sua repercusso, no teria bastado evidentemente para acabar

    definitivamente com as incurses. Os Hngaros, cujo territrio prprio no fora

    atingido, estavam longe de ter sofrido a mesma derrota que outrora haviam suportado os

    Avaros, s mos de Carlos Magno. A derrota de um dos seus bandos, dos quais vrios j

    tinham sido vencidos, teria sido insuficiente para modificar o seu modo de vida. A

    verdade que, aproximadamente desde 926, as suas incurses, mais impetuosas do que

    nunca, iam-se espaando. Na Itlia, sem batalha, terminaram tambm depois de 954.

    Para sudeste, a partir de 960, as incurses na Trcia reduzem-se a medocres assaltos de

    bandoleiros. Decerto que um conjunto de causas profundas havia lentamente feito sentir

    a sua aco.

    Prolongamento de antigos hbitos, as longas caminhadas atravs do Ocidente

    seriam ainda frutuosas e coroadas de xito? Pensando bem, podemos duvidar que o

    fossem. As hordas cometiam terrveis barbaridades na sua passagem. Mas no lhes era

    possvel carregar com todos os despojos. Os escravos, que certamente se deslocavam a

    8 LANTBERTUS, Vita Herriberti, c. I. em SS, t. IV, p. 741.

  • p, afrouxavam os seus movimentos, alm disso, eram difceis de guardar. As fontes

    mencionam muitas vezes fugitivos: tal como um cura da regio de Reims que, arrastado

    at ao Berry; numa noite escapou aos seus raptores, escondeu-se num pntano durante

    vrios dias e, finalmente, conseguiu chegar sua terra, cheio de aventuras para contar 9.

    Os carros, nas deplorveis estradas daquele tempo e no meio de terras hostis, ofereciam

    apenas, para o transporte dos objectos preciosos, um recurso mais incmodo e muito

    menos seguro do que o eram para os Normandos as suas barcas, nos belos rios da

    Europa. Os cavalos, nos campos devastados, nem sempre encontravam alimento; os

    generais bizantinos sabiam bem que o grande obstculo contra o qual lutam os

    Hngaros nas suas guerras o da falta de pastagens 10

    . Durante o percurso tinham que

    travar mais do que um combate; mesmo vitoriosos, os bandos regressavam dizimados

    por tais guerrilhas. E tambm pelas doenas: ao terminar nos seus anais, redigidos

    diariamente, a narrao do ano de 924, o clrigo Flodoardo, em Reims, inscrevia neles

    jubilosamente a noticia h pouco recebida [Pg 028] de uma peste desintrica qual

    haviam sucumbido na maioria, segundo se dizia, os saqueadores de Nmes. Alm do

    mais, medida que os anos passavam, multiplicavam-se as cidades fortificadas e os

    castelos, restringindo os espaos abertos, os nicos verdadeiramente propcios s

    incurses. Finalmente, desde o ano 930, aproximadamente, o continente estava quase

    liberto do pesadelo normando; reis e bares tinham da em diante as mos mais livres

    para se voltarem contra os Hngaros e para organizarem mais metodicamente a

    resistncia. Sob este ngulo, a obra decisiva de Oto foi a constituio de zonas de

    proteco junto das fronteiras e no a proeza do Lechfeld. Muitos motivos, portanto,

    deviam influir para desviar o povo magiar de um gnero de empresa que, sem dvida,

    cada vez proporcionava menos riquezas e custava cada vez mais homens. Mas a sua

    influncia apenas se exerceu to fortemente porque a prpria sociedade magiar sofria,

    ao mesmo tempo, poderosas transformaes. Neste ponto, infelizmente, faltam-nos

    quase por completo as fontes: Como tantas outras naes, os Hngaros s comearam a

    ter anais depois da sua converso ao cristianismo e latinidade. Todavia, vislumbra-se

    que a pouco e pouco a agricultura tomava o seu lugar a par da criao de gado:

    metamorfose muito lenta, alis, e que durante muito tempo comportou formas de

    habitat intermdias entre o verdadeiro nomadismo dos povos pastoris e o

    sedentarismo absoluto das comunidades de puros lavradores. Em 1147, o bispo bvaro

    9 FLODOARD, Annales, 937. 10 LON, Tactica, XVIII, 62.

  • Oto de Freising, que sendo cruzado descia o Danbio, pde observar os Hngaros. As

    suas cabanas de canios, mais raramente de madeira, apenas serviam de abrigo durante

    a estao fria; no Vero e no Outono eles vivem nas tendas. Trata-se da mesma

    alternncia que um pouco mais cedo um gegrafo rabe notava nos Blgaros do Baixo-

    Volga. Os aglomerados, pequenos eram mveis. Muito depois da cristianizao, entre

    1012 e 1015, um snodo proibiu que as aldeias se afastassem da sua igreja. J haviam

    partido para longe? Deviam pagar uma multa e regressar 11

    . Apesar de tudo, perdia-se

    o hbito das longas cavalgadas. Sem dvida, especialmente porque as preocupaes

    com as colheitas se opunham dali em diante s grandes migraes de pilhagem, durante

    o Vero. Estas modificaes no gnero de vida harmonizavam-se com profundas

    mudanas polticas, favorecidas aquelas talvez pela absoro, na massa magiar, de

    elementos estrangeiros - tribos eslavas de h muito quase sedentrias; cativos oriundos

    das velhas civilizaes rurais do Ocidente.

    Adivinhamos vagamente, entre os antigos Hngaros, acima das pequenas

    sociedades consanguneas ou funcionando como tal, a existncia de grupos mais vastos,

    alis sem grande fixidez: uma vez terminado o combate, escrevia o imperador Leo o

    Sbio, vmo-los dispersarem-se para os seus cls () e para as suas [Pg 029] tribos

    (). Era uma organizao assaz anloga, em suma, quela que ainda hoje nos

    apresenta a Monglia. No entanto, desde a estadia do povo ao norte do Mar Negro, tinha

    sido tentado um esforo, imagem do Estado khazar, para elevar acima de todos os

    chefes das hordas um Grande Senhor ( esta a designao que usam, de comum

    acordo, as fontes gregas e latinas). O eleito foi um certo Arpad. Desde ento, sem que

    seja de modo algum possvel falar de um Estado unificado, a dinastia arpadiana julgou-

    se evidentemente destinada hegemonia. Na segunda metade do sculo X, conseguiu,

    no sem lutas, estabelecer o seu poderio sobre a nao inteira. Populaes estabilizadas

    ou que, pelo menos, no migravam, a no ser no interior de um territrio de pequena

    extenso, eram mais fceis de submeter do que nmadas votados a uma eterna

    disperso. A obra consumou-se quando, em 1001 o prncipe descendente de Arpad,

    Vaik, tomou o ttulo de rei 12

    . Um agrupamento pouco coeso de hordas de salteadores e

    vagabundos tinha-se transformado num Estado solidamente implantado sobre o seu

    pedao de terra, maneira dos reinos ou dos principados do Ocidente. sua imagem,

    11 K. SCHNEMANN, Die Entstehung des Stdtewe.sens in Sdost-europa, Breslau, s. d., p. 18-19. 12 Sobre as condies, bastante obscuras, da elevao da Hungria a reino, cf. P. E. SCHRAMM, Kaiser,

    Rom und Renovatio, t. 1, 1929, p. 153 e s.

  • tambm, numa larga medida. Como se, por vezes, as lutas mais atrozes no tivessem

    impedido um contacto de civilizaes, das quais a mais avanada tivesse exercido a sua

    atraco sobre a mais primitiva.

    A influncia das instituies polticas ocidentais tinha sido, alis, acompanhada de

    uma penetrao mais profunda, que envolvia toda a mentalidade; quando Vaik se

    proclamou rei, havia j recebido o baptismo, tomando o nome de Estevo, que a Igreja

    lhe conservou, colocando-o no rol dos santos. Como todo o vasto no man's land

    religioso da Europa Oriental, desde a Morvia at Bulgria e Rss ia, a Hungria pag

    havia sido de incio disputada entre duas equipas de caadores de almas, cada uma das

    quais representava um dos dois sistemas, desde ento distintos com bastante nitidez, que

    partilhavam entre si a cristandade: o de Bizncio, o de Roma. Chefes hngaros tinham-

    se baptizado em Constantinopla; mosteiros de rito grego subsistiram na Hungria at

    bastante dentro do sculo XI. Mas as misses bizantinas, que partiam de muito longe,

    tiveram que deixar lugar s suas rivais.

    Preparada j nas casas reais, por casamentos que evidenciavam j um desejo de

    aproximao, a obra de converso era activamente conduzida pelo clero bvaro. O bispo

    Pilgrim, especialmente, que ocupou a s de Passau, de 971 a 991, fez o que pde.

    Aspirava para a sua igreja, em relao aos Hngaros, o mesmo papel de metrpole das

    misses, que em relao aos Eslavos pertencia a Magdeburgo, para alm do Elba e que

    Bremen reivindicava sobre os povos escandinavos. Por infelicidade, comparada com

    Magdeburgo e com Bremen, Passau no era mais do que um simples bispado,

    sufragneo de Salzburgo. Que importa isso? Os bispos de Passau, [Pg 030] cuja diocese,

    na realidade, tinha sido fundada no sculo VIII, consideravam-se sucessores daqueles

    que, no tempo dos Romanos, tinham tido a sua sede na praa forte de Lorch, no

    Danbio. Cedendo tentao a que sucumbiam, sua volta, tantos homens da sua

    condio, Pilgrim mandou elaborar uma srie de falsas bulas, segundo as quais Lorch

    era reconhecida como metrpole da Pannia. Faltava apenas reconstituir esta antiga

    provncia; em redor de Passau que, quebrados todos os laos com Salzburgo, retomaria

    a sua qualidade pretensamente antiga, viriam agrupar-se, como satlites, os novos

    bispados de uma Pannia hngara. No entanto, nem os papas nem os imperadores se

    deixaram persuadir.

    Quanto aos prncipes magiares, se por um lado se sentiam prontos para o

    baptismo, faziam questo de no dependerem de prelados alemes. Como missionrios,

    mais tarde como bispos, chamavam de preferncia padres checos ou at venezianos; e,

  • quando, pelo ano mil, Estvo organizou a hierarquia eclesistica do seu Estado, de

    acordo com o papa, f-lo sob a autoridade de um metropolita prprio. Depois da sua

    morte, se as lutas pela sua sucesso deram, por algum tempo, algum prestgio a certos

    chefes que se mantinham pagos, afinal no atingiram seriamente a sua obra. Cada vez

    mais conquistado pelo cristianismo, possuindo um rei coroado e um arcebispo, o ltimo

    povo oriundo da Ctia - como diz Oto de Freising - havia renunciado definitivamente

    s gigantescas pilhagens de outrora para se confinar no horizonte doravante imutvel

    dos seus campos e das suas pastagens. As guerras, com os soberanos da vizinha

    Alemanha continuavam frequentes, mas dali para o futuro, eram os reis de duas naes

    sedentrias que se defrontavam 13

    . [Pg 031]

    [Pg 032] Notas

    13 A histria do mapa tnico na Europa extra-feudal no nos interessa aqui, directamente. Note-se, no

    entanto, que o estabelecimento hngaro nas planicies do Danbio teve como consequncia o corte, em

    dois, do bloco eslavo.

  • CAPITULO II

    OOSS NNOORRMMAANNDDOOSS

    I. Caractersticas gerais das invases escandinavas

    Depois de Carlos Magno, todas as populaes de lngua germnica que habitavam

    ao sul da Jutlndia, tornadas crists e incorporadas nos reinos francos, se encontravam

    sob a influncia da civilizao ocidental. Mais longe, pelo contrrio, para o Norte,

    viviam outros Germanos, os quais, com a sua independncia, tinham conservado as suas

    tradies particulares. As suas linguagens, diferentes entre si, mas ainda mais diferentes

    dos idiomas da Germnia propriamente dita, pertenciam a outro ramo daqueles que h

    pouco se haviam destacado do tronco lingustico comum; damos-lhe hoje a designao

    de escandinavo. A originalidade da sua cultura, em relao com a dos vizinhos mais

    meridionais, manifestara-se definitivamente na sequncia das grandes migraes que,

    nos sculos II e III da nossa era, tinham feito desaparecer muitos elementos de contacto

    e de transio, quase esvaziando as terras germnicas de homens, ao longo do Bltico e

    nas margens do esturio do Elba.

    Estes habitantes do extremo Setentrio nem formavam um simples amontoado de

    tribos nem uma nao nica. Distinguiam-se os Dinamarqueses, na Escnia, nas ilhas e,

    um pouco mais tarde, na pennsula da Jutlndia; os Gtar, cuja memria hoje

    conservada nas provncias suecas de Oester e de Vestergtland 14

    ; os Suecos, em redor

    do lago Malar; finalmente vrios povos que, separados por vastas extenses de florestas,

    de plancies semi-cobertas de neve e de gelo, mas ligados pelo mar familiar, ocupavam

    os vales e as costas do pas que em breve se chamaria Noruega. Todavia, havia entre

    estes grupos um ar de famlia muito acentuado e, sem dvida, de misturas demasiado

    frequentes que aos vizinhos no podia deixar de sugerir a ideia de lhes aplicar um rtulo

    comum. Como nada parecia mais caracterstico do estrangeiro, ser misterioso por

    natureza, do que o ponto do horizonte donde ele parecia surgir, os Germanos [Pg 033]

    14 As relaes destes Gtar escandinavos com os Godos, cujo papel foi to importante na histria das

    invases germnicas, levantam um problema delicado e a respeito do qual est longe de fazer-se um

    acordo entre os especialistas.

  • de aqum-Elba ganharam o hbito de lhes chamar simplesmente: homens do Norte,

    Nordman. Coisa curiosa: esta palavra, apesar da sua forma extica, foi adoptada tal e

    qual pelas populaes romanas da Glia: ou porque antes de aprenderem a conhecer

    directamente a selvagem nao dos Normandos, a sua existncia lhes tenha sido

    revelada por narraes vindas das provncias limtrofes; ou, mais provavelmente, porque

    os homens comuns a tenham ouvido nomear aos seus chefes, funcionrios reais cuja

    maioria, no princpio do sculo IX, sendo oriunda de famlias austrasianas, falava

    geralmente o franco. De tal modo que o termo permaneceu estritamente continental. Os

    Ingleses, ou faziam um esforo por distingui-los o melhor que podiam, entre os

    diferentes povos, ou ento designavam-nos, colectivamente, pelo nome de um deles, o

    de Dinamarqueses, com os quais se encontravam mais em contacto 15

    .

    Estes eram os pagos do Norte, cujas incurses, desencadeadas bruscamente

    cerca do ano 800, durante perto de um sculo e meio, fariam gemer o Ocidente. Melhor

    do que os vigias que, ento, no litoral, ao prescrutarem com os olhos o alto mar,

    estremeciam ideia de descobrirem as proas dos barcos inimigos, ou do que os monges,

    ocupados nos seus scriptoria com a anotao das pilhagens, podemos hoje restituir s

    investidas normandas o seu pano de fundo histrico. Encarados numa justa

    perspectiva, eles aparecem-nos apenas como um episdio de uma grame aventura

    humana, particularmente sangrento, diga-se em boa verdade: estas amplas migraes

    escandinavas que, pela mesma poca, da Ucrnia Gronelndia, estabeleceram tantos

    novos laos comerciais e culturais. Mas a preocupao de mostrar de que modo, por

    estas epopeias de camponeses e de mercadores, bem como de guerreiros, o horizonte da

    civilizao europeia foi dilatado, ser objecto de um outro trabalho, dedicado s origens

    da economia europeia. As pilhagens e as conquistas no Ocidente - cujos primeiros

    passos sero alis descritos num outro volume desta coleco - interessam-nos aqui

    apenas na sua qualidade de um dos fermentos da sociedade feudal.

    Graas aos ritos funerrios, podemos reconstituir com exactido uma frota

    normanda. Um navio, oculto sob um montculo de terra amontoada, era esse, de facto, o

    tmulo preferido dos chefes. No nosso tempo, as pesquisas, sobretudo na Noruega,

    trouxeram luz do dia vrios desses tmulos marinhos: embarcaes solenes, na

    verdade, destinadas s calmas deslocaes, de fiord em fiord, mais do que s viagens

    15 Os Normandos que as fontes de provenincia anglo-saxnica pem por vezes em cena so -

    conforme o prprio uso dos textos escandinavos - os Noruegueses, em oposio aos Dinamarqueses

    stricto sensu.

  • para terras distantes, capazes, no entanto, quando era preciso, de efectuarem longos

    percursos, visto que um navio, exactamente copiado por um deles - o de Gokstad - pde,

    no sculo XX, atravessar o Atlntico de lado a lado. As longas naves que espalharam

    o terror no Ocidente eram de tipo sensivelmente diferente. No a tal ponto, todavia, que

    a sua imagem no possa ser reconstituda com bastante facilidade por meio do

    testemunho [Pg 034] das sepulturas, devidamente completado e corrigido pelos textos.

    Eram barcas sem ponte, obras-primas de um povo de lenhadores, pela construo do seu

    madeiramento e criaes de um grande povo de marinheiros pela correcta proporo das

    suas linhas. Compridas, em geral com pouco mais de vinte metros, podiam mover-se a

    remos ou vela e cada uma transportava, em mdia, de quarenta a sessenta homens,

    sem dvida um pouco apertados. A sua velocidade, se a avaliarmos pelo modelo feito a

    partir da descoberta da nave de Gokstad, atingia facilmente uma dezena de ns. Pouco

    do casco entrava na gua: cerca de um metro, o que constitua uma grande vantagem

    quando era preciso deixar o mar alto para se aventurarem nos esturios, por vezes

    mesmo ao longo dos rios.

    E isto porque, para os Normandos como para os Sarracenos, as guas no eram

    mais do que uma via para as presas terrestres. Ainda que no desdenhassem, uma vez

    por outra, os ensinamentos de cristos desertores, possuam uma espcie de cincia inata

    dos rios, familiarizando-se to rapidamente com a complexidade das suas vias que, em

    830, alguns deles haviam podido servir de guias ao arceb ispo Ebbon, a partir de Reims,

    na fuga daquele ao seu imperador. Diante das proas dos seus barcos, a rede ramificada

    dos afluentes abria a multiplicidade dos seus desvios, propcios s surpresas. No

    Escalda, so assinalados at Cambrai; no Yonne, at Sens; no Eure, at Chartres; no

    Loire, at Fleury, muito a montante de Orlans. Na prpria Gr-Bretanha, onde os

    cursos de gua, alm da linha das mars, so muito menos propcios navegao, o

    Ouse levou-os, apesar disso, at York, o Tamisa e um dos seus afluentes, at Reading.

    Se as velas ou os remos no eram suficientes, recorriam sirga. Muitas vezes, para no

    carregarem demasiado as naves, um destacamento seguia por via terrestre. Era preciso

    alcanar as margens, em fundos muito baixos? Ou, para proceder a uma pilhagem,

    utilizar um ribeiro de guas pouco profundas? As canoas saam dos barcos. Pelo

    contrrio, era necessrio contornar o obstculo de fortificaes que obstruam a corrente

    da gua? Improvisavam um transporte por terra, para o barco; assim fizeram em 888 e

    em 890, para evitarem a passagem por Paris. L longe, no leste, nas plancies russas, os

    mercadores escandinavos no tinham adquirido uma longa prtica destas alternncias

  • entre a navegao e o transporte dos navios, de um rio para outro, ou ao longo das

    quedas de gua?

    Do mesmo modo, estes marinheiros admirveis no receavam a terra, os seus

    caminhos e os seus combates. No hesitavam em deixar os rios para se lanarem caa

    de presas, quando era preciso: tal como aqueles que, em 870, atravs da floresta de

    Orlans, seguiram a pista dos monges de Fleury, fugidos da sua abadia beira do Loire,

    seguindo os trilhos deixados pelos carros. Cada vez mais se foram habituando a utilizar

    cavalos, mais para as deslocaes do que para os combates, a maio r parte dos quais,

    naturalmente, roubados [Pg 035] na prpria regio, ao sabor das pilhagens que faziam.

    Foi assim que, em 866, fizeram um grande roubo de cavalos em Anglia de leste. Por

    vezes transportavam os cavalos de um terreno pilhado para outro onde iam actuar; em

    885, por exemplo, de Frana para Inglaterra16

    . Deste modo, podiam afastar-se cada vez

    mais dos rios; no foram os Normandos assinalados, em 864, abandonando os navios no

    rio Charente e aventurando-se at Clermont d'Auvergne, que tomaram? Por outro lado,

    deslocando-se mais depressa, surpreendiam mais facilmente os seus adversrios. Eram

    extremamente hbeis em levantar entrincheiramentos e em defenderem-se neles. Sabiam

    tambm atacar praas fortes, sendo nisso superiores aos cavaleiros hngaros. Em 888, j

    era longa a lista das cidades que, apesar das suas muralhas, haviam sucumbido ao

    assalto dos Normandos: tais como Colnia, Ruo, Nantes, Orlees, Bordus, Londres,

    York, para citar apenas as mais ilustres. Em boa verdade, alm do factor surpresa ter por

    vezes desempenhado o seu papel, como aconteceu com Nantes, assaltada num dia de

    festa, as velhas muralhas romanas estavam longe de se manterem bem conservadas e

    mais longe ainda de serem sempre defendidas com muita coragem. Quando em 888, em

    Paris, um punhado de homens enrgicos soube reparar as fortificaes da Cit e

    revestir-se de ardor para o combate, a cidade, que em 845, quase abandonada pelos

    habitantes, havia sido saqueada e provavelmente, por mais duas vezes, tinha depois

    sofrido o mesmo ultraje, dessa vez resistiu vitoriosamente.

    As pilhagens eram frutuosas. O terror que antecipadamente elas inspiravam no o

    era menos. Colectividades que viam os poderes pblicos incapazes de as defenderem -

    tais como, desde 810, certos grupos frsios - e mosteiros isolados tinham sido os

    primeiros a pagar um tributo. Depois, os prprios soberanos se habituaram a tal prtica:

    por dinheiro, obtinham dos bandos a promessa de susterem as suas pilhagens, pelo

    16 ASSER, Life of King Alfred, ed. W. H. Stevenson, 1904, c. 66.

  • menos provisoriamente, ou de se voltarem para outras vtimas. Na Frana Ocidental,

    Carlos o Calvo dera esse exemplo, desde 845. 0 rei da Lorena, Lotrio II, imitou-o em

    864. Na Frana Oriental, foi a vez de Carlos o Gordo, em 882. Entre os Anglo-Saxes, o

    rei de Mrcia fez o mesmo, talvez desde 862; o rei d e Wessex, temos a certeza de o ter

    feito em 872. Pela sua prpria natureza, tais resgates serviam de isca sempre renovada,

    e, deste modo, repetiam-se indefinidamente. Como era aos seus sbditos e, antes do

    mais, s suas igrejas que os prncipes deviam exigir as somas necessrias, estabeleceu-

    se finalmente um escoamento das economias ocidentais para as economias

    escandinavas. Ainda hoje, entre tantas memrias dessas pocas hericas, os museus do

    Norte conservam nos seus expositores surpreendentes quantidades de ouro e de prata:

    contributos do comrcio, decerto, em larga medida, mas tambm e em grande escala,

    como dizia o padre alemo Adam de Bremen, frutos das pilhagens. Alis curioso

    que, roubados ou [Pg 036] recebidos como resgate, sob a forma de moedas ou de jias

    ao gosto do Ocidente, esses metais preciosos tenham sido geralmente refundidos para

    fazer novas jias de acordo com as preferncias dos seus detentores: o que constitui uma

    prova de que estamos em presena de uma civilizao especialmente segura das suas

    tradies.

    Os prisioneiros eram tambm roubados e, a menos que fossem resgatados, levados

    para alm-mar. Pouco depois de 860, so assim vendidos, na Irlanda, prisioneiros

    negros que haviam sido trazidos de Marrocos 17

    . Acrescentemos finalmente ao retrato

    destes guerreiros do Norte os fortes e brutais apetites sensuais, o prazer do sangue e da

    destruio e, por vezes, mpetos terrveis, um pouco loucos, em que a violncia no

    tinha limites: tal como a famosa orgia durante a qual, em 1012, o arcebispo de

    Canterbury, at ali cuidadosamente poupado para ser por ele obtido um resgate, foi

    lapidado com os ossos dos animais consumidos no banquete. Diz-nos uma saga que um

    Islands, que tinha feito campanhas no Ocidente, tinha a alcunha de homem das

    crianas porque se recusava a empal-las na ponta das lanas como era hbito entre

    os seus companheiros 18

    . Isto suficiente para fazer compreender o terror que estes

    invasores espalhavam sua volta.

    17 SHETELIG, Les origines des invasions des Normands (Bergens Museums Arbog, Historisk-antik

    varisk rekke, nr. 1), p. 10. 18 Landnamabk, c. 303, 334, 344, 379.

  • II. Da incurso possesso

    No entanto, desde o tempo em que os Normandos saquearam o primeiro mosteiro,

    em 793, na costa de Nortmbria e, durante o ano de 800, foraram Carlos Magno a

    organizar pressa, na Mancha, a defesa do litoral franco, as suas empresas, pouco a

    pouco, haviam mudado de caractersticas, bem como de envergadura. Ao princpio,

    tinham sido assaltos espaados, quando fazia bom tempo, ao longo das margens

    setentrionais - Ilhas Britnicas, terras baixas marginais da grande plancie do Norte,

    falsias da Nustria - organizados por pequenos grupos de Vikings. A etimologia da

    palavra contestada 19

    , mas designa sem dvida um aventureiro em busca de lucros e de

    guerras; nem to pouco se duvida de que os grupos assim formados, fora dos laos da

    famlia ou do povoado, se tenham geralmente constituido com vista prpria aventura,

    Apenas os reis da Dinamarca, colocados frente de um Estado pelo menor

    rudimentarmente organizado, tentavam j, nas fronteiras do sul, fazer verdadeiras

    conquistas, sem multo sucesso, alis.

    Depois, muito rapidamente, o raio de aco alastrou, As naves aventuraram-se at

    ao Atlntico e mais longe ainda, em direco ao Sul. Desde 844, alguns portos da

    Espanha Ocidental tinham recebido a visita dos piratas. Em 839 e 860, foi a vez do

    Mediterrneo. As Baleares, Pisa, o Banco-Rdano, foram atingidos. O vale do Arno,

    subido at Fiesole, Esta incurso mediterrnica, alis, estava [Pg 037] destinada a

    permanecer isolada, no porque a distncia fosse de amedrontar aqueles que haviam

    descoberto a Islndia e a Gronelndia. No iria ass istir-se, por um movimento inverso,

    no sculo XVII, ao aparecimento dos Brbaros ao largo de Saintonge, e mesmo at nos

    bancos da Terra-Nova? Mas sem dvida que as frotas rabes eram excelentes guardas

    dos mares.

    Inversamente, as invases incidiram cada vez mais longe no interior do continente

    e da Gr-Bretanha. No existe grfico mais eloquente do que a transcrio, num mapa,

    das peregrinaes dos monges de Saint-Philibert, com as suas relquias. A abadia tinha

    sido fundada no sculo VII, na ilha de Noirmo utier: estncia adequada para cenobitas,

    19 Foram propostas, principalmente, duas interpretaes. Alguns estudiosos dizem que a palavra provm

    do escandinavo vik, baa; outros, vem nela um derivado do germnico comum wik, que designa uma

    povoao ou um mercado. (Cf. o baixo-alemo Weichbild, direito urbano, e um grande nmero de nomes d