Dillenburg, F. - Método dialético e política em Lukács

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FERNANDO FROTA DILLENBURG

MTODO DIALTICO E POLTICA EM LUKCS

MESTRADO EM FILOSOFIA IFCH INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS UNICAMP UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS CAMPINAS SP, 23 DE AGOSTO DE 2006

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FERNANDO FROTA DILLENBURG

MTODO DIALTICO E POLTICA EM LUKCS

Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientao do prof. Dr. Hector Benoit.

Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida e aprovada pela Comisso Julgadora em 23 de agosto de 2006.

BANCA Prof. Dr. Alcides Hector Rodriguez Benoit (Orientador) Prof. Dr. Dcio Azevedo Marques de Saes Prof. Dr. Ruy Gomes Braga Neto Prof. Dr. Caio Navarro de Toledo (suplente) Prof. Dr. Luiz Renato Martins (suplente)

AGOSTO/2006

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH UNICAMP

Dillenburg, Fernando FrotaD582m Mtodo dialtico e poltica em Lukcs / Fernando Frota Dillenburg. - - Campinas, SP: [s.n.], 2006.

Orientador: Alcides Hector Rodriguez Benoit. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Lukacs, Gyorgy, 1885-1971. 2. Marx, Karl, 1818-1883. 3. Dialtica. I. Benoit, Alcides Hector Rodriguez, 1951 - . II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo. (msh/ifch) Ttulo em ingls: Dialectic method and politics in Lukacs. Lukacs, Gyorgy, 1885-1971 Marx, Karl, 1818-1883 Dialectics

Palavras-chave em ingls (Keywords):

rea de concentrao: FilosofiaTitulao: Mestre em FilosofiaBanca examinadora: Alcides Hector Rodriguez Benoit, Dcio Azevedo Marques de Saes, Ruy Gomes Braga Neto.

Data da defesa: 23 de agosto de 2006 Programa de Ps-Graduao: Filosofia

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Aos meus pais, Jos e Ivelni, pelo estmulo disciplina e aos estudos. Aos meus irmos Rejane, Renato, Lucia e Carlos, pela infncia em comum. Aos meus filhos que adoro, Taiana e Tiago. minha companheira de todas as horas Carol, pelo amor e pacincia que tem demonstrado nesses quatro anos. Ao Bruno, Vernica, Maurcio, Paula e Mauro, pela acolhida na nova famlia. Ao Jeremias e ao Jadir, pelos anos de estudo e fraterna convivncia. Ao Jair, pela rica convivncia durante o mestrado. Ao Wilian e Maria Rita, pelos bons momentos que temos passado juntos. Aos amigos que fiz no PSTU, Marcelo, Edson, Joo Felippe, Fbio, Giovanna, Aldo e Srgio. Ao Mauro e ao Scapi, pela introduo ao marxismo. E, sobretudo, ao Hector, pela paciente e rigorosa orientao, e pelo exemplo pessoal de sria dedicao ao marxismo. A todos, com muito afeto, dedico esta dissertao.

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertao o resultado de quatro proveitosos anos de estudo do marxismo, nos quais fui obrigado a realizar vrias rupturas com minhas prprias concepes. Nesse processo foi fundamental a orientao paciente e dedicada do Prof. Dr. Hector Benoit, que sempre me estimulou a encontrar a melhor forma de exposio e at mesmo, algumas vezes, a mudar o curso da pesquisa. Suas observaes pessoais, ocultas no produto final apresentado aqui, so de um valor inestimvel. Mas, acima de tudo, as idias por ele desenvolvidas em diversos artigos representam o fundamento da pesquisa aqui exposta. O que fiz foi somente procurar aplicar esses fundamentos num objeto de estudo particular. Por isso, compartilho com o Prof. Hector todo e qualquer mrito que possa ter esta dissertao. Agradeo ao Rogrio e aos demais funcionrios do departamento de psgraduao em filosofia da Unicamp pela ateno dedicada. Agradeo aos professores Dr. Dcio Azevedo Marques de Saes e Dr. Ruy Gomes Braga Neto pelas observaes e crticas feitas na banca de qualificao e na defesa final e aos professores Dr. Caio Navarro de Toledo e Dr. Luiz Renato Martins por integrarem a banca como membros suplentes.

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SUMRIO RESUMO...................................................................................................................... 11 INTRODUO ........................................................................................................... 13 I - O LUKCS PR-MARXISTA................................................................................ 15 II O MTODO DIALTICO .................................................................................... 23 1 O MTODO DIALTICO EM HISTRIA E CONSCINCIA DE CLASSE 23 2 O MTODO DIALTICO EM EXISTENCIALISMO OU MARXISMO?..... 27 3 O MTODO DIALTICO NA ESTTICA .................................................. 36 III - A APLICAO DA DIALTICA NA LUTA DE CLASSES ............................. 43 1 A APLICAO DA DIALTICA EM HISTRIA E CONSCINCIA DE CLASSE....................................................................................................... 43 1.1 - O PROLETARIADO COMO O PORTADOR DO PONTO DE VISTA DA TOTALIDADE E SUA CRISE IDEOLGICA ................................ 45 1.2 OS PARTIDOS OPORTUNISTAS COMO A OBJETIVAO DA CRISE IDEOLGICA DO PROLETARIADO ............................... 48 1.3 - O PAPEL DO PARTIDO COMUNISTA ............................................... 55 2 A APLICAO DA DIALTICA NAS TESES DE BLUM ..................... 70 2.1 A TRANSIO DA REVOLUO DEMOCRTICA REVOLUOSOCIALISTA.................................................................... 72 2.2 A REPERCUSSO DAS TESES DE BLUM............................................ 88 CONCLUSO................................................................................................................ 93 BIBLIOGRAFIA UTILIZADA.................................................................................. 105

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RESUMO

Com o objetivo de refletir sobre a relao dialtica entre a teoria e a prtica, ou seja, sobre suas recprocas determinaes, pretendemos analisar neste trabalho como alguns aspectos da teoria de George Lukcs esto indissociavelmente ligados s suas opes polticas. Encontramos, na vida e obra desse renomado filsofo marxista hngaro, contraditoriamente, brilhantes observaes a respeito da dialtica materialista, ao lado de algumas reminiscncias idealistas e, sobretudo, de escolhas polticas que acabaram conduzindo-o inevitavelmente ao campo do marxismo pr-dialtico. Aps a ascenso do stalinismo e a adeso de Lukcs teoria do socialismo em um s pas, ele foi cada vez mais se distanciando da teoria revolucionria de Marx e Engels, fundamentada na noo da revoluo permanente mundial. Essa opo o afastou tambm das concepes do Lnin das Teses de abril, associando-o ao que Lnin denominou de velho bolchevismo. Assim, em conseqncia dessa opo poltica, Lukcs foi afastando-se das questes ligadas diretamente luta direta do proletariado, refugiando-se nos campos mais neutros e sobre-determinados da cultura e da arte. ABSTRACT Aiming to think about dialectic relation between theory and practice and their reciprocal determinations, we intend to analyze in this work how some aspects of George Lukcs theory are connected to his politics choices. In life and literary work of this renowned Hungarian Marxist philosopher, we find, contradictorily, brilliant observations about materialistic dialectic inside of some idealistic reminiscences and specially, inside of politic choices which ended up driving him to predialectic Marxism subject. After Stalinism growing and Lukcs support of Socialism theory in one country he got far from the revolutionary Marx and Engel theory which was based on the permanent world revolution. This way also got him far from Lnins April Theses, getting together to old Bolshevism, according Lenin. Therefore, in consequence of this politic choice, Lukcs strayed from subjects of the proletariat fight standing in neuter subjects in Art and Culture.

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INTRODUO

A compreenso da dialtica materialista um grande desafio no campo do marxismo, sobretudo pela sua relao contraditria entre teoria e prtica. Como se entrecruzam e se determinam uma outra dialeticamente? Sabemos que a teoria determina a prtica e que sem teoria revolucionria, como se repetiu desde Lnin, no existe prtica revolucionria. No entanto, em que medida, tambm, certas escolhas prticas e at mesmo existenciais esta ou aquela vida - no determinam em grande parte a teoria? Em que medida muita teoria no produzida at para justificar ou mesmo mascarar certas escolhas prticas? Procurando contribuir com alguma reflexo sobre estes problemas, optamos por nos debruar sobre a trajetria terica e poltica do filsofo hngaro George Lukcs: terico marxista com grande elaborao conceitual, mas, ao mesmo tempo, militante poltico que, bem ou mal, s vezes ativamente, s vezes de forma passiva, se mesclou com os grandes acontecimentos e lutas histricas do sculo XX. Neste trabalho examinaremos as brilhantes observaes, mas tambm as limitaes da teoria e da prtica poltica de Lukcs. Sabemos que Lukcs no foi apenas um intelectual marxista. Ele exerceu funes de dirigente poltico-partidrio, sobretudo no perodo compreendido entre os anos de 1919 e 1929. Nosso objetivo principal com esta investigao no apenas o de analisar a interpretao de Lukcs a respeito do mtodo dialtico desenvolvido por Marx, mas, acima de tudo, examinar a capacidade do autor em aplic-lo na prtica. Confrontamos as idias de Lukcs - expostas em algumas das suas inmeras obras - com a teoria de Marx e com a interpretao feita por alguns marxistas clssicos (sobretudo Lnin e Trotsky), utilizando comentrios de vrios estudiosos da atualidade. No captulo I, descrevemos resumidamente a trajetria intelectual de Lukcs antes dele se tornar marxista. De origem burguesa, Lukcs teve, desde muito jovem, uma tendncia a negar a sociedade capitalista, que lhe parecia deplorvel. Entre 21 e 33 anos de idade, Lukcs publicou uma srie de obras cujo contedo comum era uma espcie de anti-capitalismo romntico. Nessa poca, Lukcs buscava uma sada utpica para o caos que representava a sociedade burguesa. Somente em 1918, influenciado pela Revoluo Russa, Lukcs descobriu a possibilidade da superao revolucionria do capitalismo. Foi nessa poca que ele aderiu ao bolchevismo.

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No captulo II, abordamos as idias de um Lukcs j marxista, membro do Partido Comunista Hngaro e do governo da Hungria, que durou, no entanto, apenas 133 dias. Neste captulo examinamos o problema da dialtica marxista de um ponto de vista ainda meramente conceitual. Expusemos as controvrsias levantadas por vrios autores contemporneos com relao s idias defendidas por Lukcs nas obras Histria e conscincia de classe, Existencialismo ou marxismo? e Esttica. Tentamos demonstrar aqui tanto a riqueza quanto os limites das idias de Lukcs. No captulo III partimos das observaes tericas feitas no captulo anterior e procuramos demonstrar as dificuldades enfrentadas por Lukcs na aplicao do mtodo dialtico marxista na luta de classes, isto , sua dificuldade em unir a teoria marxista com a prtica vinculada luta poltica do proletariado. Optamos em analisar Histria e conscincia de classe e Teses de Blum por serem estas, segundo o prprio autor, as obras que representaram momentos decisivos e jamais ultrapassados de sua aprendizagem do marxismo.1 Veremos nesse percurso dentro dos limites estreitos de uma tese de mestrado como, realmente, a trajetria terica de Lukcs determina a sua prtica, mas tambm, que, em certa medida, muitos indcios apontam para determinaes em sentido contrrio. Em outras palavras, muitos indcios apontam no sentido de que muitas das decises tericas fundamentais de Lukcs tiveram origem em escolhas, nem sempre as melhores, escolhas partidrias, histricas e at existenciais.

LUKCS, G. Historia y consciencia de clase: estudios de dialctica marxista. Mxico: Grijalbo, 1969, p. XXXIV. Geschichte und Klassenbewusstsein: Studien ber marxistische Dialektik. Luchterhand, 1978, p. 36 (Para o cotejamento com a edio alem usarei simplesmente a abreviatura GKb).

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I O LUKCS PR-MARXISTA

No incio do sculo XX Lukcs era um jovem que manifestava a tragdia ntima de recusar seu prprio universo burgus.2 No perodo compreendido entre 1906 1913 ele publicou, entre outras, a Alma e as formas, , Cultura esttica, Histria do desenvolvimento do drama moderno (1909), Metodologia da histria literria (1910) e preparou, sem concluir, sua primeira tentativa de sistematizao do livro Esttica. Nesta poca, mais precisamente em 1908, ele leu pela primeira vez O capital.3 Leandro Konder considera queno perodo de 1908 e 1909 a aproximao do jovem Lukcs a Marx alcanou o seu ponto culminante; nunca, durante a fase que precedeu a ecloso da revoluo hngara, o jovem Lukcs acolheu em seu pensamento tantos elementos provenientes do marxismo como nesse final da primeira dcada do Sculo XX. Nunca a rebeldia do Lukcs pr-marxista esteve to prxima de uma concretizao revolucionria.4 (grifos do autor)

George Lukcs nasceu em Budapeste (ento segunda capital da monarquia austro-hngara), no dia 13 de abril de 1885. Ele era o segundo filho de um prspero dirigente da principal instituio bancria da Hungria, o Budapest Kreditanstalt. Cf. LESSA, S. & PINASSI, M.O. Georg Lukcs: uma breve biografia. In: Lukcs e a atualidade do marxismo. So Paulo: Boitempo, 2002, p. 185; e LICHTHEIM, G. As idias de Lukcs. So Paulo: Cultrix, 1970, p. 13. 3 No posfcio escrito em 1967 Histria e conscincia de classe Lukcs afirma que sua primeira leitura dO capital foi profundamente influenciada pelas lentes metodolgicas (methodologische Brille) de Simmel e Max Weber. Ele diz que nesta poca o que lhe interessava era o Marx socilogo (Soziologen). LUKCS, G. Historia y conciencia de clase. Op. cit., p. XLV. GKb, p. 6. No mesmo sentido, em 1933 Lukcs afirma que em torno de 1910 ele considerava Marx o mais competente entre os economistas e os socilogos. LUKCS, G. Meu caminho para Marx. In: CHASIN, J. (Org.). Marx hoje. So Paulo: Ensaio, 1988, p. 121. Citado por KONDER, L. Rebeldia, desespero e revoluo no jovem Lukcs. In: Temas de cincias humanas, n 2, Mxico: Grijalbo, 1977, p. 63. 4 Idem. p. 62. Michael Lwy comenta que a teoria revolucionria de Marx somou-se influncia da poesia de Endre Ady, cuja fora consistia na recusa reconciliao com a realidade hngara, no apenas com a realidade feudal, mas tambm com o progresso burgus e ocidental. LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios: a evoluo poltica de Lukcs (1909-1929). So Paulo: Lech, 1979, p. 95. Lwy observa que foi sob a influncia de Ady que Lukcs integrou no seu universo os grandes autores russos, Dostoievsky e Tolstoi. Lwy cita um texto do prprio Lukcs no qual ele afiram que o personagem de Dostoievsky Aliocha Karamazov significava para ele o prottipo do homem novo que supera o velho mundo individualista corrompido. LUKCS, G. Solovieff, Archiv fur Sozialwissenschaft, Bd 42, 1916-1917, p. 978, citado por LWY, M. Op. cit., p. 122. Outra influncia importante no desenvolvimento intelectual e poltico de Lukcs, segundo ele prprio confirma, foram os escritos do anarco-sindicalista Ervin Szabo. Foi por meio de Szabo que Lukcs conheceu a Crtica ao Programa de Gotha. Entretanto, isso no foi suficiente para faz-lo superar o subjetivismo abstrato e o idealismo-tico caracterstico de seu pensamento naquela poca. LUKCS, G. Meu caminho para Marx. Op. cit., p. 122. Foi igualmente por meio de Szabo que Lukcs conheceu Georges Sorel, que tambm o influenciou profundamente.

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Mas, segundo Konder, as condies histricas desta poca tornavam a concretizao revolucionria extremamente difcil, praticamente impossvel. Isso fez com que, a partir de 1911, o pessimismo e o desespero de Lukcs se radicalizassem, passando a dominar cada vez mais sua perspectiva.5 Mas, se as principais influncias tericas que formaram o sentimento anticapitalista de Lukcs nesta poca foram Marx e Ady, Dostoievsky e Tolstoi, a convivncia com Ernst Bloch teve tambm um papel relevante. Foi Bloch quem convenceu Lukcs a se mudar de Florena Heidelberg, em 1910, a fim participar do Crculo de Max Weber.6 Lwy comenta que se Lukcs encontrou no Crculo um eco favorvel para sua concepo (Weltanschauung), continuou, no entanto, relativamente marginalizado no grupo, devido a sua orientao tico-revolucionria. Ele diz: a recusa do capitalismo muito mais extrema em Lukcs do que na maior parte dos intelectuais alemes de Heidelberg.7 Em 1916 Lukcs publicou, em forma de artigos, Teoria do romance e Da pobreza no esprito, obras carregadas de posies trgicas e de um anti-capitalismo romntico. Lukcs no via sada para o caos criado pelo capitalismo. Um dos aspectos determinantes de seu pensamento era a dicotomia entre a verdadeira vida - onde reinariam valores absolutos - e a vida emprica totalmente corrompida. Nesse sentido, Lwy observa que havia, no pensamento do Lukcs anterior a 1918,a nostalgia de uma vida autntica, impossvel de realizar-se na vida social concreta (...) No ltimo captulo da obra A alma e as formas - denominado Metafsica da tragdia - a recusa trgica do mundo (a vida ordinria) conduzia a uma vida orientada para a espera do milagre; em tal perspectiva, a principal tarefa do homem a de preparar-se para receber a graa (...) A fuga para o misticismo, o desespero suicida, o aristocratismo espiritual asctico, a viso trgica de mundo de Lukcs, s podem ser compreendidos em relao sua profunda recusa, radical, absoluta e intransigente do mundo burgus inautntico (...) O que desespera Lukcs [nesta poca] exatamente a estabilidade, a imutabilidade da sociedade capitalista que ele odiava.8

KONDER, L. Rebeldia, desespero e revoluo no jovem Lukcs. Op. cit., pp. 62-63. Idem, p. 64. Tambm em LWY, M. O romantismo revolucionrio de Bloch e Lukcs. In: Revista Ensaio. So Paulo: Ensaio, n 17-18, p. 316 e LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. Op. cit., p. 97. 7 Idem. p. 100. 8 Idem, pp. 104, 105, 109, 114 e 115 .6

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O desespero frente a uma situao sem sada levou Lukcs ao utopismo. O utopismo do jovem Lukcs foi comentado por ele mesmo mais tarde, no prefcio de 1962 Teoria do romance. Ele escreveu quea teoria do romance no de carter conservador, mas subversivo. Mesmo que fundamentada num utopismo altamente ingnuo e totalmente infundado: a esperana de que do colapso do capitalismo, do colapso a ele identificado das categorias socioeconmicas inanimadas e hostis vida, possa nascer uma vida natural, digna do homem. 9

Lwy concorda com Lukcs ao afirmar que o contedo do romantismo de Lukcs e Bloch era revolucionrio, pois seu objetivo no era um retorno Gemeinschaft pr-capitalista, mas um desvio pelo passado em direo ao mundo novo do futuro.10 (grifos do autor)

Segundo o prprio Lukcs, com o advento da I Guerra Mundial, sua interpretao do marxismo assumiu uma nova perspectiva. Ele afirma queo meu segundo estudo intenso de Marx comea com a minha compreenso, cada vez maior, do carter imperialista da Guerra (...) Marx deixava de ser o eminente especialista, o economista e socilogo; j comeava a delinear-se para mim o grande pensador, o grande dialtico.11

Alm da I Guerra, a Revoluo Russa foi outro fenmeno que exerceu enorme influncia em Lukcs. Uma das conseqncias da Revoluo de Outubro foi a chegada na Hungria, em 1918, de alguns hngaros que tinham sido enviados guerra pelo Imprio Austro-Hngaro (j desfeito em pedaos, com a derrota militar) e que voltavam Hungria convertidos ao comunismo (entre eles, Bela Kun, que logo se torna Secretrio-Geral do recm-fundado PC hngaro).12 A atitude de Lukcs diante deles ambgua. A indeciso de Lukcs fica evidente no artigo intitulado O bolchevismo como problema moral, no qual ele expressa simpatia pelos revolucionrios, mas questiona, ao9

LUKCS, G. A Teoria do romance. Um ensaio histrico-filosfico sobre as formas da grande pica. So Paulo: Ed 34, 2000, p. 16. 10 LWY, M. O romantismo revolucionrio de Bloch e Lukcs. Op. cit., p. 316. 11 LUKCS, G. Meu caminho para Marx. Op. cit., p. 121, citado por LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. Op. cit., p. 132. 12 KONDER, L. Rebeldia, desespero e revoluo no jovem Lukcs. Op. cit., p. 67.

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mesmo tempo, o fato do bolchevismo colocar os homens perante um dilema tico insolvel, expresso na seguinte pergunta: pode-se atingir o que bom atravs de maus procedimentos, pode-se chegar liberdade pela via da opresso?13 Lukcs afirma que no. Isso o afasta do projeto revolucionrio e o aproxima do que ele ento chamou de luta lenta que trabalha a alma daquele que assume at o fim a democracia.14 Seu ingresso ao Partido Comunista Hngaro, em dezembro de 1918 - portanto, meses depois da publicao desse artigo - foi recebida com espanto entre seus amigos (Max Weber, Ernest Bloch, Simmel, Lask, Tnnies, Mannheim, Hauser e outros).15 Ningum melhor que o prprio Lukcs para comentar esse episdio. Na ltima entrevista que concedeu antes de morrer, Lukcs afirma que preciso dizer, e h mesmo um documento neste sentido, que aderi ao Partido Comunista s depois de certa hesitao. uma histria curiosa, mas na realidade so coisas que sucedem. Mesmo tendo idias perfeitamente claras sobre o papel positivo da violncia na histria e mesmo no tendo tido jamais nada a objetar aos jacobinos, no momento em que me defrontei com a questo da violncia, no sentido de dever favorec-la atravs de minhas atividades pessoais, resultou que a teoria na cabea de um homem no coincide exatamente com a prtica. Foi necessrio um certo processo, em novembro, para que eu, em meados de dezembro [de 1918], pudesse aderir ao Partido Comunista.16

A extraordinria virada ocorrida no percurso do jovem Lukcs que resultou na sua adeso ao Partido Comunista Hngaro foi comentada por sua amiga Anna Lisznai como uma converso entre dois domingos: Saulo tornou-se Paulo.17 Em 21 de maro de 1919 portanto, apenas quatro meses aps seu ingresso ao partido - a monarquia hngara foi derrubada e substituda pela Repblica Hngara dos Conselhos.18 Lukcs foi nomeado Vice-Comissrio do Povo para a Cultura e a Educao Popular, cargo

LUKCS, G. O bolchevismo como problema moral. Citado por FREDERICO, C. Lukcs: um clssico do sculo XX. So Paulo: Moderna, 1997, p. 8. Comentado tambm por KONDER, L. Op. cit., p. 67. 14 FREDERICO, C., Op. cit., p.8. 15 Idem. p. 9. 16 LUKCS, G. Dilogo sobre o Pensamento vivido (ltima entrevista de Lukcs) extratos. In: CHASIN, J. (Org.) Revista Ensaio. So Paulo: Ensaio, 1986, n 15-16. 17 Citado por LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. Op. cit. p. 139. 18 Mihly Krolyi, primeiro ministro desde o dia 31 de outubro de 1918, renunciou em 21 de maro de 1919 devido s fortes presses surgidas em funo das enormes dificuldades enfrentadas para realizar uma negociao de paz favorvel ao pas.

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equivalente a Ministro da Cultura. A participao de Lukcs no governo comentada por Celso Frederico nos seguintes termos:durante a curta durao do regime revolucionrio (apenas 133 dias), Lukcs enfrentou o batismo de fogo da prtica poltica. A poltica deixava de ser um imperativo da conscincia moral e o pensador idealista, recm-convertido a um marxismo mal assimilado, estava s voltas com a tarefa de intervir na rida realidade.19

Na mesma direo, Konder observa queat dezembro de 1918, Lukcs nunca tinha feito poltica e carecia, portanto, de um conhecimento real interno da atividade poltica. A poltica era para ele o mero lugar onde se deveriam traduzir determinadas opes ticas, as mediaes especficas do plano poltico se dissolviam numa subordinao integral e imediata tica.20 (grifos do autor)

E conclui Konder:aps a opo revolucionria, a concepo do jovem Lukcs comea a sofrer uma difcil e dolorosa reelaborao, mas preserva, na primeira fase da nova etapa, necessariamente, numerosos elementos da viso mtica, messinica, da etapa precedente.21

A idia de que o Lukcs do final da primeira dcada do sculo XX tinha uma precria compreenso do marxismo reforada pelas duras crticas dirigidas por Vladimir I. Lnin ao seu artigo escrito em 1920, denominado Sobre a questo do parlamentarismo,22 no qual ele contraps o Parlamento burgus aos Conselhos Operrios, definindo estes ltimos como

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FREDERICO, C. Lukcs: um clssico do sculo XX. Op. cit. p. 10. O novo governo formado pelo Partido Comunista logrou ter, inicialmente, sucessos militares considerveis: o Exrcito Vermelho Hngaro expulsou as foras tchecoslovacas dos territrios disputados, proclamou uma efmera Repblica Sovitica Eslocava e preparou-se para enfrentar o exrcito romeno na Transilvnia. Internamente, o governo comunista nacionalizou empresas industriais e comerciais e socializou instituies habitacionais, de transporte, bancrias, mdicas, culturais e todas as propriedades fundirias com mais de 40 hectares. Entretanto, o Exrcito Vermelho Hngaro terminou por recuar sob a presso da Entente. Confrontados com a reao popular e com o avano das foras romenas, Kun e seus camaradas fugiram para a ustria. Budapeste foi ocupada em 6 de agosto de 1919. 20 KONDER, L. Rebeldia, desespero e revoluo no jovem Lukcs. Op. cit., p. 68. 21 Idem. Ibidem. 22 Nesta poca Lukcs estava exilado em Viena e havia assumido a funo de co-editor de Kommunismus, uma revista terica do comunismo internacional, na qual foi publicado seu artigo.

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as organizaes ofensivas do proletariado revolucionrio que deveriam existir sempre de forma clandestina [pois] a legalidade aniquila-os (...) Onde possvel constituir um conselho operrio (ainda que no mbito mais modesto), o parlamentarismo suprfluo (...) O parlamento um instrumento particular da burguesia, [podendo, no mximo, transformar-se numa] arma defensiva do proletariado.23

A crtica endereada por Lnin a esse artigo foi a seguinte:o artigo de G. L. muito esquerdista e muito ruim. Seu marxismo puramente verbal; a diferena entre as tticas defensiva e ofensiva imaginria; carece de anlise concreta de situaes histricas bem definidas; o essencial (a necessidade de conquistar e aprender a conquistar todas as esferas de trabalho e todas as instituies onde a burguesia exerce sua influncia sobre as massas, etc.) no levado em considerao.24

Lwy considera que Lukcs somente conseguiu superar o desvio esquerdista a partir de sua participao no III Congresso da Internacional Comunista, realizado entre 17 de junho a 8 de julho de 1921. A obra Histria e conscincia de classe expressa esta superao. Composta por diversos artigos escritos entre 1919 e 1922, esta obra manifesta a enorme influncia revolucionria que vrios fenmenos exerceram em Lukcs, tais como: a Revoluo Russa de outubro de 1917, a participao no Partido Comunista Hngaro, a experincia na Repblica Hngara dos Conselhos e a participao no III Congresso da Internacional Comunista. Esta obra marca definitivamente o seu ingresso ao bolchevismo.25 Publicada pela primeira vez em 192323 24

LUKCS, G. A questo do parlamentarismo. Citado por FREDERICO, C. Op. cit. p. 10. LENIN,V.I. Kommunismus. In: Obras completas. Madrid: Akal, 1978, tomo XXXIII, p. 259. Na ltima entrevista concedida por Lukcs, em 1971, ele confirma a pssima opinio que Lnin tinha a seu respeito. Ele diz: Lnin disse muito asperamente a sua opinio a respeito do meu artigo sobre o parlamentarismo (...) Lnin me considerava como um simples extremista de esquerda. LUKCS, G. Dilogo sobre o Pensamento vivido. Op. cit. p. 47. 25 LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. Op. cit., pp. 182, 192-197. Nicolas Tertulian comenta que na poca em que redigia os textos reunidos em Histrica e conscincia de classe, Lukcs estava tomado de uma certa exaltao e impacincia revolucionria. TERTULIAN, N. Metamorfoses da filosofia marxista: a propsito de um texto indito de Lukcs. In: Revista Crtica marxista: Boitempo, n 13, 2001, p. 33. No mesmo sentido, Marcos Nobre considera que Histria e conscincia de classe marca a primeira fase marxista de Lukcs. NOBRE, M. Lukcs e os limites da reificao: um estudo sobre Histria e conscincia de classe. So Paulo: Ed. 34, 2001, p. 11. Em 1955, no ensaio As aventuras da dialtica, Maurice Merleau-Ponty considera que ao escrever Histria e conscincia de classe Lukcs tornou-se o precursor do que ficou conhecido posteriormente como marxismo ocidental, que, segundo Herbert Marcuse, caracteriza-se pela oposio ao marxismo sovitico. Citados por NETTO. J.P. Lukcs e o marxismo ocidental. In: Lukcs: um galileu no sculo XX. So Paulo: Boitempo, 1996, p. 8. Nessa direo, Guido Oldrini considera Lukcs e Gramsci os principais

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ela expressa, em seu conjunto, uma das rupturas fundamentais ocorridas no percurso intelectual de Lukcs. A superao da viso trgica do mundo e a busca de uma maior compreenso da dialtica revolucionria contida na obra de Marx possivelmente a principal caracterstica de Histria e conscincia de classe. Nesta obra, a concepo dialtica da realidade - ou seja, a realidade considerada como uma unidade contraditria - contrasta com a antiga concepo trgica na qual os contrrios se excluem.26 Talvez seja este o sentido que tem a afirmao de Lukcs no prefcio primeira edio, segundo a qual esta obra tem como objetivo esclarecer, para o autor e para os seus leitores, questes tericas do movimento revolucionrio.27 (grifo nosso) Histria e conscincia de classe representou, portanto, para o prprio Lukcs, um acerto de contas com suas concepes anteriores. A tentativa de compreender a dialtica revolucionria esboada por Marx e Engels a base terica fundamental dessa ruptura. A preocupao com a dialtica acompanhar o marxista hngaro at o final de sua vida. Examinemos, ento, a concepo de Lukcs a respeito do mtodo dialtico.

expoentes do marxismo ocidental. OLDRINI, G. Gramsci e Lukcs, adversrios do marxismo da Segunda Internacional. In: Crtica marxista. So Paulo: Xam, 1999, n 8, p. 68. Para Jos Paulo Netto, marxismo ocidental no um conceito preciso, mas uma noo lassa, frouxa, lbil e multivalente, pois contm nos seus limites as obras de Gramsci e Horkheimer, Lefebvre e Althusser. NETTO. J.P. Lukcs e o marxismo ocidental. Op. cit., p. 8. 26 LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. Op. cit. p. 149. Alm da viso trgica no dialtica, Lwy considera que em Histria e conscincia de classe Lukcs teria superado a tendncia utopista. J Oldrini pensa que Lukcs mantm nessa obra um certo utopismo messinico. OLDRINI, G. Op. cit., p. 70. 27 LUKCS, G. Historia y consciencia de clase. Op. cit., p. XLIII.

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II O MTODO DIALTICO

1) O MTODO DIALTICO EM HISTRIA E CONSCINCIA DE CLASSE:

No prefcio primeira edio de Histria e conscincia de classe, Lukcs se coloca de maneira humilde frente obra de Marx e se prope, antes de tudo, a compreender o seu mtodo. Ele considera que o objetivo de Histria e conscincia de classe compreender adequadamente e aplicar acertadamente a essncia do mtodo de Marx, e no de corrigi-lo em nenhum sentido. Estes escritos no reivindicam pretenso maior que a de interpretar a doutrina de Marx no sentido de Marx. Nossos objetivos esto determinados pela idia de que finalmente se tem achado na doutrina e no mtodo de Marx o mtodo adequado para o conhecimento da sociedade e da histria (...) A tarefa destes [artigos] consiste em manifestar conscientemente o mtodo de Marx.28

Para Lukcs, a vitria do proletariado somente pode ser alcanada por meio da aplicao prtica da dialtica marxista. Diz ele: s metodicamente pelo mtodo dialtico a vitria est garantida. E esta garantia no pode ser provada nem conseguida a no ser mediante a ao, mediante a revoluo mesma.29 Segundo Lukcs, os principais problemas enfrentados pelo marxismo provm do fato de que o mtodo dialtico aplicado por Marx caiu no esquecimento (Vergessenheit). O esquecimento da dialtica uma das causas do desenvolvimento daquilo que ele denomina marxismo vulgar. De acordo com Lukcs, os marxistas vulgares extraem alguns fragmentos isolados da teoria de Marx, sem nunca compreender suficientemente e aplicar seu mtodo em sua totalidade, como um mtodo de anlise e de ao unitrio e coerente. Com isso, eles tornam-se incapazes de apreender toda a potencialidade da teoria de Marx. Nesse sentido, segundo Lukcs,alguns aspectos muito essenciais do mtodo de Marx, e precisamente os que decisivamente importam para a compreenso do mtodo em sua conexo material e

28

Idem. p. 51. Em outra passagem Lukcs afirma que em questes de marxismo a ortodoxia se refere exclusivamente ao mtodo. Idem. p. 2. GKb, p. 59. 29 Idem. p. 47. GKb, pp. 116-117.

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sistemtica, tem cado indevidamente no esquecimento (Vergessenheit), e isso tem dificultado e at quase impossibilitado a compreenso do nervo vital desse mtodo, a dialtica.30 (grifo do autor)

Para Lukcs, a dialtica no um acrscimo superficial obra de Marx, que pudesse ser eliminado do materialismo histrico. O mtodo dialtico tem um papel central na teoria marxista, especialmente em O capital. Somente com a dialtica possvel fazer a distino entre a imediatez e a mediao. Para ele, esta diferena no pode passar despercebida. Lukcs considera que os fatos imediatos devem ser tratados de maneira histrico-dialtica. Isto significa que os fatos cotidianos no podem ser essencializados, mas considerados apenas como ponto de partida do conhecimento, ou seja, como um momento aparente e ilusrio, que oculta a essncia das coisas.31 Lukcs conclui quepara captar adequadamente as coisas preciso comear por captar clara e precisamente esta diferena entre sua existncia real (realen Existenz) e sua estrutura nuclear interna (inneren Kerngestalt), entre as representaes formadas sobre elas e seus conceitos. Esta diferenciao o primeiro pressuposto de uma considerao realmente cientfica, a qual, segundo as palavras de Marx, seria suprflua se a forma fenomnica e a essncia das coisas coincidissem de modo imediato. 32

Portanto, para compreender a essncia da sociedade capitalista necessrio admitir que ela no est dada imediatamente. As formas pelas quais os fenmenos sociais se expressam ocultam, ao invs de revelar, sua essncia interna. Para alcanar a essncia das coisas indispensvel, segundo Lukcs, a aplicao do mtodo dialtico. nesse sentido que Lukcs d a devida importncia ao mtodo. Nas passagens a seguir, o papel central da dialtica em Histria e conscincia de classe fica evidente:minha inteno real com estes artigos converter o mtodo dialtico em objeto de discusso, como sendo uma questo viva e atual. Se eles fornecerem um comeo, ou at a mera oportunidade, de uma discusso realmente fecunda do mtodo dialtico, de30 31

Idem. p. XLVI. GKb, p. 52. Lukcs cita a seguinte passagem de O capital, bastante esclarecedora:a forma acabada das relaes econmicas, tal como se mostra na superfcie (Oberflche), em sua existncia real e portanto tambm nas representaes com as quais os portadores (die Trger) e agentes destas relaes tentam explic-las, so muito distintas de sua estrutura nuclear interna, essencial, mas oculta, e do conceito que lhes corresponde, e at so na prtica a inverso contraposta desta estrutura. MARX, K. O capital, III, I, 188. Citado por LUKCS, G. Idem. p. 9. GKb, p. 68. 32 Idem. p. 9. GKb, p. 68. A citao de Marx de O capital, III, II, 352.

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uma discusso que volte a reforar a essncia do mtodo, tero cumprido plenamente sua funo.33

A importncia dada dialtica nesta obra de Lukcs reafirmada em outra passagem do prefcio de 1967. A dialtica considerada por ele como uma arma na luta contra o revisionismo e o oportunismo, que representavam uma espcie de cncer no interior do marxismo, ao desviar o proletariado da luta pela conquista do poder. Ele observa que Histria e conscincia de classe significou um ato radical de reatualizar o revolucionrio de Marx mediante uma renovao e continuao da dialtica hegeliana e seu mtodo, contra as tendncias de Bernstein e Kautsky.34 A dialtica , para Lukcs, mais do que um instrumento do processo de conhecimento. Ela serve como um meio para o proletariado superar a dominao ideolgica exercida pela burguesia expressa nas correntes revisionistas dirigidas por Kautsky e Bernstein - e assim se tornar capaz de superar as outras formas de dominao, como a dominao econmica e poltica. No final do prefcio primeira edio, Lukcs explica sucintamente o mtodo dialtico. Escreve ele: prprio da essncia (Wesen) do mtodo dialtico que nele os conceitos falsos por sua abstrata unilateralidade sejam superados (die aufhebung). Este processo de superao exige, entretanto, ao mesmo tempo, que se continue operando com esses mesmos conceitos unilaterais, abstratos, falsos (einseitigen, abstrakten und falschen).35

Mas, se os conceitos falsos extrados da realidade imediata devem ser superados, porque encobrem a essncia da sociedade, eles so, contraditoriamente, o ponto de partida do processo que leva compreenso da essncia da realidade.36 Por isso, osIdem. p. XLVIII. GKb, p. 56. Simmel, numa carta Lukcs, expressa a seguinte opinio a respeito do mtodo dialtico por ele desenvolvido: Alis, no quero ocultar-lhe que as primeiras pginas que li me so muito simpticas quanto ao mtodo. A tentativa de deduzir a partir de condies as mais externas e vulgares, aquilo que mais ntimo e sublime, parece-me fecunda e interessante. Lukcs Archivum, Budapeste, citado por LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. Op. cit. p. 102. 34 Idem. p. XXII. GKb, p. 22. Trata-se de Eduard Bernstein e Karl Kautsky, dirigentes do Partido Socialdemocrata Alemo e da II Internacional, considerados revisionistas pela direo da Internacional Comunista. 35 Idem. p. XLIX. GKb, p. 56. 36 Na entrevista concedida por Lukcs em setembro de 1966 aos professores alemes Wolfgang Abendroth, Han Heinz Holz e Leo Kofler, ele reafirma a idia de que os fenmenos imediatos ocultam a essncia. Ele diz: se estudarmos a anlise do fenmeno e da essncia em Marx, veremos que a caracterstica essencial dos fenmenos que neles o processo desapareceu. A propsito do dinheiro e de outros problemas, Marx chama repetidas vezes a ateno para o fato de que os homens sabem manipular muito bem essas coisas, para usar a expresso hoje corrente, mesmo tendo transformado o processo real33

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momentos falsos no devem ser desprezados, mas superados, o que significa neg-los incorporando parte do negado. Para Lukcs, a dialtica o mtodo que conduz superao dos momentos falsos em direo verdade, essncia da sociedade. Segundo Hegel, citado por Lukcs na mesma passagem, o falso, como momento da verdade, deixa de ser falso. Portanto, a considerao do momento falso imprescindvel para se aproximar da verdade. Lukcs afirma que

o

conhecimento

parte

das

determinaes

naturais

(natrlichen),

imediatas

(unmittelbaren), puras (reinen), simples (einfachen) (no mundo capitalista) (...) para avanar delas at o conhecimento da totalidade concreta (konkreten Totalitt) como reproduo intelectual da realidade. Esta totalidade concreta no est de modo algum imediatamente dada ao pensamento.37

Neste sentido, ele observa que a doutrina de Marx supera necessariamente o efetivamente dado e orienta a conscincia do proletariado ao conhecimento da essncia, no vivncia do imediatamente dado.38 Segundo Lukcs, para compreender a sociedade capitalista, necessrio partir das determinaes mais simples, mas sem restringir-se a elas. Ao contrrio, preciso buscar sempre a essncia dos objetos que est oculta atrs da imediatez. Este movimento que vai do mais aparente essncia o movimento dialtico. Afirma ele que a dialtica desenvolvida por Marx e Engels

num estado reificado. HOLZ, H.H., KOFLER, L. & ABENDROTH, W. Conversando com Lukcs. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, pp. 11,13. Quanto ao dinheiro ocultar o processo que o gerou, Lukcs est se referindo s seguintes passagens de O capital, nas quais Marx afirma: toda a pessoa sabe, ainda que no saiba mais do que isso, que as mercadorias possuem uma forma comum de valor, que contrasta de maneira muito marcante com a heterogeneidade das formas naturais que apresentam seus valores de uso a forma dinheiro. Aqui cabe, no entanto, realizar o que no foi jamais tentado pela economia burguesa, isto , comprovar a gnese dessa forma dinheiro, ou seja, acompanhar o desenvolvimento da expresso do valor contida na relao de valor das mercadorias, de sua forma mais simples e sem brilho at a ofuscante forma dinheiro. Com isso desaparece o enigma do dinheiro. MARX, K. O capital. Crtica da economia poltica. So Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 54. Karl Marx & Friedrich Engels: Werke (Band 23). Berlin: Dietz Verlag/DDR, 1988, p. 62. (Para o cotejamento com a edio alem, usarei a notao habitual MEW 23). E continua Marx, algumas pginas adiante: o movimento mediador [que gerou o dinheiro] desaparece (Verschwinden) em seu prprio resultado [o prprio dinheiro] e no deixa atrs de si nenhum vestgio (...) O enigma do fetiche do dinheiro , portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria, tornado visvel e ofuscante. Idem. pp. 84-85. MEW 23, pp. 107-108. Na mesma entrevista citada acima, Lukcs afirma que preciso comear e isto vale tanto para os cientistas quanto para qualquer outra pessoa por questes da vida cotidiana (...) Devemos tentar pesquisar as relaes nas suas formas fenomnicas iniciais e ver em que condies estas formas fenomnicas podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas. HOLZ, H.H., KOFLER, L. & ABENDROTH, W. Op. cit., p. 117. 37 LUKCS, G. Historia y consciencia de clase. Op. cit., p. 10. GKb, p. 69. 38 Idem. p. 270.

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no nega em absoluto que os homens realizam eles mesmos seus atos histricos, e precisamente com conscincia, mas (...) trata-se de uma conscincia falsa. De qualquer maneira, o mtodo dialtico no nos permite, tampouco neste caso, que nos contentemos com a simples comprovao da falsidade de dita conscincia, com uma rgida contraposio entre o verdadeiro e o falso. Acima disso, [o mtodo dialtico] exige que se investigue concretamente esta falsa conscincia como momento da totalidade histrica que pertence, como estgio do processo histrico no qual ativa.39

O mtodo dialtico objeto de reflexo de Lukcs durante toda a sua vida, reaparecendo nas diversas fases de seu pensamento. Em Existencialismo ou marxismo?, por exemplo, obra de 1948, Lukcs faz importantes observaes metodolgicas, na mesma direo daquelas de Histria e conscincia de classe. Apesar do objetivo principal de Lukcs nesta obra ser o combate s correntes existencialistas, em especial as posies defendidas por Jean P. Sartre, nossa interpretao ter um vis que privilegiar a anlise de Lukcs a respeito da dialtica, que desenvolvida sobretudo no captulo IV de Existencialismo ou marxismo?.40

2) O MTODO DIALTICO EM EXISTENCIALISMO OU MARXISMO? Lukcs afirma que o conhecimento deve partir da realidade imediata, da experincia cotidiana, que , segundo ele, um fenmeno fundamental, que constitui fatalmente o ponto de partida de toda reflexo, porque o nico conhecimento que temos do mundo chega-nos por intermdio dos nossos rgos.41

Entretanto, impossvel

compreender a realidade em sua totalidade somente por meio dos sentidos. Ele diz: o mundo exterior ultrapassa o que imediatamente dado pela percepo de nossos rgos.42 A percepo imediata dos homens, em sua vida cotidiana, incapaz de captar todas as transformaes que esto ocorrendo na realidade que os cerca. Por meio da percepo imediata s possvel captar alguns aspectos parciais da realidade, justamente aqueles que esto ao alcance imediato. Nesse sentido, Lukcs observa que

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Idem. p. 53. Neste captulo estamos ainda analisando os aspectos conceituais do mtodo dialtico a partir da obra de Lukcs. Por isso, no discutiremos todos os textos de cada fase em ordem cronolgica. Passaremos diretamente de 1923 (Histria e conscincia de classe) 1948 (Existencialismo ou marxismo?) e, no item 3, 1963 (Esttica). Faremos isso, sobretudo, para mostrar certa permanncia de alguns problemas metodolgicos no Lukcs tardio. 41 LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? So Paulo: Lech, 1979, p. 228. 42 Idem. Ibidem.

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o mundo exterior ao mesmo tempo movimento e transformao. Compreende ainda adireo da transformao e suas leis, assim como elementos constantes, escapando talvez nossa percepo direta, mas que nem por isso deixam de compor os fenmenos que percebemos.43

Segundo Lukcs, as leis da transformao do mundo exterior podem escapar nossa percepo imediata. Ele considera que, em funo desta permanente transformao da realidade, impossvel aos homens compreender a totalidade social. Uma vez que a realidade est em constante transformao, o conhecimento capta apenas momentos isolados desse processo ininterrupto. Algo que verdadeiro agora pode no ser no momento seguinte. O que sucede com o tempo, ocorre tambm com o espao, ou seja, algo que verdadeiro aqui, pode no ser verdadeiro em outro lugar. Portanto, se o pensamento apreender apenas momentos do processo, nunca alcanar a compreenso, nem mesmo aproximada, do real. Muito mais do que a anlise de fenmenos isolados, necessrio prestar ateno no processo de sua transformao.44 Segundo Lukcs, mesmo observando o processo de transformao dos fenmenos, possvel apenas se aproximar do conhecimento da realidade. Tanto o conhecimento dos fenmenos quanto a prpria lei que os rege seriam sempre algo relativo, uma aproximao da realidade. isso que ele afirma na passagem a seguir: assim que questo bem posta da relatividade do conhecimento, a teoria do conhecimento do materialismo dialtico fornece a boa resposta. Nossos conhecimentos so apenas aproximaes da plenitude da realidade, e por isso mesmo, so sempre relativos; na medida, entretanto, em que representam a aproximao efetiva da realidade objetiva, que existe independentemente de nossa conscincia, so sempre

43 44

Idem. Ibidem. De fato, para Marx, o mtodo dialtico visa apreender as leis da transformao dos fenmenos. Nesse sentido, podemos lembrar o posfcio da segunda edio de O capital, onde Marx cita um comentrio de um resenhista russo que afirma que para Marx, s importa uma coisa: descobrir a lei dos fenmenos de cuja investigao ele se ocupa. E para ele importante no s a lei que os rege, medida que eles tm a forma definida e esto numa relao que pode ser observada em determinado perodo de tempo. Para ele, o mais importante a lei de sua modificao, de seu desenvolvimento, isto , a transio de uma forma para outra, de uma ordem de relaes para outra. Uma vez descoberta essa lei, ele examina detalhadamente as conseqncias por meio das quais ela se manifesta na vida social. Marx comenta a seguir que, ao descrever de modo to acertado e, tanto quanto entra em considerao a minha aplicao pessoal do mesmo, de modo to benvolo aquilo que o autor chama de meu verdadeiro mtodo, o que descreveu ele seno o mtodo dialtico? MARX, K. O capital. Op. cit. p. 20. MEW 23, p. 27.

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absolutos. O carter ao mesmo tempo absoluto e relativo da conscincia forma uma unidade dialtica indivisvel.45

A seguir, Lukcs comenta que, para acompanhar o movimento do real, a reflexo deve necessariamente ser dialtica. Ele diz: a realidade objetiva, sendo ela mesma um processo feito do movimento dos fenmenos que evoluem para tornar-se seu contrrio, a reflexo no poderia pretender reproduzi-la de uma maneira adequada, a no ser com a condio de ser ela mesma dialtica.46 Para ter uma compreenso que se aproxime da essncia da realidade social em permanente transformao necessrio o uso de um mtodo que capte os fenmenos em seu movimento. Este mtodo o mtodo dialtico. Os fenmenos, ou o reflexo da realidade no pensamento, no so completamente autnomos em relao realidade. Eles so formas da existncia, dependentes da existncia mesma. Por isso, somente possvel aproximar-se da essncia da realidade, caso se acompanhe o movimento do real. Ao superar o nvel da percepo imediata e iniciar a teorizar sobre a realidade, tem-se a impresso de que a realidade imediata determinada pela conscincia. Lukcs diz que a reflexo, ultrapassando a existncia imediata, d lugar iluso de que essa superao seria unicamente devida ao conhecimento e exterior portanto realidade objetiva.47 Opondo-se a essa noo idealista, Lukcs observa que a prpria teoria condicionada, em certo grau, pela realidade objetiva: Na verdade, essa superao (do nvel sensvel ao inteligvel) realizada pela prpria existncia.48 Para ele, o reflexo da realidade na conscincia so formas de manifestao, so momentos do ser. A conscincia no teria, segundo Lukcs, autonomia absoluta em relao ao ser. Ele diz que, ao transitardo fenmeno para a essncia, o conhecimento apenas segue o movimento da prpria existncia, isto , se tudo o que se convencionou chamar abstrao, lei natural etc., apenas forma nova, se bem que inacessvel percepo direta do prprio existente, enfim, esse caminho do conhecimento no constitui uma atividade autnoma, pertencendo-lhe exclusivamente, mas simplesmente o reflexo complexo e indireto do movimento e da transformao do ser na conscincia humana, ento a teoria do45

LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? Op. cit., p. 233. Para Lukcs, a seguinte afirmao de Lnin expressa o fundamento do mtodo dialtico: para bem conhecer um objeto devemos apreender e explorar todos os seus aspectos, todas as suas correlaes e todas as mediaes. Nunca a chegaremos completamente, mas a exigncia de um mtodo multilateral nos garantir contra os erros e contra o dogmatismo. LNIN, V.I. Citado por LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? Op. cit. p. 240. 46 Idem. pp. 230. 47 Idem. p. 229. 48 Idem. Ibidem.

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conhecimento materialista, segundo a qual a conscincia humana reflete a realidade objetiva cuja existncia independente da sua, apresenta-se sob uma luz completamente nova.49

Mas ser que esse carter da conscincia enquanto reflexo da realidade natural, ahistrico, comum a todas as formaes sociais? Ser que os homens sempre produziro suas vidas sem a plena conscincia dos seus atos? Ser a conscincia sempre independentemente da formao social - um mero reflexo da realidade? O capitalismo , segundo Marx, a formao social que elevou ao mximo a alienao.50 Mas, contraditoriamente, este sistema que cria as condies para super-la. Para Marx, a conscincia somente deixar de ser um mero reflexo do real quando as relaes dos homens com a natureza e as relaes dos homens entre si tornarem-se transparentes, ou seja, numa sociedade comunista. o que ele afirma na seguinte passagem dO capital, ao referir-se a uma das formas de alienao, a religio. Nesse trecho, Marx comenta que o reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstncias cotidianas, da vida prtica, representarem para os homens relaes transparentes e racionais entre si e com a natureza.51 Marx observa que no comunismo as relaes sociais se tornaro transparentes porque os homens exercero o controle consciente e planejado da produo de suas prprias vidas. Somente ento todas as formas de misticismo religioso podero ser superadas. Nesse sentido ele diz que a figura do processo social da vida, isto , do processo da produo material, apenas se desprender do seu mstico vu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado.52 A alienao, considerada como a separao entre a conscincia e a realidade, considerada como o fenmeno que transforma a conscincia em reflexo invertido da realidade , portanto, um fenmeno determinado historicamente, um fenmeno prprio das sociedades de classes, que pode ser superado por meio do controle consciente da produo da vida, o que exige, entretanto, a superao das classes sociais. Em Existencialismo ou marxismo? Lukcs no observou a determinao histrica da alienao da conscincia.

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Idem. pp. 229-230. Marx comenta que enquanto o escravo romano estava preso por correntes a seu proprietrio, o trabalhador assalariado o est por fios invisveis. A aparncia de que independente mantida pela mudana contnua dos patres individuais e pela fico jurdica do contrato. MARX, K. O capital. Op. cit. vol. II, p. 158. MEW 23, p. 599. 51 MARX, K. O capital. Op.cit. vol. I, p. 76. MEW 23, p. 94. 52 Idem. Ibidem.

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Outra questo posta por Lukcs nesse captulo de Existencialismo ou marxismo? a inexistncia de uma rgida oposio entre fenmeno e essncia, entre o imediato e a coisa em si (Ding an sich). Nessa direo ele afirma quea essncia objetivamente real e, do ponto de vista da teoria do conhecimento, da mesma essncia do imediato: essa descoberta suprime o erro que consistia em rebaixar o fenmeno ao nvel da aparncia.53

Segundo Lukcs, tanto os fenmenos imediatos quanto a essncia mais oculta tm a mesma essncia. Para o conhecimento, ambos constituem apenas alguns momentos, gradaes, nveis da existncia, que devem ser perpassados pela conscincia no processo do conhecimento. Ele diz quea interpretao geral e abstrata da noo de objetividade atribui existncia tanto ao fenmeno imediato quanto essncia. A diferena que os separa, manifesta-se atravs da sucesso ininterrupta das transies pela diversidade dos graus da existncia. O estabelecimento dessa gradao do ser [Sein (ser), Dasein (estar presente), Wesen (ente), Existenz (existncia), Realitt (realidade), Wirklichkeit (efetividade)] representa uma das maiores revelaes da lgica hegeliana.54

Mas, afinal, existiria uma hierarquia na relao entre estes momentos? O momento essencial seria mais importante que o momento fenomnico? De acordo com Lukcs, poderamos responder afirmativamente se considerssemos isoladamente a observao de Lnin segundo a qual o valor uma categoria mais verdadeira que a lei da oferta e procura, apesar de faltar a ele a matria fornecida pelos sentidos. Entretanto, Lukcs afirma que, na verdade (...) em relao ao mundo das leis, o mundo dos fenmenos representa o todo, a totalidade, porque contm a lei e, alm disso, a prpria forma que se move.55 Se o mundo dos fenmenos representasse o todo, conforme pensa Lukcs, no haveria uma lei fundamental, um pressuposto, que determinaria, em ltima instncia, os fenmenos. Nesse caso, o mundo dos fenmenos conteria a lei e a prpria forma que se move. Assim, a totalidade seria sempre relativa, alterada pela influncia ininterrupta de

53 54

LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? Op. cit. pp. 230-231. Idem. p. 231. 55 Idem. p. 232.

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uma multiplicidade interminvel de fenmenos parciais.56 justamente esse o caminho que segue Lukcs, quando diz: somente apreendendo correlaes mveis, multilaterais e sempre mutveis dos elementos, que chegaremos nos limites de nossas possibilidades historicamente determinadas a cercar cada vez mais a realidade objetiva.57

Aqui reaparece a influncia sociolgica no pensamento de Lukcs.58 Ele estabelece como ponto de partida a particularidade de uma interminvel multiplicidade de correlaes mveis.59 Isso resulta na diluio da totalidade numa completa fragmentao da realidade.60 Para Marx, ao contrrio, a totalidade est submetida a um fundamento ltimo. O fundamento (Grund) de toda a histria a luta de classes, isto , a separao dos trabalhadores das condies objetivas de trabalho. No capitalismo, esta separao no s se mantm, mas se aprofunda cada vez mais,61 independente da direo que as transformaes fenomnicas tomarem em determinado momento ou lugar. Por traz das constantes mudanas que so postas cotidianamente, h um pressuposto que norteia essas transformaes. Esse pressuposto a luta de classes. No

Baseamo-nos aqui nas observaes feitas por Hector Benoit sobre o ponto de partida de uma anlise propriamente dialtica da realidade. Benoit observa a ausncia de pressupostos na concepo de programa adotada a partir do V Congresso da III Internacional. Diz ele que ali tratava-se de pensar a passagem entre o particular e o geral sem qualquer pressuposto... BENOIT, H. Sobre o desenvolvimento (dialtico) do programa. In: Revista Crtica Marxista, n 4, So Paulo: Xam, 1997, p. 26. (grifos do autor) 57 LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? Op. cit. p 241. 58 Veremos no item 1.3. do captulo III que vrios autores observaram uma influncia sociolgica em algumas posies assumidas por Lukcs em Histria e conscincia de classe. 59 Benoit observa que, na estratgia de O capital, assim como nas concepes tticas do III e, sobretudo, do IV Congresso [da Internacional Comunista], no se vai, propriamente, do particular ao geral, mas sim, muito mais, se vai do geral ao particular que retorna ao geral (...). BENOIT, H. Sobre o desenvolvimento (dialtico) do programa. Op. cit., p. 26. (grifos do autor) 60 Lelita Benoit comenta que a concepo weberiana j se caracterizava pela fragmentao da realidade. Ela diz: a sociologia compreensiva [de Weber] deve renunciar investigao do significado ou sentido da totalidade social e dos processos histricos em seu conjunto, por isso, os resultados aos quais pode chegar sero sempre fragmentrios e hipotticos. BENOIT, L. O. A objetividade na teoria social: Comte, Weber e Marx: (artigo). Verso simplificada apresentada sob o ttulo Cincias humanas: saber ou ideologia? O urbanismo e outros casos, em palestra apresentada no Frum Cultura de Greve: 9 falas sobre a cidade e suas relaes, org.: Curso de Artes Plsticas da Faculdade de Comunicaes e Artes (ECA) da USP e Revista Contravento (FAU/USP), 01 de julho de 2004. Lukcs segue a concepo weberiana que dava autonomia esfera da cultura. Mais tarde, seguindo o caminho aberto por Lukcs no interior do marxismo, os membros da Escola de Frankfurt desenvolvero a teoria das esferas. 61 A caracterizao do processo de separao incessante dos trabalhadores e dos meios de produo como sendo o pressuposto das relaes capitalistas de produo exposta de maneira clarssima na seguinte passagem de O capital: A relao-capital pressupe a separao (die Scheidung) entre os trabalhadores e a propriedade (Eigentum) das condies da realizao do trabalho. To logo a produo capitalista se apie sobre seus prprios ps, no apenas conserva aquela separao, mas a reproduz em escala sempre crescente. MARX, K. O capital. Op. cit., Vol II, p. 262. MEW 23, I, p 742.

56

33

trecho do texto de Lukcs citado acima possvel observar a ausncia de um pressuposto histrico. Na passagem abaixo isso fica ainda mais evidente. Ele diz quea lei concreta no ser jamais seno a aproximao da totalidade real, sempre mvel, incessantemente mutvel, em todos os sentidos infinita, que o pensamento no poder jamais esgotar de uma maneira perfeita.62 (grifo do autor)

Ora, s ser possvel compreender a essncia do real, oculta por trs do caos da multiplicidade de fenmenos, caso a observao da realidade imediata estiver baseada numa lei. Esta lei no uma mera aproximao da totalidade real, mas o fundamento geral de toda a transformao dos fenmenos. Se a observao dos fenmenos no estiver baseada num fundamento, a realidade aparecer como uma transformao permanente e catica de inmeros fenmenos particulares, uma incessante mutao sem direo alguma, uma mobilidade infinita e sem sentido. Assim, necessrio considerar a luta de classes como o fundamento da histria, ao qual todos os fenmenos particulares se submetem objetivamente. Em Lukcs, ao contrrio, a histria aparece como uma soma de aes humanas da qual nossa prpria ao, a do proletariado revolucionrio, forma um dos componentes que no poderamos negligenciar.63 Para Lukcs, a histria uma soma de aes humanas64 isenta de qualquer pressuposto.65 Em conseqncia disso, a ao do proletariado considerada por Lukcs como um mero componente da histria. Para Marx, a ao do proletariado no mais

LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? Op. cit., p. 233. Idem. p. 237. 64 Em 1971 Lukcs exps um conceito de histria completamente estranho noo original de Marx. Ele diz que a histria a histria da transformao das categorias. LUKCS, G. Pensamento vivido. Autobiografia em dilogo. So Paulo/Viosa, Ad Hominem/Universidade Federal de Viosa, 1999. Citado por NETTO, J. P. Georg Lukcs: um exlio na ps modernidade. So Paulo: Boitempo, 2002, p. 85. Todos sabem que, para Marx, a histria de todas as sociedades at hoje existentes a histria da luta de classes, ou seja, a histria da separao violenta dos trabalhadores das condies objetivas de trabalho. MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto comunista. So Paulo: Boitempo, 1998, p. 40. 65 Segundo a interpretao de Benoit sobre O capital, a revoluo socialista representa um retorno quilo que o pressuposto fundamental da sociedade capitalista: a expropriao violenta. Ele diz: quando finalmente o princpio pressuposto (a violncia da luta de classes) foi posto no seu comeo (antes de toda riqueza capitalista, antes de toda mercadoria e da esfera do mercado), o modo de produo como um todo se nega e necessrio deduzir um novo princpio a partir desse princpio que se transformou em comeo. O princpio que se negou como princpio, que se transformou em comeo, negado, e da negao da negao se caminha de maneira programtica para um novo princpio, isto , um novo modo de produo. BENOIT, H. Sobre a crtica (dialtica) de O capital. In: Revista Crtica Marxista, n 8. So Paulo: Xam, 1996, pp. 39-40. O fundamento originrio do capitalismo (a violncia da luta de classes) o fundamento da sua superao.63

62

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um elemento de uma soma, mas o componente determinante na sociedade capitalista, a nica ao capaz de salvar toda a humanidade da barbrie capitalista.66 A seguir, Lukcs observa corretamente a necessidade de estabelecer uma unidade entre teoria e prtica. Ele diz:o conhecimento, que est em condies de apreender dialeticamente as astcias da evoluo histrica, s vlido e eficaz quando suas aquisies forem outros tantos expedientes para a ao prtica, cujas experincias viro, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma fora sempre nova.67

Ambas teoria e prtica podem impulsionar-se mutuamente. Ao ser aplicada na prtica, a verdade ou falsidade da teoria comprovada. A atividade prtica dos homens o critrio decisivo do conhecimento.68 Por meio dos resultados obtidos na sua aplicao prtica, a teoria pode ser modificada, adequando-se s necessidades da realidade e assim produzindo novos resultados que, consequentemente, podero induzir a novas adequaes na teoria. Se considerarmos as palavras-de-ordem como uma mediao entre a teoria e a prtica, ou seja, como uma forma da vanguarda se relacionar com as massas, podemos dizer que a reao das massas determinada palavra-de-ordem indica o acerto ou o erro desta numa determinada conjuntura. Trotsky comenta a atitude de Lnin em abril de 1917 diante da reao dos marinheiros de Cronstadt palavra-deordem Abaixo o Governo Provisrio. Trotsky observa que Lnin retirou esta palavrade-ordem assim que percebeu que ela havia induzido esse setor do proletariado a se adiantar, isolando-se do restante da classe. Entretanto, Trotsky afirma que Lnin no considerou esta uma palavra-de-ordem errada. O fato era que o proletariado ainda no era capaz de derrubar o governo provisrio. Lnin retirou-a apenas temporariamente, defendendo que o partido deveria trabalhar duro para preparar o proletariado para a tomada do poder.69 As palavras-de-ordem tinham, portanto, uma dupla funo: impulsionar as massas luta; e medir o esprito de luta das massas. As palavras-deordem eram consideradas por Lnin como um meio de se relacionar com as massas, um66

No Manifesto comunista, Marx e Engels afirmam que de todas as classes (Von allen Klassen) que hoje em dia se opem burguesia, s o proletariado (ist nur das Proletariat) uma classe verdadeiramente revolucionria (wirklich revolutionre Klasse). MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto comunista. Op. cit. p. 49. Marx mantm essa posio at o fim da vida. Em O capital ele cita esse trecho do Manifesto. MARX, K. O Capital. Op. cit., vol. II, p. 294. MEW 23, p. 791. 67 LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? Op. cit. p. 237. 68 Idem. p. 248. 69 TROTSKY, L. As lies de outubro. So Paulo: Global, 1979, pp. 31-32.

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meio de dar ordens a elas e, ao mesmo tempo, um meio de ouvi-las. Elas representam, portanto, a mediao entre a vanguarda e as massas. A seguir, Lukcs levanta um problema prtico. Tendo em vista que o conhecimento apenas aproximativo da totalidade da realidade, como saber de antemo as conseqncias de uma crise? Como saber se uma crise poderia vir a ser fatal ou se haveria formas de super-la conservando o modo de produo capitalista? Baseando-se nas posies de Lnin, Lukcs afirma que(...) a questo de saber se tal ou tal crise comporta uma sada, no poderia ser resolvida seno pela luta, pela ao prtica das classes presentes. Postular anteriormente a ausncia objetiva da toda sada , segundo Lnin, jogar com palavras: s a ao prtica dos partidos revolucionrios pode provar a ausncia real de toda sada.70 (grifo do autor)

Segundo Lukcs, a teoria revolucionria no suficiente para solucionar as contradies expostas pelas crises. Separada da prtica, a teoria revolucionria perde todo o sentido. Poderamos dizer, seguindo Lukcs e Lnin, que uma teoria s revolucionria se estiver ligada prtica da classe revolucionria. Marx j havia afirmado que na prxis que o homem precisa provar a verdade, isto , a realidade e a fora, a terrenalidade do seu pensamento.71 Nesse sentido, poderamos dizer que a prtica no algo de menor importncia nas concepes de Marx, Lnin e Lukcs. Ao contrrio, Marx considera a prxis como a unidade indissocivel entre teoria e prtica e, portanto, uma , para ele, imanente outra. Na maturidade, Lukcs parece manter a preocupao sobre a relao do pensamento cientfico com a prtica cotidiana das massas. Examinemos, ento, como Lukcs aborda o problema da prxis dialtica em sua Esttica, outro momento de seu pensamento.

70 71

LUKCS, G. Existencialismo ou marxismo? Op. cit., p. 236. MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: A ideologia alem. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 94.

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3) O MTODO DIALTICO NA ESTTICA

A esttica foi publicada pela primeira vez em 1963 e foi considerada por Lukcs como a obra que reuniu os principais resultados de sua evoluo histrica.72 Nela Lukcs analisa, entre outras coisas, a relao entre a cincia e a esttica com o pensamento cotidiano mais simples. Para ele, o mais profundo conhecimento cientfico ou esttico tem como ponto de partida as necessidades da vida cotidiana. Nesse sentido ele diz:a pureza do reflexo cientfico e esttico se diferencia, por um lado, de maneira contundente, das complicadas formas mistas da cotidianidade. Por outro lado, estas fronteiras so apagadas, porque as duas formas diferenciadas de reflexo (cincia e esttica) nascem das necessidades da vida cotidiana, tem que dar respostas a seus problemas e, ao voltar a misturar muitos resultados de ambas com as formas de manifestao da vida cotidiana, tornam esta mais ampla, mais diferenciada, mais rica, mais profunda,73

etc.,

elevando-a

constantemente

a

superiores

nveis

de

desenvolvimento.

Lukcs descreve aqui, de maneira sinttica, a relao entre o conhecimento cientfico mais elevado com as sensaes mais intuitivas da vida cotidiana, isto , a relao daqueles que tem um conhecimento mais prximo da totalidade com aqueles que no ultrapassam a esfera particular de suas prprias vidas, aqueles que tm um conhecimento emprico, aqueles que tomam o particular como se fosse o geral. Poderamos relacionar essa noo com a dialtica entre a vanguarda e as massas.74 MasLUKCS, G. Estetica: la peculiaridad de lo esttico. Cuestiones preliminares y de principio. Mxico: Grijalbo, vol. I, 1966, p. 7. 73 Idem. p. 35. 74 Segundo Benoit, esse problema foi tratado por Plato em A repblica. No incio do Livro VII, Plato descreve, na clebre alegoria da caverna, a volta do antigo prisioneiro caverna a fim de retirar seus companheiros. O prisioneiro que se libertou conseguiu chegar a uma compreenso mais prxima da totalidade da realidade, e procurou elevar os seus companheiros ao nvel superior de conhecimento. PLATO. A repblica. So Paulo: Martin Claret, 2004, pp. 210-212. O grau mais elevado do conhecimento que para Lukcs a cincia e a esttica , para Plato, o domnio da racionalidade especulativa, o domnio propriamente dialtico, seguido logo abaixo pelo entendimento, em terceiro lugar a f e, por ltimo, o nvel inferior, o nvel das imagens, a fantasia. Idem. p. 209. De acordo com Benoit, Plato teria aberto o caminho para o desenvolvimento da lgica dialtica. Segundo ele, quando, no dilogo do Sofista, de Plato, chega-se demonstrao do ser do no-ser e, assim, realiza-se o parricdio a Parmnides (o pai da lgica da no-contradio), ao mesmo tempo (...) Plato torna impossvel toda teoria centrada a partir da hegemonia absoluta do Ser e arruna, pela raz, todo o projeto ontolgico. BENOIT, H. Da lgica com um grande L lgica de O capital. In: Marxismo e cincias humanas. So Paulo: Xam, 2003, pp. 18-19. Para Benoit, esta noo est, embora de maneira deformada, presente tambm em Hegel. Na Fenomenologia do esprito Hegel expe os momentos do ser desde o mais imediato a certeza sensvel passando pela percepo, pelo entendimento, certeza-de-si para72

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o conhecimento no , para Lukcs, algo autnomo capaz de criar a prpria realidade, como pensava Simmel, que afirmava que a vida religiosa podia criar o mundo.75 Lukcs passa ento a estudar o trabalho como o fator fundamental da vida cotidiana e do pensamento. Inicialmente Lukcs analisa os aspectos mais aparentes do trabalho, ou seja, o trabalho como um ato teleolgico, explicando este ato com uma passagem dO capital onde Marx diz que o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele construiu o favo em sua cabea, antes de constru-lo em cera.76 A seguir, Lukcs expe o problema da alienao causada pela mecanizao do trabalho no perodo da grande indstria capitalista. Ele diz quena economia mercantil desenvolvida pelo capitalismo o trabalho deixa de ser determinado primordialmente pelas foras somticas e intelectuais do trabalhador. (Perodo do trabalho mecanizado, crescente determinao do trabalho pelas cincias) (...) o problema o grau de abstrao, a alienao no que se refere prtica imediata da vida cotidiana.77

Lukcs observa que com o advento do capitalismo, a interao do trabalho com a cincia passou a ser muito maior, o que no faz da atividade produtiva algo imediatamente cientfico. O trabalhador continua preso cotidianidade. o que ele afirma na prxima passagem:o trabalho, como fonte permanente de desenvolvimento da cincia (terreno constantemente enriquecido por ele), alcana provavelmente na vida cotidiana o grau de objetivao supremo da cotidianidade (...) posto que a interao com a cincia desempenha um papel duradouro, cada vez mais importante extensiva e

intensivamente, claro que no trabalho atual as categorias cientficas tem muito maior importncia que no passado. [Entretanto, isto] no transforma [o trabalho] num comportamento realmente cientfico.78

No capitalismo, os trabalhadores ficam presos cotidianidade, apesar de seu profundo contato com a cincia, por meio das mquinas. exigido sempre um nvel cada vez mais alto de conhecimento tcnico para operar as mquinas. Mas,chegar no mais profundo grau de compreenso da realidade a razo. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do esprito. Petrpolis: Vozes, 1997, parte I. Cfe. BENOIT, H. Sobre o desenvolvimento (dialtico) do programa. Op. cit. p. 15. 75 SIMMEL, Die religion, Frankfurt a.M., 1906, p. 11. Citado por LUKCS, G. Esttica. Op. cit. p.36. 76 MARX, K. O capital. Op. cit. p.149. MEW 23, p. 193. Citado por LUKCS, G. Esttica. Op. cit. p. 39. 77 LUKCS, G. Estetica. Op. cit. p. 40, 42. 78 Idem. p. 43.

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contraditoriamente, o trabalhador individual est cada vez mais alienado, tanto no que diz respeito ao processo de trabalho ao qual ele est inserido quanto ao seu produto. No entanto, a diferena entre cincia e o pensamento cotidiano no uma dualidade rgida e insupervel. Para superar esta distncia necessrio abandonar com suficiente radicalidade o ponto de vista do pensamento cotidiano imediato e transformar em reflexo cientfico o que est oculto na cotidianidade. Segundo Lukcs, o marxismo vulgar bloqueia a transio entre os dois nveis, que poderiam ser descritos, por um lado, como o nvel no qual os homens esto enfeitiados pela forma mercadoria e, por outro, como o nvel correspondente a concepo revolucionria.79 Lukcs afirma que o comportamento tpico do homem em sua vida cotidiana est baseado na analogia, que uma das formas originrias e dominantes de maior importncia no pensamento cotidiano. Comunicar-se por meio de analogias rebaixarse ao nvel do pensamento cotidiano. Uma de suas caractersticas que, por meio da analogia, no se prova nada, no se impe autoritariamente nada, estabelece-se apenas um paralelo em relao realidade imediata.80 Lukcs observa que se, por um lado, no podemos exagerar nas analogias, no podemos, por outro lado, recusar pedantemente toda semelhana ainda no fundamentada. O uso de analogias pode contribuir para elevar o pensamento cotidiano em direo ao reflexo esttico. A seguir Lukcs passa a analisar o papel da linguagem no pensamento cotidiano. Para ele, as palavras so snteses de uma evoluo histrica, como um produto histrico que oculta o processo de sua formao, fazendo com que os homens tratem-nas como algo imediato, sem perceber que so, na verdade, um complexo de variadas mediaes. Nesse sentido Lukcs afirma que foras conservadoras e tradicionais atuam sobre a linguagem, cuja ao sobre os homens to considervel porque estes se comportam necessariamente com a linguagem de um modo imediato, apesar da linguagem ser em sua essncia um sistema de mediaes cada vez mais complicadas.81 Vimos que em O capital, Marx faz uma anlise semelhante em relao ao dinheiro, observando que o dinheiro a forma mais ofuscante de mercadoria, que, como produto de um processo histrico de trocas mercantis, oculta o processo que o criou.82 Assim, os homens, ao lidar com o dinheiro, no percebem que esto realizando uma troca entre produtores. Ao contrrio, a compra e venda de mercadorias aparece a seus agentes como uma relao79 80

Idem. p. 53. Idem. p. 56. 81 Idem. p. 61. 82 Ver nota n 36.

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entre coisas.83 Lukcs afirma que na linguagem da vida cotidiana h muita impreciso, confuso, indeterminao e, alm disso, muita rigidez, todos derivados da grande quantidade de costumes, tradies, convenes, etc. que este nvel de pensamento e de linguagem est submetido. Ele observa que s possvel superar estes limites por meio da interao com os outros nveis. Ele diz queem ltima instncia e isto essencial dialtica da vida cotidiana e de seu pensamento a crtica e a correo por parte da cincia e da arte, nascidas desta vida e deste pensamento e em interao sempre com eles, so imprescindveis para um progresso substancial, mesmo que nunca possam conseguir liquidar definitivamente a rigidez por um lado e a impreciso por outro.84

Assim, para Lukcs, a cincia e a arte tm a funo de elevar o pensamento cotidiano, fazendo com que este supere suas limitaes. Ele passa ento a analisar um pensador burgus - Martin Heidegger que considera a cotidianidade uma esfera de

Quando um assalariado qualquer vai comprar po, ele no percebe que naquele simples ato de compra e venda de uma mercadoria ele est se relacionando enquanto produtor com uma srie de outros produtores: o agricultor que produziu o trigo, o produtor de mquinas agrcolas, os produtores de insumos agrcolas, os trabalhadores do transporte, do moinho, da padaria, etc., etc. Enfim, ele est estabelecendo uma relao social entre produtores. No entanto, o que aparece para o trabalhador, primeira vista, a relao entre o po e o seu dinheiro. E esta uma relao real apesar de aparente na sociedade produtora de mercadorias, pois sem o dinheiro ele no poderia comprar o po, portanto, no poderia se relacionar socialmente. O dinheiro e o po aparecem, assim, como os sujeitos da relao, enquanto os homens no papel de produtores de mercadorias - aparecem como coisas agindo em funo dos supostos sujeitos. Fica claro aqui uma diferena entre Lukcs e Marx: enquanto Marx aplica o mtodo dialtico na instncia das relaes sociais de produo e de circulao de mercadorias, Lukcs, por sua vez, utiliza-o para analisar o fenmeno da linguagem, isto , na instncia superestrutural e, portanto, sobredeterminada. O que significaria, do ponto de vista de Marx, abstrair a instncia estrutural das trocas para refugiar-se na anlise da linguagem? Poderamos observar, com razo, que Lukcs estaria preenchendo uma lacuna deixada por Marx, ou seja, que ele estaria abordando alguns aspectos no estudados por Marx. Porm, podemos tambm perguntar em outra direo mais significativa: porque Marx no aprofundou o estudo no campo da linguagem? Ou ainda: seria este um campo do conhecimento fundamental para as preocupaes revolucionrias de Marx? Sem dvida, a linguagem um campo do conhecimento importante, porm, bem mais distante da luta poltica direta. Nesta direo se encaminha Michael Lwy, ao ressaltar a virada de Lukcs ocorrida a partir de 1929. Ser a partir dessa poca que Lukcs abandona a teoria poltica para se refugiar na esttica e na cultura, campos mais neutros e menos conflitantes. Para Lwy, o que levou Lukcs a tomar tal deciso foi a derrota sofrida com as Teses de Blum, o que analisaremos mais detalhadamente no captulo III. LWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. Op. cit. p. 228. Esta opo de Lukcs pelo estudo da esttica serviu como referncia para muitos marxistas, como, entre outros, Walter Benjamim, Theodor W. Adorno e Jurgem Habermas, todos membros da escola de Frankfurt, ou, como queiram, formuladores da Teoria Crtica. O prprio Lukcs tentou justificar este abandono, quando disse: de acordo com o objetivo de nossas investigaes, s nos ocupamos com a cincia e com a arte, e temos deixado conscientemente de lado as objetivaes de carter institucional, como o estado, o sistema jurdico, o partido, as organizaes sociais, etc. Seu estudo teria complicado excessivamente nossa anlise, mas no teria alterado em nada o resultado final. LUKCS, G. Esttica. Op. cit., p. 82. Aqui Lukcs concebe a cincia e a arte como instncias relativamente autnomas em relao luta de classes, servindo de base para o posterior desenvolvimento da teoria das esferas. Ver nota n 60. 84 LUKCS, G. Esttica. Op. cit., p. 63.

83

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desesperada decadncia, sem vinculao alguma com os nveis mais elevados de conhecimento. Lukcs discorda de Heidegger, reafirmando a importncia do pensamento da vida cotidiana como ponto de partida da cincia. Ele observa quese a prtica da cotidianidade perde sua vinculao dinmica com o conhecimento, com a cincia, segundo esta descrio fenomenolgica-ontolgica, se o conhecimento e a cincia no surgem das questes colocadas pela cotidianidade, se esta no se enriquece e se aprofunda constantemente com os resultados que aquela produz, ento a cotidianidade perde precisamente sua autntica caracterstica essencial, o que faz dela a fonte e o fim do conhecimento na ao humana. Sem todas estas interaes, a cotidianidade aparece em Heidegger como exclusivamente dominada pelas foras da alienao, que deformam o homem.85

Para Lukcs necessrio ligar a vida cotidiana, o trabalho cotidiano, arte e cincia. A arte e a cincia, separadas da vida cotidiana, no tem valor algum, da mesma forma que as trs, separadas da realidade objetiva, tambm no expressam a verdade. o que ele afirma a seguir:nessa contraposio [entre cincia e arte vida cotidiana] o fato de que os critrios da verdade do reflexo so antes de tudo de contedo, ou seja, que a correo, a profundidade, a riqueza, etc., consistem na concordncia com o original, com a realidade objetiva mesma. Os momentos formais (tradio, etc., na cotidianidade; perfeio metodolgica imanente na cincia e na arte) no podem desempenhar mais do que um papel secundrio; separados dos critrios reais, adoecem de uma problemtica insupervel.86

Aqui as esferas da cincia e da arte aparecem mais uma vez como algo dissociado da produo da vida propriamente dita. Lukcs fragmenta a totalidade em diversas esferas. A seguir, Lukcs supera a noo de inconsciente desenvolvida por Freud. Segundo o filsofo hngaro, no decorrer do processo de desenvolvimento, o que consciente inicialmente, pode converter-se, posteriormente, em elemento da prtica social cotidiana e tornar-se assim algo espontneo e inconsciente. Desse modo, Lukcs acrescenta noo burguesa de inconsciente individual (como a desenvolvida por Freud, por exemplo) o comportamento inconsciente produzido socialmente. De acordo85 86

Idem. pp. 71-72. Idem. p. 81.

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com esta noo, a instncia do inconsciente corresponde a todo comportamento que j passou a fazer parte dos costumes, das tradies, ou seja, da prtica social cotidiana de um povo. Lukcs denomina esta caracterizao de segunda significao real do inconsciente.87 Considerado dessa forma, o inconsciente supera a dimenso individual burguesa, surgindo como o produto de uma prtica social. Afirma Lukcs:os costumes, que surgem posteriormente, so produto do processo de trabalho, das diversas formas de convivncia humana, da escola, etc. Uma parte destes resultados fixa meramente costumes como bases, j no conscientes, de ao, segundo formas de reao que j so um acervo comum da humanidade.88

Apesar de, num certo sentido, superar Freud, falta exposio de Lukcs a considerao a respeito do papel das revolues na superao das formas inconscientes sociais expressas nos costumes e nas tradies. Falta aqui a possibilidade da ruptura revolucionria como forma de superao definitiva de Freud, da sociedade e dos homens aos quais ele se dedicou a estudar. Ao invs disso, Lukcs continua - em certo sentido, como Freud restrito ao capitalismo. Ele afirma que tanto o processo de trabalho quanto o entretenimento esportivo e o exerccio artstico tendem a criar condies que permitam aos homens alcanar novos nveis de conscincia. Mas o hbito transformado em rotina pode impedir este desenvolvimento. o que Lukcs observa a seguir: bvio que tambm nisto atua aquela contraditoriedade dialtica geral segundo a qual o hbito quando, por exemplo, converte-se em rgida rotina inibe o ulterior desenvolvimento consciente, ao invs de promov-lo.89 Os costumes, as tradies, o inconsciente social, quando se tornam rotina, cumprem o papel da aparncia fenomnica que oculta e bloqueia a compreenso do fundamento. Enquanto tendncia geral, o momento inconsciente mais forte na vida cotidiana do que na cincia. O movimento do geral ao particular - do pensamento cientfico ao pensamento ligado vida cotidiana - e o novo retorno ao pensamento superior - este movimento ininterrupto de superao dialtica - vai dando ganhos de qualidade ao pensamento cotidiano, ganhos que no existiriam se o movimento no fosse realizado. Nesse sentido, Lukcs diz que a intuio e a representao, em constante relao dialtica com o conceito, em constante87 88

Idem. p. 96. Idem. p. 97. 89 Idem. p. 98. Partindo desta anlise de Lukcs, possvel indagar como o comportamento rotineiro dos partidos revolucionrios leva-os a bloquear o desenvolvimento da conscincia dos trabalhadores e dos seus prprios militantes.

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ascenso ao mesmo e descenso do mesmo, tem que converter-se em algo qualitativamente distinto do que eram originariamente, sem este movimento.90 Vimos, portanto, neste captulo, algumas contribuies, mas tambm algumas limitaes de Lukcs em relao aos fundamentos do mtodo dialtico: a considerao da histria como uma totalizao de aes humanas; a alienao como um fenmeno ahistrico; a abstrao da luta de classes como o fundamento da histria; a fragmentao da realidade - fundando as bases do desenvolvimento posterior da teoria das esferas; e, finalmente, a prioridade dada a fenmenos sobre-determinados - como a linguagem, por exemplo - na anlise da relao entre os nveis de conscincia. Estes so alguns dos problemas da concepo de Lukcs levantados neste captulo. Veremos a seguir como Lukcs conseguiu, apesar das imprecises aqui abordadas, traduzir a dialtica para a prtica poltica do proletariado.

90

Idem. p. 100.

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III A APLICAO DA DIALTICA NA LUTA DE CLASSES

1 A APLICAO DA DIALTICA EM HISTRIA E CONSCINCIA DE CLASSE Aps as consideraes mais gerais a respeito da dialtica, Lukcs passa a analisar, em Histria e conscincia de classe, com maior concretude, as determinaes da falsa conscincia. Para ele, a falsa conscincia determinada tanto objetiva quanto subjetivamente. A determinao objetiva se d por meio das relaes sociais de produo que os homens estabelecem necessariamente entre si, independentemente de sua vontade. Um exemplo disso o fato j visto anteriormente91 de que a simples relao de compra e venda de mercadorias oculta a relao social entre os produtores, e aparece aos mesmos como uma relao social entre as mercadorias e o dinheiro. Esta inverso entre os sujeitos e os objetos da ao, que conseqncia da prpria relao mercantil, est na gnese da falsa conscincia nas sociedades em que domina o modo de produo capitalista. Ele afirma que a falsidade (das Falsche) , a aparncia (der Schein) contida nesta situao no nada arbitrria, mas precisamente expresso mental da estrutura econmica objetiva.92 Por meio da determinao econmica objetiva, a falsa conscincia atinge indiscriminadamente todas as classes sociais, pois todas se relacionam por meio do intercmbio de mercadorias. Todas as classes so, em maior ou menor grau, objetos do devir. Entretanto, a burguesia, mesmo sendo objeto do devir, tira vantagens das atuais relaes sociais de produo. Por isso, a burguesia tende, dentro de certos limites objetivos, a estimular a manuteno das outras classes sociais num nvel de conscincia falsa. Nisto consiste a determinao subjetiva da falsa conscincia. De acordo com Lukcs, vrias doutrinas desenvolvidas por intelectuais burgueses fazem com que a conscincia das demais classes permanea num nvel obscuro. Como exemplos ele cita a doutrina que coloca o Estado como um rgo acima das contradies de classe (ber den klassengegenstzen), ou a doutrina da justia imparcial (unparteiische

91 92

Ver nota 83. LUKCS, G. Historia y consciencia de clase. Op. cit., p. 56. GKb, p. 128.

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Justiz).93 Em tempos chamados normais, a burguesia leva vantagem sobre o proletariado, pois, como observa Lukcs, mesmo quea unidade do processo econmico seja perceptvel do ponto de vista de classe do proletariado, a distncia entre a forma de aparecimento (scheinungsform) e o

fundamento ltimo (letztem Grund) demasiado dilatada para que, na ao do proletariado, o fato possa suscitar conseqncias prticas.94

Mas a burguesia no tem total domnio sobre a situao, pois nos tempos decisivos de crises a unidade do processo total est ento ao alcance da mo [para o proletariado].95 Uma vez que, nestes momentos, as foras ocultas atrs da vida econmica superficial (Oberflche des konomischen Lebens) (...) se revelam de tal modo que completamente impossvel no v-las.96 Lukcs conclui finalmente quena medida em que a teoria e a prtica do proletariado levantam conscincia social este princpio inconscientemente revolucionrio do desenvolvimento capitalista, a burguesia vai ficando ideolgica e conscientemente colocada numa situao defensiva.97

Seguindo Marx, Lukcs afirma que as crises econmicas, que ocorrem de forma cclica no capitalismo,98 ocasionam a degenerao rpida e profunda das condies de vida do proletariado, impulsionando-o luta pela garantia das mnimas condies de sobrevivncia. Essa luta, que estimulada pelas contradies imanentes produo capitalista, possibilita o despertar da conscincia do proletariado ou, em outras palavras, a superao da sua falsa conscincia. Assim, Lukcs segue Marx ao considerar que o aprofundamento da luta de classes e a superao da falsa conscincia do proletariado so estimulados pelas condies objetivas, ou seja, pela dinmica prpria93

Idem. p. 72. GKb, p. 148. Na entrevista de 1966 (j citada), ele reafirma a idia de que a dominao ideolgica (ou a manipulao) uma ao consciente da burguesia. Ele diz: o que est em desenvolvimento um processo manipulado por uma classe determinada, de um modo bastante preciso, e que a manipulao parte de certos pretensos axiomas que so incapazes de resistir a uma observao mais atenta. HOLZ, H.H. et alli. Conversando com Lukcs. Op. cit. p. 112. 94 Idem. p. 71. GKb, p.147. 95 Idem. p. 82. GKb, p. 161. 96 Idem. Ibidem. 97 Idem. Ibidem. 98 Apesar de demonstrar a queda tendencial da taxa de lucro - e consequentemente, a tendncia s crises econmicas - como sendo algo imanente ao modo de produo capitalista, Marx admite que h causas contrariantes - ou contra-tendncias - capazes de amortecer os efeitos destruidores das crises sob o sistema capitalista, adiando seu colapso. Ver MARX, K. O capital. Op. cit., vol. IV, pp. 154-191. MEW 23. Bd. 3, pp. 221-277.

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da sociedade capitalista. Por essa razo, Lukcs considera que a reificao no insupervel. Segundo ele, a dinmica da sociedade capitalista age tambm sobre a burguesia. Ele observa que,toda a existncia da classe burguesa (brgerlichen Klasse) e, como expresso (Ausdruck) dela, a cultura burguesa, entram numa crise gravssima (...) A classe burguesa tem perdido inapelavelmente sua capacidade de direo. (Sie hat die Kraft zur Fhrung unwiederbringlich verloren).99 (grifo do autor)

Entretanto, se h, por um lado, a possibilidade de que o proletariado entre em movimento de maneira espontnea, quase inconsciente, impulsionado pelo agravamento de suas condies de vida, h por outro lado, entre as primeiras mobilizaes de massa e a conquista do poder, um penoso caminho de luta a ser percorrido no qual a conscincia de classe vai assumindo, paulatinamente, uma importncia cada vez maior. Para Lukcs, o proletariado somente ser capaz de conquistar o poder econmico e poltico da sociedade caso consiga compreender a essncia da sociedade. Portanto, a vitria da revoluo proletria depende, segundo ele, de condies objetivas (agravamento das condies de vida do proletari