Diplomacia e Politica Domestica a Logica Do Jogo de Dois Niveis

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 147-174 JUN. 2010

    RESUMO

    Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 147-174, jun. 2010

    Robert D. Putnam

    Recebido em 15 de abril de 2008.Aprovado em 6 de agosto de 2008.

    TEXTO FUNDAMENTAL

    DIPLOMACIA E POLÍTICA DOMÉSTICA:A LÓGICA DOS JOGOS DE DOIS NÍVEIS1

     A política doméstica e as relações internacionais com freqüência são inextricavelmente vinculadas; toda-

    via, as teorias existentes (particularmente as estatocêntricas) não levam adequadamente em considerações

    tais vínculos. Quando os líderes nacionais devem obter as ratificações (formais ou informais) dos membros

    de seus parlamentos para um acordo internacional, seus comportamentos em negociações refletem os impe-

    rativos simultâneos tanto de um jogo de política doméstica quanto de um jogo de política internacional.

    Usando exemplos de cúpulas econômicas ocidentais, das negociações do Canal do Panamá e do Tratado de

    Versalhes, dos programas de estabilização do Fundo Monetário Internacional, da Comunidade Européia e

    de muitos outros contextos diplomáticos, o artigo oferece uma teoria da ratificação. Ele enfatiza o papel das

     preferências, coalizões, instituições e práticas domésticas, das estratégias e táticas dos negociadores, da

    incerteza, das reverberações domésticas das pressões externas e o papel dos interesses do negociador-chefe.

     Essa teoria de “jogos de dois níveis” também pode ser aplicável a muitos outros fenômenos políticos, tais

    como a dependência, os comitês legislativos e as coalizões multipartidárias.

    PALAVRAS-CHAVE: jogos de dois níveis; negociações; política interna; política externa; diplomacia.

    I. INTRODUÇÃO: O ENTRELAÇAMENTO DASPOLÍTICAS DOMÉSTICA E INTERNACIO- NAL2

    A política doméstica e as relações internacio-

    nais estão sempre entrelaçadas de alguma forma enossas teorias ainda não desvendaram esse que- bra-cabeça. É infrutífero debater se a política do-méstica realmente determina as relações interna-cionais ou se é o inverso. A resposta para essaquestão é clara: “Algumas vezes uma influencia aoutra”. As perguntas mais interessantes são:

    “quando influencia?” e “como influencia?”. Esteartigo oferece uma abordagem teórica para essetema, mas eu começo com uma história que ilus-tra o quebra-cabeça.

    Um exemplo esclarecedor de como a diplo-macia e a política doméstica podem entrelaçar-seaconteceu na Cúpula de Bonn em 19783. Em me-ados dos anos 1970, um programa de recupera-ção global liderado pelas economias “locomotiva”dos Estados Unidos, da Alemanha e do Japão pro- pôs favorecer a recuperação ocidental após o pri-meiro choque do petróleo4. Essa proposta rece- beu um forte impulso do iniciante governo Carter,além de ser calorosamente apoiada pelos paísesmais fracos, pela Organização para CooperaçãoEconômica e Desenvolvimento (OCDE) e por 

    muitos economistas independentes. Esses econo-mistas argumentavam que o programa superariaos desequilíbrios internacionais das balanças de pagamentos e promoveria o crescimento de to-

    1  Título original: “Diplomacy and Domestic Politics: TheLogic of the Two-Level Games”. Publicado originalmentena revista International Organization (Boston, v. 42, n. 3,

     p. 427-460, Summer.1988). Tradução de Dalton L. G. Gui-

    marães, Feliciano de Sá Guimarães e Gustavo Biscaia deLacerda”.

    2  Uma versão anterior deste artigo foi apresentado em1986 no encontro anual da American Political ScienceAssociation. Pelas críticas e pelas sugestões, estou em dé-

     bito com Robert Axelrod, Nicholas Bayne, Henry Brady,James A. Coporaso, Barbara Crane, Ernest B. Haas,Stephan Haggard, C. Randal Henning, Peter B. Kenien,Robert O. Keohane, Stephen D. Krasner, Jacek Yu; com osmembros de seminários de pesquisa nas universidades deYowa, Michigan e Harvard e com os dois pareceristas anô-nimos. Sou grato à Fundação Rockefeller por subvencionar a finalização deste trabalho.

    3  A narrativa a seguir baseou-se nos escritos de Putnam eHenning (1986) e Putnam e Bayne (1987, p. 62-94).

    4  Muitos economistas acreditam que entre economiasinterdependentes as políticas freqüentemente podem ser mais efetivas se forem coordenadas internacionalmente. Paracitações relevantes, cf. Putnam e Baynes (1986, p. 24).

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    dos. Por outro lado, alemães e japoneses protes-taram dizendo que não se deveria pedir a adminis-tradores econômicos prudentes e bem-sucedidosque salvassem administradores esbanjadores. Aomesmo tempo, o ambicioso Programa Nacionalde Energia de Jimmy Carter permanecia travadono Congresso, enquanto Helmut Schmidt lideravaum coro de reclamações sobre o descontroladoapetite americano por petróleo importado e suaaparente despreocupação em relação ao dólar emqueda. Todos concordavam que a economia mun-dial estava em sérias dificuldades, mas não eraclaro quem deveria ser culpado – se as políticasfiscais restritivas da Alemanha e do Japão ou seas frouxas políticas energética e monetária dosEstados Unidos.

    Entretanto, na Cúpula de Bonn um amplo acor-do foi aprovado. Foi o caso mais evidente até entãode uma cúpula que deixou todos os participantesmais felizes quando saíram do que quando entra-ram. Helmut Schmidt concordou com estímulosfiscais adicionais na ordem de 1% do produto na-cional bruto (PNB); Jimmy Carter comprometeu-se a desregulamentar os preços internos do petró-leo por volta do fim de 1980 e Takeo Fukuda pro-meteu novos esforços para chegar a uma taxa de7% de crescimento. Aspectos secundários no acor-do de Bonn incluíram ainda a anuência de france-

    ses e britânicos nas negociações comerciais daRodada de Tóquio5; medidas japonesas para forta-lecer o crescimento das importações e restringir asexportações e uma promessa genérica dos EstadosUnidos de combater a inflação. Ao fim e ao cabo, aCúpula de Bonn produziu um acordo equilibradode amplitude e especificidade sem paralelos. E omais notável foi que virtualmente todos os pontosdo pacote foram implementados.

     Na ocasião a maioria dos observadores sau-dou favoravelmente as políticas adotadas em Bonn,embora tenham ocorrido muitos debates sobre a

    sabedoria econômica do pacote. Todavia, minha preocupação não é saber se o acordo foi inteli-gentemente construído, mas como ele tornou-se politicamente viável. Em primeiro lugar, minha pesquisa sugere que governos-chave em Bonn

    adotaram políticas diferentes daquelas que teriamadotado na ausência de negociações internacio-nais e, em segundo lugar, o acordo só foi possível porque uma poderosa minoria no interior de cadagoverno apoiou domesticamente a política deman-dada internacionalmente.

     Na Alemanha, um processo político catalisado por pressões externas foi clandestinamente orques-trado por expansionistas do governo Schmidt. Aocontrário da mitologia pública, o acordo de Bonnnão foi imposto a uma Alemanha relutante ou “al-truísta”. Com efeito, funcionários do gabinete doChanceler e do Ministério da Economia, assim comodo Partido Social-Democrata e dos sindicatos, dis-cutiram privadamente no início de 1978 que estí-mulos internos adicionais eram domesticamente

    desejáveis, principalmente face às eleições de 1980,que se aproximavam. Entretanto, eles tinham pou-cas esperanças de superar a oposição do Ministériodas Finanças, do Partido Democrático Livre (mem- bro da coalizão do governo) e das comunidadesfinanceira e de negócios, em particular a liderançado Bundesbank 6. Publicamente, Helmut Schmidtapresentava-se terminantemente relutante. Somen-te seus conselheiros mais próximos suspeitavamda verdade: que o Chanceler “deixara-se levar” por uma política que apoiava privadamente, mas queseria custosa e talvez impossível de ser aprovada

    no plano doméstico sem o acordo da Cúpula.Situação análoga aconteceu no Japão. Uma co-

    alizão composta por interesses empresariais, peloMinistério do Comércio e da Indústria (MITI), pela Agência de Planejamento Econômico e por alguns políticos de pensamento expansionista den-tro do Partido Democrático Liberal pressionou por estímulos domésticos adicionais usando a pres-são dos Estados Unidos como um de seus princi- pais argumentos contra a teimosa resistência doMinistério das Finanças (MOF). Sem as divisõesinternas de Tóquio era improvável que as deman-

    das externas fossem atendidas, mas sem a pres-são externa seria ainda mais improvável que osexpansionistas pudessem superar o poderosoMOF. “Setenta por cento de pressão externa, 30% política interna” foi o diagnóstico de um desapon-tado membro do MOF. “Meio a meio”, sugeriuum funcionário do MITI7.

    5  A Rodada de Tóquio foi um conjunto de negociaçõesocorridas entre 1973 e 1979 com vistas à liberalização co-mercial, no âmbito do General Agreement on Tariffs andTrade (GATT), entidade antecessora da Organização Mun-dial do Comércio (OMC) (nota do tradutor).

    6  Banco Central alemão (N. T.).

    7  Para uma narrativa abrangente da história japonesa, cf.Destler e Mitsuyu (1982).

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     No caso dos Estados Unidos, a atividade polí-tica interna também reforçou e foi reforçada pela pressão internacional. Durante a preparação paraa Cúpula os negociadores estadunidenses convi-daram suas contrapartes internacionais a colocar mais pressão sobre os norte-americanos com ointuito de reduzir a importação de petróleo. Fun-cionários-chave da área econômica do governoapoiavam uma política de energia mais dura, massofriam oposição dos assessores políticos mais próximos do Presidente, mesmo depois da Cúpu-la. Além disso, adversários no Congresso conti-nuavam a bloquear a desregulamentação do preçointerno do petróleo, como haviam feito tanto sobFord como sob Nixon. Finalmente, em abril de1979, o Presidente decidiu-se por umadesregulamentação administrativa gradual, levan-tando os preços dos EUA para os níveis mundiais por volta de outubro de 1981. Assim, seus asses-sores domésticos conseguiram adiar um ato poli-ticamente custoso para depois da eleição presi-dencial de 1980, mas no final virtualmente todosos compromissos assumidos em Bonn foram cum- pridos. Tanto os proponentes quanto os adversá-rios da desregulamentação concordaram que oscompromissos da Cúpula estavam no centro doaquecido debate intramuros do governo durante oinverno de 1978-1979 e que foram instrumentais para a decisão final8.

    Em suma, o acordo de Bonn representou umagenuína coordenação política internacional. Mu-danças significativas de política foram prometi-das e implementadas pelos participantes-chave.Mais do que isso – e ainda que este argumentocontrafactual seja necessariamente mais difícil deestabelecer –, essas mudanças de política prova-velmente não teriam sido alcançadas (certamentenão na mesma escala e no mesmo espaço de tem- po) na ausência do acordo internacional. Em cada país, uma facção apoiou a mudança política de-mandada ao seu país internacionalmente, mas essafacção era inicialmente minoritária. Assim, a pres-são internacional foi uma condição necessária paraque essas mudanças de políticas. Por outro lado,sem uma ressonância doméstica, as forças inter-nacionais não teriam sido suficientes para produ-zir o acordo, não importando quão equilibrado eintelectualmente persuasivo fosse o pacote geral.

     No fim, cada líder acreditava que o que fazia erano interesse da nação – e provavelmente tambémno seu próprio interesse, embora nem todos osseus auxiliares concordassem9. Entretanto, semo acordo da Cúpula os líderes provavelmente nãoteriam alterado (ou não poderiam alterar) as polí-ticas econômicas tão facilmente. Nesse sentido,o acordo de Bonn combinou com sucesso as pres-sões domésticas e as internacionais.

     Nem uma análise puramente doméstica nem uma puramente internacional poderia abordar esse epi-sódio. As interpretações baseadas em causas do-mésticas e efeitos internacionais (“segunda ima-gem” (WALTZ, 1959)) ou em causas internacio-nais e efeitos domésticos (“segunda imagem inver-tida” (GOUREVITCH, 1978)) representariam me-

    ras análises de “equilíbrio parcial” e omitiriam umaimportante parte da história, qual seja, como as políticas domésticas de diversos países tornaram-se entrelaçadas por meio de uma negociação inter-nacional. Os eventos de 1978 ilustram que, em vezdessas análises parciais, devemos voltar a atenção para teorias de “equilíbrio geral” que dêem contasimultaneamente das interações de fatores domés-ticos e internacionais. Este artigo sugere uma es-trutura conceitual para entender-se como a diplo-macia e a política doméstica interagem.

    II. OS ENTRELAÇAMENTOS ENTRE O DO-

    MÉSTICO E O INTERNACIONAL: O ESTA-DO DA ARTE

    Muito da literatura existente sobre as relaçõesentre questões domésticas e internacionais con-siste ou em listas ad hoc de incontáveis “influên-cias domésticas” sobre a política externa ou emobservações genéricas sobre questões nacionaise internacionais que estão de alguma forma “vin-culadas”10. James Rosenau foi um dos primeiros pesquisadores a chamar atenção para essa área, porém sua elaborada taxonomia de “vínculos en-tre questões” (linkage politics) gerou pouca pes-quisa cumulativa, exceto por uma repentina levade trabalhos correlacionando “comportamentos

    8  Para uma narrativa excelente da política de energia dosEUA durante esse período, cf. Ikenberry (1988).

    9  Não está claro se Jimmy Carter entendeu completamen-te as implicações domésticas do seu compromisso em Bonnnessa ocasião (cf. PUTNAM & HENNING, 1986;IKENBERRY, 1988).

    10   Estou em débito com Stephan Haggad pelasesclarecedoras discussões a respeito das influências do-mésticas nas relações internacionais.

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    conflitantes” doméstico e internacional (ROSE- NAU, 1969; 1973, especialmente p. 49).

    Uma segunda corrente relevante de teorizaçãoiniciou-se com os trabalhos de Karl Deutsch e Ernst

    Haas sobre integração regional (DEUTSCH, 1957;HAAS, 1958). Haas, em particular, enfatizou o im- pacto dos partidos e dos grupos de interesse no processo de integração européia e sua noção de“transbordamento” reconheceu a mútua influênciaentre desenvolvimentos domésticos e internacio-nais. Entretanto, a variável dependente central des-se trabalho era a hipotética evolução de novas ins-tituições supranacionais, em vez de desenvolvimen-tos específicos de políticas públicas e quando aintegração européia atolou-se, também se atolouessa literatura. Os herdeiros intelectuais desta tra-

    dição, como Joseph Nye Jr. e Robert Keohane,enfatizaram a interdependência e o transnacionalis-mo, mas o papel dos fatores domésticos escapoumais e mais do foco, principalmente quando o con-ceito de regimes internacionais passou a dominar osubcampo (KEOHANE & NYE JR., 1977)11.

    A escola de análise da política externa da “po-lítica burocrática” iniciou um outro promissor ata-que sobre o problema da interação entre o domés-tico e o internacional. Como Grahan Allison apon-tou, “Aplicada às relações entre nações, o modeloda política burocrática volta suas atenções para

    os jogos intranacionais, a sobreposição dos quaisconstitui as relações internacionais” (ALLISON,1971, p. 149). No entanto, a natureza dessa“sobreposição” manteve-se obscura e a contribui-ção teórica dessa literatura não evoluiu muito alémdo princípio segundo o qual os interesses buro-cráticos importam para a elaboração da políticaexterna.

    Mais recentemente, o trabalho mais sofistica-do sobre os determinantes domésticos da políticaexterna focalizou fatores “estruturais”, particular-mente a “força do Estado”. As pesquisas capitaisde Peter Katzenstein e Stephen Krasner, por exem- plo, mostraram a importância dos fatores domés-ticos para a política econômica externa.Katzenstein captou a essência do problema: “Oobjetivo principal de todas as estratégias de políti-ca econômica externa é tornar as políticas do-mésticas compatíveis com a economia política

    internacional” (KATZENSTEIN, 1978, p. 4; cf.também KATZENSTEIN, 1976; KRASNER,1978a; 1978b). Ambos os autores enfatizam o ponto crucial segundo o qual os formuladorescentrais de políticas (“o Estado”) devem simulta-neamente se preocupar com as pressões domés-tica e internacional.

    Mais discutível, entretanto, é sua identificaçãoda “força do Estado” como a variável-chave deinteresse. Dadas as dificuldades de medir-se a“força do Estado”, tal abordagem incorre em umatautologia12 e os esforços para determinar a posi-ção de cada país nesse ambíguo contínuo mos-traram-se problemáticos (MILNER, 1987). A “for-ça do Estado”, se reinterpretada meramente comoo oposto da fragmentação governamental, sem

    dúvida tem algum interesse para o estudo compa-rativo da política externa. Todavia, Gourevitch estárazoavelmente correto ao reclamar que “o argu-mento Estado forte-Estado fraco sugere que [...]a identidade da coalizão governante não importa.Esse é um argumento muito apolítico”(GOUREVITCH, 1978, p. 903). Além disso, comoas “estruturas do Estado” (como concebido por essa literatura) variam pouco de caso a caso oude ano a ano, tais explicações são pouco adequa-das para explicar as diferenças entre os temas ouao longo do tempo (exceto se o “tempo” for me-

    dido em décadas ou séculos). Uma concepçãomais adequada dos determinantes domésticos da política externa e das relações internacionais deveenfatizar a luta  política: os partidos, as classessociais, os grupos de interesse (tanto econômi-cos quanto não-econômicos), os legisladores emesmo a opinião pública e as eleições – e nãoapenas os funcionários do poder Executivo e osarranjos institucionais13.

    Algumas pesquisas do gênero “estatocêntrico”apresentam um modelo de ator unitário fora decontrole. “A proposição central deste ensaio”,

    11  A respeito da literatura sobre regimes, incluindo suanegligência relativamente aos fatores domésticos, cf.Haggard e Simmons (1987).

    12  Por exemplo, cf. Krasner (1978b, p. 55): “A caracterís-tica analítica central que determina a capacidade de umEstado de superar a resistência doméstica é sua força emrelação à sua própria sociedade”

    13  Em seus trabalhos mais descritivos, os pesquisadores“estatocêntricos” são normalmente sensíveis aos impactosdos conflitos sociais e políticos, como os entre indústria efinanças, trabalho e negócios e setores exportadoresversussetores importadores (cf. KATZENSTEIN, 1978, p. 333-336).

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    aponta um estudo recente, “é que o Estado derivaseus interesses do sistema internacional e defen-de políticas consistentes com esse sistema emqualquer momento e sob quaisquer circunstânci-as” (LAKE, 1984, p. 13). Na verdade, em quasetodas as questões importantes, os “tomadorescentrais de decisão” discordam a respeito do queo interesse nacional e o contexto internacionaldemandam. Mesmo se arbitrariamente excluirmoso poder Legislativo do “Estado” (como faz essaliteratura), é errado pressupor que o poder Exe-cutivo é coeso em suas opiniões. Certamente issonão foi verdade para nenhum dos estados envol-vidos nas negociações de 1978. Qual era “a” po-sição do Estado alemão ou japonês na políticamacroeconômica em 1978 ou a do Estado norte-americano na política energética? Se o termo “Es-tado” é para ser usado como “tomadores centraisde decisões”, deveríamos tratá-lo como substan-tivo plural: não “o Estado, ele”, mas sim “o Esta-do, eles”. Os poderes executivos centrais têm um papel especial na mediação das pressões domésti-cas e internacionais exatamente porque estão di-retamente expostos a ambas as esferas e não por-que sejam unificados em todas questões ou por-que estejam insulados em relação à política do-méstica.

    Assim, a literatura estatocêntrica não tem

     bases para a teorização sobre como as políticasdoméstica e internacional interagem. Mais inte-ressantes são os recentes trabalhos sobre o im- pacto da economia internacional sobre a políticadoméstica e a política econômica doméstica,como os de Alt, Evans, Gourevitch e Katzenstein(EVANS, 1979; KATZENSTEIN, 1985;GOUREVITCH, 1986; ALT, 1987). Esses estu-dos de casos, baseados em diversas abordagensmetodológicas, exibem uma sofisticação teóricasobre a relação causal do internacional sobre odoméstico muito maior do que é característicodos estudos comparáveis sobre a relação do do-méstico sobre o internacional. Ainda assim, es-sas pesquisas não pretendem dar conta de exem- plos de causalidade recíproca e muito menos exa-minam casos nos quais as políticas domésticasde diversos países tornam-se entrelaçadas inter-nacionalmente.

    Em suma, precisamos ir para além da meraobservação de que os fatores domésticos influen-ciam os assuntos internacionais e vice-versa, as-sim como dos meros catálogos de situações emque ocorrem essas influências, a fim de buscar 

    teorias que integrem ambas as esferas, levandoem consideração as áreas de entrelaçamento entreelas.

    III. JOGOS DE DOIS NÍVEIS: UMA METÁFO-

    RA PARA AS INTERAÇÕES DOMÉSTICO-INTERNACIONAL

    Há mais de duas décadas Richard E. Walton eRobert B. McKersie criaram uma “teoriacomportamental” das negociações sociais que énotavelmente aplicável para os conflitos e coope-ração internacionais (WALTON & MCKERSIE,1965). Eles mostraram, como todo negociador experiente, que o pressuposto do ator unitário écom freqüência radicalmente enganoso. Comodisse Robert Strauss a respeito da Rodada de Tó-quio, “Durante meu mandato como Representan-

    te Especial de Comércio [dos Estados Unidos],gastei tanto tempo negociando com grupos do-mésticos (industriais e trabalhistas) e com mem- bros do Congresso dos Estados Unidos quantogastei negociando com nossos parceiros comer-ciais estrangeiros” (STRAUS, 1987, p. vii).

    A luta política de várias negociações internacio-nais pode ser utilmente concebida como um jogode dois níveis. No nível nacional, os grupos do-mésticos perseguem seu interesse pressionando ogoverno a adotar políticas favoráveis a seus inte-

    resses e os políticos buscam o poder constituindocoalizões entre esses grupos. No nível internacio-nal, os governos nacionais buscam maximizar suas próprias habilidades de satisfazer as pressões do-mésticas, enquanto minimizam as conseqüênciasadversas das evoluções externas. Nenhum dos dois jogos pode ser ignorado pelos tomadores de deci-são, pois seus países permanecem ao mesmo tem- po interdependentes e soberanos.

    Cada líder político nacional está presente emambos os tabuleiros. Do outro lado do tabuleirointernacional sentam as contrapartes estrangeiras,

    ao lado das quais sentam diplomatas e outros as-sessores internacionais. Em volta do tabuleirodoméstico e atrás do líder nacional, sentam-se fi-guras partidárias, parlamentares, porta-vozes dasagências domésticas, representantes de grupos-chave de interesses e os assessores políticos do próprio líder. A incomum complexidade desse jogode dois níveis torna-se clara quando ações quesão racionais para um jogador em determinadotabuleiro (como aumentar os preços da energia,conceder território ou limitar a importação de car-ros) podem ser imprudentes para esse mesmo jo-

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    gador em outro tabuleiro. Entretanto, existem po-derosos incentivos para que haja coerência entreesses dois jogos. Os jogadores (e observadores)tolerarão algumas diferenças retóricas entre os dois

     jogos, mas no final ou os preços da energia au-mentam ou não.

    As complexidades políticas para os jogadoresneste jogo de dois níveis são impressionantes.Qualquer jogador importante do tabuleiro interna-cional que estiver insatisfeito com o resultado podedesorganizar o jogo e, inversamente, qualquer lí-der que não consiga satisfazer seus companhei-ros do tabuleiro doméstico arrisca ser retirado deseu assento. Entretanto, às vezes jogadores maiscapazes identificam movimentações em determi-nado tabuleiro que desencadeiam realinhamentos

    em outro, permitindo-lhes atingir objetivos que nãoconseguiriam de outra maneira. Essa metáfora de“dois tabuleiros” apreende melhor as dinâmicasdas negociações de 1978 do que qualquer outromodelo baseado em atores nacionais unitários.

    Outros estudiosos notaram a natureza de jo-gos múltiplos das relações internacionais. Assimcomo Walton e McKersie, Daniel Druckman ob-servou que o negociador “busca construir um pacote que seja aceito tanto pelo outro lado como por sua própria burocracia”. Entretanto, Druckmanmodela os processos doméstico e internacionalseparadamente e conclui que “a interação entre os processos [...] permanece um tópico para inves-tigação [futura]” (DRUCKMAN, 1978, p. 100-101, 109). Roberto Axelrod propôs um “paradigmagama” no qual o Presidente dos Estados Unidos persegue determinadas políticas vis-à-vis a UniãoSoviética14, mas com um olho voltado para amaximização de sua popularidade doméstica. Con-tudo, esse modelo desconsidera divisões internase postula que um dos atores internacionais – aliderança soviética – somente se preocupa comganhos internacionais sem sofrer restrições do-

    mésticas, enquanto o outro – o Presidenteestadunidense – preocupa-se apenas com ganhosdomésticos, exceto quando seu público internoleva em consideração a competição internacional(AXELROD, 1987). Provavelmente, a teoriaempiricamente baseada mais interessante a res- peito da conexão entre as barganhas doméstica e

    internacional é de Glenn Snyder e Paul Diesing.Ainda que trabalhando na tradição neo-realista comsua concepção convencional de atores unitários,os autores descobriram que, em metade das cri-ses que investigaram, os principais tomadores dedecisão não eram unificados. Eles concluíram quea previsão sobre resultados internacionais melho-ra significativamente ao compreender-se as bar-ganhas internas, especialmente em relação a com- promissos minimamente aceitáveis (SNYDER &DIESING, 1977, p. 510-525).

    Metáforas não são teorias, mas fico feliz coma observação de Max Black segundo a qual “tal-vez toda ciência devesse começar com uma me-táfora e terminar com álgebra; talvez sem metá-fora jamais haveria qualquer álgebra” (Black apud 

    SNIDAL, 1985, p. 36n.). A análise formal de qual-quer jogo exige regras bem definidas, escolhas,ganhos, jogadores e informação e, ainda assim,muitos dos jogos simples de duas pessoas commotivações múltiplas não têm solução determina-da. Elaborar soluções analíticas a partir de jogosde dois níveis será um desafio difícil. Nas próxi-mas seções espero incentivar mais estudos sobreesse problema.

    IV. EM DIREÇÃO A UMA TEORIA DA RATIFI-CAÇÃO: A IMPORTÂNCIA DOS “WIN-SETS ”

    Considere-se o seguinte cenário estilizado que pode ser aplicado a qualquer jogo de dois níveis. Negociadores que representam duas organizaçõesencontram-se para buscar um acordo entre si, su- jeitos à limitação de que qualquer acordo provisó-rio precisa ser ratificado pelas respectivas organi-zações. Os negociadores podem ser, por exem- plo, chefes de governo, representantes dos traba-lhadores e dos empresários, líderes partidários deuma coalizão política, um ministro das finançasnegociando com uma equipe do Fundo MonetárioInternacional (FMI), líderes de um comitê mistoCâmara dos Deputados-Senado15 ou líderes degrupos étnicos de uma democracia consociativis-

    14 Convém lembrar que o presente artigo foi publicado em1988, portanto durante a época em que existia a UniãoSoviética e ocorria a Guerra Fria (N. T.).

    15  Convém notar que as expressões “Câmara dos Deputa-dos” e “Senado”, usadas ao longo deste artigo, referem-seaos órgãos legislativos específicos dos Estados Unidos (res-

     pectivamente: “House of Representatives” e “Senate”, eminglês); desse modo, não são órgãos genéricos utilizados

     pelo autor para efeitos de argumentação. O mesmo aplica-se à expressão “congressista” (“congressmen” ou“congresswoman”) (N. T.).

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    ta. Por enquanto, devemos presumir que cada ladoé representado por um único líder ou “negocia-dor-chefe” e que esse indivíduo não tem prefe-rências políticas independentes, mas que buscasimplesmente encontrar um entendimento que seráatrativo para suas bases16.

    É conveniente dividirmos analiticamente o pro-cesso em dois estágios:

    1. a barganha entre os negociadores que leva aum acordo provisório – chamemos este es-tágio de nível I;

    2. as discussões em separado entre os gruposdomésticos de apoio sobre ratificar ou nãoo acordo – chamemos este estágio de nívelII.

    Essa divisão seqüencial em uma fase de nego-ciação e uma fase de ratificação é útil para a expli-cação, embora não seja acurada em termos des-critivos. Na prática, os efeitos das expectativasserão bastante importantes. É bem provável quehaja consultas prévias e barganhas no nível II como objetivo de elaborar uma posição inicial para onível I. Contrariamente, a necessidade de ratifica-ção do nível II certamente afeta as barganhas donível I. Na verdade, as expectativas de rejeição nonível II podem abortar as negociações no nível Isem nenhuma ação formal no nível II. Por exem-

     plo, mesmo que os governos do Irã e dos EstadosUnidos tenham aparentemente apoiado um acor-do que trocava armas por reféns, as negociaçõesentraram em colapso tão logo se tornaram públi-cas e sujeitas a uma “ratificação” de facto. Emmuitas negociações, o processo de dois níveis podeser iterativo à medida que os negociadores tentamdiferentes acordos e sondam os pontos de vistade suas bases. Em casos mais complicados, comoveremos adiante, os pontos de vista das bases podem evoluir ao longo das negociações. No en-tanto, o requisito de que qualquer acordo no nível

    I precisa ser, ao final, ratificado no nível II impõeuma ligação teórica crucial entre os dois níveis.

    A “ratificação” pode envolver um processo for-mal de votação no nível II, como os dois terços

    de votos constitucionalmente necessários no Se-nado dos Estados Unidos para a ratificação detratados, mas eu uso o termo genericamente mereferindo a qualquer processo decisório no nívelII que seja necessário para endossar ouimplementar um acordo formal ou informal donível I. Às vezes é conveniente pensar na ratifi-cação como uma função parlamentar, mas issonão é essencial. Os atores do nível II podem re- presentar agências burocráticas, grupos de inte-resse, classes sociais ou mesmo a “opinião pú- blica”. Por exemplo, se sindicatos trabalhistas deum país devedor recusa a necessária coopera-ção a um programa de austeridade que o gover-no tenha negociado com o FMI, pode-se dizer que a ratificação do acordo no nível II falhou.As expectativas ex ante em torno dessa possibi-lidade certamente influenciarão as negociaçõesdo nível I entre o governo e o FMI.

    A ratificação doméstica de acordos internaci-onais pode ser peculiar às democracias. Como oMinistro das Finanças alemão observou recente-mente, “O limite da cooperação expandida residenos fatos de que somos democracias e de que precisamos assegurar maioria eleitoral em casa”(Stoltenberg apud   HENNING, 1987, p. 1). En-tretanto, a ratificação não precisa ser “democráti-ca” em qualquer sentido normal. Por exemplo, em

    1930 a Constituição Meiji foi interpretada de modoa atribuir um papel especial aos militares japone-ses na ratificação do Tratado Naval de Londres(TAKASHI, 1970; TATSUO, 1984, p. 11-117)17;durante a ratificação de qualquer tratado entrecatólicos e protestantes na Irlanda do Norte presumivelmente o Exército Republicano Irlandês(IRA) mostraria sua força influenciando o pro-cesso. Precisamos somente estipular que, para finsde contagem de “votos” no processo de ratifica-ção, pode-se reduzir diferentes formas de poder  político a algum denominador comum.

    A única restrição formal no processo de ratifi-cação é que, já que acordos idênticos precisamser ratificados por ambos os lados, um acordo preliminar do nível I não pode ser emendado nonível II sem reabrir as negociações do nível I. Emoutras palavras, a ratificação final só pode ser “votada” a favor ou contra; qualquer modificaçãono nível I conta como rejeição, a menos que essa

    16  A fim de evitar uma complexidade desnecessária, meuargumento será totalmente elaborado em termos de apenasum negociador-chefe, embora em muitos casos algumas desuas responsabilidades possam ser delegadas para auxilia-res. Adiante neste artigo eu atenuo o pressuposto de que onegociador não tem preferências independentes. 17  Estou em dívida com William Jarosz por esse exemplo.

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    modificação seja aprovada por todas as outras partes do acordo18. A Congressista Lynn Martincompreendeu a lógica da ratificação ao explicar oseu apoio ao projeto de lei da reforma tributária de1986 que chegou ao comitê misto: “Ainda que euesteja preocupada com o que esta lei promove, euestou ainda mais preocupada com o código atual.A escolha, hoje, não é entre este projeto e um pro- jeto de lei perfeito; a escolha é entre este projeto ea morte da reforma tributária” (Martin apud ROSENBAUM, 1986).

    Dado esse conjunto de arranjos institucionais, podemos definir o “conjunto de vitórias” [win- set ] para determinada base de apoio do nível IIcomo o conjunto de todos os acordos possíveisdo nível I que seriam vitoriosos – ou seja, que

    alcançariam a maioria necessária entre osapoiadores – quando colocados em votação19. Por duas razões bem diferentes, os contornos dosconjuntos de vitórias do nível II são muito impor-tantes para entender-se os acordos do nível I.

    Em primeiro lugar, maiores conjuntos de vitó-rias tornam os acordos no nível I mais prováveis,cœteris paribus20. Por definição, qualquer acordo bem-sucedido precisa encaixar-se nos conjuntosde vitórias do nível II de cada uma das partes doacordo. Assim, o acordo somente é possível seesses conjuntos de vitórias sobrepuserem-se;

    quanto maior cada conjunto de vitórias, mais pro-vável é a sobreposição. Inversamente, quantomenores forem os conjuntos de vitórias, maior éo risco de as negociações fracassarem. Por exem- plo, durante as prolongadas negociações préviasao conflito anglo-argentino sobre as IlhasMalvinas, diversos acordos provisórios foram re-

     jeitados em uma capital ou outra por motivos de política doméstica; quando se tornou claro que osconjuntos iniciais de vitórias britânicos e argenti-nos não se sobrepunham de maneira alguma, aguerra tornou-se virtualmente inevitável (DABAT& LORENZANO, 1984; HASTINGS &JENKINS, 1984; THE SUNDAY TIMES INSIGHTTEAM, 1982)21.

    Uma digressão curta, porém importante: a pos-sibilidade de uma ratificação fracassada sugere quea analise teórica do jogo deveria distinguir entredefecção voluntária e involuntária. A defecçãovoluntária refere-se a uma recusa dada por umator egoísta racional na ausência de contratosobrigatórios – por exemplo, o problema constan-temente analisado do dilema do prisioneiro e ou-

    tros dilemas de ação coletiva. A defecçãoinvoluntária, por outro lado, reflete o comporta-mento de um agente que é incapaz de cumprir uma promessa devido ao fracasso de uma ratifi-cação. Mesmo que esses dois tipos de comporta-mento sejam difíceis de distinguir em algumas si-tuações, suas lógicas básicas são bem diferentes.

    As perspectivas para cooperação internacio-nal em um mundo anárquico e de “auto-ajuda”são freqüentemente consideradas desfavoráveis porque “infelizmente os tomadores de decisãogeralmente têm incentivos para trapacear”

    (CANZONERI & GRAY, 1983). Todavia, comoAxelrod, Keohane e outros indicaram, a tentaçãode defecção pode ser dramaticamente reduzidaentre jogadores que esperam encontrar-se nova-mente no futuro (AXELROD, 1984; KEOHANE,1984, especialmente p. 116; WORLD POLITICS ,1985). Se os tomadores de decisão em um mun-do anárquico estivessem constantemente tentadosa trapacear, certas características da história de1978 seriam bastante anômalas. Por exemplo,embora o acordo de Bonn tenha sido negociadocom extremo cuidado, não havia provisões para

    equilíbrio temporário, seqüenciamento ou condi-ções parciais, os quais poderiam ter protegido as partes contra a defecção inesperada. Além disso,alemães e japoneses aprovaram de modoirrevogável suas partes do acordo mais de seismeses antes da ação do Presidente dos EstadosUnidos de desregulamentação do preço do petró-leo e cerca de dois anos antes de a medida ser 

    18  Essa condição, de fato, é característica da maioria dos procedimentos de ratificações do mundo real, como no casodas ações da Câmara dos Deputados e do Senado a respeito

    dos relatórios dos comitês mistos, embora isso seja em parte violado pela prática ocasional de anexar “reservas” àratificação dos tratados.

    19  Para a concepção de conjunto de vitórias, cf. Shepsle eWeingast (1987). Estou em débito com o Professor Shepsle

     pela grande ajuda nesse tópico.

    20  Para evitar o tédio, não repito a cláusula “as outrascoisas mantendo-se iguais” [cláusula cœteris paribus] emcada uma das proposições que se seguem. Sob algumascircunstâncias um conjunto expandido de vitórias poderiana verdade tornar factível algum resultado que disparasseum dilema de ação coletiva (cf. CRAWFORD, 1982).

    21  Estou em débito com Louise Richardson por essascitações.

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    implementada. Uma vez feito isso, a tentação doPresidente de rejeitar a proposta de Bonn deve ter sido avassaladora, mas virtualmente ninguém nosdois lados do debate sobre a desregulamentaçãodentro do governo estadunidense descartou ocompromisso de Bonn como algo irrelevante.Resumindo, a “promessa” de Bonn tinha peso político, porque a rejeitar acarretaria altos custos político e diplomático.

    Por outro lado, em qualquer jogo de dois ní-veis a credibilidade de um compromisso oficial pode ser baixa, mesmo que custos reputacionaisda rejeição sejam altos, pois o negociador podeser incapaz de garantir a ratificação. O insucessodo Congresso em ratificar a abolição do “Preçode Venda Americano” [ American Selling Price]

    como foi previamente acordado nas negociaçõescomerciais da Rodada Kennedy é um caso clássi-co. Outro caso foi a inabilidade do Primeiro-Mi-nistro japonês Sato de cumprir uma promessa feitaao Presidente Nixon durante a “Disputa Têxtil”[Textile Wrangle] (DESTLER, FUKUI & SATO,1979, p. 121-157)22. Por fim, um importante obs-táculo à coordenação econômica entre os paísesocidentais em 1985-1987 era o temor alemão deque o governo Reagan fosse politicamente inca- paz de cumprir qualquer compromisso que impli-casse diminuição do déficit orçamentário

    estadunidense, não importando quão bem intenci-onado fosse o Presidente.

    Ao contrário das preocupações com a defec-ção voluntária, a preocupação com a “habilidade para executar” foi um elemento relevante nas ne-gociações de Bonn. Na conferência de imprensaapós a Cúpula, o Presidente Carter enfatizou que“cada um de nós foi cuidadoso em não prometer mais do que podemos executar”. Uma questão

    central ao longo das negociações era a capacida-de de Carter de fazer valer seus compromissos naárea de energia. Os estadunidenses trabalharamarduamente para convencer os demais negocia-dores de que, em primeiro lugar, o Presidente es-tava sob severas restrições políticas domésticasna área de energia, o que limitava o que poderia prometer, mas, em segundo lugar, que ele poderiaexecutar aquilo ele estava preparado para promoter.Os negociadores em 1978 pareceram seguir estaidéia a respeito uns dos outros: “Ele fará o que prometeu desde que aquilo que foi prometido sejaclaro e dentro de seu poder”.

    A defecção involuntária, e o medo dela, podeser tão fatal para as expectativas de cooperaçãoquanto a defecção voluntária. Além disso, em al-

    guns casos pode ser difícil tanto para o outro ladocomo para os analistas externos distinguir a de-fecção voluntária da involuntária, particularmentese um negociador estratégico tentar representar uma defecção voluntária como involuntária. Essecomportamento é presumivelmente sujeito a cer-tas restrições reputacionais, embora seja uma im- portante questão empírica analisar o quão longeas reputações podem ser generalizadas da coleti-vidade para os negociadores e vice-versa. Acredibilidade (e, portanto, a capacidade de obter acordos) no nível I é acentuada pela capacidade

    comprovada do negociador em “executar” no ní-vel II. Essa foi a grande força de Robert Straussnas negociações da Rodada de Tóquio (WINHAM,1980, p. 377-397; 1986).

    A defecção involuntária somente pode ser en-tendida dentro da estrutura de um jogo de doisníveis. Assim, voltando ao assunto dos conjuntosde vitórias, quanto menores os conjuntos de vitó-rias, maior é o risco de defecção involuntária e, portanto, mais aplicável é a literatura sobre dile-mas de ação coletiva23.

    A segunda razão pela qual o tamanho do con- junto de vitórias é importante é que os tamanhosrelativos dos respectivos conjuntos de vitórias do

    nível II afetarão a distribuição de ganhos con-

     juntos das barganhas internacionais. Quanto mais

    22 O American Selling Price foi um regime estadunidensede taxação de importações criado em 1922, na Lei de Tari-fas Fordney-McCumber; de acordo com ele, um produtoimportado seria tarifado de acordo com os preços dos pro-dutos congêneres nacionais e não de acordo com o valor originário do bem. À semelhança da Rodada Tóquio, a Ro-dada Kennedy foi um conjunto de negociações realizado noâmbito do GATT; nesse caso em particular, tais negocia-ções ocorreram entre 1964 e 1967. A Textile Wrangle foiuma disputa entre os Estados Unidos e o Japão ocorridaentre 1969 e 1971, em que os Estados Unidos afirmaramque seu setor têxtil, em particular o lanífero, estava amea-çado pela produção japonesa; o resultado foi a imposiçãode barreiras comerciais à importação, pelos Estados Uni-dos, de têxteis (sintéticos, de lã, de algodão) (N. T.).

    23  Essa discussão pressupõe implicitamente a incertezaquanto aos contornos dos conjuntos de vitórias por partedos negociadores do nível I; afinal, se os conjuntos de vitó-rias fossem conhecidos com certeza, os negociadores nun-ca proporiam para ratificação um acordo que pudesse ser rejeitado.

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    as partes do nível I perceberem o conjunto devitórias do negociador como um conjunto amplo,mais ele poderá ser pressionado pelos demais ne-gociadores. Por outro lado, um pequeno conjuntode vitórias doméstico pode ser uma vantagem nanegociação: “Eu gostaria de aceitar a sua propos-ta, mas eu jamais conseguiria que ela fosse aceitaem casa”. Lamentar as restrições domésticas sobas quais alguém tem que operar (nas palavras deum experiente diplomata britânico) “é a coisa na-tural a dizer no começo de uma dura negociação”(Harrison apud  CAMPBELL, 1976, p. 62).

    Esse princípio geral foi, naturalmente, notado pela primeira vez por Thomas Schelling quase 30anos atrás: “O poder de um negociador freqüentemente repousa em sua incapacidade evi-

    dente de fazer concessões e satisfazer demandas[...]. Quando o governo dos Estados Unidos ne-gocia com outros governos [...], se o poder Exe-cutivo negocia sob uma autoridade delegada pelo poder Legislativo, sua posição de negociação aca- ba sendo controlada pela lei, [...] então o Executi-vo tem uma posição firme que é visível para osdemais negociadores [...]. (Sem dúvida estratégi-as como essa) correm o risco de criar uma posi-ção imobilizada que vai além da capacidade do outrode conceder e, portanto, aumenta as chances deimpasse e rompimento” (SCHELLING, 1960, p.

    19-28).Escrevendo sob o ponto de vista de um estra-

    tegista, Schelling enfatiza as formas pelas quaisos conjuntos de vitórias podem ser manipulados,mas mesmo quando o tamanho do conjunto estáalém do controle do negociador, este último po-derá explorar sua influência. Um líder do TerceiroMundo cuja posição doméstica é relativamentefraca (a Argentina de Raul Alfonsín?) deveria ser capaz de conduzir melhor uma negociação comseus credores internacionais, todos os outros fa-tores mantendo-se constantes, do que aquele cuja

     posição doméstica é mais sólida (o México deMiguel de la Madrid?)24. As dificuldades de al-cançar a ratificação pelo Congresso são geralmenteexploradas pelos negociadores estadunidenses.Durante as negociações do Tratado do Canal doPanamá, por exemplo, “o Secretário de Estadoalertou os panamenhos várias vezes [...] de que o

    novo tratado tinha que ser aceitável pelo menos para 67 senadores”; “Carter, em uma carta pes-soal para Torrijos, alertou que concessões adicio-nais dos Estados Unidos ameaçariam seriamenteas possibilidades de ratificação pelo Senado”(HABEED & ZARTMAN, 1986, p. 40, 42). Pre-cisamente para evitar essas táticas, os oponentes podem pedir que um negociador assegure para sialguma “margem de negociação” no nível II antesde iniciar as negociações do nível I.

    As implicações ambíguas [“ sweet-and-sour ”]do tamanho do conjunto de vitórias estão resumi-das na Figura 1, que representa um jogo de somazero simples entre X e Y.

    FIGURA 1 – EFEITOS DA REDUÇÃO DO TAMANHO

    DO CONJUNTO DE VITÓRIAS

    24  Sou grato a Lara Putnam por esse exemplo. Para evi-dências que corroboram esse exemplo, cf. Kaufman (1985,

     p. 473-503).

    As siglas XM e YM representam os resultadosmáximos respectivamente para X e Y, enquantoX1 e Y1 representam o resultado mínimo que po-deria ser ratificado. Nesse estágio qualquer acor-do na distância entre X1 e Y1 poderia ser ratifica-do por ambas as partes. Se o conjunto de vitórias

    de Y fosse reduzido, digamos, para Y2 (talvez por demandar u’a maioria mais ampla para ratifica-ção) os resultados entre Y1 e Y2 não seriam maisviáveis e o leque de acordos viáveis seria, portan-to, reduzido em favor de Y. Entretanto, se Y, en-corajado por esse sucesso, reduzisse ainda maisseu conjunto de vitórias para além de Y3 (talvezao requerer unanimidade para a ratificação), osnegociadores repentinamente se veriam em umimpasse, pois os conjuntos de vitórias não seriammais sobrepostos25.

    25  Diversos pesquisadores de outros campos propuserammodelos de jogos interligados semelhantes ao jogo de “doisníveis”. Kenneth A. Shepsle e seus colegas utilizaram anoção de “jogos interconectados” para analisar, por exem-

     plo, a estratégia de um legislador simultaneamente envolvi-do em dois jogos – na arena legislativa e na arena eleitoral.

     Nesse modelo, uma determinada ação é simultaneamenteum movimento em dois jogos diferentes e um jogador maximiza a soma de seus ganhos nos dois jogos (cf.DENZAU, RIKER & SHEPSLE, 1985; SHEPSLE, 1986).Essa abordagem é similar à de modelos recentemente de-senvolvidos por economistas que trabalham na linha de“expectativas racionais”. Nesses modelos um governo dis-

    XM YMY1 Y2 X1 Y3

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    V. OS DETERMINANTES DO CONJUNTO DEVITÓRIAS

    É importante entender quais circunstânciasafetam o tamanho do conjunto de vitórias. Três

    conjuntos de fatores são especialmente importan-tes:

    - as preferências e coalizões do nível II;

    - as instituições do nível II e

    - as estratégias dos negociadores do nível I.

    Consideremos um conjunto de cada vez.

    V.1. O tamanho do conjunto de vitórias depende

    da distribuição de poder, das preferências e

    das coalizões possíveis entre os grupos do-

    mésticos do nível II 

    Qualquer teoria de negociação internacional dedois níveis que seja testável precisa estar enraizadaem uma teoria da política doméstica, ou seja, umateoria sobre o poder e as preferências dos atores principais do nível II. Este não é o momento parauma avaliação mesmo que superficial das alterna-tivas teóricas relevantes, exceto para mencionar que a estrutura conceitual de dois níveis poderiaem princípio aliar-se a diferentes perspectivas,como o marxismo, o pluralismo, os estudos so- bre burocracia e o neocorporativismo. Por exem- plo, as negociações de armas poderiam ser inter- pretadas em termos do modelo de burocracias do jogo político do nível II, ao passo que a análise declasses ou o neocorporativismo poderiam ser apro-

     priados para analisar a coordenação macroeco-nômica internacional.

    Abstraindo os detalhes da política do nível II,entretanto, é possível esboçar certos princípios

    que determinam o tamanho dos conjuntos de vi-tórias. Por exemplo, quanto menor o custo do“não-acordo” para os grupos domésticos, menor será o conjunto de vitórias (HOMER &ROSENTHAL, 1978). É bom lembrar que o pro-cesso de ratificação põe-se, em relação ao acordo proposto, não contra uma variedade de alternati-vas (possivelmente atraentes), mas apenas contrao “não-acordo”26. O “não-acordo” geralmente re- presenta o status quo, embora em alguns casos onão-acordo possa piorar a situação; essa pode ser uma descrição razoável para o fracasso na ratifi-

    cação do Tratado de Versalhes27

    .Alguns grupos domésticos podem ter custos

     baixos com não-acordos, ao passo que outros po-dem ter custos mais altos; os primeiros serão maiscéticos que os segundos quanto a acordos no nívelI. Famílias de baixa renda deveriam ser mais pro- pensas a entrar em greve do que solteiros endinhei-rados; barbeiros de pequenas cidades deveriam ser mais isolacionistas que banqueiros internacionais. Nesse sentido, alguns grupos domésticos podemtanto opor-se genericamente a quanto apoiar gene-ricamente acordos do nível I, de maneira mais ou

    menos independente dos conteúdos específicosdesses acordos, embora naturalmente as decisõesde outros grupos a respeito da ratificação estejamcondicionadas a essas particularidades. O tamanhodo conjunto de vitórias (e, daí, o espaço de negoci-ação do negociador do nível I) depende do tama-nho relativo das forças “isolacionistas” (que seopõem à cooperação internacional em geral) e dasforças “internacionalistas” (que oferecem “apoio in-condicional”). O apoio incondicional a acordos in-ternacionais é geralmente maior em países peque-

    cute simultaneamente com outros governos e com sindica-tos domésticos sobre política monetária (cf. por exemploROGOFF, 1985; VAUBEL, 1986). George Tsebelis (1988)desenvolveu uma teoria de “jogos aninhados” [“nested 

     games”], nos quais duas alianças competem para determi-nar os ganhos totais, enquanto os jogadores individuais nointerior de cada aliança disputam as suas cotas. Fritz Sharpf (1988) interpreta a política macroeconômica como o resul-

    tado conjunto de dois jogos simultâneos – em um deles ogoverno joga contra os sindicatos, enquanto no outro res-

     ponde às reações antecipadas do eleitorado. James E. Alt eBarry Eichengreen (1987) oferecem uma tipologia maisampla de jogos interligados, distinguindo os jogos “parale-los” – nos quais “os mesmos oponentes jogam uns contraos outros ao mesmo tempo em mais de uma arena” – e os“jogos sobrepostos” – que surgem “quando um jogador em

     particular está envolvido ao mesmo tempo em jogos comoponentes distintos e quando a estratégia utilizada em um

     jogo limita a estratégia disponível em outro”. Uma compa-ração detalhada desses diversos modelos de jogos interliga-dos é uma tarefa para o futuro.

    26  Em tratamentos mais formais, o resultado do não-acor-do é chamado de “ponto de reversão”. Uma avaliação feita

     por determinado grupo doméstico sobre o não-acordocorresponde ao que Raiffa chama de “preço da desistên-cia”, ou seja, o preço abaixo do qual ele prefere “não nego-ciar” (RAIFFA, 1982). O não-acordo é equivalente ao queSnyder e Diesing chamam de “rompimento” ou o custoesperado da guerra (SNYDER & DIESING, 1977).

    27 A referência do autor, nesse caso, é à recusa do Congres-so estadunidense em ratificar o Tratado de Versalhes, queencerrou a I Guerra Mundial e criou a Liga das Nações (N.T.).

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    nos, mais dependentes e de economias mais aber-tas se comparados a países mais autossuficientes,como os Estados Unidos, pois os custos do não-acordo são em geral mais baixos para seus cida-dãos. Cœteris paribus, os estados maisautossuficientes que possuem conjuntos de vitóri-as menores fazem menos acordos internacionais equando os fazem negociam mais duramente.

    Em alguns casos, a avaliação do não-acordo pode ser o único desacordo importante entre osgrupos do nível II porque seus interesses são rela-tivamente homogêneos. Por exemplo, se a impor-tação de petróleo precisa ser limitada por um acor-do entre as nações consumidoras – o tipo de acor-do buscado na Cúpula de Tóquio de 1979, por exem- plo –, presume-se que cada grupo doméstico bus-

    cará maximizar a sua cota de suprimento disponí-vel em seu país, embora alguns grupos domésticos possam relutar mais que outros em exigir dura-mente sua parcela por medo de perder integralmenteo acordo. Da mesma forma, na maioria das nego-ciações salariais, os interesses dos grupos domés-ticos (sejam trabalhadores, sejam acionistas) sãorelativamente homogêneos e as divisões mais sig-nificativas entre os grupos do nível II são mais pro-váveis de acontecer entre “falcões” e “pombos”,dependendo de suas disposições de arriscar umagreve. (Walton e McKersie referem-se a isso como

    conflitos de “fronteira”, em que o negociador é pegoentre seus grupos domésticos de apoio e a organi-zação externa.) Outros exemplos internacionais emque os interesses domésticos são relativamente ho-mogêneos, com a exceção da avaliação do não-acordo, podem ser as conversas do SALT28, asnegociações do Tratado do Canal do Panamá e oconflito árabe-israelense. É improvável que um ne-gociador seja criticado em casa por uma propostade acordo que reduza as armas do oponente demaneira significativa, ofereça poucas compensa-ções em troca de concessões aos estrangeiros ouque contenha poucas garantias de segurança parao outro lado, embora em cada caso as opiniões possam divergir quanto a arriscar um impasse nasnegociações para alcançar esses objetivos.

    A natureza distinta dessas questões “homogê-neas” muda drasticamente ao contrastá-las comos casos em que as preferências dos grupos do-mésticos são mais heterogêneas e qualquer acor-do do nível I atinge desigualmente cada um des-ses grupos envolvidos. Assim, um programa derecuperação econômica coordenado internacional-mente pode encontrar oposição doméstica tanto por aqueles que acham que o programa está indolonge demais (banqueiros) quanto por aqueles queacham que não está indo suficientemente longe(sindicatos). Em 1919 alguns estadunidenses opu-seram-se ao Tratado de Versalhes porque o acha-ram muito severo para as potências derrotadas eoutros porque o acharam muito brando (BAILEY,1945, p. 16-37). Esses padrões são ainda maiscomuns, como logo veremos, quando a negocia-ção envolve diversos temas, como um acordosobre armas envolvendo barganhas cruzadas en-tre armas aéreas e navais ou um acordo trabalhis-ta envolvendo salários e pensões. (Walton eMcKersie denominam esses conflitos de “faccio-sos” porque o negociador é posto entre facçõesem luta dentro da sua própria organização.)

    Os problemas encontrados por negociadoresdo nível I que tratam de conflitos homogêneos(ou “fronteiriços”) são bem diferentes daquelesencontrados por negociadores que tratam de con-

    flitos heterogêneos (ou “facciosos”). No primeirocaso, quanto mais o negociador conseguir ganhar no nível I – maior parcela na alocação nacional de petróleo, profundos cortes nos mísseis soviéti-cos, baixas concessões no Tratado do Canal doPanamá e assim por diante – maiores serão suaschances de conseguir a ratificação. Nesses ca-sos, o negociador pode usar a ameaça implícitade seus próprios falcões para maximizar seus gan-hos (ou minimizar suas perdas) no nível I, comoCarter e Vance fizeram ao negociar com os pana-menhos. Espiando por sobre os ombros para onível II, o negociador nota que seu problema prin-cipal em um conflito de preferências homogêneasé gerenciar as discrepância entre as expectativasde seus grupos de apoio e o resultado negociável.É provável que o negociador não encontre muitasimpatia pelas simpatias do inimigo entre seus pró- prios grupos domésticos, nem muito apoio às posições de seus grupos domésticos no campoinimigo. O efeito da divisão doméstica, incorpo-rada na oposição linha-dura dos falcões, eleva orisco de defecção involuntária e assim impede oacordo no nível I. A crença comum de que a polí-

    28  Significando “Strategic Arms Limitation Talks” (“Ne-gociações para a Limitação de Armas Estratégicas”, em in-glês), os acordos SALT foram dois conjuntos de tratativasrealizados pelos Estados Unidos e pela União Soviéticadurante a Guerra Fria, para controle e diminuição das ar-mas nucleares; a primeira rodada de conversas ocorreu en-tre 1969 e 1972 e a segunda, entre 1977 e 1979 (N. T.).

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    tica doméstica é inimiga da cooperação internaci-onal deriva sem dúvida desses casos.

    A tarefa de um negociador em meio a um con-flito de preferências heterogêneas é mais compli-

    cada, embora potencialmente mais interessante. Ao procurar maximizar as chances de ratificação, onegociador não pode simplesmente seguir a regrade “quanto mais, melhor”; a imposição de repara-ções mais severas à Alemanha em 1919 teria obtidomais alguns votos no nível II mas perdido outros,assim como teria ocorrido com a aceleração dodescontrole de preços domésticos do petróleo em1978. Em alguns casos, essas linhas de divisão entreos grupos domésticos no nível II refletir-se-ão nasdo nível I e o negociador do nível I pode encontrar aliados silenciosos no tabuleiro doméstico de seu

    oponente. Os sindicatos alemães poderiam dar boas-vindas à pressão externa sobre seu próprio gover-no para que este adotasse uma política fiscal maisexpansionista e os banqueiros italianos poderiamsaudar as demandas internacionais por uma políti-ca monetária italiana mais austera. Assim, os ali-nhamentos transnacionais podem surgir, de manei-ra tácita ou explícita, quando os interesses domés-ticos pressionam seus respectivos governos a ado-tar políticas que sejam mutuamente apoiadas. É claroque é essa a minha interpretação do acordo alcan-çado na Cúpula da Bonn de 1978.

    Em tais casos, a divisão doméstica pode naverdade melhorar as perspectivas para a coopera-ção internacional. Por exemplo, considerem-seduas diferentes distribuições de preferências dosgrupos domésticos entre três alternativas: A, B enão-acordo. Se 45% dos grupos organizam as preferências assim: A > não-acordo > B, outros45% organizam assim: B > não-acordo > A e 10% preferem B > A > não-acordo, então tanto A quan-to B estão no conjunto de vitórias, mesmo que Bvencesse em um simples jogo no nível II. Por outro lado, se 90% organizam as alternativas des-

    ta forma: A > não-acordo > B, enquanto 10% ain-da as preferem B > A > não-acordo, então apenasA está dentro do conjunto de vitórias. Nesse sen-tido, um governo que seja internamente divididotem maiores chances de alcançar um acordo in-ternacional do que um governo firmemente com- prometido com apenas uma política29. Inversa-mente, impor instruções vinculantes ex ante aos

    negociadores poderia excluir alguns resultados donível I que, na verdade, seriam potencialmenteratificáveis em ambos os países30.

    Até o momento supusemos implicitamente que

    todos os grupos domésticos elegíveis participamdo processo de ratificação. Na verdade, contudo,as taxas de participação variam conforme os gru- pos e as questões e essa variação freqüentementeapresenta implicações para o tamanho do conjun-to de vitórias. Por exemplo, quando os custos e/ou os benefícios de um acordo proposto são rela-tivamente concentrados, é razoável esperar quegrupos domésticos cujos interesses são mais afe-tados buscarão exercer uma influência especialno processo de ratificação31. Uma razão pela qualos jogos do nível II são mais importantes para as

    negociações de comércio do que para questõesmonetárias é que “o índice de abstenção” dos gru- pos domésticos é mais alto nas discussões finan-ceiras do que nos debates sobre comércio32.

    A composição de grupos domésticos ativos nonível II (e daí o caráter do conjunto de vitórias) – também varia com o nível de politização do as-sunto. A politização muitas vezes ativa grupos queestão menos preocupados com os custos do não-acordo, reduzindo assim o tamanho efetivo doconjunto de vitórias. Por exemplo, a politizaçãoda questão do Canal do Panamá parece ter reduzi-

    do a flexibilidade de negociação de ambos os la-dos do tabuleiro (HABEEB & ZARTMAN, 1986).Essa é uma razão por que a maioria dos diploma-tas profissionais enfatiza a importância do sigilo

    29  Raiffa (1982, p. 12) aponta que, “quanto mais difusasforem as posições em cada lado, mais fácil pode ser alcan-

    çar-se o acordo externo”. Para um contraste para a visãoconvencional segundo a qual a unidade doméstica é geral-mente uma pré-condição do acordo internacional, cf. Artise Ostry (1986, p. 75-76).

    30  “Consultas significativas com outras nações tornam-semuito difíceis quando o processo interno de tomada dedecisão já tem algumas das características de pacto entre

    entidades quase-soberanas. Existe uma crescente relutân-cia de pôr em risco um consenso doméstico alcançado pe-nosamente em um fórum internacional” (KISSINGER,1969, p. 266).

    31  Cf. Wilson (1975) sobre como as políticas de determi-nada questão são afetadas pela concentração ou difusãodos custos e dos benefícios.

    32  Outro fator que favorece a abstenção são as maiorescomplexidade e opacidade das questões monetárias; comoGilbert R. Winham (1977, p. 363) observa, “a complexida-de pode fortalecer a posição de um negociador vis-à-vis aorganização que ele representa”.

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    B2

     A1  AMB1

     A2BM

     para negociações exitosas. Entrementes, a viagemtranscontinental de Woodrow Wilson em 1919refletiu o cálculo oposto, a saber, que expandindoo número de apoiadores internos ele poderia asse-gurar a ratificação do Tratado de Versalhes, em- bora no fim esta estratégia tenha-se mostrado in-frutífera (BAILEY, 1945).

    Uma outra importante restrição à nossa dis-cussão até o momento foi o pressuposto de queas negociações envolvem somente um tema. Sua-vizar esse pressuposto tem conseqüências pode-rosas para a disputa em ambos os níveis33. Di-versos grupos do nível II provavelmente terão pre-ferências bem diferentes sobre as questões deba-tidas em uma negociação envolvendo diversos te-mas. Como regra geral, o grupo com maior inte-

    resse em determinada questão provavelmente teráa posição mais extremada quando ela for debati-da. Nas negociações sobre a Lei do Mar, por exem- plo, o Departamento de Defesa tinha forte inte-resse nas rotas marítimas, o Departamento doInterior em direitos de mineração no leito marinhoe assim por diante (HOLLICK, 1981, especialmen-te p. 208-237; SEBENIUS, 1984, especialmente p. 74-78). Se cada grupo consegue imprimir suavisão e interesse no acordo do nível I, o pacoteresultante muito provavelmente seria inegociável,ou seja, não ratificável pelos países oponentes

    (RAIFFA, 1982, p. 175).Assim, o negociador-chefe enfrenta barganhas

    cruzadas em diferentes temas: quanto ceder emdireitos de mineração para conseguir proteção emrotas marítimas, quanto ceder em exportação decítricos para conseguir um acordo melhor na ex- portação de carnes e assim por diante. As impli-cações dessas barganhas cruzadas para os res- pectivos conjuntos de vitórias podem ser analisa-das por meio de curvas “isovotos” ou curvas de“indiferença política”. Essa técnica é análoga àanálise convencional de curvas de indiferença,

    exceto pelo fato de que a medida operacional é a perda de votos e não a perda de utilidade. A Figura2 apresenta um diagrama de análise deEdgeworth34. O resultado mais desejado para A

    (o resultado que obtém aprovação unânime tantoda indústria de laranjas como da indústria de car-nes) é o canto superior direito (AM) e cada curvacôncava em relação ao ponto AM  representa olócus de todas as possíveis barganhas cruzadasentre os interesses de pecuaristas e citricultores,de tal forma que o voto líquido alcançado em fa-vor da ratificação nos pontos A do nível II sejaconstante. A linha negritada A1-A2  representa avotação mínima necessária para ratificação por A;a área definida à direita de A1-A2 representa o con- junto de vitórias de A. Da mesma forma, a linhaB1-B2 representa os resultados que são minima-mente ratificáveis por B e a área em forma delente entre A1-A2 e B1-B2 representa o conjuntode acordos viáveis. Embora algumas sutilezas adi-cionais (como a natureza da “curva de contrato”) possam ser obtidas desse tipo de análise, o pontocentral é simples: as chances de alcançar-se con- juntos de acordos abrem um rico leque de alter-nativas estratégicas para os negociadores em jo-gos de dois níveis.

    FIGURA 2 – CURVAS DE INDIFERENÇA POLÍTICAPARA NEGOCIAÇÃO DE DOIS TEMAS

    33  Sou grato a Ernst B. Haas e Robert O. Keohane peloútil aconselhamento sobre esse ponto.

    34  Estou em débito com Lisa Martin e Kenneth Shepsle por sugerirem essa abordagem, embora eles não sejam res- ponsáveis pela minha aplicação. Note-se que essa constru-ção presume que cada questão, considerada individualmen-

    te, é do tipo “homogêneo” e não do tipo “heterogêneo”. Aelaboração de curvas de indiferença política de votos(“isovotos”) para questões de tipo heterogêneo é mais com-

     plicada.

    35  Sou grato a Henry Brady por esclarecer esse ponto para mim.

    Um tipo de vínculo entre questões [issuelinkage] é absolutamente crucial para compreen-der como as políticas doméstica e internacionaltornam-se entrelaçadas35. Suponha-se que u’a

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    maioria de grupos domésticos no nível II opõe-sea determinada política (digamos, adesregulamentação do preço do petróleo), porémalguns membros dessa maioria estariam inclina-dos a mudar seus votos em troca de mais empre-gos (digamos, nas indústrias exportadoras). Se a barganha é limitada ao nível II, essa troca não étecnicamente viável, mas se o negociador-chefeconseguir fechar um acordo internacional que tra-ga mais empregos (digamos, via maior crescimen-to no exterior), ele pode com efeito subverter oresultado inicial do tabuleiro doméstico. Esse vín-culo entre questões transnacionais foi um elementocrucial no acordo de Bonn em 1978.

     Note-se que essa estratégia funciona por meioda mudança das preferências de quaisquer gru-

     pos domésticos, mas sim da criação de uma op-ção política (como um crescimento maior nasexportações) que estava anteriormente além docontrole doméstico. Por esse motivo denominoesse tipo de vínculo entre questões do nível I quealtera os resultados possíveis no nível II de cone- xão sinérgica. Por exemplo, “na Rodada de Tó-quio [...] os países usaram a negociação interna-cional para promover reformas internas em situa-ções nas quais as pressões dos grupos domésti-cos de outra forma impediriam a ação, caso nãohouvesse a pressão (e os benefícios das barga-

    nhas) que um parceiro estrangeiro poderia forne-cer” (WINHAM, 1987). A interdependência eco-nômica multiplica as oportunidades de alterarem-se as coalizões domésticas (e, daí, os resultadosdas políticas) ao expandir o conjunto de alternati-vas viáveis – com efeito, ao criar entrelaçamentos políticos para além das fronteiras nacionais. As-sim, deveríamos esperar que a conexão sinérgica(que é, por definição, explicável apenas em ter-mos da análise de jogos de dois níveis) torne-semais freqüente à medida que a interdependênciacresce.

    V.2. O tamanho do conjunto de vitórias dependedas instituições políticas do nível II 

    Os procedimentos de ratificação claramenteafetam o tamanho do conjunto de vitórias. Por exemplo, se dois terços dos votos são necessári-os para a ratificação, o conjunto de vitórias quasecom certeza será menor do que no caso de umasimples maioria ser necessária. Como um obser-vador experiente notou, “Sob as regras da Cons-tituição, trinta e quatro de 100 senadores podem bloquear a ratificação de qualquer tratado. Esse é

    um aspecto infeliz e único de nossa democracia.Devido ao poder efetivo de veto de um pequenogrupo, muitos acordos valiosos foram rejeitadose muitos não são nem sequer considerados pararatificação” (CARTER, 1982, p. 225). Como as-sinalado anteriormente, a separação de poderes nosEstados Unidos impõe uma restrição mais rígidasobre o conjunto de vitórias estadunidense do queem vários outros países. Isso aumenta o poder de barganha de negociadores norte-americanos, mastambém reduz o escopo da cooperação internaci-onal. Tal situação eleva as probabilidades de de-fecção involuntária e torna os sócios potenciaismais cautelosos ao negociar com osestadunidenses.

    A Lei de Expansão do Comércio de 1974 mo-

    dificou os procedimentos de ratificação em umesforço para reduzir a possibilidade de manipula-ção do acordo final pelo Congresso e com isso buscou renovar a confiança dos parceiros dosEstados Unidos nas negociações internacionais.Após o fiasco do Preço de Venda Americano, tor-nou-se amplamente reconhecido que a ratificaçãofragmentada de qualquer novo acordo pelo Con-gresso inibiria negociações internacionais. Por isso,a Lei de 1974 garantiu uma votação única pararejeitar ou aceitar os acordos no Congresso. En-tretanto, para satisfazer as sensibilidades do po-

    der Legislativo estabeleceu-se um elaborado sis-tema de comitês do setor privado para melhorar acomunicação entre os negociadores do nível I eseus grupos domésticos do nível II, o que era naverdade uma forma de cooptar os grupos de inte-resse ao expô-los diretamente às implicações desuas demandas (WINHAM, 1980; TWIGGS,1987). Precisamente essa tática é descrita em umestudo de caso sobre a administração do trabalhorealizado por Walton e McKersey: “Em vez deassumir a responsabilidade por persuadir direta-mente os principais grupos domésticos a reduzir suas expectativas, [o negociador do nível I] es-trutura uma situação de tal forma que esses gru- pos (ou seus representantes mais imediatos) per-suadir-se-ão sozinhos” (WALTON &MCKERSIE, 1965, p. 321).

     Nem todas as práticas importantes de ratifica-ção estão formalizadas; por exemplo, a propen-são japonesa de buscar o consenso doméstico maisamplo possível antes de agir restringe o conjuntode vitórias japonês, em contraste com a cultura política de sociedades majoritárias. Outras práti-cas políticas domésticas também podem afetar o

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    tamanho do conjunto de vitórias. Uma forte disci- plina no partido do governo, por exemplo, aumentao conjunto de vitórias ao ampliar o alcance dosacordos pelos quais o negociador do nível I podeesperar apoio. Por exemplo, em 1986, no comitêmisto Câmara-Senado da reforma tributária, a pro- posta final estava muito próxima da versão doSenado, a despeito do (ou melhor, devido ao) gran-de controle do Congressista Rostenkowski sobrea sua delegação, que aumentou o conjunto de vi-tórias da Câmara. Ao contrário, um enfraqueci-mento da disciplina partidária nas maiores naçõesocidentais, cœteris paribus, reduziria o escopo paraa cooperação internacional.

    A recente discussão sobre “força do Estado” e“autonomia do Estado” é relevante aqui. Quanto

    maior for a autonomia dos tomadores centrais dedecisões em relação aos grupos domésticos donível II, maior será seu conjunto de vitórias e,assim, maiores serão as chances de alcançar-seum acordo internacional. Por exemplo, oinsulamento do Banco Central das pressões polí-ticas domésticas de fato aumenta o conjunto devitórias e, portanto, as chances de cooperaçãomonetária internacional; as recentes propostas paraum papel mais relevante para os bancos centraisna coordenação de políticas baseiam-se nesse ponto (ARTIS & OSTRY, 1986)36. Entretanto, a

    análise de dois níveis também implica que, cœteris paribus, quanto mais forte for a autonomia de umEstado em relação às pressões domésticas, maisfraca é sua posição relativa ao barganhar interna-cionalmente. Por exemplo, os diplomatas que re- presentam uma ditadura fortificada são menoscapazes que representantes de uma democraciade argumentar que os grupos domésticos impe-dem a realização de um acordo desvantajoso(SCHELLING, 1960, p. 28). Essa ainda é outrafaceta da desconcertante ambigüidade da noçãode “força do Estado”.

    Para simplicidade de exposição, meu argumen-to é redigido em termos de apenas dois níveis.Contudo, muitos arranjos institucionais requeremdiversos níveis de ratificação, multiplicando as-sim a complexidade (mas talvez também a impor-tância) da análise baseada em conjuntos de vitóri-as. Considere-se, por exemplo, as negociaçõesentre os Estados Unidos e a Comunidade Euro-

     péia sobre o comércio agrícola. De acordo com oTratado de Roma, modificações na Política Agrí-cola Comum requerem ratificação unânime peloConselho de Ministros37, o qual representa cadaum dos estados-membro. Ato contínuo, cada umdesses governos precisa ratificar suas decisõesna arena nacional e em governos de coalizão esse processo pode requerer também ratificação no in-terior de cada partido. Da mesma forma, uma ra-tificação desse tipo no lado estadunidense preci-saria (ao menos informalmente) do apoio da mai-oria das, se não de todas as, grandes organiza-ções agrícolas e no interior dessas organizaçõesoutras ratificações pelos interesses e regiões-cha-ve podem ser necessárias. Em cada estágio preci-sariam ser considerados os padrões de divisão política interna, os vínculos entre questões, ascompensações paralelas [ side-payments], as es-tratégias do negociador e assim por diante. Emalgum ponto dessa regressão analítica a comple-xidade de mais decomposições excederia as van-tagens da simplificação, mas o exemplo ilustra anecessidade da meditação cuidadosa sobre a lógi-ca dos jogos de múltiplos níveis.

    V. 3. O tamanho do conjunto de vitórias depende

    das estratégias dos negociadores do nível I 

    Cada negociador do nível I tem um interesseinequívoco de maximizar o conjunto de vitórias

    do outro negociador, mas em relação ao seu pró- prio conjunto de vitórias suas motivações são va-riadas. Quanto maior for seu conjunto de vitórias,mais facilmente ele conclui um acordo, mas tam- bém mais fraca é sua posição de barganha vis-à-vis  o outro negociador. Esse aspectofreqüentemente apresenta um dilema tático. Umaforma eficiente de demonstrar comprometimentocom determinada posição nas negociações do ní-vel I é arregimentar o apoio dos grupos domésti-

    37  O Tratado de Roma foi um acordo celebrado em 1957entre Alemanha, França, Itália, Bélgica, Países Baixos eLuxemburgo, criando a Comunidade Econômica Européia.A Política Agrícola Comum é um conjunto de subsídiosfornecido pela Comunidade Européia aos agricultores dosseus países-membro. O Conselho de Ministros é um órgãoda Comunidade Européia que, precisamente, reúne os re-

     presentantes de cada um dos estados-membro. Por fim,cabe lembrar que a Comunidade Européia foi criada em1957 com esse nome e que, em 1992, transformou-se emUnião Européia (N. T.).

    36 É óbvio que se isso é desejável em termos democráticosé uma questão bastante diferente.

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    cos a essa posição (por exemplo: mantendo umindicativo de greve, falando em “missile gap”38

    ou denunciando as “práticas injustas de comér-cio” no exterior). Por outro lado, essas táticas podem ter efeitos irreversíveis sobre as atitudesdos grupos domésticos, dificultando a ratificaçãosubseqüente de um acordo fechado (WALTON& MCKERSIE, 1965, p. 345). Inversamente, seo negociador realizar consultas preliminares juntoa grupos domésticos com o objetivo de “amaciá-los” antes da luta pela ratificação, sua imagem denegociador implacável no exterior pode ficar com- prometida.

    Contudo, desconsiderando neste momento es-ses dilemas e assumindo que um negociador de-seja expandir o seu conjunto de vitórias a fim de

    encorajar a ratificação de um acordo, ele podeexplorar tanto as compensações paralelas conven-cionais como uma genérica “boa vontade”. O usodas compensações paralelas para atrair apoiadoresmarginais, sem dúvida, é bastante comum na teo-ria dos jogos, assim como na política real. Por exemplo, o governo Carter fez diversas ofertas persuasivas (como projetos de obras públicas)com o objetivo de convencer senadores hesitan-tes a ratificar o Tratado do Panamá (CARTER,1982, p. 172; cf. também RAIFFA, 1982, p. 183).Em um jogo de dois níveis as compensações pa-

    ralelas podem vir de fontes domésticas sem ne-nhuma relação com o tema, como nesse caso, ou podem-se receber como parte da negociação in-ternacional.

    O papel das compensações paralelas nas ne-gociações internacionais é bem conhecido. Toda-via, a abordagem de dois níveis enfatiza que ovalor de uma compensação paralela internacionaldeve ser calculado em termos da sua contribuiçãomarginal para a probabilidade de ratificação e nãoem termos do seu valor total para a nação benefi-ciada. O que importa no nível II não são os cus-

    tos e benefícios nacionais totais, mas sim os seusimpactos, relativamente às coalizões existentes e

    às protocoalizões. Uma concessão comercial queenvolva todos os participantes (ou, ainda pior, umaconcessão em um produto de interesse de um

    congressista comprometido com o livre comér-cio) é menos efetiva que uma concessão (mesmoque seja de menor valor intrínseco) capaz de alte-rar a posição de um eleitor indeciso. Inversamen-te, a retaliação comercial não deveria direcionar-se nem aos partidários do livre comércio nem aos protecionistas convictos, mas sim aos não com- prometidos.

    Um negociador experiente, familiarizado comos respectivos tabuleiros domésticos, deveria ser capaz de maximizar tanto a relação custo-benefí-cio (para si e para seus grupos domésticos) dasconcessões que deve fazer para assegurar umaratificação no exterior como a relação custo-be-nefício de suas próprias demandas e ameaças, aomirar suas iniciativas com um olho sobre seus

    efeitos no nível II, tanto em casa como no exteri-or. Nessa empreitada, os negociadores do nível Iestão freqüentemente em conluio, pois cada umtem interesse em ajudar o outro a conseguir que oacordo final seja ratificado. Com efeito, eles mo-vimentam-se coordenadamente na busca de pon-tos de tangência de suas respectivas curvas polí-ticas de indiferença. A freqüência empírica dessaestratégia em negociações de comércio e guerrascomerciais, assim como em outras negociaçõesinternacionais, seria um teste crucial dos méritosrelativos do modelo convencional de ator unitário

    em contraposição à abordagem de dois níveis pro- posta aqui39.

    Além do uso de compensações paralelas espe-cíficas, um negociador-chefe cuja reputação po-lítica doméstica seja alta pode conseguir mais fa-cilmente a ratificação de suas iniciativas externas.

    38  O “missile gap” (“hiato de mísseis”, em inglês) foi umrecurso retórico usado nos Estados Unidos durante a GuerraFria que exagerava a diferença do estoque de mísseis nuclearesestadunidenses em relação à União Soviética, a fim de justifi-car maiores gastos com esse tipo de armamento (N. T.).

    39  O significado estratégico de observar os efeitos dasações do negociador em ambos os níveis II é ilustrado por John Conybeare (1985, p. 157): a retaliação nas guerrascomerciais anglo-hanseáticas não surtia o desejado efeitode acabar com o conflito porque não tinha como alvo (etalvez nem pudesse ter tido) membros cruciais da coalizãooposta do nível II. Compare-se isso com Snyder e Diesing(1977, p. 552): “Se alguém enfrenta um oponente comforça para impor sua vontade, mas a coalizão majoritáriado oponente inclui alguns membros hesitantes inclinados àconciliação, uma proposta de compromisso que se ajusteaos seus pontos de vista pode provocar sua defecção e aformação de uma nova coalizão majoritária. Ou se a estra-tégia do oponente é de acomodação, baseada em uma tênuecoalizão de programaticamente débil, sabe-se que é neces-sário tomar cuidado na implementação da sua própria es-tratégia coercitiva para evitar o tipo oposto de guinada naoutra situação”.

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    Embora a boa vontade genérica não possa garan-tir a ratificação, como Woodrow Wilson acaboudescobrindo, ela é útil para expandir o conjuntode vitórias, favorecendo assim o acordo no nívelI, pois ela constitui uma espécie de “cola-tudo” para a sua coalizão de apoio. Walton e McKersiemencionam que membros do Sindicato dos Tra- balhadores da Indústria Automobilística, ao fala-rem de seu reverenciado líder, Walter Reuther,argumentaram: “Eu não entendo ou concordo comesta idéia de divisão de lucros, mas se o Ruivodeseja-a, eu vou junto” (WALTON &MCKERSEY, 1965, p. 319). O negociador iugoslavo na disputa de Trieste atenuou posteri-ormente suas dificuldades em convencer oseslovenos irredentistas a aceitarem um acordo,afirmando que “o governo [i. e., Tito] pode influ-enciar a opinião pública sempre que desejar”(Velebit apud  CAMPBELL, 1976, p. 97)40.

     Note-se que cada negociador do nível I temforte interesse na popularidade do seu oponente, pois a popularidade do partido A aumenta o tama-nho do seu conjunto de vitórias e, portanto, au-menta tanto as chances de sucesso e de influên-cia relativa da barganha do partido B. Dessa for-ma, os negociadores devem normalmente tentar reforçar a posição uns dos outros com seus res- pectivos grupos domésticos.

    Em parte por essa razão e em parte devido àatenção dos meios de comunicação, a participa-ção na cena mundial normalmente dá ao chefe degoverno uma vantagem especial vis-à-vis sua opo-sição doméstica. Desse modo, embora a coorde-nação política internacional sofra com os altoscustos de transação, os chefes de governo tam- bém conseguem colher aquilo que denominamosde “benefícios de transação”. De fato, o recenteaumento do número de cúpulas ocidentais, quederam mais ênfase à publicidade do que à subs-tância, parece ser desenhado para aproveitar es-

    ses “benefícios de transação”, sem na verdade li-dar com certos tipos de acordos que poderiamacarretar custos de transação41.

     Negociadores de status mais elevado têm mai-or probabilidade de dispor de mais compensações paralelas e mais “boa vontade” em casa e, por isso, os estrangeiros preferem negociar com umchefe de governo a tratar com um servidor mais baixo. Em termos puramente distributivos, umanação poderia ter vantagem de barganha se seunegociador-chefe fosse um mero funcionário. Osdiplomatas agem racionalmente e não apenas sim- bolicamente quando se recusam a negociar comum interlocutor de posição inferior. Os parceirosde negociação dos estadunidenses têm razão em preocupar-se sempre que o Presidente dos Esta-dos Unidos está enfraquecido domesticamente.

    VI. INCERTEZA E TÉCNICAS DE BARGANHA

    Os negociadores do nível I são freqüentemente

    mal-informados a respeito da política do nível II, particularmente sobre o lado da oposição. Em 1978,os negociadores em Bonn estavam geralmenteequivocados sobre a política local dos demais pa-íses; por exemplo: a maioria dos funcionáriosestadunidenses não apreciou o complexo jogodoméstico que o Chanceler Schmidt praticou so- bre o tema da recuperação alemã. Igualmente,Snyder e Diesing informam que “os tomadoresde decisão em nossos casos apenas ocasionalmentetentam fazer essas avaliações e quando tentaramfizeram-no miseravelmente [...]. Geralmente os

    governos não analisam bem a política interna dosdemais países durante as crises [e eu