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COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente João Rosado Maldonado Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Graduação da Unidade Canoas Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor de Graduação das Unidades Externas Osmar Rufatto Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Capelão Geral Gerhard Grasel Ouvidor Geral Eurilda Dias Roman DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Editor Plauto Faraco de Azevedo Editor Associado César Augusto Baldi Conselho Editorial Airton Sott (ULBRA) Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Altayr Venzon (ULBRA) Etienne Picard (Université de Paris I/França) Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha) José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS) Luís Afonso Heck (ULBRA) Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ) Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA) Vladimir Passos de Freitas (UFPR) DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Vol. 5 - Número 1 - jan. a jun. de 2004 ISSN 1518-1685 U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000. Semestral 1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Jurídicas. CDU 34 CDD 340 Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen CORRESPONDÊNCIA/ADDRESS Universidade Luterana do Brasil PROGRAD/Divisão de Publicações Periódicas a/c Paulo Seifert, Diretor Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 127 92420-280 - Canoas/RS - Brasil E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. ENDEREÇO PARA PERMUTA: Universidade Luterana do Brasil Biblioteca Martinho Lutero Setor de aquisição Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 05 92420-280 - Canoas/RS E-mail: [email protected] O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade ex- clusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

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COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO”

PresidenteDelmar StahnkeVice-PresidenteJoão Rosado Maldonado

ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugênio Becker

Pró-Reitor de AdministraçãoPedro MenegatPró-Reitor de Graduação da Unidade CanoasNestor Luiz João BeckPró-Reitor de Graduação das Unidades ExternasOsmar RufattoPró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoEdmundo Kanan Marques

Capelão GeralGerhard Grasel

Ouvidor GeralEurilda Dias Roman

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRA

EditorPlauto Faraco de AzevedoEditor AssociadoCésar Augusto Baldi

Conselho EditorialAirton Sott (ULBRA)Aldacy Rachid Coutinho (UFPR)Altayr Venzon (ULBRA)Etienne Picard (Université de Paris I/França)Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA)Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha)José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS)Luís Afonso Heck (ULBRA)Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ)Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRA

Vol. 5 - Número 1 - jan. a jun. de 2004ISSN 1518-1685

U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana doBrasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000.

Semestral

1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil- Ciências Jurídicas.

CDU 34CDD 340

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero -ULBRA/Canoas

EDITORA DA ULBRAE-mail: [email protected]: Valter KuchenbeckerCapa: Everaldo Manica FicanhaEditoração: Roseli Menzen

CORRESPONDÊNCIA/ADDRESSUniversidade Luterana do BrasilPROGRAD/Divisão de Publicações Periódicasa/c Paulo Seifert, DiretorRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 12792420-280 - Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]

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2 Direito e Democracia vol.5, n.1, 2004

Índice

3 EditorialEditorialEditorialEditorialEditorial

Artigos

7. A tutela da posse na Constituição e no novo Código Civil, de Teori AlbinoZavascki

29. A Constituição deve constituir, de Léo Brust.

49. La percepcion occidental de los conflictos en el mundo musulmán: cultura frentea politica, de Gema Martín-Muñoz.

71. Premissas para uma adequada reforma do Estado, de Wilson Steinmetz.

85. Existe a única resposta jurídica correta?, de Jayme Weingartner Neto.

121. Da água: considerações jurídico-ambientais, de Plauto Faraco de Azevedo.

127. O casamento e a união estável na perspectiva do novo Código Civil Brasileiro,de Julio Cesar Garcia Ribeiro.

147. As espécies tributárias em face da Constituição Federal de 1988, de MariaEunice de Paula.

Dossiê terrorismo, tortura e direitos humanos

169. O terror e o ataque às liberdades civis, de Ronald Dworkin

187. La tortura judicial en el antiguo régimen. Orden procesal y cultura, de AlejandroAgüero.

223. A restrição de direitos fundamentais e o 11 de setembro: breve análise dedispositivos polêmicos do Patriot Act., de Vinicius Diniz Vizzotto.

257. Qual o futuro do sistema de prevenção à guerra da Carta das Nações Unidas?Reflexões sobre a guerra do Iraque, de Richard Falk.

Documento Histórico

275. Conferência proferida na entrega do Prêmio Nobel da Paz de 2003 para Shirin Ebadi.

281.281.281.281.281.Normas EditoriaisNormas EditoriaisNormas EditoriaisNormas EditoriaisNormas Editoriais

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Editorial

Uma ode à deusa Métis: prudência,serenidade e crítica da intolerância

Na mitologia grega, Métis é a primeira esposa de Zeus e deu a Cronosuma poção, que o fez vomitar, junto com uma pedra, todos os filhos queengolira. Foi seduzida por Zeus que, sabedor que estava grávida e que ofilho seria o senhor do universo, a engoliu, para não correr o risco deperder seu poder. Passando mal, com terrível dor de cabeça, pediu aHefestos que lhe abrisse a cabeça, brotando desta Palas Atena, deusa dasabedoria e das artes, que tomou assento no conselho dos deuses e foi aprincipal conselheira do pai.1

Ao contrário da interpretação e do significado que Francis Baconatribui à deusa - como Conselho e, portanto, representando os segre-dos de governo2 , Marilena Chauí destaca que, sendo em realidade onome grego para a prudência, Métis representa a inteligência prática,em contraposição à inteligência teórica. A pessoa dotada de “métis” écapaz de: a) “num único golpe de vista, perceber o todo: tinha o sensode oportunidade, ou sentimento de kairós, do momento oportuno”, emque a sua atuação seria eficaz; b) encontrar ou de criar “um caminhoonde não havia caminho: diante da aporia, abre um caminho”; c) es-preitar, “de saber observar de longe” e de “produzir uma estratégiapara intervir”. 3

1 Nas “Eumênides”, de Ésquilo, ao proferir o seu famoso voto de desempate - que guarda seu nome-, selando odestino e, portanto, a absolvição de Orestes pela morte da mãe, ela afirma: “Jamais, jamais, pronunciei, écerto, uma palavra, em minhas profecias, que não fosse por Zeus determinada” e, tendo em vista que “nãotive mãe alguma”, “o direito paterno e a varonil supremacia que prevalece em tudo” levam seu “coração àlealdade” ( ÉSQUILO. A trilogia de Orestes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988, p. 148 e 153)

2 BACON, Francis. A sabedoria dos antigos. São Paulo: UNESP, 2002, p. 95.3 CHAUÍ, Marilena. “ Se não mudar, Lula pra quê?”, Primeira Leitura, São Paulo ( 17): julho 2003, p. 28.

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4 Direito e Democracia vol.5, n.1, 2004

Métis remete, por sua vez, a duas variáveis. A primeira, como destacacoincidentemente Jayme Weingartner na sua contribuição sobre a ques-tão hermenêutica da “única resposta correta” (ou da “melhor respostapossível”), é “mitezza”, o título de um livro de Norberto Bobbio, traduzi-do, no Brasil, pelo nome de “Elogio da serenidade”. Neste, o falecidoautor italiano destacava que esta virtude tinha como opostos a arrogân-cia, a prepotência e insolência, estando mais próxima, portanto, da com-paixão e da simplicidade. A segunda é que, justamente, “direito mite”-traduzido para o espanhol como “derecho dúctil”- foi a expressão escolhi-da por Zagrebelsky para designar os traços de um sistema jurídico maisdinâmico, plural e complexo. E é objeto de análise, ainda, por Léo Brust,que verifica a viabilidade de tal teoria no contexto de países em desen-volvimento.

Prudência, serenidade e ductibilidade estão presentes nas considera-ções que o tema da tolerância tem despertado no mundo atual. Estasquestões ficam mais candentes, ainda, nos diversos textos aqui incluídos.Gema Martín-Muñoz, por exemplo, criticando tanto uma concepçãoessencialista, quanto uma concepção orientalista, relativamente aos mu-çulmanos, destaca o crescimento da islamofobia e procura rechaçar vi-sões etnocêntricas em relação ao outro e, desta forma, se posiciona emmanifesta luta contra a intolerância.

O primeiro dossiê temático da “Direito e Democracia”, centrado noterrorismo, tortura e direitos humanos, avança pontos que, até o ata-que às Torres Gêmeas, seriam não somente impensáveis, mas também“intoleráveis”. Ronald Dworkin, por um lado, salienta que a luta contra oterrorismo não é incompatível com um sistema de proteção aos direitoscivis. No mesmo sentido, é a contribuição de Vinicius Vizzotto ao subme-ter ao teste do “princípio da proporcionalidade” algumas das mais impor-tantes restrições de direitos advindas com o “Patrioct Act”, cujo nome,inclusive, é um destacado eufemismo de um nacionalismo exacerbado euma ode ideológica ao combate ao terrorismo. Richard Falk, por outrolado, também destaca que o sistema de proteção à guerra, tal como pre-visto na Carta das Nações Unidas, não necessita, necessariamente, sertotalmente reformulado, para responder às questões do megaterrorismo,da intervenção humanitária e da guerra do Iraque. Alejandro Agüeroanalisa a questão da tortura no “Antigo Regime”, a partir de seus aspec-tos processuais e culturais, o que parece evidenciar a constatação deBalakrishnan Rajagopal no sentido de que a definição do que é cruel,

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desumano e degradante, em especial a proibição da tortura, é um “con-ceito legal que reproduz as estruturas coloniais de poder e de cultura”, apartir de uma distinção “esquizofrênica” entre “sofrimento necessário” e“sofrimento desnecessário”4 , estigmatizando as “práticas locais’ como tor-tura e reforçando a centralidade do Estado, justamente ao invisibilizardeterminados sofrimentos que são tidos como ”necessários”, do qual aviolência contra a mulher é um dos mais gritantes.

Aliás, a assimetria de tratamento jurídico, no novo Código Civil, emrelação ao casamento e à união estável, tratada no artigo de Julio CesarGarcia Ribeiro, a par de proceder, no que diz respeito à última, a umadisciplina inferior àquela reconhecida pela jurisprudência, e prejudicial,em muitos pontos, à mulher, talvez devesse, também, ser submetida aoteste do princípio da proporcionalidade, verificando-se se as distinções-trazidas pela nova legislação- são necessárias, adequadas e proporcionaisem sentido estrito. Por sua vez, a assimetria entre o Poder tributante e ocontribuinte é objeto da contribuição de Maria Eunice de Paula, em quesalienta a necessidade de as espécies tributárias servirem como “limita-ções materiais ao poder de tributar” e, desta forma, como mecanismo decontrole de constitucionalidade das leis. Também no âmbito constitucio-nal é o destaque dado por Wilson Steinmetz para a questão da reforma doEstado, que, segundo o autor, deve ter em conta a função estratégica doEstado, a crise do Estado-nação, a questão democrática no processo deglobalização e a posição preferencial dos direitos fundamentais. PlautoFaraco de Azevedo, tecendo considerações jurídico-ambientais sobre aquestão da água, destaca que o problema é, também, de “democracia esolidariedade”. O Min. Teori Albino Zavascki, por sua vez, analisa a questãoda posse e da propriedade, tanto no aspecto civil, quanto no aspecto cons-titucional, para, ao final, tecer comentários sobre os novos conflitospossessórios, seja envolvendo as questões de desapropriação indireta, sejarelacionados com as ocupações de áreas urbanas e rurais.

Completando um número que ressalta a serenidade, a prudência, anoção de limites, a defesa dos direitos fundamentais e o pluralismo, emantípoda à intolerância, o discurso proferido pelo Prêmio Nobel da Paz,Shirin Ebadi, primeira mulher muçulmana distinguida com o prêmio, éum documento histórico da mais alta relevância. Critica, por um lado, os

4 RAJAGOPAL, Balakrishnan. International law from below- development social movements and Third World Resistance.New York: Cambridge University, 2003, p. 182-183.

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6 Direito e Democracia vol.5, n.1, 2004

Estados que, nos últimos anos, “violaram os princípios universais e as leisdos direitos humanos ao utilizar os eventos de 11 de setembro e a guerracontra o terrorismo internacional como pretexto”, mas põe, em relevo,por outro lado, que “a sina discriminatória das mulheres nos estadosislâmicos, seja na esfera do direito civil ou no domínio da justiça social,política e cultural, também tem suas raízes na cultura patriarcal e domi-nada pelos homens que prevalece nessas sociedades, e não no islã”. Des-ta forma, faz coro à advertência de Abdoolkarim Vakil5 de que a lógicaque “configura o discurso do Islão como problema reproduz, redefinidosagora como problemas do multiculturalismo, da governação, da tolerân-cia e da segurança, as mesmas preocupações identitárias e securitáriasgeradas no contexto colonial”. Este desafio, que perpassa, incidentalmenteos textos aqui reunidos, encontra eco nas palavras finais proferidas porEbadi:

Se o século XXI quiser se libertar do ciclo de violência,atos de terror e guerra, e evitar a repetição da experiênciado século XX – o mais cheio de desastres da história dahumanidade – não há outra forma a não ser compreendere colocar em prática todos os direitos humanos para ahumanidade como um todo, independentemente de raça,gênero, fé, nacionalidade ou status social.

Por fim, constitui uma das grandes ironias da história que o 11 desetembro seja lembrado pelo ataque terrorista às Torres Gêmeas e pelaescalada de guerra preventiva por parte dos Estados Unidos e, portanto,pela guerra e violência, e não pela luta iniciada contra o domínio coloni-al britânico, na mesma data, no ano de 1906, por Mohandas Gandhi, ummovimento que se denominou “Satyaragha” (“sat”: verdade; “agraha”:firmeza) e que se caracterizou justamente pela não-violência.

César Augusto BaldiEditor associado

5 VAKIL, Abdoolkarim. Pensar o Islão: questões coloniais, interrogações pós-coloniais. Revista Crítica de CiênciasSociais, (69): 2004.

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vol.5, n.1, 2004 Direito e Democracia 7Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.7-28

Artigos

A Tutela da Posse na Constituiçãoe no Novo Código Civil

Possession Protection in BrazilianConstitution and in the New Civil

Code

TEORI ALBINO ZAVASCKI

Ministro do STJ - Professor de Processo Civil na UFRGS

RESUMO

Analisando a regulação normativa da propriedade e atento aos princípios cons-titucionais, o autor destaca perspectivas constitucionais para os novos conflitospossessórios (desapropriação indireta e ocupações coletivas de áreas urbanas erurais).Palavras-chave: Direito constitucional, Posse e propriedade, Conflitos posses-sórios.

ABSTRACT

The author analyzes the property normative regulation and, considering the consti-tutional principles, presents constitutional perspectives to the new possession con-flicts (indirect dispossession and collective occupations of urban and rural areas).Key words: Constitutional law, possession and property, possession conflicts.

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INTRODUÇÃO

Discorrer sobre a tutela da posse no atual sistema jurídico brasileiropressupõe superar a noção, ainda corrente, de que ela representa, sim-plesmente, a exteriorização do direito de propriedade. É sabido que oinstituto da propriedade, fruto de construção jurídica de muitos séculos,que teve seu caráter de inviolabilidade absoluta associado à influênciade idéias fundadas no individualismo, recebeu, mais modernamente, umaconfiguração relativizadora, inspirada sobretudo pelo princípio da “fun-ção social da propriedade”, do qual decorre um conjunto de limitaçõesao exercício daquele direito. Porém, tal princípio não está, de forma algu-ma, confinado a mero apêndice do direito de propriedade, a simples ele-mento configurador de seu conteúdo. É muito mais do que isso. Por fun-ção social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito àutilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que suaforça normativa ocorre independentemente da específica consideraçãode quem detenha o título jurídico de proprietário. Os bens, no seu senti-do mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estãosubmetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em simesmo. Bens, propriedades, são fenômenos da realidade. Direito - e, por-tanto, direito da propriedade - é fenômeno do mundo dos pensamentos.Utilizar bens, ou não utilizá-los, dar-lhes ou não uma destinação que atendaaos interesses sociais, representa atuar no plano real, e não no campopuramente jurídico. A função social da propriedade (que seria melhorentendida no plural, “função social das propriedades”), realiza-se ou não,mediante atos concretos, de parte de quem efetivamente tem a disponi-bilidade física dos bens, ou seja, do possuidor, assim considerado no maisamplo sentido, seja ele titular do direito de propriedade ou não, seja eledetentor ou não de título jurídico a justificar sua posse.

Bem se vê, destarte, que o princípio da função social diz respeito maisao fenômeno possessório que ao direito de propriedade. Referida função“é mais evidente na posse e muito menos na propriedade”, observa a dou-trina atenta, e daí falar-se em função social da posse1 . A relação de perti-nência entre posse e função social permeia-se, como se verá, no atualregime da Constituição e está evidente também na orientação adotada

1 - Luiz Edson Fachin, A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea, Porto Alegre, Sérgio AntônioFabris Editor, 1988, p. 19.

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no novo Código Civil. Nesse Código, conforme o testemunho qualificadodo presidente da comissão que elaborou o Anteprojeto, Professor MiguelReale, “foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em consonân-cia com os fins sociais da propriedade”2 . Resulta assim plenamente justi-ficada a tutela jurídica da posse como instituto autônomo, a merecer,independentemente de sua relação com o direito de propriedade, umtrato especial, apropriado à sua vocação natural de instrumento concre-tizador daquele importante princípio constitucional.

Fenômenos jurídicos autônomos, posse e propriedade convivem, de ummodo geral, harmonicamente, em relação de mútua complementaridade,refletindo, cada um deles, princípios constitucionais não excludentes, mas,ao contrário, também complementares um do outro. Direito de proprieda-de e função social das propriedades são, com efeito, valores encartados naConstituição como direitos fundamentais (art. 5o, XXII e XXII) e comoprincípios da ordem econômica (art. 170, II e III), com força normativa demesmo quilate e hierarquia. Vistos em sua configuração abstrata, represen-tam mandamentos sem qualquer antinomia, a merecer, ambos, idêntica eplena observância. Entretanto, não há princípios constitucionais absolutos.E uma das manifestações mais comuns desta verdade fica patenteada nassituações em que, por circunstâncias de caso concreto, se mostra impossí-vel dar atendimento pleno a dois princípios de mesma hierarquia. Nemsempre, por exemplo, o princípio da liberdade de informação pode ser aten-dido plenamente sem limitar o da privacidade, e vice-versa. Nem sempre oprincípio da presunção da inocência pode conviver com o da segurançapública. Nem sempre o princípio da efetividade da jurisdição pode ser asse-gurado plenamente sem restrição ao da ampla defesa. Ora, nos casos emque, circunstancialmente, a realidade dos fatos acarretar fenômenos decolisão entre princípios da mesma hierarquia, outra alternativa não existesenão a de criar solução que resulte em concordância prática entre eles, oque somente será possível a partir de uma visão relativizadora dos princípi-os colidentes. Ou seja: a solução do caso concreto importará, de algumaforma e em alguma medida, limitação de um ou de ambos em prol de umresultado específico. Daí porque se afirma que os princípios têm força nor-mativa, mas não absoluta. São, na verdade, “mandados de otimização, quese caracterizam porque podem ser cumpridos em diversos graus e porque amedida ordenada do seu cumprimento depende não só das possibilidades

2 - Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, 2a ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p. 8.

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práticas, mas também das possibilidades jurídicas”, sendo certo que “o campodas possibilidades jurídicas está determinado pelos princípios e regras queoperam em sentido contrário”3 .

Assim também pode ocorrer, eventualmente, entre direito de proprie-dade e função social da propriedade. Não obstante sua inegável relaçãode complementaridade e, quando vistos no plano normativo, da naturalaptidão para sua convivência harmônica, pode ocorrer que, em determi-nadas situações concretas, não seja possível o pleno atendimento de umdeles sem comprometer, ainda que em parte, o outro, ou vice-versa. É oque ocorre, por exemplo, quando, em relação a determinado bem, o de-tentor da titulação jurídica é omisso no desempenho da função social, aqual, todavia, vem sendo exercida por longo tempo e em sua plenitudepor outrem, possuidor não-proprietário. Em casos tais, atender pura e sim-plesmente a eventual reivindicação do bem pelo proprietário representa-rá, certamente, garantir seu direito de propriedade, mas significará tam-bém, sem sombra de dúvida, comprometer a força normativa do princípioda função social. Já a solução contrária aos interesses do reivindicanteoperará em sentido inverso: atenderá a função social, mas limitará a forçanormativa do princípio norteador do direito de propriedade.

Para situações concretas dessa natureza, o legislador, como se verá,tem buscado soluções harmonizadoras, formulando regras de superaçãodo impasse que, sem eliminar do mundo jurídico nenhum dos princípioscolidentes, fazem prevalecer aquele que, segundo o critério de políticalegislativa, se evidencia preponderante em face do momento histórico edos valores jurídicos e sociais envolvidos. As normas disciplinadoras dasvárias formas de usucapião representam exemplos paradigmáticos de me-canismos de solução de conflitos da espécie. Todavia, a lei, criada paraatuar no futuro, nem sempre consegue intuir os múltiplos fenômenos decolisão de princípios, até porque a vida é dinâmica, apresentando a cadadia novidades que o legislador, que atuou no passado, não imaginavapudessem surgir. Ora, nesses casos, em que há falta ou insuficiência deregra legal de harmonização de princípios colidentes, cumpre as juiz, elepróprio, criar a norma apta eliminar o conflito. A chamada desapropria-ção indireta constitui, conforme se demonstrará, fórmula tipicamente pre-toriana de resolver o fenômeno concreto de colisão entre o princípio ga-

3 - Robert Alexy, Derecho y Razon Práctica, trad. Manuel Atienza, México, DF, Distribuciones Fontanara, 1993,

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rantidor do direito de propriedade e o que impõe às propriedades umadestinação compatível com a função social.

À luz dessas premissas fundamentais melhor se compreenderá (a) adimensão constitucional da tutela da posse e (b) a legitimidade dos no-vos institutos, a ela relacionados, constantes do Código Civil, temas obje-to da Parte I destas considerações. São premissas que, ademais, fornecembase sólida para compreender e legitimar soluções pretorianas de antigose novos conflitos possessórios, temas que serão enfrentados na Parte II.

Parte I: A tutela da posse na constituição e nocódigo civil

1. Posse na Constituiçãoa) Autonomia pela funcionalidade:

A Constituição Federal, que estabelece enfaticamente ser “garantidoo direito de propriedade” (art. 5o, XXII), não tem dispositivo semelhanteem relação à posse. A disciplina da posse, e a correspondente tutela jurí-dica, se dá implícita e indiretamente, na medida e em consideração àquiloque ela representa como concretização do princípio da função social daspropriedades. Com efeito, já se afirmou que tal princípio diz respeito àutilização dos bens e, como tal, refere-se a comportamentos das pessoas –proprietários ou não proprietários – que detém o poder fático, a efetivadisposição dos bens, assim considerados no seu mais amplo sentido. Ouseja: é princípio que se dirige ao possuidor, independentemente do títuloda sua posse.

Sob tal ponto de vista, é possível detectar no ordenamento constituci-onal diversas maneiras de tratamento do tema: tutela da posse que impor-ta limitação ao direito de propriedade, tutela da posse paralelamente aodireito de propriedade e, finalmente, tutela da posse como modo de aqui-sição do direito de propriedade. Veja-se, por exemplo, a disciplina domeio ambiente, estabelecida no artigo 225. Definido como direito de to-dos, “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”o meio ambiente é tutelado pela Constituição mediante regras destina-das a “preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, que são impostascomo deveres do Poder Público e da coletividade. Portanto, são limita-

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ções, não ao direito de propriedade, mas à utilização das propriedades, etêm como destinatários todos os possíveis “usuários” dos recursos ambien-tais, vale dizer, todos os que estejam, de alguma forma, habilitados a uti-lizá-los, a “possui-los”, independentemente da sua condição de proprietá-rio. No seu parágrafo 4o, o dispositivo constitucional trata especificamen-te da Floresta Amazônica, da Mata Atlântica, da Serra do Mar, do Panta-nal Mato-Grossense e da Zona Costeira, definidos como “patrimônio na-cional”, cuja “utilização” deve ocorrer dentro de condições que assegu-rem a preservação ambiental. Não é despiciendo insistir, inclusive pelasrepercussões práticas que daí advém, que se trata ali de forma especial dedisciplina do uso do bem, da posse em sentido lato, e não do direito depropriedade, dessas extensas áreas do território nacional. As conseqüên-cias práticas dessa distinção são percebidas, por exemplo, nas inúmerasquestões judiciais, relativas ao Parque Estadual da Serra do Mar, no Esta-do de São Paulo, envolvendo o Poder Público e os proprietários, estesreclamando indenizações milionárias, por suposta “desapropriação indi-reta” em face das limitações visando a preservação da área4 .

Significativa, também, a disciplina constitucional dada às terras ocu-padas pelos povos indígenas, cuja propriedade é da União (CF, art. 20,XI): “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a suaposse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo,dos rios e dos lagos nelas existentes” (art. 231, § 2o), sendo vedada a suaremoção daqueles locais “salvo, ad referendum do Congresso Nacional,em caso de catástrofe que ponha em risco a sua população, ou no interes-se da soberania do País, após a deliberação do Congresso Nacional, ga-rantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”(§ 5o). É modo especialíssimo de tutela da posse em favor de não-propri-etário, e paralelamente ao direito de propriedade, com a finalidade deatingir a peculiar função social por ela desenvolvida, já que se trata decondição indispensável para preservar e assegurar aos índios sua organi-zação social, costumes, línguas, crenças e tradições, compromisso decor-rente do artigo 231 da Constituição.

4 - Sobre o tema: Manoel de Queiroz Pereira Calças, “Desapropriação indireta e o Parque Estadual da Serra doMar”, Revista de Direito Ambiental, n. 6, p. 62.

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b) Casos de proteção específica

Além da tutela da posse com a finalidade de concretizar objetivosexpressamente enunciados, como nos exemplos acima, a Constituiçãoestabeleceu duas hipóteses específicas de tutela do possuidor em face doproprietário, viabilizando, por meio dela, aquisição do direito de proprie-dade. São formas especiais de usucapião. Num primeiro caso, a posse étutelada para valorizar a função social representada pelo trabalho rural epela moradia do pequeno agricultor. É a usucapião pro-labore, prevista noartigo 191: “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urba-no, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área deterra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a pro-dutiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade” .

Com semelhante finalidade, agora para fazer preponderar, contra odireito de propriedade, o princípio da função social representado pelaposse do bem utilizado como moradia de pessoa carente, é a espécie deusucapião de que trata o artigo 183: “Aquele que possuir como sua áreaurbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos,ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de suafamília, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de ou-tro imóvel urbano ou rural” .

Evidencia-se, do exposto, que a tutela constitucional da posse opera-se pela funcionalidade, vale dizer, em vista da obtenção de objetivos es-peciais, enunciados de forma expressa ou compreendidos, genericamen-te, no princípio da função social das propriedades. Este mesmo desideratoestá presente no novo Código Civil, como adiante se verá.

2. Posse no novo Código Civila) Posse simples:

As regras sobre posse encartadas no antigo Código Civil estão reprodu-zidas, sem maiores alterações de conteúdo, pelo novo Código. Manteve-seinclusive a estrutura do respectivo Livro (III), referente ao Direito das Coisas,que, em ambos é a seguinte: “Título I – Da posse; Capítulo I – Da posse esua classificação; Capítulo II – Da aquisição da posse; Capítulo III – Dosefeitos da posse; Capítulo IV – Da perda da posse”. O anterior artigo 485,básico para a definição do instituto, tem correspondência no atual 1.196,

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nos seguintes termos: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fatoo exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio”.Segundo a exposição de motivos da Comissão que elaborou o Anteprojeto,a manutenção das principais regras que atualmente regulam a posse comosimples poder manifestado sobre uma coisa (a que se pode denominar “pos-se simples”, em contraposição à posse qualificada de que adiante se trata-rá), representa “demonstração cabal da objetividade crítica”, que assimbuscou “salvaguardar o cabedal da valiosa construção doutrinária e juris-prudencial resultante de mais de meio século de aplicação”5 .

b) Posse qualificada:

Porém, sem comprometimento dos ganhos doutrinários e jurisprudenciaisenunciados, o novo Código traz avanços importantes, a começar pela novaconfiguração do instituto da usucapião. Assim, no que se refere à usucapiãoextraordinária (fundada em posse independentemente de justo título e boa-fé), reduz-se o prazo (CC/16, art. 550) de vinte para quinze anos (art. 1.238),em se tratando de posse simples; e reduz-se mais ainda, para dez anos, “se opossuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nelerealizar obras ou serviços de caráter produtivo” (§ único). E, no que diz res-peito à usucapião ordinária (posse com justo título e boa fé), cujo prazo exigi-do era de quinze anos entre ausentes e dez entre presentes (CC/16, art. 551),o novo Código fixa o prazo em dez anos (art. 1.242), se de posse simples setratar, reduzindo-o para cinco “se o imóvel houver sido adquirido, onerosa-mente, com base em transcrição constante do registro próprio, canceladaposteriormente, desde que os possuidores nele tiverem a sua moradia, ourealizado investimento de interesse social e econômico” (§ único).

Já aí se percebe a notável tutela que se passa a dar à chamada “possequalificada”, marcada por um elemento fático caracterizador da funçãosocial: é a posse exercida a título de moradia e enriquecida pelo trabalhoou por investimentos. Surge, assim, um novo conceito de posse, decorren-te do que Miguel Reale denominou “princípio da socialidade”, distintada que decorre dos “critérios formalistas da tradição romanista, a qualnão distingue a posse simples, ou improdutiva, da posse acompanhada deobras e serviços realizados nos bens possuídos”6 .

5 Diário do Congresso Nacional de 13.06.75, Seção I, Suplemento B, p. 120.6 Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, cit., p. 33.

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E essa mesma posse qualificada que fundamenta as espécies de usuca-pião, agora incorporadas ao Código, de que tratam os artigos 191 e 183 daConstituição Federal, a saber: a usucapião de imóvel rural fundada emposse qualificada pelo trabalho e pela habitação (art. 1.239) e a usucapiãode imóvel urbano fundada em posse qualificada pela habitação (art. 1.240).

c) O § 4o do artigo 1.228 do Código Civil

Considerado o ponto alto do novo Código, no que se refere à tutela daposse, é o instituto da chamada “desapropriação judicial”. Segundo dis-põe o § 4o, do artigo 1.228, “o proprietário pode também ser privado dacoisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininter-rupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número depessoas, e estas houverem nela realizado, em conjunto ou separadamen-te, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômicorelevante”. E o § 5o: “No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará ajusta indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentençacomo título para a transcrição do imóvel em nome dos possuidores”.

Para Miguel Reale, é “inovação do mais alto alcance, inspirada nosentido social do direito de propriedade, implicando não só novo concei-to desta, mas também novo conceito de posse, que se poderia qualificarcomo sendo posse-trabalho (...). Na realidade, a lei deve outorgar especi-al proteção à posse que se traduz em trabalho criador, quer este se corpo-rifique na construção de uma residência, quer se concretize em investi-mentos de caráter produtivo ou cultural. Não há como situar no mesmoplano a posse, como simples poder manifestado sobre uma coisa, ‘como se’fora atividade do proprietário, com a ‘posse qualificada’, enriquecida pe-los valores do trabalho. Este conceito fundante de ‘posse-trabalho’ justifi-ca e legitima que, ao invés de reaver a coisa, dada a relevância dos inte-resses sociais em jogo, o titular da propriedade reivindicada receba, emdinheiro, o seu pleno e justo valor, tal como determina a Constituição.Vale notar que, nessa hipótese, abre-se, nos domínios do direito, uma vianova de desapropriação, que se não deve considerar prerrogativa exclusi-va dos Poderes Executivo ou Legislativo. Não há razão plausível para re-cusar ao Poder Judiciário o exercício do poder expropriatório em casosconcretos, como o que se contém na espécie analisada”7 .

7 - Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, cit., p. 82.

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Segundo resulta do dispositivo transcrito, são os seguintes os requisi-tos mais importantes do novel instituto: a) quanto ao bem: há de se tratarde imóvel consistente de “extensa área”, objeto de ação de reivindica-ção; b) quanto à posse: há de ser ininterrupta e de boa-fé, por mais decinco anos, qualificada pela realização de obras e serviços consideradosde interesse social e econômico relevante; c) quanto aos possuidores:devem ser em “considerável número”. A aquisição da propriedade pres-supõe o pagamento de um preço, correspondente à justa indenização fi-xada pelo juiz. Embora não seja expresso a respeito o dispositivo, não hádúvida de que tal pagamento deve ser feito pelos possuidores, réus naação reivindicatória.

Dogmaticamente, a instituto desafiará a argúcia da doutrina e, sobre-tudo, dos juizes. Fundado em diversos conceitos abertos (“extensa área”,“considerável número de pessoas”, “obras e serviços de interesse econô-mico e social relevante”, “justa indenização”), haverá de ter sua finalida-de social bem compreendida para que possa ser adaptado às variantescircunstanciais do cada caso concreto. Por outro lado, o conflito de inte-resses poderá surgir não apenas no âmbito de ações reivindicatórias, comosuposto no dispositivo, mas também em interditos possessórios, não sendoplausível negar-se, nessas situações, a utilização, pelos possuidores de-mandados, das prerrogativas asseguradas pelo instrumento agora propos-to. O que se quer, em suma, enfatizar, é que a interpretação teleológicado dispositivo haverá de presidir a sua aplicação, seja para preenchervalorativamente os conceitos abertos, seja para acomodar sob seu pálio aspossíveis variantes análogas que a realidade vier a apresentar no futuro.

A legitimidade constitucional do novo instituto foi objeto de questio-namento, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado. Seus opo-sitores sustentam haver nele inconstitucionalidade evidente, por ofensaao direito de propriedade, que não pode ser comprometido a não ser pelasformas desapropriatórias que a Constituição prevê. Os pareceres emitidosna Câmara, pela constitucionalidade, têm por base o argumento de quese está diante de desapropriação por interesse social8 . Bem se vê que asduas orientações, pró e contra, partem da suposição, influenciada certa-mente pela exposição de motivos, de que o instituto em causa é espéciede desapropriação. Ora, não se pode negar a fragilidade de tal afirmativa.A desapropriação é ato de natureza administrativa e, no caso, o ato do

8 Ver, a propósito: Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil,, p. 34.

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juiz é tipicamente jurisdicional: ele simplesmente resolve um conflito deinteresses entre particulares, decidindo num sentido ou em outro, segun-do estejam atendidos ou não os pressupostos legais. O juiz não poderá“desapropriar” sem que os interessados o peçam expressamente, até por-que eles é que sofrerão os ônus correspondentes, de pagar o preço e serãoeles, e não o Poder Público, que adquirirão a propriedade. O Estado se-quer é parte no processo, atuando nele como órgão jurisdicional Se fôs-semos comparar com algum instituto já formado e sedimentado em nossosistema, haveríamos de fazê-lo, não com o da desapropriação, mas com oda usucapião. Pelos seus requisitos (“posse ininterrupta e de boa-fé, pormais de cinco anos”) assemelha-se à usucapião, com a única diferença deque, para adquirir a propriedade, os possuidores-usucapientes ficam su-jeitos a pagar um preço. Ou seja: é espécie de usucapião onerosa.

Todavia, comparações à parte, o que o novo instituto faculta ao juiznão é desapropriar o bem, mas sim converter a prestação devida pelosréus, que de específica (de restituir a coisa vindicada), passa a ser alterna-tiva (de indenizá-la em dinheiro). Nosso sistema processual prevê váriashipóteses dessa natureza, notadamente em se tratando de obrigações defazer e de obrigações de entregar coisa. É de se mencionar, pela similitudecom a situação em exame, o caso em que há apossamento de bem particu-lar pelo Poder Público, sem o devido processo legal de desapropriação(desapropriação nula). Também nesse caso nega-se ao proprietário a fa-culdade de reivindicá-lo – seja por ação reivindicatória, seja por interdi-tos possessórios – convertendo-se a prestação em perdas e danos. É o queestabelece a Lei das Desapropriações (Decreto Lei n. 3.365, de 21.06.41),art. 35: “Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública,não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidadedo processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, re-solver-se-á em perdas e danos”. No mesmo sentido: Estatuto da Terra(Lei n. 4.504, de 30.11.64), art. 23 e a Lei Complementar n. 76, de 06.07.93,art. 21, tratando da desapropriação para fins de reforma agrária. No casoda denominada “desapropriação judicial”, ora em comento, a situaçãofática valorizada no Código é também a “incorporação” do imóvel a umafunção social, representada pelas obras e serviços relevantes nele implan-tados. Solução em tudo semelhante, atribuindo ao juiz a possibilidade deconverter prestação específica em alternativa – e cuja constitucionalida-de não é posta em questão - é dada pelo novo Código no § único do artigo1.254, nos casos em que alguém edifica ou planta em terreno alheio. Nes-ses casos, diz o dispositivo, “se a construção ou a plantação exceder con-

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sideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ouedificou adquirirá a propriedade do solo, mediante indenização fixadajudicialmente, se não houver acordo”. Como se vê, é situação assemelha-da à do § 4o em comento: lá como aqui, converte-se a prestação específi-ca de restituir a coisa em prestação alternativa de repô-la em dinheiro.

Se de desapropriação não se trata. como justificar, então, a constituci-onalidade de normas como a do § 4o do artigo 1228 do Código Civil? Emnosso entender, o fundamento da legitimidade pode ser buscado a partirdas premissas aludidas na parte introdutória do presente estudo. Comefeito, o dispositivo do Código constitui forma de solucionar um fenôme-no de colisão entre o princípio do direito de propriedade (que inclui afaculdade de utilizar a ação reivindicatória e os interditos possessóriospara haver a coisa de quem injustamente a possua – Código Civil, art.1.228, caput), e o princípio da função social da propriedade (consideradoatendido, nas circunstâncias, pela forma e pelo modo como o bem estásendo utilizado pelos possuidores não-prorietários). Ponderando os valo-res constitucionais em conflito, o novo Código opta por solução que privi-legia o princípio da função social. Aliás, o próprio Professor Reale, empassagem referida, deixou claro que “não há como situar no mesmo planoa posse, como simples poder manifestado sobre uma coisa, ‘como se’ foraatividade do proprietário, com a ‘posse qualificada’, enriquecida pelosvalores do trabalho. Este conceito fundante de ‘posse-trabalho’ justifica elegitima que, ao invés de reaver a coisa, dada a relevância dos interessessociais em jogo, o titular da propriedade reivindicada receba, em dinhei-ro, o seu pleno e justo valor, tal como determina a Constituição”9 . Nessalinha também as observações do Professor Luiz Edson Fachin, ao analisaras emendas apresentadas pelos Senadores Gabriel Hermes (Emenda n.135) e Álvaro Dias (Emenda n. 141) propondo a supressão do dispositivo,por ofensa à garantia do direito de propriedade. Salientou ele que a ma-nutenção da proposta se justificava constitucionalmente por guardar co-erência “com o sentido de função social da propriedade”, sendo que a“alegada ‘garantia’ não pode estar acima do princípio constitucional dafunção social”10 . As citadas emendas foram rejeitadas no Senado justa-mente pela razão, constante do parecer do relator geral, Senador Josa-

9 - Miguel Reale, O Projeto ..., cit., p 82.10 - Sugestões encartadas em “O Projeto de Código Civil no Senado Federal”, Brasília, Senado Federal, 1998,

vol. II, páginas 311 e 317.

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phat Marinho, de que o instituto constante do Projeto “é uma decorrên-cia da ‘função social’ da propriedade, proclamada na Constituição”11 .

É justamente isso que ocorre também nas chamadas “desapropriaçõesindiretas”, a seguir vistas. A ação de desapropriação indireta, segundo oentendimento assentado no Supremo Tribunal Federal, “tem o caráter deação reivindicatória, que se resolve em perdas e danos, diante da impos-sibilidade do imóvel voltar à posse do proprietário, em face do caráterirrecorrível da afetação pública que lhe deu a Administração Pública”12 .

Parte II: Os novos conflitos possessórios:Perspectivas constitucionais para sua soluçâo

1. Desapropriação indiretaO instituto da usucapião, já sedimentado em nosso direito, e o da

chamada “desapropriação judicial”, agora desenhada no novo Código Civil,constituem, conforme se acabou de demonstrar, formas encontradas pelolegislador para dirimir crises de tensão concreta entre o direito de propri-edade e o princípio da função social das propriedades, ambos de estaturaconstitucional. Colisões semelhantes, todavia, podem ocorrer em circuns-tâncias novas, para as quais não se terá em mãos a fórmula previamenteestabelecida em lei para solucionar o impasse. Diante da omissão legal,cabe ao juiz criá-la. Afinal, “o juiz não se exime de sentenciar ou despa-char alegando lacuna ou obscuridade da lei” (CPC, art. 126). Terá comoparâmetro a analogia – que lhe permite adotar para o caso solução dadapelo legislador a caso semelhante – e os princípios gerais de direito, estesaplicados com a devida ponderação, à luz das circunstâncias e dos valo-res colidentes em concreto.

É o que tem ocorrido nos casos de desapropriação indireta. Concei-tua-se como tal a ocupação, pela Administração, de propriedade privada,sem observância de prévio processo de desapropriação, para implantar

11 - Parecer publicado em “O Projeto de Código Civil no Senado Federal”, Brasília, Senado Federal, 1998, vol.I, p. 386.

12 - Cláudia de Resende Machado de Araújo, “Desapropriação indireta”, Revista de Informação Legislativa, 131/277.

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obra ou serviço público. O ato inicial constitui, no entendimento maciçoda doutrina e da jurisprudência, típico esbulho possessório. Ocorre que,implantada a obra ou o serviço – e, portanto, afetado o bem a destinaçãode interesse público – surge conflito de interesses entre o proprietário(esbulhado) e a Administração. A solução dada pelo Judiciário é a deconverter a prestação específica (de restituir o bem) em prestação alter-nativa, de pagar o equivalente em dinheiro, um “justo preço”. Daí a de-nominação de desapropriação indireta.

Quem examina essa solução pretoriana à luz, exclusivamente, do direi-to de propriedade, chega à conclusão de sua manifesta inconstitucionali-dade. Isso porque, dizem os arautos dessa tese, a Constituição teve “umpropósito radical, que foi o de acobertar a propriedade particular contra asarremetidas do poder político. Para tanto, desenhou com milimétrica preci-são o seu perfil jurídico e, de parelha, indicou de modo exauriente as possibi-lidades tanto do seu despojamento definitivo quanto provisório”, e nessesentido qualificou a propriedade como “direito subjetivo inviolável”, (....)bem jurídico equiparável à vida, à liberdade e à segurança, que são osvalores da mais alta hierarquia, no sistema constitucional pátrio”13 .

Entretanto, olhada sob o prisma do interesse público e da destinaçãosocial do bem, pode-se legitimar constitucionalmente a solução judicial.Não teria sentido algum, com efeito, em nome do direito de propriedade,comprometer a obra pública já realizada e já incorporada a uma destinaçãocomunitária. Aqui, o princípio da função social, tomada no sentido amplo,deve ser privilegiado em face do estrito interesse particular do proprietário.A solução adotada, que se traduz pela conversão da prestação específica(restituição do bem) em prestação alternativa de perdas e danos, represen-ta, assim, criação pretoriana de regra para dirimir a colisão, no caso verifi-cada, entre o princípio do direito de propriedade e o da função social.Privilegia-se o segundo, mas sem comprometer inteiramente o primeiro,cuja satisfação in natura é substituída pela obrigação de indenizar.

2. Ocupações coletivas de áreas urbanas e ruraisFenômeno quase diário de nossa moderna realidade social é a ocupa-

ção, por parte de pessoas carentes, quase sempre organizadas em grupo,

13 - Carlos Ayres de Britto e José Sérgio Monte Alegre, “Desapropriação indireta – inconstitucionalidade”,Revista de Direito Público, 74/244.

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de terrenos ou prédios urbanos, particulares e públicos, para ali fixar suamoradia. Fatos idênticos têm ocorrido no campo, patrocinados tambémpor movimentos sociais organizados, nomeadamente o Movimento dosTrabalhadores Sem Terra – MST, em que áreas rurais são ocupadas porfamílias de camponeses, que nelas se instalam com suas barracas e seusinstrumentos de trabalho agrícola. São os modernos e graves conflitospossessórios, que geralmente redundam em demandas judiciais de inicia-tiva dos proprietários, a busca de tutela do seu direito de propriedade.Não raro, os fatos são até objeto de processos de natureza criminal, sobacusação de prática do delito de esbulho possessório e de formação dequadrilha para a prática de tal crime. Em nosso sistema, com efeito, oesbulho possessório está tipificado no art. 161, § 1o, II, do Código Penal,sujeitando à pena de detenção, de um a seis meses, e multa, quem “II –invade, com violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante o concursode mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulhopossessório”. E o crime de quadrilha ou bando (pena de reclusão, de um atrês anos), tem, à sua vez, a seguinte tipificação no artigo 288 do CódigoPenal, art. 288: “Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha oubando, para o fim de cometer crimes”.

Como solucionar juridicamente tais conflitos, é a questão que desafiajuristas e juizes. O exame da jurisprudência permite verificar que as de-cisões levam em especial consideração as peculiares circunstâncias docaso concreto, e não há como ser diferente, dadas as múltiplas facetasque tais espécies de conflito apresentam. Todavia, pode-se afirmar que,no que se refere às demandas de natureza cível, têm-se privilegiado, deum modo geral, a garantia do direito de propriedade. É que, diferente-mente do que ocorre nas hipóteses de desapropriação indireta, ou nas deusucapião especial pro-labore ou urbano (em que a tutela do possuidorocorre quando a afetação do bem ao patrimônio público, ou a sua desti-nação à moradia ou ao trabalho produtivo, já está plenamente consolida-da, o que legitima o privilégio ao princípio da função social), no caso dasocupações, a reação do proprietário ocorre imediatamente, de modo quenão se pode afirmar a existência, naquele momento, de uma situaçãofática por si só valiosa, do ponto de vista social ou jurídico, em favor dosocupantes, a ponto de permitir a limitação das faculdades decorrentesdos direito de propriedade em benefício de outro princípio constitucio-nal. Aliás, nem é isso, aparentemente, o que os movimentos sociais orga-nizados esperam obter com as ocupações. O que buscam, na verdade, é acriação de um fato político, apto a desencadear conseqüências de natu-

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reza também política, mais especificamente a da sensibilização dos gover-nantes no sentido de implantar políticas públicas que privilegiem o aces-so à moradia, à terra e à reforma agrária.

Há de se registrar, entretanto, a existência de corrente jurisprudenci-al em outro sentido, minoritária, reconhecendo a legitimidade da perma-nência, ainda que provisória, dos ocupantes da área, em nome “da garan-tia a bens fundamentais como mínimo social” das pessoas carentes14 . Damesma forma, no campo doutrinário, não se pode também deixar de con-siderar os valiosos posicionamentos, cada vez mais incisivos, na defesa darelativização sempre maior do princípio do direito de propriedade. Rea-ge-se, assim, ao quadro histórico do direito brasileiro, que deixa a im-pressão, já anotada com perplexidade, de que “tanto o constituinte quantoo legislador ordinário se preocupam mais com as técnicas de garantir aproteção da propriedade do que em resguardar o direito à vida”15 . Sãonessa linha, por exemplo, as posições de Fábio Konder Comparato, a sus-tentar: “Quando a Constituição declara, como objetivos fundamentaisdo Estado brasileiro, de um lado, a construção de uma sociedade livre,justa e solidária, e, de outro lado, a promoção do desenvolvimento naci-onal, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com aredução das desigualdades sociais e regionais (art. 3o), é óbvio que elaestá determinando, implicitamente, a realização pelo Estado, em todos osníveis – federal, estadual e municipal – de uma política de distribuiçãoeqüitativa das propriedades, sobretudo de imóveis rurais próprios à explo-ração agrícola e de imóveis urbanos adequados à construção de moradi-as. A não-realização dessa política pública representa, indubitavelmente,uma inconstitucionalidade por omissão” .(...). “O descumprimento dodever social de proprietário significa uma lesão ao direito fundamental deacesso à propriedade, reconhecido doravante pelo sistema constitucio-nal. Nessa hipótese, as garantias ligadas normalmente à propriedade, no-tadamente à da exclusão das pretensões possessórias de outrem, devemser afastadas (...). Quem não cumpre a função social da propriedade per-de as garantias, judiciais e extrajudiciais, de proteção da posse, inerentes

14 - Nesse sentido: Tribunal de Justiça do RGS, 19a Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 598 360 402, relatorpara o acórdão Des. Guinther Spode, julgado em 06.10.98, em cuja ementa constou: “Garantia a bensfundamentais como mínimo social. Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias acampadas emdetrimento do direito puramente patrimonial de uma empresa. Propriedade: garantia de agasalho, casa erefúgio do cidadão”.

15 - Isabel Vaz, Direito Econômico das Propriedades, 2a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 1.

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à propriedade (Código Civil, art. 502) e as ações possessórias. A aplicaçãodas normas do Código Civil e do Código de Processo Civil, nunca é de-mais repetir, há de ser feita à luz dos mandamentos constitucionais, e nãode modo cego e mecânico, sem atenção às circunstâncias de cada caso,que podem envolver o descumprimento de deveres fundamentais”. Ora,transposta tal doutrina do plano do discurso ao plano real, “nada impede,por exemplo, que a Administração Pública, quando de uma desapropria-ção, ou o Poder Judiciário, no julgamento de uma ação possessória, reco-nheçam que o proprietário não cumpre o seu dever fundamental de darao imóvel uma destinação de interesse coletivo, e tirem desse fato asconseqüências que a razão jurídica impõe”16 .

Essa bipolarização de pensamento fica ainda mais nítida quando seexamina a questão sob o ponto de vista da repressão penal das condutasantes referidas, cuja jurisprudência parece não ter encontrado um rumomais definido. Há julgados privilegiando sobremaneira o direito de pro-priedade, e, por isso mesmo, sustentando a legitimidade da prisão caute-lar dos líderes dos movimentos sociais, acusados de formar quadrilha paraa prática do crime de esbulho. Sustentou-se, em precedente sobre o tema,que o ato de invasão constitui “ação delituosa a atentar contra a pazsocial”, sob todos os aspectos injustificável, porque “as sociedades civili-zadas vivem em função de um ordenamento jurídico que estabelece elimita as ações de seus integrantes. Nele figura o preceito constitucionalque garante o direito de propriedade. Admitir-se que terceiros passem aacometer o patrimônio alheio, a pretexto de questão social, será o esface-lamento de todo o ordenamento jurídico do País. Hoje invadem as propri-edades rurais (...). Amanhã poderão invadir indústrias, fábricas e estabe-lecimentos comerciais, assegurada a impunidade a pretexto de ‘proble-mas sociais’. Isso representaria o óbito do Estado e da sociedade juridica-mente organizada. E isso o Poder Judiciário não pode admitir”17 . Emsentido exatamente oposto, já se decidiu que a implantação da reformaagrária é obrigação imposta ao Estado pela Constituição, a ela correspon-dendo o “direito público subjetivo de exigência de sua concretização”,sendo que “na ampla dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito dereivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais (...). Apostulação por reforma agrária (...) não pode ser confundida com o esbu-

16 - Fábio Konder Comparato, “Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade”, Revista do Centrode Estudos Judiciários, v. 1, n. 3, p. 97.

17 - STJ, 6a Turma, Habeas Corpus 4.399, LEX-JSTJ e TRF 84/311.

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lho possessório ou a alteração de limites (...). Não é de confundir-se ata-que ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e efeti-vação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso nãoé crime; é expressão do direito de cidadania”18 .

Subjaz aqui também, à toda evidência, o conflito aqui reiteradamenteenunciado, entre princípios constitucionais, cada qual a refletir valoresjurídicos distintos, mas de mesma estatura. Não há, para tais situações,solução que se possa considerar como predeterminada. Cabe ao juiz, me-diante a devida ponderação do caso concreto, criar regra de solução quecomprometa o mínimo possível os valores colidentes e faça prevaleceraquele que, nas circunstâncias, puder ser considerado objetivamente pre-ponderante.

CONCLUSÃO

O que se pode retirar como suma conclusiva do exposto é que posse epropriedade são institutos autônomos, tutelados sob enfoque de distintosprincípios constitucionais. Harmônicos no plano normativo, os princípiosdo direito de propriedade e da função social das propriedades podemenvolver-se em situações concretas de tensão, quando tracionam em di-reção oposta, a exigir solução de concordância prática que, fatalmente,importará a necessidade de limitação de um deles em benefício do outro,ou de ambos, em benefício comum do sistema. A Constituição, emboranão assegure, explicitamente, um genérico “direito à posse”, inegavel-mente tutela a posse quando necessário para atingir finalidades específi-cas, entre as quais a da concretização do princípio da função social daspropriedades. Das suas disposições normativas e dos seus princípios é quese deve extrair os marcos norteadores, fundantes e legitimadores (a) dasnormas infraconstitucionais que tutelam a posse, nomeadamente nos ca-sos em que há comprometimento do direito de propriedade (como ocorrena usucapião e na denominada “desapropriação judicial”, do novo Códi-go Civil); e (b) das soluções pretorianas para outros conflitos entre possee propriedade, de natureza cível e penal, para os quais não há regramentopositivado, ou este se mostra inadequado ou insuficiente, quando entãocumpre ao juiz, ele próprio, formular a solução harmonizadora, o que fará

18 - STJ, 6ª Turma, Habeas Corpus 5.574, LEX-JSTJ e TRF 100/215.

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à luz daqueles mesmos princípios, ponderando-os adequadamente e fa-zendo prevalecer o que, nas circunstâncias do caso, melhor representar aconcretização dos bens e valores constitucionais.

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A Constituição Deve Constituir

Constitution Should Constitute

LÉO BRUST

Doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Salamanca - EspanhaMestre em Ciência Política pela Universidade Técnica de Lisboa – Portugal

Professor de Direito Constitucional da ULBRA e [email protected]

RESUMO

Partindo da consolidação do constitucionalismo na Europa, é abordada aductilidade da constituição em sociedades plurais, defendida por G. Zagrebelsky,sua viabilidade em países desenvolvidos e a necessidade de uma constituiçãodirigente em países em desenvolvimento como o Brasil.Palavras-chave: Constituição, pluralismo, ductilidade.

ABSTRACT

From the consolidation of constitutionalism in Europe, it is approached theconstitution ductility in plural societies, defended by G. Zagrebelsky, its viabilityin developed countries and the necessity of a directive constitution in developingcountries as Brazil.Key words: Constitution, pluralism, ductility.

INTRODUÇÃO

A supremacia da constituição dos Estados Unidos da América man-

Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.29-48

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tém-se há dois séculos e, praticamente, confunde-se com a conquista desua independência. Na Europa foram necessárias duas guerras sangrentasno Século XX, para que a constituição passasse a ser considerada supre-ma. O fim do colonialismo na América Latina fez surgir novos Estados enovas constituições, que inicialmente sofreram influência norte-ameri-cana, em particular na implantação do controle difuso de constituciona-lidade, e européia, no que se refere à supremacia do Parlamento aprego-ada pela Revolução Francesa. Atualmente, as cartas latino-americanastêm em comum a baixa efetividade, pois parte de suas normas – especial-mente os princípios – acabam não sendo aplicadas, por serem considera-das meramente programáticas ou carentes de regulação em lei. O Brasilnão foge à regra, apesar de o controle da constitucionalidade das normasremontar à primeira constituição republicana (1891).

A história constitucional européia teve um desenvolvimento vertigi-noso na segunda metade do Século XX, após o advento das constituiçõesde Alemanha e Itália, que levou à constitucionalização plena de seusdiversos ordenamentos jurídicos. A ampla supremacia da constituição tevepor conseqüência o aumento do poder dos juízes encarregados de contro-lar a constitucionalidade das normas. Nos últimos vinte anos têm surgidoalgumas concepções teóricas que procuram mitigar esse poder, como é ocaso da chamada constituição dúctil, desenvolvida por Gustavo Zagrebel-sky. Essa teoria parte do pluralismo das sociedades atuais e da perda docentro ordenador do Estado, para defender a coexistência de leis, direi-tos e justiça, entendendo que deve haver equilíbrio entre os princípiosfundamentais da constituição, apenas possível se for reservado amplo es-paço para a apreciação política do Parlamento através de lei.

Numa época em que se defende a ductilidade do direito constitucionalna Europa, a Constituição Brasileira de 1988 contém princípios e objeti-vos fundamentais a serem observados pelos três poderes do Estado, inde-pendentemente da ideologia do governante ou da maioria parlamen-tar do momento. São princípios de justiça inscritos pelo poder constituin-te originário, que visam erradicar a pobreza e as desigualdades, constru-indo uma sociedade livre e desenvolvida. Um verdadeiro programa diri-gente transformador da sociedade.

Com tais objetivos, uma constituição dirigente parece ter perdido o sen-tido em países que já alcançaram ou, mesmo, ultrapassaram o Estado doBem-Estar Social (Welfare State). E no Brasil?

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1. A constituição se impõeNos Estados Unidos da América, a disputa entre o Poder Legislativo,

como expressão da vontade geral do povo, e o Poder Judiciário, que tinhaa pretensão de controlar constitucionalmente o acerto da interpretaçãodessa vontade concretizada na lei, foi vencida pelos magistrados. A em-blemática decisão do caso Marbury v. Madison pela Suprema Corte, em1803, consagrou a supremacia da Constituição, como fator básico de ga-rantia dos direitos e do equilíbrio do sistema político, possibilitando aoPoder Judiciário declarar a inconstitucionalidade das leis e de outros atosdo Poder Público contrários às normas constitucionais. O modelo norte-americano exige que o juiz, nos casos concretos, aplique diretamente aConstituição, quando a lei ordinária lhe for incompatível. Se a questãochegar à Suprema Corte, o princípio do stare decisis permite que a decisãopasse a ter efeito vinculante para todos os órgãos judiciais e erga omnes.Se for declarada inconstitucional, a lei passa a ser considerada nula paratodos os fins legais.

A história jurídica da Europa, por outro lado, foi contada por suas leispraticamente até o segundo pós-guerra. A Revolução Francesa se carac-terizou pela imposição das leis como veículos da vontade popular e limitesaos governantes, que, assim, ficaram impedidos de governar baseados so-mente em sua própria autoridade. Haveria de ser respeitada a reservalegal. Rousseau em seu “Contrato Social” chegou a dizer que “a Lei nãopode ser injusta, posto que ninguém é injusto em relação a si próprio” eque “cada um, unindo-se a todos, não obedece mais que a si mesmo epermanece tão livre como antes”.1 O primado da lei ficou sacramentadono art. 4 da Declaração de Direitos de 1789, cuja redação prevê que aliberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica aos outros,cabendo à lei estabelecer os limites dos direitos naturais. Nesse contexto,a constituição era considerada um texto meramente programático e, por-tanto, sem qualquer efetividade.

Os acontecimentos ocorridos na Alemanha, cujo sistema constitucio-nal/legal (Weimar) permitiu a um partido político instalar legalmenteuma ditadura e levar aquele país às atrocidades da 2ª Guerra Mundial,fez com que no pós-guerra as renascentes democracias européias passas-sem a dotar suas constituições de valores indisponíveis pelo Parlamento e

1 apud GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Justicia y seguridad jurídica en un mundo de leyes desbocadas. Madrid:Civitas, 2000, p. 25,

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pelo Executivo. Os direitos fundamentais passaram a ser conteúdo essen-cial das constituições, assim como já o era a organização do Estado, edefinir o direito deixou de ser uma prerrogativa exclusiva da lei. Estapassou a estar condicionada pelos termos da constituição – agora rígida -e foram instituídos mecanismos de controle para aferir a sua constitucio-nalidade. Esse movimento ocorreu na Europa continental, não chegandoa afetar o Reino Unido, que permaneceu com o seu tradicional sistemacommon law e uma constituição não-escrita (flexível).

Grécia, Suécia, Noruega e Dinamarca possuem sistemas de justiça cons-titucional inspirados no modelo norte-americano. A França - de Rousseaue da Revolução - possui um sistema que procura preservar o valor da lei e,por conseguinte, prestigiar o Parlamento. Sua peculiaridade é a de impedira anulação de uma lei já vigente. O controle é feito por um Conselho daConstituição de forma totalmente preventiva (a priori), isto é, no decursodo processo legislativo e antes de sua promulgação. O sistema francês, ob-viamente, não garante a constitucionalidade futura da lei, pois seus efeitosinconstitucionais quase sempre são percebidos apenas quando de sua apli-cação a um caso concreto. Se tal ocorrer, como inexiste um controle aposteriori, o vício apenas poderá ser sanado com a feitura de uma nova leipelo Legislativo. José Afonso da Silva2 o considera um controle de naturezanão-jurisdicional, com o que não concorda Louis Favoreu.3

A maioria dos países europeus, contudo, aderiu às idéias de Kelsen -que as tinha posto em prática na constituição da Áustria (1920) - e atri-buiu a fiscalização da constitucionalidade das normas a um tribunal únicoe independente dos três poderes (ad hoc), mas normalmente integrado porseus representantes, com o acréscimo de advogados e professores univer-sitários. Possuem um controle concentrado num Tribunal Constitucional:Áustria (1945, restabelecimento), Itália (1948), Alemanha (1949), Por-tugal4 (1976), Espanha (1978), Bélgica (1983) e vários países do antigobloco comunista. É conhecido como modelo ou sistema europeu de con-trole da constitucionalidade (concentrado e abstrato), por contrapor-seao norte-americano (difuso e concreto), e, segundo Cruz Villalón5 , “ba-seia-se num processo autônomo de constitucionalidade ante um órgão

2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 51.3 FAVOREU, Louis. Los Tribunales Constitucionales. Barcelona: Ariel, 1994, p. 102 e seg.4 Portugal possui também um controle difuso.5 CRUZ VILLALÓN, Pedro. La formación del sistema europeo de control de constitucionalidad (1918-1939). Madrid:

Centro de Estudios Constitucionales, 1987, p. 35.

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jurisdicional único e específico, encaminhado por um órgão constitucio-nal ou fração do mesmo, ou então por um juiz ou tribunal por ocasião daresolução de um processo concreto, com efeitos imediatos ou ‘gerais’ so-bre a validade ou, quando menos, a vigência da norma submetida a con-trole, a partir de uma sentença6 declaratória de inconstitucionalidade”.

Para Cruz Villalón, a legitimidade dos Tribunais Constitucionais comoórgãos de jurisdição constitucional é fruto de sua função, de sua origem ede seu exercício. A legitimidade da função provém: a) da aceitação dalegitimidade da própria constituição; b) da garantia dos direitos funda-mentais a todos os cidadãos, independentemente da vontade da maioria;e c) da neutralidade do Tribunal perante os demais órgãos. A legitimida-de da origem é garantida pelo sistema de escolha de seus componentespelos três poderes do Estado e pela permanência do Tribunal para alémdos mandatos dos governos e das maiorias parlamentares. A legitimidadedo exercício ocorre por conta de um procedimento jurisdicional baseadoem decisões fundamentadas, argumentadas e racionalizadas, distintas deum ato de natureza política.7

É necessário frisar que o Tribunal Constitucional idealizado por Kel-sen - fora da estrutura do judiciário, mas com as mesmas garantias de seusmagistrados – deveria atuar exclusivamente como “legislador negativo”,isto é, suas sentenças deveriam limitar-se a anular as leis incompatíveiscom a constituição, cabendo ao Parlamento desenvolver uma nova. Sua“pirâmide legislativa”, portanto, a par de garantir em seu ápice a supre-macia da constituição, “salvava” a lei como ato criador de direito. Toda-via, a possibilidade de o Tribunal Constitucional anular leis, com efeitovinculante aos três poderes e erga omnes, determinou o fim da supremaciado Parlamento na Europa. Decorre daí a gradual ampliação de sua atua-ção jurisdicional, imediatamente constatável na efetividade plena dosdireitos fundamentais - sem intermediação de lei - e nas técnicas de in-terpretação conforme à constituição8 (declarar a interpretação da leiconsiderada constitucional) e de declaração de inconstitucionalidadesem redução de texto (declarar a interpretação considerada inconstitu-cional), e a conseqüente emissão de sentenças interpretativas, manipula-

6 Designa na Europa também as decisões dos Tribunais (Portugal usa acórdão).7 CRUZ VILLALON, Pedro. “Legitimidad de la justicia constitucional y principio de la mayoría”. In: Legitimida-

de e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 86 e seg.8 A lei não deve ser declarada nula quando puder ser interpretada em consonância com a Constituição.

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tivas ou aditivas.9 Ainda assim, por paradoxal que possa parecer, o tribu-nal ad hoc configura um privilégio ao legislador, que tem, deste modo, oseu próprio juiz, não correndo o risco de ser desautorizado por um outropoder, como ocorre no sistema norte-americano e no brasileiro. É, pois,uma concessão, mas não deixa de ser também um fruto contemporâneoda Revolução Francesa e a sua notória desconfiança em relação ao PoderJudiciário.

O sistema europeu permite a apenas alguns legitimados a interposiçãode ações diretas de inconstitucionalidade, que devem limitar-se a umquestionamento abstrato das normas. Em alguns países há a chamada“questão de inconstitucionalidade”, que possibilita ao juiz, no decurso deuma ação concreta, submeter diretamente à apreciação do Tribunal Cons-titucional a lei aplicada ao caso, que considere inconstitucional. Na Es-panha e na Alemanha os cidadãos têm legitimidade para interpor recursoao Tribunal Constitucional, se autoridades públicas vulnerarem os seusdireitos fundamentais (respectivamente, Recurso de Amparo e Verfas-sungsbeschwerde). No que se refere ao Poder Judiciário, este deixou deser o poder nulo apregoado por Montesquieu. Os juízes europeus estão,cada vez mais, dizendo o direito que deve estar contido na lei e a juris-prudência dos tribunais de há muito é ferramenta indispensável aos ope-radores do direito. Essa maior participação do Judiciário é apontada poralguns autores, como sintoma de uma certa aproximação com o sistemanorte-americano. Por outro lado, a Suprema Corte dos Estados Unidos é -hoje - um autêntico juiz especial das grandes questões de constituciona-lidade, a exemplo do Tribunal Constitucional.

A ampla rede de controles de constitucionalidade existentes nos di-versos ordenamentos jurídicos demonstra a supremacia alcançada pelaconstituição. A soberania do legislador cedeu passo à supremacia da cons-tituição, aduz Vital Moreira10 : “a idéia base é a de que a vontade políticada maioria governante de cada momento não pode prevalecer contra avontade da maioria constituinte incorporada na Lei fundamental. A limita-ção da vontade da maioria ordinária decorre da supremacia de uma mai-oria mais forte.” Luigi Ferrajoli11 , ao referir-se à superação do estado legis-

9 A polêmica existente na Europa sobre os efeitos desses tipos de sentença, não ocorre no Brasil. O art. 28,parágrafo único, da lei 9868/99 estabelece que elas têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relaçãoaos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

10 MOREIRA, Vital. “Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiçaconstitucional”. In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 179.

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lativo de direito, pelo estado constitucional de direito, esclarece que “as cons-tituições, e os princípios e direitos fundamentais por elas estabelecidos,passaram a configurar-se como pactos sociais em forma escrita que deli-mitam a esfera do indecidível, isto é, tudo aquilo que nenhuma maioriapode decidir ou não decidir: por um lado, os limites ou as proibições, paragarantia das liberdades, por outro, os vínculos ou as obrigações, para ga-rantia dos direitos sociais.” Ou seja, a constituição – pacto social escrito- delimita previamente o que pode ou não ser decidido pelo Parlamento.A simples existência da lei não garante a sua validade, na medida emque também o Poder Legislativo está sujeito ao paradigma constitucional.

Além da subordinação a uma norma superior, a lei padece de outros“males”, que a fazem afastar-se ainda mais da época em que os códigosreinavam de forma absoluta na Europa. Garcia de Enterria 12 entende quea sua multiplicação incontida é o mais grave: “a velha idéia de uma soci-edade livre movendo-se no quadro de vários Códigos e Leis, claros, con-cisos e tendencialmente estáveis, que deixavam à liberdade cidadã todoo amplo espaço da vida social enquadrada com precisão e rigor, tem dadopassagem à situação atual em que a sociedade se mostra inundada poruma maré incontida de Leis e de Regulamentos, não somente não está-veis, mas também em estado de perpétua ebulição e de cambio frenéti-co.” Outro mal, provavelmente conseqüência do anterior, é a falta detécnica legislativa, que se traduz em textos pouco claros, tortuosos e quepodem conduzir a verdadeiros labirintos legais. Ao pretender regular to-das as situações, o Parlamento provoca uma inflação legal que, longe devalorizar a lei, acaba por deixá-la numa situação de inferioridade aindamaior, contribuindo para a sua reduzida generalidade e baixo grau deabstração. Essa situação leva Enterria a decretar que “o legalismo exacer-bado matou o positivismo! Conseqüência inesperada do predomínio for-mal absoluto das Leis, com o que se pensou chegar a eliminar a todas asdemais fontes do direito.”13

Como os direitos fundamentais não podem ficar a mercê de uma infi-nidade de leis altamente cambiantes e sujeitas a maiorias ocasionais, aconstituição passou a ser indispensável também pela sua estabilidade,pois qualquer modificação que se lhe queira impor depende de um quo-

11 FERRAJOLI, Luigi. Garantias. Revista do Ministério Público. Ano 22º, n. 85. Lisboa, Janeiro-Março 2001, p. 12.12 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Op. cit. p. 47 e 48.13 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Op. cit. p. 103.

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rum privilegiado. Além disso, garantir os direitos fundamentais a partirdo próprio texto constitucional permite que sejam interpretados de formamais ampla. A regulação em lei envolve sempre o risco de diminuir o seuâmbito de aplicação, para além de converter o Parlamento (poder consti-tuído) numa espécie de poder constituinte de fato e permanente. A efe-tividade plena dos direitos fundamentais constitucionais é aceita na Eu-ropa, em particular na Alemanha, há várias décadas. Em alguns países,no entanto, é um fenômeno recente. Ángela Figueruelo14 informa que,na Espanha, ocorreu somente alguns anos após o advento da constituiçãode 1978: “a tradição judicial espanhola era marcada pelo mais puro jaco-binismo, no qual o juiz era considerado um mero aplicador da lei. Haviaa crença de que os direitos fundamentais eram meras normas programáti-cas que exigiam a interpositio legislatoris para adquirir plena eficácia eassim poderem ser alegadas ante os tribunais de justiça.” Em síntese, osdireitos fundamentais têm aplicabilidade direta e imediata, e “se antesvalia dizer: direitos fundamentais só no marco das leis, agora se quer dizerleis só no marco dos direitos fundamentais”.15

No que tange à amplitude da proteção aos direitos fundamentais, oTribunal Constitucional alemão admite não apenas declarar a inconstitu-cionalidade de normas infraconstitucionais, como também de dispositi-vos da própria constituição, se desrespeitarem em medida insuportável ospostulados fundamentais da justiça. Ainda que esta seja uma hipótesebastante rara, implica a aceitação de um direito “suprapositivo” ao qualdevem estar sujeitos os próprios constituintes.16

O tema dos princípios e valores superiores vem sendo utilizado porRonald Dworkin17 , para criticar pesadamente o positivismo jurídico. Oautor norte-americano sustenta que as leis não dão resposta a todas assituações, até porque a vida é complexa demais para caber em normaspré-definidas. Quando a lei apresenta lacunas, contradições ou não seaplica diretamente a uma determinada situação – os chamados casos di-fíceis - os positivistas deixam a decisão à discricionariedade judicial. Esta

14 FIGUERUELO BURRIEZA, Ángela. El Recurso de Amparo: Estado de la Cuestión. Madrid: Biblioteca Nueva,2001, p. 31.

15 apud ALEXY, Robert. “Los derechos fundamentales en el Estado constitucional democrático.” InNeoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 34.

16 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994.17 DWORKIN, Ronald, Derechos en Serio. Barcelona: Ariel, 1984.

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liberdade habilitaria o juiz a ditar normas, até mesmo de forma retroativa,pondo em risco a própria democracia. Dworkin defende que o magistradonão deve ter uma função criadora, mas garantidora, devendo utilizar prin-cípios que informem as normas jurídicas concretas, de forma a construirteorias capazes de justificar a sua decisão. Isso implica que o juiz pode,inclusive, desatender a literalidade da norma se esta violar um princípioimportante para o caso específico.18

Em definitivo, a lei perdeu o poder que a Revolução Francesa lhehavia outorgado. Seja em função de existir uma norma superior chamadaconstituição; seja porque os direitos fundamentais conquistaram efetivi-dade plena; seja porque a fúria legislativa a tem aviltado; seja porqueprincípios e valores superiores a podem condicionar, a lei deixou de ter osignificado e a importância que lhe atribuía Rousseau.

2. A constituição se suavizaAs constituições européias do segundo pós-guerra (como Itália e Alema-

nha), dos últimos fascismos europeus (Portugal e Espanha) e do pós-comunis-mo (antigos integrantes do bloco soviético), pretenderam dar aos direitosfundamentais uma proteção, que as leis de seus Estados não haviam sidocapazes de proporcionar. O advento dessas novas constituições coincidiu como início de um processo de integração econômico-social, que se aprofunda ese expande há mais de meio século. As instituições dos Estados membros daatual União Européia se formaram durante o processo de integração. Valedizer, a consolidação da supremacia constitucional e da soberania de cadaEstado é concomitante à sua relativização, pois os tratados firmados assim oexigem. Adicionalmente, as novas constituições foram redigidas sob o signodo pluralismo, uma vez que as Assembléias Constituintes – democraticamen-te eleitas – refletiam as ideologias dos diversos segmentos da sociedade.

Integração entre Estados e pluralismo estão na base de algumas dasteorias da constituição surgidas no final do século passado, como ductili-dade, responsividade, reflexividade e processualização.19 Tais propostas

18 Há quem o acuse de praticar um jusnaturalismo disfarçado. Cfr. RICHARDS, David A. J. The Moral Criticismof Law. Encimo: Dickinson, 1977 e MACCORMICK, Neil. Legal Right and Social Democracy. Oxford:Clarendon Press, 1982.

19 CANOTILHO, José J. Gomes. Teoría de la Constitución. Madrid: Dykinson, 2003, p. 59 e seg.

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têm em comum a relativização da supremacia constitucional a partir doenfraquecimento da soberania do Estado e a não aceitação da idéia deconstituição como centro de um conjunto normativo regulador e dirigen-te da sociedade. Defendem, pois, um direito constitucional não-inter-vencionista. A tarefa básica da chamada constituição dúctil (ou suave) deGustavo Zagrebelsky20 , por exemplo, é simplesmente assegurar a possibili-dade de uma vida em comum, internamente e na relação com os demaisEstados, sem impor um projeto predeterminado. As diferentes idéias nelacontidas são um ponto de partida para a realização de políticas tambémdiferenciadas. Um compromisso de possibilidades a exigir que cada umdos seus valores e princípios informadores não se assuma com caráter ab-soluto, para garantir a sua coexistência. A constituição não é executa-da, mas torna-se efetiva num desses cambiantes princípios e valores emequilíbrio, cuja extensão e limites serão dados pela lei. Seu caráter abertoe cooperativo possibilita a conexão entre direito interno e internacional,integrando Estados que permaneceriam isolados, se a soberania estatalfosse tomada de maneira absoluta. Em suma, os elementos constitutivosdo direito constitucional são plurais e, para poderem coexistir, devem serrelativizados entre si. Isto é, devem tornar-se suaves (dúcteis).

Para entender o surgimento de concepções como a da ductilidade, éimportante lembrar que o Estado constitucional europeu tem origem nasuperação do jusnaturalismo - ocorrida a partir do segundo pós-guerra -,que aproximou a concepção norte-americana dos direitos individuais (quea lei não pode vulnerar) da concepção francesa Rousseauniana da lei(como o único instrumento de afirmação de direitos). A inclusão de prin-cípios de justiça, como deveres aos poderes públicos, e de direitos huma-nos nas constituições européias fez com que as duas concepções antagô-nicas não mais pudessem ser tomadas de forma absoluta. O legisladoreuropeu viu-se obrigado a observá-los na feitura das leis, o que levou aocontrole da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional e ao forta-lecimento do papel dos juizes, a exemplo dos norte-americanos.

A positivação de princípios fundamentais determina que as atuais cons-tituições estejam compostas por princípios e regras. Os princípios, escla-rece Canotilho21 , “são normas jurídicas impositivas de uma optimização,

20 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 5. ed. Madrid: Trotta, 2003.21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina,

2002, p. 1145.

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compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condiciona-lismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperati-vamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não écumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion).”Ou seja, às regras se obedece e aos princípios se presta adesão. Exemplifi-cando, as normas que prevêem os direitos à greve ou ao livre exercício dequalquer profissão são princípios. As que dispõem sobre a garantia deexecução de serviços públicos considerados essenciais durante a greve ousobre a exigência de qualificação profissional para o exercício de deter-minados trabalhos são regras.

Para Zagrebelsky22 , as regras prevalecem entre as normas legislativas,enquanto os princípios prevalecem entre as normas constitucionais sobredireitos e justiça. Quando uma regra aparece na Constituição, nada maisé do que uma “lei reforçada”, pois sua função não é constitutiva. Deve sercumprida integralmente e se esgota em si mesma. Em caso de conflito,apenas uma pode ser aplicada, pois as regras não permitem qualquer graude relativização. Já os princípios, por refletirem valores de uma sociedadeheterogênea, são tendencialmente contraditórios e podem ser pondera-dos em caso de conflito, pois precisam coexistir. Prieto Sanchís forneceum bom exemplo: “na freqüente colisão entre o direito à honra e a liber-dade de expressão não existe uma fronteira nítida, de maneira que umacerta conduta deva ser incluída necessariamente no âmbito da liberdadeou no tipo penal protetor da honra alheia; ao contrário, a conduta podeser simultaneamente ambas as coisas, exercício de direito e ação delitiva,sem que entre ambas exista uma relação de preferência com caráter gerale abstrato.”23

É por isso que os princípios não podem ser concebidos de forma absolu-ta numa constituição pluralista. Se isso acontecesse, um deles fatalmentese tornaria o dominante, convertendo-se em autêntico tirano dos de-mais. Seria como optar pelo princípio direito à honra, desenvolvendo-ocabalmente, ignorando a existência do princípio liberdade de expressão.Na falta de lei, cabe ao juiz garantir o equilíbrio, fazendo uso de princípi-os jurisdicionais como os da proporcionalidade e da razoabilidade. Sedecidir optar por um dos princípios na solução de um caso concreto, ha-vendo ou não lei, provavelmente estará servindo à sua própria ideologia.

22 ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 110.23 PRIETO SANCHÍS, Luis. Ley, principios, derechos. Madrid: Dykinson, 1998, p. 3.

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No mesmo sentido, ao decidir uma “questão de inconstitucionalidade” –submetida per saltum pelo juiz ordinário europeu no curso de uma açãoconcreta -, o Tribunal Constitucional deve limitar-se a eliminar a lei in-constitucional, sem impor qualquer regra extraída diretamente da cons-tituição, permitindo ao legislador a aprovação de nova lei. Do contrárioestará dando uma interpretação fechada do marco constitucional e redu-zindo o papel do Parlamento a mero produtor de normas facultativas. Opluralismo exige respeito à liberdade da dinâmica política e à competiçãoentre propostas alternativas. A extremada importância do magistrado noEstado constitucional traz o receio de que a existência de princípios subs-tantivos seja uma porta aberta ao ativismo judicial.

Os limites da atuação do juiz e do legislador são uma questão controver-tida. “Constitucionalistas” e “legalistas” têm argumentos respeitáveis e vemmantendo um longo debate. Para o constitucionalismo: a) a legislação estáenvolta numa rede de vínculos jurídicos que deve ser considerada pelosjuízes, sobretudo pelos juízes constitucionais; b) sob a ótica da doutrina dasfontes, a constituição é um programa positivo de valores a ser “atuado” pelolegislador; c) os juízes devem sentir-se autorizados a realizar um controlede fundo e ilimitado sobre todas as decisões do legislador e em todos os seusaspectos. Para o legalismo: a) o controle da jurisdição sobre o legisladordeve ocorrer dentro de limites compatíveis com sua autonomia; b) sob aótica da doutrina das fontes, a constituição é uma referência orientadoraque há de ser simplesmente “respeitada” pelo legislador; c) os juizes devemser induzidos a reconhecer ao legislador amplos âmbitos de liberdade nãopré-julgados por normas constitucionais.24

Zagrebelsky25 considera que “em ausência de leis, excluir a possibilidadede integração judicial do ordenamento teria como conseqüência o esvazia-mento de direitos reconhecidos na constituição”. Entende, porém, vital aapreciação política realizada pelo Parlamento, pois vê na constituição umcontexto aberto de elementos, no qual a lei tem fundamento constitucionalpróprio e está no mesmo plano de outros direitos e princípios. Vale por ser lei enão pelo que dispõe. A lei expressa as combinações possíveis entre os princípiosconstitucionais, que se limitam a estabelecer os pontos irrenunciáveis dequalquer combinação. A lei mantém assim seu caráter de ato criador dedireito e não vem degradada a mera execução da constituição.26

24 ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 151.25 ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 153.26 ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 97.

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Em suma, a lei volta a valorizar-se como ato criador de direito, deixan-do de ser um mero ato executor da constituição. Contudo, o legisladordeve resignar-se a vê-la tratada como “parte” do direito e não como “o”direito, como ocorria até o início do Século XX na Europa. Por outro lado,o constitucionalismo deve passar a aceitar um maior protagonismo doParlamento na mediação política efetuada através da lei. E aos juízescabe a tarefa de garantir o equilíbrio entre os princípios constitucionais ea necessária e dúctil coexistência entre lei, direitos e justiça.

3. A constituição dirigente ainda é necessáriaAs normas de uma constituição dirigente - concepção de direito consti-

tucional desenvolvida por Canotilho27 - ademais de oferecer esquemas deregulação do poder político e dos vários status dos indivíduos, aspiram ater uma força normativa e planificadora ou, ao menos, reitora da transfor-mação política, econômica e social. “Esta perspectiva de direito constitu-cional – que temos investigado e que tem influído decisivamente emnossa formação – está hoje ante uma encruzilhada,”28 assegura o mestrede Coimbra. Entre as novas teorias que divergem da constituição dirigen-te e podem ser apontadas como causa dessa encruzilhada, está a constitui-ção dúctil de Zagrebelsky.

Esta teoria revela um tipo de pensamento próprio das sociedades euro-péias ocidentais, que alcançaram ou, mesmo, ultrapassaram o chamadoEstado do Bem-Estar Social (Providência) e estão em processo de inte-gração com outros Estados. Parece evidente que leis, direitos humanosfundamentais e princípios de justiça possam conviver em harmonia e equi-libradamente numa sociedade desenvolvida. Afinal, teria sentido umaconstituição que pretendesse transformar política, econômica ou social-mente um desses países? Logo após a 2ª Guerra a resposta com certezateria sido positiva. Atualmente, essas sociedades atingiram um grau deconstitucionalização de seus ordenamentos jurídicos e um desenvolvi-mento econômico-social, que até lhes permitiria viver o pluralismo nostermos de uma constituição dúctil - delegando ao legislativo a escolha doprincípio a ser priorizado -, sem que isso representasse necessariamente

27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra, 1982.28 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Teoría… p. 25 e 26.

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um retrocesso. Nesses casos, uma constituição dirigente, por admitir aauto-execução dos princípios, poderia eventualmente provocar um des-necessário desequilíbrio em favor de determinado princípio de justiça,considerado prioritário pela constituição, num momento em que a socie-dade já está a exigir outras prioridades.

E se essa mesma pergunta fosse feita relativamente aos dez paises daEuropa Oriental, que passaram a integrar a União Européia em maio de2004? Ou a um país latino-americano? Se a consolidação de um EstadoDemocrático de Direito for o objetivo constitucional desses ordenamen-tos, a resposta deverá ser sim. O motivo é simples: para alcançá-lo, ospaíses em desenvolvimento devem priorizar certos princípios de justiça,necessários ao enfrentamento de problemas sociais crônicos. Isso exigeque o programa positivo de valores econômico-sociais contido na consti-tuição deva ser seguido pelos três poderes estatais nas atividades que lhesão inerentes. O pluralismo, nos termos de uma constituição dúctil, po-deria aprofundar esses problemas, pois dá total liberdade aos governantese ao legislador - maioria ideológica do momento - para escolher o princí-pio prioritário.

Num país desenvolvido e sem problemas fundiários, poderia ser consi-derado até certo ponto normal - próprio do pluralismo democrático - aaprovação de uma lei que, por exemplo, reduzisse a níveis baixíssimos osíndices de produtividade definidores do cumprimento da função socialde uma propriedade rural. A relativização entre os princípios “direito àpropriedade privada” e “exigência de que a propriedade cumpra a suafunção social” traduziria a ideologia do grupo parlamentar conservadormajoritário do momento, permitindo a necessária apreciação política pre-conizada por Zagrebelsky (ductilidade). Num país em desenvolvimento,com latifúndios improdutivos e milhares de trabalhadores sem acesso àterra, poderia ser um desastre. A ductilidade estaria corroborando umainjustiça, o que não ocorreria com uma constituição dirigente, pois elaproporciona previamente os parâmetros sociais de observação obrigatóriapelo legislador.

No caso do Brasil, esses parâmetros foram estabelecidos pelo poderconstituinte originário nos princípios e objetivos fundamentais da Cons-tituição de 1988. A consolidação do Estado Democrático de Direitodepende da efetividade da constituição, como um todo, e exige que osfundamentos da República (art. 1º) - particularmente os princípios dacidadania e da dignidade da pessoa humana - e os objetivos fundamen-

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tais (art. 3º) sejam considerados substantivos e não meramente progra-máticos:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativado Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualda-des sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O cumprimento desses objetivos é fundamental para tornar o país so-cialmente mais justo e fortalecer o pluralismo democrático consagrado noart. 1º, V, pois são as ferramentas para a conformação dos demais princípi-os e regras constitucionais e da legislação infraconstitucional. Para que asociedade brasileira logre atingi-los, é necessário que os três poderes oslevem em consideração: o Executivo, em suas políticas governamentais; oLegislativo, na feitura das leis; e o Judiciário, no controle da constitucio-nalidade das leis e dos atos normativos. A constituição dirigente, como éevidente, não contém apenas normas de organização do Estado e direitosdo cidadão frente ao Estado, mas, também, obrigações ao Estado. Nestesentido, voltando ao exemplo acima, a lei brasileira que reduzisse a umpatamar insignificante os índices indicativos do atendimento à funçãosocial da propriedade, haveria de ser considerada inconstitucional, quantomais não seja, por ferir o art. 3º.

Numa sociedade desequilibrada (injusta) os objetivos fundamentaisservem para condicionar a lei no sentido de buscar o equilíbrio social deum Estado Democrático de Direito (democracia, liberdade, igualdade,justiça social). Mesmo sendo alcançados, como ocorre em grande parteda Europa, podem sempre ser invocados, pois são substantivos e configu-ram mais uma garantia ao cidadão. A vulnerabilidade da população sobuma constituição considerada dúctil é maior, justamente por dependerde decisões extra-constitucionais. A função desempenhada pelos objeti-vos fundamentais numa constituição dirigente é idêntica à desempenha-da pela maioria parlamentar numa constituição dúctil: condicionar a inter-pretação da constituição e o conteúdo das leis. Porém, enquanto os objetivos

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fundamentais condicionam para garantir democracia, liberdade, igual-dade e justiça social a toda a população (com a legitimidade do poderconstituinte originário), a maioria parlamentar do momento condicionapara ver refletida a sua ideologia ou os seus interesses específicos (apenascom a legitimidade do poder constituído).

Constituição dirigenteObjetivos Fundamentais (CF Art. 3º):

Condicionam a interpretação dos demais artigos da Constituição e oconteúdo das Leis.

Constituição dúctilMaioria Parlamentar:

Condiciona a interpretação da Constituição e o conteúdo das Leis.

A função dos objetivos fundamentais numa constituição dirigente éassumida pela maioria parlamentar numa constituição dúctil.

Uma situação sui generis ocorre na Europa. Enquanto a doutrina discu-te as novas teorias da constituição – quase todas muito próximas à ducti-lidade -, um programa dirigente transformador em nível internacionalestá em curso. A entrada na União Européia obrigou, por exemplo, Espa-nha, Portugal, Grécia e a própria Itália de Zagrebelsky a adaptar-se anormas comunitárias nos mais variados setores, com o objetivo de atingirníveis aproximados aos dos demais componentes, inclusive através de pro-gramas de incentivo ao desenvolvimento econômico-social baseado emfundos estruturais. A efetividade das normas comunitárias concernentes àmodernização da economia, meio-ambiente, trabalho, respeito ao consu-midor, erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e regi-onais, entre outras, jamais foi questionada. Os dez novos sócios passarãopor um período semelhante e deverão cumprir idênticos objetivos. Ora,se esses Estados cumprem um programa supraconstitucional e supranaci-onal de modernidade, que os leva a modificar suas leis e, até mesmo, suasconstituições, com muito mais razão o Estado brasileiro deve cumprir oprograma contido em sua própria constituição. Um programa com a legi-timidade de ter sido instituído por uma Assembléia Nacional Constituin-

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te em 1988 e que representa o consenso da sociedade brasileira: um ver-dadeiro “pacto constituinte-fundante de uma nova ordem” 29

Por conseguinte, o que está em jogo é a efetividade de todas as nor-mas constitucionais (princípios e regras). A constituição somente terácondições de dirigir a sociedade e, inclusive, transformá-la, na medidaem que detenha, de forma substantiva, a supremacia do ordenamentojurídico. Quanto a esse aspecto, Riccardo Guastini30 aduz que “um doselementos essenciais do processo de constitucionalização é precisamentea difusão, no seio da cultura jurídica, (….) da idéia de que toda normaconstitucional – independentemente de sua estrutura ou de seu conteú-do normativo – é uma norma jurídica genuína, vinculante e suscetível deproduzir efeitos jurídicos”. No mesmo sentido, Vital Moreira31 esclareceque o órgão jurisdicional, ao aferir a legitimidade constitucional das de-cisões dos poderes públicos, deve ter claro que, “em princípio, todos ospreceitos constitucionais detêm uma função normativa. Incumbe ao juiz cons-titucional, em sede de interpretação da lei fundamental apurar o sentidoe o alcance de cada preceito, mas não lhe assiste o direito de desqualifi-car como norma não constitucional nenhum preceito da constituição.” Eo próprio Canotilho 32 corrobora: “os princípios ou são princípios materiaisou não são nada. Não são apenas esquemas de um regime qualquer, nãosão esquemas de um proceder qualquer, não são esquemas de um proces-so qualquer, são verdadeiras dimensões materiais.”

Portanto, se todas as normas constitucionais produzem efeitos jurídi-cos, é inconcebível a virtual não aplicação do art. 3º e dos demais princí-pios dirigentes da Constituição de 1988. Cabe ao Poder Judiciário o desa-fio de fazer valer a constituição em sua integralidade. A não-efetividadede parte dos dispositivos constitucionais, inclusive por alegada falta deregulação em lei, é um problema que persiste no sistema brasileiro, con-tribuindo para uma sensação de não obrigatoriedade do texto consti-tucional. Como visto, até mesmo Zagrebelsky, um ardoroso defensor damediação do Parlamento, não admite que um artigo da constituição dei-

29 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito. 2ª ed. Rio de Janeiro:Forense, 2004, p. 379.

30 GUASTINI, Ricardo. “La ‘constitucionalización’ del ordenamiento jurídico: el caso italiano”. In:Neoconstitucionalismo(s), Madrid: Trotta, 2003, p. 53.

31 MOREIRA, Vital. Op. cit. p. 193.32 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. In: Canotilho e a Constituição Dirigente, COUTINHO, Jacinto Nelson

(Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 24.

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xe de ser aplicado por falta de lei. Por isso, o Supremo Tribunal Federalprecisa rever a sua jurisprudência de normas constitucionais considera-das sem aplicabilidade imediata33 e todos os juízes devem passar a julgaras causas com a constituição – substantiva - em suas mesas, pois “o textoinfraconstitucional somente pode ser aplicado depois de passar pelo pro-cesso hermenêutico-constitucional”.34 A vigência da lei deve deixar deser confundida com a sua validade. E se esse “filtro” constitucional trou-xer o infundado receio de vulneração da segurança jurídica, tenha-sepresente que “o jurista deve manter a ordem jurídica, atento ao valor dasegurança jurídica, sem, no entanto, confundi-la com a manutenção cegae indiscriminada do statu quo. Não há que confundir o valor da segurançajurídica com a ideologia da segurança, que tem por objetivo o imobilismosocial.”35

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As constituições têm sido o sustentáculo das democracias, graças àorganização que proporcionam aos Estados, aos princípios de direitos hu-manos e de justiça que contêm e à supremacia que desfrutam em seusrespectivos ordenamentos jurídicos. A ductilidade constitucional procu-ra resgatar o papel da lei, como concretização da mediação do Parlamen-to no seio de sociedades plurais. Caberia à maioria parlamentar definir oconteúdo dos princípios constitucionais, que, por refletirem o pluralismoda sociedade, são contraditórios, não se prestando à aplicação direta. Épossível afirmar que a função da maioria parlamentar do momento numaconstituição dúctil é idêntica à dos objetivos fundamentais de uma cons-tituição dirigente, como a brasileira: condicionar a interpretação dos ar-tigos da própria constituição e o conteúdo das leis. As finalidades é quesão diferentes, pois enquanto a maioria do parlamento (poder constituí-do) procura impor a sua ideologia ou os seus interesses específicos, os

33 O Tribunal Constitucional espanhol é um bom exemplo: “Deve assinalar-se que a reserva de lei que efetua (...)a Norma Fundamental, não tem o significado de diferir a aplicação dos direitos fundamentais e liberdadespúblicas até o momento em que se edite uma lei posterior à Constituição, já que, em todo o caso, seusprincípios são de aplicação imediata (BCJ, 1981, n. 3, p. 214).” In: PEREZ LUÑO, Antonio. Los DerechosFundamentales, 8. ed. Madrid: Tecnos, 2004, p. 64 e 65.

34 STRECK, Lenio Luiz. Op. cit. p. 385.35 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Método e hermenêutica material no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

1999, p. 74.

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objetivos fundamentais constitucionais procuram impor os parâmetros dedemocracia, liberdade, igualdade e justiça, estabelecidos pelo poder cons-tituinte originário para toda a sociedade.

A ductilidade constitucional parece adequar-se ou, ao menos, nãocausar maiores danos, a países em que o Estado do Bem-Estar Social já seencontra consolidado. Sociedades que ainda não o atingiram, não podemficar a mercê de maiorias parlamentares, que, eventualmente, agravemseu desequilíbrio social. No caso do Brasil faz-se necessário que os princí-pios e objetivos fundamentais da constituição vinculem os três poderes: oExecutivo, na execução de suas políticas; o Legislativo, na feitura dasleis; e o Judiciário, no controle da constitucionalidade das leis e dos atosgovernamentais. A constituição brasileira não pode ser vista como mera-mente programática, mas como um programa dirigente substantivo, comcondições de levar o país à modernidade. Este é o requisito para o forta-lecimento do pluralismo garantido em seu art. 1º, V.

A questão básica de que se trata, portanto, é o reconhecimento daefetividade plena de todos os artigos da constituição (pacto constituinte-fundante de uma nova ordem). A constituição constituir ainda é condi-ção indispensável para o Estado Democrático de Direito atingir a suaplenitude no Brasil.

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La Percepcion Occidental De LosConflictos En El Mundo Musulmán:

Cultura Frente A Politica1

Western Perception of the Conflictsin Islam World: Culture in face of

Politics

GEMA MARTÍN-MUÑOZ

Profesora de Sociología del Mundo Arabe e Islámico de la Universidad Autónoma de Madrid. Es autora de ElEstado Arabe. Crisis de legitimidad y contestación islamista (Barcelona, Bellaterra, 2000) y de Iraq, un fracaso de

Occidente (1920-2003) (Barcelona, Tusquets, 2003).

RESUMO

Criticando as visões essencialistas e etnocêntricos relativamente ao mundomuçulmano e tendo em conta os acontecimentos de 11 de setembro, a autoraanalisa as raízes da atual islamofobia e a necessidade de revisar as políticasinternacionais e a guerra contra o terrorismo.Palavras-chave: Política internacional, terrorismo, islamofobia, mundo islâmico.

ABSTRACT

By criticizing the essentialist and ethnocentric visions on the Islam world, andconsidering the happenings of September 11, the author analyzes the roots of

1 Este texto fue impartido como Conferencia inaugural del curso “Poder y Violencia” de la Universitat Interna-cional de la Pau el 17 de julio de 2003.

Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.49-70

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the present islamphobia and the need to review international politics and thewar against terrorism.Key words: International politics, terrorism, islamphobia, Islam world.

La proximidad geográfica e histórica siempre implican relaciones devecindad complejas y competitivas entre los conjuntos geopolíticos quelas representan. Este ha sido sin duda el caso del mundo europeo y elmusulmán desde la Edad Media y ha traído consigo la transmisión de unamemoria histórica en conflicto. La rivalidad entre Islam y cristianismo,entre Al-Andalus y los reinos cristianos, entre los imperios europeos yturco otomano, generaron conflictos de intereses e ideologías de demoni-zación del otro. No hay más que leer el libro de Amin Maalouf Las Cruza-das vistas por los árabes o ver la película del cineasta egipcio Yusuf Shahin,Saladino, para darse cuenta de la representación inversa que nos dan deunos acontecimientos que desde el imaginario cristiano y europeo tienenuna simbología bien opuesta. Pero los trastornos que esta situación ocasi-onó no impidieron una realidad muy interpenetrada: el Imperio bizantinomantuvo una estrecha relación con el oriente omeya y ‘abbasí (inclusomayor que con los reinos cristianos europeos), entre Al-Andalus y losreinos cristianos habrá continuos intercambios económicos y culturales, yla islamización del occidente medieval fue un hecho incontestable entérminos históricos (en Sicilia, la Península Ibérica y los Balcanes).

La expulsión de musulmanes y judíos de España junto al descubrimi-ento de América van a significar el punto de arranque de una concepci-ón en que Europa se percibe como una identidad cerrada que se procla-ma la única depositaria de los atributos de la humanidad, inferiorizando alos otros pueblos. Durante el Renacimiento se llevó a acabo la elaboraci-ón ideológica que sustenta esa concepción europea que se prolonga hastala actualidad: haciendo una interpretación selectiva de la Historia, en laque el Oriente desaparece del pensamiento europeo, se asienta el mitode que éste se basa en una sola fuente original greco-romana. Es decir, elmito fundador del pensamiento europeo expulsó autoritariamente la apor-tación oriental, y en ella el determinante papel que tuvo el pensamientomusulmán, a quien se debe el rescate del pensamiento helenístico y surelectura, así como toda una aportación filosófica racional. Esta «expulsi-ón» alimentará la concepción de dos universos aislados y sin un patrimo-nio común.

Entre los siglos XIX y XX se llevó a cabo un intensivo proceso histórico

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que reforzó este pensamiento etnocéntrico, cuando Europa vino a repre-sentar tanto el universo de las ideas de la Ilustración como el de unmercantilismo expansivo que buscaba colonizar el mundo exterior. El pen-samiento colonial europeo se vio en la necesidad de elaborar la justifica-ción moral y ética del ejercicio de dominación política y explotación eco-nómica que llevaba a cabo fuera de sus fronteras. Así surgió la dualidadentre « civilización » y « barbarie », el concepto de raza y el principiode la superioridad cultural europea frente a « los otros » apropiándosede la representación universal de la modernidad y la civilización. El colo-nialismo se convertía un una obligación moral y una misión histórica :llevar la civilización a los pueblos « salvajes » o retrasados. A partir deese momento se presentaban argumentos culturales para justificar lo queen realidad eran acciones políticas. Con ello, para colocar lo cultural alservicio de la política, se elaboraba un pensamiento que inferiorizaba alas otras culturas y, sobre todo, las negaba cualquier capacidad para evo-lucionar y progresar. Esos valores se adjudicaban en exclusiva al modeloeuropeo.

A partir de ese momento, la cultura europea será considerada superiora la de los otros, considerando las culturas de los pueblos colonizadoscomo inferiores. Desde entonces, el profundo etnocentrismo europeo mi-rará a las demás culturas de manera esencialista (es decir, como si fueranentes cerrado, inmutables y monolíticos, incapaces de progresar y evolu-cionar, determinando así todo su devenir histórico). En consecuencia, laperspectiva europea tenderá a considerar que las nociones de progreso,dinamismo y modernización son valores propios de la cultura europea, ydeberían ser universalmente imitados.

Así, por ejemplo, el acta de la Conferencia de Berlín de 1885, con laque los europeos se repartieron el continente africano, decía que las po-tencias europeas debían “instruir a los indígenas y hacerles comprender yapreciar las ventajas de la civilización»”. En consecuencia, cuando éstos se“empecinen” en conservar sus tierras o su estatuto serán “justificadamen-te” castigados y diezmados. El Ministro británico responsable de las colo-nias entre 1895 y 1903 afirmará la superioridad de la raza blanca y sucivilización asegurando que “nuestra dominación es la única que puede ase-gurar la paz, la seguridad y la riqueza a tantos desgraciados que nunca antesconocieron esos beneficios. Llevando a cabo esta misión civilizadora es comocumpliremos nuestra misión nacional en beneficio de los pueblos bajo la som-bra de nuestro ámbito imperial”. Por su parte, el francés Jules Ferry procla-

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maba en el parlamento el 28 de julio de 1885 el deber “de las razas superi-ores de civilizar a las inferiores”2 .

En aquellas geografías como la china, la india o la islámica donde sehabían erigido grandes civilizaciones, la catalogación de “pueblos salva-jes” no era posible y frente a ellos se levantó el discurso de su agotamientoe incapacidad para salir del oscurantismo que vivían frente al avancecivilizacional europeo. De esta manera se llevaba a cabo un proceso dedenigración del legado cultural, histórico y civilizacional islámico, pre-sentado como incapaz de progresar y modernizarse. Es decir, todos loselementos culturales pertenecientes al ámbito islámico, incluida la len-gua árabe, eran catalogados como regresionistas y bloqueadores de laevolución moderna. Con ello, se forjaba un imaginario europeo lleno deprejuicios hacia lo islámico y se volvía a expulsar autoritariamente al le-gado intelectual y cultural islámico del mundo de la modernización, apro-piada en exclusiva por el modelo europeo.

Y lo que es enormemente importante es que, cuando más tarde, sedesarrolle el pensamiento europeo anticolonial, éste denunciará los mé-todos políticos de dominación y económicos de explotación utilizados porla experiencia colonial, pero no cuestionará la vocación occidental de serel modelo cultural universal. Progreso y desarrollo no podían ser frutomás que de la reproducción mimética occidental.

En realidad, el término Occidente, se forjó cuando de la SegundaGuerra Mundial nació un nuevo orden internacional dividido en dosbloques de poder: el occidental y el soviético, coincidiendo con una pér-dida de influencia europea a favor de los EEUU, pero sin que ello modifi-case el sentimiento de superioridad cultural que hasta entonces habíaprevalecido.

Por el contrario, siguieron dominando las visiones esencialistas y etno-céntricas con respecto al universo cultural del mundo islámico. Esencia-lismo, porque la explicación de los hechos históricos tiende a quedarseen “el determinismo islámico”, de manera que frecuentemente se da aentender que los acontecimientos ocurren en esa parte del mundo sim-plemente “porque son musulmanes”, prevaleciendo la explicación “teoló-gica” (manifestaciones de extrema religiosidad consideradas inherentes

2 Citados por Sophie Bessis L’Occident et les Autres. Histoire d’une suprématie. Paris, La Découverte, 2002.

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a la cultura islámica) sobre la explicación desde las ciencias sociales. Deesa manera, frecuentemente en la búsqueda de un marco interpretativoo paradigma (frame) en el que situar los acontecimientos interviene nosólo la naturaleza del conflicto en sí sino también explicaciones centra-das en establecer una supuesta diferencia cultural islámica incompatiblecon el progreso global.

Un significativo ejemplo lo constituye la cuestión de “la mujer en elislam”. Existe una percepción sobredimensionada y sobreideologizada conrespecto a la cuestión de la situación de las mujeres en tierras islámicasque, sobrepasando lo que es la legítima denuncia e información sobresituaciones de discriminación inaceptables, es el instrumento a través delcual nuestras sociedades confirman los prejuicios anidados en nuestroviejo imaginario cultural, corroborando así las diferencias entre el Orien-te y el Occidente. La manera en que se transmite la imagen de la mujermusulmana y cómo se tratan las cuestiones relativas a ella, muestran queen muchas ocasiones, lejos de interesarse por las mujeres en sí, son sobretodo el instrumento a través del cual se incide en el desprestigio de unmundo cultural enorme y muy diverso. Así, se generaliza irresponsable-mente, se ocultan realidades mucho más diversas, se ignoran las dinámi-cas de cambio que sin duda existen, se seleccionan los actores y los testi-monios, y se presenta el patriarcado en el mundo islámico como un casoextremo e inmutable3 .

La representación dominante de la mujer musulmana es la que la pre-senta en actitud pasiva4 , papel de víctima y como mujer velada. De hecho,las mujeres musulmanas son frecuentemente una “imaginería cultural”vinculada al islam en vez de fuente de información sobre acontecimien-tos cruciales en sus comunidades. Se reproduce reiterativamente la ima-gen de la mujer oriental como una figura subordinada sufriendo por laopresión religiosa, donde el velo, la reclusión o la marginación son temascomunes, símbolos de las relaciones y limitaciones de la mujer en tierrasdel islam.

3Así hemos podido constatarlo a través de una investigación realizada en 1997 analizando la prensa europea ysu tratamiento de los temas relativos a las mujeres musulmanas: Gema Martín-Muñoz, Julia HernándezJuberías & Mª Angeles López Plaza, La imagen de la mujer musulmana a través de los medios y sus implicacionespara la integración de las inmigrantes en España. Madrid, CAM, 1997.

4 Cuando decimos actitud pasiva nos referimos al criterio establecido así en el ámbito mediático para definir aaquellas personas que no aparecen como individuos desempeñando una capacidad relacionada con eltrabajo o buscando la atención de los medios. Por el contrario su papel pasivo significa que aparecen comovíctimas, en relaciones familiares o ilustrando un paisaje cultural determinado.

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La representación de la mujer velada es una constante que se interpre-ta o bien en clave orientalista (el velo como signo de misterio), o bien enclave tradicionalista (de sumisión y opresión). Así la imagen habitual dela mujer musulmana alimenta el paradigma culturalista que quiere verentre el Islam y el Occidente dos modelos sociales antagónicos: uno re-trasado, otro moderno. Representada sin atributos individuales o perso-nales, se da a entender que la mujer velada no desempeña responsabili-dades o no tiene filiaciones profesionales ignorando no sólo el caráctermultidimensional del significado del velo (como una posición política,una afirmación religiosa y una práctica social) sino también que numero-sas mujeres instruidas y trabajadoras están poniéndose el velo voluntaria-mente en los últimos años 5 . Esta imagen es difícilmente aceptable porOccidente e incluso provoca cierta irritación porque desarma la visióntradicional a la que se aferra. Que las mujeres después de estar discrimi-nadas y postergadas opten voluntariamente por asumir la doctrina islámi-ca y se pongan y reivindiquen el velo es algo que resulta inasimilable paraOccidente y, por tanto, se desinteresa o lo ignora.

Etnocentrismo, porque se parte insistentemente de una metodologíacomparativista que eleva a modelo universal nuestra experiencia históri-ca occidental. De ahí que se identifique con demasiada rapidez occiden-talización con modernización cuando si bien ésta reviste, en efecto, unasignificación que caracteriza a Occidente, también le sobrepasa. En con-secuencia, occidentalización no cubre toda la noción de modernización.Como tampoco es comparable la relación histórica existente entre Razóne Islam con la que en Europa han tenido religión e interpretación racio-nal. En el primer caso no se dio el radical conflicto entre Razón y Fé (laexistencia del idjtihad –la interpretación racional para hacer jurispruden-cia islámica- es una prueba concluyente) que sin embargo caracterizó alsegundo. La experiencia europea se ha conformado a partir de una con-cepción lineal de la modernización, según la cual la marginación de lapertenencia religiosa va unida al avance hacia la modernidad. Sin em-bargo, esta constatación es sólo fruto de la experiencia histórica occiden-

5 Entre el velo haïk (tradicional), el niqab (fundamentalista: negro y que cubre todo el rostro) y el hiyab (versiónislámica moderna que, a diferencia de los demás, cubre la cabeza pero deja la cara descubierta de maneraque el velo pierde su misión tradicional de hacer invisible y anónima a la mujer en el espacio público) haytodo un lenguaje sociológico que expresa la diferencia entre la nueva generación y la precedente, entre laque estudia y sale y la recluida, entre la que se afirma y la que se somete. Ver Gema Martín Muñoz“Mujeres islamistas y sin embargo modernas” en Mercedes del Amo (ed) El imaginario, la referencia y ladiferencia: siete estudios sobre las mujeres árabes. Universidad de Granada. Granada, 1997.

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tal en tanto que en otras áreas geográficas, donde la religión ha desem-peñado otra función, no se pueden negar a priori dinámicas sociopolíticasque, porque integren la identidad islámica en su proyecto, estén necesa-riamente abocadas al tradicionalismo e inmovilismo. Por el contrario, todoello no es sino reflejo de la revalorización de «lo autóctono» y la negaciónde «lo importado», experiencia que caracteriza hoy día al mundo musul-mán, consecuencia de una doble vivencia fruto de la experiencia históri-ca colonial: la de la relación con el Otro, Occidente, y la de la relaciónconsigo mismo y su necesidad de promover una realidad propia. Se haasumido demasiado dogmáticamente el silogismo: “ser civilizado” = “seroccidental” (luego moderno), lo que nos dificulta para entender quepueden existir dinámicas socioculturales que integren la búsqueda del“ser moderno” conservando el islam.

Asimismo, la construcción histórica occidental en torno a la cual seha generado el laicismo como un valor de modernidad y democracia nose ha reproducido en el mundo árabe e islámico, donde el laicismo no hasido fruto de una modernización “desde abajo” de la sociedad (que no haexperimentado un proceso social extensivo de secularización) sino “des-de arriba” (fruto del voluntarismo modernista de los líderes nacionalistasposcoloniales), y dado que en el mundo musulmán el secularismo ha sidoa menudo asumido e impulsado por elites dirigentes patrimonialistas yautoritarias, existe pues un potencial conflicto de interés entre democra-cia y laicismo en esta región. Sin embargo, hay que decir, que el debateoccidental sobre la democratización en el mundo árabe ha fracasadoampliamente a la hora de admitir esto.

Finalmente, habría que señalar otro significativo ejemplo que nos ayudaa constatar esa tendencia etnocentrista en nuestra mirada hacia el mun-do árabe e islámico. Se trata de la arraigada tendencia a seleccionarcomo fuentes de información creíble y como interlocutores válidos a lasélites occidentalizadas de esos países. De ahí el cúmulo de incomprensi-ones porque nuestro conocimiento sobre esas sociedades se reduce a unasola representación, y además a una representación que si bien necesariade tener en cuenta no es la más representativa. Es éste un reflejo que nosmuestra nuestra tendencia a querer dialogar siempre con nosotros mis-mos y por ello nuestros interlocutores son aquellos que son los más fieles anuestro modelo y a nuestra imagen.

En consecuencia, mientras desde la perspectiva occidental existe unimaginario social que está dominado por prejuicios de tipo cultural y re-

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ligioso hacia los musulmanes, entre estos la evocación de Occidente estácentrada en la política que rigen los gobiernos occidentales al servicio desus intereses en diversas partes del mundo árabe e islámico, sentida comoacumulativamente injusta.

LA TEORIA DEL « CHOQUE DECIVILIZACIONES » Y EL 11 DE SEPTIEMBRE

No fue en absoluto casual que tras la guerra del Golfo surgiese lateoría del “choque de civilizaciones” firmada por el politólogo estadouni-dense Samuel P. Huntington6 . Este escrito de Huntington se iba a con-vertir para muchos en la nueva ideología de la posguerra fría. Lo que elprofesor de Harvard planteaba inicialmente entre interrogaciones, ¿Cho-que de civilizaciones?, y tres años después sin interrogante alguno, El cho-que de civilizaciones y la reconfiguración del orden mundial7 es que “la fuenteprincipal de conflicto en este mundo nuevo no va a ser en primer lugar niideológica ni económica. Las grandes divisiones del género humano y la fuentepredominante de conflicto van a estar fundadas en la diversidad cultural” (...).E identificaba como civilizaciones competitivas y en conflicto con la occi-dental a la islámica y confuciana.

Su falta de rigor científico debería haber hecho pasar sin pena ni glo-ria este pequeño artículo sino hubiese sido porque respondía a la necesi-dad de aportar una nueva ideología (curiosa contradicción para una tesisque afirmaba el fin de las ideologías) para justificar moralmente la rees-tructuración mundial, cargada de hegemonía económica y política, queaspiraba a presidir EEUU. Lo cultural y religioso se va a convertir demanera aún más intensiva en el instrumento a partir del cual cegar a lassociedades occidentales ante la fuerte carga política de la actuación oc-cidental fuera de sus fronteras. La fórmula podría definirse en algo asícomo: si la explicación de lo que ocurre se basa sobretodo en un determi-nismo cultural y religioso anti-occidental se consigue eludir las responsa-bilidades de la acción política y militar de Occidente en el exterior.

6 “Clash of civilizations”, Foreign Affairs, 1993, no.3, pp. 22-49. Ha sido publicado en español por Tecnos, 2002.7 The Clash of civilizations and the remaking of world order. New York: Simon & Shuster, 1996. Publicado en España

por Paidós en 1997

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En realidad, la aportación de Huntington venía principalmente delhecho de haber sabido articular en una teoría política lo que ya existíadesde hacía mucho tiempo: el sentimiento de superioridad cultural occi-dental y su imaginario anti-islámico, en un momento en que una buenaparte de la atención internacional se centraba en el Medio Oriente. Así,al igual que ocurrió con la empresa colonial europea, esta concepciónalimenta el vínculo entre cultura e imperialismo, de manera que la pri-mera sirve para proteger e incluso justificar al segundo.

Todo este universo mental occidental se ha reforzado de manera pre-ocupante desde los atentados del 11 de septiembre y, aunque el presiden-te Bush ha afirmado en sucesivas declaraciones que la política americanaestá guiada por un profundo respeto hacia el islam y que no existe unaguerra contra el islam, que es “una fe basada en la paz, el amor y la compa-sión”, la observación de los hechos no lo confirman, dada la manera enque EEUU está interpretando y presentando las causas de la violencia enel mundo islámico y las respuestas que se están dando para acabar condicha violencia.

En realidad, estas afirmaciones “bienpensantes” están siendo contra-dichas por asesores y miembros del partido de Bush que proclaman sinreparos su convicción de todo lo contrario. Kenneth Adelman, miembrodel Consejo político del Pentágono, declaraba: “cuanto más se examinaesta religión, más militarista aparece. Después de todo, su fundador, Muham-mad, fue un guerrero, no un abogado de la paz como Jesús”; Eliot Cohen, delConsejo asesor del Pentágono, también afirmaba que “aunque es muyincómodo decir (....) que una de las mayores religiones del mundo tiene unaprofunda tendencia a la agresividad, sin embargo atreverse a hacerlo es una delas cosas que definen al liderazgo”; Paul Weyrich, influyente activista de laCasa Blanca, decía a su vez que “el islam está en guerra contra nosotros” yse quejaba de la promoción que la administración americana hace delislam como religión de paz y tolerancia al igual que el judaísmo y el cris-tianismo, “cuando no es así”8 .

Por otro lado, el simple hecho de tener que hacer estas afirmaciones afavor del islam, tener que demostrar si el Corán justifica el terrorismo ono, si el suicidio forma parte de la cultura islámica o no, si el yihâd signi-fica esto o aquello, obligando a todo musulmán a tener que defenderse

8 Washington Post, 1/12/02.

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diariamente ante la sospecha generalizada de que representa un potenci-al fanatismo inherente a su cultura y religión, es la prueba misma de queel islam y los musulmanes no son juzgados con los mismos estándares queel judaismo y el cristianismo. Al igual que prueba que existe una obsesiónenfermiza por explicar todo lo que ocurre en los países musulmanes enfunción de lo “cultural-religioso” en detrimento de “lo político”, lo cualen absoluto se hace con otras religiones, otras culturas u otras experienci-as históricas donde la violencia ha estado enormemente presente tambi-én (porque cuando el terrorismo procede de grupos de pertenencia cristi-ana o judía nadie busca en la Biblia o en la cultura la explicación de esaviolencia).

Esta visión, además, va unida a la expresión de un arrogante chovinis-mo religioso y cultural americanos. El presidente Bush no ha cesado demanifestar que “Dios está de nuestra parte”, de cantar “God bless Ameri-ca”, de definir de “cruzada” y “justicia infinita” su guerra contra el terroris-mo (hasta que le dijeron que era políticamente incorrecto) y, para granmanifestación de prepotencia cultural, aseverar en el Congreso nortea-mericano que lo que motiva a los terroristas “es su odio a la libertad y a lademocracia”. Estas actitudes se anclan rígidamente en la explicación “cul-turalista”, con la que se engloba y estigmatiza a todo el universo del islamy a todos los musulmanes, a la vez que evidencian el deseo explícito de noafrontar la verdadera explicación: que el fenómeno Ben Laden es unareacción convulsiva y extrema de la pax americana impuesta desde laGuerra del Golfo en el Medio Oriente, y particularmente en Arabia Sau-dí y el Golfo, que tiene su propia estrategia de poder totalitario comorespuesta.

Ben Laden nunca ha hablado de la libertad y democracia americanassino de su intervencionista política exterior en los países musulmanes y elanálisis no debe ser escamoteado por el hecho de que provenga de unpersonaje detestable por su inaceptable acción terrorista. Como se hadicho sin cesar la lucha contra el terrorismo es muy compleja y sobre todomuy difícil. No existe un remedio evidente, pero, junto con las estrategi-as policiales y de fuerza, se debe también luchar contra sus causas y es ahídonde la política entra decididamente en juego. Y en el Medio Orientese han acumulado multitud de problemas, conflictos y lamentables situa-ciones humanas cuyas raíces son profundamente políticas. Ningún movi-miento clandestino puede operar sin apoyo popular y sin un entorno queesté dispuesto a aportar reclutamientos, apoyos económicos y medios pro-

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pagandísticos. Asimismo, busca ganar popularidad y comete sus atenta-dos en el momento en que cree que se dan las condiciones para conseguiradhesión a su causa. Este es también el caso del turbulento y turbio grupode Ben Laden. La prueba está en el contenido completamente político desu mensaje.

Ben Laden hizo una declaración que lejos de representar simplementeal «loco de Alá» que casi todos esperaban en el mundo occidental -redu-ciéndose a imprecaciones culturalistas, fanatismo irracional, y mencionesultrarreligiosas- puso el dedo en la yaga de los conflictos y tragedias hu-manas que asolan la región y que están diariamente presentes en el sentirde las poblaciones musulmanas, con el fin de manipularlas a su favor.

No porque lo dijese Ben Laden dejaba de ser una realidad que desdeel reparto colonial tras la Primera Guerra Mundial el Medio Oriente havivido una desgracia tras otra, en muy buena parte consecuencia de lainjerencia y los intereses externos: la división artificial de Estados al ser-vicio de las potencias extranjeras, la manipulación de esas potencias delas minorías cristianas orientales generando conflictos confesionales, lainstalación de elites gobernantes al servicio de las mismas potencias paradesgracia de sus poblaciones, el abandono de los derechos palestinos, elapoyo y consolidación de sátrapas como Saddam Hussein que, antes deconvertirle en 1991 en el «Hitler» del Medio Oriente, fue durante unadécada el hombre de occidente en contra del Irán de Jomeini (lo mismoque ha ocurrido con el propio Ben Laden en el marco afgano)...

Tampoco porque lo dijese Ben Laden dejaba de ser una realidad quela dependencia que Arabia Saudí tiene de protección militar exterior lehaya llevado a caer en la contradicción de permitir que se instalen basesnorteamericanas en un territorio que los propios saudíes han convertidointensivamente en símbolo sagrado del islam, si bien al servicio de supropia legitimidad para mantener un régimen despótico y tribal que notiene capacidad para alzar la voz y defender las injusticias que castigan alas poblaciones del mundo musulmán al que pretende representar en ex-clusiva.

Y no porque lo dijese Ben Laden dejaba de ser cierto que existe unsilencio culpable ante la muerte y sufrimiento de los niños iraquíes some-tidos a un embargo internacional injusto y letal cuyos objetivos políticosde derrocamiento del régimen iraquí fueron probadamente ineficaces, yque existe una inaceptable insensibilidad ante la violencia diaria que

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sufre la sociedad civil palestina porque el apoyo incondicional de EEUUa Israel ha prevalecido sobre el derecho internacional y el sufrimientohumano.

La manipulación y oportunismo de Ben Laden de ese sufrimiento enbeneficio de su espúria causa no hace irreal ese sufrimiento. Existe, y es laraíz del problema, y en tanto que no se resuelvan esos problemas con uncambio de la política internacional en esta zona no se podrá luchar ver-daderamente contra el terrorismo que representa este personaje. No setrata de una lucha entre civilizaciones y culturas, sino de afrontar lasolución política de los problemas.

Marginando el análisis racional y político se están eludiendo las ver-daderas actuaciones que pueden eficazmente luchar contra la extensiónde esa violencia. La batalla contra el terrorismo trasciende totalmente elparadigma civilizacional y su éxito a largo plazo. Se basa tanto en superaruna amenaza como un desafío: conocer y entender la diversidad del mundomusulmán para debilitar a los extremistas y alentar a los reformistas; darsalidas políticas y no militares a los conflictos en esa región y contribuir amejorar la terrible existencia que llevan la mayor parte de las poblacionesciviles en esos países.

La mayor parte de las acciones y medidas asumidas en pro de la luchacontra el terrorismo tras los atentados del 11 de septiembre de 2001, sibien han sido presentadas como en defensa y protección de los idealesdemocráticos, no pueden ser consideradas de naturaleza democrática.Las nuevas legislaciones “anti-terroristas” puestas en práctica en EEUU,y en buena medida imitadas por otros Estados democráticos occidentalesse han aplicado en un marco ambiguo en el que deliberadamente ni se hadefinido qué es el terrorismo ni qué criterios se establecen para verificarcomo terroristas a todos aquellos que los respectivos miembros de la hete-rogénea coalición internacional acusan como tales.

La ambigüedad sobre quienes son verdaderamente terroristas ha traí-do como resultado la consolidación de los regímenes represivos, predomi-nantes en la gran mayoría de los países árabes y musulmanes. Una pruebade que esa ambigüedad no es sólo permitida sino buscada, es que se hanrechazado todas las propuestas para establecer mecanismos internaciona-les de supervisión de la acción de los Estados en el marco de la luchacontra el terrorismo.

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Como indicaba el conocido opositor tunecino Moncef Marzuki, “nuncalas dictaduras han estado mejor situadas en el mundo como desde el 11 de Sep-tiembre”, sin embargo, señalaba con lucidez que los dirigentes occidentalestenían que comprender que lo que más miedo les da de los países árabes eislámicos: la emigración y el terrorismo “son consecuencia directa de la dicta-dura y la corrupción”9 . La cooperación en materia anti-terrorista puesta enpráctica desde el 11 de Septiembre, va a dejar de lado la cuestión de loscambios políticos que necesariamente hay que promover para lograr la ver-dadera estabilización de esta volcánica parte del mundo y su consiguientedesarrollo económico, y, por el contrario, ha consolidando la impunidad deunos regímenes que tienen bajo una presión socio-económica y políticainsoportable a la gran mayoría de sus poblaciones.

La situación en los países del Norte de Africa y Medio Oriente es deuna gran gravedad: los gobernantes padecen una gran crisis de legitimi-dad, sus sistemas políticos están minados por la corrupción y el nepotismoy dirigen sus sociedades con puño de hierro. Enormes injusticias socialesy totalitarismo político son los dos principales elementos que caracterizana esos Estados, y son la causa de la prolongación de otros males que blo-quean la modernización (desigualdad entre los sexos, intolerancia y con-servadurismo social, rechazo del pluralismo). Este contexto se ha vistoagravado por los efectos devastadores que la situación de los palestinos yel embargo contra la población civil iraquí han causado en las opinionespúblicas árabes y musulmanas, sentidas como dos ilustraciones de unaactitud discriminatoria de la comunidad internacional.

En este contexto, la alteración de las relaciones internacionales queha engendrado la política de “guerra contra el terrorismo” ha resultadomuy provechosa para el totalitarismo de los gobernantes en esta región.Para todos aquellos regímenes sumidos en una lucha intensiva contra susoposiciones internas, la oferta americana de cooperación antiterroristales ha permitido legitimar sus políticas represivas de seguridad y sus “leyesanti-terroristas” al margen de todo estado de derecho y se han encontra-do con que, para gran satisfacción suya, el marco internacional ha legiti-mado esa amalgama buscada intencionadamente para no definir quién esquién en esta parte del mundo y por tanto utilizarla a su conveniencia,que es el “terrorismo islámico”10 .

9 Le Monde, 11/12/2001.10 Gema Martín Muñoz, El Estado Arabe. Crisis de legitimidad y contestación islamista. Barcelona, Edicions Bellaterra,

2000.

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Por otro lado, tras el 11 de septiembre la política del gobierno israelí seha dirigido tajantemente a querer reducir el conflicto con los palestinos auna cuestión de terrorismo y beneficiarse de la impunidad que se derivade esa nueva lucha contra el terrorismo, para que se ignore que la raíz delproblema es la ocupación de los territorios palestinos, su sistemático in-cumplimiento de las resoluciones de la ONU, y sus violaciones continua-das de la Convención de Ginebra.

Todo ello nos lleva a plantear varias cuestiones claves: ¿la alianzamundial contra el terrorismo que EEUU ha instaurando es capaz de afron-tar las causas profundas que producen esa violencia, o corre el riesgo dealimentarlas más? ¿El concepto de seguridad se va a orientar en la bús-queda de paz y estabilidad para la región árabe y musulmana, teniendoen cuenta que eso exige favorecer la democracia y las libertades, o se vaa limitar a mantener el tan arriesgado statu quo existente? El análisis de loocurrido desde el 11 de septiembre hasta la actualidad invita a un granpesimismo.

LAS RAÍCES DE LA NUEVA ISLAMOFOBIAOCCIDENTAL

Todo ese universo mental occidental anti-islámico que se ha reforzadode manera preocupante desde los atentados del 11 de septiembre, estáteniendo una repercusión determinante para los musulmanes y árabesviviendo en suelo occidental. Las fuentes principales que han realimen-tado los prejuicios contra los nacionales procedentes de países de ads-cripción musulmana han sido sustantivamente dos: las nuevas leyes “pre-ventivas” aplicadas en el mundo occidental con respecto a los residentesprocedentes de esas nacionalidades; y el tratamiento dado a esta cuesti-ón por los medios de comunicación.

Nada más ocurrir los atentados contra las Torres Gemelas se desenca-denó una ola racial de ataques contra personas originarias de OrienteMedio y los países del sudeste asiático, lo que motivó que la sección deDerechos Civiles del Dpto. de Justicia el mismo 13 de septiembre emitie-se un comunicado en el que se decía que “cualquier amenaza de violen-cia o discriminación contra Arabes y Musulmanes Americanos, no sóloera antiamericano sino perseguible por la ley”. El presidente Bush visitó

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el Centro Islámico de Washington el 17 de septiembre y una resoluciónde condena fue emitida por el Congreso. Pero lo más significativo de todoello es que sólo se mencionaba a Arabes y Musulmanes « americanos »,y esta distinción se plasmó, de hecho, en una política de doble raserodesde el momneto en que se empezó a legislar en pro de la “seguridadnacional”, de manera que los doce meses siguientes el Dpto. de Justiciahabía dirigido una persecución indiscriminada o “preventiva” hacia Ara-bes del Medio oriente y musulmanes del sudeste asiático (detenciones,expulsiones, interrogatorios). La American Patriot Act de octubre de 2001,que concede poderes de vigilancia e investigación sin precedentes, hasido el instrumento con el cual se ha llevado a cabo esta persecucióncontra residentes de esas nacionalidades. En septiembre de 2002 la Nati-onal Security Entry-Exit Registration System incluyó la toma de huellasdactilares a todos los visitantes a US considerados “de alto riesgo”, obli-gándoles a registrar su residencia ante las autoridades y confirmar susalida. Fueron los nacionales de Iran, Iraq, Libia, Sudán y Siria los princi-palmente sometidos a esta ley, si bien esos países nada tenían que ver conel 11/9. Y todos los residentes extranjeros procedentes de esas nacionali-dades al ir a registrarse fueron masivamente detenidos. Es decir, de los 20cambios legislativos producidos desde el 11 de sept. 15 van destinadosespecíficamente a Arabes y musulmanes. Y de hecho, más de 60.000 per-sonas se han visto afectadas por esta reglamentación gubernamental.

Todas estas medidas se han puesto también al servicio del cierre a lainmigración de gente procedente de los países del Medio oriente y el sudesteasiático musulmán. El Dpto. de Justicia deportó a 6000 Middle east peoplepor irregularidades en sus papeles o visas. Es decir, el 11/9 ha sido tambiénaprovechado para cerrar la inmigración y limpiar de Arabes y Musulmaneslos US, siguiendo las recomendaciones del conservador Centre for Inmigrati-on Studies, que en un informe sobre “The Open Door: How militant Islamicterrorist Entered and Remained in US 1993-2001”, lejos de remitirse al aná-lisis del fenómeno terrorista, hacía la amalgama con la inmigración y reco-mendaba una reducción determinante de la misma.

En el caso de Europa, la tendencia es similar y la prueba de ello es quese está avanzando en el establecimiento de una legislación anti-terrorista«sólo para extranjeros» y completamente estigmatizadora contra los inmi-grantes -y dirigida hasta ahora concretamente a Arabes y musulmanes-.Este ha sido el caso de Inglaterra, por ejemplo, que para aplicar su Anti-terrorism, Crime and Security Act ha tenido que retirar su adhesión al

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artículo 15 de la Convención Europea de Derechos Humanos, uno de losgrandes logros del humanismo europeo. Así mismo, el carácter arbitrariodel celo policial hacia dicho grupo étnico y religioso se va constatando amedida que muy buena parte de los detenidos como presuntos individuosvinculados a al-Qaeda no han podido ser acusados en firme por falta depruebas (lo cual puede que no sea ajeno al celo policial que se ha puestoen la «caza contra el terrorista islámico» cuando lo que hay, lógicamente,es muchos opositores políticos contra los regímenes dictatoriales de suspaíses de origen, los cuales les designan ante sus aliados políticos europe-os como «terroristas» para lograr también su persecución en Europa).

Es decir, se ha puesto en práctica una política claramente racial. Seestá usando la raza, el aspecto étnico, y la adscripción religiosa, como elelemento clave que puede predecir quien puede estar implicado en unacto terrorista. Así, el perfil racial ha prevalecido sobre el principio deinocencia hasta probar la culpabilidad, relegando la sospecha razonablepara justificar detenciones e interrogatorios arbitrarios.

En consecuencia, el perfil racial se ha convertido desde el 11/9 en unfenómeno de criminalización global de todo un grupo en el mundo occi-dental y en el mecanismo preventivo de la lucha contra el terrorismo endicho suelo, ocasionando multitud de detenciones arbitrarias entre losmusulmanes y originarios de Oriente Medio que residen en EEUU y Eu-ropa. Esto ha traído consigo la tendencia a identificar al potencial terro-rista por lo que es (la adscripción religiosa-étnica) en vez de por lo quehace, incrementado de manera preocupante el racismo a través de laislamofobia. Esa nueva islamofobia, basada en el sentimiento de sospechahacia todo musulmán como una posible “arma oculta” de Osama BenLaden, se ha justificado en función del patriotismo o la autodefensa, y,por tanto, ha adquirido un importante nivel de legitimación y desculpa-bilización social.

Es decir, esas leyes raciales preventivas son la contraparte en la políti-ca interior de lo que en la política exterior está siendo el “ataque preven-tivo”.

Esta situación está centralizando el fenómeno del terrorismo en el es-tatuto de extranjería (como si no necesitasen la misma atención los ter-rorismos nacionales y locales; o como si no se concediese la misma impor-tancia a los demoledores terrorismos de Estado que aún siguen existiendoen una muy importante parte del planeta). Por otro lado, se ha vulgariza-

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do el término “terrorismo islámico”, lo que es un atentado a la dignidadde millones de musulmanes, como lo sería para otros si se hablase deterrorismo católico, protestante o judío. Y todo ello está creando unprofundo sentimiento reactivo contra Arabes y Musulmanes en suelo oc-cidental, percibidos globalmente como el “arma oculta de Ben Laden”,cuyo resultado es la extensión de la islamofobia. 19 individuos en unavión se convierten en la representación global de más de mil millones demusulmanes; y a los que viven en suelo occidental, los autóctonos lesrecuerdan su presencia ilegítima, obligándoles a justificar su lealtad yfiabilidad. Y, en este sentido, habría que decir que los principales discri-minadores son los gobiernos con esas nuevas legislaciones anti-terroristasde tipo racial preventivo de gran impacto mediático y sobre las opinionespúblicas.

Ya en noviembre de 2002 un informe de Human Rights Watch señala-ba que en US las agresiones sufridas por la población musulmana habíanaumentado en un 1700% desde el 11/9. Y las encuestas transmiten eseimaginario social creado: la mayoría norteamericana se expresa a favor decrear una carta de identificación especial a los Arabes, inlcuidos los na-turalizados, y a favor de tomar medidas policiales y de seguridad especi-ales para ellos. En Agosto del 2002 otra encuesta sacaba a la luz unamayoría que pensaba que “hay demasiados árabes en US” y un 60% erapartidario de tomar medidas restrictivas hacia ellos. Y todo este ambienteha liberado las voces racistas, como por ejemplo los populares líderes evan-gelistas, Franklin Graham y Jerry Vines que no han cesado de decir queel Islam es una amenaza para America y Occidente, pidiendo que losMusulmanes sean “incitados a dejar el país porque son una quinta colu-mna en los EEUU”.

En Europa, el Summary Report on Islamophobia in the EU after 11/9,elaborado por el European Center against racism and xenophobia en Mayode 2002, prevenía sobre el alarmante aumento del sentimiento de sospe-cha y los estereotipos contra los musulmanes en los países de la UE yresaltaba que las nuevas medidas gubernamentales se basaban en accio-nes policiales indiscriminadas hacia las asociaciones árabes y musulma-nas, así como ha aumentado la intransigencia y la agresión contra lasmujeres musulmanas que usan el pañuelo en la cabeza (hiyab). Y, lo quees muy importante, frente a esta situación, las iniciativas gubernamenta-les e institucionales para atajar este problema han tenido un nivel muybajo o casi inexistente.

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Consecuencia de todos estos factores, se ha ido enraizando el sentimi-ento occidental de que de todos los muy diversos colectivos de inmigran-tes que están llegando a nuestros países, el de los musulmanes es el queplantea un potencial conflicto para nuestras sociedades, sus valores eidentidad. Se establece la divisoria entre “culturas conflictivas” y “cultu-ras integrables”. Identificado entre las primeras, el islam se convierte enfactor de distanciamiento y amenaza y de ahí que, de hecho, se estable-zca el sentimiento social de inmigrantes “deseados” e inmigrantes “intru-sos”. Por ejemplo, en España, cronistas, destacados políticos y responsa-bles de la política migratoria han desarrollado un discurso público basadoen la necesidad de orientar nuestra demanda laboral de inmigración ha-cia las comunidades latino-americanas o de la Europa del Este porque sucondición de cristianos es un factor clave de integración. Se reclamapúblicamente que debemos seleccionar inmigrantes “con afinidades delengua, religión y cultura”. Consecuencia de todo esto es que el colectivomarroquí inmigrante (el principal de origen árabe y musulmán en es-paña) se ha convertido en “el otro más significativo”, y es el más rechaza-do por la sociedad española. Es una inmigración “no deseada”11 .

No obstante, el estudio de la presencia musulmana en Europa occi-dental llegada a través de las migraciones contemporáneas desde hace yavarias decenas de años, lleva a la constatación de que esa presencia esdefinitiva, que se está desarrollando un islam de Europa porque los mu-sulmanes europeos se van insertando en las instituciones y en el espaciopúblico europeo, porque se definen cada vez más por su pertenencia a lospaíses, a las ciudades donde viven y a Europa, y que lo hacen en tantoque musulmanes a través de una dinámica voluntaria y pacífica que noha dado lugar a tensiones agudas o innegociables. Es decir, es un proble-ma construido y no real.

También querría suscitar aquí el papel clave que desempeñan los medi-os de comunicación occidentales y que repercute en la situación de Arabesy Musulmanes en Occidente. Quizás el elemento más importante sea quedichos medios construyen permanentemente “la imagen de la distancia”con respecto a todo lo que procede de Arabes y musulmanes. Siempre se-leccionan lo más extremo y extraño y le dan toda la centralidad, dando aentender que eso representa a todos. Siempre representan imágenes de

11 Ver Gema Martín Muñoz (dir), Marroquíes en España. Estudio sobre su integración. Madrid, Ediciones de laFundación Repsol YPF, 2003.

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masas, y es muy difícil identificarse con las masas, sobre todo, como es lomás frecuente, si aparecen en el momento de la “emoción”. No suele repre-sentarse al individuo que puede dar coherencia a ese momento emotivo oviolento. Por el contrario, se pone al servicio del estereotipo dominante enla mentalidad occidental de que no son los individuos quienes hacen suhistoria sino que es el islam el que marca y determina a los individuos; así,se representa a un mundo que evoluciona (el occidental) y otro (el musul-mán) condenado a un ciclo repetitivo de miseria y violencia sin esperanzade salir de él. Esos ciudadanos parecen no tener acceso a la Historia, aconstruirla como individuos. No son más que correas de transmisión pasivade un destino comunitario prescrito. Todos son uno, y a partir de ahí seidentifica a todos con la noticia más sensacionalista del momento: un aten-tado terrorista, un actor extremista, un acto de violencia o fanatismo…

Y esa construcción mediática de la distancia se refleja en un proceso dedeshumanización que hace diferentes las víctimas de unos y de otros. Laconstrucción mediática de la proximidad se reserva a las víctimas del 11 desept., a los ciudadanos israelíes, a los soldados norteamericanos en Iraq; entanto que domina la distancia cuando las víctimas son palestinas, iraquíes.

¿Por qué en algunos casos se siente la necesidad de crear proximidad ypor qué en otros, cuando sin embargo se vive desde hace décadas con ellos,son nuestros vecinos y conciudadanos, se sigue construyendo una imagenmarcada por la distancia y la diferencia? Esta es una de las más importantescuestiones sobre las que debe reflexionar el mundo occidental.

LA INVASION DE IRAQ

La invasión americana de Iraq es un acontecimiento de gran magni-tud porque, entre otras razones, por primera vez desde la Segunda GuerraMundial la opinión pública europea y la estadounidense han reaccionadode manera opuesta y, al mismo tiempo, ese alejamiento ha ido unido auna reacción común de las opiniones públicas europeas que en algunoscasos está en abierta oposición a sus gobiernos, cuando éstos han apoyadoy participado en la ocupación de Iraq enviando contingentes militares(como es el caso de Inglaterra, España e Italia)12 .

12 Gema Martín Muñoz, Iraq, un fracaso de Occidente (1920-2003). Barcelona, Tusquets, 2003.

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Así mismo, se ha dado una importante circunstancia como es que lasopiniones públicas europeas y las árabes y musulmanas han coincididopor primera vez en su común rechazo a la política, sin que las primerasse dejasen arrastrar por la obsesión culturalista. En ambos casos, la per-cepción es común : las causas de lo que está ocurriendo en OrienteMedio procede eminentemente de factores políticos, resaltando que elfactor más pernicioso es la ocupación, ya sea de Iraq como de los terri-torios palestinos. La incidencia de dicha circunstancia es difícil de ana-lizar dado su carácter tan reciente pero puede ser un significativo pasopara « desvelar » la mirada occidental hacia el mundo musulmán y sedé cuenta de que la raiz de los conflictos y la violencia son políticos yno culturales.

Por otra parte, la realización de algunas significativas encuestas deopinión en los países árabes y musulmanes circundantes de Iraq hanpermitido dar a conocer una visión más real del imaginario de dichaspoblaciones sobre Occidente y constatar que el conflicto procede de lapolítica y no de la cultura o los valores democráticos occidentales. Laúltima encuesta de opinión realizada por la prestigiosa institución ame-ricana The Pew Research Center for the People and the Press en sietepaíses árabes, Turquía e Israel a finales de 2003 para conocer las opini-ones sobre EEUU y su política tras la invasión de Iraq, es muy significa-tiva al respecto.

Excepto en Israel, en todos estos países los ciudadanos se manifies-tan “arrolladoramente opuestos a EEUU» y en algunos casos, como enJordania y Palestina, esta posición antiamericana alcanza al 99 y 98%de los encuestados respectivamente. Incluso en Turquía, país no árabey con una gran tradición pro-occidental, el apoyo a EEUU se ha reduci-do drásticamente con respecto a las encuestas realizadas en 2000-2002,de manera que hoy día sólo el 15% de los encuestados turcos expresansentimientos positivos hacia EEUU y la gran mayoría rechaza incluso ellimitado apoyo que su gobierno ofreció a los estadounidenses para suinvasión de Iraq.

Frente a esta posición casi unánime, la mayoría de los israelíes (79%)expresan posiciones favorables a EEUU y su política.

Asimismo, si se compara con la situación de 2002, la lucha contra elterrorismo liderada por Washington ha perdido de manera radical crédito

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en estos países: menos de un cuarto de los encuestados la apoya hoy día.Es decir, la “guerra contra el terrorismo”, tal y como la formula y aplicaEEUU, no tiene base social en buena parte del mundo donde se tiene quellevar a cabo con éxito dicha “guerra”.

Pero es de gran importancia señalar que estas consideraciones con-trarias a EEUU proceden de valoraciones estrictamente políticas y nosobre su cultural o modelo. Es más, la encuesta muestra que, lejos dereplegarse en actitudes “culturalistas” frente a la amenaza externa,existe entre los ciudadanos árabes y musulmanes “un enorme apetitopor las libertades democráticas ». Incluso defendiendo muchos de ellosun papel prominente del islam en la vida política, “no por ello dismi-nuye su apoyo a favor de un sistema de gobierno que garantice lasmismas libertades civiles y derechos políticos que gozan las democra-cias”. Aún más significativo es el hecho de que “quienes defiendenun mayor papel para el islam en la política son los que expresan unmayor interés por las libertades y las elecciones libres y competitivas”.De ahí que los estereotipos sobre la imposibilidad de acomodar inter-pretaciones islámicas a modelos democráticos deban cuando menosponerse en cuarentena.

Todo ello viene a constatar que, en contra de lo que muchos pien-san desde el mundo occidental, el desencuentro existente entre di-cho mundo y las poblaciones árabes y musulmanas tiene una raíz pro-fundamente política y se alimenta de un sentimiento creciente deinjusticia y arbitrariedad producidas por la política internacional li-derada por EEUU, quien, lejos de favorecer la democratización y elrespeto de los derechos humanos, otorga impunidad a sus gobernanteslocales; y quien, lejos de contribuir al fin de la ocupación israelí delos territorios ocupados palestinos, imita el comportamiento de Israelocupando a su vez Iraq. Sentimiento que, además, comparten en muybuena medida las opiniones públicas europeas, tal y como tambiénmuestra esta encuesta realizada al mismo tiempo en los países de Eu-ropa. Todo ello está promoviendo actitudes nuevas que cuestionan lapolítica internacional en Oriente Medio, que denuncian la maneraen que se está poniendo en práctica la guerra contra el terrorismo;reaccionan contra las mentiras y empiezan a percibir que han sidomanipulados para ver al mundo árabe y musulmán como un enemigoglobal y con ello desculpabilizar a sus gobernantes de la responsabili-

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dad de la violencia que está estallando en esta región del mundo.Quizás, después, pasen a replantearse sus relaciones con sus vecinosárabes y musulmanes.

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Premissas para uma AdequadaReforma do Estado

Premises for a Proper StateReformation

WILSON STEINMETZ

Professor e pesquisador do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA/RS)e do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS/RS).

RESUMO

Argumenta-se que a função estratégica do Estado, a crise do tipo Estado-nação, a questão democrática na era da globalização e a posição preferencialdos direitos fundamentais no Estado constitucional contemporâneo são temasrelevantes para uma adequada condução das reformas do Estado – ou para aconstrução de um novo modelo de Estado, como desejam alguns. Supõe-se quea desconsideração desses temas como premissas para a definição e execuçãode reformas do Estado – ou de construção de um novo modelo de Estado –limita as possibilidades de superação duradoura da crise.Palavras-chave: Reforma do Estado, crise do Estado-Nação, democracia,direitos fundamentais.

ABSTRACT

It is argued that the strategic function of the State, the State-nation type crisis, thedemocratic issue in the globalization era and the preferential position of the fun-damental rights in the contemporary constitutional state are relevant topics for a

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proper management of the State reformation, or for the construction of a newState model, as wanted by some. It is supposed that the disregard for these topicsas premises to the definition and execution of State reformations, or the constructionof a new state model, limits the possibilities of lastingly overcoming the crisis.Key words: State reformation, State-nation crisis, democracy, fundamentalrights.

Neste início do século XXI, a crise e a reforma do Estado, bemcomo a necessidade e as possibilidades de um novo modelo de Estadosão temas que ainda atraem o interesse dos intelectuais (da academiae de fora dela) e ocupam posição de destaque na agenda política,nacional e internacional. Assim tem sido desde o início da crise doEstado do Bem-Estar (Welfare State) europeu, na década de 70, e dacrise do Estado Desenvolvimentista latino-americano, na década de80, do século XX.

Aqui, não analiso as causas da crise do Estado nem as reformas jáexecutadas nos últimos vinte anos, as ainda em curso e as que estãosendo anunciadas para o próximo período, na Europa e na AméricaLatina. Em relação a isso, a literatura especializada existente é abun-dante e de muito boa qualidade. O que faço aqui é argumentar sobretemas que considero premissas relevantes para uma adequada condu-ção das reformas do Estado – ou para a construção de um novo modelode Estado, como preferem alguns –, tomando como referência a Amé-rica Latina, sobretudo o caso brasileiro. Suponho que a desconsidera-ção desses temas como premissas para a definição e execução de refor-mas do Estado – ou de construção de um novo modelo de Estado –limita as possibilidades de superação duradoura da crise. Esses temassão a função estratégica do Estado, a crise do tipo Estado-nação, ademocracia ante a globalização e a posição preferencial (preferente,reforçada) dos direitos fundamentais no Estado constitucional con-temporâneo.

1 A FUNÇÃO ESTRATÉGICA DO ESTADO

A partir dos anos 70, o Estado do Bem-Estar, nos países europeusdesenvolvidos, e a partir dos anos 80, o Estado Desenvolvimentista,

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nos países latino-americanos em desenvolvimento – ambos produtosdo “grande consenso keynesiano”1 –, entraram em crise.2 Como ano-

1 O “grande consenso keynesiano” – em referência ao pensamento e às propostas de John Maynard Keynes – éassim resumido por Giannetti da Fonseca (1994, p. 10):

“1º) a defesa da economia mista, com forte participação de empresas estatais na produção de bens e serviços ea crescente regulamentação das atividades do setor privado por meio de legislação específica;

2º) a montagem e ampliação do ‘Estado do Bem-Estar’, baseado na transferência de renda para certos grupos dasociedade (idosos, crianças, deficientes e desempregados) e buscando promover algum tipo de justiça distributiva;

3º) uma política macroeconômica ativa de manipulação da demanda agregada através de estímulos fiscais emonetários e voltada acima de tudo para a manutenção do pleno emprego no curto prazo” [sem grifo no original].

2 O Estado do Bem-Estar, o Welfare state, é definido por Wilensky (apud Regonini, 1992, p. 416) como o Estadoque garante “tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todocidadão, não como caridade mas como direito político”. Segundo Regonini (1992, p. 417), historicamente,é na Inglaterra dos anos 40 do século XX que se consolida o princípio básico do Welfare state: “independen-temente da sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm direito de ser protegidos – com pagamento de dinheiroou com serviços – contra situações de dependência de longa duração (velhice, invalidez...) ou de curta(doença, desemprego, maternidade...) [...] Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, todos os Estadosindustrializados tomaram medidas que estendem a rede dos serviços sociais, instituem uma carga fiscalfortemente progressiva e intervêm na sustentação do emprego ou de renda dos desempregados”. Já osEstados desenvolvimentistas são descritos por Evans (1993, p. 117) como aqueles Estados que “extraemexcedentes mas também fornecem bens coletivos. Fomentam perspectivas empresariais de longo prazoentre elites privadas mediante o aumento de incentivos ao engajamento em investimentos transformado-res e a redução dos riscos envolvidos em tais investimentos”.

Para autores como Offe (1984) e Vacca (1991), a crise do Welfare state manifesta-se como crise fiscal, de legitimaçãoe de governabilidade. A crise fiscal decorre da dificuldade de o Estado fazer frente ao aumento progressivodos gastos públicos. Sobre o Estado há uma demanda crescente, incompatível com a evolução de suasreceitas. À crise fiscal soma-se a de legitimação. Isso porque quem faz a filtragem política das demandas sãoos partidos políticos e as “organizações de interesse”. Para Vacca (1991, p. 156), a crise de legitimação podeser vista como “[...] crise de representação das classes trabalhadoras [...]”. “Os debaixo” já não se vêemrepresentados adequadamente pelos partidos e sindicatos. Ainda segundo Vacca (1991, p. 157-158), “[...] osórgãos da administração pública e do Estado são ‘enfeudados’ pelos partidos [...] Estes estendem o seudomínio sobre os órgãos públicos e estatais, mas mostram-se cada vez mais incapazes de conferir unidade deobjetivo e funcionalidade aos órgãos do Estado”. Assim, a crise fiscal que fragiliza o Estado também respinganessas instituições responsáveis pela produção da legitimidade. A conseqüência é a crise de governabilidade.

Uma das interpretações mais influentes da crise do Estado Desenvolvimentista é a de Bresser Pereira. Sua hipótese“[...] é que a crise dos anos 80 e 90 do Estado [brasileiro e latino-americano], é uma crise fiscal do Estado, éuma crise do modo de intervenção do Estado Social, é uma crise da forma burocrática e ineficiente deadministrar um Estado que se tornou grande demais para poder ser gerido nos termos da ‘dominaçãoracional-legal’ analisada por Weber” (Bresser Pereira, 1996, p. 15). Para Bresser Pereira (1996, p. 19-20),naquilo que ele denomina a interpretação da crise do Estado, “a crise fiscal caracteriza-se pela perda do créditopúblico. Pelo fato de que a elevada dívida pública, combinada com altas taxas de inflação, déficit públicocrônico, altas taxas de juros internas, taxas declinantes de crescimento, torna ela própria explosivas asexpectativas com relação ao seu crescimento. E também pela existência de poupança pública negativa. A crisedo modo de intervenção é definida pela exaustão das formas protecionistas de intervenção, pela multiplicaçãode subsídios e pelo excesso de regulação em uma economia onde se tornou predominante o comportamentodo tipo rent-seeking. A crise da forma burocrática de administração, pela rigidez e ineficiência do serviçopúblico”. [Segundo Bresser Pereira, a interpretação da crise do Estado é uma síntese entre os antigos paradigmasinterpretativos do subdesenvolvimento da América Latina, para os quais o Estado tinha um papel decisivo,e o paradigma neoliberal. Os antigos paradigmas interpretativos são estes: interpretação da vocação agráriaou interpretação liberal-oligárquica, que, a partir de 1930, concorre com a interpretação nacional-desenvolvimentista (1930-1980) e a interpretação autoritário-modernizante ou burocrático-capitalista (1964-meados de 70). Nas décadas de 80 e 90, predomina a interpretação neoliberal. Sobre as interpretações da crisedo Estado ver Bresser Pereira (1996, parte 1, p. 25-74).]

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tou Evans (1993), o Estado, que fora a solução nas décadas anteriores,passou a ser visto como problema. Ainda segundo Evans, o Estado tor-nou-se um problema porque houve uma mudança na agenda do de-senvolvimento e uma mudança no clima ideológico e intelectual. OEstado já não dava conta da agenda do desenvolvimento. O que seviu foi a elevação dos índices de inflação, a queda nas taxas de cres-cimento e o aumento do desemprego. Combinado com isso, a chama-da “segunda onda” de reflexão sobre o Estado tornou-se hegemônica.A “primeira onda” de reflexão sobre o Estado caracterizara-se por um“otimismo irrealista” (o desenvolvimentismo). A “segunda onda” cons-tituiu-se pela ascensão das teorias minimalistas do Estado, articula-das por neoconservadores, pela “nova direita”, pelos neo-utilitaristase pelos neoliberais.3

Contudo, a proposta de um Estado minimalista agora já é vista comoutópica e, sobretudo, indesejável. Dada a complexidade da sociedadecontemporânea, um Estado restrito a suas funções clássicas não é maisfactível. A sociedade necessita de uma estrutura institucional e políticaconsistente e estável. É verdade que o Estado é parte do problema, mas éigualmente verdadeiro que o Estado faz parte da solução (Evans, 1993). Ésimplista demais a afirmação de que o Estado perdeu total e irreversivel-mente sua capacidade de ação. Aliás, a reforma do Estado, condição parasuperação de sua crise, só pode ser conduzida pelo próprio Estado.

Nesse mesmo sentido, Lechner (1996, p. 37) identifica o que chamade “paradoxo neoliberal”: “uma liberalização econômica bem sucedidapressupõe uma intervenção ativa do Estado para levar a cabo tais refor-mas”. As reformas neoliberais, dos anos 80 e 90, foram possíveis graças auma forte intervenção do Estado. Dizendo de outro modo, sem a atuaçãodo Estado muito provavelmente não teria havido reformas (neoliberais)econômicas e institucionais. “De fato, a própria reforma do Estado foideixando de lado a ortodoxia neoliberal; na medida em que a privatiza-ção das empresas públicas e a racionalização da burocracia administrati-va avançam, o próprio processo exige novas formas de regulação estatal[...] É hora de enfocar o Estado como ‘solução’ que decide o rumo e oritmo dessa reorganização da sociedade” (Lechner, 1996, p. 38).

Ainda na mesma direção, Grau argumenta (1994, p. 9) “[...] que o

3 Para Evans (1993), agora está em curso a “terceira onda” de reflexão sobre o Estado; é a onda que propõe a

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Estado do nosso tempo – o Estado contemporâneo – é, fundamentalmen-te, Estado implementador de políticas públicas”, com forte intervençãona ordem social e na ordem econômica. O simples fato de o Estado produ-zir o direito já configura sua atuação interventiva. O mercado não seviabiliza sem uma legislação que o garanta. A “regulação espontânea” oua “auto-regulação” do mercado é mera crença.

Para melhor fundamentar a tese de que sem o Estado o mercado éinviável, vale relembrar as “quatro categorias de atividade governamen-tal” – melhor seria dizer atividade estatal – identificadas por Habermas(1980, p. 72-73).

1ª) O Estado cria pré-requisitos necessários à constituição e manu-tenção do modo de produção, tais como: garantia da proprieda-de e da liberdade de contrato; introdução de leis trabalhistas,legislação que assegure a concorrência, estabilidade monetária,para evitar efeitos auto-destrutivos do mercado; oferta de edu-cação, transporte e comunicação; estímulo à economia nacio-nal diante da competição internacional; garantia da integrida-de nacional externa e interna.

2ª) O Estado faz adaptações complementadoras do mercado, porque“o processo de acumulação de capital requer adaptação do sis-tema legal a novas formas de organização comercial, competi-ção, financiamento, etc. (por exemplo, por meio da criação denovos arranjos legais em direito bancário e comercial e na ma-nipulação do sistema fiscal)” (Habermas, 1980, p. 72).

3ª) Há também as ações substitutivas do mercado pelo Estado, pormeio das quais criam-se “[...] novas situações econômicas enegócios, seja através da criação e da melhora de oportunida-des de investimentos (demanda governamental de progressocientífico-tecnológico, qualificação ocupacional de forças detrabalho, etc.)” (Habermas, 1980, p. 73).

4ª) Por fim, o Estado compensa conseqüências danosas e indesejadasdo processo acumulativo que provocam reações políticas; res-ponsabiliza-se pela proteção do meio ambiente (dano ecológi-co) por meio de ações concretas e legislação, impede o desapa-recimento de setores econômicos ameaçados (por exemplo, aagricultura) e cria leis e instrumentos visando melhorar a situa-ção social dos trabalhadores.

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“A atividade governamental, nas duas últimas categorias, é típica docapitalismo organizado”, segundo Habermas (1980, p. 73).

É pouco crível que o Estado abdicarḠin totum – mesmo que aindanão se possa prever todos os possíveis efeitos da globalização4 sobre o Esta-do nacional –, das atividades identificadas por Habermas. Basta que seolhe para o capitalismo brasileiro, no qual o Estado continua garantindoinfra-estrutura, incentivos fiscais, subsídios, proteção de setores econô-micos que poderiam desaparecer se expostos à concorrência internacio-nal, etc. Certamente o Estado continuará exercendo as referidas ativida-des, porém em grau diferenciado. Provavelmente, com menos intensida-de em umas e com mais em outras.

Grau (1996, p. 94) tem razão ao dizer que “[...] a destruição do Esta-do, hoje, no momento histórico presente, pelo capitalismo, consubstanci-aria uma estratégia suicida, na medida em que deixa abandonados osmercados, à mercê dos capitalistas...”. Sem Estado ou com um Estadoreduzido às funções de polícia e caridade, a continuidade do capitalismoestaria exposta a todo tipo de riscos.

Portanto, no processo de reforma do Estado, ou na formulação de umnovo modelo de organização estatal, é imperioso considerar a função es-tratégica do Estado para a sociedade e para a economia. Nessa perspecti-va, o Estado não só é objeto da reforma, mas também agente da sua pró-pria reforma.

2 A CRISE DO ESTADO-NAÇÃO

Outro tema relevante para os rumos do processo de reforma do Estadoé o do Estado-nação. Tornou-se lugar-comum dizer que o Estado-nação

4 Embora muito analisado e debatido nos meios acadêmicos, políticos e midiáticos, o fenômeno da globalizaçãoainda produz mais dissensos do que consensos. Aqui, penso na globalização como produto da terceirarevolução tecnológico-científica (processamento, difusão e transmissão, em grande escala e comrapidez, de informações, viabilizados pela informática, microeletrônica e telecomunicações). Aglobalização materializa-se (i) pelo crescimento sem precedentes do comércio internacional de bens eserviços e a formação de áreas de livre comércio e blocos econômicos integrados (União Européia,Nafta, Mercosul); (ii) a transnacionalização das grandes empresas multinacionais; e (iii) a criação dosmercados financeiros globais (interligação e interdependência dos mercados físicos e financeiros, emescala planetária).

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está em crise. Para Vacca (1991, p. 158-159), “a crise do welfare [State](crise fiscal, crise de legitimação, crise de governabilidade) surge, pois,na conclusão do longo ciclo do desenvolvimento nacional e mistura-secom a crise do Estado-nacão”; e “o declínio do Estado-nação na Europadata de há mais ou menos um século”, acentuando-se significativamentecom a guerra fria, quando os Estados europeus perderam a autonomiapara decidir sobre a guerra e a paz.

Dos anos 30 aos 60 do século XX, houve um capitalismo autárquico,no qual economia nacional e Estado nacional mantiveram relação um-bilical. Com a globalização, modifica-se “[...] o paradigma das relaçõesentre mercados nacionais e [entre] mercados nacionais e mercado mundial[...] A difusão do desenvolvimento não é mais (ou é sempre menos) medi-ada pelas economias e pelos Estados nacionais. As diferenciações nacio-nais do desenvolvimento dependem cada vez menos das possibilidadesde escolha dos Estados” (Vacca, 1991, p. 160). É a crise da economianacional.5 Conseqüentemente, o Estado-nação não poderia mesmo fi-car incólume à crise.

Lechner (1996) aponta para a tensão entre as dinâmicas de globali-zação e o âmbito nacional. Cita, como um dos aspectos dessa tensão –para nós brasileiros, talvez um dos mais significativos –, a independên-cia dos capitais financeiros em relação ao mundo da produção e às re-gulações nacionais, em razão da internacionalização dos mercados fi-nanceiros. Para agravar a crise, os Estados têm dependido cada vez maisdesses mercados financeiros para cobrir seus déficits fiscais. A crisemexicana, em 1994, a crise asiática, em 1997 e 1998, e a brasileira em1999 evidenciaram o tamanho do impacto da globalização no âmbitonacional. Além disso, como bem anotou Lechner (1996, p. 34), “[...] oproblema não é só econômico: a globalização altera a agenda públicados países, que acaba sendo ditada por eventos externos, fora do con-trole dos atores nacionais”.

Nesse contexto, o tema da soberania do Estado-nação torna-se inevi-tável. Reinicke faz uma distinção entre soberania legal e soberania ope-racional. Para ele, a globalização desafia a soberania, não a soberanialegal dos Estados, mas “[...] a soberania operacional de um governo, istoé, sua capacidade de exercer a soberania nas questões políticas corri-

5 Vacca (1991, p. 160) chama a atenção não só para a crise, mas para o fim da economia nacional.

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queiras” (Reinicke, 1997, p. 27). Portanto, é a soberania interna que estáameaçada.6

Como a soberania interna (operacional) é afetada? A descrição deReinicke (1997, p. 27) é precisa:

As redes empresariais globais afetam a soberania internade um estado pois alteraram o relacionamento entre o se-tor público e privado. Ao induzir as empresas a abolir oslimites entre os mercados nacionais, a globalização criauma geografia econômica que inclui múltiplas geografiaspolíticas. O governo deixa de deter o monopólio do poderlegítimo sobre o território no interior do qual operam asempresas, como atesta o crescente deslocamento das ope-rações das empresas na busca de regimes tributários e re-guladores mais favoráveis. De forma nenhuma isso signifi-ca que os agentes do setor privado estejam solapandodeliberadamente a soberania interna. O que ocorre é queeles seguem uma lógica organizacional diferente daquelados estados, cuja legitimidade deriva de sua capacidade depreservar as fronteiras estabelecidas. Os mercados, contu-do, não dependem da existência de fronteiras. Assim, aomesmo tempo que integra os mercados, a globalização frag-menta a vida política.

É precoce falar no fim do Estado-nação. Até porque não está dado queele tenha perdido de maneira irreversível a soberania operacional. Dru-cker (1997), por exemplo, menciona o fato de que os diversos Estadossurgidos nos séculos XIX e XX têm conseguido manter a unidade nacio-nal e para o fato de que apenas o Estado nacional, até hoje, conseguiugarantir a integração política e a participação na comunidade internaci-onal. Drucker aposta na sobrevivência do Estado nacional, embora reco-

6 Segundo Reinicke (1997, p. 27), “a soberania tem dois aspectos, um interno e outro externo. O primeiro refere-se ao relacionamento entre o estado e a sociedade civil. Segundo Max Weber, um governo é internamentesoberano quando detém o monopólio de poder legítimo sobre uma gama de atividades sociais, incluindo aseconômicas, nos limites de um território definido. Esse poder é expresso nas estruturas nacionais jurídicas,administrativas e políticas que determinam as políticas públicas. Com relação à economia, a soberaniainterna é exercida quando os governos cobram impostos ou regulamentam atividades do setor”. O aspectoexterno da soberania refere-se ao relacionamento entre os Estados no âmbito internacional.

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nheça que será um Estado substantivamente diferente, “[...] sobretudono que se refere às políticas fiscais e monetárias internas, às políticaseconômicas externas, ao controle das transações internacionais e, talvez,ao modo de conduzir a guerra” (Drucker, 1997, p. 7).

O certo é que Estado-nação e economia globalizada operam segundológicas diferentes e por vezes contraditórias. Ainda não há um quadroinstitucional adequado ao novo momento por que passa a economia mun-dial. Assim, no processo de reforma do Estado a questão do Estado-naçãoem um cenário de globalização merece especial atenção.

3 A QUESTÃO DEMOCRÁTICA

Nota-se que não tem merecido a devida atenção, sobretudo dos con-dutores políticos e operacionais da reforma do Estado nos países latino-americanos, a questão da democracia. Como constatou Lechner (1996, p.43), “[...] a reforma do Estado guia-se por um enfoque tecnocrático, semfazer referência à ordem democrática. Poucas vezes se coloca a questãodo Estado democrático”. Não há um vínculo entre democratização e refor-ma do Estado. Lechner cita como paradigmático o caso do México. Pode-se também citar como exemplos o Peru, no governo Fujimori, a Argenti-na, no governo Menem, e mesmo o Brasil, no governo Cardoso. “Freqüen-temente as reformas [nos países latino-americanos] tiveram como únicopropósito incrementar a eficiência do Estado em função da economia ca-pitalista de mercado” (Lechner, 1996, p. 53) e não a democratização doEstado.

Além do viés tecnocrático das reformas, há a já mencionada perda desoberania operacional do Estado em virtude da globalização. “A ameaça àcapacidade de um governo exercer sua soberania interna traz consigouma ameaça à democracia” (Reinicke, 1997, p. 27). O voto já não tem omesmo peso na definição das políticas internas. Um “ataque especulati-vo” à moeda nacional ou uma crise financeira regional com efeitos inter-nacionais pesa muito mais nas decisões de um governo do que os votos ea vontade majoritária dos governados. Veja-se o caso do Brasil. Para fazerfrente aos efeitos das crises internacionais dos últimos anos, os governosforam obrigados a elevar taxas de juros, definir arrojadas metas inflacio-nárias e praticar medidas fiscais fortemente restritivas. Como conseqüên-

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cia, houve redução da atividade econômica, aumentou o desemprego,baixou o nível médio da renda salarial e proliferou a miséria e a violência.

É provável que a perda progressiva da soberania interna acarretaráuma crescente desconfiança em relação às instituições democráticas,podendo gerar até mesmo crises de legitimidade e, ato contínuo, de go-vernabilidade.7 Portanto, um dos desafios na construção do novo Estadoserá a conciliação entre eficiência econômica e legitimidade política.

Offe8 sustentou que o tamanho do Estado deve ser negociado politica-mente. Não há um tamanho ideal que possa ser técnica e previamentedefinido. Se isso for verdadeiro, então a questão democrática é decisiva.O processo e o conteúdo da reforma do Estado não devem ser pensadosapenas do ponto de vista tecnocrático e/ou da eficiência econômica. Aquestão democrática, sobretudo a democratização do Estado, deve serponto obrigatório da agenda reformista.

4 A POSIÇÃO PREFERENCIAL DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS

Do ponto de vista jurídico, o Estado em crise e a ser reformado é umEstado constitucional. No caso brasileiro, este Estado constitucional qua-lifica-se como um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput) comforte conteúdo social. A democracia e os direitos fundamentais são oselementos nucleares do Estado Democrático de Direito. Da democraciajá tratei acima.

Uma das grandes conquistas do homem moderno são os direitos fun-damentais. São instrumentos jurídicos, políticos e éticos a serviço da li-berdade, da igualdade e da dignidade humanas. São direitos aos quais acivilização não deve renunciar, porque representam a garantia da própria

7 Lechner (1996) aponta para a tensão entre democracia e governabilidade democrática como um dos dilemasenfrentados pelos Estados latino-americanos no atual contexto. Segundo ele, essa é uma das lições da crisefinanceira do México que teve início em 20 de dezembro de 1994, sendo resolvida apenas com ajudainternacional (de modo especial, do governo americano e do FMI).

8 Seminário internacional “Sociedade e Reforma do Estado” promovido, em São Paulo, nos dias 26, 27 e 28 demarço de 1998, pelo então Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, do governobrasileiro.

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civilização contra a barbárie. O esforço permanente deve ser no sentidode ampliar os direitos fundamentais e torná-los cada vez mais efetivos.

Na maioria das constituições democráticas contemporâneas, os direitosfundamentais ocupam posição preferencial (preferente, reforçada) na or-dem jurídica (e.g., CF, art. 60, § 4º, IV). Ademais, além de uma funçãojurídico-subjetiva, atribui-se a esses direitos uma função jurídico-objetiva.Dizendo de outro modo, além de direitos subjetivos, são princípios jurídicosobjetivos que devem projetar-se sobre toda a ordem jurídica, ora incidindodiretamente, ora influenciando mediante recursos hermenêuticos.

Assim, no processo de reforma do Estado, a posição preferencial dosdireitos fundamentais deve ser respeitada e as funções desses direitospotencializadas. A reforma do Estado deve também servir para elevar opatamar civilizatório e não para reduzi-lo ou fragilizá-lo.

5 ESTADO REGULADOR: O NOVO MODELO?

Depois da crise dos anos 80 e 90, como bem anotou Roth (1996, p. 15),os países latino-americanos e do leste europeu, pertencentes ao antigobloco socialista, enfrentaram o mesmo problema: “que papel outorgar aoEstado?”

Ainda que sem muita precisão, já há referências a um novo modelo: oEstado regulador. Bresser Pereira (1996, p. 285), por exemplo, prevê que oEstado moderno do século XXI “[...] deverá ser um Estado regulador etransferidor de recursos, que garante o financiamento a fundo perdidodas atividades que o mercado não tem condições de realizar”. Um Estadoque não será próximo do mínimo (século XIX) nem executor (século XX).

Puceiro (1996), analisando a reforma do Estado argentino, também fazreferência à necessidade de fortalecimento do papel regulador do Estado.Segundo ele, a privatização de empresas estatais resolve determinadosproblemas, mas pode criar outros, tais como: abusos dos monopólios; con-tinuidade, na gestão privada, de hábitos da anterior gestão estatal; nãoatendimento das necessidades sociais, atendo-se, exclusivamente, ao cri-tério da rentabilidade; desrespeito aos direitos dos usuários; distorções na

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competição. “A culminação bem-sucedida do processo de reforma requeruma legislação adequada que possibilite neutralizar tais riscos, e umaação moderna, profissional e dinâmica por parte do poder público, expres-sado agora nos novos entes reguladores” [sem grifo no original] (Puceiro,1996, p. 125).

Ainda segundo Puceiro, para que o Estado exerça com sucesso seupoder regulador, são necessários quadros regulatórios claros – que esta-beleçam as regras que irão reger as relações entre o Estado e as empresasprestadoras de serviços públicos e entre estas e os usuários – e poder depolícia que garanta aos beneficiários e aos usuários a prestação dos servi-ços. “Ao mesmo tempo [os quadros regulatórios] devem assegurar a exis-tência de mecanismos de informação e controle, especialmente impor-tantes quando se trata de casos de monopólios naturais, garantir plenacompetição nos setores onde esta é possível, assegurar a proteção dosusuários e estabelecer mecanismos claros para a fixação de tarifas” (Pu-ceiro, 1996, p. 126).

Tomando o caso do Brasil, ao se falar em Estado regulador, vários as-pectos problemáticos devem ser considerados. Um dos mais importantesdiz respeito ao grau de independência dos entes reguladores (e.g., agên-cias reguladoras) ante o próprio núcleo estratégico do Estado e os grupospolíticos e de interesse que dão sustentação (aos) e pressionam os gover-nos. No caso das agências reguladoras, o mandato fixo dos diretores e ocontrato de gestão serão suficientes para elidir as pressões políticas e eco-nômicas?

Outra questão diz respeito ao comportamento dos usuários. É notórioo desconhecimento, por parte da maioria da população brasileira, dosseus direitos, seja como cidadãos, em um sentido mais amplo, seja comoconsumidores, em um sentido mais restrito. Há falta de informação e,mesmo quando ela existe, há a tendência à passividade. Assim, comoviabilizar o controle social, que é, por definição, o mais democrático?Como produzir ações no seio da sociedade civil que impeçam eventuaisabusos das empresas prestadoras de serviços públicos?

Também há que se considerar uma característica histórica do Estadobrasileiro: ser forte contra os fracos e ser fraco contra os fortes. Ora, asempresas prestadoras de serviços públicos pertencem a grandes gruposeconômicos, nacionais e internacionais, com alta capacidade de barga-nha na arena institucional.

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Há, ainda, a crise do Poder Judiciário. Certamente, muitos dos confli-tos entre o Estado, as prestadoras de serviços e os usuários acabarão nostribunais. É notória a morosidade da prestação jurisdicional no Brasil.Esse é um óbice importante a ser considerado quando se pensa em umEstado de tipo regulador.

Parece-me que a proposta de um Estado regulador no Brasil se defron-ta com duas grandes questões: (i) qual deve ser o desenho institucionaldesse Estado e quais funções lhe outorgar? (ii) é viável a transformaçãodo Estado brasileiro em um Estado regulador eficaz e eficiente que garan-ta, às pessoas, os direitos fundamentais e a redução das desigualdadessociais e regionais?

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Existe a única resposta jurídicacorreta?

Is There the Only Correct JuridicalAnswer?

JAYME WEINGARTNER NETO

Promotor de Justiça no RS, Mestre em Ciências Jurídico-Criminais (Coimbra, Portugal), Doutorando emInstituições de Direito do Estado (PUC/RS), Coordenador do Curso de Direito da ULBRA/Cachoeira do Sul.

RESUMO

Depois de percorrer as discussões sobre o estado das ciências e o paradigma deKelsen e Hart para a hermenêutica jurídica, discute-se a tese dworkiana da«única resposta correta » e as reformulações de autores posteriores, defenden-do-se, ao fim, a busca da « melhor resposta possível».Palavras-chave: Filosofia do direito, Hermenêutica, Dworkin.

ABSTRACT

After going through the discussions on the state of sciences and Kelsen’s andHart’s paradigm to the legal hermeneutics, the author discusses Dworkin’s thesisof ‘the only correct answer’ and the reformulations by subsequent authors,defending, as a conclusion, the search for the ‘best possible answer’.Key words: Legal philosophy, hermeneutics, Dworkin.

1 O presente texto foi apresentado como relatório à disciplina “Interpretação Constitucional e os Fundamentosdo Direito Público e do Direito Privado I (Temas Avançados de Interpretação Constitucional)”, no âmbito doPrograma de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da PUC/RS, Coordenador Professor Doutor JuarezFreitas.

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(...) ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplinae preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” – a qual não éentendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mascomo a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poderdispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade deperspectivas e interpretações afetivas. De agora em diante, senhores filósofos,guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabeleceum “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tem-po”, guardemo-nos dos tentáculos dos conceitos contraditórios como “razãopura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; – tudo isso pede quese imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho volta-do para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as quefazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes. Existeapenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quantomais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentesolhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “con-ceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspen-der os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – nãoseria castrar o intelecto?... (NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Terceiradissertação: o que significam ideais ascéticos?, aforismo 12);

(...) E aqui toco outra vez em meu problema, em nosso problema, meuscaros, desconhecidos amigos ( – pois ainda não sei de nenhum amigo!): quesentido teria nosso ser, senão o de que em nós essa vontade de verdade tomaconsciência de si mesma como problema? (idem, ibidem, aforismo 27).2

1. INTRODUÇÃO

Em sua célebre “Oração de Sapiência” proferida na abertura solenedas aulas na Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86, Boa-ventura de Sousa Santos, depois de apresentar as fissuras no paradigmadominante, procurou caracterizar a mundivisão emergente (o paradigmade um conhecimento prudente para uma vida decente), tendo destacadoquatro teses, postulando a terceira que todo o conhecimento é auto-conhe-

2 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 3ª reimpressão,2001, pp. 108-9 e 148, respectivamente.

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cimento.3 O sujeito concreto destas reflexões inicia, então, de modo re-trospectivo, pois já respondeu, noutro exercício dogmático, à indagaçãovestibular. Precisamente na nota 614 do trabalho, ao criticar a soluçãojudicial de um caso difícil e uma vez apresentados os parâmetros da in-vestigação para decidi-lo, consignou: “É de se reconhecer, com lisura,que não existe uma solução correta. Partindo de outros tópicos argumenta-tivos, também razoáveis, viável defender-se que (...) Não é a posição dotexto (...).”.4

Percebe-se que o problema foi apresentado em nível de crença, talvezno contexto de descoberta. Trata-se, agora, de avançar ao contexto dejustificação, percorrer um procedimento ao cabo do qual a premissa possaconsiderar-se embasada, justificada. Sinala-se, com Atienza, que a teoriapadrão da argumentação jurídica situa-se no contexto de justificação dosargumentos (em geral com pretensões descritivas e prescritivas), opondo-se tanto ao determinismo metodológico quanto ao decisionismo metodo-lógico.5 Rejeita-se, desde já, pelas razões que seguem, a idealizada respos-ta correta, o que não significa renunciar tout court à busca da melhor res-posta possível.

Confluem, para tanto, razões paradigmáticas (negativas e positivas) eargumentos jurídicos, de cerne hermenêutico. Ao cabo, pretende-se den-sificar o discurso da melhor resposta, um mapa útil para que se não caiano “pântano cinzento” do ceticismo ou do irracionalismo, uma orientação“em busca de uma vida melhor a caminho doutras paragens onde o opti-mismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmenteo conhecimento volte a ser uma aventura encantada.”.6

Em nível paradigmático, tópicos negativos apontam para o esgotamen-to de uma vertente, hegemônica, da modernidade, de um cientificismotecnológico exasperado e tendencialmente estático e determinista. Desinal contrário, a mundivisão que se vai instalando, seja o pós-modernis-

3 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 11ª ed. Porto: Edições Afrontamento, 1999, pp.50-5. “A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistémico mas expulsou-o, tal como aDeus, enquanto sujeito empírico.” (...) Assim ressubjectivado, o conhecimento científico ensina a viver etraduz-se num saber prático.”

4 WEINGARTNER NETO, Jayme. Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação penal. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2002. Item 5.5.2 – o caso Lula-Pelotas, pp. 313-8.

5 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy Editora 2000, pp. 21-6.6 SANTOS, Boaventura, Um discurso sobre as ciências, p. 35.

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mo de oposição (Boaventura) ou o topos da complexidade (Morin), valo-riza a pluralidade, a dinâmica não-linear. Na teoria da argumentaçãojurídica, a interpretação é tópico-sistemática (Juarez Freitas), superado opositivismo reducionista. À tessitura argumentativa.

2. RAZÕES PARADIGMÁTICAS

Nosso lugar, hoje, é ambíguo, em “sociedades que são simultaneamen-te autoritárias e libertárias”, é “multicultural, um lugar que exerce umaconstante hermenêutica de suspeição contra supostos universalismos outotalidades”.7

2.1. NegativasNo início do século XIX, a ciência moderna já se convertera numa

espécie de religião (Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Bacon, Descar-tes estabeleceram seus fundamentos). Sua profissão de fé foi a racionali-dade que emergiu a partir da revolução científica do século XVI e desen-volveu-se nos séculos seguintes basicamente segundo o modelo das ciên-cias naturais, que servem, portanto, de padrão para as incipientes ciênci-as sociais. Um modelo totalitário, “na medida em que nega o caráterracional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelosseus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”. Só existeuma forma de conhecimento verdadeiro e é com indisfarçada arrogânciaque os cientistas se medem com seus contemporâneos. Kepler, numa úni-ca ilustração, Harmonia do Mundo (1619, sobre as órbitas dos corpos ce-lestes): “Perdoai-me, mas estou feliz; se vos zangardes eu perseverei; (...)O meu livro pode esperar muitos séculos pelo seu leitor. Mas mesmo Deusteve de esperar seis mil anos por aqueles que pudessem contemplar o seutrabalho.”.8

Os grandes avanços técnicos baseiam-se na observação e na experi-

7 SANTOS, Boaventura. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (Para um novo senso comum.A ciência, o Direito e a Política na transição paradigmática, v. I). Porto: Afrontamento, 2000, p. 26.

8 SANTOS, Boaventura, A Crítica da razão indolente, p. 58, donde extraiu-se a citação de Kepler.

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mentação, presididas pelas idéias matemáticas. O que não é quantificá-vel passa ao estatuto de “cientificamente irrelevante”. Claramente, “ométodo científico assenta na redução da complexidade”. O pressupostometateórico de um conhecimento baseado na formulação de leis é a idéiade ordem e de estabilidade do mundo, o mundo da mecânica de Newton,estático e eterno, a matéria a flutuar num espaço vazio, decomposto ana-liticamente pelo racionalismo cartesiano. “Esta idéia do mundo-máquinaé de tal modo poderosa que vai transformar-se na grande hipótese univer-sal da época moderna”.9

Como conseqüência, “Por volta de 1900, a filosofia está gravementeafligida. As ciências naturais, ligadas ao positivismo, empirismo e sensua-lismo, roubam-lhe o ar que ela respira. A sensação de triunfo das ciênciasapóia-se no conhecimento exato da natureza e no domínio técnico danatureza.”. A época, desde meados do século XIX, impressionada com osresultados práticos das ciências empíricas, “desenvolve uma verdadeirapaixão por reduzir, por expulsar o espírito do campo do saber”. Depois dosaltos vôos idealistas do espírito absoluto, começa a surgir “por toda partea vontade de ‘diminuir’ o ser humano. Naquela ocasião começava a vidada seguinte figura de pensamento: O homem não é senão...”.10

A crítica ao paradigma da modernidade, com seu misto de ingenuida-de epistemológica e arrogância metodológica, já está feita. Em parte, pelopróprio aprofundamento do conhecimento, que desvelou a fragilidade deseus fundamentos. As rachaduras parecem irrecuperáveis: a relatividadeda simultaneidade (Einstein), alteração do objeto pelo observador (físicaquântica, Heinsenberg), o teorema da incompletude de Gödel, a teoriadas estruturas dissipativas, a ordem através de flutuações (Prigogine).11

Recupera-se a irreversibilidade da flecha do tempo (turbilhões, oscila-ções químicas, radiação laser) e fere-se de morte a física tradicional, que“unia conhecimento e certeza: desde que fossem dadas condições iniciaisapropriadas, elas garantiam a previsibilidade do futuro e a possibilidadede retrodizer o passado. Desde que a instabilidade é incorporada, a signi-

9 Idem, ibidem, p. 61.10 SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial,

2000, pp. 53 e 56-7. “O projeto da modernidade começa com a disposição de rejeitar tudo que é excessivoe fantasioso. Mas mesmo a fantasia mais excessiva não teria podido imaginar, naquele tempo, as coisasincríveis que o espírito da sobriedade positivista ainda produziria.” (p. 57).

11 A literatura neste sentido é farta. Veja-se, para ilustrar, SANTOS, Boaventura, Um discurso sobre as ciências,pp. 23-35; A crítica da razão indolente, pp. 65-70.

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ficação das leis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas ex-primem possibilidades.”.12

Não uma única verdade, uma certeza que estaria no âmago da maté-ria esperando ser descoberta por um sujeito independente e por meio deum método asséptico que, percorrido, garantiria a correção da conclusão/solução. É preciso, ao revés, aproximar-se de uma realidade que se apre-senta como um território livre, prenhe de vida instável e difícil, que pare-ce melhor retratada nos traços dinâmicos de Miró do que no ponto fixode perspectiva cristalizada.13

2.2. PositivasExplicar tal realidade, intui-se, significa simplificar, o que é inexorá-

vel, desde que se atente para o fato de que a análise da complexidadenão elimina a tessitura complexa, embora possa elaborar modelos aproxi-mativos de padrões simplificados da dinâmica. Podem-se elencar algumascaracterísticas do emergente paradigma da complexidade:14

a) ela é dinâmica (campo de forças contrárias, em que eventualestabilidade é sempre rearranjo provisório);

b) não-linear (um modo de ser em que pulsa a relação própria entreo todo e as partes, “feitas ao mesmo tempo de relativa autono-mia e profunda dependência” – para continuar existindo é mis-ter mudar não linearmente, de modo previsível e controlável,“mas criativo, surpreendente, arriscado”);

c) reconstrutiva (é devir intrinsecamente marcado pela flecha dotempo, irreversível, não se passa do depois para o antes, nem o

12 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da UNESP, 1996, p.12.

13 Desenvolveu-se a metáfora em Honra, privacidade e liberdade de imprensa, pp. 93 a 101, propondo que a pinturarenascentista (e sua conquista da perspectiva tridimensional) está para os movimentos artísticos contem-porâneos (o horizonte estético foi a obra de Miró) na mesma relação que se estabeleceu entre a centralidadelegal cristalizada na codificação burguesa e o atual estágio de reflexão jurídica. Confiram-se, ainda, adinâmica da elipse barroca no centro da Praça de São Pedro em Roma, e os plúrimos pontos de vista dapintura de Cézanne e dos cubistas (pp. 97 e 100, respectivamente).

14 Segue-se DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas,2002, pp. 13 a 31.

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depois é igual ao antes – a “natureza, a não ser em seus códigosformais, jamais se repete”, pelo que é “tipicamente produtiva”);

d) é um processo dialético evolutivo (ao contrário do computador,que é máquina reversível);

e) irreversível (também é impossível ir para o futuro permanecendoo mesmo, “acarreta inovação intrínseca, em maior ou menorgrau, de tal forma que os produtos sempre são, também e essen-cialmente, processos. Fazer-se incessantemente é sua condição.Nada está propriamente feito, porque a incompletude não édefeito, mas modo de ser, sobretudo vir a ser. Todo o fenômenocomplexo possui sua individualidade”, como condição própriadistintiva);

f) intensidade (a causalidade linear como tendencialmente residu-al na natureza – questão, ainda, da pesquisa qualitativa, que“busca ir além de indicadores empíricos mensuráveis diretamen-te” e correlata à problemática da participação);

g) ambigüidade/ambivalência (a ambigüidade é estrutural, típica dadialética unidade de contrários “de algo que é, ao mesmo tem-po, relativamente unitário (forma um todo) e naturalmente aber-to (ultrapassa seus limites)”; a ambivalência refere-se à“processualidade dos fenômenos complexos” – a complexidadeé “campo de força”, com dupla marca: “por ser ‘campo’, apresen-ta limites de espaço, relativamente discerníveis; mas, por ser‘força’, aparece sua marca indomável, fazendo e desfazendo li-mites, por conta da criatividade intrínseca de fenômenos nãolineares”.

À pergunta ontológica (que é o real?), responde-se, com humilda-de, que é indefinível e indevassável. Os dados que a ciência manu-seia são constructos teóricos, nunca elementos originais. Não se lidacom a realidade diretamente, mas com a realidade interpretada, re-construída. Não se sabe bem nem o que é a realidade,15 nem como tal

15 “Na realidade, não há fundo último, porque se dilui ou expande em novas dimensões cada vez mais complexas,para cima (astronomia) e para baixo (microfísica), não parecendo haver algum ponto final. Na explicação,não há fundo último, pois toda explicação não começa do começo, é cultural e hermeneuticamentecontextuada, bem como não acaba, porque já não existiria último questionamento já inquestionável.”(DEMO, op. cit., pp. 33-4).

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realidade é captada – e aqui se chega à questão epistemológica. Mor-reu a coincidência entre realidade e realidade pensada. Não se tem,na cabeça, a realidade externa tal qual ela é, mas interpretação bioló-gica e historicamente contextuada. O xeque à epistemologia moder-na, nas humanidades, derivou de discussões de estilo hermenêutico,exemplar Gadamer. Destronou-se a lógica, “porque é impossível erigiredifício completo que não seja também circular, eivado de pressupos-tos cujos fundamentos permanecem estranhos ou obscuros. O caráterlógico da explicação científica continua certamente de pé, mas des-bancou-se a expectativa de que, sendo lógica, também seria verda-deira ou real.”.16

O olhar crítico, essencial, “não elide o caráter intrinsecamente in-terpretativo da captação do real, dentro da tradição hermenêutica. (...)O real não desapareceu, o que dasapareceu é a confiança ingênua emlinearidades tranqüilamente visíveis e manipuláveis. (...) a hermenêu-tica bem conduzida não se afasta da modéstia da convivência com ou-tros saberes, por conta de sua própria inserção cultural e do reconheci-mento da trama implícita na linguagem.”. Disso não segue o relativismoe a fragmentação desconstrutiva do discurso (o “vale tudo” em ciênciapós-moderna),17 pois, ao “ter sido desbancada a verdade única e impo-sitiva, permanece a pretensão de validade, historicamente contextuada,obtida por esforços formalizantes, ao lado de políticos, para que existaalgum consenso.”.18

Há, portanto, que se livrar da armadilha pessimista da incredulidadepós-moderna, “resgatando a crença em verdades objetivamente verificá-

16 “Por isso, prefere-se hoje como critério de cientificidade a discutibilidade, formal e política (...) ele reconhece [ocritério] que a ciência não vive só de formalização, mas igualmente de consensos políticos, como aproblemática dos paradigmas fartamente documenta.” (DEMO, op. cit., p. 40).

17 Confira-se PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação siste-mática do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. “Nessa moldura lábil, uma vez que todo osignificado faz sentido, qualquer leitura assume, automaticamente, um topos privilegiado e exclusi-vo, tornando inútil o trabalho hermenêutico. Quando o relativismo serve de disfarce à astúcia davontade, a conveniência do intérprete ganha o status de sentido inquestionável. Numa frase, conce-de-se ao impulso a licença para legitimar a força do arbítrio.” (pp. 28-9) “(...) os desconstrutivistascometem a inominável soberba de serrar o galho onde se acham acomodados. Usam a razão paradestruir (desconstituir) o próprio horizonte de racionalidade em que, desde o início, se movimen-tam.” (p. 30 e ss.).

18 DEMO, op. cit., pp. 45-6. “Como não podemos ver a realidade de fora ou de cima o que vemos de dentro nuncaserá suficiente para exararmos qualquer palavra final.” (p. 47).

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veis”, visto que não há “ordem social sem confiança, e não há confiançasem verdade ou, no mínimo, sem procedimentos aceitos para apuração daverdade”.19

Socorre, ainda, Miguel Reale, numa visão filosófica que é vedado apro-fundar neste trabalho, mas cuja natureza crítica é infensa a privilegiartanto o pólo do sujeito como o do objeto do conhecimento (a procurarcompreender sua essencial correlação) e que indaga, através de lentemetafísica, acerca do pensamento conjetural – já que a conjetura tem de-sempenhado “função das mais relevantes na história das idéias, às vezesreduzido ao ‘pensamento problemático’, outras ao ‘metafórico’, quandome parece constituir um gênero abrangente de distintas formas de pensarsegundo presunções, ou razões de plausibilidade”.20 Dá, assim, suportefilosófico para que se não confunda “mais verdade com certeza, conformese dá quando se considera científico tão somente o que é verificável oupossa ser objeto de teste experiencial”.21

Esta vertente pode arrastar, por sua vez, para o que se tem chamado de

19 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Verdade. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 23 e 17, respectivamente.20 REALE, Miguel. Verdade e Conjectura. 2ª ed. rev. e actual. Lisboa, Fundação Lusíada, 1996, pp. 13-4.21 REALE, Verdade e Conjectura, no prefácio à edição portuguesa, onde cita (da 3ª ed. alemã da obra de Karl

Popper “A lógica da pesquisa científica”) velho escrito de mais de 2.500 anos, de Xenófanes: “Noinício, os deuses não revelaram tudo aos mortais; / com o correr do tempo, todavia, procurando,encontramos o melhor. / Verdades indubitáveis, o homem não alcança e nenhuma virá a alcançá-las,acerca dos deuses e das coisas a que me refiro. / E se alguém viesse a proclamar a Verdade, em todaa sua perfeição ele próprio não saberia disso: tudo é uma teia de suposições.” (pp. 11-2). Preciosasíntese da original abordagem de Reale forneceu o próprio autor, em conferência intitulada “Asemiótica e o pensamento conjetural” e proferida na abertura do XIII Colóquio Internacional deSemiótica Jurídica (São Paulo, agosto de 1997). Os estudos semióticos redundaram no abandono darígida separação entre asserções dotadas de sentido ou sem sentido (meaningless) – sequer na mate-mática há linguagem plenamente segura (há proposições plausíveis mas indemonstráveis), a par dalógica paraconsistente que abstrai do princípio da não-contradição (a respeito das limitações da lógicaaristotélica, vide também FERNÁNDEZ-ARMESTO, Verdade, pp. 123-30) – donde “a atenção dis-pensada à ‘vaguidade’ ou à ‘indeterminação’, como algo de insuperável na cognição científica”. Assim, aoinvés de ignorar essa realidade, a semiótica “se esmera em dar-lhes estatuto próprio na teoria dalinguagem, apurando-lhes cuidadosamente o sentido, para que, não obstante sua indeterminação,sejam objeto de rigorosas cautelas lógico-lingüísticas em sua aplicação”. Neste contexto, “não hácomo confundir conjeturar com mero devaneio ou uma suposição gratuita”, pois na conjetura “a razão,aliada à imaginação criadora, visa a ir além da experiência, formulando suposições plausíveis porquefundadas na experiência, e jamais em contradição com ela, a fim de responder a perguntas queemergem necessariamente da experiência mesma, o que faz parecer, em relação a esta, um pensamen-to paralelo e metafórico”. Enfim, trata-se “de uma forma de pensar que, sem abandono do rigorplausível, nos liberta das retortas do que é certo ou certificável, reconhecendo-se o valor também doverossímil” (REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 3ª ed. rev. e aum., São Paulo: Saraiva,2000, pp. 173-9).

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“viragem lingüística” (linguistic turn), nas tensas relações entre a filosofiae a linguagem ao longo da história do pensamento ocidental.22

3. O ESPAÇO JURÍDICO

Quid juris, neste embate de paradigmas?

22 Em linha de rápida resenha, segue-se STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploraçãohermenêutica da construção do direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1999. Parte, o autor, do “Crátilo”Platônico (388 a.C.), que defendia o naturalismo (cada coisa tem seu nome por natureza, o logos está naphisys) contra a posição sofística do convencionalismo (tal ligação é arbitrária, pp. 97-102). Em Aristóteles,a questão está na adequatio (conformidade entre a linguagem e o ser), a pressupor uma ontologia –acreditava “que as palavras só possuíam um sentido definido porque as coisas possuíam uma essência” (p.103). Assim, tanto no idealismo platônico quanto no essencialismo realista aristotélico, a verdade estápreservada da corrupção e da mudança: o absoluto preside o esforço filosófico da metafísica, do século IVa.C. ao século XIX de nossa era (p. 105). O embate prossegue, com a continuidade da tradição metafísicae com reações à busca da essência e da coisa em si – cabível referir, ao menos, a originalidade da concepçãode Santo Agostinho das palavras como signos (p. 107), do nominalismo de Ockham (para quem só háindividuais particulares, não passando os universais de palavras (p. 108). Locke, no seu Ensaio sobre oentendimento humano, oferece uma classificação tripartida para as ciências: física, prática e semiótica(signos, palavras e idéias, como instrumentos de outras ciências) - pp. 110-11. Também o nominalismo deBerkeley insere-se nas relevantes contribuições para a discussão da linguagem. Hume iria desferir outrogolpe na metafísica, ao negar a realidade objetiva da causalidade, do mundo e do sujeito (p. 113). Kantcontinua a conferir um caráter auxiliar/subsidiário à linguagem (p. 115). Com Nietzche haveria umaruptura do paradigma metafísico-essencialista (numa de suas célebres frases, “fatos é o que não há: háapenas interpretações” (p. 117), uma ruptura entre o conhecimento e as coisas. O “primeiro” giro lingüísticoocorreria com os trabalhos de Hamann-Herder- Humboldt, precursores do “rompimento com o paradigmainstituído pela filosofia da consciência” (p. 119), ao reconhecer que a linguagem tem um papel constitutivoem nossa relação com o mundo – a linguagem como abertura e acesso ao mundo (fontes gadamerianas).Seguir-se-iam a semiologia de Saussure (a inaugurar a lingüística moderna, pp. 125-9) e a semiótica dePeirce com sua “ideoscopia”: primeiridade, secundidade e terceiridade (o signo como mediação de suasredes de classificações triádicas, pp. 130-6). A “viragem lingüística” passa pelo rompimento com as concep-ções metafísico-ontológicas, de modo que a linguagem não é mais vista como uma “terceira coisa que seinterpõe entre o sujeito e o objeto, formando uma barreira que dificulta o conhecimento humano de comosão as coisas em si mesmas” (pp. 137-8). Na segunda metade do século XX, a passagem da filosofia daconsciência para a filosofia da linguagem traz vantagem objetiva, segundo Habermas: romper o círculoaporético em que o pensamento metafísico choca-se com o antimetafísico (p. 140). Dentre as principaiscorrentes, o autor destaca o neopositivismo lógico do Círculo de Viena; Wittgenstein, para quem nãoexiste um mundo em si, independente da linguagem, “somente temos o mundo na linguagem” (p. 144); ea filosofia da linguagem ordinária (comum). O giro lingüístico generaliza-se, sendo a linguagem temacomum de reflexão das diversas abordagens filosóficas contemporâneas: a hermenêutica de Heidegger; apré-compreensão de Gadamer; a teoria da ação comunicativa de Habermas. Liberta da ontologia (já quenão se acredita possa o mundo ser identificado com independência da linguagem), a hermenêutica éconcebida como “uma incômoda verdade”, que nem é uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta,mas “uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem” (p. 153).Inexorável, pois, a mediação lingüística, “onde a hermenêutica e a pragmática passam a ocupar o centro dopalco” (a feliz expressão é de Manuel Maria Carrilho).

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3.1. A matriz Kelsen-Hart dissolve a questãoSem a pretensão de uma abordagem histórica, Kelsen, que já em 1911

esboçava sua “teoria pura do direito”, alertava que sua concepção deinterpretação contrapunha-se à “teoria usual da interpretação”, que “querfazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todasas hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada) e que a ‘justeza’(correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei.”.Adiante, volta a pugnar contra tal “ficção de que se serve a jurisprudên-cia tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica”.23 E por queKelsen vai se opor à tradição? Por vislumbrar a aplicação do direito comoum exercício a um tempo limitado, dentro de um quadro ou moldura, e indeter-minado, pois, nestes lindes, há uma pluralidade de opções. Com notável pro-bidade científica, o corifeu do modelo hierárquico-piramidal reconheciaque a determinação do escalão superior ao inferior nunca é completa,nem pode vincular em todas as direções, inafastável uma margem de livreapreciação.24

Passando ao largo da indeterminação intencional, programada pelolegislador ao utilizar cláusulas gerais, para Kelsen a aplicação do direito éindeterminada também num espaço involuntário, seja pela pluralidadede significações da linguagem (o sentido verbal da norma não é unívo-co), seja em face da discrepância constatada entre a expressão verbal danorma (o texto, dir-se-ia hoje) e a vontade da fonte legislativa, ou, final-mente, como conseqüência de contradições entre duas normas que pre-tendem valer simultaneamente. Do que decorre a abertura de um leque,“oferecem-se várias possibilidades à aplicação jurídica”. Dito de formalapidar: “O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldu-ra dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que éconforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste ato ou mol-dura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.” Por con-seguinte, a interpretação “não deve necessariamente conduzir a uma únicasolução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluçõesque – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têmigual valor (...)”.25

23 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 391 e 396, respectivamente.24 KELSEN, op. cit., p. 388.25 KELSEN, op. cit., p. 390.

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A visão de Kelsen liga-se, ainda, a outros dois postulados: a) não háum critério de preferência (questão do método), “não há absolutamentequalquer método” jurídico-positivo capaz de discernir, dentro da moldu-ra, “a significação correta”; b) a escolha do intérprete seria um problemade política ou de justiça, não resultaria do direito positivo – fora do qualnão há direito, já que o edifício kelseniano ergue-se, no que tange àrelação entre a ciência jurídica e a política, “pela rigorosa separação en-tre uma e outra”. Daí, segundo o corifeu, o ódio à sua teoria, referido noprefácio à 1ª edição (em 1934, escrito na “neutra” Genebra), posto queteria afetado o interesse corporativo do jurista, desnudado, perante a so-ciedade, a quem tentara impingir “que possui, com a sua ciência, a res-posta à questão de saber como devem ser ‘corretamente’ resolvidos osconflitos de interesses dentro da sociedade, que ele, porque conhece oDireito, também é chamado a conformá-lo quanto ao seu conteúdo, queele, no seu empenho de exercer influência sobre a criação do Direito temem face dos outros políticos mais vantagens do que um simples técnico dasociedade.”.26

Seja como for, no que ultrapassar a atividade cognoscitiva (o conheci-mento do Direito positivo e sua moldura), o aplicador deixa o campojurídico e invade a seara de outras normas – sobre as quais exercerá atode vontade –, de Moral, de Justiça, e a criação jurídica, neste últimoestágio (em que escolherá uma das figuras dentro do quadro), estarádesvinculada, é livre, “isto é, realiza-se segundo a livre apreciação doórgão chamado a produzir o ato.”.27

Certo que o aplicador é livre (cria o direito) ao superar a “pura deter-

26 KELSEN, op. cit., pp. XII e XIII. Interessante seria verificar o quanto tal assertiva contraria a idéia dainterpretação como ato cognoscitivo (obtida por uma operação de conhecimento) e ato de vontade, em queo aplicador escolhe dentre as possibilidades reveladas, esclarecido, de todo modo, que o juiz é “um criadorde Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre.” (p. 393).

27 KELSEN, op. cit., p. 393. Repare-se na pista que segue: não seria assim, o aplicador não seria livre, se o próprio“Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso,estas transformar-se-iam em normas de Direito positivo.” (p. 394). Seria possível aventar que, em face daconstitucionalização e positivação da moral (fenômeno da substancialização do direito), Kelsen repensariao “non liquet” jurídico? Diante, por exemplo, da redação do caput do artigo 37 da Constituição brasileira?A hipótese é aceita por Hart (infra). Alexy refere que as teorias positivistas, por diversos motivos, concebemo sistema jurídico sempre como um sistema aberto. Parece-nos, todavia, que o conceito mais adequadoseria o de indeterminação. Visto que fora do direito positivo não se põe mais a questão jurídica, vale dizer,não há resposta estritamente jurídica, tratar-se-ia, pois, de um sistema fechado, que nega aos fatores“externos” (morais, políticos) a possibilidade de conhecimento jurídico. Vide ALEXY, Robert. “Sistemajurídico, principios jurídicos y razón práctica”, Doxa 5 (1988), p. 139.

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minação cognoscitiva” (trava da interpretação científica, que se limitaao ato de conhecimento). O que leva às lacunas, que só podem ser pre-enchidas, numa função criadora, pelos aplicadores, em ato de vontade,pois “esta função não é realizada pela via da interpretação do Direitovigente.”28 Trata-se, então, de problema político ou moral, infenso à crí-tica jurídica, o que é coerentemente apontado como cabal demonstraçãoda pureza de sua teoria, não escapando a Kelsen que seu formalismo ser-via como invólucro para fascistas, comunistas, capitalistas-nacionalistas,bolchevistas crassos, escolásticos católicos, protestantes, ateus. Suspeitade todas as orientações políticas, a teoria pura, imaculada, não se com-promete com nenhuma.29

A posição “moderada” de Hart talvez seja ainda hoje o padrão-ourodo positivismo contemporâneo. Ao buscar o conceito do direito, deixaclaro que se trata de uma abordagem descritiva, moralmente neutra, umateoria jurídica descritiva e geral.30 Certo que a tese central da “regra dereconhecimento” sofistica-se e supera um positivismo meramente factu-al, podendo muitos sistemas de direito (“tal como nos Estados Unidos”),ao pedigree (a expressão é de Dworkin, para referir-se ao modo como asleis são adotadas ou criadas por instituições jurídicas, independente deseu conteúdo) agregarem princípios de justiça e valores morais, “critériosúltimos de validade” que podem integrar o conteúdo das restrições jurí-dico-constitucionais.31

Nada obstante, deliba-se o cerne da polêmica com Dworkin, inegávela textura aberta das regras jurídicas, que podem ter “penumbra de incer-teza”. Hart é expresso: “Mas a exclusão de toda a incerteza, seja a quepreço for, sobre outros valores não é um objectivo que eu tenha algumavez encarado para a regra de reconhecimento. (...) Deveria tolerar-seuma margem de incerteza e, na verdade, deveria considerar-se a mesmabem-vinda, no caso de muitas regras jurídicas, de forma que pudesse to-mar-se uma decisão judicial inteligente quando a composição do caso

28 KELSEN, op. cit., p. 395.29 KELSEN, op. cit., prefácio, p. XIII. Conulte-se AZEVEDO, Plauto Faraco de. Limites e justificação do poder do

Estado. Petrópolis: Vozes, 1979, pp. 182-200.30 HART, Herbert L A. O conceito do Direito. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994, p. 301. Já Dworkin, infra,

postulará uma teoria justificativa e interpretativa, “um empreendimento radicalmente diferente” daconcepção de Hart.

31 HART, pp. 309-11. “É verdade, claro, que uma função importante da regra de reconhecimento consiste empromover a certeza com que o direito deve ser declarado.” (p. 312)

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não previsto fosse conhecida e as questões em jogo na sua decisão pudes-sem ser identificadas e, assim, resolvidas racionalmente.”. Diante de ca-sos difíceis, Hart responderá que o direito é incompleto e não fornecequalquer resposta. Segue-se que os tribunais têm poder discricionáriopara criar direito.32

3.2. A certeza combativa de DworkinForça de uns, miséria de outros. A partir deste ponto, cunha-se a crí-

tica veemente de Ronald Dworkin, que, com a tese da “única respostacorreta”, pretende romper a perigosa malha do relativismo. Se a pecha deneojusnaturalista sempre é problemática (pese a influência de Rawls),parece menos duvidoso considerar Dworkin um apologista do sistemaamericano e um crítico implacável do positivismo e do utilitarismo. Suaconcepção ancora-se em direitos individuais “fortes” (contramajoritári-os) e no rechaço da separação entre direito e moral como postulado me-todológico.

Ao invés de um sistema estruturado apenas por regras, Dworkin ofere-ce um modelo de princípios jurídicos, o que deveria permitir que existauma única resposta correta mesmo nos casos em que as regras não pos-sam determiná-la.33 Tal solução, a verdadeira, é a que melhor se justificapor uma teoria material que incorpora ao sistema jurídico princípios eponderações que, novamente, melhor correspondam à Constituição, àsregras jurídicas e aos precedentes. Pese reconhecer que não há procedi-mento que leve, necessariamente, à única resposta correta, adverte quea indisponibilidade de um método infalível não impede a existência da

32 HART, pp. 313-5. O autor, além de afirmar que a diferença entre regras e princípios é apenas de grau(quantidade de generalidade e abstração), sustenta a tese fundamental da separação entre direito e moral(p. 331 – “daí que possam ter validade, enquanto regras ou princípios jurídicos, disposições moralmenteiníquas”). Justamente a “one right answer” de Dworkin considera tal poder discricionário antidemocráticoe injusto (pp. 336-8). Hart encara tal poder como “o preço necessário que se tem de pagar para evitar oinconveniente de métodos alternativos de regulamentação desses litígios”, por exemplo o reenvio daquestão ao órgão legislativo; por fim, o injusto fraudar das expectativas daqueles que agiram em confiançade que “as conseqüências jurídicas de seus actos seriam determinadas pelo estado conhecido do direitoestabelecido, ao tempo dos seus actos” (problema da criação jurídica ex post facto), parece bastanteirrelevante nos casos difíceis – em que não haveria tal confiança justificada (p. 339).

33 DWORKIN, Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Há diferenças qualitativas (lógicas)entre regras e princípios, os conflitos entre as primeiras resolvendo-se pela lógica do “tudo ou nada” (pp.39-40), a par da dimensão de peso, presente nos segundos – embora apresentem-se sem hierarquiaestabelecida (pp. 42-3)

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resposta verdadeira, que sempre poderia ser encontrada por um juiz ide-al, Hércules, meta da qual o juiz real deve aproximar-se.34

Se para resolver os “hard cases” o juiz criasse normas, que seriam apli-cadas retroativamente, Dworkin adverte que se não estaria tomando ademocracia e seu sistema de legitimação a sério. O juiz, então, mesmonas contradições e nas lacunas, está determinado por princípios, para queos indivíduos não estejam à mercê dos juízes. A função judicial é degarantia de direitos, não de criação. Com a resposta correta, a intenção éreduzir a irracionalidade da resposta jurisdicional, até porque, no litígio,há um direito a vencer.35

Chega-se, nesta quadra, a alternativas pouco alentadoras: 1) um mo-delo silogístico da função judicial, de transbordante formalismo, gostariade acreditar numa única resposta (a rigor, nem se colocaria a questão daresposta correta, pois a conclusão silogística é necessária); 2) uma visãodita realista não forneceria ferramental crítico, pois as decisões judiciaisdecorreriam de preferências pessoais, em nível de consciência subjetiva,sendo a justificação mero “a posteriori”; 3) a linha positivista, que nãoultrapassa a constatação das várias respostas juridicamente indistintas (atextura aberta no âmbito da moldura); 4) a única resposta correta deDworkin.

3.3. As versões esmaecidas da única respostaAlexy abraça uma versão fraca da única resposta correta. Ao apontar

méritos na distinção entre regras e princípios esgrimida por Dworkin, con-sidera, entretanto, que a teoria dos princípios, por si, não logra sustentara tese da única resposta correta. Acaso conjugada com uma “teoria daargumentação jurídica” (orientada pelo conceito de “razão prática”), sóassim poderia embasar-se uma versão débil da tese da única resposta.

Rediscute, para tanto, os critérios de distinção propostos por Dworkin

34 Seguiu-se ALEXY, “Sistema jurídico, principios juridicos y razón práctica”, Doxa 5 (1988), pp. 139-40.35 DWORKIN, op. cit., pp. 165-203. Repare-se que, mesmo nos casos difíceis, “os juízes são injustos quando

cometem erros sobre os direitos jurídicos. (...) cometerão tais erros em algumas ocasiões, pois são falíveise, de qualquer modo, divergem entre si.” (p. 202) – o que não configura, por si, “argumento contra atécnica de decisão judicial de Hércules, ainda que sem dúvida sirva, a qualquer juiz, como um poderosolembrete de que ele pode muito bem errar nos juízos políticos que emite, e que deve, portanto, decidir oscasos difíceis com humildade.” (p. 203)

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para diferenciar princípios de regras, que são bem conhecidos: regras apli-cam-se na forma do tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion) – se é válidaaplica-se, senão se ignora –, ao passo que os princípios não determinamnecessariamente uma decisão (caberia perguntar se as regras determi-nam), mas proporcionam razões a favor de uma ou outra solução, exibin-do uma dimensão de peso notável na colisão entre princípios. Alexy avançae afirma que o núcleo da diferença está no “mandato de otimização” dosprincípios, que podem ser cumpridos em diversos graus (conforme possibi-lidades fático-jurídicas), ao contrário das regras, que exigem pleno cum-primento, restando a disjuntiva cumpridas/descumpridas – contêm deter-minações no campo fático-jurídico.

Do mandato de otimização Alexy chega à vinculação entre argumen-tação jurídica e moral (rejeita, pois, a tese positivista da separação). Valedizer, a incorporação constitucional dos princípios da dignidade humana,liberdade, igualdade, transmuda-os de “normas vagas” e apresenta umatarefa de otimização, que tem forma jurídica, mas conteúdo (fundo) mo-ral. Enriquecido, agora, o conceito de princípio cabe reperguntar sobre acapacidade da teoria dos princípios alicerçar uma única resposta paracada caso.36

Uma teoria forte dos princípios, que elencasse de forma completa to-dos os princípios de um dado sistema, e catalogasse todas as relações deprioridade, abstratas e concretas, entre eles, determinaria, de forma uní-voca, a decisão para cada caso e, com isso, consagraria a posição deDworkin. Alexy, contudo, agrega outro dado: a “teoria dos valores”. Prin-cípios e valores são intercambiáveis, a colisão de princípios (deontológi-ca) é também uma colisão de valores (axiológica). Portanto, as relaçõesde prioridade entre princípios revelam um problema de “hierarquia devalores”, que não comportam um ordenamento estrito, expressável numaescala numérica, de maneira “calculável”. Seria possível, contudo, uma“ordem débil” de valores, fazendo notar que uma relação de prioridadeestabelecida para um caso concreto é importante para a solução de novoscasos, assomando a fórmula de uma lei de colisão: “as condições, segundoas quais um princípio prevalece sobre outro, formam o suporte fático deuma regra que determina as conseqüências jurídicas do princípio pre-valecente”. O programa da única resposta estaria salvo, sem prejuízo dereconhecer (por isso a debilidade), que a emergência de novos casos,

36 Cf. ALEXY, Doxa, pp. 141-4.

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com combinações originais de características, impede a construção de“uma teoria que determine para cada caso precisamente uma solução”.37

Avultam, ainda, sempre com Alexy, as “estruturas de ponderação” –derivadas do princípio da proporcionalidade, cujos subprincípios consi-deram tanto as possibilidade fáticas de otimização (adequação e necessi-dade) quanto as jurídicas (proporcionalidade “stricto sensu”, o sopesa-mento entre o menoscabo de um princípio e a importância do cumpri-mento de um outro) – , a conduzir a estruturas de argumentação racio-nal, e a possibilidade de existirem prioridades “prima facie”, que se nãodeterminam o resultado final, obviamente estabelecem cargas diversasde argumentação. Neste ponto, conectando argumentação jurídica e ra-zão prática, Alexy vai localizar seu modelo triádico de sistema jurídico,de duas dimensões: uma passiva, o nível dos princípios (1) e das regras(2): outra ativa, a teoria da argumentação jurídica (3), que diz como,atuando sobre o nível passivo (lidando com princípios e regras), é “possí-vel uma posição racionalmente fundamentada”.38

Nesta perpectiva, Alexy não vê motivo para abandonar a idéia da úni-ca resposta correta. Certo que a argumentação jurídica é um caso especi-al da argumentação prática em geral (diante dos vínculos institucionais,jurídicos, à lei, aos precedentes e à dogmática), também é pacífico quetais vínculos não levam “em cada caso precisamente a um resultado”,observação que vale tanto para as regras (subsunção) quanto para os prin-cípios (ponderação), esta última categoria prenhe de questões morais.Importa que nos casos problemáticos são necessárias valorações que senão podem extrair obrigatoriamente dos vínculos fixados (da autoridadeda lei, dos precedentes e da dogmática). Assim, para que se mantenha aracionalidade da argumentação jurídica é preciso verificar: se, e em quemedida, as “valorações adicionais são suscetíveis de um controle racio-nal”. Ou, dito de outra forma, verificar a “possibilidade de fundamentarracionalmente os juízos práticos ou morais em geral”.39

Chegados à encruzilhada do tudo-ou-nada? Subjetivistas-relativistas-decisionistas versus objetivistas-absolutistas-cognoscitivistas-racionalistas?Não para Alexy, que admite a impossibilidade de uma teoria moral mate-

37 ALEXY, Doxa, p. 147.38 ALEXY, Doxa, pp. 148-9.39 ALEXY, Doxa, p. 149.

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rial (com uma resposta concludente, segura intersubjetivamente, para cadaquestão prática), ao mesmo tempo em que ressalva a possibilidade deteoria morais procedimentais (que formulam regras ou condições do dis-curso prático racional). No núcleo, um sistema de regra e de princípiosdo discurso, “cuja observância assegura a racionalidade da argumenta-ção e de seus resultados” – consabido que Alexy formulou um sistema de28 regras, algo com um “código da razão prática”.40

Isso posto, Alexy pergunta: o discurso prático leva a uma única respos-ta correta para cada caso? Sob condições ideais, o exercício do discursoprático levaria sempre a um consenso, a uma única resposta correta (semembargo, recorrendo a cinco idealizações: tempo, informação, clareza lin-güística e conceitual ilimitados; capacidade e disposição ilimitadas paraa troca de papéis; e ausência de qualquer preconceito).41 Claro que narealidade não existe nenhum procedimento que permita, com a seguran-ça intersubjetivamente necessária, encontrar a única resposta correta.Isto não obriga Alexy a renunciar à idéia da única resposta correta, desdeque precisado seu status. Postula que, independente de existir ou não, osparticipantes do discurso devem “pretender que a sua resposta é a únicacorreta”, o que significa pressupor “a única resposta correta como idéiaregulativa”.42 Bastaria acreditar que, em alguns casos, pode dar-se umaúnica resposta correta e, não se sabendo quais casos serão esses, valeria apena procurar encontrá-la (a única resposta correta) em todo e qualquercaso. As respostas alcançadas por tal via, ainda que não sejam as únicascorretas, respeitam as “exigências da razão prática e, neste sentido, sãoao menos relativamente corretas”.43

Em instigante estudo, o jurista finlandês Aulis Aarnio também enfren-ta o tema.44 Depois de apresentar o conceito de única resposta correta,em sua versão forte (existe uma resposta correta que pode ser detectada –jusnaturalismo racionalista, jurisprudência dos conceitos), e débil (embo-

40 ALEXY, Doxa, p. 150.41 Deixa sem resposta se, mesmo no quadro ideal, as diferenças antropológicas entre os participantes do discurso

poderiam redundar em casos sem uma única resposta correta (ALEXY, op. cit., p. 151).42 Vislumbram-se traços do “idealismo do como-se, cultivado pelos neokantianos nas cátedras alemãs” no início

do século XX (SAFRANSKI, op. cit., p. 77).43 ALEXY, Doxa, p. 151.44 AARNIO, Aulis. “La tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico”,

Doxa 8 (1990), pp. 23-38.

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ra exista, nem sempre pode ser encontrada – algumas doutrinas positivis-tas, notável o postulado ideológico de que existam lacunas no sistemajurídico e a meta para alcançar a resposta como guia do juiz ou doutrina-dor), Aarnio esclarece a postura crítica que vai defender: uma respostanegativa. Não pode haver respostas corretas no discurso jurídico (tese on-tológica), do que segue que tampouco tais respostas podem ser detecta-das (teses epistemológica e metodológica).

Aarnio move-se no contexto de justificação. O Estado de Direito li-beral prometia o máximo de certeza jurídica para as partes de um proces-so (a previsibilidade como negação da arbitrariedade), e a realização detal desiderato ampara-se na divisão de poderes, na igualdade formal, naseparação entre direito e moral e num modelo formal de argumentaçãojurídica (o silogismo). Já o Welfare State orienta-se na busca da igualdadematerial (qualidade de vida, proteção do mais fraco), sendo impossívelseparar direito e moral e tornando-se justiça, razoabilidade e eqüidadeconceitos chaves – critérios, portanto, das decisões jurídicas. Na síntese,o raciocínio jurídico evitará a arbitrariedade (princípio do Estado de Di-reito) e o resultado final deve ser apropriado, isto é, de acordo com odireito (aspecto formal) e satisfazer critérios de certeza axiológica (aspec-to moral ou material). Nas atuais sociedades, o processo de decisão (pro-ceso de razonamiento) há de ser racional e justo, e os tribunais (com aespecial responsabilidade social de maximizar a certeza jurídica) preci-sam justificar suas decisões recorrendo não apenas às fontes formais, mastambém ao demonstrar suas razões (o que envolve a utilização de argu-mentos apropriados).

Posto que um dos traços mais importantes de uma “democracia madu-ra é seu caráter aberto”,45 as razões apropriadas conectam-se ao controleexterno das decisões judiciais, vale dizer, o controle social depende deque os tribunais realmente argumentem, justifiquem suas decisões, de-monstrem que suas razões são juridicamente aceitáveis e públicas (irrele-vante o contexto de razões reais de descobrimento da solução). Aarniodestaca, no contexto da justificação, que não só o catálogo de fontes éimportante, mas também a maneira de usá-las. Distingue justificação in-terna e externa. A primeira refere-se à estrutura interna (lógica) do arra-zoado, calcado seu modelo clássico no silogismo aristotélico, no qual ainferência é necessária em relação à premissa. Observa, e bem: “Toda

45 AARNIO, op. cit., p. 27.

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decisão jurídica pode ex post ser escrita na forma de um silogismo, inde-pendente da forma com que foi alcançada.”.46 Entretanto, notadamentenos casos difíceis, sempre podem-se questionar as premissas da inferência(por que esta no lugar daquela?). Argumentar sobre a premissa é a tarefada justificação externa. Pode-se lançar mão de outro silogismo, em que apremissa problemática aparecerá como conclusão, “construir cadeias desilogismos que dão suporte argumentativo à decisão (interpretação)”,47

cada ramo desta “árvore silogística” versando sobre uma fonte diferente.

Nos casos difíceis, nenhuma cadeia silogística, isoladamente, suportade modo suficiente o resultado final. “O fator decisivo é a totalidade dosargumentos. (...) o ‘melhor’ resultado [semelhante a um quebra-cabeças]é a totalidade mais homogênea que se pode construir.” As premissas últi-mas de uma árvores silogística, resultando de sopesamentos e pondera-ções, “não são auto-evidentes ou empiricamente verdadeiras”. Outra vezdecisivo será “o grau de coerência do conjunto de premissas que se podeconstruir” – a coerência como “medida última”.48

A justificação externa, noutra linha, vista como diálogo, não se compa-dece com a manipulação, pois a meta da argumentação racional é o con-vencimento (não a persuasão do poder), já que a noção mesma do direitoliga-se ao comportamento previsível das autoridades – o que afasta aarbitrariedade ou a tomada de decisões ao acaso. Entretanto, a expecta-tiva de Aarnio concerne à “melhor justificação possível”, não a “soluçõesabsolutamente corretas”.49 A melhor justificação possível pressupõe uma“situação ideal de fala” (Habermas, racionalidade comunicativa), sendocritérios decisivos a liberdade e a igualdade na discussão, além do acordofundamental de seguir os padrões do discurso racional. Embora ideal, talsituação pode servir como medida para a correção do discurso jurídico.Assim Dworkin, que personificou o ideal judicante em Hércules (capazde encontrar uma resposta correta para cada hard case), e, mesmo, Alexy– na versão debilitada (a única resposta correta como pressuposto ideoló-gico, mesmo que Hércules seja eventualmente incapaz nalgum caso).

Aarnio, nesta paragem, introduz o argumento da duplicação. E se hou-

46 AARNIO, op. cit., p. 28.47 AARNIO, op. cit., p. 29.48 AARNIO, op. cit., p. 30.49 AARNIO, op. cit., p. 31.

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vesse dois Hércules, ambos racionais, resolveriam da mesma forma pro-blemas axiológicos? Visto que teriam pontos de vista diversos, calcadosem interesses diferentes, “podem alcançar várias respostas não equivalen-tes mas igualmente bem fundadas.”. Como estabelecer qual a correta oua melhor? Recorrer a um metaHércules conduziria ao regresso “ad infini-tum” e, portanto, fracassa o argumento.50

Superada, pois, a crença na resposta correta, Aarnio pergunta pelamelhor resposta possível e chega ao problema do “princípio regulativo”,sempre conectado ao diálogo ou ao procedimento discursivo. Interessa,agora, o auditório. Num caso difícil, o intérprete dirige-se a um auditó-rio, que tanto pode ser uma comunidade jurídica concreta (e que envol-ve elementos persuasivos, porque “somos demasiado humanos”, inclina-dos à manipulação) quanto uma comunidade jurídica ideal (em que todoscomprometem-se com os princípios da racionalidade discursiva). Estacomunidade ideal será o critério para avaliar a melhor resposta. Repare-seque, ainda que todos disponham das mesmas fontes materiais, chega-se amais de uma resposta, visto que no discurso jurídico “muitas das eleiçõesdecisivas têm carga valorativa.”.51

No próximo passo, focada a divergência entre respostas na valoraçãode um determinado ponto de vista, é possível comparar as soluções? Nãohá, segundo Aarnio, uma medida comum e nenhuma resposta “é em ter-mos gerais a melhor possível”. Uma pode ser, todavia, mais relevante que aoutra – e, nesta perspectiva, a melhor. A melhor possível, no momento,será a que alcançar maior aceitação possível no auditório ideal. O critério,em suma, deságua no princípio majoritário.52

Aarnio sinala que a aceitação da mais de uma resposta possível é “te-oricamente necessária”, partindo a assumida visão relativista do pressu-posto de que “não há respostas corretas no ordenamento jurídico ex ante”,pelo que “todas as soluções bem fundadas (...) são ‘corretas’ ex post, no

50 AARNIO, op. cit., p. 32.51 AARNIO, op. cit., p. 34. A comunidade jurídica ideal, por conseguinte, não é um “auditório universal” no

sentido de Perelman, salvo na pressuposição da racionalidade do discurso, o que não elide a presença decódigos valoarativos diversos.

52 AARNIO, op. cit., p. 35. Violar-se-ia, com isso, o direito das minorias? Não para o autor, visto que nacomunidade ideal o uso do poder (discriminatório) não é um problema; o discurso racional leva em contatodas as razões (inclusive a opinião minoritária); mesmo a minoria, “a priori”, aceitou o princípio majoritá-rio, fora do qual só poderia cogitar-se do sorteio.

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sentido de que elas são respostas apropriadas dentro de uma segura arma-ção justificatória”. Não há, doravante, como agregar argumentos de or-dem “racional”. Trata-se, então, de introduzir a idéia de “cooperaçãosocial”, que pressupõe que se possa estar de acordo em certas soluções –o permanente desacordo provocaria incerteza sobre o que é correto ouerrôneo, pois as autoridades necessitam de uma solução final para serposta em prática.53

Aarnio admite que o princípio majoritário não suplanta o desacordo.Todavia, aceitas a racionalidade discursiva e a cooperação social (quesupõe previsibilidade e rejeita o sorteio), servem de argumento para outratese: “cada caso difícil teria uma resposta” (ainda que quase imperceptí-vel, a crença “numa” resposta parece aflorar, como num ato falho), não a“única correta”, mas a “mais operativa” em relação aos pressupostos. Essaresposta mais operativa será considerada, para o momento, “a melhor pos-sível”.54

Aarnio propõe, ao cabo, a seguinte diretriz: “ Na decisão de um casodifícil deve-se tratar de alcançar uma solução tal e uma justificação talque a maioria dos membros racionalmente pensantes da comunidade ju-rídica possa aceitar essa solução e essa justificação.”.55 Posto seu princípioregulativo, repara que serve para incitar quem decide à justificação racio-nal e previne o objetivismo valorativo típico, por exemplo, de Dworkin. Éde gizar que a aceitação da maioria é buscada na comunidade jurídicaideal. Encerra com uma prescrição, ao afirmar que a “aceitabilidade”como meta da argumentação jurídica “é suficiente para os seres huma-nos” e que a utilização do princípio regulativo proposto pode “maximizaras expectativas de certeza jurídica”.56

53 AARNIO, op. cit., p. 36.54 AARNIO, op. cit., p. 37, sem prejuízo de que a opinião minoritária, dada a dinâmica social, acabe alçando-

se à condição de “melhor solução possível”.55 AARNIO, op. cit., p. 37.56 AARNIO, op. cit., p. 38. Pressupor “uma resposta correta” não ajuda a “servir melhor à sociedade”, pois do

que realmente necessita-se é de “justificação racional”. Fica por demonstrar que o recurso ao auditórioideal garante o máximo de certeza possível, pois a solução majoritária não virá com “selo de garantia” apostopor juristas angelicais, o que significaria uma nova ordem de problemas: depois de alcançada a melhorsolução possível, reabre-se o campo discursivo para estabelecer que tal resposta seria a mais adequada nodiapasão da comunidade jurídica ideal. Ainda que com as vestes da razão, permanece um quê desacerdotal nesta intermediação entre as comunidades.

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3.4. Intervalo para um viés críticoImportante contribuição é ofertada por Manuel Atienza, que inicia

justamente por criticar a “teoria padrão” da argumentação jurídica (Ale-xy), insuficientemente crítica “com relação ao Direito positivo, conside-rado tanto estática, quanto dinamicamente”.57 Um de seus maiores de-feitos é não ter conseguido representar, adequadamente, “como os juris-tas fundamentam, de fato, suas decisões”, sendo a lógica formal instru-mento insuficiente para tal desiderato, já que “o processo de argumenta-ção não é, por assim dizer, linear, mas antes reticular; seu aspecto nãolembra uma cadeia, e sim a trama de um tecido.”.58

O processo de argumentação que se realiza num caso difícil envolve,segundo Atienza, cinco passos: 1) a identificação do problema a resolver;1.a) problemas de pertinência (dúvidas sobre qual norma aplicável); 1.b)problemas de interpretação; 1.c) problemas de prova; 1.d) problemas dequalificação (dúvida sobre se um determinado fato, que não é discutido,recai ou não no âmbito de aplicação de um conceito, contido no casoconcreto ou na conseqüência jurídica da norma); 2) determinar se o pro-blema a resolver surge por (2.a) insuficiência de informação (lacuna) oupor (2.b) excesso de informação;59 3) construir hipóteses de solução parao problema, construir “novas premissas, para criar uma nova situação in-formativa que contenha a uma informação necessária e suficiente comrelação à conclusão”; 4) justificar as hipóteses de solução formuladas,apresentar argumentos a favor da interpretação proposta (no caso de in-suficiência de informação os argumentos serão analógicos “lato sensu”;

57 ATIENZA, op. cit., p. 314. Ademais, a teoria padrão ocupa-se quase exclusivamente de questões normativas,ao passo que a argumentação jurídica calca-se em grande parte “sobre fatos” (p. 315). Ignora, ainda, oâmbito da produção da lei (para Alexy, é o respeito a lei que o torna o discurso jurídico um caso especial,em relação ao discurso prático em geral), seria preciso “partir de alguma teoria da legislação” (p. 316).Salienta o autor, em terceiro lugar, que a teoria padrão descura da “racionalidade estratégica”, que deveser combinada com a racionaldade discursiva num modelo complexo de racionalidade prática, já que “aresolução de problemas jurídicos é, com muita freqüência, resultado de uma mediação ou de umanegociação” (p. 318 – pense-se nos termos de ajustamento de conduta celebrados pelo Ministério Públicono âmbito da legislação brasileira). Por quarto, uma teoria “há de ser também descritiva (...) capaz de darconta dos argumentos que ocorrem de fato na vida jurídica”, seria importante que se estendesse tambémao contexto da descoberta (pp. 318-9).

58 ATIENZA, op. cit., p. 320.59 “Quando as premissas contêm toda a informação necessária e suficiente para chegar à conclusão, argumentar

é um processo de tipo dedutivo. Mas normalmente precisamos argumentar naquelas situações em que ainformação das premissas é deficiente ou, então, excessiva”, no sentido de contraditória (ATIENZA, op.cit., p. 326).

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no de excesso, incidirá a reductio ad absurdum, determinada interpreta-ção é impossível porque levaria a conseqüências inaceitáveis – trata-se,propriamente, de “estratégias de argumentação); 5) justificação interna,“a última passagem com que termina o modelo é a que vai das novaspremissas à conclusão”.60

Desemboca-se na pergunta-título, ao indagar dos critérios de corre-ção para avaliar o processo argumentativo. Atienza destaca o mérito dateoria padrão, ao trabalhar com a noção de “racionalidade prática” (Ale-xy), todavia insuficientemente desenvolvida, pois os critérios fornecidossão mínimos, “só permitem descartar como irracionais determinadas deci-sões ou formas de argumentação”. Entretanto, nos casos difíceis, as “di-versas soluções presentes (...) são aprovadas nesse teste de racionalida-de”. Para discutir qual a mais correta seria preciso ampliar a noção deracionalidade prática, para abarcar uma “teoria da eqüidade, da discrici-onalidade ou da razoabilidade” que oferecesse algum critério (por maisdiscutível que seja) – uma teoria que não pode ter caráter puramenteformal, mas que incorporaria necessariamente “conteúdos de naturezapolítica e moral”.61

Para tanto, Atienza distingue três funções que uma teoria da argu-mentação jurídica deveria cumprir: 1ª) cognoscitiva (permitir uma com-preensão mais profunda do fenômeno jurídico e da prática de argumen-tar) – aqui faltaria desenvolver o aspecto dinâmico do sistema estrutural-normativo e procedimental-argumentativo de Alexy; 2ª) prática ou técni-ca (oferecer uma orientação útil nas tarefas de produzir, interpretar eaplicar o direito) – neste ponto, estabelecer uma “série de critérios parafazer um julgamento sobre sua correção (...) é uma tarefa que, em consi-derável medida, ainda está para ser cumprida”;62 3ª) política ou moral (aideologia jurídica na base de uma concepção argumentativa) – Alexy,por exemplo, parte de “uma valoração essencialmente positiva de o que éo Direito moderno (o Direito dos Estados democráticos)”, e, embora nãoaceite o postulado dworkiano de uma única resposta correta, continuaconsiderando que “o Direito positivo sempre proporciona pelo menos uma

60 ATIENZA, op. cit., p. 329.61 ATIENZA, op. cit., pp. 330-1.62 ATIENZA, op. cit., p. 333. Outra finalidade prática refere-se ao encino jurídico, que teria como objetivo

central “o de aprender a pensar ou a raciocinar ‘como um jurista’, não se limitando a conhecer osconteúdos do direito positivo” (p. 334).

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resposta correta”, a hipótese última de Alexy é a de que “sempre é possí-vel ‘fazer justiça de acordo com o Direito’.”.63

Aqui um divisor de águas, sendo mais realista e crítica a visão deAtienza com relação ao direito dos estados democráticos, a notar que aargumentação não esgota o funcionamento do direito, “que consiste tam-bém na utilização de instrumentos burocráticos e coativos”. Assim, aolado dos casos fáceis (para os quais “o ordenamento jurídico fornece umaresposta correta que não é discutida”), há os difíceis – em que é possívelpropor mais de uma resposta correta “que se situe dentro das margenspermitidas pelo Direito positivo” – e uma terceira categoria: a dos casostrágicos, nos quais a decisão não se coloca em nível de alternativas, masde dilema, “quando, com relação a ele, não se pode encontrar uma solu-ção que não sacrifique algum elemento essencial de um valor considera-do fundamental do ponto de vista jurídico e/ou moral.”.64

4. A MELHOR RESPOSTA DA INTERPRETAÇÃOTÓPICO-SISTEMÁTICA

A pergunta-título recebe acurada e importante reflexão na obra deJuarez Freitas.65 Já no primeiro capítulo, o autor deixa claro que o “Direi-to Positivo é aberto, vale dizer, a idéia de um suposto conjunto auto-suficiente de normas não apresenta a menor plausibilidade, seja no planoteórico, seja no plano empírico.”.66 Sendo, pois, um sistema geneticamen-te aberto,67 é visto como “potencialmente contraditório, normativa e axi-

63 ATIENZA, op. cit., p. 334.64 ATIENZA, op. cit., p. 335. Argumentar, aqui, implica elementos trágicos.65 Aliás, no prefácio, Eros Roberto Grau, pp. 17-8, assinala que “a alusão, no texto, a uma melhor significação possível

entre as várias possíveis não significa adesão, dele [Juarez Freitas], à concepção dworkiana da one right answer.Essa melhor significação, no texto de JUAREZ, é aquela alcançada no campo da prudência, no sentido aristotélico,que a interpretação é.” – FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

66 FREITAS, op. cit., pp. 32-3, o que implica rejeitar as teorias auto-suficientes que postulam sistemas fechados(nota 8).

67 Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2ª ed. Lisboa:Fundação Calouste-Gulbenkian, 1996, pp. 101-26. Abertura entendida como “incompleitude, a capacida-de de evolução e a modificabilidade do sistema” (p. 104), vinculada diretamente à “incompleitude e aprovisoriedade do conhecimento científico” (p. 106) bem como à “modificabilidade da própria ordem jurídica” (p. 109)– o “Direito positivo como um fenómeno colocado no processo da História e, como tal, mutável” (p. 110),sendo a formulação do sistema jurídico “um processo infindável” (p. 111).

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ologicamente”, tal complexidade revelando-se um dos pontos centrais deseu edifício conceitual. Lacunas e antinomias, derivadas da abertura (epis-temológica, que decorre da indeterminação semântica da matéria jurídi-ca), supõe a preexistência de soluções admissíveis (não completude, mascompletabilidade).68

A suplantar (não a desconsiderar) a lógica-formal, Juarez consignaque a escolha das premissas “determina a construção lógica”, pelo que o“silogismo jurídico deve ser reconhecido como dialético, isto é, perten-cente ao democrático e pluralista reino da persuasão”, não podendo dis-pensar “argumentações baseadas em premissas contraditórias, tampoucodeixar de conduzir a conclusões prováveis, hipotéticas.”.69 Adiante, o“círculo tópico-sistemático da compreensão”, proposto pelo autor, uneengajamento e reflexão crítica, assumida a “identidade essencial da Tó-pica e do pensamento sistemático (...) para que o ser e o dever-ser tendamà aproximação”, provavelmente a maior missão da interpretação sistemática.Em síntese: a) toda hierarquização revela conteúdo tópico, o que é pró-prio da raciocínio sistematizador (e foi descurado por Canaris) “que ad-vém da circularidade hermenêutica e da abertura cognoscitiva inerenteao diálogo do intérprete com o sistema objetivo; b) as visões unilateraisnão dão conta dessa unidade dinâmica; c) a vocação integradora do pen-samento sistemático demonstra-se no “ato de combater antinomias axio-lógicas”. A perspectiva, então, será dialética, imbricando-se a lógica for-mal ou “sistêmica” e a argumentação material ou sistemática. E a com-preensão operacional da interpretação sistemática dá-se na vertente her-menêutica.70

Ao postular um paralelo entre a identidade essencial tópico-sistemá-tica e uma criativa “convergência viável” entre a hermenêutica filosófica ea crítica das ideologias, Juarez provoca frutífero diálogo entre Gadamer eHabermas, ao cabo do qual é possível (re)afirmar: “O ‘metacritério’ dahierarquização axiológica apresenta-se como um resultado vivo da ne-cessidade de fazer preponderar tanto o logos crítico como o logos tradici-

68 FREITAS, op. cit., pp. 49 e 50. “A Dialética, por outro lado, não peca contra a lógica formal. Simplesmente asupera, dado que é uma lógica da vida real. É a concepção da análise como parte integrante do processosocial analisado, como sua consciência crítica possível, na certeza de que as coisas, em si mesmas, sãocontraditórias.” (p. 169).

69 FREITAS, op. cit., p. 51.70 FREITAS, op. cit., pp. 159-60.

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onal, de molde a encontrar a melhor universalização sistemática no casoconcreto, vale dizer, topicamente.”, desde que assente que “o processo decompreensão requer participação na práxis comunicativa, sem neutrali-dade axiológica, dado que o próprio anelo de universalização, a despeitode objetivo, pressupõe a subjetivação do intérprete, marcadamente aolidar com as antinomias jurídicas”.71

Da “identidade essencial” advém a mais relevante conclusão: “convi-vem variadas soluções no bojo do sistema jurídico e apenas a partir deledevem ser procuradas” (o direito positivo é um sistema aberto e comple-tável topicamente).72 A partir de tais alicerces, vão-se cruzando vigasque culminam por rejeitar a “única resposta correta” e apostar na “melhorresposta possível”.

(a) Jurista “é aquele que, acima de tudo, sabe eleger diretrizes ehierarquizar princípios”. Todavia, “na fixação ou nodesvelamento de tais diretrizes, impende combater a concepçãoanacrônica de Carta Maior como se fosse um conjunto normativoem relação ao qual o exegeta seria capaz de inferir validamentesoluções de modo dedutivo. (...) silogismos jurídicos são dialéticose a operação hermenêutica é eminentemente circular. (...) im-porta, em sede de decisão jurídica, a qualidade de eleição daspremissas.”;73

(b) O segundo preceito da ilustração prescritiva no direito públicoapresentada no capítulo 9 assume, verbis: “As melhores inter-pretações são aquelas que sacrificam o mínimo para preservar omáximo de direitos fundamentais”;74

(c) O sexto preceito considera que uma “boa interpretação constitu-cional é aquela que se sabe, desde sempre, coerente e aberta”;75

(d) O oitavo preceito refere que as “melhores leituras sistemáticasda Constituição visualizam os direitos fundamentais como tota-

71 FREITAS, op. cit., p. 165.72 FREITAS, op. cit., p. 170.73 FREITAS, op. cit., pp. 187-9.74 FREITAS, op. cit., p. 194. O terceiro preceito também refere-se “a maior tutela jurisdicional possível” (p. 196)

e o quarto “a maior otimização possível do discurso normativo” (p. 197).75 FREITAS, op. cit., p. 200.

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lidade indissociável”, procuram restringir ao máximo as eventu-ais limitações (conferindo, ao núcleo essencial, eficácia diretae imediata);76

(e) Na síntese conclusiva, modo expresso, o autor assevera que,“sem que se adote a idéia da única interpretação correta, crê-se na possibilidade de melhor compreender a rede de princípios,regras e valores numa lógica que não é a do ‘tudo-ou-nada’,mas que haverá de ser dialética sempre, no campo dos princípi-os e no campo das regras”;77

(f) Em conseqüência, Juarez sugere “uma melhor interpretação tópi-co-sistemática dentre as ‘n’ possibilidades interpretativas, isto é,aquela que hierarquizar sistematicamente de modo o maisuniversalizável no enfrentamento das contradições ou incompa-tibilidades, contribuindo para o primado do respeito à hierar-quia mais ética do que formal, numa intelecção apta a promo-ver uma hierarquização de soluções sem quebra do sistema”;78

(g) Explicitando: “a interpretação sistemática deve ser concebida comouma operação que consiste em atribuir, topicamente, a melhor signi-ficação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas estritas(regras) e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto(...) tendo em vista bem solucionar os casos sob apreciação”;79

(h) A noção de rede hierarquizada, com máxima referência à Cons-tituição, conduz à lógica jurídica necessariamente dialética,“porquanto são vastas e, não raro, contraditórias as possibilida-des hermenêuticas conferidas ao intérprete/aplicador”;80

(i) A operação de atribuir “a melhor significação sistemática, den-tre várias possíveis (...) revela que o objeto da interpretaçãosistemática não se confunde com mera coisa destacável do in-

76 FREITAS, op. cit., p. 206.77 FREITAS, op. cit., p. 273. Mesmo porque “jamais haverá um conflito de regras que não se resolva à luz dos

princípios” (p. 272).78 FREITAS, op. cit., p. 274.79 FREITAS, op. cit., p. 275.80 FREITAS, op. cit., p. 276. A hieraquização axiológica nunca será somente jurídica, pois a “interpretação opera

como ‘descoberta’ e, ao mesmo tempo, como uma construção intersubjetiva da própria sistematicidade”.

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térprete, tampouco com o resultado cego de forças ou de pro-cessos.”;81

(j) A unidade dialética e a completabilidade do sistema impedem“a erupção de decisionismos subjetivistas maculados pelairracionalidade arbitrária” – pelo que, ao revés do sustentadopelo positivismo, mesmo o de combate de Bobbio, “a zonaindeterminada entre o regulamentado e o não-regulamentadonão configura (...) uma ausência de condições jurídicas paradecidir (...) [pois] o princípio da hierarquização axiológica re-veste-se também de conteúdo eminentemente jurídico.”;82

Ao cabo, o autor parece tomar posição na tensão entre “bons homensou boas leis”, destacando “a importância de robustecer a formação axioló-gica do intérprete para a suprema tarefa ético-jurídica que consiste, em facedas antinomias de avaliação, em alcançar o melhor e mais fecundo desempe-nho da interpretação sistemática”,83 um espaço para a virtude.

5. NA SENDA DA MELHOR RESPOSTA

Afinadas com os câmbios paradigmáticos mencionados, outras posi-ções alinham-se na trilha da melhor resposta. Avulta, pela clareza e origi-nalidade de sua obra, o contributo de Zagrebelsky, para quem a aplicaçãojudicial do direito confere unidade às separações experimentadas entreleis/direitos/justiça e princípio/regras, numa resoluta oposição à subsun-ção reducionista do positivismo.84

Para o autor, a dialética do caso/normas (integrada no círculo herme-

81 FREITAS, op. cit., p. 277.82 FREITAS, op. cit., pp. 282-3.83 FREITAS, op. cit., p. 290. Na mesma linha da melhor interpretação, também PASQUALINI, op. cit., p. 24,

o vôo hermenêutico como a “perene e intersubjetiva procura do melhor sentido da lei ou, em termos maisconcretos, da melhor solução sistemática para os conflitos jurídico-sociais.”. A procura das melhoresexegeses é meta fiadora e inarredável da hermenêutica (p. 51).

84 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 3ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 131. Não escapa ao autora contradição entre concepção e prática positivistas, assente no lema paradoxal da “lei mais perspicaz queo legislador”, pelo qual pretendiam a “objetivação” do direito legislado (uma ficção sem fundamentoteórico), em que pese a “visão objetivista” da vontade da lei ter-se revelado um véu debilíssimo para quemquisesse rasgá-lo.

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nêutico), nem pode resvalar para a pura casuística (excesso de concre-ção, mera tópica) nem para a ciência teorética inútil (excesso de abstra-ção, algumas vertentes sistemáticas). Tal concepção prática orienta a in-terpretação jurídica na busca da norma adequada tanto ao caso quantoao ordenamento, conjugando ambas vertentes até lograr resultado satis-fatório. A interpretação está na atividade mediadora entre o caso tópicoe o sistema normativo, situada na “linha de tensão” que vincula a reali-dade com o direito.85

Ao asseverar que o ordenamento jurídico não oferece ao intérpreteuma só e única resposta para regular o caso, Zagrebelsky insere a questãodo método. A busca da regra não está determinada pelo método, é ométodo que está em função (na direção) da busca, dependendo do quese queira encontrar. O método é só um expediente argumentativo para mos-trar que a regra extraída do ordenamento é possível, justificável nesseordenamento dado. Principalmente, não existe um só método, mas vári-os, sem hierarquia, sendo o “pluralismo metodológico” traço essencial daatual cultura jurídica.86

Sendo o caso, para o juiz, um acontecimento problemático que deveser resolvido, antes é preciso compreendê-lo, o que pressupõe que se en-tenda seu “sentido” e que se lhe dê um “valor”. Por sentido, Zagrebelskyentende a conexão entre uma ação e seu “resultado” social (com os efei-tos que se considera que pode produzir). Embora a compreensão de senti-do dirija e condicione a compreensão de valor, são momentos logicamen-te distintos que se condicionam reciprocamente. É evidente “que umadeterminada compreensão de sentido pode propiciar, melhor que outras,diversos valores, e que a assunção de certos valores, melhor do que ou-tros, pode fazer ver nos casos certos significados antes que outros”. Senti-do e valor, juridicamente, têm significado objetivo, referência ao contex-to cultural, pelo que se pode falar de “solução adequada ao caso”.87

A dinâmica e a mudança dos sistemas jurídicos são traços inescondí-veis e o correlato déficit de certeza “não se pode remediar com uma teo-

85 ZAGREBELSKY, pp. 132-3.86 ZAGREBELSKY, pp. 134-5.87 ZAGREBELSKY, pp. 136-7. Interessante que, aproximando-se de Atienza, o autor, adiante (ao descrever o

caso Serena, um caso difícil), fale de outros casos “iguais ou mais trágicos”. De toda sorte, o direito porprincípios mostra sua dimensão concreta e à ineludível chamada à “prudência” do intérprete (p. 144).

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ria da interpretação mais adequada”. Caminha-se para um direito da eqüi-dade, que exige uma particular atitude espiritual do operador jurídico, deestreita relação prática: razoabilidade, adaptação, capacidade de alcan-çar composições “em que haja espaço não só para uma, e sim para muitas‘razões’. Trata-se, pois, não do absolutismo de uma só razão e tampoucodo relativismo das distintas razões (uma ou outra, iguais são), e sim dopluralismo (uma e outras de uma vez, na medida em que seja possível).Retornam, neste ponto, as imagens de ductibilidade (...)”.88

Também a vislumbrar na instabilidade e na incerteza oportunidades paranovas respostas estruturadas de acordo com um paradigma mais complexo,insere-se a hipótese literária de Massimo Vogliotti – na imagem dos “rapso-dos gregos” e na figura da rede, ao invés da pirâmide.89 Diante da criseilustrada pelo escandaloso protesto de cerca de quinhentos magistradosfranceses, que, em 19 de janeiro de 2001, jogaram seus códigos penais nasjanelas da Chancelaria, aos pés do poder político, denunciando falta demeios para aplicar uma nova lei sobre presunção de inocência e contra alógica produtivista exigida diante da explosão de litígios – um gesto queafrontou a idéia moderna de Código, obra da razão, coerente e completa,de linguagem clara e precisa (lógica linear e binária, que separa criação eaplicação do direito, direito substancial e processual etc.) –, é possível re-agir dentro do paradigma oficial, como pretende o garantismo de um Ferra-joli, de assumida raiz positivista e a apostar na clareza da lei como fonteúnica, ou aceitar a bondade da reacomodação paradigmática.90

O autor evoca a metáfora da rapsódia, cuja etimologia já sugere aformação progressiva e pluralista do texto: “Esta antiga forma literária [arapsódia] evoca, ao contrário [de uma obra escrita, do alto, por um únicoautor], a idéia do direito como uma rede tecida, de maneira contínua,por vários autores, tendo margens de criatividade diferentes, a partir de

88 ZAGREBELSKY, pp. 146-7. A relação de tensão entre o caso e a regra “introduz inevitavelmente umelemento de eqüidade na vida do direito” (p. 148).

89 VOGLIOTTI, Massimo. “La ‘rhapsodie’: fecondité d’une métaphore littéraire pour repenser l’écriture juridiquecontemporaine. Une hypothèse de travail pour le champ pénal”. Revue Interdisciplinaire d’Études Juridiques,2001, nº 46, pp. 1-47.

90 VOGLIOTTI, op. cit., pp. 12-5. Preconiza o autor que a reação da comunidade jurídica deve ultrapassar ahipótese “ad hoc” (interpretando a crise como deformações contingentes, passível de superação pelo ajustedo paradigma da modernidade – certo que identicado na vertente positivista) e investir numa “ruptureépistémologique”. Ao revés, para Ferrajoli, o Poder Judiciário está legitimado na medida em que exerçasomente função cognitiva (p. 21, nota 47).

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uma multiplicidade difusa de contextos, por meio de procedimentos etécnicas diversas, mas unificada por uma mesma tensão unitária, que é ade escrever a epos da sua comunidade, que, em nosso sistema jurídico, érepresentada pelos valores da Constituição (...).”.91

Sob ponto de vista epistemológico, a metáfora da rapsódia desloca oacento das propriedades substanciais para as propriedades relacionais dosistema jurídico, uma epistemologia reticular, em que o conceito funda-mental é o de conexão. Aqui, “os significados não preexistem completa-mente ao jogo de relações, mas se constituem nas conexões entre os nósda rede”.92 O fundamento, portanto, passa a ser dinâmico e pluralista.Importa que a idéia de limites também muda. Não há fronteiras rígidasnem impermeáveis – o limite não está posto antes de começar o jogo, masassume a natureza de um projeto que, para concretizar-se, precisa da co-laboração ativa e responsável de todos os atores do campo jurídico (resul-tante do jogo relacional recursivo).93

A figura da autoridade também deve ser repensada, nesta perspectivadinâmica (mais que ser, a autoridade deve fazer-se) – a legitimação pelajustificação permanente. Vogliotti ainda destaca a autorevolezza, um po-der que se faz respeitar principalmente pelo seu prestígio (o que envolvedecisões de qualidade, que forneçam boas razões).94 O que se liga, se-gundo o autor, à “reabilitação da figura humana” no direito, e seu papelcentral na rapsódia, que não prescinde da qualidade dos homens que seconectam à reda jurídica. A modernidade concentrou-se sobre os proble-mas de formação da lei, ao invés de debruçar-se sobre a “formação dohomem de leis” (uma desvalorização ligada a uma antropologia negativa,em que as regras não são concebidas pelos homens, mas contra eles – umaestratégia, de resto, ineficaz).95

Preferível aceitar, sem mistificação, a fragilidade do fundamento epis-temológico do direito – e renunciar à hybris da razão jurídica moderna –

91 VOGLIOTTI, op. cit., pp. 18-9. É conhecida a imagem do “romance em cadeia” ou elos de Dworkin.92 VOGLIOTTI, op. cit., p. 29.93 VOGLIOTTI, op. cit., p. 32. O limite resultará de relações recursivas entre o horizonte do passado (tradição)

e o do futuro (a representação, pelo intérprete, de uma decisão “justa”, que possa ser aceita pela comuni-dade interpretativa como uma prossecução legítima da rapsódia jurídica, sempre em conformidade com oscânones constitucionais) – p. 33.

94 VOGLIOTTI, op. cit., pp. 36-8.95 VOGLIOTTI, op. cit., pp. 41-2.

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e insistir na modéstia, privilegiar a virtude da mitezza. A prioridade daagenda jurídica, então, passa a ser a ética do jurista e sua deontologia (apaideia jurídica necessita de intentio ética). O dever da coerência, aqui,será ditado pela necessidade, por ser o único meio de que se dispõe paraligar/conectar os sujeitos.

Vogliotti figura um sujeito grave e responsável, consciente da fra-gilidade íntima (da légèreté) do direito e privado das ilusões da mito-logia jurídica moderna, que sabe encontrar os limites em si mesmo.Ainda assim, tal condição do direito contemporâneo não deve proje-tar uma sombra de pessimismo sobre o porvir. O declínio do paradigmatradicional não significa a inevitável condenação do direito à fragili-dade e à impotência, a um estado de insegurança e de relativismoradical. O direito não perde sua capacidade de instituir o social. To-davia, reconhecer sua fragilidade epistemológica e aceitar sua modés-tia axiológica parece ser a verdadeira força do direito em rede – a vidados habitantes deste direito rapsódico pode tornar-se menos incertaque a de outros que supõem modelos mais pretensiosos e, apenas naaparência, mais sólidos (os autores da rapsódia devem saber que aresistência da rede tem um limite).96

O direito mite foi a expressão escolhida por Zagrebelsky para confi-gurar os traços de um sistema mais dinâmico, plural e complexo. Atradução espanhola utilizou o termo dúctil. Bobbio escreveu o Elogiodella mitezza (cuja primeira edição italiana remonta a 1994), tendooptado o tradutor português pelo substantivo serenidade. Importa queo pensador italiano considera a “mitezza” uma virtude fraca, a maisimpolítica das virtudes. 97

Interessa, ademais, a constatação de Bobbio, no sentido de que alémdo tema da virtude ter sido exumado, o final do século passado retomou otema das paixões (e sua relação com a razão). O que é sintomático, depoisda doutrina da virtude, de raiz aristotélica, ter sido abandonada na “mo-dernidade”, na qual prevaleceu a ética das regras, com o binômio direi-

96 VOGLIOTTI, op. cit., pp. 42-9.97 Não a virtude dos fracos, pois que se não confunde com submissão, mas como oposta às virtudes “fortes” dos

estadistas, do homem de governo. Antes, com valores próprios de um homem privado, “insignificante”.Trata-se de uma distinção analítica, não axiológica. Bobbio assume que o fundamento de uma república,mais até do que as boas leis, é a virtude dos cidadãos (BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outrosescritos morais. São Paulo: Editora Unesp, 2002, pp. 9 e 37).

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tos/deveres. Bobbio considera artificial a contraposição entre virtudes eregras, sendo mais sábio analisar a relação entre as duas categorias.

O adjetivo mitezza aplicado ao direito insere-se neste pano de fun-do.98 A serenidade, como postulada por Bobbio, é uma virtude ativa euma virtude social (ao passo que temperança e coragem seriam virtudesindividuais). Numa definição lapidar: “Sereno é o homem de que ooutro necessita para vencer o mal dentro de si”, serenidade como potên-cia, que consiste em “deixar o outro ser aquilo que é”.99 No oposto daserenidade estão a arrogância, a insolência e a prepotência, vícios/vir-tudes (conforme o ângulo) do homem político. Daí outra característicada serenidade, que chega a ser a “outra face da política”, e ajuda, pois,a definir os limites entre o político e o não político.100 Adiante, Bobbiovai mesmo justificar sua escolha por uma virtude que é a antítese dapolítica, aproximando a serenidade de duas outras virtudes comple-mentares: a compaixão (que se conecta à misericórdia) e a simplicida-de, vista como a capacidade de fugir intelectualmente das complica-ções inúteis e praticamente das posições ambíguas.101 Algo que calhariabem para a melhor resposta.

Ao cabo, arrisca-se alinhavar algumas pistas, para ulterior apro-fundar, como ensaio de conclusão. Não há, pelo que ficou dito, umaúnica resposta correta. Na vida prática, todavia, é preciso escolher amelhor resposta possível, mesmo pela aspiração tópica do direito, quehá de ser, ao mesmo tempo, a mais sistemática. Os problemas avul-tam quando se indaga acerca dos critérios para preferir uma respostaà outra. Assim como a pluralidade metodológica está posta, é possí-vel afirmar uma pluralidade de critérios que, conjugados, concreti-zam orientações, sinalizam a melhor resposta. Parece que é preciso,mantido o topos da racionalidade argumentativa (e da universaliza-

98 BOBBIO, op. cit., p. 34, considera uma categoria inusitada e, expresamente em relação à obra de Zagrebelsky,aponta que caberia uma questão preliminar: Mite, por quê?

99 BOBBIO, op. cit., p. 35.100 BOBBIO, op. cit., p. 39. A política não é tudo, afirma Bobbio. A serenidade é o contrário da arrogância (a

opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência), não porque se desestime, mas porser mais propensa a acreditar nas misérias que na grandeza do homem – o sereno se vê como um homemigual aos demais. Implicações interessantes podem derivar daí, a solução jurídica demarcando-se, pelaserenidade, das decisões políticas. De toda sorte, resvala-se, aqui, para o território da tolerância e dorespeito pelas idéias e modos dos outros (p. 42).

101 BOBBIO, op. cit., pp. 43-6.

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ção),102 densificar tanto o sujeito (que responde) quanto o auditório(que aprova).

Boaventura, na sua crítica da razão indolente, observa que só podehaver discurso argumentativo dentro de “comunidades interpretativas”,os auditórios relevantes da retórica. Por outro lado, “o fim dos monopóliosde interpretação é um bem absoluto da humanidade”, embora o perigo,igualmente temível, da “renúncia à interpretação”. Contra ambos, a es-tratégia é a proliferação de comunidades interpretativas, que são comu-nidades políticas. O produto de tais comunidades (o conhecimento eman-cipatório pós-moderno) será retórico, uma verdade retórica, “uma pausamítica numa batalha argumentativa contínua e interminável travada entrevários discursos de verdade; é o resultado sempre provisório de uma ne-gociação de sentido realizada num auditório relevante”.103

Daí que o autor proponha uma novíssima retórica, que parte das conse-qüências, das “últimas coisas” (a intersecção entre retórica e pragmatis-mo – um conhecimento prudente para uma vida decente).104 Na visão deBoaventura, o auditório “está em permanente formação. (...) É a fontecentral do movimento, a polaridade orador-auditório em constante rota-ção. (...) o auditório é um processo social (...).”.105

No que tange ao sujeito, vale lembrar que a transição paradigmática édupla: epistemológica e social. “A unir as duas transições, existe o con-ceito de subjectividade – simultaneamente individual e colectiva –, ogrande mediador entre conhecimentos e práticas.”.106

102 O próprio Habermas, todavia, perguntado sobre se a sua teoria crítica do capitalismo avançado teriautilidade para as forças socialistas do terceiro mundo e se essas forças poderiam ser úteis às lutas pelosocialismo democrático nos países desenvolvidos, respondeu ter consciência “do fato de que esta é umavisão limitada e eurocêntrica” – apud SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 341.

103 SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., pp. 90-1.104 SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., pp. 97. Há de se privilegiar o convencimento em lugar da

persuasão, “acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados” (p. 98), sendo a dimensãodialógica entre orador e auditório um princípio regulador da prática argumentativa (p. 99).

105 SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 99. Entretanto, o “potencial emancipatório da retóricaassenta na criação de processos analíticos que permitam descobrir por que é que, em determinadascircunstâncias, certos motivos parecem ser melhores e certos argumentos mais poderosos do que outros”(p. 100).

106 SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 319. A exploração das possibilidades emancipatórias deve serguiada por três grandes topoi: a fronteira, o barroco e o Sul (pp. 321-54).

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Quem sabe um sujeito revitalizado, imerso no círculo virtuoso de umacomunidade político-interpretativa determinada, possa encontrar a me-lhor resposta, a exasperação da alteridade e da emancipação. De formaprudente. Uma resposta decente.

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Da água: consideraçõesjurídico-ambientais

Water: Legal-EnvironmentalConsiderations

PLAUTO FARACO DE AZEVEDO

Doutor em Direito pela Universidade Católica de Louvain. Professor titular do Curso de Pós-Graduação/Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil.

RESUMO

Considerando a escassez da água, analisam-se as conseqüências jurídico-ambientais da questão.Palavras-chave: Lei ambiental, água.

ABSTRACT

Considering water scarcity, the legal-environmental results of the issue areanalyzed.Key words: Environmental law, water.

Na questão ambiental, há que se destacar o problema da água, emescala planetária. Desde o começo dos anos 70, o mundo sofreu diver-sos choques petrolíferos. Este século poderá “conhecer conflitos geo-políticos e comerciais de ainda maior envergadura, ligados ao domí-nio de um recurso indispensável à vida, não substituível, e existenteem quantidade fixa”. A água tem-se ressentido da demanda incon-

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trolada da indústria, da agricultura, do turismo e do uso domésticonos países ricos, tudo antecipando a possibilidade de sua severa escas-sez futura. Hoje, 1,4 bilhão de pessoas estão privadas do acesso à águapotável. A utilização da água está a demandar a existência de umaautoridade capaz de regulamentá-la, em conformidade com os inte-resses do conjunto dos habitantes do planeta, harmonizando-os comos interesses particulares. “O mercado, acelerador das desigualdades,não poderia desempenhar tal papel. O tempo urge, clamando pela aadoção de um outro ponto de vista – cooperativo e internacional – dagestão de um recurso que deve permanecer ou voltar a ser um bem comumda humanidade.” A liberdade de mercado forneceu exemplos concre-tos de sua inaptidão a conduzir ao seu uso razoável. Assim, o Acordode Livre Comércio (Alena), torna competitivos, nos mercados dos Es-tados Unidos e do Canadá, os frutos e legumes mexicanos, cuja pro-dução consome muita água, justamente num país que dela tem falta,o que provoca graves tensões sociais.1

Para assegurar a durabilidade deste recurso, é preciso afastar a con-fusão entre valor e preço, ‘e promover uma ética da água”, conformepropõe Vandana Shiva.2 Federico Mayor fala, por seu turno, de umaética, “fundada sobre a solidariedade e a subsidiaridade ativa, em que asdecisões sejam tomadas no nível mais baixo possível – privilegiando umponto de vista de ampla cooperação, dando a palavra a todos os atores– notadamente às mulheres -, atentando às tecnologias apropriadas eaos saberes locais”.”3

Reconhecendo a gravidade do assunto, a ONU, recomendou, ao fi-nal de sessão especial, em 1997, que se concedesse “prioridade absolutaaos graves problemas de água doce, com que se vêem confrontadasnumerosas regiões do mundo. Para isto, faz-se necessária a colaboração

1 BOUGUERRA, Mohamed Larbi. Bataille planétaire pour l’“or bleu”. Le Monde Diplomatique, Paris, nov. 1997.n. 524, p. 24-25.

2 SHIVA, Vandana. “Values beyond price”, Our Planet, programme des Nations Unies pour l’environnement(Pnue), Genève, v. 8, n. 2. Cf. BOUGUERRA, Mohamed Larbi, op. cit., p. 25.

3 As leis francesas sobre a água, de 1964 e 1992, instituíram “uma certa forma de controle democrático, uma vezque em cada uma das seis grandes bacias, os eleitos, os usuários, os representantes da administração e osindustriais... devem por-se de acordo. Uma diretiva da União Européia deveria alargar esta forma deacordo a toda Europa. BOUGUERRA, Mohamed Larbi, op. cit., p. 25. O grifo é nosso.

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multilateral dos Estados e recursos financeiros adicionais provenientesda comunidade internacional.4

Não há dúvida de que há uma conscientização crescente da necessi-dade de preservar a água doce, mantendo sua qualidade e racionalizan-do seu uso. O problema é que a conscientização tem-se dado, nos planosnacional e internacional, por instituições, pessoas e governos que nãodispõem, isoladamente, ou mesmo em conjunto, de meios econômicos ede persuasão conducentes à efetividade das propostas.

Se, nos próximos 10 ou 15 anos, não se chegar a alguma solução políti-ca concertada, o domínio da água “provocará múltiplos conflitos territo-riais, conducentes a ruinosas batalhas econômicas, industriais e comerci-ais. A principal fonte de vida da humanidade vai se transformar em umrecurso estratégico vital e, portanto, em uma mercadoria rara, particular-mente lucrativa nos novos mercados”. A tese privatista, segundo a qualsó o livre mercado poderia garantir “a paz da água”, tem encontrado mui-tos adeptos nos últimos anos. A prática, porém, não tem produzido provasneste sentido. Na Inglaterra, o preço da água “aumentou 55%, entre 1990e 1994, sem que os investimentos das companhias privadas tenham cres-cido nas mesmas proporções”. Em conseqüência, as falhas no seu forneci-mento aumentaram, enquanto as companhias obtiveram enormes mar-gens de lucro. Por outro lado, na província de Québec, no Canadá, atendência privatizante foi revertida, reafirmando o governo que “a águaé um bem público, que deve permanecer sob controle público”. Nestemesmo sentido, os países-membros do Grupo de Lisboa pretendem criarum movimento de opinião internacional para o estabelecimento de umcontrato mundial da água. Tal contrato “partiria do princípio que o aces-so à água potável – bem comum da humanidade – constitui um direito econô-

4 BOUGUERRA, Mohamed Larbi, op. cit., p. 25. A gravidade do problema é assinalada por várias organizaçõesinternacionais – Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento, Programa da Nações Unidas parao Meio Ambiente, Banco Mundial, Instituto de Recursos Mundiais, Instituto de Energia e do MeioAmbiente da Francofonia, Agência Intergovernamental da Francofonia,Comitê 21 –, as quais assinalam,em relatório conjunto que já em 1995 mais de 40% da população do mundo vivia em dificuldades, no quetange a água, ou mesmo na sua penúria, situação que tende a atingir 50% da população em 2025. Dentreas causas que degradam sua qualidade enumeram-se: os dejetos provenientes da indústria alimentar e dopapel, os fertilizantes, os metais pesados, os agentes microbianos, os solventes industriais, os compostostóxicos como o óleo e os pesticidas, os sais da irrigação, as precipitações ácidas e os próprios dejetoshumanos carentes de tratamento. RESSOURCES MONDIALES 2000-2001.Washington: World ResourcesInstitute; Paris: ed. Eska, 2000. p. 110-12.

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mico e social fundamental de toda pessoa assim como um direito coletivo detoda comunidade humana”.5

Não há dúvida, exceto para os senhores do dinheiro, que a água deveser tratada “como um patrimônio humano comum”, visto que a saúdehumana “está intimamente ligada ao acesso básico e seguro à água”. Nospaíses pobres, 85% das doenças humanas relaciona-se com a quantidadeou qualidade da água.6

Apesar de as primeiras privatizações de sua produção, distribuição euso não terem sido bem sucedidas, no século XIX, nas cidades européiase americanas, visto que as empresas privadas acabaram por transferir talresponsabilidade ao Estado7 , volta-se hoje a insistir em sua privatização.

O Banco Mundial entende que o papel do Estado deve ser o de esta-belecer as regras do jogo, promovendo os mecanismos de mercado, semenvolvimento direto com o gerenciamento da água. “Gerenciamento e/ou propriedade devem ser deixados inteiramente nas mãos do setor priva-do”, devendo o Estado propiciar “a segurança da lei para as transferênci-as de propriedade e direitos da água, bem como para definir e fazer cum-prir os padrões de qualidade para uma água potável segura”.8

Segundo John Barham, em artigo publicado no Financial Times, intitu-lado “Como vender a indústria mundial da água”, o número de privatiza-ções do setor ainda é modesto. Todavia, transformando-a “em um bemeconômico, em um recurso comerciável, os governos estão fazendo com oque o setor seja tão atraente para o mercado quanto os demais”. Taisidéias acabaram por influenciar a Declaração de Dublin, “aprovada em

5 PETRELLA, Ricardo. Pour un contrat mondial. Le Monde Diplomatique, Paris, nov. 1997. n. 524, p. 25. O grifoé nosso. – À margem da irresponsabilidade dos que detêm as rédeas do poder mundial, há inúmerasexperiências em curso e debate crescente sobre o assunto, como o demonstram escritos sobre a situaçãoda água na Argélia, no Marrocos, no Brasil, no México e na Tunísia, relativos à sua dimensão institucional,à contraposição dos modelos mercantis frente à pobreza, às desigualdades no acesso à água, aos sistemasde irrigação e direitos de propriedade, à gestão compartilhada dos rios internacionais, na África, à suaplanificação estratégica a longo prazo, etc. Revue Tiers Monde: Les nouvelles politiques de l’eau. Enjeuxurbains, ruraux, régionaux. Paris, Institut d’Étude du Développement Économique et Social, avril.-juin2001. Trimestrielle. Presses Universitaires de France.

6 PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Tradução Vera Lúcia MelloJoscelyne. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 88-9. Título original: The Water manifesto. Arguments for a worldcontract.

7 Ibid., p. 88.8 Ibid., p. 93-5.

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uma das conferências intergovernamentais mais significativas da décadade 90”. Nela foi consignado que “a água tem um valor econômico em todosos seus vários usos e deveria ser reconhecida como um bem econômico”. O seudesperdício e o prejuízo ao meio ambiente derivariam do não reconheci-mento de seu valor econômico, no passado. A Declaração de Dublinacresce que “gerenciar a água como um bem econômico é um passo im-portante para a obtenção de um uso eficiente e igualitário, e para o enco-rajamento da conservação e proteção dos recursos hídricos”.9 A partirdesta afirmativa, consagrada, ardilosamente, na Declaração, prevaleceua lógica do dinheiro, abrindo-se a porta para a privatização.

Os resultados da privatização na França e na Inglaterra precisam seraferidos. Na França, o preço da água “aumentou constantemente nosúltimos anos”. Em Grenoble, o preço triplicou; em Paris, aumentou 154%.Defeito grave no sistema francês, conforme relatório parlamentar, acha-se na “falta de transparência na outorga de concessões de gerenciamen-to”, além dos “inúmeros escândalos de corrupção que vêm ocorrendocom o passar dos anos, fazendo com que se reflita sobre a ética de umapolítica que permite “que sujeitos privados lucrem com um patrimôniocomum, vital e não substituível pertencente à sociedade como um todo.Não é isso uma expropriação legalizada de um bem social em favor de umnúmero pequeno de pessoas?”10

Esta pergunta ganha relevo, na Inglaterra, onde os lucros foram tãoaltos que Tony Blair – “que não tem qualquer intenção de questionar aprivatização da água – impôs um imposto especial sobre ‘lucros excessi-vos’”, tendo as companhias de água sido condenadas a pagar 1,6 bilhãode libras esterlinas, em 98 e 99. Po outra parte, os investimentos prometi-dos para o setor foram negligenciados. O desperdício, devido a vazamen-tos em canos, aumentou em 30%, tornando-se as interrupções do abaste-cimento uma ocorrência comum, embora os preços tenham aumentado55%, entre 1990 e 1994.”11

Como sempre, para defender os interesses dos poderosos, encontram-se sibilinas distinções jurídicas, no caso, entre propriedade e gerencia-mento, argumentando-se que o modelo francês é de gerenciamento pri-

9 PETRELLA, Riccardo, op. cit., p. 95-8.10 PETRELLA, Riccardo, op. cit., p. 107-9.11 Ibid., p. 109-10.

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12 Ibid., p. 110-11, 149-50..

vatizado de serviços de água, enquanto a sua propriedade continua sob ocontrole público. Apesar desta distinção formal, verdade é que, na práti-ca, “a propriedade – em qualquer significado real da palavra -, já foilevada de roldão”. Também, mostra a experiência francesa que as empre-sas privadas gradualmente expulsaram a política do processo decisório,“com relação a normas, padrões e outras coisas mais. E puderam fazê-lograças ao domínio tecnológico e às técnicas gerenciais, financeiras, eoutras, que adquiriram quando se tornaram ‘os encarregados’”. O proble-ma da água é, sobretudo, um problema de democracia e de solidariedade.12

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O Casamento e a União Estável naPerspectiva do Novo Código Civil

Brasileiro

Marriage and Stable Union accordingto the New Brazilian Civil Code

JULIO CESAR GARCIA RIBEIRO

Mestre em Direito pela UNISC, Professor de Direito de Família, de Sucessões e Temas Emergentes da ULBRA,Unidade de São Jerônimo, RS.

RESUMO

A edição de um novo Código Civil (Lei nº 10.406/02), vertido com o objetivode afastar a mora legislativa ao processo de efervescência das demandas soci-ais, na esteira da Constituição vigente, justifica o exame comparativo da for-mação e dos efeitos jurídicos decorrentes da família matrimonial e convivencial.Palavras-chave: Família, direito matrimonial e convivencial, família e sucessões.

ABSTRACT

A new edition of Brazilian Civil Code, (Law nº 10.460/02), structured withthe finality to move away the legislative estrangement from the process of socialdemands, and following the latest Brazilian Constitution, justifies a comparativeanalysis on the formation and the juridical effects resulting from the matrimoni-al and the convivial family.Key words: family, matrimonial and convivial law, family and succession.

Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.127-146

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INTRODUÇÃO

O País, passado quase um século da promulgação da Lei nº 3.071, de1º de janeiro de 1916, ganha um novo Código Civil. Pela Lei nº 10.406/02, vigente desde 11 de janeiro de 2003, retoma-se a trajetória dacodificação, em substituição à fase estatutária, que permeou esse inter-médio, através da qual pretendeu incorporar os diversos textos esparsos eas alterações decorrentes dos recentes avanços sociais e tecnológicos.

O tema é vasto, limitar-nos-emos a incursionar em relação ao Casa-mento e à União Estável no novo Código Civil Brasileiro; o texto legislativoé recente, colocá-lo-emos em perspectiva, considerando as disposiçõesda Constituição Federal de 1988, o Código anterior de 1916 e a legislaçãocomplementar, em consonância com a efervescência das demandas soci-ais, sujeitando-nos aos riscos imanentes às conclusões apressadas; o tra-balho, sob a forma concentrada e, sem dúvida, às limitações do autor,procura seguir uma linha didática, mediante subdivisão dos temas, visan-do facilitar a apropriação das suas idéias centrais.

I. HISTÓRICO BREVE DA FAMÍLIA

Os registros históricos estão a demonstrar, como fenômeno social epolítico de clara aceitação, que a família ocidental viveu largo períodosujeita ao sistema patriarcal, organizada sob o princípio da autoridade dopater, ao mesmo tempo chefe político, juiz e sacerdote, e em função doideário religioso, a que nós, herdeiros intelectuais da civilização romana,retratamos como padrão institucional.1

É de destacar que na Grécia, organizada por classes sociais, oconcubinato não implicava desonra, podendo derivar de uma união regu-lar entre pessoas somente impedidas de casar em virtude da condiçãosocial, enquanto em Roma, até o período pós-clássico, quando não haviaformalidade burocrática, a estrutura familiar se fazia assentada na possede estado de casados.2

1 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 11a. ed., 2001, vol. V, ps. 16 a 19.2 BORGHI, Hélio, União Estável e Casamento: Aspectos Polêmicos, São Paulo: Editora Juarez Oliveira, 2ª ed.,

2003, p. 03.

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As transformações havidas gradativamente, já prenunciadas na fasefinal do Império Romano, através do Direito Canônico, foram inspiradasno direito germânico, tendo como suporte a concepção cristã de família,com a substituição da organização autocrática por uma orientação demo-crática-afetiva, deslocando o princípio da autoridade paterna para o dacompreensão e do amor.3 Entretanto, para os canonistas o concubinatoera visto como ato atentatório à integridade da família, capaz de ensejaraos concubinos sanções civis e penais4 .

No que diz com a família brasileira, como dito antes, detém origemremota nas instituições romanas, de estrutura tipicamente patriarcal, comforte influência do Direito Canônico, transportadas até nós pelas mãosdos portugueses. 5

Traz-se à colação recorte da obra de Orlando Gomes, agregando sub-sídios explicativos acerca das origens diretas e imediatas da família noDireito Pátrio:

Fontes históricas do Direito de Família brasileiro são, prin-cipalmente, o direito canônico e o direito português, repre-sentado este, sobretudo, pelos costumes que os lusitanostrouxeram para o Brasil como seus colonizadores.

A autoridade do direito canônico em matéria de casamen-to foi conservada até a lei de 1890, que instituiu o casa-mento civil. ...

O Direito de Família do país é dominado realmente pelasconcepções religiosas e éticas do catolicismo, das quais,entretanto, vem se afastando ultimamente. 6

No Brasil, até 1890, somente eram celebrados casamentos religiosos;com o Decreto nº 181, passou o Estado a exigir o casamento civil, e, peloDecreto nº 521, também de 1890, obrigava o sacerdote, sob pena de pri-são de até 6 meses, a só realizar casamento religioso precedido do civil.7

3 PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. 19.4 MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, 2º volume, São Paulo, Ed. Saraiva, 1993, p. 16.5 LUZ, Valdemar P. da, Curso de Direito de Família, Caxias do Sul: Mundo Jurídico, 1996, p.14, idem FACHIN,

Rosana Amara Girardi, Em busca da Família do Novo Milênio, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, ps. 26/7.6 GOMES, Orlando, Direito de Família, Rio de Janeiro: Forense, 12a. ed., 2000, ps. 9 e 10.7 LUZ, Valdemar P. da, op. cit., p. 25.

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A força do cristianismo se fez sentir, de forma cristalina, na luta secu-lar pela implementação do divórcio, só fecundada pela Emenda Constitu-cional nº 09, em 28 de junho de 1977, regulamentada pela Lei nº 6.515,de 26 de dezembro de 1977.

A propósito da União Estável, como significado da convivência sólida eduradoura entre pessoas desimpedidas e de sexo diverso, com objetivo deformar família, despertou a atenção inicial do Direito Previdenciário, comofundamento de amparo à família do trabalhador, no primeiro momento ex-clusivo à mulher e mediante comprovação da dependência econômica efe-tiva, Decreto nº 20.465/31, Lei Orgânica da Previdência Social; posterior-mente, considerada por presunção e a ambos os sexos, como assente no art.16, § 4º, da Lei nº 8.213/91, bastando fazer a prova da união estável; e, deigual sorte, veio a ser objeto de tratamento pelo Direito Tributário, com aedição da Lei nº 4.242/63, art. 44, atualmente indistinto aos companheiros,art. 35, II, da Lei nº 9.250/95, possibilitando o abatimento na declaração derenda na categoria de encargos familiares 8 .

E, no plano do Direito Civil, limitado, na sua primeira fase, às deman-das indenizatórias à concubina por serviços domésticos prestados, funda-mentado em impedir o enriquecimento sem causa de uma pessoa em re-lação à outra, evocando o art. 1.216, do revogado Código de 19169 , foigalgando espaço, gradativamente, mercê dos avanços jurisprudenciais,caso da Súmula 380, do STF, admitindo a partilha entre os concubinos debens adquiridos pelo esforço comum; a Lei nº 8.971/94, que assegura di-reito aos alimentos e a partilha, inclusive na herança, onde assume o 3ºlugar na ordem de vocação hereditária; e, enfim, a Lei nº 9.278/96, aintroduzir direitos e deveres recíprocos, de diversas ordens e, à semelhan-ça do casamento, remeteu a matéria à competência do juízo da Família,na esteira do disposto no art. 226, § 3º, da Carta Magna.

A Lei nº 10.406/02, que institui o novo CCB, incorpora as disposiçõesanteriores, especialmente as da Lei nº 9.278/96, que regulamentou o §3º, do art. 226, da CF, inscritas no Título III, Livro IV, Parte Especial,arts. 1.723 até 1.727.

8 PESSOA, Cláudia Grieco Tabosa, Efeitos Patrimoniais do Concubinato, São Paulo: Editora Saraiva, 1997, ps. 246/8. Idem, a propósito da previdência, em RIBEIRO, Julio Cesar Garcia, A Previdência Social do Regime Geralna Constituição Brasileira, São Paulo: LTr, 2001, p. 133.

9 PESSOA, Cláudia Grieco Tabosa, op. cit., p. 121.

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II. DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL

1. Considerações introdutóriasRealizado o registro, em breves pinceladas, das bases históricas de for-

mação da família e estabelecidos os pilares estruturais do Direito de Fa-mília, passaremos ao exame da sua fonte formal de estrutura: Código Ci-vil editado pela Lei nº 10.406/02, com ênfase no casamento e na uniãoestável, Livro IV, repercutindo efeitos sucessórios, objeto do Livro V, inte-grantes da Parte Especial.

O objeto do Direito de Família é a própria família, assim consideradasas pessoas vinculadas pelo Direito Matrimonial, pela União Estável e peloParentesco, além de integrar institutos afins, Tutela e Curatela, uma vezque a Ausência foi incorporada à Parte Geral, Livro I, Título I – DasPessoas Naturais.

No particular, o Direito Matrimonial e a União Estável, em situaçãosímile, como entidades familiares legítimas, constituem-se no centro deirradiação das normas básicas do Direito de Família, com proteção espe-cial do Estado (CF, art. 226, §§ 1º e 3º e CCB, arts. 1.511 a 1.590 e 1.723a 1.727).

2. Do casamento

2.1. Formalidade Essenciais ao Casamento:Preenchidos os requisitos do processo prévio de habilitação (arts. 1.525

a 1.532, CCB) e não havendo o oferecimento de oposição de impedimen-tos matrimoniais (circunstância que vede o casamento, casos de infraçãoao art. 1.521, CCB) ou de causas suspensivas (art. 1.523, CCB), ou julgadaimprocedente a oposição, e, com efeito, de posse da certidão de habilita-ção expedida pelo oficial do Registro Civil, os nubentes encaminharãopetição à autoridade competente para designar dia e hora para a celebra-ção do casamento (art. 1.533, CCB).

A cerimônia nupcial é ato formal por excelência, revestida de publici-

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dade (art. 1.534 e §§ 1º e 2º, CCB), contando com a presença real e simul-tânea dos contraentes, admitida a representação de um deles medianteprocuração pública, com poderes especiais e expressos, resulta coroadacom a livre, espontânea e sucessiva manifestação de vontade dos contraentese a decorrente declaração de casados pelo juiz (art. 1.535, CCB), com-pletando-se com a lavratura do termo de registro, assinado pelos cônju-ges, testemunhas e oficial/juiz (art. 1.536, CCB).

2.2. Efeitos decorrentes do casamento:O casamento produz efeitos de diversas ordens: sociais, pessoais e

patrimoniais, entre os cônjuges e entre pais e filhos, dando origem a direi-tos e deveres recíprocos.

2.2.1. Na esfera social, podemos alinhar que o casamento: (a) cria afamília matrimonial, tanto que o Estado, embora proteja a união estável,indica que a lei deve facilitar sua conversão em casamento (CF, art. 226,§§ 1º, 2º e 3º; CCB, art. 1.565), proibindo a intervenção de qualquerpessoa na vida da família (art. 1.513, do CCB); (b) estabelece vínculo deafinidade entre cada cônjuge ou companheiro com os parentes do outro(art. 1.595, §§ 1º e 2º, CCB); (c) emancipa o cônjuge menor de idade(art. 5º, § único, II, CCB); (d) constitui o estado de casado, com aassunção da condição de consortes, responsáveis pela manutenção dafamília (art. 1.565, CCB).

2.2.2. Quanto aos efeitos pessoais, estabelece deveres recíprocos entreos consortes e em relação aos filhos, de diversas ordens, devidamenteespecificados no art. 1.566, do CCB: (a) mútua fidelidade (art. 1.566, I,CCB; art. 240, CP), importando registrar que o adultério de qualquer doscônjuges constitui causa para fundamentar a separação judicial litigiosa,por representar ofensa grave à honra do outro cônjuge (art. 1.573, I, CCB);(b) vida em comum, no domicílio conjugal (art. 1.566, II, idem art.1.511,CCB); (c) mútua assistência: difere do socorro econômico, é tidocomo o mais importante dever matrimonial, consistente em ajuda e cui-dados, tem um conteúdo eminentemente ético10 (art. 1.567, III, CCB);(d) sustento, guarda e educação dos filhos (art. 1.566, IV), incluído como

10 DINIZ, Maria Helena, op. cit., 5º Vol., Direito de Família, p. 128.

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deveres recíprocos entre os cônjuges, têm sentido próprio ao tratarmosdos deveres dos pais em relação aos filhos; e, enfim, (e) respeito e consi-deração mútuos (art. 1.566, V), transportado da legislação pertinente àunião estável (Lei nº Lei nº 9.278/96, art. 1º).

2.2.3. Os efeitos patrimoniais referem-se às relações econômicas noâmbito matrimonial, representadas pelo regime de bens que deverá viger,partindo do pressuposto de que a regra indica que é livre aos nubentes,antes da celebração do casamento, pactuarem quanto ao regime de bens,suscetível de alteração somente motivada e em juízo (art. 1.639, §§ 1º e2º, CCB). No silêncio das partes, ou sendo nula ou ineficaz a convençãorealizada, vigorará o regime da comunhão parcial (art. 1.640, caput, CCB).Existem casos, contudo, em que o regime de Separação é obrigatório (art.1.641, CCB).

(a.) Regime da Comunhão Parcial de Bens: não havendo pactoantenupcial, prevalece o regime da comunhão parcial ou limita-da, que indica a comunhão apenas de aqüestos, i. é, dos bensadquiridos na constância do casamento; excluem-se, assim, osanteriores, os sub-rogados e os de causa anterior (arts. 1.659 e1.661, do CCB), introduzido como regime comum (art. 1.640),em substituição ao universal, desde a chamada Lei do Divórcio(nº 6.515/77).

(b.) Da Comunhão Universal de Bens: é regime advindo de pactoantenupcial, pelo qual os bens que cada um possui, mais os queforem adquiridos na constância do casamento, pertencerão aambos, passando cada cônjuge a deter metade ideal dopatrimônio indiviso e das dívidas comuns (art. 1.667, CCB), cujasexceções, em decorrência do personalismo ou devido à nature-za, acham-se arroladas no art. 1.688, cc. art. 1.659, V a VII. Emcircunstância excepcionada da comunhão, como são os bensdoados ou testados com cláusula de incomunicabilidade, essanão atinge os frutos percebidos ou vencidos no curso do casa-mento (art. 1.669, CCB).

(c.) Regime da Separação de Bens: é o regime em cada consorteconserva os bens anteriores e os que forem adquiridos após ocasamento, como também respondem separadamente pelas dí-

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vidas contraídas, podendo livremente alienar e gravar de ônusreal (art. 1.687, CCB), respondendo ambos pelas despesas do-mésticas (art. 1.688, CCB). Deriva, quanto à origem, de impo-sição legal ou obrigatória, nos casos de casamentos celebradoscom inobservância de causa suspensiva, do maior de sessenta(60) anos e daqueles autorizados ao casamento por suprimentojudicial (art. 1.641, CCB), ou de pacto antenupcial (art. 1.639,CCB).

(d.) Regime da Participação Final nos Aqüestos: diz-se daquele, tam-bém decorrente de pacto antenupcial, em que cada cônjugepossui patrimônio pessoal, integrado pelos bens que possuía aocasar e os adquiridos na constância do casamento, cabendo-lhes a metade dos adquiridos a título oneroso na constância docasamento à época da dissolução da sociedade conjugal, noscasos de morte, separação ou divórcio (arts. 1.672 a 1.686, CCB).

2.3. Dos AlimentosAlimentos constitui-se em prestação de caráter assistencial destinada

a atender as necessidades de vida de uma pessoa por outra, considerandoa relação necessidade de quem reclama e a capacidade da pessoa obriga-da (art. 1.694, § 1º, CCB), podendo ser fixados: a) na ação de alimentosem decorrência do parentesco, entre pais e filhos e parentes em linha retae colateral até 2º grau (CCB, art. 1.694, cc. 1.696/7, e Lei nº 5478/68, art.4º); b) de ação de separação judicial, divórcio, de anulação de casamen-to e de dissolução da união estável, reciprocamente aos cônjuges ou con-viventes e aos filhos (art. 1.694, c.c. arts. 1.703/4, CCB); e, c) na ação dereparação para ressarcir vítima por ato ilícito (arts. 948, II e 950, CCB).

O dever de assistência entre os cônjuges, previsto no art. 1.566, III, doCBC, diversamente dos demais (fidelidade, comunhão de vida, respeitoe consideração), pode ter continuidade após a dissolução da sociedadeconjugal sob a forma de pensão alimentícia, nos termos do art. 1.694,1.702 e 1.704.

O divórcio não extingue a obrigação alimentar, nem o novo casamen-to do cônjuge devedor dos alimentos (art. 1.709), embora tal circunstân-cia possa prestar-se à revisão da pensão paga ao ex-cônjuge, com vistas àredução do valor.

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Não obstante, mantida a obrigação alimentar em caso de divórcio, otexto deixa evidenciado, no nosso entendimento, que, divorciando-se oscônjuges, ou dissolvida a união estável, sem que tenha havido fixaçãoprévia ou na sentença de dissolução do casamento, não são mais devidosos alimentos, muito embora devesse tê-la incluído dentre as causas decessação arroladas no art. 1708.

2.4. Do Direito SucessórioOs efeitos sucessórios, condizentes com a transferência de bens ao côn-

juge sobrevivente em virtude da morte do outro, já no campo do Direitodas Sucessões, estão arrolados pelo art. 1.829, incisos I, II e III.

Havendo herdeiros necessários ou legitimários (descendentes, ascen-dentes ou cônjuge), o testador só pode dispor de metade da herança,uma vez que a outra metade, dita legítima, pertencerá àqueles (art. 1.789,c.c. o art. 1.845). O Código inova incluindo o cônjuge na categoria deherdeiro necessário.

Pertinente à Sucessão Legítima são contemplados, pela ordem, exclu-indo-se uns aos outros, ressalvada a concorrência do cônjuge com os des-cendentes ou ascendentes (arts. 1.829, I e II, cc. 1.832 e 1.837) e doconvivente com todos os parentes sucessíveis (art. 1.790), em decorrên-cia da proximidade, segundo a linha e o grau, os parentes consangüíneosou civis descendentes, havidos ou não do casamento; ascendentes; côn-juge sobrevivo; os colaterais até o 4º grau (art. 1.839).

Específico quanto à concorrência do cônjuge com os descendentes eascendentes no patrimônio particular ou exclusivo do falecido e, assim,sem qualquer relação com o direito próprio à eventual meação em benscomuns adquiridos na constância do casamento, este concorrerá:

(a) com os descendentes, se ao tempo da morte não estava separadojudicialmente ou nem tenha agido com culpa em separação fatode mais de 2 anos (art. 1.830) e, ainda, não for caso de regimede comunhão de bens ou de separação obrigatória (art. 1.829, Ie 1.641), cabendo ao cônjuge sobrevivente, na concorrência comos descendentes (art. 1.829, I): (a.1) quinhão igual ao dos quesucederem por cabeça e, (a.2) havendo filho comum, sua quotanão pode ser inferior a ¼ da herança (art. 1.832);

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(b) com os ascendentes do falecido (art. 1.829, II, se forem de 1ºgrau (pais), independente do regime de bens adotado no casa-mento, o cônjuge terá direito a 1/3 da herança, mas em concur-so com um só ascendente ou de grau superior haverá ½ do acer-vo (art. 1.837);

(c) na falta de descendentes ou ascendentes, será deferida inte-gralmente a sucessão ao cônjuge sobrevivo, seja qual for o regi-me de bens (art. 1.829, III, c.c. art. 1.838). Não havendo cônju-ge, segue aos colaterais até 4º grau (art. 1.839) e, sem parentesucessível, ou tenham renunciado a herança, esta se devolve aoMunicípio (art. 1.844).

3. Da união estávelVirgílio de Sá Pereira (Direito de Família, Cap. VIII, 2ª ed., 1959),

referenciando por Zeno Veloso, a propósito do processo de evolução doreconhecimento das uniões e, diante do fato social, o trabalho desenvol-vido pela doutrina e pela jurisprudência à frente da lei, lapidou o seguin-te parágrafo:

... o legislador não cria a família, como o jardineiro não criaa primavera; soberano não é o legislador, soberana é a vida,e a família é um fato natural, o casamento é uma convençãosocial: a convenção é estreita para o fato e este, então, seproduz fora da convenção. Agora diz-me, pergunta o mes-tre pernambucano: “que é que vedes quando vedes um ho-mem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno deum pequeno ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma famí-lia. Passou por lá o juiz, com sua lei, ou o padre, com o seusacramento? Que importa isto? O acidente convencional nãotem força para apagar o fato natural.” 11

11 VELOSO, Zeno, União Estável, Belém: Ed. Cejup e Min. Público do Estado do Pará, 1997, p. 14.

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3.1. Da Configuração da União EstávelVencida a resenha histórica, doravante ter-se-á como porta de ingres-

so no tema a Constituição de 1988, no § 3º do art. 226, reconhecendo aUnião Estável entre homem e mulher como entidade familiar.

Primeiramente, é importante considerar que a União Estável, diferen-te do Casamento, constituído por solenidade e comprovado por certidãocartorária, é fato, dependente, como tal, de comprovação efetiva, tantocom vistas ao reconhecimento como à dissolução. Entretanto, dado queúnica referenciada pelo novo texto, temos que à sua configuração bas-tante será a apresentação de contrato escrito válido dispondo quanto àsrelações patrimoniais (art. 1.725, do CCB).

Acerca da União Estável, a Lei nº 10.406/02, que institui o novo CCB,incorpora as disposições anteriores, Lei nº 8.971/94 e, especificamente, ospressupostos contidos na Lei nº 9.278/96, que regulamentou o § 3º, doart. 226, da CF, inscrita no Título III, Livro IV, Parte Especial, arts. 1.723até 1.727.

Em síntese, é reconhecida como entidade familiar a união estável en-tre homem e mulher desimpedidos ao casamento ou que se acharem se-parados judicialmente ou de fato, sem prejuízo das causas suspensivas(art. 1.523 = equivalentes aos impedimentos dirimentes privados), confi-gurada de forma pública, contínua e duradoura (art. 1.723 e §§ 1º e 2º).

3.2. Efeitos Advindos da União Estável3.2.1. A União Estável, como entidade familiar reconhecida pelo tex-

to constitucional e pelo novo Código Civil (CF, art. 226, § 3º; CCB, arts.1.723 a 1.727), uma vez configurada, livre da interferência de qualquerpessoa na comunhão de vida da família (art. 1.513, do CCB), tambémproduz efeitos sociais, na vida de relação dos conviventes com os demaisfamiliares, criando vínculo de afinidade de cada convivente com os pa-rentes do outro (art. 1.595), constituindo-se em legítima unidade famili-ar objeto de proteção do Estado.

3.2.2. Atinente aos efeitos pessoais, seguindo a moldura da Lei nº 9.278/96, art. 2º, que informa as relações entre os cônjuges, estabelece aos con-viventes os deveres pessoais de lealdade, respeito e assistência, suprimin-

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do a terminologia consideração mútua, e de guarda, assistência e educa-ção dos filhos (art. 1.724, do CCB).

3.2.3. Relativo aos efeitos patrimoniais, isto é, as relações econômicasvigentes no curso da União Estável, não havendo contrato escrito, apli-ca-se, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725,CCB), na esteira do que preconizava a Lei nº 8.971/94, art. 3º, e a Lei nºLei nº 9.278/96, art. 5º. O Código não faz referência, no âmbito do Direi-to de Família, de estarem as relações comunitárias patrimoniais restritasaos bens adquiridos a título oneroso; todavia, no âmbito das Sucessões,isto é, na dissolução da União Estável em decorrência da morte de umdos consortes, faz incidir a sua participação apenas em relação aos bensadquiridos onerosamente na sua vigência (art. 1.790, caput).

3.3. Do Direito AlimentarUltrapassada a fase remota e pós Constituição de 1988, a Lei nº 8.971/

94, art. 1º., caput, disponibilizava à(o) companheira(o) a Lei de Alimen-tos, nº 5.478/68, e, por igual, a Lei nº 9.278/96 ratifica este direito aoconvivente. O novo texto incorpora as disposições anteriores no mesmopatamar da relação matrimonial (1.694, CCB).

3.4. Das Decorrências SucessóriasImporta considerar, preliminarmente, que a legislação ordinária ante-

rior, a começar pela Lei nº 8.971/94, art. 2º. e seus incisos, assegurava aocompanheiro sobrevivo participação na sucessão do outro, a saber: I. usu-fruto legal de ¼ dos bens, se o de cujus tiver filhos; II. Usufruto de ½ dosbens, não existindo filhos, mas sobrevivam ascendentes do de cujus; III. nafalta de descendentes ou ascendentes terá direito à herança (integral);e, ademais, no art. 3º, comprovando que os bens deixados pelo autor daherança resultarem de atividade em que haja colaboração do (a) companhei-ro (a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens.

Agora, o novo Código, art. 1.790 e seus incisos, atribui ao conviventesobrevivo participação na sucessão do outro, restrito aos bens adquiridosa título oneroso na sua constância, (I) em parte igual àquela atribuída aofilho comum; (II) concorrendo com descendentes só do autor da herançatocar-lhe-á a metade do que for atribuído à cada um deles; (III) concor-

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rendo com outros parentes sucessíveis, inclusive colateral de 4º grau,haverá 1/3 da herança; e, (IV) só na falta de parente sucessível, aintegralidade da herança.

Com efeito, o convivente deixa o 3º lugar da ordem de vocação here-ditária, ficando em último; não ingressa, como herdeiro necessário, aosefeitos de limitar a testamentária; concorre com todos os parentessucessíveis, apenas em relação aos bens adquiridos onerosamente e naconstância da convivência, em percentuais inexpressivos; e, finalmente,não participa do acervo particular do extinto.

III. EXAME CRÍTICO DO NOVO DIPLOMA CIVIL

Desde logo, as conclusões mais salientes, quanto aos efeitos dos casa-dos e dos conviventes, apontam para uma equivalência de deveres; sime-tria nas relações econômicas, pertinente ao regime de bens e à pensão; e,ao Direito Sucessório, verificamos um importante desequilíbrio, retroces-so ao instituto convivencial.

De outra parte, resta excluído da esfera de proteção especial oconcubinato, a união livre de pessoas impedidas ou sem ânimo familiar,não por isso como uma ilha deserta, a desafiar os operadores do direito(art. 1.727, CCB). Ao encerramento de um ciclo, um novo se abre, tantoque, não raro, pipocam decisões judiciais reconhecendo direitos aosconcubinos e à união de pessoas de mesmo sexo, não só na esferaprevidenciária como também no âmbito do direito civil, no mínimo denatureza indenizatória, visando reprimir o enriquecimento ilícito, ou semcausa, seguindo os ditames dos arts. 884 a 886, do Código Civil Brasileiro.

1. Do direito de famíliaNesse campo do Direito Civil não constamos alterações essenciais,

constituindo-se o texto reformador mera sistematização da legislação com-plementar ao Código anterior, considerando as disposições da Constitui-ção Federal de 1988.

Repisamos com certa recalcitrância, fê-lo um adequado trabalho de

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sistematização da legislação complementar ao Código de 1916, conside-rando que a própria Constituição Federal de 1988, pelo Capítulo VII doTítulo VIII, especial os §§ 3º, 4º e 5º do art. 226 e § 6º do art. 227,respectivamente, reconhece como entidade familiar, além do casamento,a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seusdescendentes, igualando, em direitos e deveres, homem e mulher e, ain-da, nivelando, ao proibir a discriminação, os filhos havidos ou não docasamento, ou por adoção.

Com efeito, a União Estável, como evolução da sociedade de fato,inscrita no Título III, do Livro IV, Parte Especial, artigos 1.723 a 1.727,como já preconizava a Lei nº 9.278/96, ganha status de entidade familiar,incorporando-se em definitivo ao âmbito do Direito de Família em posi-ção símile à decorrente do casamento, como opção dos conviventes semimpedimentos de constituir família, salvo a possibilidade de sua configu-ração havendo simples separação de fato da família matrimonial, por essaforma também legitimada, que não se confunde com a união concubinária.

Quanto aos efeitos sociais, o Casamento e a União Estável, um consti-tuído por solenidade e comprovado por certidão cartorária, a outra comofato dependente de comprovação, criam a família legítima, a entidadefamiliar matrimonial ou convivencional, estabelecendo vínculos de afini-dade entre cada cônjuge ou companheiro com os parentes do outro (art.1.595, §§ 1º e 2º, CCB).

Pertinente aos efeitos pessoais, verificamos uma equivalência absolutade deveres entre cônjuges e conviventes: fidelidade, vida em comum,mútua assistência, responsabilidade com a filiação, respeito e considera-ção (arts. 1.566 e 1.724, CCB).

Os efeitos patrimoniais, referentes às relações econômicas no curso dacomunidade de vida, afora a supressão do Regime Dotal e a introduçãodo Regime Matrimonial de Participação Final nos Aqüestos, nenhumanovidade em comparação à legislação anterior, ao Casamento o Códigode 1916 e a legislação complementar, especialmente a nº 6.515/77 (Lei doDivórcio), e, relativo à União Estável, as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96,tendo como regra básica a comunicação dos bens adquiridos na constân-cia da comunhão, permitindo, respectivamente, o pacto antenupcial ou aconvenção contratual (arts. 1.639 e 1.640 e 1.725, CCB).

No que diz com a pensão alimentícia, também matéria de natureza

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patrimonial, verificamos identidade nos beneficiários em virtude de Ca-samento e de União Estável, extintos por separação judicial ou de fato,divórcio e dissolução.

A crítica vai para o sistema, o conservadorismo com que se comportouo legislador. Ao invés de limitar os seus tentáculos, ampliou o âmbito deabrangência, contraditoriamente às tendências jurisprudenciais e dou-trinárias. Caminhava-nos no sentido de admitir a renúncia de alimentospelos cônjuges em separação judicial ou divórcio, limitando airrenunciabilidade preconizada pelo art. 404, do Código revogado, às re-lações de parentesco12 .

Todavia, o diploma reformador não abraçou a hipótese da renúnciados alimentos pelos cônjuges, e por extensão aos conviventes; ao contrá-rio, reafirma no art. 1.707, embora genericamente, a impossibilidade, oque não significa calar a tendência dos tribunais e da doutrina.

Fez mais o diploma sob comento, pelo § único do art. 1.704, combina-do com o § 2º, abre a possibilidade da fixação judicial de alimentos indis-pensáveis à sobrevivência, os naturais, mesmo ao cônjuge declarado cul-pado da separação judicial litigiosa, desde que necessite e não tenhaparente em condição de prestá-los e nem aptidão ao trabalho.

Não obstante, mantida a obrigação alimentar em caso de divórcio (art.1.709), o texto deixa evidenciado, ao nosso entendimento e consonantecom a jurisprudência até então predominante, que a dissolução do Casa-mento, ou da União Estável, sem que nela haja fixação prévia (na separa-ção ou em ação própria de alimentos), ou na própria sentença de decre-tação ou homologação do divórcio, afasta a possibilidade entre os cônju-ges ou companheiros de reclamar alimentos entre si, muito embora de-vesse tê-la incluído dentre as causa de cessação arroladas no art. 1708.

2. Do direito sucessórioNo âmbito do direito sucessório, tomada a literalidade do texto civil

em vigor, observa-se decisivo retrocesso, amesquinhando os direitos doconvivente, com simultânea ampliação dos direitos do cônjuge sobrevivo.

12 RODRIGUES, Silvio, op. cit., Direito de Família, Vol. 6, ps. 420/1.

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A propósito, Silvio Rodrigues enfrenta a questão e não deixa por menos:

No entanto, ao regular o direito sucessório entre os com-panheiros, em vez de fazer as adaptações e consertos quea doutrina já propugnava, ... o Código Civil coloca ospartícipes da união estável, na sucessão hereditária, numaposição de extrema inferioridade, comparada com o novo“status” sucessório dos cônjuges.13

Primeiro, tal o comando do art. 1.790, a participação de um conviven-te na sucessão do outro está limitada exclusivamente aos bens adquiridosonerosamente na vigência da união estável, de sorte que a transmissãoda herança se faça em concorrência com os parentes sucessíveis do fale-cido no que exceder à sua meação e, assim, os bens particulares rumarãoàqueles. Nessa linha de raciocínio, tão absurda quanto irreal, faz crerque, havendo somente bens particulares e sem herdeiros sucessíveis, es-ses serão devolvidos ao Município (art. 1.844).

Sendo assim, se durante a união estável dos companheirosnão houve aquisição, a título oneroso, de nenhum bem, nãohaverá possibilidade de o sobrevivente herdar coisa alguma,ainda que o “de cujus” tenha deixado valioso patrimônio,que foi formado “antes” de constituir união estável.14

Verdadeiro disparate, que deverá esbarrar no crivo do Poder Judiciá-rio, dando à norma interpretação integrada, especialmente nos casos deinexistência de outros herdeiros sucessíveis e havendo patrimônio parti-cular, de modo a permitir sua arrecadação pelo convivente remanescenteà morte do outro.

Não obstante, Maria Helena Diniz qualifica de solução humana havero texto acolhido a presunção de colaboração mútua à formação depatrimônio15 . Nada mais natural, ultrapassada a fase primária, obrigacional,

13 RODRIGUES, Silvio, Direito Civil: Direito das Sucessões, SPaulo: Saraiva, v. 7, 25ª, 2002, p. 117.14 Ibidem, p. 118.15 DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, 6º Vol., Direito das Sucessões, São Paulo: Saraiva, 16ª

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de repressão ao enriquecimento ilícito ou sem causa, objeto os atuais arts.884 a 886, do novo Código Civil, com a edição da Constituição Federalde 1988, art. 226, § 3º, a Lei nº 8.971/94, arts. 2º e 3º, e a Lei nº 9.278/96,art. 5º, que canaliza o instituto convencional à esfera da família (art. 9º,cit. Lei), a regra básica é a comunicação dos bens adquiridos onerosa-mente na constância da comunhão, dispensando o supérstite da compro-vação de esforço comum na aquisição do patrimônio.

De outra parte, pela Lei nº 8.971/94, na falta de descendentes ouascendentes, ao convivente, tal como ao cônjuge, fixado no 3º lugar naordem de vocação hereditária, ou legal, era atribuída a herança por in-teiro. Agora, o novo CCB, pelo art. 1.790, estabelece concorrência dessecom os parentes sucessíveis do falecido. O correto teria sido a manuten-ção da norma anterior, com o convivente sobrevivo à frente dos colaterais,em situação símile ao cônjuge.

Não bastasse, fazendo um paralelo entre a concorrência do cônjugecom descendentes e ascendentes (art. 1.829, I e II, c.c. arts. 1.832 e1.837) e o concurso do companheiro ou a companheira com os parentesdo autor da herança (art. 1.790, I a IV), verifica-se substancial desigual-dade: I) concorrendo com filhos comuns terá direito ao equivalente aoque a esses for atribuído, sem a reserva mínima de 1/4 atribuída ao cônju-ge; II) concorrendo com descendentes só do autor da herança, terá direi-to à metade do que couber a esses, quando o cônjuge detém parte igual;III) em concurso com qualquer parente sucessível herdará 1/3 dos acer-vo, ao passo que o cônjuge excluiu os colaterais e arrecada toda a heran-ça; e, enfim, IV) na falta de herdeiro sucessível, o convivente sobrevivoarrecadará toda a herança.

Parece-nos que tal dispositivo, retrógrado, vulnera até mesmo o art.226, § 3º, da Carta Magna, que reconhece a união estável como entida-de familiar, tal como ao direito matrimonial, de sorte que tamanha distin-ção, no âmbito sucessório, retira-lhe um dos efeitos preponderantes, deassegurar à família nuclear, vinculada por laços afetivos, garantiapatrimonial à sobrevivência pós morte do parceiro.

Ademais, o cônjuge foi incluído na condição de herdeiro necessário,junto com os descendentes e ascendentes, caso em que o testador nãopode dispor de mais da metade (50%) da herança (art. 1.789, c.c. art.1.845) ou, em havendo excesso, da sua redução a esse limite (art. 1.967).O convivente, também neste particular, foi discriminado.

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Resta considerar, por fim, que o convivente sobrevivo, enquanto nãoconstituir nova união, terá direito real de habitação no imóvel destinadoà residência da família, por força residual do art. 7º, da Lei nº 9.278/96,prerrogativa assegurada ao cônjuge no art. 1.831, do Código vigente.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destarte, examinando o estatuto civil em vigência, resta evidenciado,de um lado, a aquisição de novo status ao cônjuge, desproporcional aoinstituto da união estável, fazendo acreditarmos que o legislador que es-creveu o Livro IV – Do Direito de Família não foi o mesmo que redigiu oLivro V – Do Direito das Sucessões, tamanha a façanha discriminatóriaperpetrada.

Em síntese, permitimo-nos concluir que o Código Civil Brasileiro, re-cém lançado à regulação da vida social, como sendo a média consolidadado pensamento jurídico contemporâneo, produziu:

(a) no âmbito do Direito de Família, um avançado processo de sis-tematização da legislação esparsa, trazendo algumas inovaçõespouco expressivas, donde vislumbramos haver retrocedido aoperpetuar o direito aos alimentos entre cônjuges e conviventes,sem que isso represente embaraço à marcha evolutiva experi-mentada pela jurisprudência;

(b) todavia, na esfera do Direito das Sucessões, pertinente ao côn-juge e ao convivente sobrevivos, a norma é retrógrada, de umadureza ímpar, colocando esse último em situação de inferiorida-de vexatória, enquanto amplia os direitos às relações resultan-tes do direito matrimonial, tanto quanto em não incluir o sobre-vivo na condição de herdeiro necessário, como ao limitar suaparticipação na herança exclusivamente aos bens adquiridos naconstância da convivência, deslocando-o, ainda, para o últimograu da ordem de vocação hereditária legítima, em concorrên-cia desproporcional, até mesmo com os parentes colaterais de 4ºgrau do autor da herança.

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As Espécies Tributárias em face daConstituição Federal de 1988

The Tributary Species according tothe Brazilian 1988 Constitution

MARIA EUNICE DE PAULA

Mestranda em Direitos Especiais – UFRGSProfessora de Direito Constitucional e Direito Tributário da ULBRA

RESUMO

O conceito constitucional de tributo, traduzido na definição do art. 3º do Có-digo Tributário Nacional, bem como as espécies estabelecidas na Constituição,funcionam como limitações materiais ao poder de tributar. A importância dadeterminação das espécies tributárias na Constituição é servirem de instrumen-tos de controle de constitucionalidade e legalidade da tributação, mediante averificação de obediência ao regime jurídico específico.Palavras-chave: Tributo, gênero, espécie, regime jurídico.

ABSTRACT

The constitutional concept of tribute, defined in 3rd article of the National TributeCode, as well as the specimen established in the Constitution, work as materiallimitations to the power of taxing. Determination of the species’ importance in theConstitution is to serve as instrument for the constitutional control and lawfulnessof taxation, by means of the obedience to the specific juridical regime.Key words: Tribute, kind, species, juridical regime.

Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.147-168

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1. INTRODUÇÃO

Sendo a tributação uma expropriação do patrimônio do particular,decorre lógica a sua antinomia com a liberdade individual. Deve, portan-to, atingir o menos possível o bem protegido pelo Estado – a liberdade, ealcançar o máximo de bem buscado - o bem comum. Daí que a competên-cia tributária não pode ser ilimitada e é a Constituição Federal que adetermina.

Ao atribuir a competëncia tributária, a Constituição estabelece a co-notação de “tributo”, distribui parcelas do poder de tributar a cada esferade governo, determina espécies diversas de tributos e impõe um regimejurídico próprio.

A questão é, pois, identificar quais as espécies de tributos que a Cons-tituição estabeleceu e com que função. A análise deve partir do texto daConstituição e sua interpretação deve ser desenvolvida dentro do con-texto de significado dos valores por ela adotados.1

Para a verificação do sentido com que a Constituição tomou determi-nados valores ou utilizou determinadas expressões, as decisões do Supre-mo Tribunal Federal oferecem a interpretação do sistema, buscando nadoutrina o substrato da sua composição. Mas nem sempre a posição ésegura. O caso dos empréstimos compulsórios e das contribuições sociaisterem ou não natureza jurídica tributária é exemplo irretocável disso.

2. GÊNERO E ESPÉCIE

O gênero é dado pelas qualidades particulares, imprimidas por umregime jurídico determinado. Ao gênero pertencem as espécies com ca-racterísticas comuns, ou seja, as características comuns determinam queuma espécie pertence a determinado gênero, de sorte que a este pode serreconduzida.

1 ÁVILA, Humberto. Contribuições na Constituição Federal de 1988. In MACHADO, Hugo de Brito (Coord).

As contribuições no sistema tributário brasileiro. São Paulo : Dialética / Fortaleza Instituto Cearense deEstudos Tributários – ICET, 2003, p. 309.

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2.1 Tributo, natureza jurídica e regime jurídicoA figura central do direito tributário é, sem dúvida, o tributo, tido

como gênero que reúne espécies de características distintas entre si. En-tre as regras constitucionais determinantes do regime jurídico tributário,anote-se a que fixa as funções da lei complementar em matéria de direitotributário, mais especificamente a função de definir o que seja tributo esuas espécies, afigura-se como uma limitação ao poder tributar. Em outraspalavras, uma garantia do contribuinte. Mas a lei complementar não élivre para construir tais definições, devendo seguir os conceitos que de-correm da Constituição2 .

A importância da definição reside na pacificação da interpretação doconceito, de tal sorte que se pode afirmar que imprime uma certificação:ou a exação se enquadra nela, ou é inconstitucional a exigência, e, se seenquadra, significa dizer que tem natureza jurídica tributária, devendosubmeter-se ao regime jurídico tributário. Assim, quando queremos saberse é aplicável a regra da proibição de confisco num caso concreto, deve-mos verificar se se trata de tributo ou de matéria penal. No primeiro casoé vedado o confisco (art. 150, V, CF), no segundo, é previsto confisco(art. 5º, XLVI, b, CF). A definição de tributo funciona como um ícone doregime jurídico tributário.

Ao gênero, tributo, são reconduzidas as espécies, porém, nem sempre oregime jurídico tributário se aplica integralmente, porque o próprio siste-ma cria subsistemas, ou seja, normas específicas a determinados institu-tos, que, quase sempre, melhor se coadunam com sua natureza jurídicatambém específica. Aliás, a justificativa das espécies é justamente a exis-tência de vicissitudes tais que lhes dão características próprias, sem aperda daquelas do núcleo determinante ou ícone. Significa dizer que,quando a Constituição submete determinado instituto ao regime jurídicotributário, aos princípios tributários, ou limitações ao poder de tributar,integralmente ou não, é porque tem natureza jurídica tributária.

O art. 3º do Código Tributário Nacional define tributo como sendotoda a prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela sepossa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobra-da mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

2 ÁVILA, Humberto. As contribuições..., p. 315.

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Com vistas nessa definição, é possível confundir tributo com outras obri-gações compulsórias, v.g., o pagamento de 13º salário ou de participaçãonos lucros, do aluguel, do seguro obrigatório de veículos? Não estaria fal-tando, na definição, a qualificação do sujeito ativo, ou da sua natureza dedireito público, como exação estatal, ou de sua finalidade de financiamen-to dos fins estatais? MISABEL DERZI aponta que “os tributos têm finalidadepública, pois são cobrados mediante atividade administrativa plenamente vincu-lada” 3 , dando, assim, sentido à expressão final da definição legal. Podería-mos dizer que nem sempre há esta atividade vinculada, pois os tributosnormalmente são pagos de forma espontânea, assim entendido o cumpri-mento da lei independentemente de ação fiscal, mas, a cobrança, conformeo enunciado, esta sim é sempre mediante atividade vinculada e é este otermo utilizado pelo Código – a cobrança, e não o pagamento.

RUBENS GOMES DE SOUZA define tributo como sendo a receitaderivada que o Estado arrecada mediante o emprego de sua soberania, nostermos fixados em lei, sem contraprestação diretamente equivalente, e cujoproduto se destina ao custeio de finalidades que lhe são próprias. 4 Por essadefinição talvez se pudesse dizer que os tributos poderiam confundir-secom sanção por ato ilícito. O custeio de finalidades próprias não chega adeterminar a identidade tributária, face sua amplitude de sentido. É umadefinição menos suficiente que àquela do art. 3º do Código Tributário,pois, em princípio, poderia ser confundida com sanção por ato ilícito.

LUCIANO AMARO tece comentários sobre a inadequação do con-ceito de tributo, propondo a seguinte definição: tributo é a prestação pecu-niária não sancionatória de ato ilícito, instituída em lei e devida ao Estado ou aentidades não estatais de fins de interesse público. 5 Essa definição completa-ria a falta da qualificação do sujeito ativo, ou da sua (do tributo) nature-za de direito público, como exação estatal, ou de sua finalidade de finan-ciamento dos fins estatais. Entretanto, é possível concluir que tais ele-mentos da definição são ínsitos do conceito de tributo na Constituição eno sistema: a regra de definição pode não estar só no artigo 3º do CódigoTributário. Veja-se que nos artigos 119 e 7º, o Código define o sujeito

3 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed. Rio deJaneiro : Forense, 2003, p. 63.

4 SOUZA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1975, p.38 e 161.

5 AMARO, Luciano. Conceito e classificação dos tributos. In Revista de Direito Tributário. Cadernos de DireitoTributário. São Paulo. Ano 15 – nº 55, 239-296, jan/mar, 1991, p. 242.

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ativo da obrigação tributária e autoriza a atribuição de funções, ou seja, acapacidade ativa, revogável ad nutum, separando a competência tributá-ria da capacidade tributária. Tais regras completam a construção da nor-ma de definição de tributo e acodem questões da parafiscalidade.

Assim, a conclusão é de que, sobre ser redundante, a definição de tributodenota a natureza jurídica tributária e é de utilidade indiscutível na aplica-ção do direito, cumprindo sua função limitadora da competência e de instru-mento de controle de constitucionalidade. Em outras palavras, determinadaa natureza jurídica tributária de um instituto jurídico, certamente a ele éaplicável o regime jurídico tributário. Porém, o regime jurídico tributário nãoé composto de regras homogêneas para todos os tributos. Fundamenta-se emregras gerais e regras especiais, dependendo do instituto em questão, ou seja,se se trata de contribuição especial, de taxa, e assim por diante. É que, comoafirma HUMBERTO ÁVILA, “não há correspondência biunívoca entre na-tureza e regime, de tal sorte que, onde houver determinada natureza jurídi-ca, necessariamente deverá haver o mesmo regime jurídico” 6 , referindo-se àdiversidade de regimes jurídico-tributários, por exemplo, dos impostos, “quenão conduz a naturezas jurídicas discordantes”.7

Ocorre que a Constituição, a par de atribuir competência tributária,estabelece regimes jurídicos mais consentâneos com as finalidades preten-didas. Assim, temos um regime que poderia ser chamado de geral, compos-to pelas regras comuns às diversas espécies tributárias, e regimes especiais,onde há derrogação de determinadas regras gerais ou ficam estabelecidasregras especiais, como, por exemplo, a exceção da aplicação da regra daanterioridade para o imposto de importação e a regra de vigência especialpara as contribuições sociais de que trata o artigo 195, regras de validaçãopara a instituição de tributos de espécies diversas ou da mesma espécie,como as taxas e as contribuições de intervenção no domínio econômico.

2.2 Espécie e funçãoBoa parte dos doutrinadores divide os tributos em duas8 ou três9 espé-

6 ÁVILA, Humberto. As contribuições..., p. 316.7 Ibidem, p. cit.

8 Como Alfredo Augusto Becker.9 Como Rubens Gomes de Souza e Paulo de Barros Carvalho.

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cies: impostos e taxas ou impostos, taxas e contribuições de melhoria.Fundamentam-se, uns, na Constituição, outros no Código Tributário Na-cional (art. 145, CF, art. 5º, CTN). Os que defendem a existência deapenas duas espécies propugnam que as contribuições de melhoria sãotambém taxas e partem do exame da materialidade do fato gerador, ouhipótese de incidência, como denominado por Geraldo Ataliba.

E os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais? Tambémsão classificados assim: ou como impostos ou como taxas. Essa, a princípio,seria a razão do CTN não defini-los.

A discussão nestas bases se dá ao pálio do art. 4º do CTN.10

É que o artigo 4º, diz Werther Botelho Spagnol11 , é fruto da teoria daglorificação do fato gerador, determinando como critério de identificaçãoda natureza jurídica do tributo o seu fato gerador, o que é útil e necessá-rio, mas insuficiente, principalmente com a conjugação dos incisos quedeterminam a irrelevância, para identificá-los, da denominação legal e demaiscaracterísticas formais adotadas pela lei, e da destinação legal do produto dasua arrecadação. Por este critério, o gênero “tributo” comportaria apenastrês espécies: impostos, taxas e contribuições de melhoria, porque a hipó-tese de incidência do tributo determinaria a vinculação, ou não, de umaatividade estatal diretamente ligada ao contribuinte. Se há vinculação, étaxa ou contribuição de melhoria, senão, é imposto. Assim, o artigo 4ºestaria a determinar as espécies do gênero, apontadas depois no artigo 5º.Dúvida já não haveria sobre se é tributo ou não, mas sim quanto ao tipoou espécie.

Propõem-se uma interpretação diferente ao artigo 4º do CTN, paraconsagrar ali a natureza jurídica do gênero e não das espécies, ou seja,em última análise, o fato gerador determina a natureza jurídica do tribu-to, identificando sua compatibilidade com a definição (do art. 3º), de talsorte que desimporta a denominação legal ou as demais característicasadotadas pela lei ou a destinação legal do produto da sua arrecadação.Estes elementos não têm suficiência para descaracterizar a natureza jurí-

10 Art. 4º. A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação,sendo irrelevantes para qualificá-la:

I a denominação e demais características formais adotadas pela lei;

II – a destinação legal do produto de sua arrecadação.11 SPAGNOL, Werther Botelho. As contribuições sociais no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 32.

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dica tributária, mas, como adjetivos, podem ser importantes para a defini-ção das espécies de tributos. ALFREDO AUGUSTO BECKER professaser o gênero resultante do núcleo e as espécies “conferidas pelos elemen-tos adjetivos”.12

Rubens Gomes de Souza diz que “o tributo é, essencialmente, umafigura unitária por sua função. Esta, em quaisquer de suas modalidadesou espécies que se queiram admitir, é sempre a mesma: servir ao governocomo meio legal para obtenção compulsória de ‘receitas derivadas”.13

Chega a prescindir de qualquer subdivisão, que qualifica como um “ex-pediente prático de aplicação, ligado à atribuição das competências tri-butárias, especialmente ao que se chama, nos países federais (mas nãonecessariamente só neles) de ‘discriminação de rendas”.14

Hodiernamente a classificação dos tributos também é feita em cincoespécies distintas: impostos, taxas, contribuições de melhoria, emprésti-mos compulsórios e contribuições especiais. Hugo de Brito Machado15 ,Vittorio Cassone16 e Márcio Severo Marques17 são autores que se ali-nham nessa classificação.

Não obstante os critérios ligados ao art. 4º, CTN – de vinculação ounão do fato gerador a uma atividade estatal, têm utilidade como limita-dores materiais ao poder de tributar, e é essa a sua função, impedindo, porexemplo, a instituição de imposto residual com roupa de taxa, o que con-traria os arts. 154, I, e 157, II, da CF18 , ou taxa com roupa de imposto, oque se verificou inúmeras vezes, v.g., a instituição, pelos Municípios, dataxa de iluminação pública. Porque o critério material da taxa é um servi-ço público específico e divisível, fruído ou posto à disposição do contribu-inte, a taxa de iluminação pública, por indivisível o serviço, taxa não é,mas imposto de iluminação pública, não previsto na Constituição19 , que

12 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3 ed. São Paulo : Lejus, 1998, p. 329.13 SOUZA, Rubens Gomes de. Natureza jurídica da contribuição para o FGTS. In Revista de Direito Público -

Cadernos de Direito Tributário, nº 17, p. 309.14 Ibidem, p. cit.15 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 10 ed. ampl. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 43 et seq.16 CASSONE, Vittorio. Direito tributário. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1992, p. 58.17 MARQUES, Classificação..., p. 153 et. seq.18 O art. 154, I, porque estabelece regime especial para a criação de imposto residual e o 157, II, porque diz

pertencer aos Estados 20% da arrecadação com impostos residuais.19 Bom, agora temos contribuição de iluminação pública”! Art. 149-A.

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inclusive veda a vinculação da arrecadação dos impostos (167, IV, CF) e,portanto, fora da competência municipal. São numerosos os julgados nes-te sentido.

O problema, então, é justamente verificar se estes critérios, especial-mente o da materialidade ou a base de cálculo, como preceitua AlfredoAugusto Becker20 , são suficientes para determinar ou indentificar todasas espécies tributárias que a Constituição Federal autorizou às diversasesferas a instituir, o que deságua em outra importante função quanto averificação de suficiência, ou não, do controle de constitucionalidadedas leis tributárias, enfim, do exercício da competência tributária.

Podemos, de pronto, constatar que as decisões do judiciário sobre amatéria, em especial do Supremo Tribunal Federal21 , já não se atêm aapenas um critério de validação. Veja-se, por exemplo, o voto do Min.Maurício Corrêa, na decisão que, por maioria, interpretou o vocábuloutilizado tributos como se fosse impostos, diferenciando-os das contribui-ções sociais e considerou constitucional a exigência da COFINS, paraempresas distribuidoras de derivados de petróleo, mineradoras, distribui-doras de energia elétrica e executoras de serviços de telecomunicações,em face da redação original do artigo 155, § 3º, da CF, verbis: “o que meresultou compreendido é que as contribuições sociais se constituem emmodalidade tributária autônoma destinada ao financiamento de ativida-des estatais (…). Portanto, se assim é lícito defini-las, é a Cofins contri-buição social que tem como destinação específica o financiamento daseguridade social, distinguindo-se umbilicalmente dos impostos, que nãosão vinculados”.22

20 BECKER, Teoria Geral..., p. 373.21 Recurso Extraordinário nº 227.832-1, Tribunal Pleno, Relator Ministro Carlos Velloso, DJU 28.6.2002. In:

Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, nº 88, p. 146-176, jan. 2003.22 No já citado RE 227.832-1, o Min. Maurício Corrêa referiu-se ao RE 146.733-9, rel. Min. Moreira Alves, DJU

6.11.92 – sobre a CSSL, lei 7.689/88, que fixou jurisrpudência quanto à sua natureza tributária e no RE148.331-8, rel. Min. Celso de Mello, DJU 18.12.92, verbis: “ a qualificação jurídica da exação instituída pelaLei 7.689/88 nela permite identificar espécie tributária que, embora não se reduzindo a dimensão conceitualdo imposto, traduz típica contribuição social, constitucionalmente vinculada ao financiamento da seguridadesocial”. Também colacionou o art. 217 do CTN, que retempera a exclusão de outras incidências, inclusivequanto o art. 74, § 2º, ‘excluindo da exclusão’ as contribuições.

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3 SISTEMA TRIBUTÁRIO NA CONSTITUIÇÃODE 1988

A constituição Federal de 1988 é denominada de Constituição Cidadã,isto porque integra um movimento de concretização de direitos, ou seja,pretende direitos não meramente formais, mas substanciais, movimentoeste característico da passagem do Estado de Direito para o Estado De-mocrático de Direito. Nesse diapasão propugna princípios de solidarieda-de e de justiça social que embebem todo o sistema jurídico nacional. Porevidente, a tributação surge como importante instrumento de realizaçãodestes fins. Lógico que a tributação é e sempre foi instrumento do Estadopara o atingimento de seus fins e que os fins são e sempre foram de inte-resse público, coletivo, como uma razão mesma do Estado. Mas havia oimpério do direito formal em detrimento do direito substancial, problemaainda não resolvido integralmente, posta, por exemplo, a dicotomia entreo direito financeiro e o direito tributário ainda imperante. Há uma impos-sibilidade na reunião destes dois ramos do direito, pois a validade da leitributária passaria a depender de fatos futuros, pertencentes ao mundodo “ser”, ou seja, o efetivo emprego do recurso nos fins indicados na lei,que condicionariam a sua validade, o que não é jurídico. Porém, a legis-lação também avançou na seara do direito financeiro, em especial daresponsabilidade fiscal. O certo é que a Constituição de 1988 utilizou atributação como instrumento fiscal e grandemente como instrumento deextrafiscalidade, distribuindo a competência de acordo com a área a serfinanciada ou fins a serem atingidos em a) financiamento geral e b) fi-nanciamentos específicos e especiais, o que influi nos critérios clássicosde validação constitucional dos tributos. Assim, conformou uma série deprincípios e regras de direito tributário, que atribuem e limitam compe-tências, determinam fins a serem atingidos e os meios a serem utilizadospara tanto, formando o sistema tributário.

3.1 Tributos autorizados na constituição de 1988Embora o sistema tributário nacional tenha tratamento constitucional

concentrado no título VI, Capítulo I da Constituição (arts. 145 e ss), jáno artigo 7º surgem vários direitos sociais que apontam para a necessida-de de promoção mediante a instituição de obrigações de direito privado,como o direito ao décimo terceiro salário, a participação nos lucros; ou

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mediante a intervenção ou interposição estatal, mais especificamente, acanalização de receitas públicas dirigidas aos cofres públicos ou a finspúblicos. Trata-se, p. ex., do direito ao seguro-desemprego, em caso dedesemprego involuntário e do direito a fundo de garantia por tempo deserviço (art. 7º, II e III). A divisão entre quais estejam aptos ao financia-mento direto pela iniciativa privada e quais estariam a necessitar de in-tervenção ou concretização pelo poder público é questão que refoge osobjetivos deste estudo. Interessa apontar que, de pronto, inexistindo ou-tra regra constitucional em contrário, a nova ordem recepciona a legisla-ção preexistente, evitando solução de continuidade.

Desta forma, o seguro-desemprego vai encontrar, no artigo 239 daConstituição, a determinação de seu financiamento por receitas proveni-entes do PIS/PASEP, contribuições preexistentes, cuja legislação e basesmantém, redirecionando o produto da arrecadação. Já o FGTS, à mínguade outro dispositivo constitucional específico, é hipótese de recepção in-tegral da legislação preexistente. No artigo 8º, IV parte final e VI, ficainstituída a contribuição sindical, recepcionada, de igual sorte, a legisla-ção pretérita.

Assim também o capítulo da ordem econômica, da ordem social e doato das disposições constitucionais transitórias, todos contêm dispositivosde natureza tributária. Quais, então, os tributos que a Constituição auto-rizou fossem instituídos? 23

Além dos tributos estabelecidos no capítulo próprio24 , considerando acomplementação entre determinados dispositivos, como quanto a Cide (art.149 e art. 177, § 4º) e quanto as contribuições sociais (arts. 149, 195, a atée, § 4º e 8º, art. 249, art. 40)25 , anunciam espécies de tributos: o art. 7º, III- fundo de garantia por tempo de serviço, o art. 8º, IV, parte final - contri-buição sindical; o art. 201, § 10 - contribuição destinada a cobertura do

23 Esta consolidação utiliza àquela apontada pelo Prof. Humberto Ávila no artigo já citado, As contribuições…,p. 319, agregando as demais espécies tributárias e algumas contribuições, como o FGTS.

24 Art. 148, empréstimos compulsórios, art. 149, contribuições sociais, interventivas e corporativas, art. 153 e154, impostos da União, privativos, de competência residual e extraordinária, art. 155, impostos dosEstados e Distrito Federal, art. 156, impostos dos Municípios.

25 Art. 195. Contribuições sociais incidentes sobre a) a folha de pagamentos, b) a receita ou o faturamento, c)o lucro, d) o salário de contribuição dos trabalhadores e demais segurados da previdência social, e) areceita de concursos e prognósticos; art. 195, § 4º e 249 - contribuições sociais residuais; art. 195, § 8º -contribuição social sobre o resultado da comercialização da produção rural, art. 40 - contribuiçãoprevidenciária dos servidores públicos federais.

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risco de acidente do trabalho, o art. 212, § 5º - contribuição social dosalário-educação, o art. 239, contribuição ao Programa de Integração So-cial e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, a fi-nanciar o seguro-desemprego (art. 7º, II) e abono anual, o art. 239, § 4º -contribuição adicional a financiamento do seguro-desemprego da empresacom índice de rotatividade da força de trabalho superior ao índice médioda rotatividade do setor, o art. 240 - contribuições para entidades de servi-ço social e formação profissional; no ADCT, o art. 10, § 2º autoriza contri-buições para o custeio das atividades dos sindicatos rurais, o art. 62, contri-buição para o SENAR, nos moldes do SENAI e do SENAC, o art. 72, III eV autoriza alíquota superior da CSSL e PIS para as instituições financeiras,e o art. 74, a contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão devalores e de créditos de natureza financeira.

Esta variedade de tributos poderá ser agrupada somente nas categoriasclássicas de impostos, taxas e contribuições de melhoria? Significa dizer, osistema tributário nacional se fundamenta apenas no critério da materiali-dade da hipótese de incidência? É ela suficiente para o controle de consti-tucionalidade de todos os tributos autorizados pela Constituição?

3.2 Espécies de tributos na constituição e critériosconstitucionais de validação

A resposta será negativa, não só quanto ao controle da constituciona-lidade como da legalidade do tributo e suas vicissitudes. A análise, comojá referido, deve partir do texto constitucional.

A Constituição de 1988, a par de manter o critério clássico da materi-alidade, introduz um novo critério, um elemento do tipo, que é a finalida-de para a qual é outorgada a competência para a instituição de determi-nado tributo, ou seja, a competência é condicionada a que a lei expressea finalidade da instituição daquele tributo, a destinação que, pelo menosem tese, será dada ao produto da sua arrecadação. Assim, a Constituiçãoora proíbe a vinculação de receitas de determinados tributos (art. 167,IV), ora impõe como fundamento para a sua criação (art. 239, p. ex.).

Estas disposições têm uma função no sistema: extremar espécies detributos que se harmonizem com os fins estabelecidos pela Constituição ecom a atribuição de competência. Exemplo disso, na prática, a decisão

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judicial que autorizou a compensação de contribuições da mesma espécieou subespécies da mesma contribuição, recolhidas por homologação, in-dependentemente de prévio acerto com a administração, nos termos doart. 170, do CTN e do art. 66, § 1º da lei nº 8.383/91. Embora o ranço dadicotomia entre tributos e contribuições, o ponto central do julgado con-sidera justamente a obediência ao critério da espécie, subjacente comouma limitação imposta em virtude de suas diversas funções, ou finalida-des, verbis: “não se pode compensar uma contribuição social de segurida-de (Finsocial, Cofins, contribuição sobre o lucro) com uma contribuiçãosocial integrativa (PIS), dada a sua distinta finalidade. Mas, não, criar‘códigos’ para abrigar contribuições da mesma espécie, - como são o Fin-social, a Cofins e contribuição sobre o lucro – distinguindo-as exatamen-te em função do que a lei considerou relevante para permitir a compensa-ção ou a restituição, qual seja, a sua natureza jurídica”. 26

Da análise da Constituição emergem cinco espécies de tributos: osimpostos, as taxas, as contribuições de melhoria, os empréstimos compul-sórios e as contribuições especiais, cada qual com critérios de validaçãopróprios.

3.2.1 Impostos e seus critérios de validaçãoA CF atribui competência para instituição de impostos a todas as esfe-

ras de governo e, de plano, estabelece que devem, na medida do possível,ter caráter pessoal e serem graduados segundo a capacidade econômicado contribuinte (art. 145, I, § 1º). Isto porque, destina-se, o produto desua arrecadação, a financiar os fins gerais do Estado, ou serviços públicosgerais, ou seja, aqueles prestados sem usuários determinados (uti univer-si)27 , que devem ter por base, por isso mesmo, o critério de justiça distri-butiva.

A atribuição de competência para instituir impostos não é genérica,mas sim discriminada. Ao nominar os impostos dos arts. 153, 155 e 156, oconstituinte apontou o núcleo, o aspecto material da hipótese de inci-dência, delimitando e, por conseqüência, limitando, uma competência

26 Ap. Civ. 1999.02.01.062.332-5-RJ. 1ª T, TRF 2ª Região, rel. Des. Carreira Alvim, j. em 18.4.2000. RevistaTributária e de Finanças Públicas. São Paulo : Revista dos Tribunais, nº 37, p. 312, mar./abr., 2001.

27 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo,Délcio Balestro Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 300.

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material, ou seja, ao deferir à União a competência para instituir imposto,v.g., sobre a renda, ou sobre produtos industrializados, suprimiu igual com-petência às demais esferas de governo.

Nem no exercício da competência residual deferida somente à Uniãoé possível instituir outros impostos com base na mesma materialidade dahipótese de incidência dos impostos discriminados no artigo 153. Em prin-cípio seria um expediente até desnecessário, pois tais impostos discrimi-nados poderiam ser majorados, ou terem adicionais, evitando, assim, oexercício da competência residual, que é mais complicado. Exige lei com-plementar, o imposto deve ser não-cumulativo. Mas ocorre que a limita-ção da escolha da hipótese de incidência estende-se àquelas dos impos-tos dos Estados e dos Municípios, pois a definição da materialidade doimposto também e sobremaneira, impede o trânsito da competência entreas esferas de governo e também entre as espécies tributárias, exceto quantoos empréstimos compulsórios e algumas contribuições. A materialidadetomada pela Constituição, depois pela lei complementar e pela lei ordi-nária, é signo de capacidade contributiva e a base de cálculo do impostodeve manter correlação lógica e razoável, traduzindo o signo em realida-de na obrigação tributária a ser suportada pelo contribuinte. Pela correla-ção lógica e razoável entre a materialidade e a base de cálculo, impende-se a verificação do princípio da igualdade, da capacidade contributiva eda proibição de confisco28 , bem como o critério de verificação do sujeitopassivo da obrigação tributária, que é a conexão (relação de fato) com onúcleo (aspecto material) da hipótese de incidência, devendo o exegetaidentificar a conexão em vista do fato imponível.29

A materialidade como critério de validação de imposto discriminado naConstituição limita a competência, a uma, identificando uma espécie e, aduas, limitando o campo de incidência. Muitos são os pleitos judiciais ondeé discutida a incidência tributária, como por exemplo, o ISS sobre franchi-sing. Decisão da 1ª Turma do STJ no sentido de desqualificar o contrato defranchising como de prestação de serviços porque representa uma cessão dedireitos onde eventuais serviços são atividade-meio e não atividade-fim,sendo que só estas últimas podem ser alcançadas pelo ISS. O argumento

28 MELO, José Eduardo Soares de. Contribuições Sociais no Sistema Tributário. 2 ed. rev. e atual. São Paulo :Malheiros, 1996, p. 42- 43.

29 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência. 5 ed. São Paulo : Malheiros, 1997, p. 77-78.30 Recurso Especial nº 222246-MG, 1ª T. STJ, j. 13.6.2000, rel. Min. José Delgado, DJU 4.9.2000. Revista

Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo : Revista dos Tribunais, nº 38, p. 281-289, mai./jun., 2001.

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jurídico é de que a materialidade da hipótese de incidência não pode de-correr de ficção legal, pena de sacrificar “todos os princípios e garantiasjurídicos. Não haveria necessidade de um sistema tributário discriminan-do, por exemplo, a competência municipal quando fosse dado à lei consi-derar como ´serviço´ aquilo que na realidade (jurídica) não o é”. 30 Seme-lhantes fundamentos na decisão do Tribunal Pleno do STF31 , pela inconsti-tucionalidade da expressão “locação de bens móveis” contida no item 79da lista anexa ao Decreto-lei 406-68. A Lei Complementar 116, de 2002,excluiu a locação de bens móveis da lista de incidência, no entanto, man-teve a franquia como “serviço” sujeito ao ISS.

3.2.2 Taxas e seus critérios de validaçãoAs taxas são previstas e definidas, no art. 145, II da CF como tributos

a serem instituídos e cobrados em razão do exercício do poder de polícia oupela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis,prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição, não podendo ter basede cálculo própria de impostos.

Da definição constitucional se verifica que as taxas são tributos vin-culados a determinados fins: contraprestacionar uma atividade estatalque o contribuinte deu causa, v.g., exercendo uma atividade consideradade risco ou interesse social que exija a fiscalização por parte do poderpúblico (poder de policia: vigilância sanitária, licença para construção,etc.), ou serviço público específico, determinado, v.g., a prestação jurisdi-cional, que pode ser quantificada individualmente pelo respectivo usoefetivo, ou mesmo pelo uso potencial de um serviço público específico edivisível, que ocorre quando o poder público estabelece, cria, constróiestruturas de serviços cujo uso não é obrigatório mas o pagamento sim 32 ,posto que ficam disponíveis ao contribuinte para quando e se quiser uti-lizar tais serviços, v.g., os serviços de água, esgoto e corpo de bombeiros. Aespecificidade do serviço público não é suficiente para ensejar a cobran-ça de taxa, devendo ser divisível, ou seja, passível de verificação do quan-tum utilizado pelo contribuinte. Daí a impropriedade de instituir taxa

31 Recurso Extraordinário nº 116.121-3-SP, redator para o acórdão Min. Marco Aurélio, j. 11.10.2000. DJU25.5.2001. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo : Revista dos Tribunais, nº 39, p. 255-271,jul./ago., 2001.

32 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10 ed. rev. e atual por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro :Forense, 1994, p. 353.

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para fazer frente a gastos públicos que não sejam suscetíveis de divisibili-dade em unidades autônomas. A taxa de iluminação pública é exemplocabal disto. O Tribunal Pleno do TJRS julgou inconstitucional lei queinstituiu taxa de iluminação pública, “porquanto violados os princípiosda divisibilidade e especificidade que caracterizam a taxa” 33 afigurando-se um imposto vinculado, o que é vedado pela Constituição, conformeart. 167, IV.

Porque há serviços públicos que, embora prestados à coletividade sãousufruídos uti singuli, e porque mensuráveis, devem ser remunerados portaxas34 . Porque a materialidade da hipótese de incidência é uma ativida-de estatal determinada, específica, que é utilizada ou posta à disposiçãodo contribuinte, não podem as taxas ter base de cálculo própria de impos-tos, pois estariam invadindo a competência determinada constitucional-mente, já que a base de cálculo é a expressão de grandeza da materiali-dade da hipótese de incidência que identifica a espécie “imposto”. Nessesentido a decisão do STF de que “a escolha do valor do monte-mor comobase de cálculo da taxa judiciária encontra óbice no artigo 145, § 2º daConstituição Federal, visto que o monte-mor que contenha bens imó-veis35 é também base de cálculo do imposto de transmissão causa mortis einter vivos (CTN, artigo 33)”.36 Quanto a previsão legal da destinação doproduto da arrecadação, o STF decidiu que a “vinculação das taxas judi-ciárias e dos emolumentos a entidades privadas ou mesmo a serviços pú-blicos diversos daqueles a que tais recursos se destinam subverte a finali-dade institucional do tributo”37 , “ofensa ao princípio da igualdade”.38

3.2.3 Contribuições de melhoria e seus critérios de validaçãoA contribuição de melhoria, cuja competência é chamada de comum,

porque todas as esferas de governo foram com ela contempladas pelo art.

33 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 591092374, TJRS, Tribunal Pleno, rel. Des. Décio Antônio Erpen,j. 24.8.92. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br> Acesso em 2 de junho de 2003.

34 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo…, p. 300.35 Antes da Constituição de 1988 o imposto de transmissão causa mortis incidia somente sobre a transmissão de

bens imóveis.36 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2040, Paraná, Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em

15.12.1999, DJU 25.02.2000. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br> Acesso em: 3 de junho de 2003.37 Idem.38 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1145 - Paraíba. STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j.

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145, III, da CF 39 , como é claro, de comum tem o nome, pois cada qualrecebe a competência para instituir contribuição de melhoria pelas obrasque realiza nos seus limites territoriais. Alguns autores concluem que acontribuição de melhoria, malgrado o nomen juris, tem natureza jurídicade taxa, pois teria por fato gerador a remuneração de uma atividade esta-tal, não exatamente um serviço, mas uma obra pública. De fato, é comuma existência de taxas de conservação de vias públicas, que ora são remu-neradas por pedágio, ora por taxas de calçamento acolhidas como legíti-mas (súmula STF 129), considerando contribuição de melhoria apenas otributo que obedece as “normas complexas do decreto-lei 195, de 1967”.40

Ocorre que a Constituição Federal não estabeleceu diretamente aatividade estatal como hipótese de incidência da contribuição de melho-ria, mas sim a melhoria, a valorização que decorre da obra pública e nãoa própria obra pública, ou seja, uma referibilidade indireta com a obrapública, diferentemente da taxa, cuja referibilidade é direta,41 entretan-to decorra do serviço prestado e não diretamente da obra. Tanto o aspec-to material é a melhoria que o fato da obra, por si só, pode não causarvalorização e ai não se fala em tributação de melhoria porque melhorianão houve, pode, inclusive, que haja pioria, fundamentando indenizaçãoaos proprietários prejudicados.

A conclusão é que, se a hipótese de incidência da contribuição demelhoria é a valorização imobiliária causada por obra pública, longe estáde compartilhar a mesma natureza jurídica da taxa, configurando-se numaterceira espécie de tributo cujo critério financeiro é o reconhecimento deque, apesar de benefícios gerais, a obra pública traz especiais vantagenspara determinadas pessoas e que este círculo especial de pessoas é quedeve devolver à comunidade o benefício da valorização imobiliária quereceberam (…) por razões de justiça e isonomia.42 Não há vinculação dareceita da contribuição de melhoria com a obra, ou seja, para cobrir osgastos com a obra,43 nem correlação do preço desta com a base de cálcu-

39 Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.40 Recurso Extraordinário nº 75769, MG, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, j 21.9.1973. Disponível em:

<http://gemini.stf.gov.br> Acesso em:3 de junho de 2003.41 MARQUES, Mário Severo. Classificação constitucional dos tributos. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 182-183.42 ATALIBA, Hipótese…, p. 152-155.43 MARQUES, Classificação..., p. 185.

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lo da contribuição, razão pela qual alguns autores consideram que o com-plicado procedimento estabelecido pela lei complementar 195 é descabi-do, além de extrapolar a função das normas gerais em direito tributário,limitando a competência tributária de forma inconstitucional.

3.2.4 Empréstimos compulsórios e seus critérios de validaçãoOs empréstimos compulsórios44 fazem parte do elenco de tributos de

competência exclusiva, privativa da União. Na literatura tributária ma-joritária os empréstimos compulsórios são classificados como impostos (im-postos de escopo) ou taxas, dependendo do caso concreto.

Ocorre que os impostos são receitas não vinculadas e definitivas, enquan-to os empréstimos compulsórios são vinculados a uma finalidade constitucio-nal e trazem, no próprio nome, a qualidade de empréstimo, ou seja, que aquantia arrecadada deve ser devolvida em certo tempo. Quando a Consti-tuição prevê tais exações apenas nas situações que indica, quais sejam, paraatender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerraexterna ou sua iminência; e no caso de investimento público de caráter urgente e derelevante interesse nacional, vinculando os recursos a despesa que fundamen-tou sua instituição, verifica-se que de imposto não se trata, muito embora olegislador complementar possa colher como hipótese de incidência um fatoque independa de atividade estatal, ou seja, a materialidade de um impostodiscriminado na Constituição, a vinculação da receita à causa de sua insti-tuição deve fazer parte da hipótese de incidência, ou empréstimo compulsó-rio não haverá. Também não é possível reconduzir à figura das taxas, porqueas causas que fundamentam sua instituição, na Constituição de 1988, nãosão vinculadas ao contribuinte. Trata-se de espécie distinta de imposto, detaxa e também, por óbvio, de contribuição de melhoria. Mesmo que se consi-derasse que a hipótese de incidência fosse a despesa ou o investimento públi-co, não se confundiria com a hipótese de incidência da contribuição de me-lhoria, que é a valorização imobiliária decorrente de obra pública.

44 Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios:

I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou suaiminência;

II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o dispostono art. 150, III, b.

Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesaque fundamentou sua instituição.

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Deste modo, o critério de validação pela hipótese de incidência pro-cede ao se considerar como integrante dela a finalidade, a afetação dareceita, e prazo de devolução. Assim teríamos uma hipótese de incidên-cia com sete aspectos ou elementos: pessoal, material, espacial, temporal,quantitativo, finalidade e prazo de devolução.

3.2.5 Contribuições especiais e seus critérios de validaçãoAs contribuições especiais são assim denominadas para diferenciarem-

se das contribuições de melhoria as quais, grosso modo, também podemser chamas de especiais, já que o critério de identificação destas espéciesé a afetação a determinado grupo de pessoas – ligadas ao benefício espe-cial ou especial detrimento ao Estado45 . Elas formam um elenco de tribu-tos que alguns doutrinadores clássicos também reconduzem ou à figurado imposto ou à da taxa. São várias tais contribuições. O artigo 14946

nomina três subespécies: contribuições sociais, contribuições de interven-ção no domínio econômico e contribuições de interesse das categoriasprofissionais ou econômicas.

Os pontos comuns das contribuições especiais de que trata o art.149, são: a) de competência exclusiva da União, ressalvada a contribui-ção que os Estados, Distrito Federal e Municípios podem instituir e co-brar de seus servidores para financiar sistema próprio de previdência eassistência social (149, § 1º); b) o legislador federal, na maioria doscasos, atribui a capacidade tributária47 a pessoas jurídicas de direitopúblico ou privado, normalmente autarquias, instituídas para o exercí-cio de atividades com finalidade pública ou de interesse público ouexercendo atividade de interesse público, uma espécie de longa manusdo Estado, para as quais são canalizadas tais receitas públicas deriva-das, sendo os institutos de previdência o exemplo mais categórico destaatribuição de funções e, c) característica terceira, e mais importante,são tributos que a Constituição Federal manda vincular a determinadasfinalidades, de tal sorte que o requisito integra a hipótese de incidên-

45 ATALIBA, Hipótese…, 152-153.46 A Emenda Constitucional nº 39 acrescentou o parágrafo segundo ao art. 149, e estabeleceu uma série de

qualificações para as contribuições interventivas no setor econômico, e o art. 149-A, autorizando osMunicípios e o Distrito Federal a instituir contribuição de iluminação pública, esta com conotaçãointeiramente diversa das demais contribuições.

47 Atribui as funções de que trata o art. 7º do CTN.

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cia tributária. Os institutos de previdência são o exemplo mais categó-rico desta espécie tributária.

Cada uma dessas contribuições tem finalidade específica. Vale dizer, aConstituição Federal atribui competência para instituir a contribuiçãovinculando a arrecadação ao financiamento de determinadas finalida-des. A Constituição quer, com isto, garantir o custeio e a promoção dedeterminados fins, que, consoante análise das contribuições autorizadas,abrigam valores protegidos pelo ordenamento (solidariedade social, dig-nidade da pessoa humana, etc).

Por estas mesmas razões, têm regime jurídico próprio, que se qualificapor alteração de uma ou de algumas das regras do regime geral. Estascontribuições previstas no artigo 149, especialmente as contribuições so-ciais, (assim como os empréstimos compulsórios), estão a salvo da proibiçãoda duplicidade da base de cálculo (…) inteligência dos artigos 145, § 2º,149, 154, I e 155, inciso II e § 3º; 48 não se aplicando a segunda parte doart. 154, I. 49 A vedação do art. 154, I da CF não atinge esta contribuição(salário-educação), somente impostos, não se tratando de outra fonte para aseguridade social, quando a Constituição define a finalidade: financiamento doensino fundamental e o sujeito passivo da contribuição, as empresas, não restadúvida de sua constitucionalidade.50

A conclusão é que o critério de validação das contribuições especiaisestá exclusivamente direcionado à finalidade da arrecadação, ou seja, deque a lei que institui a contribuição determine a finalidade dos recursosarrecadados, fazendo parte da hipótese de incidência, de tal sorte que,faltando este aspecto ou elemento, inocorre incidência e se afigura in-constitucional a exigência.

Vê-se, assim, que a contribuição para o custeio dos serviços de ilumi-nação Pública, autorizada pela Emenda Constitucional nº 39, art. 149-A,representa uma equivocada “solução” do Poder Constituinte derivadopara o problema da inconstitucionalidade da “taxa de iluminação públi-

48 Tratando do AFRMM, contribuição interventiva: RE 186.862, PR, rel. Min. Marco Aurélio, j. 26.09.1995,DJU 17.11.1995. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br> Acesso em: 3 de junho de 2003.

49 Tratando da contribuição social criada pela lei complementar 84/96: RE 223.085,Paraná. STF, 1ª T, rel. Min.Moreira Alves, j. 27.10.1998, DJU 12.02.1999, in http://gemini.stf.gov.br/

50 Ação Direta de Constitucionalidade nº 3. STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Nelson Jobim, j. 1.12.1999, DJU09.05.2003. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br> Acesso em: 3 de junho de 2003.

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ca”, que os Municípios insistentemente instituíam e cobravam. A referi-da contribuição refoge dos critérios de especificação das contribuições,voltados para o especial benefício e especial gasto, configurando-se comoum imposto com destino especial. Além disto, a possibilidade de alarga-mento da competência tributária parece inexistir, pois, quando o Consti-tuinte originário quis, atribuiu competência residual, o que se sabe, nãofoi em favor dos Municípios!

4 CONCLUSÃO

A Constituição Federal determina a conotação de tributo como gêne-ro e estabelece distintas espécies. Às características do gênero são acres-cidas outras, que justamente extremam as espécies entre si, mas as recon-duzem ao gênero. Assim, o fato do artigo 145 dispor que compete àsdiversas esferas de governo instituir impostos, taxas e contribuições demelhoria, não significa que apenas estas espécies tributárias foram previs-tas. Mais correto é concluir que se encontram designadas separadamen-te de outras, porque atribuídas de forma comum à União, Estados, Distri-to Federal e Municípios.

As demais espécies tributárias, a par de serem de competência exclu-siva e especial da União, têm vicissitudes que implicam em regras especi-ais, que o constituinte tratou de modo geral nos artigos 148 e 149 e maisespecificamente nos dispositivos constitucionais atinentes ao ordenamentoda matéria pertinente aos fins buscados pelo Estado, a cujo financiamen-to justamente se vinculam tais tributos.

As espécies tributárias se afiguram como técnica de tributação, limi-tando a competência tributária entre as diversas esferas de governo einternamente a cada uma delas, vedando o trânsito de uma para outraespécie, postos os critérios de validação e, em última instância, concreti-zando o princípio da segurança jurídica.

A identificação das espécies de tributos, além de determinar o campode ação de cada esfera de governo, identifica o regime jurídico a que sesujeitam, isto porque a Constituição não estabeleceu um regime único.Pode-se afirmar que há um regime geral e regimes especiais que delevariam por suprimir ou acrescer regras específicas em função dos objeti-vos a serem atingidos pelo Estado através da tributação. Em conclusão, a

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importância da determinação das espécies tributárias na Constituiçãodeve-se a servirem de instrumentos de controle de constitucionalidade elegalidade da tributação, mediante a verificação de obediência ao regi-me jurídico específico.

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O terror e o ataque às liberdadescivis*

Terror and the Attack on CivilLiberties

RONALD DWORKIN

Ronald Dworkin é Frank Henry Sommer Professor of Law na New York University School of Law. Autor dediversos livros, dentre eles “ Uma questão de princípio”, “O império do

Direito” e “Levando os direitos a sério”.

RESUMO

A partir de uma crítica das restrições das liberdades civis, a desde 11 de setem-bro de 2001, o jurista propõe um modelo de combate ao terrorismo que sejacompatível com o exercício das liberdades civis.Palavras-chave: Terrorismo, restrição de direitos fundamentais, direitos civis.

ABSTRACT

From a critical review of civil liberties restrictions since September eleven, the juristproposes a terrorism combat model compatible with the exercise of civil liberties.Key words: Terrorism, restriction of fundamental rights, civil rights

Dois anos se passaram desde a catástrofe de 11 de setembro, e os nor-te-americanos permanecem em grande perigo. O perigo é de dois tipos, e

* Publicado originalmente em The New York Review, Volume 50, Número 17, 6 de novembro de 2003, aquireproduzido com autorização do autor e da revista, o que agradecemos. Trad. Roberto Cataldo Costa.

Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.169-186

Dossiê terrorismo, tortura e direitos humanos

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o primeiro – mais ataques terroristas – é evidente. Terroristas bem finan-ciados, que moram em diversos países estrangeiros e neles recebem trei-namento, estão determinados a matar norte-americanos e, para tanto,dispostos a morrer. Se obtivessem acesso a armas nucleares, seriam capa-zes de causar danos ainda mais terríveis. O segundo perigo, menos evi-dente, é auto-imposto. Em sua resposta a essa grande ameaça, o governoBush ignorou ou violou muitos direitos e liberdades individuais funda-mentais, e agora é preciso que nos preocupemos com uma transformação,para pior, do caráter de nossa sociedade. O governo ampliou em muito avigilância sobre os cidadãos e a coleta de informações a seu respeito.Muitas centenas de prisioneiros, alguns dos quais são cidadãos dos Esta-dos Unidos, foram detidas indefinida e secretamente, sem acusação ouacesso a um advogado. O governo ameaça executar alguns após seremjulgados por um tribunal militar especial, onde não haverá as tradicionaissalvaguardas destinadas a impedir a condenação de inocentes.

Tem havido um grande número de críticas intensas a essas políticaspor parte de grupos que trabalham em prol das liberdades civis, jornalis-tas, conservadores que se preocupam com a liberdade, e outros. Muitosdesses críticos argumentam que as políticas do governo são inconstituci-onais ou ilegais à luz do direito internacional. Concordo com eles, mas ogoverno tem tido um êxito surpreendente em persuadir juízes federais amanter suas políticas diante de questionamentos jurídicos,1 e os juristas

1 Tribunais federais sustentaram, por exemplo, que o país não têm controle suficiente sobre Guantánamo para quese force o governo a permitir o requerimento de habeas corpus em nome dos prisioneiros (vide Al Odah v. UnitedStates, 321 F.3d 1134, D.C. Cir. 2003, e Ctr. for Nat’l Sec. Studies v. DOJ, 331 F.3d 918, D.C. Cir. 2003), e tambémsustentaram as posições do governo, segundo as quais os tribunais não têm poder para revisar a designação,por parte do presidente, de indivíduos capturados em uma zona militar, como combatentes inimigos (videHamdi v. Rumsfeld, 337 F.3d 335, 357, 4th Cir. 2003). Em minha opinião, essas decisões são equivocadas. Adecisão sobre se um território está suficientemente sujeito à soberania dos Estados Unidos para que aautoridade norte-americana deste país deva respeitar a concessão de habeas corpus depende de a soberaniaser efetiva, e não de ser permanente. Sendo assim, o fato de que o controle norte-americano da base deGuantánamo só é garantido por um aluguel de longo prazo é irrelevante. O tribunal, em sua decisão sobreo caso Hamdi, citou a designação do presidente como comandante-em-chefe pela Constituição, mas essadesignação não significa que os tribunais sejam privados de seu poder normal de proteger indivíduos daautoridade governamental arbitrária, mesmo em tempos de guerra. O governo também se baseia na decisãoda Suprema Corte, de 1942, sobre o caso Quirin, segundo a qual os espiões nazistas que haviam chegado aosEstados Unidos com planos de sabotagem, incluindo um cidadão do próprio país, poderiam ser julgados porum tribunal militar e executados sem exame judicial substantivo (vide Ex Parte Quirin et al.; US ex rel. Quirinet al. v. Cox, Provost Marshal 317 US 1). Aquela decisão foi lamentável, até mesmo sórdida. Vide meu artigo“The Threat to Patriotism,” The New York Review, 28 de fevereiro de 2002. De qualquer forma, a decisão é umprecedente inadequado para a recusa do governo Bush de permitir que detentos questionem sua situação decombatentes inimigos e lhes dar acesso a advogado. Os sabotadores nazistas admitiram agir como espiões parauma potência estrangeira inimiga, e foram representados por advogados muito qualificados, incluindo

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internacionais estão divididos com relação a se nossas práticas violam ounão qualquer de nossas obrigações previstas em tratados.2 De qualquerforma, muitos dos que defendem tais políticas do governo afirmam quequestões de legalidade são quase irrelevantes em tempos de emergêncianacional. Eles dizem, como expressou o presidente da Suprema Corte,William Rehnquist, que nas guerras, as leis “falam com voz silenciosa”3

Devemos, assim, tratar de uma questão distinta e mais básica: se as polí-ticas do governo são indefensáveis, mesmo que sejam legais, porque vio-lam os direitos humanos fundamentais das pessoas – os quais fazem partedos alicerces da ordem moral internacional que as nações devem respei-tar, mesmo estando sob ameaça. Caso o sejam, essas políticas não sãoapenas equivocadas, mas também vergonhosas.

1. A lei chamada de USA Patriot Act, apresentada pelo governo e

2 A questão sobre se o tratamento dado pelos Estados Unidos aos prisioneiros em Guantánamo, no Iraque e emoutros lugares viola o direito internacional depende em muito da interpretação da Convenção de Gene-bra, que é um conjunto complexo de tratados e protocolos, cada um ratificado por, pelo menos, 156 países(os Estados Unidos assinam algumas partes da Convenção, mas não outras; uma questão sobre a qual osjuristas internacionais se dividem é se, dado que tantos outros países assinam todas as partes da Conven-ção, o país deve respeitar até mesmo aquelas disposições que não ratificou, pois todas representam,atualmente, o direito internacional consuetudinário). A Convenção distingue dois principais casos depessoas que uma nação captura em uma ação militar: as que estão atuando como agentes de outro país como qual ela esteja em guerra e as que estão agindo, na condição de civis, por conta própria. Estas podem serprocessadas como criminosas; as primeiras devem ser tratadas como prisioneiros de guerra, desde quecumpram outras condições: devem lutar sob um comando responsável, portar abertamente suas armas,usar um sinal fixo e reconhecível, como um uniforme, e obedecer, elas próprias, às leis da guerra. Segundoas interpretações do governo Bush, essas disposições possibilitam uma terceira categoria, a que chama de“combatentes ilegais” (termo inexistente na Convenção de Genebra), com o qual denomina aqueles quenão têm direito ao status de prisioneiro de guerra porque não usam uniformes ou não obedecem às leis daguerra, por exemplo, mas que, mesmo assim, podem ser detidos sem acusações penais porque pegaram emarmas como parte de um grupo organizado. A interpretação tem sido amplamente questionada (vide, porexemplo, Knut Dörmann, “The Legal Situation of Unlawful/Unprivileged Combatants”, The InternationalRevue of the Red Cross, Vol. 84, No 849, Março de 2003). De qualquer forma, o Artigo 5 da TerceiraConvenção de Genebra, ratificada pelos Estados Unidos, exige que os signatários formem tribunais paradeterminar se prisioneiros específicos têm direito ao status de prisioneiro de guerra, quando houverdúvida. O Primeiro Protocolo Adicional, que os Estados Unidos assinaram, mas não ratificam, especificaessa exigência muito mais detalhadamente: cada prisioneiro deve ser tido como apto a receber status deprisioneiro de guerra e pode questionar qualquer reclassificação diante de um tribunal “competente”. Ogoverno se recusa a reconhecer essas outras exigências do protocolo, e insiste em que não há dúvidas deque os que foram detidos não têm direito àquele status.

3 Discurso do Presidente da Suprema Corte, William H. Rehnquist, no centenário da Norfolk and PortsmouthBar Association, 3 de maio de 2000 (transcrição disponível em www.supremecourtus .gov/publicinfo/speeches/sp_05-03-00 .html). Contudo, Rehnquist também alertou que “é muito fácil escorregar de umcaso de verdadeira necessidade militar...para um em que a ameaça não seja crítica e o poder [que se buscaexercer é] seja dúbio ou inexistente”, e que é “desejável e provável que os tribunais prestem uma atençãomais cuidadosa às afirmações que o governo faz sobre a necessidade como base para restringir a liberdadecivil”. Vide sua obra All the Laws But One (Vintage, 2000), p. 224–225.

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aprovada às pressas pelo Congresso quase que imediatamente após o 11de setembro, legalizou uma definição incrivelmente ampla de terrorismo,incluindo, por exemplo, atos violentos “destinados a influenciar a políticade um governo por meio de intimidação ou coerção”, donde uma pessoa éculpada de contribuir com o terrorismo se doar dinheiro a qualquer grupoque tenha essa finalidade. A lei ampliou em muito o poder do governopara levar a cabo buscas secretas em domicílios privados, permitiu que oprocurador-geral detenha estrangeiros quando quiser, na condição deameaças à segurança, estipulou novas regras autorizando o governo a re-quisitar informações sobre as compras de livros ou empréstimos em livra-rias e bibliotecas feitos por qualquer pessoa, e aumentou de várias outrasformas a autoridade do governo para vigilância. Um relatório recente deum inspetor interno do Departamento de Justiça apontou inúmeras viola-ções de direitos civis na aplicação da lei.4

Mais de 650 prisioneiros estão atualmente no campo de detenção dogoverno na Baía de Guantánamo, de forma anônima e em condições se-veras.5 Detentos de outros campos nos Estados Unidos, no Iraque, emBahrein e no Afeganistão, e na ilha Diego Garcia, de propriedade britâ-nica, no Oceano Índico, entre outros locais, estão sujeitos a interrogató-rios violentos e coercitivos, que incluem surras, negativa de medicaçãocontra a dor, privação do sono e ruído alto com intenção de causar deso-rientação. Há boas razões para preocupação com que esses prisioneirossejam torturados, e que os recalcitrantes sejam entregues a países ondeesse tipo de tortura é rotina.6

Os tribunais militares que o governo ameaça usar para julgar algunsdesses detentos são designados pelo Departamento de Defesa e têm po-der de impor sentenças, incluindo a pena de morte, sem as salvaguardasnormais do processo penal (por exemplo, provas baseadas em testemu-nhos indiretos e confissões involuntárias são admissíveis se tiverem “valorprobatório para uma pessoa razoável”). Não existe recurso, exceto ao

4 Vide Philip Shenon, “Report on US Antiterrorism Law Alleges Violations of Civil Rights”, The New York Times,21 de julho de 2003.

5 Vide Joseph Lelyveld, “In Guantánamo,” The New York Review, 7 de novembro de 2002.6 Vide Dana Priest e Barton Gellman, “US Decries Abuse but Defends Interrogations; ‘Stress and Duress’

Tactics Used on Terrorism Suspects Held in Secret Overseas Facilities”, The Washington Post, 26 dedezembro de 2002; Rajiv Chandrasekaran e Peter Finn, “US Behind Secret Transfer of Terror Suspects,”The Washington Post, 11 de março de 2003; Peter Finn, “Al Qaeda Recruiter Reportedly Tortured; Ex-Inmate in Syria Cites Others’ Accounts,” The Washington Post, 31 de janeiro de 2003.

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secretário de defesa e ao presidente.7 Os réus têm advogados militaresdesignados e podem contratar, por sua própria conta, advogados civis quetenham liberação das agências de segurança, mas estes não poderão com-parecer a audiências que o oficial que presidir o julgamento declararfechadas. Associações jurídicas têm questionado a participação de advo-gados norte-americanos em julgamentos que limitem de forma tão pro-funda sua capacidade de defender adequadamente seus clientes.8

O governo mantém incomunicáveis pelos menos três prisioneiros –Yasser Esam Hamdi, José Padilla e Ali Saleh Kahlah al-Marri – em prisõesmilitares nos Estados Unidos, sem acusação e sem lhes permitir acesso aum advogado. Hamdi é cidadão do país. O governo diz que ele foi presopela Aliança do Norte enquanto lutava pelo Taleban no Afeganistão,mas faz essa afirmação em um memorando superficial, escrito por um ofi-cial de baixa patente sem conhecimento direto dos fatos, e se recusa aembasar a afirmação com mais provas. Padilla, também cidadão norte-americano, foi preso em Chicago na condição de “testemunha importan-te” da investigação do governo acerca dos ataques de 11 de setembro,mas quando um advogado indicado pelo tribunal questionou sua deten-ção e um juiz determinou uma audiência, o Presidente o designou comocombatente inimigo ilegal, e a audiência lhe foi negada. Marri é um estu-dante do Qatar, preso sob acusação de mentir a investigadores sobre suasviagens, que enfrentaria um julgamento penal normal, até o Presidenteanunciar, em junho último, sem provas ou argumentos que sustentassem,que ele também era um combatente inimigo que podia ser mantido inco-municável, sem acusações.9

Zacarias Moussaoui é um cidadão francês preso nos Estados Unidosantes de 11 de setembro. O governo afirma que ele era o “vigésimo se-qüestrador”, que teria participado dos ataques caso não tivesse sido presoantes, e o processou em um tribunal federal, pedindo a pena de morte. A

7 As normas dos tribunais militares foram esclarecidas no documento Military Commission Order No. 1, de 21de março de 2002, do Departamento de Defesa. A ordem inicial do presidente era, em alguns aspectos,mais severa: por exemplo, dispunha que os juízes não precisavam estar convencidos, para além de dúvidarazoável, para votar por “culpado”, e que uma votação de dois terços já seria suficiente para impor a penade morte. A ordem de 21 de março exige prova para além de dúvida razoável e uma votação unânime paraa condenação à morte, embora dois terços fossem suficientes para condenação.

8 Vide Neil Lewis, “Rules Set Up for Terror Tribunals May Deter Some Defense Lawyers,” The New York Times,13 de julho de 2003.

9 Vide Eric Lichtblau, “Bush Declares Student an Enemy Combatant”, The New York Times, 24 de junho de 2003.

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principal prova, aparentemente, é que ele recebeu dinheiro de membrosda al-Qaeda agora sob custódia dos Estados Unidos fora do país, quetambém enviaram dinheiro aos seqüestradores. Todavia, o governo recu-sou ordens do tribunal para que os advogados de Moussaoui entrevistas-sem esses membros da al-Qaeda, e ameaçou que, se essas ordens nãofossem suspensas pelo tribunal, processaria Moussaoui em um tribunalmilitar, onde não estaria em questão a permissão para seus advogadosterem tal acesso.10

Seria um erro crasso supor tais poderes e ações justificáveis porquetodos aqueles a quem ameaçam são culpados, como sugeriu Donald Ru-msfeld em sua declaração impressionante, segundo a qual os prisioneirosem Guantánamo são todos assassinos. Pressupor a culpa antes que elaseja demonstrada por meios justos, já representa, em si, um grave com-prometimento dos direitos humanos. É claro que nós, norte-americanos,já utilizamos táticas jurídicas não-convencionais e aparentemente injus-tas, assim como muitos outros países, quando fomos atemorizados pelaguerra ou por ameaças de subversão, reais ou imaginadas. Na SegundaGuerra Mundial, por exemplo, o governo dos Estados Unidos confinounipo-americanos que não representavam qualquer risco à segurança emcampos de detenção. As políticas do governo Bush, contudo, ameaçamcorromper nossas tradições de forma mais duradoura, pois os riscos cita-dos como justificativa não durarão alguns anos, como aconteceu com asoutras crises reais ou supostas, e sim uma geração, talvez mais.

Durante muitos anos, os conservadores quiseram que o governo tivesseo poder que os membros da atual administração dizem ser legítimo, e o 11de setembro pode lhes ter servido apenas de desculpa. O Departamento deJustiça de John Ashcroft tem usado seus novos poderes, conferidos peloPatriot Act, que foram defendidos como disposições de emergência contraterroristas, para investigar e processar uma ampla variedade de crimes maiscomuns, como furto e estelionato.11 As políticas antiterroristas do governo

10 O governo disse que concordaria com uma ordem retirando a acusação, de forma que pudesse recorrer daordem de acesso a líderes capturados. Vide Philip Shenon, “In Maneuver, US Will Let Terror ChargesDrop”, The New York Times, 26 de setembro de 2003. Mas o juiz, Leonie M. Brinkema, em lugar disso,ordenou a continuação do julgamento, sem que o governo tivesse permissão para acusar Moussaoui deenvolvimento no 11 de setembro ou pedir a pena de morte. O governo deve decidir agora se recorre dessasordens ou transfere o caso a um tribunal militar imediatamente. Vide Kirk Semple, “In Setback to US,Judge Refuses to Drop Moussaoui Case”, The New York Times, 2 de outubro de 2003.

11 Vide Eric Lichtblau, “US Uses Terror Law to Pursue Crimes from Drugs to Swindling”, The New York Times, 28de setembro de 2003.

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podem representar um passo irreversível rumo a um novo estado, muitomenos liberal, o que torna a pergunta que apresentei – se essas políticasviolam direitos humanos fundamentais – ainda mais urgente.

2. Muitos norte-americanos consideram as políticas do governo Bushcomo uma resposta justificada a uma ameaça terrorista,12 acreditandoque os ataques de 11 de setembro exigem (como muitas vezes se diz) “umnovo equilíbrio entre liberdade e segurança.” A expressão, tão utilizada,sugere que podemos avaliar adequadamente as novas políticas questio-nando se elas servem a nossos interesses gerais, da mesma forma com quepoderíamos decidir, por exemplo, sobre um novo equilíbrio entre seguran-ça nas estradas e a conveniência de dirigir em alta velocidade reduzindoos limites de velocidade. Contudo, praticamente sem exceções, nenhumnorte-americano que não seja muçulmano e não tenha vínculos dessetipo corre qualquer risco real de ser rotulado de combatente inimigo etrancafiado em uma cela militar. O único equilíbrio em questão é aqueleentre a segurança da maioria e os direitos de outras pessoas, e devemosrefletir sobre isso como uma questão de princípio moral, e não de nossointeresse próprio.

Entre os princípios morais mais fundamentais está o da humanidadecompartilhada: cada vida humana tem um valor inerente distinto e igual.Tal princípio é a premissa da idéia de direitos humanos, ou seja, os direi-tos que as pessoas têm apenas pelo fato de serem humanas, sendo, assim,premissa indispensável de uma ordem moral internacional. Vários trata-dos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanosda ONU ou a Convenção de Genebra, são tentativas legais de codificar oprincípio moral básico em normas específicas que possam ser tornadasobrigatórias em termos de direito nacional e internacional. Pode ser dis-cutível, como insiste o governo Bush, se suas medidas de segurança vio-lam os termos específicos de qualquer dos tratados dos quais os EstadosUnidos são uma das partes,13 mas essas medidas violam, sim, o princípio

12 Uma pesquisa recente encomendada ao Instituto Gallup pela CNN e pelo Jornal USA Today concluiu que22% dos norte-americanos consideravam que o governo havia ido longe demais na restrição às liberdadescivis, ao mesmo tempo em que dois terços disseram que o governo não deveria dar qualquer outro passoantiterrorismo caso isso as comprometesse mais. Vide Dana Milbank, “President Asks for Expanded PatriotAct”, The Washington Post, 11 de Setembro de 2003.

13 Para um estudo abrangente da aplicação do direito internacional, no campo dos direitos humanos, à procla-mada guerra norte-americana aos terroristas, vide Anthony Dworkin, “Military Necessity and Due Process:The Place of Human Rights in the War on Terror”, forthcoming in New Wars, New Laws?, organizado porMatthew Evangelista e David Wippman (Transnational Publishers).

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básico de humanidade compartilhada que lhes é subjacente. E elas ofazem porque seguem a estratégia de colocar a segurança dos EstadosUnidos absolutamente em primeiro lugar – uma estratégia que recomendaqualquer medida que aprimore a segurança do país contra o terrorismo,mesmo de forma secundária ou especulativa, ou que melhore a eficiênciaem termos de custo ou a conveniência de sua campanha antiterrorismo,sem levar em conta o dano ou o caráter injusto que acarreta a suas víti-mas.14 Os Estados Unidos seguiram essa estratégia ao confinar os nipo-americanos – o beneficio de segurança da detenção como um todo foimínimo, e o dano que impôs às vítimas, enorme – e vemos agora esseepisódio com grande constrangimento nacional.15 É claro que todo go-verno tem uma responsabilidade especial de cuidar da segurança de seuscidadãos, e um país pode, quando necessário, utilizar a violência em de-fesa própria, mas o dano que deliberadamente inflige a outros deve sercomparável ao que previne para seu próprio povo, e quando nosso gover-no se mostra pronto a impor danos graves a estrangeiros ou a norte-ame-ricanos suspeitos, em nome de benefícios apenas especulativos, marginaisou remotos para o resto de nós, suas ações partem do pressuposto de queaquelas vidas não têm qualquer valor, comparadas às nossas.

Esse pressuposto desdenhoso fica evidente nas políticas que descrevi enas justificativas que o governo Bush oferece para elas. O governo serecusa a permitir questionamentos de suas decisões, ainda que mínimos,sejam eles judiciais, congressuais ou independentes; instala campos dedetenção fora do país, de forma a evitar o requerimento de habeas corpus;reivindica o direito exclusivo de decidir quem é combatente inimigo,sem necessidade de apresentar provas consistentes a qualquer tribunal;recusa-se a permitir que juízes examinem suas afirmações opacas de quea segurança exige a negação de proteções básicas a pessoas que acusa decrimes; mantém suas detenções e seu tratamento dos detentos o maissecretos possível, para evitar qualquer crítica por parte de outros órgãos

14 O governo não aplica um princípio comparável a seu orçamento: deixa de tratar até mesmo medidas de segurançaclaramente importantes como prioridade financeira máxima. Em meio à sua guerra declarada ao terror,negociou cortes imensos de impostos, principalmente em benefício dos contribuintes muito ricos, e reduziu asdespesas de segurança. O financiamento federal para organizações locais que enfrentariam as conseqüênciasde outras ações terroristas tem sido extremamente reduzido, por exemplo. Vide Emergency Responders: DrasticallyUnderfunded, Dangerously Unprepared, Report of an Independent Task Force Sponsored by the Council onForeign Relations, Warren B. Rudman, Chair (2003). Esse relatório está disponível em www.cfr.org.

15 Vide Peter Irons, Justice Delayed: The Record of the Japanese American Internment Cases (WesleyanUniversity Press, 1989).

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de governo, da imprensa, de cidadãos ou de organizações internacionaisde direitos humanos; afirma que a segurança em tempos de guerra de-manda esse sigilo e essa imunidade da supervisão judicial e de outrostipos. Esse é o argumento apresentado por todos os estados policiais, etalvez seja a afirmação mais oportunista e indefensável do governo Bushaté agora. Isso porque, embora seja lhe certamente mais convenienteexecutar suas políticas de forma sigilosa, sem supervisão alguma de qual-quer outro departamento do próprio governo, a sugestão de que esse sigi-lo beneficia a segurança não tem base concreta. De qualquer forma, ossupostos benefícios de segurança parecem ser mínimos. Juízes, senadorese deputados também são autoridades norte-americanas, são dignos deconfiança, e desenvolveram procedimentos especiais para proteger a in-formação confidencial, os quais já foram utilizados com êxito em audiên-cias legislativas e em julgamentos por terrorismo, em tribunais comuns.16

O governo poderia argumentar que, em tempos de guerra, não deve cor-rer qualquer risco, mesmo que pequeno, mas quando as vidas e a liberda-de dos que o governo prendeu estão em jogo, não correr riscos, emborapequenos, significa não dar valor algum a essas vidas e a essa liberdade.Essa estratégia confere caráter absoluto à idéia de colocar a segurançados Estados Unidos em primeiro lugar, e é moralmente inaceitável.

Quando o governo tenta explicar por que a segurança exige as medidasque foram tomadas, a explicação confirma aquela estratégia inaceitável.Diz, por exemplo, que deve ter a permissão para monitorar conversas entresuspeitos de terrorismo e seus advogados, pois estes podem transmitir or-dens a outros terroristas que ainda estejam em liberdade. Todavia, tal riscoé remoto, pois os suspeitos de terrorismo que estejam na prisão há um tempoconsiderável provavelmente não terão informações úteis ou autoridade, e orisco poderia, de qualquer forma, ser minimizado submetendo os advogadosdos suspeitos de terrorismo a uma verificação de segurança. O governo dizque não pode divulgar os nomes de prisioneiros porque as organizaçõesterroristas podem não saber quais de seus membros foram presos e quaisainda estão disponíveis para cumprir tarefas. Mas parece bastante impro-vável que organizações terroristas eficazes não saibam, ou não possam de-terminar, quais de seus membros importantes o suficiente para fazer dife-rença desapareceram durante meses ou anos. O governo afirma que os

16 Vide United States v. Bin Laden, 92 F. Supp. 2d 225, SDNY 2000 (1998 US Embassy Bombings in Nairobi, Kenyaand Dar-Es-Salaam, Tanzania) e Estados Unidos v. Salameh, 261 F.3d 271, 2d 2001 (1993 World TradeCenter bombing).

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tribunais militares secretos constituem fóruns melhores para julgar suspei-tos de terrorismo do que aqueles independentes dos militares, pois segredosde segurança podem ser expostos em julgamentos comuns. Entretanto,como já mencionei, os tribunais desenvolveram métodos, tais como proce-dimentos fechados, para lidar com questões de segurança delicadas no pas-sado, e não há razão para que não possam proteger segredos oficiais dessanatureza em futuros julgamentos.

O governo diz que não pode permitir que Padilla fale com seus advo-gados porque essa pausa breve em seu interrogatório – que agora se es-tende por meses e se supõe que seja interrompido para fazer refeições,dormir e descansar – poderia afetar seu sucesso, que pode depender deum processo de coerção e desorientação do prisioneiro. É melhor, segun-do o governo, deixá-lo incomunicável indefinidamente. Os promotoresse recusam a deixar que os advogados de Moussaoui interroguem os líde-res da al-Qaeda capturados, pois isso também poderia interromper seuspróprios interrogatórios, que também se arrastam há meses.17 Melhor se-ria executá-lo sem o benefício de qualquer informação que pudesse isen-tá-lo, e que talvez viesse a ser fornecida por aqueles líderes. O governodiz que não pode fornecer provas concretas de que Hamdi foi realmentecapturado lutando pelo Taleban no campo de batalha, pois a preparaçãodos documentos desviaria tempo e dinheiro de outras atividades antiter-roristas. Melhor seria que ele definhasse por anos em uma prisão militar.

É significativo que a invasão liderada pelos norte-americanos no iníciodeste ano também tenha sido defendida colocando-se a segurança dos Es-tados Unidos em primeiro lugar. O governo afirmou que o desenvolvimen-to clandestino de armas de destruição em massa por parte do Iraque ame-açava nossa segurança e que descobrira ligações entre o governo de Sad-dam Hussein e al-Qaeda. Está claro, agora, que as provas para a primeiraafirmação eram inconsistentes e, para a segunda, inexistentes.18 No entan-

17 Vide Neil Lewis, “Bush Officials Lose Round In Prosecuting Terror Suspect”, The New York Times, 27 de junhode 2003.

18 Esta última afirmação foi particularmente importante para convencer o país de que a guerra era necessária:em fevereiro de 2003, a CNN informou que 76% dos norte-americanos consideravam que o Iraque estavaenvolvido nos ataques de 11 de setembro. Vide Bruce Morton, “Selling an Iraq-al-Qaeda Connection” (11de março de 2003), disponível em www.cnn.com/2003/WORLD/meast/03/11/Iraq.Qaeda.link. Até a datadeste artigo, segundo relatórios preliminares de uma equipe de inspeção, nenhuma arma proibida haviasido encontrada no Iraque, apesar das buscas intensas. O governo aparentemente abandonou suaalegação de uma ligação entre o Iraque e os ataques de 11 de setembro. Vide “Bush Reports No Evidenceof Hussein Tie to 9/11”, The New York Times, 18 de setembro de 2003.

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to, o governo diz, como expressou o subsecretário de defesa Paul Wolfowitz,que tinha direito de agir a partir de evidências “obscuras” ou especulati-vas, para proteger a segurança dos Estados Unidos, mesmo ao custo demilhares de vidas norte-americanas, britânicas e iraquianas.19

Ademais, o Departamento de Justiça reconheceu, quase que explici-tamente, que coloca a segurança do país absolutamente em primeiro lu-gar. Em resposta a acusações de excesso de zelo ao proteger a segurançaà custa da liberdade, o procurador-geral disse que o governo “não pededesculpas por buscar qualquer maneira jurídica possível para proteger apopulação norte-americana de outros ataques”.20 Essa declaração é par-ticularmente reveladora, dado que o governo afirma que a lei permitequase tudo em tempos de guerra, e que, de qualquer maneira, os juízestêm pouca autoridade para rever decisões governamentais.

3. Minha sugestão de que a estratégia do governo Bush é imoral podese prestar a uma objeção importante. É totalmente legítimo, em determi-nadas circunstâncias, que um governo imponha danos graves a algumaspessoas para reduzir o risco de danos a outras, mesmo quando esse risco éapenas estatístico ou especulativo. É exatamente isso o que fazemos,afinal de contas, quando utilizamos o direito penal para punir criminososcondenados, privando-os de liberdade com vistas a impedi-los, e a ou-tros, de cometer crimes. Causamo-lhes danos, sim, para tornar o resto denós mais seguros em termos estatísticos e secundários. Fazemos basica-mente a mesma coisa na guerra convencional: tentamos matar soldadosinimigos para proteger nossos próprios soldados e cidadãos de riscos quesão, para cada um deles, apenas especulativos. Sendo assim, não se podeafirmar, em síntese, que um governo não possa jamais prejudicar algumaspessoas para proteger outras de um dano menor ou mais especulativo. Sepodemos fazê-lo no combate ao crime comum e na guerra convencional,por que não no combate ao terrorismo?

Essa idéia parte do pressuposto, todavia, de que o princípio de huma-nidade compartilhada é simplesmente ignorado ou derrogado no processopenal ou na guerra convencional, mas isso não é verdadeiro. Pelo contrá-rio, todas as nações civilizadas elaboraram normas para regulamentar tanto

19 Vide Despacho da Agência Reuters, “Wolfowitz Says US Must Act Even on ‘Murky’ Data”, The New YorkTimes, 27 de julho 2003.

20 Vide “Report on US Antiterrorism Law Alleges Violations of Civil Rights”, The New York Times, 21 de julhode 2003.

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o processo penal em seus países quanto suas condutas em guerras, e essasnormas são dirigidas especificamente a reconhecer que um país não temdireito de levar em conta apenas os interesses dos cidadãos que tentaproteger, devendo demonstrar, também, preocupação e respeito pelas vi-das daqueles que prejudica ao tentar proteger esses cidadãos, mesmoquando isso implica uma proteção um pouco menos efetiva ou completa.

Nosso processo penal impõe danos apenas quando podem ser descritosprecisamente como punição. Não escolhemos algumas pessoas para colo-car na cadeia por acharmos que elas têm mais probabilidades do que ocidadão médio de cometer crimes graves, embora pudéssemos ter maissegurança se o fizéssemos. As pessoas que punimos escolheram a si pró-prias ao violar concretamente as leis que têm responsabilidade legal derespeitar. Além disso, nossos procedimentos insistem em salvaguardaspara garantir que aqueles a quem punimos sejam de fato culpados, isto é,que tenham se sujeitado a essa punição, pois qualquer risco de que umréu penal possa ser punido, mesmo sendo inocente, apenas para melhorara eficiência do processo de contenção, significaria tratar sua vida comodescartável. Essas são as salvaguardas que o governo está ignorando.

Na guerra, também costumamos causar danos terríveis a algumas pessoas– particularmente os soldados do país inimigo – com vistas a proteger cadaum de nossos soldados ou cidadãos de danos menores ou mais especulativos.Não podemos invocar o modelo penal para justificar essa prática porque, emguerras comuns, devemos matar soldados que não estão sujeitos à nossa au-toridade legal, e que não violaram qualquer princípio do direito internacio-nal. Sendo assim, devemos lançar mão de um conjunto distinto de argumen-tos para demonstrar por que nossas operações militares não violam o princípioda humanidade compartilhada. Na guerra, enfrentamos exércitos concen-trados que nos atacam ou se defendem de nós na forma de uma única forçaunificada. Se seguirmos o princípio comum da legítima defesa – matandosoldados específicos quando essa é a única forma de evitar a morte certa oudano grave para nossos próprios soldados – perderemos a guerra. Devemoster como objetivo incapacitar quaisquer forças que possamos atingir.

Entretanto, mais uma vez, as leis da guerra nos proíbem de colocarnossa segurança absolutamente em primeiro lugar. Podemos não atacarcivis, mesmo que isso pudesse muito bem salvar as vidas de alguns denossos soldados e acabar com a guerra mais cedo. Os bombardeios deHiroshima e Nagasaki, olhando agora, parecem monstruosos e, além dis-so, estariam fora de cogitação atualmente, em função de nossos compro-

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missos internacionais. Mais ainda, a Convenção de Genebra proíbe quese tratem prisioneiros de guerra com base no princípio da segurança emprimeiro lugar. Eles não devem ser coagidos, mesmo por meios aquém datortura, a responder a quaisquer perguntas para além daquelas necessári-as à sua identificação, ainda que o interrogatório coercitivo pudesse pro-porcionar informações militares valiosas. Seu status igual de seres huma-nos deve ser reconhecido, ao se lhes fornecerem acomodação e atendi-mento médico do mesmo nível que for dado aos soldados que os guardam,muito embora isso também seja oneroso.

Essas limitações do procedimento penal justo e essas normas humanaspara a guerra são importantes não apenas quando a constituição de umpaís ou suas obrigações assumidas em tratados as tornam obrigatórias, esim porque uma comunidade bastante grande de nações considera queelas, ou outras muito semelhantes, são necessárias para impedir que oprocesso penal ou a guerra se transformem em um sacrifício bruto de al-gumas pessoas em nome de outras, o qual devastaria, em lugar de respei-tar, a idéia de humanidade compartilhada.

No entanto, a campanha dos Estados Unidos contra o terror organiza-do internacional não pode ser levada a cabo totalmente dentro das limi-tações do modelo penal ou do modelo de guerra que descrevi. Na verda-de, devemos perseguir terroristas por meio de qualquer ação policial queseja praticável, não apenas em nosso próprio país, mas também através depolícias internacionais e redes de informação em colaboração com gover-nos estrangeiros dispostos. Devemos persuadir qualquer nação onde seencontrem terroristas a prendê-los e a julgá-los, ou a extraditá-los paranosso país21 ou para ser julgados por um tribunal internacional. Se fosseviável perseguir e processar terroristas apenas dessa maneira, o modelopenal seria totalmente adequado.

Entretanto, isso não é viável. Sociedades terroristas estão espalhadaspelo mundo e contam com lealdades e recursos que vão muito além, atémesmo, dos de organizações criminosas legendárias, como a máfia. Elasnão conspiram para cometer atos de violência visando lucro pessoal, comofazem os cartéis de drogas, mas a serviço de uma ideologia compartilhadapor muitas pessoas, muitas vezes incluindo membros do governo dos paí-ses onde operam. É extremamente difícil distinguir terroristas individu-

21 O fato de os sistemas jurídicos de muitas nações e o da União Européia proibirem a extradição para países queimponham a pena de morte constitui uma dificuldade.

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ais de um substrato de pessoas e forças de apoio. Assim sendo, é tentadorconsiderar grupos terroristas poderosos como a al-Qaeda como quase-nações ou poderes políticos, e tratar nossas ações contra eles mais comouma guerra do que como uma ação policial.

Todavia, o modelo da guerra também não é totalmente apropriado.22

A guerra é, historicamente, uma questão de status, e não de meios: en-tra-se em um estado de guerra convencional em uma data, como 8 dedezembro de 1941, e se sai dele em outra, como 14 de agosto de 1945.Travam-se guerras convencionais contra países que têm fronteiras e líde-res com os quais se podem negociar armistícios e rendições, e não contraorganizações vagas com hierarquias secretas e indistintas, cujos soldadose oficiais não usam uniformes. Podemos conquistar Cabul ou Bagdá, masnão existe um lugar chamado Terror, onde morem os terroristas.

O governo Bush parte do pressuposto de que, se nenhum dos sistemastradicionais para enfrentar o crime ou a guerra serve completamente àcampanha dos Estados Unidos contra o terrorismo, vale tudo: podemos bus-car a segurança do país em primeiro lugar, sem limitações. Mas esse pressu-posto é injustificado e inescrupuloso. O fato de que o terrorismo apresentanovos desafios e riscos não significa que os princípios morais e os direitoshumanos básicos que o direito penal e o direito de guerra tentam protegertenham sido revogados ou se tornaram irrelevantes. Em lugar disso, deve-mos questionar qual esquema – qual terceiro modelo – é adequado pararespeitar aqueles princípios ao mesmo tempo em que nos defende de formaeficaz. Tal projeto, de importância imensa, deveria agora envolver atoresinternacionais, especialistas da polícia, analistas militares, historiadores,políticos e filósofos de diferentes tradições e culturas. Talvez a reflexão, odebate e a experiência gerem algum consenso sobre um novo sistema jurí-dico para o terror, que possa ser codificado em um novo conjunto de con-venções internacionais. Enquanto isso, devemos fazer o melhor que puder-mos, não abandonando todas as limitações dos dois modelos tradicionais,tentando captar os princípios a que essas limitações servem em um novomodelo que incorpore aspectos de cada um dos outros.

Esse novo modelo pode exigir que um país persiga as organizações terroris-tas que causaram dano a seu povo primeiramente por meio de ação policial,

22 Para uma argumentação que defende ser contraproducente designar nossa campanha contra o terrorismocomo Guerra, vide Philip B. Heymann, Terrorism, Freedom, and Security: Winning Without War (MIT Press,2003).

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por conta própria ou em conjunto com unidades policiais internacionais ouestrangeiras, a menos que essa ação policial seja, ou se torne, inadequada.Uma organização terrorista pode controlar seu próprio território, de maneiraque nenhuma ação policial possa alcançá-lo, por exemplo, ou um governolocal pode não estar disposto ou não ter condições de atacar a organização deforma eficaz. Nesse caso, o país poderia organizar uma campanha militarcontra a organização, mesmo que tivesse que invadir um outro país, como oAfeganistão, cujo regime a esteja protegendo. Contudo, uma vez que façaprisioneiros nessa campanha, capturados em um campo de batalha estrangei-ro ou em seu próprio território, ou em qualquer outro lugar, o país deveráseguir um procedimento diferente, escolhendo, caso a caso, qual dos doismodelos descritos deseja adotar. Em um prazo razoável após a captura –digamos, dois meses – deverá decidir se o detento será tratado como prisio-neiro de guerra ou como suspeito de crime (a decisão poderá ser revisadaposteriormente, caso novas provas assim o exijam). Essa decisão deve sertomada segundo uma leitura defensiva das normas da Convenção de Gene-bra, que foram escritas tendo em mente guerras mais convencionais, mas noespírito dos princípios que embasam essas normas. Como as organizaçõesterroristas não têm documentos de identidade ou uniformes, por exemplo,não pode ser um fator decisivo na atribuição da condição de criminoso a umdetento, em vez de prisioneiro de guerra, o fato de que ele não use uniforme.Se o governo decidir tratar dessa forma qualquer prisioneiro capturado embatalha, sua decisão deve ser avaliada por um tribunal “de justiça”, comoexigem as disposições da Convenção de Genebra, as quais foram aceitas porquase todos os países. Se decidir tratar a qualquer um que capture, nãoapenas em um campo de batalha, mas em ações policiais comuns, como prisi-oneiro de guerra em lugar de criminoso, deverá permitir que essa pessoaquestione a classificação, sempre que for viável, por meio de um requerimen-to de habeas corpus em um tribunal federal.23

Os detidos que o governo designar como prisioneiros de guerra devem sertratados de acordo com as normas humanitárias da Convenção citada. Porexemplo, devem receber acomodação e atendimento médico igual ao dadoaos soldados que os guardam, e não ser sujeitados a qualquer forma de inter-rogatório para além do permitido pela Convenção. Ela permite que um paísjulgue um prisioneiro de guerra por crimes de guerra, tais como o assassinatovoluntário de civis, o que, presume-se, incluiria os ataques terroristas nos

23 Vide Schlesinger v. Councilman, 420 U.S. 738 (1975).

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Estados Unidos. Todavia, se qualquer prisioneiro de guerra for acusado des-se tipo de crime, a Convenção exige que ele seja julgado por um tribunalmilitar cujas normas lhe dêem todas as proteções procedimentais que os mi-litares norte-americanos têm quando vão à Corte Marcial (as normas dascortes marciais norte-americanas oferecem muito mais proteção aos acusa-dos do que os tribunais militares nos quais o governo Bush propõe que sejulguem os estrangeiros. As primeiras restringem em muito a admissibilidadecomo prova de testemunhos indiretos e confissões involuntárias, por exem-plo, e permitem apelar a um tribunal de recursos que inclui juízes civis, edepois à Corte Suprema). No entanto, a norma da Convenção segundo aqual prisioneiros de guerra podem ser detidos até o final do estado de guerranão pode ser aplicada de forma plausível a essas circunstâncias, pois parte doprincípio de que as guerras começam e terminam com atos formais. A “guer-ra” dos Estados Unidos contra o terror não pode ter um final formal, podendodurar uma geração. Sendo assim, o Congresso deve estipular um períodomáximo – digamos, três anos – no qual qualquer pessoa designada prisioneirode guerra na campanha contra o terrorismo poderá ficar presa, ainda que oCongresso tenha poder, desde que o terrorismo internacional organizado per-maneça sendo uma ameaça grave, para ampliar o período, seja em casosparticulares, seja em ampliações abrangentes de um período máximo estipu-lado, a partir de uma necessidade demonstrada e após o devido debate.

As pessoas a quem o governo designar como suspeitos de crime nãodevem ser tratadas como prisioneiros de guerra, mas seu tratamento deveser orientado pelos procedimentos e proteções comuns de nossa práticapenal, mais uma vez, modificados segundo as necessidades, para se ade-quar a circunstâncias especiais. Os suspeitos devem ser informados dasacusações contra si e ter acesso a advogados e aos benefícios de um proces-so judicial. Os tribunais federais comuns, os quais, já mencionei, têm po-der de proteger informações confidenciais, deveriam bastar, mas o Congres-so poderia, caso considerasse necessário, instalar tribunais especializadospara esses julgamentos, exercendo seu poder constitucional de criar tribu-nais e definir sua jurisdição. Quaisquer tribunais especializados devem,contudo, respeitar a separação fundamental entre o poder judiciário e oexecutivo; suas decisões devem estar sujeitas a revisão por tribunais supe-riores, independentes dos militares e do executivo. Se o governo afirmarque a segurança monitorar as conversas entre um determinado suspeito eseu advogado, essa afirmação deverá ser analisada e aprovada por um juiz.

Os casos específicos que mencionei anteriormente podem ser utilizadospara ilustrar esse modelo. O governo pode declarar Moussaoui como prisi-

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oneiro de guerra, citando sua admissão de que pertence à al-Qaeda. Aseguir, pode detê-lo, sob as condições da Convenção de Genebra, emboraele tivesse que ser libertado no devido tempo, ou julgado por crimes deguerra sob normas semelhantes às usadas nas cortes marciais norte-ameri-canas, que supostamente permitiriam a seus advogados interrogar qual-quer testemunha que seja essencial à sua defesa. Ou o governo poderiacontinuar a declará-lo como criminoso e o sujeitar ao processo e à proteçãodo direito penal conhecido, o que também implicaria que lhe fosse permi-tido interrogar testemunhas essenciais. O governo poderia continuar serecusando a permitir que seus advogados tivessem acesso aos líderes da al-Qaeda capturados, isto é, tão-somente se o tratasse como prisioneiro deguerra comum e não tentasse julgá-lo por qualquer delito que tornasse oacesso a esses líderes necessário à sua defesa. É razoável pedir que nossogoverno faça essa escolha. Os promotores criminais muitas vezes têm quedecidir se desistem de processar um determinado suspeito quando isso podecomprometer investigações em andamento, e Moussaoui poderia ser detidocomo prisioneiro de guerra, de qualquer forma.

O governo seria forçado a fazer escolhas semelhantes com relação aosoutros detentos que mencionei. Talvez receie não ter provas suficientespara condenar Padilla de qualquer crime em um tribunal penal comum.Nesse caso, deverá libertá-lo, a menos que possa demonstrar que ele temcontatos com a al-Qaeda suficientes para ser classificado como prisionei-ro de guerra, apesar de ele ter sido preso em Chicago, e não em um campode batalha estrangeiro. Se puder, deve detê-lo, não incomunicável emconfinamento solitário em uma prisão militar, mas em circunstâncias con-dizentes com a condição de prisioneiro de guerra.

O governo também deverá fazer escolhas com relação a Hamdi. É ver-dade que não se pode pedir a oficiais militares que provem no tribunal quetodos aqueles que capturarem no campo de batalha são realmente soldadosinimigos (não seria fora da realidade, contudo, abrir uma exceção paraaqueles cuja presença no campo de batalha pode ser considerada surpreen-dente, como cidadãos norte-americanos). Todavia, mesmo que aceitemoso princípio de que os tribunais não podem inspecionar a captura de prisio-neiros em campos de batalha, não se pode concluir que o governo podeprender indefinidamente qualquer pessoa capturada, sem acusações, emantê-la incomunicável. Se o governo processar Hamdi como criminoso,deve lhe dar acesso a advogado e às proteções normais do processo penal, eapresentar provas consistentes contra ele. Caso contrário, só poderá detê-lo na condição diferenciada, de prisioneiro de guerra.

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24 Esse novo regime de princípios pode estar aberto a exceções em situações verdadeiramente extraordinárias,por exemplo, em casos nos quais os militares norte-americanos tenham alguma razão especial e urgentepara realizar uma investigação coercitiva de um prisioneiro a quem não possam, de boa fé, acusar de umcrime e tratar como criminoso. Contudo, nesses casos, a ameaça que exige esse tratamento – o exemploproverbial da bomba prestes a explodir e do prisioneiro que sabe onde ela está – deverá ser grave e iminenteo suficiente para que a coerção possa ser justificada sem apelar para qualquer princípio que justificasseimpor danos sérios para obter benefícios secundários. Nesse caso, devemos aceitar que estamos violandoos princípios da justiça em função da necessidade, e tentar limitar a injustiça de todas as formas possíveis.Vide Dworkin, “The Threat to Patriotism”.

25 Meus agradecimentos a James Cockayne, Anthony Dworkin, Philip B. Heymann, Gayle M. Horn e StephenSchulhofer pelos comentários redigidos sobre uma primeira versão deste artigo e outros auxílios.

ii NE: Em 28 de junho de 2004, a Suprema Corte dos Estados Unidos, apreciando a situação jurídica de YasserEsam Hamdi e José Padilla, bem como os direitos das centenas de detidos na base naval dos EUA emGuantánamo (Cuba), entendeu, por seis votos a três que: a) Yasser Hamdi tinha direito de acesso aadvogado, mesmo na condição de “combatente inimigo”; b) José Padilla, apresentado em jurisdição errada,deveria ser apresentado na Carolina do Sul; c) os mais de 600 detidos na base de Guantánamo poderãorecorrer aos tribunais americanos para questionar sua situação legal.

Os prisioneiros de Guantánamo também estão sendo mantidos presosindefinida e sigilosamente, sem acesso a advogados, em circunstânciasque seriam intoleráveis mesmo se fossem criminosos condenados. Masnão foram acusados de crimes nem tiveram o benefício da orientação oudo processo jurídicos. Se forem prisioneiros de guerra, devem ser tratadoscomo tais; se forem suspeitos de crime, assim devem ser tratados. O go-verno deve escolher, mais uma vez, não porque dele se exige que o faça,segundo os tratados, mas porque não fazê-lo significa tratar as vidas dosdetentos com um desdém inaceitável.24

Os direitos não teriam valor algum – a idéia de direito seria incompre-ensível – a menos que os respeitar signifique correr algum risco. Podemose devemos tentar limitar esses riscos, mas alguns deles permanecerão.Talvez estivéssemos marginalmente mais seguros se decidíssemos ignoraros direitos humanos de quaisquer outras pessoas. Isso também se aplica àpolítica nacional. Corremos um risco um pouco maior de morte violentanas mãos de assassinos todos os dias ao insistir em direitos para acusadosde crimes, para nos mantermos fiéis a nossa própria humanidade. Pelamesma razão, também devemos correr um risco um pouco maior de terro-rismo. É claro que nossa vigilância deve ser aprimorada, mas tambémdevemos disciplinar nosso medo. O governo diz que apenas nossa própriasegurança importa, uma visão lastimável, pois somos mais bravos do queisso, e temos mais respeito próprio.25 i i

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La tortura judicial en el antiguorégimen. Orden procesal y cultura

Legal Torture in the AncientRegime. Legal Order and Culture

ALEJANDRO AGÜERO

Doctor en Derecho. Profesor de Historia del Derecho y de las Instituciones en la Universidad Autónoma deMadrid. Miembro de los proyectos de investigación HIJUR e HICOES.

RESUMEN

El presente artículo propone una mirada al pasado jurídico de occidente paracomprender las condiciones bajo las que durante muchos siglos la tortura ocupóun lugar en el discurso y en la práctica procesal como instancia legítima dentrode la actividad de administración de justicia. Para ello se indagan las claves deun mundo estructurado bajo un paradigma radicalmente ajeno al del presente.Por ello no sólo se atenderá a las razones internas del discurso jurídico delantiguo régimen, sino también a aquellos aspectos que más claramente nosmuestran la distancia que separa culturalmente aquel contexto del nuestro.Con estos elementos se propone una reflexión sobre el desarrollo de la praxisjudicial de la tortura hasta el momento previo a su abolición formal, es decir,hasta su salida del discurso, para culminar reconsiderando algunos enfoquesdesde los que se suele narrar a la historia de este tipo prácticas procesales.Palabras claves: Tortura judicial, Procedimiento penal, Prueba judicial, DerechoComún.

Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.187-221

Este trabajo se enmarca en el proyecto HICOES III (SEJ 2004-06696) dirigido por el profesor Bartolomé Claveroa cuyo equipo de investigación (subgrupo Universidad de Madrid) pertence el autor”.

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ABSTRACT

The article proposes a look at the western legal past in order to understand theconditions under which torture has been present for many centuries in legalpractice as a legitimate jurisdiction within the activity of justice administration.For this purpose, the keys of a world structured under a paradigm radicallystrange to the present one were investigated. Therefore, not only the internalreasons of the ancient regime legal discourse will be considered, but also thoseaspects which more clearly demonstrate the distance that culturally separatesthat context from ours. With these elements, a reflection is proposed on thedevelopment of torture legal praxis up to the moment prior to its formal abolition,that is, till its withdrawal from the discourse, and, finally, a reconsideration ismade on some foci from which the history of this kind of judiciary practices isusually narrated.Key words: Legal torture, Criminal proceeding, Judicial evidence, Common law.

I. INTRODUCCIÓN

Una de las instituciones del pasado que más radicalmente se oponen ala sensibilidad jurídica del presente es la de la tortura judicial. Los valo-res y principios que orientan el discurso jurídico político en occidente nodejan resquicio alguno para justificar el uso de la tortura como parte deun proceso de administración de justicia. Admitir su justificaciónsignificaría poner en riesgo las creencias fundamentales desde las cualesse concibe la sociedad actual. Significaría una fractura severa en losprincipios de autonomía de la voluntad y de incolumidad de la integridadfísica de los individuos1 . Lamentablemente, el hecho de que no tengalugar posible en el discurso moral no implica necesariamente que la tor-tura (no ya judicial) haya sido erradicada. Permanece, en ciertos casoscomo consecuencia de excesos no debidamente prevenidos, pero en muchosotros con la connivencia de las autoridades políticas, ya sea por su apoyoa fuerzas de tarea clandestinas ya por la conservación de una legislación

1 “La prohibición de los malos tratos a las personas privadas de libertad tiene un carácter absoluto”. “Losfundamentos sobre los cuales reposa todo comportamiento civilizado hacen generar repulsión hacia losmalos tratos, incluso cuando revisten las formas más moderadas”. Estos son dos de los principios que rigenla actuación del Comité para la Prevención de la Tortura creado para monitorear el cumplimiento de laConvención Europea para la prevención de la tortura y de las penas y tratos inhumanos o degradantes de1987. v. CRUZ ROS, J. El Comité para la Prevención de la Tortura. Fijación de estándares para mejorar laprotección de las personas privadas de libertad, Valencia 2001, pp. 16-17.

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procesal que permite el encuentro oculto, incomunicado, entre detenidoe investigador policial y que admite judicialmente la información obtenidaen ese momento ciego en el que un hombre se encuentra a merced detoda una organización de poder. En muchos casos unas simples medidaslegislativas bastarían para evitar estas circunstancias o para invalidarcualquier información obtenida en situaciones de incomunicación, talcomo lo recomiendan sistemáticamente las organizaciones de derechoshumanos.

Curiosamente, esa adherencia de la tortura a las prácticas represivasen occidente se opone diametralmente a su consideración en el discursoque estructura y da sentido, desde las grandes revoluciones liberales, alas instituciones jurídico políticas. Cuando en el siglo XVIII elpensamiento ilustrado cargaba sus tintas contra la práctica del tormento,hasta entonces formalmente vigente en casi todos los tribunales de laEuropa continental, lo hacía desde un ideal de superación progresiva dela historia y llamaba a las potencias europeas a seguir los pasos de la “muycivilizada” nación inglesa que conservaba una tradición de rechazo a latortura.2 En aquel contexto iluminista la barbarie del pasado y la“civilización” de un futuro alumbrado por la razón humana podíanentonces ponerse en juego en el trance de aceptación o rechazo a lapráctica del tormento judicial. Desde entonces la tortura fuedesapareciendo, y desapareció, de los registros y de las formas considera-das legítimas, para recluirse en las acciones de poder clandestinas o enlos entresijos de la investigación policial no controlada. El cambio detodo un mundo de significados está por detrás de este paso a laclandestinidad.

No podemos responder aquí a la cuestión que tal vez resulta másacuciante para la protección actual de los derechos, es decir, la desaber por qué estando cerradamente deslegitimada su práctica ypudiendo tomarse medidas para prevenirla, se conserva. Lo que sí po-demos hacer desde la historia jurídica, es tratar de comprender cuálesson las condiciones bajo las que durante muchos siglos estuvo presen-

2 Cfr. MONTESQUIEU, Del Espíritu de las Leyes, Trad. Mercedes Blázquez y Pedro de Vega, Barcelona 1993,Cap. XVII, p. 75. El desarrollo del sistema de juicio por jurado hacia el siglo XII-XIII, apartándose de latradición del derecho común continental, habría minimizado el recurso al procedimiento inquisitivo y,consecuentemente, a la tortura. Pese a ello, no se puede decir que la tortura fuera completamente ajenaa la historia inglesa. Cfr. HEATH, J. Torture and English Law. An Administrative and Legal History from thePlantagenets to the Stuarts, Westport-Londres 1982.

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te como instancia legítima dentro de un proceso judicial. Para elloproponemos mirar al pasado intentando encontrar las claves de esemundo de significados distintos. Y las encontraremos por un lado enlas razones internas del discurso jurídico del antiguo régimen (II),pero también en aquellos aspectos que más claramente nos muestranla distancia que separa culturalmente aquel contexto del nuestro (III).Con estos elementos podremos reflexionar sobre el desarrollo de supraxis hasta el momento previo a su abolición formal (IV), es decir,hasta su salida del discurso, para culminar con una breve reflexiónsobre los enfoques desde los que miramos a la historia de estas prácticasprocesales (V).

II. ORDEN PROCESAL Y TORTURA:LA DISCIPLINA DE LA CUESTIÓN EN ELDERECHO COMÚN.

La reflexión teórica y la puesta en práctica de la tortura en el proce-so judicial coincide con una época en la que, suele decir la historiogra-fía procesal, los medios racionales de prueba (y en general de procedimi-ento) reemplazaron a los mágicos y supersticiosos ritos ordálicos. Es de-cir, cuando en la llamada baja edad media se difundió por las corteseuropeas la cultura del ius commune y, con ella, los esquemas procesalesdel derecho romano canónico.3 En Castilla, por ejemplo, bajo el influjode este movimiento cultural, fueron precisamente los textos de la lla-mada “recepción”, los que articularon el orden procesal del ius commu-

3 El sistema de prueba romano canónico se presenta como “rationnel sinon rationaliste puisqu’il donne lapréférence à la raison sur la révélation (fait d’autant plus remarquable que des hommes d’Eglise ontpris une part essentielle à son élaboration) et à la sensation sur la raison elle-même « quia nihil est inintellectu quod non prius fuerit in sensu » : d’où la place qu’il donne au notoire et, de l’autre côté, le rejetdes moyens irrationnels comme les ordalies”. LÉVY, J. P. “Le problème de la preuve dans les droitssavants du Moyen Age”, en RECUEILS DE LA SOCIETE JEAN BODIN, XII, Bruselas 1965, pp.137-167, p. 166. “El procedimiento del derecho canónico del Siglo XII, más moderno, más racional ymás sistematizado, ofrecía un notable contraste con las instituciones más primitivas, formalistas yflexibles que habían prevalecido en los procedimientos judiciales germánicos en siglos anteriores. Dehecho, los principios de razón y de conciencia fueron proclamados por los juristas eclesiásticos comoarmas contra el formalismo y la magia del derecho germánico. El ejemplo más notable de esto fue eldecreto del Cuarto Concilio Lateranense de 1215, que prohibió a los sacerdotes participar en ordalías.”.BERMAN, H. J. La formación de la tradición jurídica de occidente, trad. M. Utrilla de Neira, México 1996,p. 264.

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ne.4 Desarrollado bajo el ideal de asegurar que la decisión fuese consecu-encia de una certeza indubitable sobre los hechos en litigio, el rigor formal(de ahí su complejidad técnica) se convertía en el antídoto para que lafrágil conciencia humana, susceptible de engaño y de pasiones, pero eleva-da a la sacra condición de juez, pudiera llegar a aquel estado de conven-cimiento. A ello obedecían, no sólo un régimen estricto de nulidad porvicios in procedendo, un flexible sistema de recursos y unas amplias posibi-lidades recusatorias, sino también y fundamentalmente, una esquemati-zación cualificatoria y tasada de los elementos probatorios, graduados enfunción de un valor objetivo de convicción asignado apriorísticamente.De este modo se esperaba que el estado de certeza fuera un exclusivoproducto de las pruebas formalizadas en el proceso, sin contaminación dela sospechosa conciencia del juzgador5 . Por ello también, la rigurosa cons-tancia escrita de todo lo actuado, hasta los más mínimos detalles, se con-vertía en el elemento esencial que fijaba el peculiar universo de cadaproceso: “quod no est in actis, non est in scriptis, non est in hoc mundo”.6

4 Para esto y lo que sigue PÉREZ MARTÍN, A. “El ordo iudiciarius ‘ad summariam notitiam’ y sus derivados” enHistoria, Instituciones, Documentos [H.I.D.], 8, 1981, pp. 195-266, ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal enCastilla – Siglo XIII-XVIII, Salamanca 1982. pssim, esp. pp. 13-63; VALLEJO, J. “La regulación del proceso en elFuero Real: desarrollo, precedentes y problemas” en A.H.D.E., LV, 1985, pp.495-695; BERMEJO CASTRILLO,M.A. “Evolución del proceso penal en el ordenamiento español. El ejemplo de la prueba” en SCHOLZ, J.M –HERZOG, T. (eds.) Observation and Comunication. The construction of realities in the Hispanic World, (Ius Communen. 101), Frankfurt am Main 1997, pp. 563-605. Un panorama sobre la historiografía procesal española, enVALLEJO, J. “Historia del proceso, procedimiento de la historia. Diez años de historiografía procesal en España”en CLAVERO, B., GROSSI, P., Y TOMÁS Y VALIENTE, F. (coords.), Hispania, entre derechos propios derechosnacionales: atti dell’incontro di studio Firenze-Lucca 25-26 de mayo 1989, Milán 1990, t. II, pp. 885-913, y tiene interés,del mismo autor su “Recensión a M.P. Alonso, El proceso penal, en A.H.D.E, LV, 1985, pp. 818-820; ALONSOROMERO, M. P. “El proceso penal en la Castilla moderna” en Estudis, 22, 1996, pp. 199-215.

5 SALVIOLI, G. “Storia della procedura civile e criminale”, en DEL GIUDICE, P. (dir) Storia del diritto italiano,v. III, 2 t, Florencia 1696, esp. t. 2, pp. 465 y ss; LÉVY, J. P. “L’évolution de la preuve, des origines a nosjours”; ID., “Le problème de la preuve dans les droits savants du Moyen Age”, ambos en RECUEILS DELA SOCIETE JEAN BODIN, XII, Bruselas 1965, pp. 9-70 y pp. 137-167, respectivamente; ALONSOROMERO, M. P. El proceso penal...pp. 222 y ss.

6 El aforismo aparece recogido en una de las más divulgadas obras sobre el procedimiento de la literatura del iuscommune, DURANTE, G. Speculum iudiciale, Lugduni 1539, cit. por ALONSO ROMERO, M. P.. “El solemneorden de los juicios. La lentitud como problema en la historia del proceso en Castilla”, en Derecho y proceso.Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, n. 5, 2001, pp. 23-53, p. 28. “Lasinstrucciones impartidas a los inquisidores romanos del siglo XVII, por ejemplo, les recomendaban que seaseguraran de que el notario, que debía estar presente en todos los interrogatorios, transcribiera «no sólo todaslas respuestas de los acusados, sino también cualquier otra observación y comentario que pudiera hacer y todapalabra que pronunciaran bajo tortura, incluso todos los suspiros, todos los gritos, todos los lamentos y sollozos»”BURKE, P. Hablar y Callar. Funciones sociales del lenguaje a través de la historia, trad. de Alberto L. Bixio, Barcelona1996, p. 33. La cita dentro de la cita corresponde a MASINI, E. Sacro Arsenale, Bolonia, 1665, p. 157. En estesentido se ha sostenido que en el origen del procedimiento canónico el interés por la constancia escrita era tanexagerada que “claramente revela un elemento de magia”, BERMAN, H. La formación.... p. 265.

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Ciertamente que este esfuerzo cultural no se articulaba en torno a lanecesidad de proteger unos derechos individuales por entonces inimagi-nables, sino que se orientaba en función del respeto a un orden objetivocustodiado por teólogos y juristas, adjudicado a una razón divina y natu-ral, y asumido como orden de justicia – en sentido absoluto – tanto paracuestiones formales como sustanciales. Si había un orden procesal eraporque así debía hacerse justicia. Aquella noción ontológica de justiciase sobreponía a cualquier disposición positiva y hacía impensable unavinculación de los jueces a la ley humana por mera razón de obedienciapolítica. Entre los arcanos de aquel orden explicitado trabajosamente enla literatura de la jurisprudencia civil y canónica se debían encontrar lasformas y las razones para hacer justicia. Razones que la no obligatoriedadde fundamentar las sentencias permitía conservar en secreto7 . En conse-cuencia, a falta de un control de legalidad (de lex positiva), el respeto alas formalidades procesales junto con el riguroso estatuto personal de losjueces se presentaban como los mecanismos de garantía de justicia, en unorden social en el que el poder político fluía por medio de dispositivosesencialmente jurisdiccionales8 .

Del mismo modo que ocurría con los principios estructurales de lasociedad de antiguo régimen, los elementos esenciales del orden pro-cesal se consideraban fundados en el derecho divino. No faltaban lasreferencias a los textos sagrados para sostener la necesidad de seguirun orden formal previo al castigo. La imagen de dios que aún sabién-dolo todo inquiere igualmente a Adán sobre su pecado, era el puntode partida para considerar el origen divino de la citación y de losjuicios.9 Por su asignación a ese orden natural, una mínima formali-

7 La regla general del Ius commune sostenía que, “Iudex non tenetur exprimere causam in sententia” y ello se fundabaen “propter praesumptionem iuris quae est pro iudice”. La regla de no motivar se relacionaba así directamentecon la praesumptio iuris que dotaba al juez de una especial auctoritas iudiciaria que podía ser puesta en dudasi, con motivo de dar un fundamento, se insertaba en la sentencia una causa falsa. MASSETTO, G. P.“Sentenza (diritto intermedio)”, en Enciclopedia del Diritto, XLI (1989), pp. 1200-1245, p. 1224..

8 Para dichas garantías de justicia, en la experiencia castellana, véase GARRIGA, C. y LORENTE, M. “El juezy la ley: la motivación de las sentencias (Castilla, 1489-España, 1855) en Anuario de la Facultad de Derechode la Universidad Autónoma de Madrid, 1 (1997), p. 97-142. Sobre el carácter esencialmente jurisdiccionalde los mecanismos de poder político en el antiguo régimen, COSTA, P. Iurisdictio. Semantica del potere politicomedioevale (1100-1433), Milano 1969; HESPANHA, A. M. “Representación dogmática y proyectos depoder” en ID., La gracia del derecho. Economía de la cultura en la Edad Moderna, Madrid 1993, pp. 61-84.VALLEJO, J. Ruda equidad, ley consumada. Concepción de la potestad normativa (1250-1350), Madrid 1992.

9 Estas referencias en la doctrina pueden verse en, ALONSO ROMERO, M. P. “El solemne orden de losjuicios…p. 42 y en ALESSI PALAZZOLO, G. Prova Legale e Pena - La crisi del sistema tra evo medio emoderno, Napoli 1979, p. 370.

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dad y justificación previas a cualquier acto represivo resultaba inclu-so oponible legítimamente al propio poder del rey. Como decía un ju-rista castellano del XVI, “quando el Rey por algun enojo, sevicia, o pas-sion, sin orden, è inadvertidamente mandasse quitar la vida à alguno, queentonces no se ha de obedecer a la tal provisión, ò cédula...”.10 Pero elorden del proceso funcionaba como garantía de justicia en la medidaen que fuesen respetados sus elementos esenciales que se hacían ope-rativos en calidad de iura naturalia. Extensivos a toda clase de proce-sos, esos elementos comprendían el derecho de ser citado y oído, el deconocer los nombres de los testigos de cargo, así como los postuladosque afirmaban el derecho a la recusación, y las interdicciones de serjuez en causa propia y de condenar dos veces al mismo reo por elmismo delito.11 A través del juego de estos principios la jurispruden-cia establecía las condiciones procesales requeridas para hacer justi-cia y, entre ellas, las referidas a la prueba y la certeza necesaria paracondenar en el fuero criminal.

Los textos jurídicos explicaban que las pruebas para llegar a una con-dena justa debían ser “leales, e verdaderas, e sin ninguna sospecha”, al tiem-po que pudieran considerarse “ciertas, claras como la luz, de manera, quenon pueda sobre ellas venir dubda ninguna”.12 Con este tipo de afirmacionesse pretendía excluir condenas basadas en meras sospechas o pruebas indi-rectas. La exclusión de los indicios como prueba suficiente para la conde-na constituía una regla axiomática en el procedimiento penal del ius com-mune.13 Por contrapartida, la confesión era estimada como “probatio luceclarior”14 , y representaba así el extremo opuesto a la insuficiencia de los

10 CASTILLO DE BOVADILLA, J. Política para corregidores y señores de vasallos, en tiempo de paz, y de guerra(1597), Amberes 1704, ed. facsimilar Madrid 1978, Lib.II, Cap.X, n.76 y en general, ns.69-78. Y no eraprecisamente un jurista del que se pudiera dudar de su devoción al príncipe y de su clara tendenciaregalista. Cfr. últimamente TRUMAN, R. W. Spanish treatises on government, society and religion in thetime of Philip II. The ‘De Regimine Principum’ and associated traditions, Leiden, Boston, Köln, 1999, pp. 164y ss.

11 GORLA, G. “«Iura naturalia sun immutabilia». I limiti al potere del «Principe» nella dottrina e nellagiurisprudenza forense fra i secoli XVI e XVIII” en Diritto e potere nella teoria europea - Quarto CongresoInternazionale della Societá Italiana de Storia del Diritto, v. 2, Firenze 1982, pp. 629-684, p.639-640.

12 Las Siete Partidas glosadas por el Licenciado Gregorio López (1555) ed. facs., Madrid 1985, P. 7, 1, 26. [Se cita elnúmero de partida, título y ley respectivamente].

13 “...dicit Gandinus…q omnes sapientes, quos Bononiae & alivi, dixerunt: & ita vidit consuetudine observari, q proptertalia indicia, vel similia, non possit quis diffinitivè in personam damnari…” LÓPEZ, Gregorio, glosa “Dubdaninguna” a P.7, 1, 26.

14 Ibíd., glosa “Ciertas, e claras”, citando palabras de Bartolo.

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indicios, haciendo plena prueba para la condena15 . Dos testigos “mayo-res, de toda excepción”, deponiendo lo que habían presenciado, (“de cienciacierta”) también hacían “plena probanza bastante para condenar”.16 Pordebajo de la plena prueba, por un fraccionamiento matemático (“pues sidos testigos hacen plena prueba, uno la hará semiplena” 17 ), se introducía laprueba semiplena que normalmente no era suficiente para condenar auna pena ordinaria, pero sí para proceder contra el reo y someterle, en sucaso, a tormento; y así se podía seguir descendiendo en el valor de cadaelemento de sospecha.

Los enunciados axiológicos que orientaban este tipo de discurso pro-batorio pretendían que la condena estuviese basada en una certeza pro-ducto de evidencia objetiva y, en consecuencia, no se admitía que lalibre convicción del juez fuese razón suficiente para decidir. Por ello losindicios no hacían plena prueba, porque ellos sólo producían “cierta incli-nación del ánimo” en el juez, lo que no servía para fundar una decisiónsobre la vida de un hombre.18 Bajo determinadas condiciones, en dichocontexto, se podía sostener que era más razonable arrancar la confesiónpor el tormento, que condenar sobre la base de indicios. Desde este pun-to de vista, el tormento tenía su justificación discursiva junto con todosaquellos elementos que debían operar para evitar una condena sin prue-bas suficientes: “…iudex qui non habet aliam probationem quam indicia qua-ecunque sint, tutius faciet si extorqueat confessionem per torturam...”.19 Como

15 “E porende el Judgador, ante quien es fecha la conocencia, debe dar luego juyzio afinado por ella; si sobre aquella cosa queconocieron fue començado el pleyto ante por demanda, e por respuesta. Esso mismo dezimos, si la conocencia fuessefecha en juyzio en pleyto criminal, en qual manera quier”P. 3, 13, 2. A tal punto se consideraba plena prueba, queno faltaban autores que la equiparaban a los casos de notorium iuris, ALONSO ROMERO, M. P. El procesopenal…p. 228. El punto de conexión entre confesión y delito notorio, se daba bajo el concepto de notoriumiuris, construido a partir del principio “confessus pro iudicato”, Cfr. LÉVY, J. P. “Le problème de la preuve dansles droits savants…, p. 164; SALVIOLI, G. “Storia della procedura..., t. 2, p. 445 y 457. Sin embargo, enlas prácticas del XVII, ya se había comenzado a considerar que la sola confesión no era suficiente para lacondena, si al menos no iba acompañada de otros elementos o constaba claramente en ella el delito. Cfr.HEVIA BOLAÑOS, J. de, Curia Philipica, (1603), Madrid 1771, P. III, § 13, n. 14, p. 222.

16 HEVIA BOLAÑOS, J. de, Curia Philipica…P. III, § 15, n. 11, p.226; v. P 3, 14, 12.17 GUTIÉRREZ, J. M. Compendio de las Varias Resoluciones de Antonio Gómez, Madrid 1789, pp. 75-77.18 Generalmente la rigidez de este sistema probatorio suele explicarse en consideración a los cambios que

implicaba pasar de un sistema de intervención divina a otro que debía confiar en los hombres para hacerjusticia. Langbein lo ha expresado muy gráficamente: “How could men be persuaded to accept thejudgment of professional judges today, when only yesterday the decision was being remitted to God? Thesystem of statutory proofs was the answer. Its overwhelming emphasis is upon the elimination of judicialdiscretion, and that is why it forbids the judge the power to convict upon circumstantial evidence.”LANGBEIN, J. Torture and the Law of Proof: Europe and England in the Ancien Règime, Chicago 1977, p. 6.

19 Así lo podía afirmar el glosador de las partidas, citando a Baldo:, LÓPEZ, G., glosa Dubda ninguna, P.7, 1, 26.

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lo señalaba un autor castellano del siglo XVII, siguiendo esta misma idea,“donde no se practica [el tormento], usan los jueces de otro estremo, en misentir, peligroso, pues en delitos de pena capital, los indicios que aquí son sufici-entes para una rigurosa tortura, allá son bastantes para que en su consequen-cia se condene el reo a muerte, y respectivamente parece especie de impie-dad”20 . La impiedad consistía en imponer una pena ordinaria sin haberalcanzado el estado de plena prueba.

El rigor esquemático de las reglas probatorias, el valor que en ellasse asignaba a la confesión y el marcado cariz inquisitivo que adquirió elprocedimiento ordinario convirtieron al tormento en un paso casi ine-vitable del enjuiciamiento criminal21 , aun cuando siempre hubiera ha-bido dudas de su eficacia e incluso pudiera dudarse de su justicia. Lostextos romanos que los juristas bajomedievales utilizaban como depósitode legitimación del ius commune advertían sobre la falibilidad del tor-

20 FERNANDEZ DE HERRERA VILLARROEL, G. Practica Criminal (1672) Madrid 1756, p. 231.21 Las explicaciones más convincentes de la historia jurídica se orientan a ver en el rigor del sistema

probatorio la clave para entender la relación de dependencia entre la confesión arrancada compulsi-vamente y el éxito del proceso penal. Cfr. LANGBEIN, J. Torture and…, pp. 5-12. “Los rigores de laprueba, tanto formal como racional, eran tales que a menudo resultaba muy difícil establecer losmotivos de convicción en casos penales. Fue este hecho más que ningún otro el que con el tiempocondujo al difundido uso de la tortura para arrancar testimonios y especialmente para obtener la‘reina de las pruebas’: una confesión. En los casos en que se dudaba del estado mental del acusado –los casos de herejía eran el primer ejemplo – nadie estaba calificado para prestar testimonio conrespecto a su estado mental más que el propio acusado, y no había manera más segura de obtener suconfesión de un estado mental delictuoso que el empleo de la fuerza física” BERMAN, H. Laformación…, p. 265. Destacándose también el papel de la confesión en el procedimiento romanocanónico: “A diferencia del derecho griego y el romano, el lugar de la confesión en el procedimientolegal, y no el estatus del acusado o la naturaleza del crimen, explica la reaparición de la tortura enel derecho medieval y de comienzos de la era moderna” PETERS, E. La tortura, trad. por NéstorMiguez, Madrid, 1987, p. 65 . Igualmente Alec Mellor: “El sistema inquisitorio, es por el contrario[en relación al acusatorio], un sistema docto. Sus pruebas son el escrito, el testimonio, y sobre todola confesión, y es el alto valor reconocido a este último sistema lo que explicará el desarrollo de latortura” MELLOR, A. La tortura, trad. por José Goñi Urriza y German O. Galfrascol, Buenos Aires1964, p. 64. En un análisis de mayor profundidad filosófica, también Michel Foucault pone el acentoen la confesión como una necesaria representación de la instrucción escrita típica del procesoinquisitorio; y a partir de allí la necesidad de la tortura: “Por la confesión, el propio acusado toma sitioen el ritual de producción de la verdad penal. Como lo decía el ya derecho medieval, la confesiónconvierte la cosa en notoria y manifiesta...” “...debe ser, en el procedimiento, la contrapartida viva yoral de la instrucción escrita,...debe ser su réplica...” “Esta doble ambigüedad de la confesión (ele-mento de prueba y contrapartida de la información; efecto de coacción y transacción semivoluntaria)explica los dos grandes medios que el derecho criminal clásico utiliza para obtenerla: el juramentoque se le pide prestar al acusado antes de su interrogatorio...; la tortura (violencia física paraarrancar una verdad que, de todos modos, para constituir prueba, ha de ser repetida después ante losjueces, a título de confesión “espontánea”) FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar, trad. de AurelioGarzón del Camino, 12ª. ed. en español, México, 1987, p. 44 - 45

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mento22 . Por otra parte los juristas, conociendo esa advertencia, no de-jaban de interrogarse a cerca de lo injusto que parecía someter a untrance doloroso a alguien por unas simples sospechas23 . En virtud deestas consideracións todos advertían que la cuestión del tormento eramateria muy delicada y peligrosa y, en consecuencia, la disciplina teóricade la institución era muy rigurosa:

Sólo se daría tormento cuando de la fase de investigación resultasenpruebas contra el acusado pero no suficientes como para alcanzar el estadode plena prueba (no se daría si este estado se hubiese alcanzado por otravía) y cuando no hubiese otro modo posible de alcanzarlo (carácter subsidi-ario de la cuestión). En ese estado probatorio intermedio, sólo se daría tor-mento cuando el delito investigado estuviese castigado con una pena aflic-tiva o con pena de muerte, de suerte que no resultase la investigación másgravosa que la probable pena (nunca se daría en caso de delitos leves ocastigados con destierros o penas pecuniarias). Sólo se ejecutaría tormentocuando el reo fuese de condición no privilegiada o no pudiese alegar a sufavor ninguna de las inmunidades que la jurisprudencia concedía en funci-ón de la condición estamental o física o en virtud de otros intereses colec-tivos, como aquellos que ejercían un oficio útil para la república. Comocualquier decisión interlocutoria que causaba un gravamen irreparable, lasentencia que ordenaba el tormento era, en teoría, siempre apelable. Eljuez era responsable si por exceso el reo quedaba lesionado o moría durante

22 “Se declara en las Constituciones, que ni siempre, ni nunca, se ha de dar crédito al tormento, porque es cosa frágil ypeligrosa, y que miente la verdad; porque muchos con su sufrimiento o resistencia para los tormentos de tal modomenosprecian los tormentos, que de ninguna manera se les puede arrancar la verdad; otros, son de tan pocosufrimiento, que prefieren mentir sobre cualquier cosa a sufrir los tormentos;…” Digesto 48, 18, 1, par. 23. Cuerpodel Derecho Civil Romano, a doble texto traducido al Castellano del Latino, publicado por los hermanos Kriegel,Hermann y Osenbrüeggen, con las variantes de las principales ediciones antiguas y modernas y con notas de referenciapor el Dr. Idelfonso García del Corral, Barcelona, 1898. Esta misma idea puede encontrarse en casi todas lasfuentes de la época e incluso utilizada como argumento en las del movimiento abolicionista del silgo XVIII.

23 “An sit justum torqueri delinquentem?”, se pregunta Antonio Gómez, el príncipe de los jurisconsultos hispanos, enel primer punto que le dedica a la cuestión del tormento. Tras reconocer la apariencia de injusticia yacusar noticia de la advertencia del Digesto, viene la justificación basada en el bien público y la necesidadde reprimir los delitos ocultos. La injusticia es sólo aparente porque el tormento tiene la autoridad delderecho común y porque se da bajo unas condiciones precisas que estipula su disciplina: “Et in primisvidetur, quod iniquum & injustum sit, quòd homo liber torquatur, & dilaceretur pro eruendo delicto in casu dubio &incerto: quia fortè dolore & tormento confitebitur contra veritatem quod non fecit; màxime, quia illo tempore nonvidetur compos mentis, nec in pleditudine intellectus, …. Sed sustinendo ius commune dico, quòd imo est justum &rationabile pro bono publico, ne delicta remaneant impunita: quia aliàs, cùm regulariter delicta fiant occultè, vix possetveritas cognosci, & daretur materia delinquendi, & sequeretur maximun praejudicium reipublicae. Confirmaturetiam, quia tortura semper datur praecedentibus indiciis, & sic videtur justa. Item etiam, quia requiritur ratificatioconfessionis postea ex intervallo liberè, & sine tormento.” GOMEZ, A. Variae resolutiones juris civilis, communis etregii, libri tres (1552) Madrid 1780, cap. XIII, n.1, p. 265.

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la cuestión. Por eso se desaconsejaba usar métodos insólitos o exquisitos queno estuvieran avalados por la práctica y la opinión común de los doctores.Antes de la ejecución se recomendaba conminar tres veces al reo para queconfiese libremente (la última una vez puesto ya en el potro). Para que laconfesión obtenida en el tormento pudiese ser usada contra el reo, es decir,para que fuese judicialmente válida, debería ser ratificada “libremente” porel propio acusado un día después de la tortura en un sitio apartado delescenario de la ejecución y lejos de la vista de los instrumentos utilizadospara torturarle. En caso de que el reo se negase a ratificar su confesión sepodría proceder a la reiteración del tormento según la condición social delacusado, la gravedad del delito y la vehemencia de los indicios, pero enningún caso se sometería al reo a más de tres sesiones de tortura. Finalmen-te, si después de todo el reo no confesaba o se negaba a ratificar lo afirmadodurante la tortura (incluidas sus reiteraciones) se le dejaría libre, absolvi-éndolo de culpa y cargo por considerarse demostrada su inocencia24 . Conestas normas se modelaba un instituto que sabiéndose delicado y peligrosoy aún siendo en apariencia injusto, se creía entonces necesario para probary castigar los delitos graves y ocultos.

III. ORDEN PROCESAL Y CONTEXTO CULTURAL

Si el orden procesal del derecho común y sus reglas de prueba puedencalificarse de “racionales” por oposición al orden de creencias que domina lalógica de las ordalías, es necesario recordar la distancia cultural que separaal mundo del derecho común de la “racionalidad” que consideramos hoycomo valor de un determinado esquema institucional.25 . Como hemos visto,se considera que el orden procesal romano canónico se impuso en nombre de

24 La disciplina podía variar en algún detalle de un lugar a otro, pero estos eran los postulados esenciales delinstituto según la literatura del derecho común. Para esta síntesis, además de las fuentes a las quehacemos referencia a lo largo del trabajo, especialmente todas las leyes del título 30 de la Partida 7 y susglosas respectivas, hemos usado FIORELLI, P. La tortura giudiziaria nel diritto Comune, 2 t., Milano 1953-54,esp. t. 1, caps. III, IV y V y t. 2, caps. VI, VII y VIII; TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura en España, 2ªedición, Barcelona 1994; ALONSO ROMERO, M. P. El proceso penal…p. 248 y ss.; ALONSO ROMERO,M. P. “La tortura en Castilla (siglos XIII-XIX) en DURAND, B. (ed.) La torture judiciaire. Approcheshistoriques et juridiques, Lille 2002, pp. 477-506, passim.

25 Últimamente se debate sobre la conveniencia o no del uso de adjetivos tales como racional/irracional paracalificar un sistema de prueba de una experiencia cultural pasada. Volveremos luego sobre este tema. Porahora remitimos a VAN CAENEGEM, R. C. “Reflexions on rational and irrational modes of proof Inmedieval Europe” en Revue d’Histoire du Droit, n. LVIII-3, 1990, pp. 263-279.

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los principios de razón y de conciencia que “fueron proclamados por los juris-tas eclesiásticos como armas contra el formalismo y la magia del derechogermánico”.26 Y es cierto que el proceso judicial bajomedieval representa uncambio importante en el modo de resolver las disputas desde que se orientaen función de un esquema que pretende ser cognoscitivo y que, al mismotiempo, implementa una poderosa tecnología como la escritura que facilita,entre otras cosas, el control jerárquico y que por entonces apenas estabadifundida más allá de los altos tribunales27 . Es cierto que hay indagación yque se busca la comprobación histórica de un enunciado como razón parauna decisión que se asume humana (o casi humana si consideramos el carác-ter sagrado que se asigna a los jueces), y que no depende, en principio, deuna manifestación directa de dios. Aun así existen precondiciones culturalesque operan sobre la comprensión de las instituciones jurídicas y que confor-man su contexto de significación que no podemos dejar de lado cuandomiramos cualquier experiencia jurídica pasada.

No nos referimos sólo a las concepciones que dan fundamento a un ordensocial radicalmente ajeno al nuestro, como serían la firme creencia en elcarácter originario (no convencional) del orden político, la primacía ontoló-gica de lo colectivo sobre lo individual con todas sus consecuencias en cuan-to a la estructura corporativa y desigualitaria de la sociedad y a la elisión delindividuo como sujeto del discurso jurídico político28 . Este orden de creenci-as que da sentido a un determinado discurso de poder ya de por sí imponeuna axiología y, por lo tanto, un sentido de justificación diferentes de los queorientan hoy nuestras instituciones jurídicas. Pero además, hay una diferen-cia importante con respecto al saber y a la verdad. La episteme que controlael discurso probatorio hace que difícilmente la hipótesis de acusación de unprocedimiento criminal se configure sin más como un enunciado empírica-mente verificable o refutable al modo que hoy entendemos estas operacionescomo garantía de racionalidad de un sistema procesal29 . En la sociedades de

26 BERMAN, H. La formación…, p. 264.27 Sobre la oposición entre cultura oral y cultura escrita aplicada al estudio del orden jurídico del antiguo

régimen, HESPANHA, A.M. “Sabios y rústicos. La dulce violencia de la razón jurídica” en ÍD., La graciadel derecho..., pp. 17-60.

28 Una buena síntesis de los elementos que definen el paradigma bajo el cuál han de interpretarse las institucionesdel antiguo régimen puede verse en HESPANHA, A. M. “Para uma teoria da história institucional doAntigo Regime” en ÍD. (comp.), Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Colectãnea de textos, Lisboa1984, p.7-89. Para las concepciones fundamentales que informan el orden medieval, véase GROSSI, P. Elorden jurídico medieval, trad. F. Tomás y Valiente y C. Álvarez, Madrid 1996.

29 Para ello véase FERRAJOLI, L. Derecho y Razón. Teoría del garantismo penal, trad. Perfecto Andrés Ibáñez,Madrid 1995, esp. pp. 33-70.

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antiguo régimen los hombres conviven e interactúan permanentemente conentidades metafísicas. Hablan con un dios y con entidades tales como “san-tos”, o “ángeles” y están convencidos, salvando siempre la posibilidad de unaextraña minoría escéptica, de que dichas entidades metafísicas intervienenpositiva o negativamente en el destino y en la suerte de la cada una de lascorporaciones y de sus miembros. La cultura moderna – y especialmente lacultura jurídica – sigue siendo un ámbito en el que no sólo las normas cons-tituyen un dato natural con todo lo que ello implica (ontologismo ético), sinoque sigue siendo un sistema de comunicación en el que aun fenómenos típi-camente metafísicos pueden ser considerados dentro del discurso de la prue-ba; fenómenos que sólo un profundo orden de creencias densamente compar-tido hacen “existentes”.

Por otra parte, no se debe olvidar que el proceso penal, como técnicaoficial de represión, en este contexto se presenta como una instanciasecundaria frente a espacios de socialización y represión de calado mu-cho más profundo que tienen que ver directamente con aquellas realida-des trascendentes30 . Para el jurista castellano de la edad moderna, porejemplo, la justicia penal podía ser vista como un paliativo frente ante elfracaso de los remedios espirituales contra el mal.31 Más allá de las matiza-ciones teóricas sobre las relaciones entre delito y pecado, el trasfondocultural común imponía una “indistinción de base”.32 Y por aquí se pue-den intuir ya conexiones que explican el valor asignado a una institucióny que resultan implícitas en el discurso jurídico, por ser parte del contex-to cultural silenciosamente compartido33 . Pero amén de ello, el lenguajetrascendente no quedaba reservado, como en la actualidad, al culto pri-vado o a ritos protocolarios, sino que estaba inextricablemente entrelaza-do con el propio discurso jurídico político. Los enunciados que ponían de

30 Como lo ha sostenido Clavero, “gran parte de la prevención e incluso de la represión se encauzaba de hechopor el campo religioso con relativa neutralización del judicial.” CLAVERO, B. “Delito y Pecado. Nocióny escala de transgresiones” en TOMÁS Y VALIENTE, F; CLAVERO, B. y otros, Sexo barroco y otrastransgresiones premodernas, Alianza, Madrid 1990, pp. 57-89, p. 78.

31 “Pintan a la justicia con una espada desnuda en la mano, para que con el cuchillo y fuerça de la pena secular, reprima ycastigue aquellos que desahuziados y desamparados de los médicos espirituales no quieren emendarse”. El fracaso delos “médicos espirituales” daba lugar a la intervención quirúrjica del juez secular: “...la dicha espada ycuchillo es para cortar la carne podrida y corrompida de los vicios, los quales son enfermedad de la República”CASTILLO DE BOVADILLA, J. Política..., , Lib. II, Cap.II, n.53.

32 CLAVERO, B. “Delito y Pecado…., p. 64.33 “Dada la similitud entre delito y pecado, entre pena y penitencia, como un reflejo más de la presencia viva de

las ideas religiosas en el mundo de entonces, no es extraño que se creyera que nada mejor para saber si unhombre es culpable, que su propia confesión…”. TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura…p. 101.

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manifiesto la creencia en conexiones para nosotros metafísicas formabanparte de ese discurso y tenían un alto grado de operatividad en dichocontexto.

En este mundo no resulta un hecho irrisorio que una comunidad deci-diese formalizar un proceso judicial contra las plagas que asolaban suscosechas, procediéndose a nombrar a una serie de santos como abogadostanto de la comunidad (por el lado de la acusación) como de la plaga(por el lado de la defensa), buscando con una condena judicial formal-mente emitida que se alejase el mal y cesase el daño que la acusadainfligía a la corporación.34 En ocasiones, el propio deber de las autorida-des de castigar las transgresiones y actuar con justicia se articulaba medi-ante un discurso que ponía en primer plano la responsabilidad corporati-va de la comunidad ante los ojos de la divinidad. Se hablaba entonces dela necesidad de reprimir pecados públicos y lograr una recta administra-ción de justicia para obtener la gracia divina y mejorar así el destino de larepública. Para ello se decía que debían funcionar mancomunadamentelos re-medios seculares y espirituales35 . En el mundo moderno de la lla-mada Monarquía Católica, este misticismo no era característica particu-lar de los espacios periféricos, poco cultos o rústicos. Un mismo lenguajeinformaba tanto el discurso normativo que emanaba de la corte, como lasordenanzas y bandos que podían gestarse en el seno de una comunidadmunicipal en la remota frontera del imperio36 .

Si reconocemos este contexto, entonces podemos ver otros aspectosrelacionados con la práctica del tormento cuya significación parecíamás cercana al mundo de simbólico de los juicios de dios que al de un

34 TOMÁS Y VALIENTE, F. “Delincuentes y pecadores” en TOMÁS Y VALIENTE, F; CLAVERO, B. y otros,Sexo barroco.., pp. 11-31.

35 Léase, por ejemplo, el siguiente texto del siglo XVII: “Noticioso el Rey de que los ministros de justicia por sus finesparticulares, no obstante la vida licenciosa de todo género de gente, castigaban sólo a los pobres: y por cuia causa Dioslos havía castigado, ya perdiendo sus thesosros, y ya por infelices sucesos de sus armas, y exércitos: mandó al Virrey,y audiencias de Nueva España y Philipinas procurasen con mucho cuidado y diligencia se pusiese en los que pudiesencausar escándalo en la república administrando xusticia con igualdad, amparando a las viudas, huérfanos y desvali-dos; pues de haver enmienda se esperaba que Su Magestad Divina templase su justicia, y ayudase los sucesos de susreynos encargándoles sobre todo la conciencia” Cédula de 15 de febrero de 1633. AYALA, M. J. de Diccionariode gobierno y legislación de las Indias, (Edición y estudio Marta Milagros del Vas Mingo), Madrid 1993, t. XI,voz “Pecados públicos”, pp. 86.

36 Me he ocupado tangencialmente de la cuestión en mi tesis doctoral, AGÜERO, A. Espacio local yjurisdicción criminal en el antiguo régimen. La justicia penal en Córdoba del Tucumán (siglos XVII y XVIII),tesis doctoral inédita presentada en la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid 2003, esp. caps.IV y V.

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método racional de comprobación de la verdad37 . Los historiadores delas instituciones prefieren matizar posiciones como la sostenida por HansFehr quien asignaba tanto a las ordalías como a la tortura la mismafunción de instrumentar una lucha contra el demonio que la mentali-dad medieval consideraba encarnado en el delincuente38 . Sin embar-go, como veremos luego, no faltaban elementos en la cultura para pen-sar que la resistencia del reo a confesar su delito era una consecuenciadirecta de un pacto con el demonio. Aunque con la tortura no se deja-ba librada la resolución del caso a la intervención divina, no por ello susignificación estaba por completo desconectada de una persistente cre-encia en una justicia inmanente que se pone de manifiesto por mediode una prueba (en sentido experimental), del mismo modo que habíaocurrido durante siglos con las ordalías. La purga de las pruebas de car-go previas al tormento, uno de los efectos característicos de la torturadel derecho común, guarda relación con esta lógica. Se decía que latortura se daba “para que por medio del dolor que padecen los reos… óconste con perfeccion el delito que cometieron, ó purgando los indicios, ma-nifiesten su inocencia...”39

La purga de los indicios puede ser vista como consecuencia de esasuerte de castigo anticipado que significa el tormento, en la medida enque los dolores inflingidos al reo funcionan como una respuesta por laculpa no del delito que se juzga, sino por la de haber dado lugar a lassospechas que llevaron al reo a estar en situación de ser atormentado. Deeste modo, como decía Foucault, “el sufrimiento reglamentado del tor-mento es a la vez una medida para castigar y un acto de información.”40

Pero si esto era así y los mismos juristas del antiguo régimen llegaron a

37 Aunque sostiene que la tortura significa “il superamento logico delle ordalie”, FIORELLI da cuenta de lasopiniones que han sugerido la presencia de elementos ordálicos en la tortura y admite que tortura yordalías pueden darse conjuntamente, aunque en período de transición y en instable convivencia. La torturagiudiziaria… , t. 1, p. 8-9. Una interesante comparación desde el punto de vista funcional entre ordalías ytortura puede verse en BARTLETT, R. Trial by fire and water. The Medieval Judicial Ordeal, Oxford 1986, p.142-143.

38 FIORELLI, P. La tortura giudiziaria… , t. 1, pp. 218-219; BARTLETT, R. Trial by fire and water…, p. 143, ambosreferidos a los estudios de FEHR, H. “Gottesurteil und Folter”, en Festschrift für Rudolf Stammler, Berlin-Leipzig 1926, pp. 231-254 y “Tod und Teufel im alten Recht”, en la Zeitschrift der Savigny-Stiftung, GermanistischeAbteilung, LXVII, 1950, pp. 50-75.

39 QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, Madrid 1632, P. II, Cap. I, n. 1, f. 72.40 FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar, trad. de Aurelio Garzón del Camino, 12ª. ed. en español, México 1987, p.

48.

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formularlo en estos términos41 , quizás sea también porque había detrás deeste efecto de la tortura una lógica más profunda y más antigua42 . Esecastigo por las sospechas no es otra cosa que la purga de la infamia, valedecir, algo así como la demostración de la inocencia a través de la resis-tencia al dolor43 . Precisamente por esta conexión característica del mun-do de las ordalías que jugaba detrás del lenguaje procesal moderno, esque aquella doble función que señalaba Foucoult tenía lugar. Por esarazón un mismo acto podía ser a la vez castigo y parte, más que de unainformación, de una demostración. Desde este punto de vista la torturaera un mecanismo de purga tal como lo habían sido las pruebas ordálicasy como lo seguiría siendo el juramento compurgatorio ya en tiempos pos-teriores. No es extraño que en la práctica inquisitorial la difamación deherejía pudiese neutralizarse bien por el juramento compurgatorio bienpor la resistencia en una sesión de tortura44 .

Se comprende así otra regla característica de la tortura del derechocomún: que la intensidad del tormento estuviese graduada, junto conotros criterios, en función de la gravedad de los indicios. ¿Cuándo puededecirse que un acusado ha sido torturado suficientemente? se pregunta undoctor en derecho canónico y civil del siglo XVI que ha tomado el traba-jo, por encargo del papado, de editar y comentar un manual para inquisi-dores escrito dos siglos antes por el dominico Nicolau Eimeric. “Se dirácuando sea evidente para los jueces y los expertos que ha sufrido, sin confesar,tormentos de una gravedad comparable a la gravedad de los indicios. En esascircunstancias se entenderá que ha expiado suficientemente los indicios con latortura (ut ergo intelligatur quando per torturam indicia sint purgata)”.45

41 “El tormento es invención de dos objetos: de averiguar el delito y delinquente, y castigarlo con él, por susméritos...”, así se expresa Villanova y Mañes en una de las últimas prácticas criminales del antiguorégimen hispano, mostrando el carácter punitivo del tormento. Según este autor, en determinadascircunstancias el tormento funcionaba como pena por los indicios previos que existían en contra del reo.VILLANOVA Y MAÑES, S. Materia Criminal Forense, ó Tratado Universal teórico práctico de los delitos ydelinquentes en género y especie para la segura y conforme expedición de las causas de esta naturaleza, Madrid1807, p. 331

42 En este carácter “híbrido” de una institución que tiene función procesal y al mismo tiempo constituye unadelanto de la pena encuentra el rasgo común entre tortura y ordalía, DE LUCA, G. “La tortura neirapporti tra processo e pena”, en Rivista di diritto processuale, IV (1949), P. I, pp. 318-335, esp. 323-324.

43 Sobre el estrecho parentesco entre la tortura judicial y los métodos de purga, especialmente en el derechocanónico, FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 232-235.

44 FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 233.45 PEÑA, F. El manual de los inquisidores por el hermano Nicolau Eimeric, dominico. Aviñón 1376. Con comentarios de

Francisco Peña doctor en derecho canónico y en derecho civil. Roma 1578. Introducción, traducción y notas deLuis Sala-Molins. Versión castellana por Francisco Martín, Barcelona 1996, p. 189.

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La conexión de proporcionalidad entre la gravedad de los indicios y laintensidad del tormento resulta difícil de explicar desde nuestro puntode vista racional si se mira a la tortura como un exclusivo método deconocer la verdad. En todo caso, mas cercano a nuestro mundo resulta laconexión entre la robustez del reo y la intensidad del tormento. Este cri-terio era igualmente considerado por los juristas, pero en concurrenciacon la gravedad de los indicios. Así lo expresaba, por ejemplo, un magis-trado castellano de finales del XVI, cuya obra constituye el manual prác-tico para jueces inferiores más prestigioso del mundo hispano del antiguorégimen: Y yo digo,- decía Castillo de Bovadilla - que el tormento es comola purga, la cual se aplica y regula respecto del humor que ay en el cuerpoenfermo: porque si ay mucho, ha de ser la purga mas recia: assi el tormento hade ser respecto de las fuerças del paciente, y de los indicios: y si siendo aquellosgraves y urgentes, se da poco tormento, no quedan evacuados ni enervados46 .

Así pues este castigo/demostración dado con motivo de los indicioscontra el reo tenía en parte esa significación que hoy diríamos mística.No era un misticismo acotado al oscuro mundo de los inquisidores o delos tribunales eclesiásticos. La separación de fueros no implicaba separa-ción de fundamentos culturales ni de campos normativos suprapositivos.Podía ser así también en cierto modo mística la función del juez secularque se empeñaba en arrancar la confesión no sólo para obtener un ele-mento de convicción, sino para redimir al reo de su culpa. No debía re-sultar extraño que un juez elevara plegarias a dios para lograr que el reoabandonase su resistencia y confesase. Así lo recomendaba otro juez cas-tellano del siglo XVII, afirmando que gracias a sus oraciones había con-seguido que un reo confesase después de haber resistido una primerasesión de tormento. Con satisfacción concluía nuestro juez afirmando queasí pudo hacer justicia y el reo murió “santamente y bien arrepentido”.47 Elmismo magistrado nos recordaba que el reo que se negaba a confesarincurría en pecado mortal y de ahí su obligación de declarar48 . En ese

46 CASTILLO DE BOVADILLA, J. Política..., Lib. V, Cap.III, n.24.47 La anécdota la narra QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos..., f. 97. Comentada también en

TOMAS Y VALIENTE, F. La tortura..., p. 102.48 Por este motivo entendía la doctrina que el abogado defensor no podía aconsejar al reo a negar la verdad.

QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos…f. 83. El comentarista del siglo XVI al manual deEimeric explicaba que “El papel del abogado es presionar al acusado para que confiese y se arrepienta, y solicitarla penitencia del crimen cometido”. PEÑA, F. El manual de los inquisidores…p. 168. En esta última cuestión, noobstante, había divergencia entre la práctica inquisitorial y la secular.

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contexto, el tormento recibía la legitimación de todo aquello que contri-buía al arrepentimiento y, en consecuencia, a la salvación del alma delacusado.

Se podría completar el misticismo de la escena si miramos ahora a lasestrategias conocidas en el mundo de los reos del antiguo régimen pararesistir airosos el trance del tormento y purgar así su infamia. Y no menosescatológicos resultarían los antídotos a los que los jueces recurrirían paraneutralizar aquellas estrategias, sospechosos de que esa resistencia, comoadelantamos, no era producto exclusivo de la inocencia, sino del empleode fuerzas misteriosas y demoníacas. Los juristas de la modernidad reflexi-onaban seriamente sobre los llamados remedium contra torturam, que dabanpor eficaces según su experiencia personal. Del mismo modo que ocurríacon las ordalías, se creía que una serie de maleficios y sortilegios tenían lavirtud de hacer que el reo superase la prueba aun cuando no fuera inocen-te. En el caso del tormento se creía que dichos métodos lograban insensibi-lizar al reo frente al dolor del tormento y así le ayudaban a salir airoso de laoperación49 . Eimeric los mencionaba en su Directorium inquisitorum del sigloXIV al referirse a las diversas reacciones de los reos en el tormento. “Estánlos embrujados, que, por efecto de sortilegios que utilizan bajo la tortura, se hacencasi insensibles: éstos morirán antes que confesar.”50 El comentarista del sigloXVI sobre este punto decía que, según su experiencia, para hacer los sorti-legios los reos usaban “palabras y oraciones de los salmos de David u otraspartes de la Sagrada Escritura que escribían en sus procedimientos supersticiososen trozos de pergamino crudo que ellos llaman <papel virgen>, mezclando aveces nombres de ángeles desconocidos”.51 Juristas de la talla de Hipólito deMarsilio, citado por nuestro comentarista inquisitorial para autorizar susopiniones en este asunto, se hacían eco de la cuestión.52 Y no faltaba eneste vasto campo del saber que entonces constituían los textos jurídicos untratamiento preciso y detallado de dicho tipo de sortilegios.53 De rigor

49 FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 233.50 PEÑA, F. El manual de los inquisidores…p. 185.51 Ibíd. p. 187.52 Ibíd. “Multi reperuntur qui habent aliquas incantationes ut multus habui in fortiis in diversis locis et officcis” HIPPOLYTUS

DE MARSILIIS, Practica causarum criminalium, Venecia 1526-1529, § Nunc videndum, n. 52, cit. en FIOLRELLI,P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 218.

53 PAOLO GRILLANDO, De sortilegiis, y también en De quaestionibus et tortura, ambos en la colección Tractatusuniversi iuris, vol. XI, Venecia 1584, t. II, ff. 381-398 y t. I, ff. 294-298, respectivamente, cit. en Ibíd.Francisco Peña se refiere a Grillando como un “juez muy severo en asuntos criminales” para citar su autoridadal hablar de los sortilegios contra la tortura. PEÑA, F. El manual de los inquisidores…p. 187.

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científico parecía entonces que la obra más específica en materia de tor-mento que se publicó en castellano durante el siglo XVII, dedicase uncapítulo entero a “los remedios para sentir, ó no los tormentos”.54

Desde la simple oración a dios, pasando por pociones de sustanciasdiversas, palabras sacramentales repetidas durante la tortura, hasta elextraño rito de esparcirse sobre el cuerpo las cenizas de un niño asesina-do y quemado antes de ser bautizado, constituían parte de este catálogode remedios contra el tormento55 . A su vez, los jueces intentaban con-trarrestar sus efectos: vigilando al reo antes de la sesión de tormentopara evitar cualquier maniobra sospechosa; inspeccionando el cuerpodesnudo del reo para evitar que llevase el escrito de las palabras sagra-das entre sus ropas o escondidas en alguna parte de su cuerpo; obligán-dole a beber un vaso de agua bendita al que se le agregaba una gota decera, igualmente bendita; formulando las preguntas una tras otra sindejar silencios que pudiesen ser aprovechados por el reo para recitar losconjuros; e incluso, recitando conjuros de efecto contrario para neutra-lizar los del reo56 . Aunque esta clase de antídotos ocasionalmente apa-recían prohibidos de manera expresa, no faltaban quienes incluso reco-mendaban utilizarlos durante la investigación, considerando, por ejem-plo, que era indicio la palabra de un adivino que, a pedido del juez,señalaba al delincuente cuando no había otra forma de descubrirle.57

En el fondo jueces y reos estaban inmersos en ese mundo cultural car-gado de un misticismo que atravesaba por doquier el discurso jurídico,desde los más encumbrados autores y tribunales hasta los humildes jue-ces de la periferia, como aquel alcalde municipal que a finales del XVIIIinformaba por escrito a su gobernador que había tenido que poner bajoestricta seguridad de cepos y grilletes a una rea acusada de brujería

54 QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, P. II, Cap. VI.55 Con detallado testimonio de las obras que se refieren a este asunto, FIOLRELLI, P. La tortura giudiziaria…, t.

1, p. 218-22156 Ibíd. p. 222-223. Siglos atrás, similares precauciones contra similares sortilegios se tomaban contra los

acusados antes de someterle a las ordalías. Puede verse, por ejemplo, SORRENTINO, T. Storia del processopenale. Dall’ordalia all’Inquisizione, Catanzaro 1999, p. 77.

57 “Algunos dixeron, que los sortilegios, y encantaciones podían hazer indicio, por lo menos para inquirir, como quandono pudiendo el juez descubrir el delinquente embiasse por uno destos brujos, ó adivinos, y les preguntasse por el malhechor, y este le descubriesse: pero á mi juizio, y al de los Dotores, con Marco Antonio Bruno, es sin duda no haráesta delcaración para nada indicios, porque los sortilegios estan reprobados por derecho Canonico”. QUEVEDO YHOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, P. I, Cap. VI, f. 25r. Obsérvese que el autor se basa en laprohibición canónica para negar validez judicial al dato, pero no se refiere a su ineficacia o a la formairracional de obtenerlo.

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“por ser tan grande su arte que puede echar a volar las paredes y librarse dela prisión”58

Sobre este mundo de creencias se teje el discurso que de la prueba enel antiguo régimen y dentro de él la institución del tormento como méto-do para descubrir la “verdad”. Ciertamente que hay un principio de deci-sión y un modo de saber diferente en el procedimiento romano canónicoy la tortura se identifica como parte de un mecanismo orientado por labúsqueda de la verdad59 . Sin embargo, en cuanto miramos el contexto decreencias que se descubre a través de estos aspectos menos familiares anuestros ojos de la experiencia jurídica pre revolucionaria, nos damoscuenta hasta qué punto esas nuevas claves todavía pendían entrelazadasde otras que hoy hemos descartado completamente. Tal vez por esto ten-demos a historiar las instituciones atendiendo sólo a aquellos significadosque nos resulta más fácilmente compresibles. Pero no debían ser asumi-das como retóricas las palabras que los juristas incluían en sus tratados yque hacían referencia a ese mundo de conexiones místicas. Todavía en eldiscurso sobre proceso penal romano canónico la voluntad de dios seguíasiendo un elemento a considerar y cualquier señal que la revelara en unsentido u otro podía tener acogida. Al fin de cuentas, como sosteníaAntonio de Quevedo y Hoyos -el jurista castellano experto en materia deindicios y tormentos-, “si Dios quiere que el delito se descubra, y el delinquen-te se manifieste, su Magestad divina descubrirá y manifestará indicios por don-de esto sea; y si no los ai, ni se averiguan, será posible no sea voluntad de Diosque en este mundo se castiguen”.60 Con estas palabras aconsejaba a los jue-ces a que no intentaran estrategias prohibidas para conseguir la verdad,bajo la mayor de las responsabilidades que por entonces podía enfrentarcualquier persona, incluidos los oficiales de justicia, “porque – concluíaQuevedo – será mui posible que mientras trata de condenar al delinquente,cargue su conciencia y condene su alma”61 .

58 El caso, localizado en la ciudad americana de Córdoba del Tucumán aunque verosímil en cualquier lugar delorbe hispano, aparece citado en ASPELL, M. “Los sueños de los ángeles. Herejía y hechicería en Córdobadel Tucumán, siglo XVIII” en Memoria del X Congreso del Instituto Internacional de Historia del Derecho Indiano,t. I, México 1995, pp. 65-100, p. 66.

59 Es bien conocido el análisis foucaultiano de esta transformación que conecta la estructura social con lasformas procesales como formas de producción de un determinado tipo de “saber”. FOUCAULT, M. Laverdad y las formas jurídicas, trad. E.Lynch, Barcelona 1998, esp. pp. 63-88.

60 QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, P. II, Cap. IV, f. 88r.61 Ibíd.

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IV. LA DINÁMICA PROCESAL: LOS CAMBIOSEN LA PRAXIS MODERNA DEL TORMENTO.

La axiología y el orden de principios que estructuraba la teoría procesaly la disciplina del tormento así como los elementos del imaginario culturalmuestran una fuerte persistencia a lo largo de todo el antiguo régimen.Unos y otros aparecen en obras de todo el período, incluso en las más tardí-as. Sin embargo, ello no quiere decir que el orden jurídico de antiguorégimen no contuviese mecanismos de ajuste para responder desde la pra-xis a cambios que también empezaban a ser culturales. El hecho de quedichos mecanismos no consistieran primordialmente en un dispositivo depromulgación y derogación de normas generales, como sucede hoy, no qui-ere decir que no hubiese una dinámica normativa que acompañara loscambios de toda índole que se suceden a lo largo de los siglos. La configu-ración esencialmente jurisdiccional del poder político hacía que fueranentonces los tribunales y no un legislador soberano quienes debían encar-garse de ajustar las normas, siempre en forma conjunta con una doctrina dela que muchos magistrados formaban parte. El estilo de los tribunales y laopinión común de los doctores eran los elementos fundamentales de controly ajuste del proceso de administración de justicia. Un concepto, situado enel corazón mismo de la teoría del poder de los magistrados, brindaba cober-tura de legitimación a estos cambios: el arbitrio judicial.

En la tratadística sobre la materia criminal se llegaba a afirmar que“arbitrium in iudice nihil aliud est quam iurisdictio”62 . El arbitrium se considera-ba entonces como una facultad inherente al ejercicio de la jurisdicciónque permitía modificar las pautas normativas y que terminaba renovandolos enunciados legitimantes de una determinada praxis judicial. A la pos-tre, dichos nuevos enunciados se consolidaban como estilo, se aceptabanpor los juristas y se imponían en la práctica casi con total independencia (eindiferencia) de la lex regia. A través del arbitrium, (del mismo modo queocurría con el concepto de iurisdictio) la tradición del derecho común situ-aba a la figura del juez en el centro de la dinámica del poder político. Elejercicio del arbitrio se entendía disciplinado por las nociones de justicia,equidad y razón, cuya carga semántica resultaba absorbida por el propioconcepto que operaba, así, como un factor legitimado de ajuste para la

62 La expresión está tomada del jurista italiano del siglo XVI, Angelo Gambiglioni, ZORDAN, G. Il diritto e laprocedura criminale nel Tractatus de maleficiis di Angelo Gambiglioni, Padova 1976, p. 60; también en MECCARELLI,M. Arbitrium. Un aspetto sistematico degli ordinamenti giuridici in età di diritto comune, Milano 1998, p. 13.

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conservación del orden que aquella misma tradición textual articulaba ysostenía.63

Sin que se produzca pues una derogación de los principios que orientanel discurso, pero yuxtaponiéndose a ellos y acicateados por el arbitrium iudi-cis, dos tendencias caracterizan la transformación de las prácticas procesa-les. En primer lugar, el rigor formal se flexibiliza dando lugar a esquemasprocesales simplificados que, reservados para determinados tipos de autori-dades o para cierta clase de delitos, permiten una actuación más expediti-va y consecuentemente menos celosa del ritualismo garantizado por el régi-men de nulidades. Éste se restringe, cada vez más, a los cada vez menoselementos considerados “esenciales” del proceso. Se desarrollan así proce-dimientos más flexibles en los que se alteran algunas divisiones formales, sereducen notablemente los tiempos y como consecuencias de ambas muta-ciones, se restringen las oportunidades defensivas.64 En distintos camposde actuación jurisdiccional se recurre también a una fórmula acuñada porel derecho canónico que permite a las autoridades proceder “simpliciter etde plano, ac sine strepitu et figura iudicii”, cuya ratio normativa brindaba laposibilidad de disponer de toda forma procesal que no fuera de las estricta-mente esenciales, según derecho natural, y fallar una vez determinado elobjeto del pleito65 . En el caso castellano, sin perjuicio de la resistencia del

63 “L’arbitrium è dunque manifestazione di aequitas; i caratteri tipici di questo concetto come l’essere ‘metro digiudizio’ o ‘parametro di credibilità’, ma anche ‘canone di ragionevolezza’, nel quadro di una mobile ma sicura‘aderenza alla ideologia dominante e quindi ad una strumentalizzabilità da parte delle forze dirigenti dellasocietà’, vengono anche assorbiti dall’arbirium”. MECCARELLI, M. Arbitrium..., p. 17-18. Las referencias sobrela valencia del concepto de equidad son a SBRICCOLI, M. L’interpretazione dello statuto. Contributo allo studio dellafunzione dei giuristi nell’età communale, Milano 1969 p. 97. A la luz de los criterios jurídicos actuales, el arbitriojudicial puede ser visto como un elemento disfuncional, una especie de peligrosa desviación hacia el “absolutis-mo judicial”( TOMÁS Y VALIENTE, F. “Castillo de Bobadilla..., p. 238 y ss.); sin embargo, mirado bajo el prismade su época, se presenta como una característica impuesta por la propia configuración del ordenamiento y lasinstituciones del antiguo régimen, como lo ha demostrado exhaustivamente MECCARELLI. Para el ámbitopenal, lo había puesto de manifiesto SCHNAPPER, B. “Les Peines arbitraires du XIII au XVIIIe siecle(Doctrines savantes et usages fraçais)”, [1ª parte] en Revue d’Histoire du Droit, n. XLI, 1973, pp. 237-277 y [2ªparte] n. XLII, 1974, pp. 81-112: “A notre avis, le pouvoir discrétionner du juge esta u coeur du droit et de laprocédure pénale. C’est la clef de l’histoire générale de la represión” ([2ª parte] , p. 111). Precisiones castellanas,con matices sobre la relación entre el poder de los jueces y el valor de la ley real, pueden verse en GONZÁLEZALONSO, B. “Jueces, justicia, arbitrio judicial (Algunas reflexiones sobre la posición de los jueces ante elDerecho en la Castilla moderna” en VV.AA. Vivir el Siglo de Oro. Poder, cultura e historia en la época moderna.Estudios en homenaje al profesor Ariel Rodríguez Sánchez, Salamanca 2003, pp. 223-241.

64 Para el caso castellano, ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal...., pp. 162-172; ALONSO ROMERO,M. P.. “El solemne orden de los juicios....passim.

65 La formula condensaba las características de un modo de proceder sumario de derecho canónico que tuvoacogida en los estatutos de las ciudades italianas. “La formola delle leggi non poteva essere più chiara:summarie, cioè riduzione dei termini; de plano, facoltà di ascoltare le lamentele in qualunque giorno e disentenziare di giorno o di notte; sin strepitu, limitazione dei testi ed esclusione di procuratori e avvocati;sine figura iudicii, sopressione delle formalità”. SALVIOLI, G. “Storia della procedura..., t. 2, p. 334. Sobresu tratamiento en la literatura procesal, PÉREZ MARTÍN, A. “El ordo iudiciarius....” , p. 213

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estamento judicial adherido al habitus complejo de procedimiento ordina-rio, ya por el estilo simplificado de los altos tribunales, ya por aplicación dela forma sumaria (sumariamente, sin estrépito ni figura de juicio) a campos tanvariados como podían ser la justicia comisarial o la represión rural a cargode la Santa Hermandad, se difunden los mecanismos para reducir el rigorformal a unos mínimos esenciales66 .

En segundo lugar, aquellos cambios son acompañados en materia pro-batoria por una paulatina desvinculación entre los elementos de pruebatasados y la capacidad del juez para condenar.67 Aunque el sistema deprueba tasada y su regla de correspondencia entre la “plenitud” de laprueba y el carácter “ordinario” de la pena siguió siendo la referenciaaxiológica fundamental, a partir de la misma noción gradualista y cuan-titativa de la prueba fue adquiriendo fuerza el postulado según la cual auna “prueba insuficiente” bien podía corresponderle una pena menor, noordinaria sino “extraordinaria”, quedando su determinación al arbitrio deljuez.68 La figura de la pena arbitraria o extraordinaria, como reflejo delmargen de discrecionalidad del juez – arbitrium mediante – para modularla respuesta penal no era un elemento nuevo. El cambio estaba en elgrado sistemático con que se podía sostener ahora que la prueba insufici-ente (una semiplena prueba que bastaba sólo para el tormento, por ejem-plo) podía servía para imponer una pena extraordinaria. De este modo losindicios podían servir entonces como fundamento de una pena extraordi-naria. La regla de su exclusión absoluta como prueba suficiente para unacondena había sido así alterada.69

66 ALONSO ROMERO, P. El proceso penal...., pp. 170-175, 290-302; TOMÁS Y VALIENTE, F. “Castillo deBovadilla. Semblanza personal y profesional de un juez del Antiguo Régimen” en ID., Gobierno e institucionesen la España del Antiguo Régimen, 2da ed. Madrid 1999, pp. 179-252.

67 Cfr. ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal... , p. 226.68 Cfr. ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale... , p. 19; ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal... , p. 227.69 Cfr. LANGBEIN, J. Torture and..... 47 y ss. En las prácticas castellanas tardías que instruían a los jueces

inferiores, se puede ver cómo la regla de no condenar por indicios ya no era absoluta. La referencia a la penaextraordinaria se integraba en la norma: “No puede el juez por solo indicios, aunque sean graves, castigar al reo conpena ordinaria… y es la razon, porque en lo criminal la prueba ha de ser tan clara como el Sol de medio dia…[hasta aquíla regla en su formulación original que se mantiene así como principio de referencia], pero puede imponer lapena extraordinaria que le pareciere, según la naturaleza de la causa, y lo que de ella resulta…” [aquí la modificaciónintroducida por vía jurisprudencial y que altera el sentido absoluto de la regla anterior]. MARTÍNEZ, M. S.Librería de jueces, utilísima y universal para Abogados, Alcaldes Mayores y Ordinarios, Corregidores e Intendentes,Jueces de Residencia y de visita de Escribanos de toda España, Receptadores de Castilla y Aragon, Regidores, Juntas dePropios, Contribución y Pósitos, Personeros, Diputados del Comun y demas Individuos de Tribunales Ordinarios:añadida e ilustrada con mas de dos mil Leyes Reales, que autorizan su doctrina, Séptima impresión y Adiciones deRamón Antonio de Higuera, Madrid 1791-1796, t.. III, Cap. III, n. 25, pp. 160-161.

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Aunque la legitimidad de esta solución nunca dejó de ser cuestio-nada a la hora de su tratamiento tópico por parte de la doctrina70 , enla práctica se habría impuesto porque la pena extraordinaria a la vezque facilitaba las decisiones represivas al requerir de un estándar pro-batorio menos estricto, satisfacía la provisión de mano de obra medi-ante la conmutación de las penas ordinarias (generalmente penas demuerte o aflictivas), por las de trabajo forzado y principalmente por lapena de galeras.71 Con estos estímulos, sin poner en entredicho losprincipios del sistema de pruebas legales, los jueces consolidaron unacapacidad de justificación a la respuesta condenatoria mucho másamplia y flexible que la provista por modelo originario.72 El juez con-vertido en dominus del proceso controla – en mayor o menor medidasegún su posición jerárquica en el cuadro de la jurisdicción – nosólo la secuencia formal del proceso sino que además puede válida-mente justificar una condena con una prueba insuficiente. La únicacondición en este caso es que la pena no sea la ordinaria, sino unaextraordinaria.

Estos cambios que marcan la tensión moderna del discurso proce-sal conllevan dos efectos contrapuestos en cuanto a la disciplina ypráctica del tormento. En un sentido, la mayor cantidad de elementosasignados al campo de decisión que representa el arbitrium iudicis y suconsecuente efecto en términos de flexibilización formal debilitan enla práctica muchas de las pautas de control de la disciplina originaldel tormento. Así por ejemplo se diría que la suficiencia y calidad delos indicios necesarios para someter a tormento eran arbitrarios y enconsecuencia, en la práctica se podían justificar tormentos casi sinpreceder elemento probatorio alguno. En sintonía con esto, la permisi-vidad para simplificar las formas procesales igualmente llevaba autori-zar que la ejecución del tormento tuviese lugar en la fase sumaria sinhaber dado traslado al acusado de la prueba en su contra y sin ningu-na oportunidad para expedirse sobre la misma. Este adelanto del tor-mento en la secuencia procesal le hacía perder su carácter subsidiarioya que los jueces podrían así buscar primero la confesión por esta vía,antes que dedicarse a otro tipo de pruebas. Se transgredía incluso la

70 Cfr. ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale... , 29-30.71. LANGBEIN, J. Torture and.. , passim, esp. Caps. 2.72 ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale..., pp. 32-33; , MECCARELLI, M. Arbitrium...,p. 252-254.

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regla que prohibía dar tormento en delitos ya plenamente probados,para que una vez obtenida la confesión se enervase cualquier intentoposible de apelación o para obtener información sobre cómplices. Laprohibición de reiterar la ejecución del tormento más allá de un nú-mero limitado de veces sobre reo que negaba era vulnerada a travésde la suspensión de la sesión, reservándose el juez el derecho a reanu-darla cuando lo considerarse necesario. Las apelaciones y recusacio-nes interpuestas contra el auto de tormento y que normalmente debí-an suspender la ejecución podían ser rechazadas in limine por frívolas,o bien, concedidas sin efecto suspensivo en virtud de una serie decircunstancias que, a criterio del juez, lo autorizaban para proceder“sin embargo de apelación o recusación”. La responsabilidad personaldel juez por las consecuencias lesivas de un tormento dado en excesose podía neutralizar con una cláusula que se incorporaba en el autode tormento o en el encabezamiento del acta de ejecución por la cuálel propio reo, en virtud de su negativa, se hacía responsable por losdaños que pudiese padecer con motivo de la tortura. Igualmente seautorizaban quiebres a las inmunidades estamentales en virtud de cir-cunstancias apreciadas por los jueces que daban lugar a excepcionesa cualquiera de las reglas de la disciplina del instituto: para ello sepodía considerar la frecuencia del delito que se juzgaba, la fama deldelincuente, el bien afectado y la gravedad delito. En general los de-litos de lesa majestad divina o humana autorizaban todo tipo de ex-cepciones tanto a nivel de formalidades como a nivel de prueba, a losque habría que sumarle los delitos considerados atroces; cualquierade estos conceptos activaba una excepción genérica que permitía alos jueces transgredir el orden de derecho cuando se trababa de cas-tigar este tipo de delitos.73

73 Así lo expresaban los juristas en sus textos: propter enormitatem delicti licitum est iura transgredi o bien parajustificar el tormento sin prueba precedente, in atrocissimis, leviores conjecturae sufficiunt, et licet judici iuratrasngredi. Para esto, así como para lo anterior referido a los quiebres en la disciplina originaria deltormento, véase TOMÁS Y VALIENTE, F. TOMÁS Y VALIENTE, F. El Derecho Penal de la MonarquíaAbsoluta, Madrid 1969, p. 178; TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura... , pp. 62-91 y 212-219; ALONSOROMERO, M. P. El proceso penal...pp. 244-256 y 302-309; ALONSO ROMERO, M. P. “La tortura enCastilla …cit.. Hemos analizado también estas cuestiones con ejemplos documentales tomados de lapráctica americana y fuentes doctrinaria en AGÜERO, A. “Sobre el uso del tormento en la justiciacriminal indiana de los siglos XVII y XVIII. (Con especial referencia a la jurisdicción de Córdoba delTucumán)”, Cuadernos de Historia del Instituto de Historia del Derecho y las Ideas Políticas Roberto I. Peña, n. 10,Córdoba (Arg.) 2000, p. 195-253.

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Finalmente, también se alteraba la regla de valoración de los resulta-dos del tormento. La persistente negativa del reo ya no implicaba necesa-riamente su absolución. Para ello se entendía que el tormento no purgabalos indicios cuando el magistrado aclaraba en el auto de tormento quequedarían en todo su valor las pruebas que obraban en contra del reo(“quedando en su fuerza y vigor todas las probanzas”), para el caso de queéste se mantuviese negativo (lo que se conocía como tortura con reservade prueba). Con esta innovación, aunque el reo resistiese absolutamentelos dolores del tormento se le podía igualmente aplicar una condena. Seinterpretó, en consonancia con los cambios mencionados anteriormente,que esto no era ilegítimo mientras la pena impuesta no fuera la ordinaria,sino una extraordinaria, más moderada que aquélla. Esta formulación, aleliminar el efecto purgativo del tormento sobre las pruebas que lo hacíanprocedente, permitía resolver el “inconveniente” de tener que absolveral reo cuando hubiera logrado resistir negativo las sucesivas reiteracionesdel tormento.74

Aunque matizada y siempre discutida, era esta una innovación quese imponía en la práctica. Pese a la injusticia (en términos intrasistemá-ticos) que encerraba esta solución y a la mayor inclinación represivaque le daba al proceso, en ella estaba la clave para hacer de la torturaun rito prescindible. Los cambios del sistema probatorios íntimamentevinculados con el arbitrio judicial y su manifestación punitiva, la poenaextraordinaria75 , al autorizar condenas sobre la base de prueba indicia-ria, habían dado un giro teórico imprescindible para convertir al tor-mento en un rigor innecesario para la mayoría de los casos ventilados

74 Así lo exponía Quevedo y Hoyos: “Tambien es, que aunque el juez atormentasse al reo convencido [es decir, aquelcontra el cual ya obra plena prueba], y negasse en el tormento, no purgará, ni invalidará las provanzas que contraél se hizieron, antes quedarán en la misma fuerza y vigor que tenian antes que se le diesse el tormento, según Gregorio:porque fuera cosa injusta que el juez tuviera potestad para por este medio anular, é invalidar las verdaderas probanzas,según Tomas Gramatico, y Olano que le refiere; según el qual por estilo universal de aquestos Reinos lo mismoprocede aunque no esté probado con testigos el delinquente, sino indiciado urgentemente, porque en este casoaunque el reo persevere negando, siempre debe ser castigado con pena trasordinaria [léase “extraordinaria”], y assidize que lo obtuvo muchas vezes, y que se guarda comunmente. Y esta es la razon por que (según este Dotor) en lassentencias de tormento los juezes acostumbran a dezir: Mandamos poner á F. Á question de tormento quedandolas probanzas que contra él estan hechas en su fuerza y vigor...” QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indiciosy tormentos, P. I, Cap. I, n.8, folio 3

75 En la vinculación entre la paulatina disolución de la estricta observancia del sistema de pruebas legales, y elauge de la pena arbitraria o extraordinaria en los tiempos modernos, coinciden SCHNAPPER, B. “Laspeines arbitraires…, (2ª parte) pp. 87-88; LANGBEIN, J. Torture and..... pp. 11 y ss.; ALESSI PALAZZOLO,G. Prova legale...., p. 19; ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal...., p. 227

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cotidianamente en los tribunales ordinarios76 . He aquí el sentido opu-esto en el que las alternativas procesales modernas afectaron a la prác-tica del tormento.

El auto de tormento con reserva de prueba era una decisión suma-mente gravosa para el reo ya que cualquiera fuese su actitud durantela tortura, no evitaría una condena. Si el reo confesaba, la plena pru-eba obtenida podría dar lugar a una condena ordinaria de muerte. Siresistía negativo, la reserva de prueba serviría normalmente para en-viarle a los remos o a trabajos forzados como contenidos de una penaextraordinaria. Podía deducirse a partir de aquí que para este últimotipo de condena ya no era necesaria la tortura, desde el momento quese admitían como suficientes las pruebas recogidas con anterioridad asu ejecución. Al conmutarse sistemáticamente la pena de muerte (lapena ordinaria por antonomasia en los casos susceptibles de aplicartormento) por penas extraordinarias de galeras, arsenales o trabajosforzados, la necesidad de plena prueba como condición excluyentepara el castigo había desaparecido, y con ello, según Langbein, tambi-én la razón de ser de la tortura judicial.77 Hay coincidencia en lahistoriografía especializada sobre la lógica consecuencia que en lapráctica del tormento pudieron tener estos cambios, reduciendo supresencia, otrora cuasi inevitable, en el esquema teórico del procesopenal bajomedieval.78

Todo este desarrollo de variantes que se normalizan como estilo de lostribunales no implican, como hemos dicho, el abandono de los principios dereferencia. Éstos podían ser tópicamente contradichos sin necesidad de serderogados79 . De este modo se convalidaban nuevas soluciones sin que perdi-eran legitimidad las antiguas. En Castilla, por ejemplo, la neutralización delos efectos purgativos del tormento daría lugar a discusiones hasta el final delperíodo, aunque su práctica estuviese completamente consolidada para en-

76 LANGBEIN, J. H. Torture and the law…pp. 59-60; ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale…. p. 23.77 LANGBEIN, J. H. Torture and the law…pp. 59-60.78 Como lo ha sostenido Alessi Palazzolo, al hablar de la legitimación de la pena extraordianria para casos de

prueba insuficiente, “Questa non fu una soluzione marginale, proposta da oscuri giuristi e adottata da ignorantigiudici provinciali: costituì, viceversa, un rimedio di carattere generale, volto a conciliare il contrasto tra certezza moralee certezza legale senza ricorrere al richioso mezzo di investigazione rappresentato dalla tortura”. ALESSI PALAZZOLO,G. Prova legale…. p. 23.

79 Sobre las consecuencias del carácter tópico en el pensamiento jurídico, VIEHWEG, T. Tópica y jurisprudencia,trad. de L. Díez-Picazo Ponce de León, Madrid 1964.

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tonces80 . Pero consideremos conjuntamente los cambios de los que venimoshablando. Si por un lado la disciplina de la institución se relajó removiendolas cautelas que imponían un uso restringido y cuidadoso del tormento, por elotro se introdujo una lógica que al negar su efecto purgativo sobre los indici-os le hizo perder uno de sus rasgos distintivos y, con él, buena parte de sujustificación. El nuevo contexto abría la posibilidad de preguntarse ¿Para quéproceder a un ritual complejo, peligroso, delicado, dudosamente eficaz, si a

80 En el caso castellano se trata de un ajuste absolutamente realizado por medio del estilo y la opinión de lajurisprudencia. Hasta la abolición de la tortura, la única norma asignada al campo de la lex regia en estamateria seguiría siendo la ley 4 del título 30 de la Partida 7, donde se mantenía el principio de absolucióndel reo negativo. En el caso de Francia, en cambio, el art .2 del tit. 19 de la Ordenanza Criminal de 1670se había hecho eco de estos cambios, estableciendo la cláusula de la reserva de pruebas, autorizando aimponer cualquier tipo de pena, excepto la de muerte, en base a los indicios obrantes no obstante que elreo hubiera sobrepasado negativo el tormento. De este modo, cuando la corte ordenaba la interrogaciónbajo tortura con las palabras “avec réserve des preuves en leur entier”, el fracaso en la aplicación del tormentoya no purgaba al acusado de los indicios que contra él pesaban. Cfr. LANGBEIN, J. Torture and the law…p. 51. También nos muestra este autor el cambio reflejado en la legislación del Imperio Alemán, comparan-do la Ordenanza Criminal Carolina de 1532 (que sigue el mismo principio que la ley de Partidas) y laConstitución Criminal Teresiana de 1769, en la que se admite la discreción judicial para aplicar penaarbitraria al reo que ha negado en el tormento. Ibíd., p. 50. En el caso de la monarquía hispana, podemoscitar dos disposiciones, que de algún modo se refieren a esta práctica. Una es de 1585, dictada por FelipeII en las Cortes de Valencia, en la que se reafirma el principio clásico contenido en P. 7, 30, 4 “Que qualsevolReo que será stat tormentat, ii havra passat los tormentos negant, no puixa esser apres condemnat en pena alguna,encara que extraordinaria, sino fos per altre delict plenament provat, per lo qual no fos estat tormentat...”. Ya enel siglo XVIII, aparece una disposición que sí responde a la tendencia de condenar en pena extraordinariaal reo negativo, pero específicamente referida al orden militar: “En tratándose de otro crimen, que el dedesercion, como de asesinato, robo ú otro cometido en Guarnicion, ó en el Exército, donde no hubiere confesion, óprueba de testigos que se estime concluyente, ó indicios vehementes y claros que correspondan á la prueba de testigos,y convenza el ánimo, se procederá en estos términos: si el delito merece pena capital, y hay medidas de pruebas portestigos, ó indicios, se acordará el tormento por el Consejo;...y estando el Reo confeso, y ratificando fuera del tormentodentro de las veinte y cuatro horas, se impondrá pena de Ordenanza correspondiente al delito cometido, ó laarbitraria si estubiere negativo” Ordenanzas de S.M. para el régimen de sus Exercitos trat. 8. t. 5. Núm. 48. y 49.Impresas en madrid año de 1769. Ambas disposiciones aparecen en AZEVEDO, A. M. Ensayo acerca de latortura ó cuestión del tormento (1770) Madrid 1817, p. 27 y 25 respectivamente. Esta obra es un buen ejemplode la persistente discusión sobre la materia, a pesar de su consolidación en la práctica. Publicada en 1770, su autor si bien pone en discusión la institución misma, insiste especialmente en la injusticia de condenaral reo que ha resistido, abogando por eliminar esta innovación y volver a la disciplina originaria deltormento. Sobre este autor, y la polémica que suscitó su obra, se puede ver TOMÁS Y VALIENTE, F. Latortura..., p. 126–130 y 168–169. Un ejemplo de cómo la cuestión seguía siendo resuelta de forma tópica lopodemos ver en un dictamen del fiscal de la Real Audiencia de Buenos Aires que, en 1789, pedía laaplicación de una pena arbitraria para un reo que había resistido en el tormento dado con reserva depruebas. Decía el fiscal que, “aunque no faltan opiniones propensas a la impunidad que por aquella expresión dela ley: débenlo dar por quito [se refiere a la norma de P. 7. 30. 4] sostengan que se debe absolver al reo negativoen el tormento, la más común de los prácticos, y más recomendables regnícolas, y lo que es más la general prácticade tribunales, estimada por el mejor y más autorizado intérprete de las leyes, es imponerles la [pena] arbitraria,agravándola según las circunstancias, principalmente habiéndose puesto en la sentencia de tormento pronunciada enesta causa, que se dejaban a salvo las pruebas que habían del delito...”. La trascripción de la vista fiscal enLEVAGGI, A. El virreinato Rioplatense en las vistas fiscales de José Marquez de la Plata, 3 t., Buenos Aires 1988,t. II, p. 576.

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la postre resultaba más útil, con la misma base de convicción, enviar al reo agaleras o a prestar algún servicio a la república?81 Ahora podemos pregunta-mos, ¿cuál de los sentidos de cambio señalados se impuso en la práctica? ¿Setorturó más sistemáticamente en función de las posibilidades que brindabauna disciplina más flexible o se evitó la tortura aprovechando la posibilidadde aplicar penas arbitrarias que no exigían una confesión, que podían aplicar-se sobre simples indicios y que redundaban en beneficios a la república?. Larespuesta dependerá del lugar y la época y de la posibilidad de realizar estu-dios en archivos judiciales con cierto rigor estadístico. Mientras no se hagaesta tarea, podemos aventurar alguna respuesta atendiendo a la impresión delos historiadores que se han preocupado por esta cuestión y han revisadoseries de documentación judicial en diferentes contextos.

Atendiendo a los textos que permitían las interpretaciones más flexi-bles sobre la disciplina de la institución, Tomás y Valiente ha caracteriza-do el uso del tormento en Castilla, como una práctica “abusiva, extensivay arbitraria”, hablando incluso de un progresivo endurecimiento de surégimen hacia el siglo XVII82 . En el mismo sentido, Las Heras Santosestudiando la justicia penal castellana de los siglos XVI y XVII, sostieneque de la documentación consultada “se desprende que la tortura no eraun mecanismo excepcional de investigación de los delitos, sino que lasfuentes demuestran su dilatada extensión en la Castilla de los Austria”.83

Aunque los autores no explicitan argumentos cuantitativos, sus afirmaci-ones no dejan de ser coherentes con la descripción de una práctica pro-cesal en la que se habían removido con excepciones los recaudos quehacían del tormento un remedio subsidiario.84 Por su parte los historiado-

81 Sobre la utilidad como criterio punitivo moderno, TOMAS Y VALIENTE, F. El derecho penal...p. 390; PIKE, R.Penal Servitude in Early Modern Spain, Madison 1983; ALONSO ROMERO, M. P y HESPANHA, A. M. “Lespeines dans les pays ibériques (XVIIe-XIXe siecles)” en RECUEILS DE LA SOCIETE JEAN BODIN , LVII,1989, pp. 195-225, pp. 209-211. Sobre la pena de galeras, típica pena extraordinaria de la edad moderna, PIKE,R. “Penal Serviutde in Early Modern Spain: the Galley”, en The journal of European Economic History, v. II, 1,Spring 1982, pp. 197-217 (incluido en el volumen antes citado). Se ha calculado que un 73% de los remerosde los Austrias provenían de condenados al servicio de galeras, cfr. HERAS SANTOS, J. L. “Los galeotes delos Austrias: la penalidad al servicio de la Armada” en Historia Social, Invierno 1990, 6, pp. 127-138, y HERASSANTOS, J. L. La justicia penal de los Austria en la Corona de Castilla, Salamanca 1994, p.312.

82 TOMÁS Y VALIENTE, F. La Tortura... p. 225.83 LAS HERAS SANTOS, J. L. La justicia penal…p. 182.84 Según ALONSO ROMERO, M. P. El proceso penal…p. 250-251, el hecho de que el tormento se aplicase en

la fase sumaria, y aún en delitos que podían considerarse plenamente probados (con el fin de indagar al reosobre sus cómplices o bien para que la sentencia fuese inapelable por estar confeso el delincuente),demuestra que en la práctica castellana moderna el tormento había dejado de ser un remedio subsidiario.

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res americanistas parecen coincidir en la impresión de que las justiciascoloniales rara vez acudían al uso formal del tormento, a juzgar por elescaso registro que de dicha práctica ha quedado en las actas procesales.Así por ejemplo, lo sostuvieron en su tiempo Alamiro Ávila Martel, deacuerdo con la práctica observada en la jurisdicción de Chile85 , y TomásJofré en el estudio de las causas criminales instruidas en Buenos Airesdurante los siglos XVII y XVIII.86 La misma percepción ha tenido poste-riormente Abelardo Levaggi87 , y en similares términos se han manifesta-do Tamar Herzog, analizando la práctica quiteña88 y Charles Cutter, qui-en no encontró ni un solo caso de tortura judicial entre los registros cri-minales que revisó para estudiar la cultura legal del norte de la NuevaEspaña.89

Por nuestra parte hemos revisado la series documentales de los proce-sos judiciales conservados en el Archivo Histórico de la Provincia deCórdoba (Argentina). En la muestra realizada sobre los procesos conser-vados entre 1598 y 1808 son escasas las referencias a la cuestión del tor-mento en los registros criminales de Córdoba del Tucumán y menos aúnlos casos en los que efectivamente se formalizó en las actas el ritual de suejecución.90 Este escaso número de registros parece indicar que los jue-

85 “En nuestro país tuvo muy poca aplicación… En los expedientes criminales examinados por nosotros – agregael autor chileno – hallamos un sólo caso de sentencia de tormento, y aún en ese no se aplicó, pues bastóla intimidación para que confesara el reo”. AVILA MARTEL, A. Esquema de Derecho Penal Indiano,Santiago de Chile 1941, p. 44

86 “El tormento... puede decirse que se aplicó, muy rara vez, durante la colonia en lo que a Buenos Aires serefiere” aclarando un poco más adelante que “En los procesos existentes en el archivo de los tribunales quehemos revisado, solamente en un caso se aplicó el tormento á los acusados”. JOFRÉ, T. Causas Instruidasen Buenos Aires durante los siglos XVII y XVIII, Buenos Aires 1913, pp. XVIII y XX.

87 “Entre nosotros el uso del tormento no fue frecuente y llegó a ser excepcionalísimo en las últimas décadas delperíodo indiano”. LEVAGGI, A. Historia del Derecho Penal Argentino, Buenos Aires 1978, p.30

88 “El sistema penal quiteño - nos dice Herzog - no recurría frecuentemente al tormento”, agregando que,aunque pedido por los fiscales o por las partes, “los jueces solían denegarlo y los oidores revocaban lasdecisiones de los tribunales inferiores que la admitían”. En el período estudiado (1650-1750), Herzogdestaca que sólo en once casos fue practicado el tormento en Quito, sobre un total de 390 causascriminales. HERZOG, T. La administración como un fenómeno social: la justicia penal de la ciudad de Quito (1650-1750), Madrid 1995, p. 232

89 “No one example of judicial torture, however, has surfaced from among the hundreds of criminal cases ineither New Mexico or Texas”. CUTTER, C. The legal culture of northern New Spain 1700-1810, Albuquerque1995, p.123.

90 En nuestra muestra, aparecen referencias al tormento en ocho casos sobre 352. Sólo en dos de ellos se ejecutóel ritual: (A)rchivo (H)istórico de la (P)rovincia de (C)órdoba, (E)scribanía 1, 21, 1, 1609 y (C)riminal 3.12, 1714. En los seis casos restantes, pedido el tormento por el querellante o por el promotor fiscal, o bienlos jueces resolvieron sin expedirse al respecto (AHPC. C. 1, 12, 1687; C. 4, 1, 1718; C. 28, 11, 1773; C. 31,3, 1776 y C. 85, 6, 1799), o la medida fue revocada en el tribunal de alzada (AHPC. C. 46, 6, 1789).

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ces no recurrían con frecuencia al rito formal del tormento91 . Sin dudaque influye aquí también el hecho de tratarse de una jurisdicción en laque sólo había jueces de primera instancia. En este sentido, hacia el sigloXVIII, podía tenerse la percepción de que también en Castilla el tormen-to era infrecuente en los tribunales ordinarios de primera instancia. Así,Manuel Silvestre Martínez sostenía que no era común que los Alcaldes yCorregidores (jueces de primera instancia por antonomasia) diesen tor-mento, porque las causas en las que podía tener lugar esta medida eranavocadas por los Tribunales Superiores. Aun cuando el jurista diecio-chesco reconocía la competencia de los magistrados inferiores para utili-zar la tortura, puesto que podían imponer penas capitales, concluía afir-mando que “será raro el Juzgado inferior donde llegue el caso [de aplicar eltormento], especialmente fuera de la Corte”.92 Unas décadas antes de suabolición formal, en el contexto hispano al menos, la tortura parecía unrito excepcional reservado a la alta justicia de la corte.

V. REFLEXIONES FINALES

Un sostenido consenso historiográfico ha contribuido a delinear unadeterminada morfología evolutiva de la historia del procedimiento judi-cial, lo que responde, en alguna medida, a una tendencia común en lahistoria institucional93 . En ese tipo de morfologías se suceden una seriede etapas evolutivas que acercan o alejan determinados aspectos de lasexperiencias pasadas según el enfoque del historiador. En el caso concre-to del procedimiento judicial, y específicamente del procedimiento pe-nal, las líneas maestras del dibujo evolutivo son bien conocidas: de lasformas irracionales o supersticiosas se pasa a una época de racionalidadpero con vocación autoritaria para finalmente arribar a un estado de raci-onalidad no autoritario. Así, al mundo mágico de las ordalías, propio dela mentalidad primitiva de origen pagano (o germánico), le sucede un

91 Más precisiones sobre la práctica local en Córdoba del Tucumán, en AGÜERO, A. “Sobre el uso deltormento…cit. .

92 MARTÍNEZ, M. S. Librería de jueces…, t. III, Cap. III, n. 33, p. 164.93 Para los problemas implicados en la visión evolutiva de la historia de las instituciones, puede verse HESPANHA,

A. M. “Una nueva historia política e institucional”, en Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, año XLI,Nro. 166, (octubre-diciembre 1996), pp. 9-45, ahora incluido también en su HESPANHA, A. M. Culturajurídica europea. Síntesis de un milenio, trad. Isabel Soler y Concepción Valera, Madrid 2002, pp. 30-57.

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desarrollo racional alentado desde la elite eclesiástica de los siglos XII-XIII que materializa el dominio de la modalidad procesal inquisitiva has-ta finales del XVIII. Durante este largo período tiene lugar el reinado delas pruebas legales, la confesión y la tortura judicial, como una degenera-ción producida por el riguroso esquema probatorio y la afanosa búsquedade la certeza. Finalmente, tras una época de transición, mientras la voca-ción autoritaria se revierte con el reconocimiento de las garantías indivi-duales, el rigor de las pruebas legales se supera con un sistema de libreconvicción judicial en el que los riesgos de la libertad del juez se vencompensados por los controles de la sana crítica racional.94

No faltan razones para asumir gran parte de las explicaciones quecontribuyen a sostener este esquema. Sin embargo hay aspectos que pue-den ser revisados en pro de una comprensión menos comprometida por laperspectiva del presente. Por ejemplo, la calificación de las ordalías como“irracionales” e incluso como “paganas” o propias del derecho “germáni-co” cumple en parte la función de distanciar una costumbre antigua ydesacreditada, mientras abre el camino para un enfoque evolucionista enel que los reformadores del siglo XII, cristianos y romanos, emergen comomiembros de un movimiento progresivo con el cual el historiador actualpuede identificarse más cómodamente. A partir de aquí entra en juego laracionalidad de las reformas eclesiásticas y de los conceptos propios delderecho romano canónico que con su rigurosa búsqueda de la certezadesemboca necesariamente en el primado de la confesión y la tortura.Esta operación tiene dos claves de lectura del pasado diferentes que seusan en uno u otro sentido según la perspectiva del historiador. Afirmarel origen “germánico”o el carácter “pagano” de las ordalías, por ejemplo,significa solapar con una causa externa la activa participación de las au-toridades cristianas en su práctica y la función que cumplieron en lascomunidades, también cristianas, hasta el siglo XIII95 .

Por otra parte, al contraponerse la irracionalidad de las ordalías con laracionalidad de las reformas romano canónicas, no sólo se asume un pun-

94 Una reciente historia procesal que sigue fielmente este esquema, puede verse en SORRENTINO, T. Storia delprocesso penale...: “Oggi, ad esempio, il giudizio si fonda sul determinante assioma del libero convincimentodel giudice. Ciò significa che, tramontato il ricorso a metodi di prova irrazionali, sono anche superate leteorie così dette di prova legale quali è ricorsa l’antica criminalistica.... I progressi nel campo dellaconoscenza processuale sono evidenti. Il libero motivato convincimento, sorreto dalla logica, evita le gravidegenerazioni conseguenti alla preoccupazione di circoscrivere l’arbitrio del giudice attraverso la prestabilitagerarchia della prova”. p. 35.

95 Sigo aquí las reflexiones hechas por Robert BARTLETT en su Trial by fire …, pp. 156-157.

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to de vista absoluto en torno al criterio de racionalidad96 , sino que sebloquea la perspectiva para atender y explicar las múltiples y ostensiblesmanifestaciones de providencialismo (de misticismo, hemos dicho antes)que continúan presentes en el discurso jurídico político durante la bajaedad media y la modernidad, al tiempo que se desconocen los efectosque, sobre la prueba, produce la continuidad de una episteme que admitecomo materialmente verdaderos enunciados que hoy descartamos pormetafísicos. Sin negar los cambios sustanciales que vienen implicados enla difusión de la cultura del derecho común, creemos que ese contexto asíopacado por la morfología historiográfica es el que resulta parcialmentecompartido por las ordalías y la tortura judicial en su primera fase. Ni elabandono de las ordalías se explica por su irracionalidad ni, como lo he-mos sugerido, la tortura judicial representa exclusivamente un mecanis-mo que responde a un novedoso criterio de racionalidad.97

Ordalías y tortura operan en el seno de una cultura que sigue estruc-turada en función de un orden religioso y que, por lo tanto, integra ele-mentos meta empíricos en su episteme y exige un sólido nivel de adhesiónideológico para que aquellos elementos trascendentes tengan existencia.Es cierto que hay principios nuevos. Es cierto que la tortura judicial delderecho común, construida desde los textos romanos, tiene también unalógica de investigación de la verdad (en términos actuales) y que por eso,por ejemplo, no incide exclusivamente sobre el acusado, sino que es uti-lizable igualmente con los testigos98 . Pero, si la historia procesal ha sido(re)construida a partir de los elementos más familiares a las institucionesdel presente, no está de más considerar también aquellos aspectos que,haciendo parte de la textura imaginaria del universo de la época, influí-an en la significación de las prácticas institucionales. Delitos que hoy sepresentan tan irracionales como la brujería fueron igualmente persegui-dos por medio de ordalías y tortura. Cabe preguntarse, ¿en qué medida

96 Lo que ya resulta discutible, “To say that a belief is rational is to talk about how it stands in relation to otherbelief” MACINTYRE, A. “Rationality and the Explanation of Action” en Against the Self Images of the Age,Londres 1971, p. 250.

97 Como lo ha demostrado Bartlett, el abandono de las ordalías no se debió a un cambio de creencias que lashubiera convertido en un sinsentido. “The critics of the twelfth century tried to condemn the ordeal byreferring to Scripture and the canons. They argued that the ordeal was wrong, not that it was nonsensical.As has been pointed out above, the ordeal was deemed irrational once the case for its being uncanonicaland an illicit tempting of God had been established”. Ibid., p. 165.

98 Con este argumento FIORELLI toma distancia las tesis que plantean una estrecha conexión entre la torturabajomedieval y las ordalías. FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…t. 1, p. 9.

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opera más racionalmente, siempre desde nuestra perspectiva, un métodode investigación que se aplica sobre el delito de brujería?.

En ese contexto es donde hay que buscar la significación de una de lasreglas fundamentales de la tortura judicial del derecho común. El efectopurgativo que produce la resistencia negativa del reo, no sólo con respec-to a los indicios sino incluso con relación a una plena prueba independi-ente, es una construcción doctrina que apenas tiene asidero en los textosromanos y que sin embargo es unánimemente compartida por la doctrinabajomedieval.99 ¿Cómo valorar la racionalidad de un método de pruebacuando uno de sus efectos posibles puede consistir en neutralizar unaprueba alcanzada de forma previa e independiente?. La posibilidad gene-ralizada desde mediados del siglo XVI, como hemos visto, implicó la ne-gación de dicho efecto justificándose el cambio en el hecho de que lapena no era la ordinaria, sino una pena moderada, fijada según el arbitriodel juez. Entonces ambas soluciones funcionaron como alternativas, se-gún casos y circunstancias. Pero estas posibilidades ya señalaban una aper-tura de la cultura y del discurso político hacia otras funciones del poder.

El “horror al rapidísimo castigo”, como decía un jurista en la segundamitad del siglo XVII, podía servir entonces para justificar una de las va-riantes típicamente modernas a la disciplina teórica de la tortura judici-al: “la imposición de tortura con base a la instrucción sumaria (es decir, en laprimera fase de la investigación y sin darle vista al reo), en solo tres ocuatro casos de delitos muy atroces, ha evitado durante diez años muchasatrocidades”.100 Del mismo modo que en algunos países ocurre hoy con laprisión preventiva, la coacción procesal adquiría una función de preven-ción general. La acción preventiva del poder público era parte de lasnovedades del discurso político moderno y el rápido castigo era un idealde respuesta cada vez más imperioso para una justicia penal destinadallenar los espacios dejados por otros ámbitos disciplinarios en retroceso101 .

99 FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…t. 2, p. 138.100 “Pues de este modo una enorme multitud de gentes ha sido controlada por seis u ocho Magistrados”. Son palabras de

Lorenzo MATHEU I SANZ, , sacadas de su Tractatus de re criminali, (1675), traducidas y transcriptas enTOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura…, p. 90.

101 La ejecución de actos represivos con carácter preventivo era una manifestación del discurso promovido acomienzos de la edad moderna sobre la Potestas política et economica del príncipe, con el que se legitimabanlas acciones del poder público sobre ámbitos que tradicionalmente estaban exentos del radio de acción delas potestades ordinarias derivadas del poder jurisdiccional El objetivo era evitar daños futuros y preservary defender la paz pública. Cfr. DE BENEDICTIS, A. Politica, governo e istituzioni nell’Europa moderna, Bologna2001, pp. 336-339. Para la transformación de las concepciones sobre la función del sistema penal en elantiguo régimen, HESPANHA, A. M. “De Iustitia a Disciplina” en ID., La gracia del derecho…, pp. 203-273

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En un campo de conceptos tradicionales despuntaban novedades queserían reformuladas por la ilustración en su proyecto de un derecho penalde vigilancia continua (en el tiempo y el espacio) y con respuesta mode-rada (no por arbitrio sino por ley) pero inmediata.102

Como hemos visto antes, no se pude dar una respuesta definitiva a lasconsecuencias de estos cambios modernos en la práctica del tormento. Talvez en la corte se acentuaran los nuevos patrones para favorecer un usoabusivo, como lo han señalado los autores citados, mientras que en el casode las periferias y las instancias ordinarias el escaso registro documental ytestimonios como los de Manuel Silvestre Martínez quizás sean una pautapara confirmar la hipótesis de que la extensión del recurso a la pena extra-ordinaria convirtió al tormento en un rito evitable y de carácter excepcio-nal. Así habría quedado preparado el terreno para que la crítica diecio-chesca ajustara el procedimiento penal a una nueva sociedad que se em-pezaba a concebir como suma de individuos dotados de derechos y en laque el poder y las acciones institucionales tenían ya claramente una legiti-mación de tipo convencional sobre la base de una episteme empirista. Elvalor asignado a partir de entonces a la autonomía de la voluntad individu-al, erigida en uno de los pilares del nuevo orden, haría que la tortura ya notuviese encaje posible en el discurso que da sentido a las institucionesjurídicas en occidente. Al menos hasta ahora103 .

102 Beccaria le dedica un capítulo entero a la inmediatez de la pena: “Tanto mas justa y útil será la pena cuanto máspronta fuere...”. En otro capítulo parece anteponer este principio al propio derecho de defensa: “conocidas laspruebas y calculada la certidumbre del delito, es necesario conceder al reo tiempo y medios oportunos para justificarse;pero tiempo tan breve que no perjudique a la prontitud de la pena...” BECCARIA, C. De los delitos y de las penas,trad. de Juan Antonio de las Casas (1774), Barcelona 1994, Cap. 19 p. 60 y Cap. 30 p.84 respectivamente.Sobre el ideario penológico de la ilustración, FOUCAULT, M. Vigilar y castigar…, esp. pp. 77-86.

103 “Un informe de EEUU justifica el uso de torturas en Irak y Afganistán. Un equipo legal defendió que elpresidente puede ordenar maltratos”, EL PAIS, Madrid, 9 de junio de 2004, p. 5.

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A Restrição de DireitosFundamentais e o 11 de Setembro:

Breve Análise de DispositivosPolêmicos do Patriot Act

The Restriction of FundamentalRights and the September Eleven:

A Brief Analysis of Patriot ActPolemic Dispositions

VINICIUS DINIZ VIZZOTTO

Bacharel em Direito pela ULBRA. Pós-graduando em Direito Internacional pela UFRGS. Advogado. Assessor doSecretário- Adjunto da Secretaria de Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul.

RESUMO

O objetivo do presente estudo, em sua primeira parte, é resgatar os acontecimen-tos históricos desde os atentados terroristas do dia 11 de setembro de 2001,abordando, dentre outros temas, o número de vítimas do incidente, as versõessobre os fatos, a atual política norte-americana, a Organização das NaçõesUnidas e a vigente conjuntura mundial, o futuro das relações entre os países e oatual choque de culturas. Após, em um segundo momento, é realizado um apa-nhado geral sobre o Patriot Act, lei americana que tem causado grande polêmi-ca, ocorrendo a análise de três disposições do referido instrumento legal, que dãomargem a discordância e críticas, precisamente: a) a definição do crime de terro-rismo doméstico; b) a detenção compulsória de terroristas suspeitos e os tribunaismilitares; e c) a pós-notificação dos mandados de busca e apreensão. Por derra-

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deiro, são efetuadas algumas considerações a respeito da restrição de direitosfundamentais, relacionando alguns fatores que devem ser seguidos para que nãoocorram lesões graves e irreversíveis aos mesmos. A análise é pautada peloprincípio da proporcionalidade, utilizado para resolver casos em que se visualizachoque entre direitos fundamentais, como no presente caso.Palavras-Chave: Onze de Setembro, terrorismo, Patriot Act, restrição de di-reitos fundamentais, princípio da proporcionalidade.

ABSTRACT

The objective of the present study, on its first part, is to rescue the historicalevents since the terrorist attack of September Eleven, covering, among othertopics, the number of victims of the incident, the versions about the facts, theforeign and local politics of United States, the United Nations, the future of therelationship of the states and the present clash of cultures. Afterwards, in asecond moment, a general summary is made about the Patriot Act, a polemicAmerican statute, by analyzing three of its dispositions, precisely: a) the definitionof domestic terrorism; b) the mandatory detention of suspected terrorists; andc) the delaying notice of the execution of a warrant. Finally, some considerationsabout the restriction of fundamental rights are effectuated, mentioning somecriteria that must be followed in order to avoid high and irreversible damage tothem. The analysis is guided by the proportionality principle, used to solve casesof fundamental rights collision, like the present one.Key words: September Eleven, terrorism, Patriot Act, restriction of fundamen-tal rights, principle of proportionality.

INTRODUÇÃO

Busca-se, no presente estudo, já em seu início, ainda que de modoresumido, reconstruir os acontecimentos históricos desde os atentadosterroristas do dia 11 de setembro de 2001, dentre outros os seguintes:números de vítimas, versões sobre os fatos, a atual política externa (einterna) norte-americana, a Organização das Nações Unidas e a vigenteconjuntura mundial, o futuro das relações entre os países e o atual cho-que de culturas.

Na segunda parte, após um apanhado geral sobre o Patriot Act, leiamericana que tem causado grande polêmica, ocorre a análise de três

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disposições do referido instrumento legal, que dão margem a discordân-cia e críticas, precisamente: a) a definição do crime de terrorismo domés-tico; b) a detenção compulsória de terroristas suspeitos e os tribunais mi-litares; e c) a pós-notificação dos mandados de busca e apreensão.

Por derradeiro, são efetuadas algumas considerações a respeito da res-trição de direitos fundamentais, relacionando alguns fatores que devem serseguidos para que não ocorram lesões graves e irreversíveis aos mesmos.

1. O ATAQUE DE 11 DE SETEMBRO

Eu quase morri hoje. (...) Eu nunca vou esquecer nosso primeiro vislum-bre da torre em chamas. Rick e eu nos desencontramos em alguma parte daWest Side Highway. Ele foi em frente para tirar fotos. Eu entrevistava mãesfora de si, bombeiros assustados (...) adolescentes em uniformes de escola,operários, executivos, avós, motoristas de caminhão, mães levando carrosde bebê em direção ao norte, para longe da ponta ígnea de Manhattan.Telefones celulares eram inúteis. Um homem, proprietário de um armazém,deixou-me usar o telefone em seu escritório Ele ficou comigo. Trouxe-meuma garrafa de água gelada. Deixou-me usar o banheiro. Quando a segun-da torre foi atingida, eu estava a apenas sete quadras ao norte do WorldTrade Center (...) Sete quadras do inferno. Sete quadras da morte. Em ummomento surreal, cheguei a pensar que o prédio era tão alto que poderiacair sobre nós. (...) Cinzas e poeira caíam abundantemente. Policiais e bom-beiros colocavam máscaras protetoras. Residentes faziam o mesmo com len-ços de papel. Rumores de um vazamento de gás venenoso espalharam-serapidamente. Eu estava apavorada (...) Alcancei meu hotel a salvo. Após,saí de novo para mais entrevistas. Na catedral de Saint Patrick, acendi umavela. É noite agora. Entrei em contato com minha família. Devem saberque estou bem. Eu não morri. Mas muitos, muitos outros morreram.1

1.1 Resgate HistóricoOs últimos anos do século passado, o mais violento da história recen-

1 Relato da repórter Catherine FitzPatrik, que presenciou os ataques às torres gêmeas. FITZPATRIK, Catherine. Hellon Earth. Milwaukee Journal Sentinel. Milwaukee, 12 de setembro de 2001. Volume 119, número 301, p. 8A.

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te2 , considerado por alguns até como o “Fim da História” (foi o cientistapolítico Francis Fukuyama quem cunhou tal termo), prometia um futurotranqüilo, senão pacífico. O século XXI, agora sem o conflito bipolar deideologias que dividira o mundo no século passado, estava fadado a acom-panhar e seguir o dito “Consenso de Washington”3 , cânon prelecionadopelo governo americano, baseado no livre mercado, na abertura das eco-nomias e no comércio sem barreiras, que culminaria com a pretensa “ex-tinção de fronteiras”, permitindo assim o livre tráfego de pessoas e bens.

A dita “Globalização” (entendida por alguns economistas como sendonada mais do que uma volta à intensificação das trocas comerciais entreos países, cujo auge deu-se antes de 19144 , anteriormente, logo, à 1ªGuerra Mundial) avança a passos largos, principalmente nos países emer-gentes, mais especificamente na América Latina e na Ásia, com seus“tigres asiáticos”5 .

Porém, um evento causou espanto ao mundo inteiro, e modificou aagenda de prioridades da maior nação do mundo, tanto em aspectos eco-

2 Como preleciona Eric Hobsbawm, “Locais ou regionais, as guerras do século XX iriam dar-se numa escalamuito mais vasta do que qualquer outra coisa experimentada antes. Das 74 guerras internacionaistravadas entre 1816 e 1965 (...) as quatro primeiras ocorreram no século XX: as duas guerras mundiais, aguerra do Japão contra a China em 1937-9 e a guerra da Coréia. Cada uma delas matou mais de um milhãode pessoas em combate”. Culmina o célebre historiador, citando Singer, observando que “...1914 inauguraa era do massacre”. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução deMarcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p 32.

3 A expressão foi criada pelo economista americano John Willianson, que compilou, em 1989, em livro homôni-mo, um conjunto de medidas necessárias para que os países latino-americanos voltassem a crescer,considerando os péssimos resultados obtidos na década de 80. Dentre tais medidas, podem ser citadas adisciplina fiscal, a reforma tributária, a desregulamentação da economia, a liberalização das taxas de juros,taxas de câmbio competitivas, revisão das prioridades dos gastos públicos, maior abertura ao investimentoestrangeiro direto e fortalecimento do direito à propriedade. Recentemente, Willianson e o ex-ministro daFazenda do Peru, Pedro Paulo Kuczynski, revisaram o Consenso de Washington, lançando novo livro. Otítulo do livro é After the Washington Consensus: Restarting Growth and Reform in Latin America (Depois doConsenso de Washington - Como Retomar o Crescimento e as Reformas na América Latina), Institute ofInternational Economics, 2002.

4 Para uma análise comparativa entre participação das exportações no PIB dos países, bem como índice deimigração entre países antes e depois de 1914, vide “Fantasias da Globalização”, conjunto de artigosinseridos no livro “A Economia como Ela é...”. BATISTA, Paulo Nogueira Jr. São Paulo: Boitempo, 2001,p. 27-68.

5 Grupo formado no início dos anos 70, inicialmente composto por Coréia do Sul, Formosa (Taiwan) , Hong Konge Cingapura, que são os primeiros destaques daquela região (sudeste asiático). Dez anos depois, Malásia,Tailândia e Indonésia também integram o grupo de países chamados Tigres Asiáticos. Apesar da recessãomundial dos anos 80, apresentaram uma taxa de crescimento médio anual de 5%, graças à base industrialvoltada para os mercados externos da Ásia, Europa e América do Norte. O Japão e os Estados Unidos são osprincipais parceiros e investidores, sendo que os principais produtos de exportação são os têxteis e eletrônicos,estes últimos com prioridade. Podem, eventualmente, ser considerados como “países emergentes”.

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nômicos como militares6 , os Estados Unidos da América. Em 11 de setem-bro de 2001, o citado país sofreu ataques terroristas contra seus maioressímbolos: o World Trade Center, localizado em Nova York, conjunto deprédios que materializava o espírito capitalista e empreendedor dos nor-te-americanos, verdadeiro signo da globalização; o Pentágono, quartel-general e centro de defesa do país, que até então era considerado inatin-gível; e, por último, as maiores representações da democracia americana:a Casa Branca e o Capitólio, que só não foram atingidos devido à açãodos passageiros do avião seqüestrado por terroristas7,8 .

As baixas humanas (incluindo feridos e desaparecidos) alcançaramum total de 6.8679 pessoas. Para se ter uma idéia da amplitude e reper-cussão do evento, no período compreendido entre 1968 e 2000 ocorreramcerca de 4.967 ataques terroristas contra os Estados Unidos, perfazendoum total de 854 vítimas10 .

O ataque, em verdade a primeira ação bélica de origem externa que

6 Décio Freitas, em artigo no jornal Zero Hora, intitulado “A potência impotente”, no dia 08/09/2002, pg. 19:“jamais houve na História potência de comparável hegemonia unipolar em escala planetária (...) Suaeconomia é superior a da soma de todas as grandes potências desenvolvidas (...) Os gastos militares são trêsvezes maiores que os das seis maiores potências combinadas – e isso gastando só 3,5% do PIB”. Para maioresdados sobre os gastos militares americanos, bem como da supremacia bélica dos EUA, a sinalizar o eventualfim da corrida armamentista, vide artigo no jornal The New York Times, de autoria de Greg Easterbrook,datado 27 de abril de 2003. A revista Veja também publicou o artigo, traduzido, na edição nº 1801, de 7 demaio de 2003. p. 52-54.

7 Há versões de que o avião foi interceptado por caças F-16, da Força Aérea Americana (USAir Force).8 Esta é a versão oficial dos acontecimentos. A título de curiosidade, existem versões sobre os atentados nos

Estados Unidos que beiram as raias do absurdo, materializando verdadeiras teorias da conspiração: umadelas, de autoria de Andreas von Bulow, um ministro aposentado da Pesquisa e Tecnologia da Alemanha,em livro denominado The CIA and September 11, insinua que os EUA e o serviço de inteligência israelense,o Mossad, detonaram o World Trade Center a partir de seu interior, e os aviões que se chocaram contraas torres foram guiados por controle remoto. Existe também livro de autoria do francês Thierry Meyssan(jornalista e cientista político francês, presidente da Rede Voltaire e redator-chefe da revista Maintenant)intitulado “11 de setembro de 2001: uma terrível farsa - Nenhum avião atingiu o Pentágono!”. Além doassunto-título, o autor analisa a atual conjuntura dos Estados Unidos, bem assim os “reais interesses” quemotivaram as invasões do Iraque e do Afeganistão. Foi o livro político mais vendido em 2002. O jornalCorreio Brasiliense, em 07/03/2003, entrevistou o autor do livro, que esclareceu seu ponto de vista sobreos incidentes de 11 de setembro. Para acessar a entrevista, pode-se visitar o endereço http://www2.correioweb.com.br/cw/ EDICAO_20030307/vid_mat_070303_74.htm.

9 Disponível em http://www.linking.to/September11/#numbers. Os números variam. Segundo a Zero Hora de07/09/2003, as últimas estimativas dão conta de 3.061 mortos, sendo que 1.100 corpos não foram identifi-cados. O dado mais atualizado, que dá conta de 2.749 mortos na cidade de Nova York, é do dia 22/01/2004.Para maiores detalhes, há site completíssimo: http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Casualties%20of%20the%20September%2011,%202001%20attacks. Data de Acesso: 27/04/2004.

10 Disponível em: http://www.linking.to/September11/#numbers. Data de acesso: 27/04/2004.

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tocou o território continental dos Estados Unidos11 , causou alarma inter-nacional e pânico, principalmente na população americana. A nação,que foi o berço da moderna democracia, encontra-se (e de certo modotoda a civilização ocidental) em uma encruzilhada: restringir direitos in-dividuais e liberdades civis, em favor da segurança nacional, ou mantertal gama de liberdades, arriscando-se a sofrer novos ataques12 .

Após o acontecimento, o governo americano implementou medidaspara combater o terrorismo, entre elas a detenção de mais de seiscentosimigrantes com situação irregular por período indeterminado, em prisões13 .Em 26 de outubro de 2001, o presidente Bush assinou o USA Patriot Act14

que concedeu ao governo maiores poderes para prender e deter estran-geiros suspeitos. Em outubro de 2001, Bush baixou uma ordem executivapermitindo a autoridades policiais monitorar comunicações entre presosfederais e seus advogados, sem a obtenção de uma autorização judicial15 .

11 O ataque japonês a Pearl Harbor, que ocorreu no arquipélago Havaiano (fora da área continental, portanto)em 7 de dezembro de 1941, destruiu 19 navios, incluindo cinco encouraçados, 188 aviões e causou a mortede 2.400 americanos. Havia sido o maior ataque estrangeiro contra a nação americana. NASH, Gary B.Nash. American Odissey – The United States in the 20th Century. New York: Glencoe Division of Macmillan/McGraw-Hill Publishing Company, 1994, p. 410.

12 As investigações do FBI e da CIA, que identificaram os autores do atentado, constataram que grande parcelamorou nos Estados Unidos por longo período, tendo inclusive aprendido a pilotar aviões em solo americano.

13 Sobre o posicionamento do Procurador-Geral dos Estados Unidos, John Ashcroft, acerca da detenção deimigrantes vide artigo na revista Time, de 04/05/2003, intitulado, no original, Can Attorney General JohnAschcroft fight terrorism on our shores without injuring our freedoms?, de autoria de Richard Lacayio, o qualpode ser acessado em http://www.refuseandresist.org/police_state/art.php?aid=772. Há caso de imigran-tes haitianos (mais precisamente, David Joseph, de 18 anos de idade, à época) que, mesmo após ter seupedido de asilo político concedido (tanto em primeiro como em segundo grau de jurisdição), foi mantidona prisão, por decisão de John Aschcroft, até sua situação se regularizar (o processo pode durar meses ouaté anos). A alegação da manutenção da detenção seria o fato de que, em caso de relaxamento da prisão,haveria um incentivo para o aumento na tendência de imigração ilegal, principalmente de paquistanesese palestinos, que usariam o Haiti como rota para chegar aos Eua.

14 Para as lesões causadas pelo “USA Patriot Act” à primeira, quarta, quinta e sexta emendas da ConstituiçãoAmericana, vide artigo intitulado, em inglês, The State of Civil Liberties: One Year Later, publicado peloCentro de Direitos Constitucionais, que existe desde 1966. Disponível em: http://www.ccr-ny.org/v2/reports/docs/Civil_Liberities.pdf. Data de Acesso: 12/12/2003. O referido centro, que tem como objetivolutar pela efetivação de direitos prelecionados pela Carta Americana, bem como pela Declaração Univer-sal de Direitos do Homem, já foi parte em casos célebres, tal como o case Filártiga v. Peña-Irala, que foijulgado com base na The Alien Tort Claims Act, tendo a US Second Circuit Court of Appeal entendido que “atortura deliberada perpetrada sob o manto da oficialidade viola universalmente normas de direitos huma-nos internacionais e tal violação constitui lesão à lei doméstica dos Estados Unidos”. Disponível em: http://www.sangam.org/JANAKA/ATCA.htm. Acesso em 06/10/2003.

15 A respeito da legalidade de tal ato, há comentário escrito pela professora Kathleen Clark, da Faculdade de Direitoda Universidade de Washington, no sítio http://law.wustl.edu/Academics/faculty/clarkcnsscomments.html. Aconclusão da professora é cristalina: “Essa regulação interfere na relação entre advogado-cliente tão fundamen-talmente que viola seus direitos oriundos da 1ª e 6ª emendas. É contrária aos requisitos constitucionais e da‘common law’, uma vez que o executivo deve obter a aprovação de um juiz neutro antes de interferir na relaçãoconfidencial entre advogado e cliente. (....) Essa regulação deveria ser revogada”.

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Bush também assinou uma ordem autorizando o uso de tribunais milita-res16 para interrogar e levar a juízo pessoas que sejam eventualmenteterroristas, com o objetivo de evitar o risco de ataques terroristas adicio-nais bem como a revelação de informações confidenciais quando no trâ-mite de um processo.

Ocorreu, inclusive, a invasão do Afeganistão17 , que estaria dando,sob o governo Taliban, abrigo e respaldo ao eventual mentor dos crimes,Osama Bin Laden18 , e sua organização terrorista, a Al-Qaeda.

Após a consideração sobre o axis of evil19 , um grupo que seria formadopor Iraque, Irã e Coréia do Norte, países com eventual potencial e/ou capa-cidade para produção e uso de armas de destruição em massa, além depossível concessão das mesmas para grupos terroristas, o governo americanoinaugurou o que ficou conhecido como a “Guerra contra o Terror”.

1.2 A GeopolíticaHá muito tempo já se viu que não há homem independente em exis-

tência nem Estado soberano auto-suficiente, pois tanto os homens, como

16 A questão acerca de Tribunais Militares é uma das mais pulsantes, no que se refere às medidas tomadas pelogoverno americano. Atualmente, o campo delta, em Guantánamo, Cuba, conta com mais de 680 prisionei-ros, oriundos de mais de 42 países. As celas apresentam as dimensões de 2m x 2,44m, e tem 2m de altura.São cercadas por barras de metal, e possuem uma cama e um sanitário desodorizado no chão. Na chegadaa Guantánamo, cada prisioneiro recebe um macacão laranja, um colchão de espuma, dois baldes, tapetepara reza, sabonete, xampu, pasta de dente, duas toalhas, cobertor e lençóis, uma cópia do Alcorão e umpar de chinelos. As refeições diárias, que são três, somam 2,6 mil calorias. O café da manhã e o jantar sãopreparados no campo, e o almoço, composto de verduras e legumes, é fornecido pronto para comer. Nareportagem, traduzida do The New York Times, Ted Conover, que lá esteve, diz que “nada se sabe sobrecondições de liberdade, e não há procedimentos judiciais. Oficialmente, os prisioneiros estão sendomantidos na base para interrogatórios. Mas, a julgar pelas condições do local, eles estão presos tambémcomo punição. Por quanto tempo, porém? Quem decide?” Questionado sobre o funcionamento dos inter-rogatórios, o general Geoffrey Miller apenas disse que “os americanos ‘não fazem nada no Campo Delta deque não possam se orgulhar’”. Zero Hora do dia 20/07/2003, p. 28.

17 Para maiores detalhes sobre a atual conjuntura política e econômica do Afeganistão, vide LESSA, Carlos, etal. A Crise Internacional e o Brasil Depois do Atentado – Notícias da Guerra Assimétrica. Rio de Janeiro: EditoraGaramond, 2002. p. 9-38.

18 Osama Bin Laden foi aliado dos Estados Unidos, no período em que a antiga União Soviética invadiu oAfeganistão, em 1979. Formado em engenharia, Osama foi financiado e treinado pelos americanos,recebendo grande quantidade de armamentos daquela nação.

19 Eixo do Mal, na tradução. A primeira vez que George Bush se manifestou sobre este grupo de países queconfigurariam perigo iminente para o mundo foi em seu “State of the Nation Speech”, de 29/01/2002. Após,a Síria também foi acusada de estar envolvida com grupos terroristas, sendo que, no mês de outubro de2003 sofreu ataques com o uso de mísseis, por parte de Israel.

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as nações sempre viveram, e não podem deixar de viver, interdependen-tementes coordenados em ação, pelo que (...) os interesses que o governode um povo deve tomar em conta não são apenas os dos súditos, nem osde cada um dos países estrangeiros, mas os da humanidade.20

O impacto do 11 de setembro ensejou até a reconsideração de Fukuyamaacerca de sua visão sobre o propalado “fim da história”21 . Em artigo publicadona revista australiana Policy22 bem assim em conferência proferida no dia 8 deagosto de 200223 , em Melbourne, o conhecido cientista político teceu obser-vações sobre a questão. Asseverou Fukuyama, na referida palestra, no quetange sobre a atual conjuntura, que a visão de mundo (o lócus da legitimida-de da democracia) dos europeus difere da visão dos americanos, uma vez queaqueles acreditam estar vivendo realmente no “fim da história” (um mundopacífico, que, cada vez mais, pode ser governado por normas, leis e tratadosinternacionais). Por seu turno, estes ainda crêem que se faz necessário o usode políticas clássicas, como o realpolitik24 , para combater ameaças como oIraque, a Al-Qaeda e “outras forças malignas”25 .

O artigo de Fukuyama traz novamente à tona o “Choque de Civiliza-ções” prelecionado por Samuel Huntington, no sentido de que conflitosagora não ocorreriam entre nações, mas sim entre culturas diferentes; nopresente caso, o “modernismo ocidental” versus o “bárbaro islamismo”26 .

20 CASTRO, Amílcar de. Direito Internacional Privado. 5ª ed. aum. e atualiz. com notas de rodapé por OsírisRocha. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 37.

21 Fukuyama argumenta que sua expressão não se referia ao fim de eventos históricos, mas sim ao fato de quea evolução das sociedades humanas através de diferentes formas de governo culminou fatalmente namoderna democracia liberal e no capitalismo orientado pelo mercado.

22 FUKUYAMA, Francis. Has History Started Again? In Policy Magazine, vol. 18, nº 02. Winter – 2002, p. 3-723 Palestra ministrada em razão do XIX “John Bonython Lecture”, realizado sob os auspícios do “Centre for

Independent Studies” de Melbourne, Austrália. Disponível em: http://www.cis.org.au/Events/JBL/JBL02.htm. Data de Acesso: 08/09/2003

24 Na definição de Henry Kissinger, “uma política exterior baseada em cálculos de poder e no interessenacional”. KISSINGER, Henry. La Diplomacia. Tercera reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica,1996. p. 133.

25 Na visão de Fukuyama, uma política externa americana que mantenha um “respeito decente” para com osdemais países deve envolver os seguintes elementos: a) uma enunciação que estabeleça os limites dasações preventivas contra o terrorismo: que tipos de ameaças, e quais critérios e níveis de evidências vãojustificar o uso do poder americano? b) assumir alguns compromissos no que se refere a males mundiaiscomo a emissão de carbono (Protocolo de Kyoto); e c) rever as decisões referentes às questões dos subsídiosagrícolas e da indústria do aço, uma vez que tais medidas, de cunho totalmente político, não vão trazer aliderança econômica americana nessas áreas.

26 Importante referir que, segundo Samuel Huntington, o confucionismo também seria “perigoso” ao Ocidente.

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O que se tem, em verdade, é um conflito de base cultural e religiosa,entre dois credos monoteístas que possuem, no âmago de suas doutrinas,objetivos expansionistas, evangelizadores e messiânicos.

Nas próprias palavras do geopolítico americano, vislumbrando os atu-ais acontecimentos:

A fonte fundamental de conflito nesse novo mundo não será essenci-almente ideológica nem econômica. As grandes divisões na humanidadee a fonte predominante de conflito serão de ordem cultural. As nações-Estados continuarão a ser os agentes mais poderosos nos acontecimentosglobais, mas os principais conflitos ocorrerão entre nações e grupos dediferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política glo-bal. As linhas de cisão entre as civilizações serão as linhas de batalha dofuturo.27

Apesar de estar atualmente em voga, o terrorismo não é produto doséculo passado. Em entrevista concedida a David Barsanian, em 21 desetembro de 2001, Noam Chomsky definiu-o como sendo “...o uso demeios coercitivos contra uma população civil, no esforço de atingir obje-tivos políticos, religiosos ou outros”. Aduziu, ainda, que “... de acordocom as definições oficiais, é simplesmente parte da ação do Estado, dadoutrina oficial” 28 . Portanto, suas origens remontam ao início das socie-dades humanas, onde existia já alguma forma de governo, bem como gru-pos dissidentes. Configura-se como delito de caráter internacional, se-gundo Igor Karpetz29 , e, como doutrina e como forma de luta política,

27 HUNTINGTON, Samuel. Choque do Futuro, p. 135. Tradução de Laura Teixeira Mota. In Reflexões para oFuturo. São Paulo: Abril, 1993. p. 135-147.

28 CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. 6ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 65.29 O livro é raro, escrito por professor russo em plena Guerra fria, e retrata os delitos de caráter internacional

sob uma perspectiva comunista. Assim, em sua grande parte, apesar de trazer interessantes dados à baila,o autor declara que o fenômeno terrorista é originário exclusivamente de países capitalistas, sendo,eventualmente, “exportado” para estados socialistas. Entretanto, a seguinte passagem é bastanteesclarecedora sobre a atual definição do que seja terrorismo: “os autores burgueses tem procurado dar umconceito de terrorismo extraordinariamente amplo, muito mais que o conceito universalmente reconheci-do de ato terrorista como delito comum, previsto pelas legislações nacionais. Inventou-se inclusive otermo, segundo o qual, o terrorismo atenta contra a segurança geral. Entretanto, permaneceu semesclarecer o que deve entender-se por tal coisa. No conceito de terrorismo incluíram os atentados contrao indivíduo, contra a propriedade e outros atos delitivos e também as atividades que comumente sãoformas de ações revolucionárias (greves, manifestações, etc), enquanto os atos criminais definidos pelaslegislações nacionais como terrorismo, passam a um segundo plano”. KARPETZ, Igor. Delitos de CarácterInternacional. Traducido del russo por Pérez Castul. Moscú: Progresso, 1983. p. 99. Maiores detalhes sobreo tema: pp. 88-143.

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representa um fenômeno dos regimes reacionários imperialistas, fascistas,militaristas burocráticos, bem como de grupos e tendências ultraesquer-distas e anarquistas30 .

Relevante notar que a política externa norte-americana, que após aposse de George W. Bush já vinha dando sinais de unilateralismo (nãoratificação do Protocolo de Kyoto, não cumprimento das linhas bases es-tabelecidas pela Eco-92, desinteresse em homologar a participação dosEstados Unidos no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia,Holanda, entre outras irresignações), foi a concretização de um posicio-namento que havia sendo maquinado há mais de uma década.

Portanto, essa eventual “guinada” no tratamento das questões inter-nacionais, por parte dos Estados Unidos, não é tão inesperada como seimagina. Recentemente, foi revelado ao público em geral, por intermédiodo jornal escocês Sunday Herald31 , estudo intitulado Rebuiliding America´sDefenses – Strategy, Forces and Resources For a New Century32 , finalizadoem setembro de 2000, que traz, entre outros fatos, a observação de quetorna-se necessário estabelecer quatro missões centrais para as forçasmilitares americanas, considerando o fim da “ameaça comunista”, quaissejam: (i) defender o território americano; (ii) lutar e ganhar decisiva-mente, múltiplas e simultâneas guerras, em vários locais; (iii) executar osdeveres de “policiamento”, associados ao aprimoramento do ambiente desegurança em regiões críticas; e (iv) transformar as forças armadas paraexplorar “a revolução em assuntos militares”33 .

30 KARPETZ, Igor. Delitos de Carácter Internacional. Impresso em la URSS. Traducido del russo por Pérez Castul.Moscú: Progresso, 1983. pp. 88-89.

31 Edição de 15 de setembro de 2002, de autoria de Neil Mackay. Disponível em: http://sundayherald.com/print27735. Data de Acesso: 15/10/2003.

32 Tal projeto, que tem como fim precípuo estabelecer e manter uma Pax Americana, tem como idealizadores DickCheaney (atual vice-presidente), Donald Rumsfeld (secretário de Defesa), Paul Wolfowitz (deputado deconfiança do último), Jeb Bush (irmão mais jovem do atual presidente americano) e Lewys Libbi (chefe daequipe de Cheaney). Parece agora, a olhos vistos, que a derrota de Al Gore era fatal, em confusa eatabalhoada apuração eleitoral, especialmente no Estado da Flórida. O artigo, de 90 páginas, está dispo-nível em http://newamericancentury.org/RebuildingAmericasDefenses.pdf. DONELY, Thomas. RebuildingAmerica´s Defenses – Strategy, Forces and Resources For a New Century. Washington, DC: Project tor the NewAmerican Century, September 2000.

33 Tais missões seriam cumpridas mantendo-se a estratégia da superioridade nuclear, recolocando a força militarao patamar em que se encontrava anteriormente, repondo as forças armadas em bases estratégicas;desenvolvendo e instalando a defesa global de mísseis; controlando os interesses referentes ao espaço,criando a “U.S. Space Forces”, e, por derradeiro, aumentando os gastos militares, na base de $15 a $20bilhões de dólares.

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Nesta senda, os Estados Unidos invadiram, juntamente com a Ingla-terra, e sem o respaldo da ONU34 , o Iraque, sob a acusação de existênciade armas de destruição em massa no território daquele país35 , governadopor Saddam Hussein36 .

34 A resolução 1441, adotada pelo Conselho de Segurança em 08/11/2002, em razão de seu 4644º encontro, foimotivo de controvérsia. O referido documento constatou que o Iraque não estava concedendo “imediato,irrestrito e incondicional” acesso a áreas, construções, instalações e demais locais que poderiam abrigararmas de destruição em massa. O 13º parágrafo da resolução evoca que “o Conselho havia repetidamenteadvertido que o Iraque enfrentará graves conseqüências como resultado das contínuas violações às suasobrigações”. O significado da expressão “graves conseqüências” embasou o ataque americano, apoiadoprimeiramente pela Inglaterra e pela Espanha. As negociações da diplomacia americana, no sentido deobter nova resolução mais “clara”, não lograram êxito, uma vez que os demais membros permanentes doConselho de Segurança (França, China e Rússia,) declararam que iriam vetar a proposta. O jornal Folhade São Paulo, em sua edição de 18/03/2003, às folhas A11 até A18, publicou matéria intitulada “Euadesistem de diplomacia, e Bush lança ultimato a Saddam”, contendo pesquisa do Instituto Gallup,constatando que 54% dos americanos aprovavam uma guerra com a rejeição da ONU, contra 47% dereprovação. Como a margem de erro da pesquisa é de 3%, constata-se que o povo americano encontra-setotalmente dividido em suas opiniões quanto a atual política de George Bush, o que certamente influen-ciará em sua campanha em busca da reeleição presidencial. Nova pesquisa, desta vez oriunda da CBS e doNew York Times, publicada pela Zero hora de 04/10/2003, demonstra que a disputa eleitoral está acirrada:44% de intenções para Bush e 44% ao candidato democrata,, John Kerry. O índice de aprovação de Bushalcança 51%, apenas um ponto percentual acima do existente antes do 11 de setembro.

35 O chefe da Comissão de inspeções da ONU, o sueco Hans Blix, e Mohamed Elbaradei, diretor da AgênciaInternacional de Energia Atômica, bem como suas equipes, não encontraram provas suficientemente cabaisacerca da existência de armas de destruição em massa (nucleares, entre elas) em território iraquiano. Amesma constatação foi feita por David Kay, assessor da CIA, em relatório preliminar sobre as buscas de armasde destruição em massa, apresentado ao Congresso americano. Kay trabalhou à frente de 1.200 especialistasem operação que consumiu três meses e U$300 milhões. Afirmou Kay que seriam necessários ainda seis mesesde investigação para divulgar alguma conclusão sobre o programa de Armas de Saddan. Zero Hora de 04/10/2003, pg. 18. Recentemente, em entrevista que vai ser publicada na Revista “Vanity Fair”, Kay afima que emjulho, menos de um mês depois de sua chegada no Iraque a serviço da CIA, enviou um e-mail para o diretorda agência de inteligência, George Tenet, dizendo que parecia não existir indícios de produção de tal espéciede armas. Kay saiu do Iraque no dia 23 de janeiro de 2004. Disponível em http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2004/04/05/ult729u35489.jhtm. Data de Acesso: 05/04/2004. No dia 03/06/2004, George Tenet pediudemissão de seu cargo, alegando “razões pessoais”. Ele permanece no cargo até julho de 2004, quando serásubstituído interinamente por John McLaughlin, seu substituto. Tenet tinha sido nomeado pelo ex-presiden-te Bill Clinton em maio de 1997 e foi confirmado em seu cargo por Bush. Tinha recebido numerosas críticaspor causa do papel desempenhado pela CIA no caso das supostas armas de destruição em massa no Iraque,o principal argumento defendido pelo governo dos Estados Unidos para ir à guerra em março de 2003.

36 Apesar de, em uma análise rápida, parecer que o governo americano sempre manteve uma postura contráriaàs barbáries cometidas por Saddan Hussein ao longo de seus mais de vinte anos de ditadura no Iraque, érelevante notar que, no início da década de 1980, o ditador foi um dos maiores aliados dos americanos noOriente Médio. Naquele momento, Saddan travou uma guerra contra a República Islâmica do Irã, que seencontrava sob o comando do Aiatolá Khomeini, tendo em vista que o Xá Reza Palehvi tinha se exilado.Em 20 de dezembro de 1983, inclusive, houve encontro pessoal entre Saddan e Donald Rumsfeld, atualsecretário de defesa dos EUA. A guerra se estendeu até por volta de 1988, o Iraque sempre recebendoapoio logístico e militar dos Eua. Morreram cerca de 700.000 pessoas na guerra, entre iraquianos eiranianos. Neste meio tempo, em 1985, Saddan utilizou armas químicas contra a aldeia curda de Halabja,matando 5.000 civis. Todavia, foi apenas em 1991, quando da invasão do Kuwait, que os Estados Unidosentraram em guerra com o Iraque, em operação que ficou conhecida como “Tempestade no Deserto”, queresultou na morte de 100.000 iraquianos, a grande maioria de civis.

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A guerra contra o Iraque foi declarada oficialmente no dia 20 de mar-ço de 2003. Com o fim da guerra, ou pelo menos dos principais combates,o qual foi declarado em 1º de maio de 2003, tropas americanas e inglesas(polonesas também, dentre outras) encontram-se atualmente no territó-rio iraquiano. No entanto, atentados a soldados são quase diários, e onúmero de soldados mortos desde o fim oficial dos conflitos já iguala (ousupera) as baixas anteriores.

Ao longo dos combates, e após, escândalos vieram a tona: os dossiêsfeitos pelos governos americano e britânico, referentes à existência dearmas de destruição em massa no Iraque, foram postos em cheque. NaInglaterra, um dos cientistas envolvidos foi encontrado morto, sendo quea versão oficial apontou para suposto suicídio. Bush admitiu, em discurso,que foi usada falsa informação para embasar a guerra.

No dia 19 de agosto de 2003, às 16h30min, ocorre um ataque terroristaà sede da ONU37 na capital iraquiana, o maior até hoje perpetrado con-tra a instituição: um caminhão com 700 kg de explosivos se choca e des-trói parte do prédio, matando, dentre as vinte e duas vítimas, o funcioná-rio da organização Sérgio Vieira de Mello, brasileiro, Chefe do Alto Co-missariado para os Direitos Humanos, que estava em missão naquele país,denominado pela revista Istoé como “mártir brasileiro” 38 . No dia 22 desetembro de 2003, outro atentado foi realizado, desta vez resultando emdois mortos e dezessete feridos.

Pressentindo que de modo isolado a reconstrução do Iraque39 seráuma tarefa difícil, principalmente no que se refere à manutenção dasegurança, o presidente Bush, em recente discurso na ONU, concla-mou os demais países a enviar tropas para aquele país. No entanto,uma questão impediu a obtenção de um consenso: os Eua não abrem

37 Um dos motivos do êxito do ataque teria sido o parco e ineficaz nível de segurança proporcionado pelas tropasde coalizão à ONU, bem assim a infiltração de terroristas no corpo de seguranças iraquianos que protegiamas instalações.

38 A jornada de Sérgio Vieira de Mello na ONU merece ser relatada, e a manchete da Revista Istoé, edição nº1769, bem retrata as realizações deste brasileiro. Entrou na organização aos 21 anos, dedicando 34 anos desua vida às causas humanitárias. Formado em filosofia e com doutorado em Ciências Políticas pelaSorbonne, era um dos nomes mais cotados para substituir Kofi Annan no cargo de Secretário-Geral, eexercia a função de Alto Comissário para Direitos Humanos. Atuou em inúmeros países e regiões que seencontravam em conflito, como Angola, Kosovo, Timor Leste, etc.

39 São estimados U$36 bilhões para a plena recuperação do Iraque, em três anos, ou U$55 bilhões, em quatroanos, segundo o Banco Mundial. Atualmente, a transição de governo pós-Saddan está sendo coordenadapelo diplomata americano Paul Bremmer.

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mão de liderar o processo de reestruturação política e econômica doIraque40 .

Contrários a este posicionamento foram os discursos do presidente doBrasil e da França, tendo em vista que defenderam que a ONU deveriaocupar um papel central na restauração do Iraque41 , devendo ser estabe-lecido imediatamente um governo provisório naquele país42 .

Com a nova onda de atentados perpetrados contra o exército america-no, inclusive quando da estada de John Aschcroft em solo iraquiano,bem assim o aumento do número de saques, a ONU avisou que está redu-zindo drasticamente, senão totalmente, o número de integrantes de suamissão. Outras agências de assistência humanitária também aventaram apossibilidade de abandonar o país.

Em retaliação àqueles países que não apoiaram a guerra contra o Iraque,

40 Existem especulações no sentido de que já houve acordos fechados para que empresas americanas trabalhemna reconstrução do Iraque. Um dos escândalos envolveria a questão de superfaturamento de contratos decompra de gasolina. Uma auditoria realizada pelo Pentágono verificou que uma subsidiária da empresa dosetor de petróleo Halliburton Co. superfaturou US$ 61 milhões num contrato de compra de gasolina doKuwait para o Iraque. A Halliburton já teve como diretor-executivo o vice-presidente dos EUA, DickCheaney, e sua subsidiária Kellogg Brown and Root (KBR) foi contratada — sem licitação — em março de2004 pelo governo dos EUA para recuperar a indústria de petróleo iraquiana, destruída na guerra.

41 Existe um relatório a respeito da atual situação no Iraque, de autoria de Rend Rahim Francke, diretor da“Fundação do Iraque”, baseado em uma viagem sua a Bagdá, ocorrida no período compreendido entre os dias27 de julho a 21 de agosto de 2003, abordando dentre outros aspectos o atual status da segurança, dos serviços,da economia, da vida política, do processo constitucional, e da informação e mídia na capital iraquiana.Quanto à segurança, Francke assim se pronuncia: “comparado com o mês de abril, a segurança, em todos osníveis, está bem pior. Além dos ataques às forças de coalizão, atos de sabotagem contra instalações e crimescontra iraquianos, atos espetaculares de terrorismo se proliferam (...) roubo de carros há em demasia, eocasionalmente os proprietários são mortos. Roubo à mão armada é freqüente nas ruas de Bagdá, e muitascasas foram saqueadas (...) A população procura as forças de coalizão, a fim de obter segurança (...) Conformea situação deteriora, a relação entre os iraquianos e as tropas americanas piora: os iraquianos estão furiosose frustrados com os americanos; o sentimento geralmente é recíproco”. Disponível em http://www.iraqfoundation.org/news/2003/isept/26_democracy_watch.html. Data de Acesso: 20/11/2003.

42 Os Estados Unidos, no dia 02/10/2003, apresentaram projeto de resolução ao Conselho de Segurança, nosentido de que a soberania do país deve ser transferida após a redação da Constituição do país e arealização de eleições – o que duraria pelo menos dois anos. Rússia e França já criticaram a proposta. Aresolução tem como objetivo que outros países contribuam com tropas e dinheiro, no Iraque. Atualmente,a previsão de “entrega” do país aos iraquianos está agendada para o dia 30/06/2004. O governo interino,escolhido pelo Conselho de Governo do Iraque, formado por 25 políticos, que assumirá o poder formalmen-te após esta data, tem como presidente o muçulmano sunita Ghazi Mashal Ajil al-Yawer. Ele tem 46 anose é membro destacado da tribo Shamar, que tem 3 milhões de membros (sunitas e xiitas) espalhados porSíria, Iraque, Arábia Saudita e Kuwait. O novo gabinete tem um primeiro-ministro, um vice-premier parasegurança e 31 ministros, dentre eles seis mulheres. Interessante notar que o primeiro-ministro, IyadAllawi, político xiita educado na Grã-Bretanha, tem estreitos laços com o Departamento de Estadoamericano e com a CIA. Uma das primeiras tarefas do governo será negociar um acordo crucial sobre asituação legal das forças de ocupação lideradas pelos EUA, que irão continuar no país depois que asoberania for devolvida aos iraquianos. As eleições nacionais estão previstas para o fim de 2005.

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o Ministério de Defesa americano divulgou uma listagem, em dezembro de2003, contendo os países que poderiam trabalhar na reconstrução do Iraque,em contratos que totalizam U$18,6 bilhões. Foram vetados a Alemanha, aFrança, a Rússia, o Canadá e também o Brasil, dentre outras nações.

1.3 O FuturoA sétima lei (natural) é “na vingança – isto é, a retribuição do mal com

o mal – os homens não dêem importância ao mal passado, mas só importân-cia ao bem futuro”. O que nos proíbe aplicar castigo com qualquer inten-ção que não seja a correção do ofensor ou como exemplo para os outros.Esta lei é a conseqüência da anterior, que ordena o perdão em vista dasegurança do tempo futuro. Além do mais a vingança que não visa ao exemploou ao proveito vindouro, é um troféu ou glorificação com base no danocausado ao outro que não tende para fim algum já que o fim é semprealguma coisa vindoura. Ora, glorificar-se sem tender a um fim é vanglória,e contrário à razão. Causar dano sem razão tende a provocar a guerra, o queé contrário à lei natural. Geralmente se designa pelo nome de crueldade43 .

É evidente que a atual nova conjuntura causa certo espanto, uma vezque fere todo um arcabouço levantado desde 1776 pelos americanos, ten-do por base a democracia, a livre expressão e a igualdade, tudo imantadopelo devido processo legal.

Os ataques das forças de coalizão ao Iraque, sem o apoio da ONU,sinalizam a provável supressão de decisões baseadas no multilateralismo ena negociação diplomática. Se necessário for, a nação mais poderosa doplaneta agirá sem consultar eventuais aliados. Esse “machismo militar”,termo usado por Immanuel Wallerstein44 , é totalmente contrário aos ve-

43 HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução Alex Marins São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. p. 117.44 Sobre os Estados Unidos, Wallerstein diz que tal nação tem “estado em declínio lento, mas contínuo desde os anos

70. Os falcões americanos que chegaram ao poder com Bush argumentavam que o declínio americano fora o errodas administrações anteriores, e nisso enganavam-se tomando a conseqüência pela causa. Ofereceram umasolução simples: um consumado machismo militar e um desdém unilateral pelo resto do mundo levariam os EUAa alcançar seus objetivos principais, pondo um fim nas aspirações européias e da Ásia Oriental por autonomiapolítica na cena mundial, e eliminando qualquer tipo de proliferação de armas nucleares no sul globalizado. Pormeio de suas políticas- o naufrágio do acordo de Kyoto; as exigências de isenção dos EUA em relação às leisinternacionais; a invasão unilateral do Iraque; o desenvolvimento de novas armas nucleares –, o governoamericano conseguiu levar a qualidade de suas relações com o Canadá e a Europa Ocidental a um nívelhistoricamente muito baixo, atolou-se numa guerra de guerrilhas no Iraque impossível de ser vencida, imprimiunovo ímpeto tanto às redes terroristas quanto aos movimentos islâmicos radicais pelo mundo afora, apressou ocolapso do dólar e acelerou a corrida por armas nucleares na Coréia do Norte, no Irã e, provavelmente, em meiadúzia de outros países (...)”. In Revista Carta Capital, de 20 de agosto de 2003. Disponível em http://cartacapital.terra.com.br/site/exib e_materia.php?id_materia=9 04. Data de Acesso: 15/09/2003.

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tores de orientação de política exterior apresentados, em 08 de janeiro de1918, ao Congresso americano, pelo então presidente Woodrow Wilson,oportunidade em que elencou quatorze pontos45 a serem perseguidos pe-las nações, dentre eles o de autodeterminação e segurança coletiva, bemcomo a criação de uma Sociedade de Nações, a fim de se obter a paz.

Como refere Henri Kissinger,

Para os norte-americanos, a dissonância entre sua filoso-fia e o pensamento europeu acentuava o mérito de suascrenças. Ao proclamar a ruptura radical com os preceitose as experiências do Velho Mundo, a idéia Wilsoniana deuma ordem mundial se derivou da fé norte-americana nanatureza essencialmente pacífica do homem e de umasubjacente harmonia do mundo. Daí se concluía que asnações democráticas, por definição, eram pacíficas; ospovos aos quais se outorgara a autodeterminação não teri-am razão alguma para ir à guerra ou para oprimir a ou-tros. E uma vez que todos os povos houvessem provado osbenefícios da paz e da democracia, sem dúvida se ergueri-am como um só para defender tais conquistas.46

Não é com a prática de tortura47 que os Estados Unidos conseguirão

45 Os quatorze pontos eram especificamente os seguintes: exigência da eliminação da diplomacia secreta emfavor de acordos públicos; liberdade nos mares; abolição das barreiras econômicas entre os países; reduçãodos armamentos nacionais; redefinição da política colonialista, levando em consideração o interesse dospovos colonizados; retirada dos exércitos de ocupação da Rússia; restauração da independência daBélgica; restituição da Alsácia e Lorena à França; reformulação das fronteiras italianas; reconhecimentodo direito ao desenvolvimento autônomo dos povos da Áustria-Hungria; restauração da Romênia, daSérvia e de Montenegro e direito de acesso ao mar para a Sérvia; reconhecimento do direito ao desenvol-vimento autônomo do povo da Turquia e abertura permanente dos estreitos que ligam o mar Negro aoMediterrâneo; independência da Polônia; e criação da Liga das Nações.

46 KISSINGER, Henry. La Diplomacia. Tercera reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 218.47 O advogado Alan Dershowitz (um dos mais célebres advogados americanos), em entrevista à Veja, confirma

a ocorrência de tortura pelo governo americano, em sua cruzada contra o terrorismo: “(..) O que eu disseé que a tortura vem sendo usada pelos Estados Unidos em sua luta total contra o terror. O que estáacontecendo hoje em meu país é um dos piores tipos de crime de guerra que podem existir, a piormodalidade de combate. Estamos utilizando métodos brutais de interrogatório e não estamos admitindoisso publicamente. (...) Os Estados Unidos são uma democracia, porém tem agido abusivamente na lutapara acabar com o terror. A tortura e a violação de liberdades civis por parte dos Eua estão fazendo muitomal a esse país. (..) A tortura está sendo utilizada por nossas autoridades, e elas não dão sinais de queestejam dispostas a parar com essa prática. Então, que se estabeleçam regras democráticas para o uso dacoerção física nos interrogatórios de acusados de terrorismo. Esse método só poderia ser utilizado, a meu

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suprimir ou ao menos refrear a prática do terrorismo. A intolerância e atentativa americana de impor ao mundo a sua versão própria da “verdade”e do “bem”, causarão efeitos ainda mais danosos, em um futuro próximo.

E, na verdade, atualmente estamos assistindo a uma transição, umatendência a uma perspectiva e uma “concepção multicultural dos direi-tos humanos” 48 , baseada principalmente na tolerância. É mais provávelque com essa visão equilibrada possamos alcançar uma paz e um federa-lismo mundial, respeitador das idiossincrasias dos cidadãos, bem assimdas características únicas das nações, respeitando as identidades própriase os valores arraigados de cada uma das sociedades que formam o globo.

Apenas com a transmutação do atual paradigma, baseando-se na PazPerpétua prelecionada por Kant49 é que poderemos evitar guerras seme-

ver, com autorização judicial, e só em casos extremos (..)”. In Revista Veja, edição 1820, 17 de setembro de2003. Páginas Amarelas p. 11-15. A questão levantada por Dershowitz é instigante. Como um EstadoDemocrático de Direito pode autorizar a prática de tortura, a qual certamente é um crime hediondo e ferede morte o princípio da dignidade humana? A respeito disso, Ronald Dworkin escreveu artigo emnovembro de 2003, onde tece críticas ao Patriot Act e à atual conjuntura política norte-americana,inclusive no que se refere às torturas sofridas pelos prisioneiros de guerra capturados pelos americanos, emGuantánamo e em outras bases. DWORKIN, Ronald. Terror & the Attack on Civil Liberties. The NewYork Review of Books, Volume 50, number 17, 6 de novembro de 2003. Disponível em http://www.nybooks.com/articles/16738. Data de Acesso: 29/03/2204. Recentemente, surgiu nova notícia dando conta da prática detortura, desta vez efetuada contra prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib, nos arredores deBagdá, o que resultou, pelo menos, na punição de seis oficiais. As imagens dos prisioneiros foram veicula-das, pela primeira vez, no dia 28/04/2004, no programa 60 minutes 2, da rede americana CBS.

48 SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In Revista Crítica deCiências Sociais, nº 48, julho de 1997, p. 11-32

49 Como refere Augusto Zimmermann, “O essencial do projeto de Paz Perpétua é a postulação de conquista daliberdade universal alcançável através de regras de Direito que permitam a harmonização da condutaexterna de um determinado Estado, com o das demais coletividades estatais. O que pretende Kant,outrossim, é realizar a transplantação do ideário iluminista da lei como geradora de liberdade individual, paraa perspectiva do Direito conquanto instrumento pacificador das relações entre os povos, por força dodesenvolvimento de uma Constituição geral dos Estados nacionais. Na visão kantiana, se os Estados perma-necessem, no âmbito das relações internacionais desprovidos de regras básicas, que em última análise são asque permitem a existência de liberdade, eles continuariam a violar os direitos dos cidadãos, em função deseus propósitos expansionistas. Assim sendo, como os Estados podem escravizar as futuras gerações comdívidas de guerras e corromper a moralidade pública, a realização de um autêntico Estado de Direito em nívelinternacional minimizaria esta ameaça, mas estaria dependente da formação de uma nova ordem federativamundial, por Kant denominada de foedus pacificum”. In ZIMMERMANN, Augusto. Fundamentos Neokantianospara um projeto federalista de paz perpétua. Disponível em www.achegas.net/numero/dois/zimmermann.htm.Data de Acesso: 12/11/2003. Sobre os melhores tipos de estados para formar tal ordem, Miguel Duclós observaque “Os estados republicanos, na federação proposta na Paz Perpétua são os mais aptos a manter as relaçõesleais necessárias. Sem essa Federação os Estados estariam como que em um segundo estado de natureza, umavez que em relação uns aos outros, não há poder comum capaz de legislar para todos imparcialmente. Talconstituição exigiria uma conduta extremamente ética por parte do estadista, a ponto de Kant comentar queseria necessário um “exército de anjos” para mantê-la. In DUCLÓS, Miguel. Aspectos da Filosofia Moral ePolítica de Kant. Disponível em: www.consciencia.org/moderna/kantpolitica.shtml. Acesso em: 12/11/2003

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lhantes às ocorridas no século passado e as que atualmente ocorrem noIraque e no Afeganistão50 .

Quanto ao futuro, uma previsão é certa. A população americana ain-da vai demorar muito para recuperar a confiança na segurança do país. Oblecaute ocorrido no dia 14 de agosto de 2003, que paralisou boa parte dacosta leste, é um retrato fidedigno do pavor ainda existente no ânimo doshabitantes daquela nação. O terror rondará a pátria de Thomas Jefersonpor muito tempo.

A onde de atentados no mundo continua. O mais emblemático foi oatentado de Madrid, ocorrido no dia 11 de março de 2004, exatos dois anose meio após o atentado de 11 de setembro. Foram explosões no metrô, quederam causa à morte de cerca de 200 pessoas, com 1.400 feridos.51

Enquanto isso, o conflito judaico-palestino se acirra. Os atentadosperpetrados por grupos terroristas palestinos contra a população judaicae, em contrapartida, o plano de eliminação sistemática dos líderes pales-tinos, dentre eles o chefe do Hamas, Abdelaziz al-Rantissi, por parte deAriel Sharon e do governo israelense, tornam utópicas quaisquer tentati-vas de acordo pacífico entre os dois povos.

A construção do Muro por parte de Israel, que inclusive está sob aná-lise da Corte Internacional52 , em Haia, serve apenas de elemento maxi-mizador da revolta do povo palestino, símbolo máximo da intolerância,mais um fator a acirrar a intolerância no Oriente Médio.

50 Não é o objetivo deste artigo tentar especificar ou estudar melhores maneiras de realizar guerras ou qualquernatureza de ataques bélicos, mas, primando pela tentativa de sempre encontrar a forma mais amena desituações que invariavelmente poderão ocorrer, são reconfortantes os ensinamentos de Sun Tzu: “Lutar evencer em todas as batalhas não é a glória suprema; a glória suprema consiste em quebrar a resistência doinimigo sem lutar. Na prática arte da guerra, a melhor coisa é tomar o país inimigo totalmente e intato;danificar e destruir não é tão bom. Assim, também é melhor capturar um exército inteiro que destruí-lo;capturar um regimento, um destacamento ou uma companhia, sem os aniquilar. TZU, Sun. A Arte daguerra. Século VI A.C; adaptação e prefácio de James Clavell; tradução de José Sanz – 24ª ed. – Rio deJaneiro: Record, 2001. pg. 54.

51 A título comparativo, perceba-se que o ETA (Euskadi ta Askatasuna - grupo de libertação do país basco), matoucerca de 850 pessoas desde 1968, em sua luta por um país independente.

52 Para maiores detalhes do andamento do procedimento, pode-se acessar o seguinte endereço: http://212.153.43.18/icjwww/idocket/imwp/imwpframe.htm. Acesso em 04/05/2004.

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2. O PATRIOT ACT

2.1 Características do Patriot ActO Patriot Act53 foi a reação mais visível e imediata tomada pelo gover-

no americano para combater os atos de terrorismo perpetrados no fatídicodia 11 de setembro de 2001. Assinada pelo presidente George Bush em 26de outubro de 2001, após rápida e quase unânime aprovação do Sena-do54 , a citada lei expande o nível de atuação de agências nacionais desegurança (FBI)55 , bem como das internacionais de inteligência (CIA)56 ,conferindo-lhes poderes até então inéditos. Seu objetivo principal era ode prender os responsáveis pelo ataque; atualmente, visa evitar ocorrên-cias de igual natureza no território norte-americano.

O texto integral, composto por 342 páginas, aborda mais de quinzeestatutos57 , e, além de autorizar agentes federais a rastrear e interceptarcomunicações de eventuais terroristas, traz as seguintes inovações, refe-ridas por Charles Doyle: a) torna mais rigorosas leis federais contra lava-gem de dinheiro; b) faz com que leis de imigração sejam mais exigentes;c) cria novos crimes federais; d) aumenta a pena de outros crimes anteri-ormente tipificados, e e) institui algumas mudanças de procedimento,principalmente para autores de crimes de terrorismo58 .

Pode-se visualizar, até mesmo pelo contexto desta lei e da atual políti-

53 Também conhecido como USAPA (United States Patriot Act, acrônimo para Uniting and Strengthening America byProviding Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism e Lei Pública nº 107-56. Para acessarcópia eletrônica do mesmo: http://news.findlaw.com/cnn/docs/terrorism/hr3162.pdf. Deve-se, aqui, desta-car o teor da sigla, que significa “unindo e fortalecendo a América ao conceder instrumentos adequadosexigidos para interceptar e obstruir o terrorismo”, tendo um caráter ideológico e emblemático da próprianomenclatura do ato. É inegável que há, mesmo que intrinsecamente, uma noção de união e luta daAmérica para criar instrumentos para obstrução do terrorismo, retratadas nesta lei.

54 A única exceção, de um universo de 88 senadores, foi a de Russell Feingold, um democrata do Estado doWisconsin, que votou contra a lei. Uma das maiores críticas ao Patriot Act foi o fato de, apesar das polêmicasdisposições contidas em seu bojo, não terem ocorrido discussões e debates mais aprofundados sobre o seuteor.

55 Federal Bureau of Intelligence.56 Central Intelligence Agency.57 Em inglês, statute tem o significado de lei.58 DOYLE, Charles. Senior Specialist, American Division of Law. The USA patriot Act: A Legal Analysis. 15 de

abril de 2002. Congressional Research Service. The Library of the Congress. p. 02.

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ca norte-americana, a existência de choque entre direitos fundamentais:de um lado, o direito fundamental à segurança nacional, inerente à co-munidade americana, e, do outro, as liberdades civis dos cidadãos ameri-canos. A discussão sobre o tema vem ocasionando um grande número depalestras, colóquios e conferências59 .

Para que possamos visualizar um choque de direitos, importante é aobservação de Canotilho, o qual esclarece que “haverá colisão ou confli-to sempre que se deva entender que a Constituição protege simultanea-mente dois valores ou bens em contradição concreta60 ”. Ainda segundo odoutrinador português, “uma colisão autêntica de direito fundamentaisocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seutitular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outrotitular”61 .

Evidente que a análise profunda das inúmeras seções do Patriot Actensejaria trabalho mais minucioso e detalhado. Todavia, o que se buscaé, partindo-se daquelas disposições que tem causado mais controvérsia,proceder a um teste de proporcionalidade, a fim de constatar, por fim, sealgumas restrições de direitos fundamentais levadas a cabo pela citadalei ferem o núcleo essencial de direitos fundamentais da população nor-te-americana.

Logo, “a questão do conflito de direitos ou de valores depende, pois, deum juízo de ponderação, no qual se procura, em face de situações, formas

59 Podemos citar, a título meramente exemplificativo, painel realizado em 05/12/2001, intitulado “Liberdadeversus Segurança”, na Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos, oportunidade em que quatroprofessores, Gene Nichol, Burton Craige (professores de direito), Douglas Maclean (professor de filosofia)e Buckner F. Melton Jr. (especialista em Direito Constitucional), questionaram a atual política norte-americana, após os atentados de 11 de setembro, ressaltando a necessidade de se balancear liberdade esegurança. O professor Maclean, referiu que as medidas tomadas pela administração Bush estariamferindo a sexta emenda (devido processo legal), principalmente devido ao fato da instalação de TribunaisMilitares. Fonte: http://gazette.unc.edu/archives/01dec12/file.11.html. Em 02 de maio de 2002, “dia mun-dial da Liberdade de Imprensa” (estabelecido pela Assembléia-Geral da ONU, por meio da decisão nº 48/432 de 2012/1993), ocorreu, na sede da ONU, um painel de jornalistas tanto da imprensa escrita como datelevisão, os quais discutiram liberdade de imprensa no contexto do terrorismo, discursando sobre ques-tões como segurança nacional e internacional versus liberdade de imprensa, cobertura televisiva dejulgamentos de terroristas e segurança de jornalistas. Fonte: http://www.un.org/News/Press/docs/2002/noteno5728.doc.ht. Para maiores detalhes do evento, visitar o sítio http://www.un.org/News/Press/docs/2002/PI1420.doc.htm.

60 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra:Coimbra Editora, 1998. p 220.

61 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: LivrariaAlmedina, 1999. p. 1191.

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ou modos de exercício específicos (especiais) dos direitos, encontrar e jus-tificar a solução mais conforme ao conjunto de valores constitucionais62 ”.Tenta-se, assim, efetuar tal ponderação, nos três casos que seguem.

A questão é de suma importância, até mesmo por que um segundo atolegislativo, complementador do Patriot Act, já denominado de Patriot ActII, está sendo elaborado pelo Poder Legislativo63 americano.

Existem, também, projetos de leis64 , tanto de deputados como de sena-dores americanos, buscando revogar e/ou modificar certos dispositivos doPatriot Act. Um destes projetos, de autoria do congressista Dennis Kucini-ch, denonimado de Benjamin Franklin True Patriot Act, foi proposto em 24 desetembro de 2003, e busca a revogação de mais de dez seções da lei.65 Háinclusive, uma petição on-line pleiteando a total revogação do Patriot Act66 .

62 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra:Coimbra Editora, 1998. p. 224.

63 Tal projeto de lei, denominado de Domestic Security Enhancement Act of 2003, ainda não foi aprovado, nem postoem votação. Porém, seu “rascunho”, datado de 03/01/2003, possui 80 páginas, e uma cópia qualificada deconfidencial pode ser obtida pela internet, se a mesma já não retirada do ar, no site do Center for PublicIntegrity: http://www.publicintegrity.org/dtaweb/downloads/Story_01_020703_Doc_1.pdf, acessado às10h35min do dia 31/07/2003. A cópia continua disponível, pelo menos até seu último acesso, em 27/04/2004.

64 Apenas a título de exemplo, podem-se citar os seguintes projetos de lei: Freedom to Read Protection Act , de autoriado deputado republicano Bernie Sanders; o Patriot Oversight Restoration Act, proposto em 01/10/2003, deautoria do senador Leahy, que visa estender a outras disposições a prescrição determinada a certos artigos dalei, que, pela seção 1017, não estarão mais em vigor a partir do dia 31/05/2005. Há, ainda, o The Protecting theRights of Individuals Act, registrado sob o número S.1552, proposto em 1º de agosto de 2003, pela senadora LisaMurkowski o qual visa dentre outras disposições, fazer com que apenas por ordem judicial as autoridadespossam conduzir vigilância eletrônica. Segundo o informe enviado à imprensa, o fito desta lei é de “colocarmodestos freios e contrapesos (check and balances) nas disposições mais problemáticas da lei”. Fonte: http://www.cdt.org/press/030801press.shtml. Para informações sobre a tramitação dos referidos projetos, bem assimsobre outras leis referentes ao tema, acessar http://bordc.org/legislation.htm#Senate. Essencial também citaro Security and Freedom Ensured Act of 2003 (SAFE) colocado em pauta na Câmara de Deputados em 21 deoutubro de 2003, o qual propõe mudanças em disposições do Patriot Act, incluindo questões atinentes alimitação na autoridade de pós-notificar os mandados de busca e a modificação da definição de terrorismodoméstico, coadunando-se, aliás, com nosso ponto de vista. Para verificar a tramitação do mesmo, bastaacessar http://www.congress.gov/cgi-bin/bdquery/z?d108:S.1709:. Para acessar sua íntegra, existe o endereçoeletrônico http://www.fas.org/irp/congress/2003_cr/hr3352.html.

65 A informação à imprensa pode ser acessada no próprio sítio da Câmara de Deputados dos Estados Unidos, emhttp://www.house.gov/apps/list/press/oh10_kucinich/030924True Patriot.html. O citado deputado é umdos críticos mais ácidos da atual política americana, sendo contrário à guerra contra o Iraque, além doPatriot Act. Nas suas palavras: “Depois de 11 de setembro, os americanos não autorizaram a deterioraçãoda primeira, quarta, sexta, oitava e décima quarta emendas” (...) Num momento em que duzentos anos dafé americana nas liberdades civis é arriscada por dois anos de medo, eu acredito que com o ‘True PatriotAct’, o Congresso pode alcançar tanto liberdade como segurança para todos os americanos.

66 A petição, situada no endereço http://www.petitiononline.com/sabene/petition.html é interessante Ei-la:“(...) Nós, os abaixo-assinados, por meio deste, declaramos que a legislação anti-terrorismo aprovada pelo

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2.2 Análise de três Disposições do Patriot ActPassemos, agora, à análise de três pontos que se configuram como pro-

blemáticos na lei, quais sejam, a) a definição do crime de terrorismo do-méstico; b) a detenção compulsória de terroristas suspeitos e os tribu-nais militares, e c) a pós-notificação dos mandados de busca e apreensão.

2.2.1 Definição de Terrorismo DomésticoUma das mais polêmicas disposições do Patriot Act é aquela contida no

parágrafo 802 do citado documento legal, o qual proclama a definição denovo crime, denominado de terrorismo doméstico, conceituado da se-guinte forma:

Seção 802. Definição de Terrorismo Doméstico (...)

omissis

(...)

(5) o termo terrorismo doméstico significa atividades

nosso Congresso desde os trágicos e mortíferos ataques de 11 de setembro, seriamente atingem e infringemproteções constitucionais que estão consagradas na nossa ‘Bill of Rights’. Nós declaramos que não é patrió-tico, mas mais não-americano destruir as liberdades que fazem com que os americanos amem seu país. Nósdeclaramos que um governo aberto é essencial para a democracia e que impondo novos níveis de sigilo nossogoverno parece menos probo, diminui a capacidade das pessoas serem informadas a respeito de decisões dogoverno. Nós declaramos que enfraquecendo a força dos poderes judiciário e legislativo de nosso governo,simultaneamente dando poderes completamente ilimitados ao poder executivo fere o nosso princípio ameri-cano da separação dos poderes. Nós somos contrários ao uso de tribunais militares secretos nos quais não éproporcionado um advogado de defesa independente, e pessoas podem ser sentenciadas à morte e executadassem conhecimento e aprovação do povo americano. Nos opomos às ordens do presidente para obstruirregistros presidenciais, deste modo negando nossa capacidade de julgar as ações do executivo. Nos opomosao encarceramento indefinido de estrangeiros se nenhuma acusação for colocada contra eles. Nos opomosainda mais quanto o aprisionamento de uma pessoa sem publicamente ser declarado o crime pelo qual estejasendo acusada. Nos opomos à provisão do Patriot Act referente aos mandados de busca e apreensão, queesmaga as proteções da quarta emenda contra buscas irracionais e confisco, negando aos cidadãos o seudireito de ser cientificado de que sua propriedade está sendo vasculhada e seu direito de protestar contraessa busca se a autorização da mesma estiver irregular. Nos opomos à coleta de registros de negócios privadospor ordem de cortes secretas e o impedimento desses cidadãos que recebem tais ordens de falar publicamentesobre elas.Isso é uma violação tanto da primeira como da quarta emenda. Nos opomos à destruição do e-maile da privacidade na internet proporcionadas pelo Patriot Act. Além disso, o compartilhamento de tais dados,de modo indiscriminado, entre um grande número de agências governamentais e até com governos estran-geiros é evidentemente intolerável. Por essas razões, nós requeremos a imediata revogação da “Lei Patriota”.Nós bradamos a nossos representantes eleitos para que ajam de acordo com a Constituição dos EstadosUnidos da América para desfazer essa ações que violam os princípios nucleares da América. Até a presentedata (16/04/2004, às 11h43h, horário de Brasília), existem 14.409 assinaturas.

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que (A) configurem atos perigosos à vida humana quesão uma violação de leis criminais dos Estados Unidosou de qualquer Estado; (B) que pareçam pretender (i)intimidar ou coagir uma população civil; (ii) influenciara política de um governo por intimidação ou coação; ou(iii) visem modificar a conduta de um governo utilizan-do-se de destruição em massa, assassinatos ou seqües-tro; (...)

omissis”67

Após leitura rápida constata-se que a definição do que seja terrorismodoméstico é ampla em demasia; as expressões utilizadas, tais como “atosperigosos”, “pareçam pretender”, “influenciar a política de um governopor intimidação ou coação”, podem ser utilizadas ao bel-prazer das auto-ridades americanas. Se mal utilizadas, podem, inclusive, incriminar pes-soas que simplesmente estão colocando em exercício seus direitos de ex-pressão, de reunião, de dissenso e de protesto.

Tal atitude atingiria, certamente, condutas que estariam protegidaspela 1ª emenda68 da Constituição dos Estados Unidos, que concede, den-tre outros direitos, a liberdade de expressão, o de reunião pacífica e o depeticionar o governo para reparação de injustiças.

Destarte, na mesma linha de pensamento referente a evolução juris-

67 No original: SEC. 802. DEFINITION OF DOMESTIC TERRORISM. (a) DOMESTIC TERRORISMDEFINED.—Section 2331 of title 18, United States Code, is amended— (1) in paragraph (1)(B)(iii),by striking ‘‘by assassination or kidnapping’’ and inserting ‘‘by mass destruction, assassination, orkidnapping’’; (2) in paragraph (3), by striking ‘‘and’’; (3) in paragraph (4), by striking the period at theend and inserting ‘‘; and’’; and (4) by adding at the end the following: ‘‘(5) the term ‘domesticterrorism’ means activities that—‘‘(A) involve acts dangerous to human life that are a violation ofthe criminal laws of the United States or of any State; ‘‘(B) appear to be intended— ‘‘(i) tointimidate or coerce a civilian population; ‘‘(ii) to influence the policy of a government byintimidation or coercion; or ‘‘(iii) to affect the conduct of a government by mass destruction,assassination, or kidnapping; and ‘‘(C) occur primarily within the territorial jurisdiction of theUnited States.’’. (b) CONFORMING AMENDMENT.—Section 3077(1) of title 18, United StatesCode, is amended to read as follows: ‘‘(1) ‘act of terrorism’ means an act of domestic or intenationalterrorism as defined in section 2331;’’.

68 A primeira emenda é assim escrita: “1ª Emenda – O Congresso não poderá legislar no sentido de estabeleceruma religião, ou de proibir o livre exercício do culto, ou de restringir a liberdade de expressão, ou deimprensa, ou o direito de o povo se reunir pacificamente e apresentar petições ao Governo para reparaçãode injustiças”. In ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA AnotadaSão Paulo: LTR, 2001. p. 69.

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prudencial americana ocorrida com as “loitering laws”69 , os verbos nucle-ares dos tipos penais deveriam ser mais detalhados, a fim de que o choquede direitos existentes no caso em tela não fulminasse o núcleo duro deum ou mais direitos fundamentais.

Outras disposições que, em princípio, ferem a 1ª emenda: seção 215do Patriot Act; decreto do procurador-geral dos Estados Unidos que au-menta a vigilância de organizações políticas e religiosas; decreto do pro-curador-geral dos Estados Unidos minando requerimentos e petições pro-tegidos pela Lei de Liberdade de Informação70 .

2.2.2 Detenção Compulsória de Terroristas Suspeitos e osTribunais Militares

A justiça militar está para a justiça assim como a músicamilitar está para a música71

O Patriot Act concedeu uma gama de poderes inédita ao Procurador-geral dos Estados Unidos, atualmente, John Aschcroft. Uma delas refere-se a prerrogativa de deter, de modo compulsório, pessoas suspeitas de seremterroristas. Para colocar tais suspeitos sob custódia, o procurador-geral tema capacidade de certificar/atestar que um estrangeiro esteja descrito emuma das seções abaixo citadas, ou esteja empenhado em qualquer outraatividade que ponha em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.

A seção modificada é a de nº 412, da Lei de Imigração e Nacionalida-de, que passa a viger com a seguinte inserção:

69 As loitering laws, ou leis de vadiagem, configuram-se como exemplo de diplomas legais em que ocorreram abusos quandoda tipificação de condutas criminosas. Os casos paradigmáticos são Papachristow v. City of Jacksonville, de 1972e Kolender v. Lawson, de 1983. No primeiro caso, oito indivíduos foram condenados em 1ª instância, sob a acusaçãode estarem vagando de carro, a esmo, sem destino, pelas ruas de um bairro, o que configuraria incursão nos termosde uma lei que dizia que “elementos perniciosos, vagabundos, pessoas licenciosas, que perambulam de um lugarpara outro, sem qualquer objetivo ou motivo legal, devem ser tidas como vadios, para efeitos legais”. A SupremaCorte anulou a condenação. No segundo, o réu Lawson tinha sido preso pela polícia por 15 vezes entre março de1975 e janeiro de 1977, cada uma dessas vezes caminhando tarde da noite numa rua isolada próximo a uma área dealta criminalidade ou em uma área comercial onde muitos arrombamentos haviam sido cometidos. A SupremaCorte novamente anulou a condenação. RUBIN, Daniel Sperb. Janelas Quebradas, Tolerância Zero e Criminalidade.Revista do Ministério Público. Porto Alegre, nº 49, Jan/Mar/2003. p. 186-187

70 Freedom of Information Act.71 A autoria da frase é atribuída a Georges Clemenceau, chefe de estado Francês na 1ª Guerra Mundial e um

dos formuladores do Tratado de Versalhes.

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“Seção 412. Detenção Compulsória de Suspeitos Terroris-tas; Habeas Corpus; Revisão Judicial

(...)

‘Seção 236A. (a) Detenção de terroristas estrangeiros. –

‘(1) Custódia. – O Procurador-Geral pode colocar sobcustódia qualquer estrangeiro que esteja certificado sob asdisposições do parágrafo (3).

(...)

‘(3) Certificação. – O procurador-geral pode certificar/ates-tar um estrangeiro sob este parágrafo se o mesmo tenharazoáveis fundamentos para acreditar que o estrangeiro -

(a) esteja descrito na seção 212(a)(3)(A)(i),212(a)(3)(A)(iii), 212(a)(3)(B), 237(a)(4)(A)(i),237(a)(4)(A)(iii), or 237(a)(4)(B); ou

(b) está empenhado em qualquer outra atividade que po-nha em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.72

Juntamente com a detenção compulsória de suspeitos terroristas, aquestão da implantação de tribunais militares é outro fato que acendediscussões sobre a política norte-americana. Tais tribunais aplicam-seapenas para não- americanos.73

72 O artigo, em sua íntegra, segue abaixo. Os pontos grifados são aqueles que foram traduzidos: SEC. 412.MANDATORY DETENTION OF SUSPECTED TERRORISTS; HABEAS CORPUS; JUDICIALREVIEW. (a) IN GENERAL.—The Immigration and Nationality Act (8 U.S.C. 1101 et seq.) is amended byinserting after section 236 the following: ‘‘MANDATORY DETENTION OF SUSPECTED TERRORISTS;HABEAS CORPUS; JUDICIAL REVIEW ‘‘SEC. 236A. (a) DETENTION OF TERRORIST ALIENS.—‘‘(1) CUSTODY.—The Attorney General shall take into custody any alien who is certified underparagraph (3). ‘‘(2) RELEASE.—Except as provided in paragraphs (5) and (6), the Attorney General shallmaintain custody of such an alien until the alien is removed from the United States. Except as provided inparagraph (6), such custody shall be maintained irrespective of any relief from removal for which the alienmay be eligible, or any relief from removal granted the alien, until the Attorney General determines that thealien is no longer an alien who may be certified under paragraph (3). If the alien is finally determined not tobe removable, detention pursuant to this subsection shall terminate. ‘‘(3) CERTIFICATION.—TheAttorney General may certify an alien under this paragraph if the Attorney General has reasonablegrounds to believe that the alien— ‘‘(A) is described in section 212(a)(3)(A)(i), 212(a)(3)(A)(iii),212(a)(3)(B), 237(a)(4)(A)(i), 237(a)(4)(A)(iii), or 237(a)(4)(B); or ‘‘(B) is engaged in any other activitythat endangers the national security of the United States. (…) omissis.

73 O precedente a justificar a implantação de tais tribunais seria a instituição de um, em junho de 1942, emplena Segunda Guerra Mundial, pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, quando oito alemães chega-ram na costa americana em dois submarinos. Tal precedente, entretanto, é totalmente criticado por LouisFischer, especialista em Separação de Poderes.

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A relação entre a seção 412 e a ordem militar do presidente Bush, queinstituiu tais tribunais, como diz Charles Doyle, é incerta. Essa ordem, de13 de novembro de 2001, permite o Secretário de Defesa deter estrangei-ros suspeitos como terroristas, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar,sem condições ou limitações expressas, exceto no que se refere a comida,água, abrigo, roupas, tratamento médico, e exercício religioso74 . Apesarde duvidosa a relação entre os dispositivos, ambos ferem a 5ª emenda.

A quinta emenda à constituição americana diz que

ninguém será obrigado a responder por crime capital, oupor outro crime infamante, a não ser perante denúncia ouacusação de um grande júri (...) nem será obrigado a ser-vir de testemunha contra si próprio em qualquer processocriminal, nem ser privado da vida liberdade ou proprieda-de sem um devido processo legal (...)75

Logo, nenhuma pessoa pode ter sua liberdade tolhida sem um devidoprocesso legal, não importa o tipo de crime que tenha praticado. Nesse caso,a igualdade formal perante a lei deve ser mantida a todo custo, uma vez que,apesar de nacionais e estrangeiros pertencerem a categorias diferentes, todosestão abarcados pela garantia fundamental do devido processo legal.76

74 DOYLE, Charles The USA patriot Act: A Legal Analysis. 15 de abril de 2002. Congressional Research Service.The Library of the Congress. p. 54.

75 ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada São Paulo: LTR,2001. p. 71

76 Como a garantia do devido processo legal é inerente ao Estado Democrático de Direito, sua não aplicação paradeterminado grupo de pessoas iria materializar clássica passagem do livro A Revolução dos Bichos, de GeorgeOrwell, na verdade uma crítica à ideologia comunista, que já virou lugar comum, totalmente danosa ao ordenamentojurídico e ao princípio da igualdade: “todos os animais são iguais, mas existem alguns animais mais iguais que osoutros”. Nesta seara, é importante mencionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua opiniãoconsultiva nº 16, de 1º de outubro de 1999. Naquela ocasião, a Corte reconheceu que o direito à informação sobrea assistência consular é uma das garantias do devido processo legal, garantia essa com status de direito individualdos estrangeiros. A opinião consultiva havia sido solicitada pelo México, e engloba outros questionamentos. Parater acesso completo ao caso, basta visitar o endereço http://www.corteidh.or.cr/serie_a/Serie_a_16_esp.doc. Datade Acesso: 02/06/2004. Por outro lado, existem casos de choque entre direitos fundamentais em que, à primeiravista, existiria lesão ao princípio da igualdade, mas não é o que ocorre. É o caso das ações afirmativas, prelecionadaspor John Rawls em seu livro A Theory of Justice, e utilizadas principalmente em universidades (sistema de cotas).Neste caso, estão em choque dois direitos (educação e igualdade). Entretanto, a igualdade deve ser vista sob seuprisma material, e não formal. A experiência americana nesta área é interessante, e bem diversa do que vem sendoimplementado em universidades brasileiras. Para aprofundamento do tema, interessante acessar o trabalho de umprofessor de Harvard, Angelo N.Ancheta, Revisiting Bakke and Diversity-Based Admissions: Constitutional Law, SocialScience Research, and the University of Michigan Affirmative Action Cases. Cambridge, Massachussets: The Civil RightsProject at Harvard University, 2003. Disponível em http://www.civilrightsproject.harvard.edu/policy/legal_docs/Revisiting _diversity.pdf Data de Acesso: 02/06/2004

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O que se pretende com o exposto é a não-criação, na esfera pública,de uma Lynch Law77 , o que, certamente, fulminaria com o devido proces-so legal, levando, junto com ele, todos os demais princípios basilares doEstado Democrático de Direito78 .

2.2.3 Pós-notificação dos Mandados de Busca e ApreensãoOutra disposição que tem causado controvérsia é aquela referente aos

mandados de busca e apreensão, localizada na seção 213 do Patriot Act,que acrescenta nova disposição ao título 18, seção 3103a do Código dosEstados Unidos, verbis:

“Seção 213. Autoridade para retardar a notificação daexecução de um mandado.

omissis (...)

(2) acrescenta-se no fim o seguinte:

(b) Dilação de Prazo – Com respeito a emissão de qual-

77 O termo provém de Willian Lynch, fazendeiro da Pittsylvania, que, no estado da Virginia, em fins do séculoXVIII, instituiu um tribunal privado a quem incumbia julgar sumariamente os criminosos pegos emflagrante, quando do cometimento de um delito grave. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro Salles.Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa/Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, elaborado no InstitutoAntônio Houaiss de Lexicografia e banco de Dados de Língua Portuguesa S/C Ltda – Rio de Janeiro:Objetiva, 2001. p. 1761.

78 Acerca deste tema, a Suprema Corte dos EUA determinou, no dia 28/06/2004, que, dentro de sua luta contrao terrorismo, o presidente George W. Bush pode manter americanos presos e sem acusações, embora elestambém tenham o direito de recorrer aos tribunais. O tribunal se pronunciou sobre os casos dos america-nos Yasser Esam Hamdi (Hamdi v. Rumsfeld) e José Padilla (Rumsfeld v. Padilla), conhecido como o“talibã” porto-riquenho, e sobre os direitos das centenas de detidos na base naval dos EUA em Guantánamo,Cuba. Pronunciando-se sobre o caso de Hamdi, que permanece sob custódia americana há mais de doisanos como “combatente inimigo” e que, até muito pouco tempo atrás, não tinha acesso a um advogado, ajuíza Sandra Day O’Connor reconheceu a importância de que os tribunais analisem, por um lado, asnecessidades da segurança nacional e, por outro, os direitos constitucionais dos indivíduos. Segundo ela,Hamdi, membro de uma família saudita mas nascido no estado de Louisiana, “sem dúvida tem o direito derecorrer a um advogado”. Hamdi foi capturado pelas tropas dos EUA no Afeganistão em novembro de 2001,depois da revolta de prisioneiros talibãs e da Al Qaeda na prisão de Mazar-e-Sharif. No caso de JoséPadilla, a Suprema Corte não poderá emitir uma sentença, tendo em vista que o mesmo foi apresentado najurisdição errada. Assim, terá de ser apresentado na Carolina do Sul, onde está detido. O Supremodeterminou também que os mais de 600 detidos na base de Guantánamo poderão recorrer aos tribunaisamericanos para questionar sua situação legal. Hamdi e Padilla estão detidos por tempo indeterminado,sem acusações formais e, até pouco tempo atrás, sem acesso a advogados. Para obter as decisões, bastaacessar os seguintes endereços eletrônicos: http://a257.g.akamaitech.net/7/257/2422/28june20041215/www.supremecourtus.gov/opinions/03pdf/03-6696.pdf e http://a257.g.akamaitech.net/7/257/2 422/28june20041215/www.supreme courtus.gov/opinions/03pdf/03-1027.pdf.

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quer mandado ou ordem judicial sob essa seção, ou qual-quer outro preceito legal, a procurar e confiscar qualquerpropriedade ou material que constitua prova de ofensa cri-minal que viole as leis dos Estados Unidos, qualquer noti-ficação requerida, ou que possa ser requerida, pode serretardada se - (1) a corte julgar que há causa razoávelde que, procedendo à imediata notificação da execução domandado, possa ocorrer um resultado adverso (...);

(...)

omissis

(3) o mandado proporciona para o fornecimento de talnotificação um período razoável para sua execução, cujoperíodo pode, após tal ato, ser estendido pela corte se fordemonstrado um bom motivo.”79 .

Os mandados de busca e apreensão, na expressão americana sneak andpeek warrants são protegidos pela 4ª emenda à carta constitucional daquelepaís, que também garante o direito à privacidade. Segundo a emenda, opovo americano tem direito “à inviolabilidade de suas pessoas, casas, docu-mentos e haveres, contra buscas e apreensões arbitrárias (...) e nenhummandado será emitido senão com base em indício de culpabilidade, confir-mado por juramento ou declaração solene, e particularmente com a descri-ção do local de busca e das pessoas ou coisas a serem apreendidas”80 .

Mais uma vez, a disposição restritiva de direito possui expressões dúbi-as e “abertas” em demasia. O lapso temporal para a pós-notificação não é

79 SEC. 213. AUTHORITY FOR DELAYING NOTICE OF THE EXECUTION OF A WARRANT. Section3103a of title 18, United States Code, is amended— (1) by inserting ‘‘(a) IN GENERAL.—’’ before ‘‘Inaddition’’; and (2) by adding at the end the following: ‘‘(b) DELAY.—With respect to the issuance of anywarrant or court order under this section, or any other rule of law, to search for and seize any property ormaterial that constitutes evidence of a criminal offense in violation of the laws of the United States, anynotice required, or that may be required, to be given may be delayed if— ‘‘(1) the court finds reasonablecause to believe that providing immediate notification of the execution of the warrant may have anadverse result (as defined in section 2705); ‘‘(2) the warrant prohibits the seizure of any tangible property,any wire or electronic communication (as defined in section 2510), or, except as expressly provided inchapter 121, any stored wire or electronic information, except where the court finds reasonable necessityfor the seizure; and ‘‘(3) the warrant provides for the giving of such notice within a reasonable period of itsexecution, which period may thereafter be extended by the court for good cause shown.’’.

80 ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada. São Paulo: LTR,2001. p. 70.

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determinado; assim, podem os mandados de busca e apreensão ser cum-pridos e a respectiva notificação ser procrastinada ad eternum. Proceden-do deste modo, as pessoas podem ter suas casas invadidas, e ter seus bensconfiscados, sem saberem o objeto do mandado.

No caso da pós-notificação, nas palavras de Nancy Talanian, membrodo Comitê de Defesa da Bill of Rights “... uma pessoa cuja casa está paraser inspecionada não pode ver o mandado para certificar-se que o ende-reço é correto ou que o agente adere estritamente à descrição do quedeve ser procurado”81 .

É tão polêmica a disposição acima exposta que, em 23 de julho de 2003,a Câmara dos Deputados aprovou uma emenda tanto republicana comodemocrata, oferecida pelos deputados C. L. “Butch” Otter, Dennis J. Kuci-nich e Ron Paul, dos Estados americanos de Idaho, Ohio e Texas, impedin-do a implementação das buscas e apreensões efetuadas sob a égide do Patri-ot Act. A passagem desta emenda marca a primeira vez em que tanto depu-tados republicanos como democratas agiram para revogar qualquer provi-são da lei82 . Importante notar, todavia, que tal emenda começará a vigerapenas após a aprovação do Senado e do presidente George Bush83 .

Outras disposições do Patriot Act que eventualmente ferem a 4ª emen-da: seção nº 213, que concede autoridade para compartilhar informaçõesde investigações criminais entre agências, inclusive estrangeiras; seçõesnúmeros 206, 215, 218 e 411.

81 TALANYAN, Nancy. The Homeland Security Act: The Decline of Privacy; the Rise of Government Secrecy.Disponível em http://www.bordc.org/HSAsummary.pdf. Data de Acesso: 05/10/2003

82 Para a cobertura da imprensa sobre tal votação: http://www.commondreams.org/headlines03/0724-01.htm. Amatéria foi publicada em 24/07/2003.

83 Simplesmente não houve movimentação no projeto de emenda à lei, após a aprovação pelos deputados,conforme informação do andamento do mesmo, no sítio eletrônico do Congresso americano, disponível emhttp://www.congress.gov/cgi-bin/bdquery/z?d108:H.A.292:, acessado em 18/06/2004. E, em 02//12/2003, soube-se que a emenda acima referida está, conforme o site http://talkleft.com/new_archives/004546.html,“oficialmente morta”. A tentativa de impedir a disposição do Patriot Act que autorizava a pós-notificaçãode mandados de busca não passou pelo Congresso, uma vez que o Senado e a Câmara de Deputadosnegaram-se a colocá-la em discussão na massive omnibus spending bill, acabando com suas perspectivas deaprovação para o ano de 2003. O deputado C.L. “Butch” Otter’s, autor da proposta, havia dito que iriatentar novamente no ano de 2004, mas não há notícia de nova emenda. O Departamento de Justiça disse,ainda, que não espera que o Congresso vá aprovar a legislação proposta pelo republicano, que visa banir doordenamento jurídico tal espécie de mandado de busca e apreensão.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a breve análise feita acerca das disposições do Patriot Act, impor-tante sublinhar que a mesma apóia-se no art. 6º, nº 2 da ConstituiçãoAmericana, baseada na supremacia hierárquica daquela lei perante to-das as outras, verbis,

Esta Constituição e as leis dos Estados Unidos feitas emsua conformidade, e todos os tratados celebrados ou porcelebrar sob a autoridade dos Estados Unidos, constitui-rão a lei suprema da nação; e os juízes de todos os Estadosa ela estarão sujeitos, ficando sem efeito qualquer disposi-ção contrário na Constituição ou lei de quaisquer dos Es-tados84

Comunga-se, também, do posicionamento de Cançado Trindade a res-peito das restrições de direitos fundamentais:

as eventuais limitações ou restrições permissíveis ao exer-cício de direitos consagrados, ademais de deverem serinterpretadas restritivamente e em favor deste últimos,deverão necessariamente ser previstas em lei (...) Qual-quer limitação deve ser justificada, e o ônus de tal justifi-cação recai sobre o estado. (...) As limitações, além dis-so, hão de ser aplicadas no interesse geral da coletividade(ordre public), coadunando-se com os requisitos de uma“sociedade democrática”, e respeitando o princípio daproporcionalidade; as limitações não podem ser aplica-das de modo arbitrário ou discriminatório, devendo sujei-tar-se a controle por órgãos independentes (com a previ-são de recursos para os casos de abusos), e ser compatí-veis com o objeto e o propósito dos tratados sobre prote-ção dos direitos humanos.85

84 ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada São Paulo: LTR,2001. p. 65.

85 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Ed.Saraiva, 1991. p. 16-17

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Sobre perigo de leis que atinjam direitos individuais referiu SérgioMoccia86

O risco, portanto, concerne sobretudo às garantias indivi-duais que, como limites postos para a defesa do homemcontra os abusos estatais, representam a expressão maissignificativa daquele longo e atormentado processo evolutivoque caracterizou o desenvolvimento da civilização jurídicacontemporânea. Não é admissível, portanto, que numaestrutura ordenamental de democracia avançada se ado-tem, ainda que com a finalidade de remediar gravíssimasperturbações do complexo sócio estatal, remédiosnormativos e práticas jurisprudenciais que acabem por fa-zer com que a estrutura ordenamental deslize na direçãode preocupantes formas de arbítrio que têm sempre carac-terizado os momentos mais difíceis para os direitos do indi-víduo.

Além disso, a atual “paisagem jurídica” vivenciada pelos norte-ameri-canos, em que se pode vislumbrar restrição em demasia a certos direitosfundamentais, sob a alegação de segurança nacional, possui um prece-dente em contrário: é o que constatou Marcelo Caetano quando do epi-sódio Watergate, que gerou “a crise constitucional de 1974”, a afirmaçãodo predomínio dos valores da liberdade e da democracia sobre o da segu-rança nacional87 .

E é neste sentido que a sociedade civil deve estar alerta quanto àrestrição de direitos fundamentais, a qual poderá ser acirrada e aumenta-da, se o atual nível de tensões se mantiver. Neste panorama, o princípioda proporcionalidade se materializa como peça chave, instrumento deli-neador dos limites de leis restritivas de direitos fundamentais.

Como disse o saudoso diplomata brasileiro, Sérgio Vieira de Mello, emdiscurso proferido por ocasião do Third Committe of the UN General As-sembly, em 04 de novembro de 2002:

86 MOCCIA, Sérgio. Emergência e Defesa dos Direitos Fundamentais. In Revista de Ciências Criminais, Ano 07,nº 25. Janeiro – Março de 1999 São Paulo. p. 58.

87 CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. 1ª edição. Volume I Rio de Janeiro: Forense, 1977 p.123.

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Nenhuma causa pode justificar o terrorismo (...). tal fenô-meno deve ser universalmente e inequivocadamente conde-nado. O combate exitoso contra o terrorismo, contudo, re-quer mais do que um rigoroso reforço das disposições legais,mesmo sendo estas vitais. Também requer uma aproxima-ção a longo prazo, e mais holística, assim como a determi-nação de assegurar de que todos os direitos são realmenteusufruíveis por todos: particularmente quando é um dos ob-jetivos dos terroristas forçar-nos a negar tais direitos.88

Seguindo as palavras do diplomata brasileiro, parece que os legislado-res americanos, ao contrário de seu Poder Executivo, após o choque dosacontecimentos catastróficos de 11 de setembro, estão novamente legife-rando de modo a proteger os cidadãos americanos e imigrantes inocentesde lesões mortais a direitos fundamentais assegurados pela carta magnadaquela nação e por tratados internacionais.

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88 Discurso de Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário para Direitos Humanos em razão do Terceiro Comitê daAssembléia Geral da ONU, em 04/11/2002. Disponível em http://www.iccnow.org/documents/statements/unbodies/deMelloICCjudges4Nov02.pdf. Data de Acesso: 20/10/2003

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Qual o Futuro do Sistema dePrevenção à Guerra da Carta dasNações Unidas? Reflexões sobre

a Guerra do Iraquei

What Future for the UN CharterSystem of War Prevention?

Reflections on the Iraq War

RICHARD FALK

Richard Falk é Albert G. Milbank Professor de Direito Internacional e Prática, na Universida-de de Princeton, desde 1965. Membro do Conselho Editorial de diversas publicações sobredireito internacional, membro do Tribunal Permanente dos Povos ( Roma) e de diversasorganizações para a paz , a causa palestina e a justiça internacional. Autor, dentre outros

livros, de On humane governance, Human Rights horizons: a pursuit of justice in a globalizing world, e Religionand Humane Global Governance.

RESUMO

O autor analisa o futuro do sistema de prevenção à guerra, tal como concebidona Carta das Nações Unidas, tendo em vista a guerra do Iraque, o megaterrorismoe as intervenções humanitárias, defendendo uma postura “construtivista”.Palavras-chave: Direito internacional, Carta das Nações Unidas, Prevençãoà guerra.

i Artigo publicado, originalmente, com o título “What future for the UN Charter System of War Prevention?Reflections on the Iraq War”, American Journal of International Law 97( 2003): 590 e seguintes, aquireproduzido com autorização do autor e da respectiva revista, o que agradecemos. Tradução de RobertoCataldo Costa.

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ABSTRACT

The author analyzes the future for the system of war prevention, such as conceivedin United Nations Charter, in view of Iraq war, megaterrorism and humanitarianinterventions, defending a ‘constructivist’ posture.Key words: International law, UN Charter, War prevention.

O impacto da guerra do Iraque sobre o futuro papel da ONU ainda éuma questão altamente especulativa. Mesmo as fases de combate da guerraestão longe de ter acabado, apesar da mal planejada proclamação de vi-tória do presidente de George W. Bush, alguns meses atrás. A guerratoma a forma de resistência a uma ocupação estrangeira indesejada, enão está claro se, como Washington afirma oficialmente, seus principaisresponsáveis são remanescentes do regime de Saddam Hussein. Anterior-mente, a liderança americana estava inclinada a minimizar a participa-ção da ONU na restauração da normalidade do Iraque, mas, desde julhode 2003, o governo dos Estados Unidos está começando a sugerir umconjunto de responsabilidades bastante ampliado para a organização, econclamando um amplo leque de países a fornecer tropas e dividir o ônuse os riscos da manutenção da paz. Apesar dessa fluidez, não parece sercedo demais para analisar os efeitos da guerra do Iraque sobre o futurodas Nações Unidas, na área de paz e segurança.

CONSTRUINDO O QUADRO DE ANÁLISE

O presidente Bush fez um desafio histórico ao Conselho de Segurançada ONU ao pronunciar palavras memoráveis em seu discurso na Assem-bléia Geral, em 12 de setembro de 2002: “A ONU cumprirá o propósito desua fundação, ou irá se tornar irrelevante?”1 Após a guerra do Iraque,há, pelo menos, duas respostas para essa pergunta. A resposta do governodos Estados Unidos seria sugerir que a ONU se mostrou irrelevante pornão ter endossado o recurso à guerra contra o Iraque de Saddam Hus-sein. A resposta daqueles que se opunham à guerra é de que o Conselhode Segurança da organização serviu ao propósito de sua fundação ao se

1 “President’s Remarks at the United Nations General Assembly,” 12 de Setembro de 2003, White House Text.

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recusar a endossar o recurso a uma guerra que não podia ser conciliadade forma convincente com a Carta das Nações Unidas e com o direitointernacional. Essa diferença de avaliação não era apenas factual, nãodizendo respeito somente a se o Iraque era uma ameaça e se o processo deinspeção estava obtendo êxito em um ritmo razoável; era também concei-tual, até mesmo jurisprudencial. A resolução deste debate provavelmen-te definirá o futuro papel das Nações Unidas, bem como influenciará aatitude dos Estados soberanos mais poderosos no que tange ao relaciona-mento entre o direito internacional como um todo e uso da força comoinstrumento de política externa.

Essas questões subjacentes são anteriores à preocupação recente, eforam debatidas acaloradamente na época da Guerra Fria, especialmentenas últimas etapas da Guerra do Vietnã2 . Entretanto, o contexto atualdo debate com relação à interação entre a decisão soberana sobre o usoda força e a autoridade da ONU foi construído no final da década de 90,em torno do tema da intervenção humanitária, especialmente com rela-ção à guerra no Kosovo. A questão central naquele cenário era se uma“coalizão dos dispostos”, agindo sob o guarda-chuva da OTAN, tinhadireito legal de agir como segunda opção, dada a percepção da falta dedisposição do Conselho de Segurança da ONU para ordenar o uso daforça, a despeito dos riscos humanitários iminentes enfrentados pelos ko-sovares albaneses. Naquele caso, buscou-se uma autorização formal naOTAN, mas sem aquilo que era exigido textualmente pelo artigo 53(1)da Carta das Nações Unidas, ou seja, carecendo de alguma expressão deautorização explícita por parte do Conselho de Segurança. Os defensoreslegais da iniciativa insistiam em que tal autorização poderia ser derivadade resoluções anteriores do Conselho, bem como da disposição da ONUpara gerenciar a reconstrução civil do Kosovo pós-conflito, que equivali-am a um consentimento tácito, proporcionando à operação um certifica-do retroativo de legalidade. Com o mesmo efeito, havia argumentos su-gerindo que a derrota no Conselho de Segurança de uma resolução decensura apresentada por aqueles membros que se opunham à guerra doKosovo equivalia a um reconhecimento implícito de legalidade, ou, nomínimo, a uma recusa a classificar a guerra como “ilegal”, ou como umaviolação da Carta.

2 Para contribuições representativas, Vide The Vietnam War and International Law (Richard Falk, org., 4 vols.,1968, 1969, 1972, 1976).

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Mas a tensão com as regras da Carta sobre uso da força estava tãoclara que esses esforços de legalização não convenceram, e a ComissãoInternacional Independente sobre o Kosovo adotou o que parece ser umaabordagem bastante preferível, concluindo que a intervenção era “ilegal,mas legítima”3 . A problemática elasticidade dessa doutrina foi construí-da de duas formas: sugerindo-se a necessidade de o lado intervencionistaassumir o ônus pesado do convencimento com relação à necessidade deintervenção para evitar a uma catástrofe humanitária, em andamento ouiminente, e por meio de uma lista de deveres que deveriam ser cumpridospelos interventores para adquirir legitimidade, enfatizando-se a proteçãoda população civil, a adesão às leis internacionais sobre a guerra, e umfoco convincente em objetivos humanitários distintos das metas econô-micas e estratégicas que beneficiariam os interventores. No Kosovo, oargumento moral e político em favor da intervenção parecia forte: umapopulação majoritária vulnerável e há muito maltratada, enfrentando umaperspectiva iminente de limpeza étnica por parte dos governantes sérvios,um cenário para a intervenção efetiva com risco mínimo de efeitos nega-tivos imprevistos ou de danos colaterais amplos, e a ausência de motiva-ções não-humanitárias importantes do lado interventor. Como tal, pare-ciam estar presentes os alicerces para um afastamento excepcional, base-ado em princípios, da aplicação estrita das normas da Carta sobre uso daforça. A lacuna legalidade/legitimidade, contudo, era considerada pre-judicial, e um desgaste à autoridade do direito internacional com o pas-sar do tempo, e a Comissão recomendou muito que fosse preenchida notempo mais curto possível, por iniciativa da ONU. Seu relatório exigia,por exemplo, que os membros permanentes do Conselho de Segurançaconsiderassem a possibilidade de aceitar informalmente não votar con-trariamente no cenário de catástrofes humanitárias iminentes, e, assim,suspender o veto, apesar de não concordarem com a iniciativa sendo ana-lisada4 . A adoção dessa prática teria possibilitado a aprovação da inter-venção no Kosovo pelo Conselho de Segurança, mesmo diante da oposi-

3 The Kosovo Report: Conflict, International Response, Lessons Learned (2002) 185-198; deve-se mencionar que euera membro da comissão.

4 Essa postura poderia ser considerada como uma extensão importante da prática corrente de se tratarem asabstenções de membros permanentes como decisões sem caráter de obstrução por parte do Conselho deSegurança, apesar da formulação do artigo 27(3) exigir “os votos dos membros permanentes”. Tal práticademonstra o grau no qual Conselho de Segurança foi capaz de gerar formas de superar uma paralisia queteria resultado de uma abordagem interpretativa baseada em fidelidade textual, e é impressionante queesta abordagem tenha sido estabelecida no meio da Guerra Fria.

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ção da Rússia e da China, que teria sido registrada no debate e pelasabstrações destinadas a evitar o veto, durante a votação.

De forma mais ambiciosa, a Comissão propôs um processo em três eta-pas, destinado a reconhecer, no âmbito do sistema da Carta das NaçõesUnidas, o papel da organização na aplicação da lei em contextos de viola-ções graves aos direitos humanos. A primeira etapa consiste em uma estru-tura de princípios voltada a limitar as reivindicações de intervenção huma-nitária a um conjunto restrito de circunstâncias, e garantir que a dinâmicade implementação respeite o direito humanitário internacional e promovao bem-estar das pessoas que estejam sendo protegidas. A segunda etapa éelaborar uma proposta de resolução para ser adotada na Assembléia Geral,na forma de uma Declaração sobre Direito e Responsabilidade de Inter-venção Humanitária, que busque conciliar o respeito pelos direitos de so-berania, o dever de implementar os direitos humanos e a responsabilidadede impedir catástrofes humanitárias. A terceira etapa seria emendar a Car-ta para incorporar essas mudanças, dado que elas são pertinentes ao papele à responsabilidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas e ou-tras estruturas e coalizões multilaterais que desenvolvem intervenções hu-manitárias5 . Deve-se observar que não é possível vislumbrar, num futuropróximo, qualquer progresso rumo ao preenchimento da lacuna legitimida-de/legalidade por meio de ação formal ou informal da ONU. Existe umaoposição substancial sobre questões de princípio, bem como com relação apolíticas, especialmente entre os países asiáticos, a qualquer ampliação domandato de interventor da ONU e de outros atores políticos no cenário dosdireitos humanos. Essa oposição se aprofundou desde o Kosovo, em funçãode utilizações de força controversas reivindicadas pelos Estados Unidos emsua campanha antiterrorismo, que combinaram argumentos relacionadosaos direitos de segurança e aos direitos humanos em cenários onde haviagrande suspeição com relação às motivações geopolíticas de Washington.

O Iraque testou o sistema da Carta das Nações Unidas de uma formacomplementar àquela relacionada à controvérsia do Kosovo, mas de maneiramais fundamental. O teste do Iraque foi associado ao impacto geral dos ata-ques 11 de setembro e ao desafio do megaterrorismo com relação à viabilida-de da estrutura da Carta que governa o uso internacional da força6 . A

5 Esses três passos são apresentados no Relatório sobre o Kosovo, acima, nota 3, 187.6 Um debate sobre esse desafio e a resposta dos Estados Unidos são temas de meu livro, Richard Falk, The Great

Terror War (2003).

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resposta militar inicial dos Estados Unidos ao ataque e à ameaça continua-da da Al Qaeda foi direcionada ao Afeganistão, um alvo territorial conve-niente porque parecia ser o centro nervoso da organização terrorista e eragovernado pelo Talibã, um regime que desfrutava de prestígio diplomáticomínimo e foi cúmplice dos ataques ao permitir que a Al Qaeda operasseamplas bases de treinamento terrorista em seu território. Como tal, o Afe-ganistão, representado pelo Talibã, carecia de alguns atributos fundamen-tais necessários à condição de membro integral da sociedade internacio-nal, incluindo o fato de não ter conseguido obter reconhecimento diplomá-tico amplo. A razoabilidade de se travar uma guerra para derrubar o regimeTalibã e destruir a base de operações da Al Qaeda no Afeganistão foi am-plamente aceita por todo o espectro de países ativos na política mundial,embora o esforço do governo dos Estados Unidos para demonstrar que esta-va atuando dentro da estrutura das Nações Unidas tenha sido mínimo. Aresponsabilidade da Al Qaeda no episódio de 11 de setembro foi ampla-mente demonstrada, embora persistam controvérsias e ceticismo com rela-ção à possibilidade de se terem prevenido os ataques, e se isso deveria tersido feito. Para além dessa garantia com relação à responsabilidade pelo 11de setembro, a perspectiva de futuros ataques parecia grande e possivel-mente iminente, e a capacidade americana para vencer uma guerra noAfeganistão, a custo proporcional, parecia convincente. Por essas razões,não houve oposição internacional significativa à iniciativa e à condutaamericanas na guerra do Afeganistão, e os aliados tradicionais dos EstadosUnidos proporcionaram níveis variados de apoio. O direito internacionalfoi dilatado com sucesso nessas novas circunstâncias, com vistas a proporci-onar a um Estado importante a opção prática de responder com a força auma fonte territorial importante de guerra megaterrorista, sustentando as-sim a afirmação da Casa Branca de que um governo que acolhe conscien-temente esse tipo de terrorista transnacional compartilha a responsabilida-de pela violência política que segue. Mas quando a fase de resposta ao 11de setembro relacionada ao Iraque, para além do Afeganistão, começou aser discutida pelos líderes americanos, grande parte das reações em todo omundo foram de profunda oposição, gerando um movimento pela paz mun-dial dedicado a evitar a guerra, e uma série de iniciativas por parte degovernos normalmente aliados dos Estados Unidos para exigir uma alterna-tiva a ela. A principal justificativa norte-americana para avançar imedia-tamente contra o Iraque foi elaborada na forma de uma reivindicação dedireito de guerra preventiva, explicado de forma abstrata como uma con-duta necessária, em vista da suposta interface entre as armas de destruição

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em massa e as táticas extremistas dos megaterroristas7 . Argumentou-seque era inaceitável, naquelas circunstâncias, que os Estados Unidos espe-rassem para serem atacados, e que os direitos de guerra preventiva eramessenciais para garantir a segurança da porção “civilizada” do mundo. Bushdisse, em seu discurso na ONU: “não podemos ficar parados, sem fazernada, enquanto os perigos crescem”8 . Foi essa afirmativa que o Conselhode Segurança da ONU rejeitou ao se negar a apoiar as demandas dos Esta-dos Unidos e do Reino Unido por apoio direto à autorização solicitada. Aalegação norte-americana precisa era construída de forma estreita e múlti-pla em relação à não-cooperação integral do Iraque com os inspetores daONU, aos anos de não-implementação de resoluções anteriores do Conse-lho de Segurança que impunham obrigações de desarmamento ao país de-pois da Guerra do Golfo e, sobretudo, à maior ameaça que seria representa-da pelo suposto arsenal de armas de destruição em massa do país9 .

A guerra do Iraque foi iniciada e terminou militarmente com rápidasvitórias norte-americanas nos campos de batalha. O presidente Bush decla-rou, assim: “na batalha do Iraque, os Estados Unidos e nossos aliados prevale-ceram, e agora nossa coalizão está dedicada a garantir a segurança e a re-construção daquele país”10 . O presidente descreveu cuidadosamente asoperações militares como “uma batalha”, em lugar de “uma guerra”, classifi-cando o ataque ao Iraque no âmbito da guerra mais ampla e contínua contrao terrorismo global, e sugerindo que a operação deve ser vista como um ele-mento na campanha antiterrorismo lançada em resposta aos ataques 11 desetembro. Mais uma vez, como aconteceu em relação ao Kosovo, o Conselhode Segurança da ONU deixou de censurar os Estados Unidos e seus aliados,e a organização tem parecido estar disposta, até mesmo ávida, por cumprirqualquer papel que lhe seja designado durante o atual período de ocupaçãomilitar e reconstrução política, econômica e social, até o momento sob exclu-sivo controle dos Estados Unidos e do Reino Unido. Tal aquiescência éespecialmente impressionante dado o fracasso da coalizão vitoriosa na guerra

7 Apresentado integralmente, pela primeira vez, em “Remarks by the President at 2002 Graduation Exercise ofthe United States Military Academy,” 1o de junho de 2002; com um status mais duradouro e autorizado,em função de sua ênfase em White House document, The National Security Strategy Of The United States OfAmerica, Setembro de 2002, esp. o Capítulo V, 13-16.

8 Vide supra, Nota 1.9 As resoluções mais importantes do Conselho de Segurança foram a 678 (1990), a 687 (1991), e, é claro, a 1441

(2002).10 “President Bush’s Prepared Remarks Declaring End to Major Combat in Iraq,” texto publicado no jornal The

New York Times, em 2 de maio de 2003, A14.

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do Iraque em encontrar qualquer evidência de armas de destruição em mas-sa, ou de ser atacada por esse tipo de arma, apesar de ter lançado uma guerravoltada a destruir precisamente essas capacidades do regime de SaddamHussein. Parece razoável concluir que, ou essas armas não existem, ou, seexistem, não têm relevância operacional, e uma estratégia de contenção se-ria totalmente capaz de garantir segurança contra um uso futuro. Ou seja, setais armas não foram utilizadas pelo Iraque para defender a sobrevivência doregime in extremis, então é altamente improvável que jamais viessem a serusadas em circunstâncias em que se poderia prever uma retaliação aniquila-dora. Se o Iraque se conteve quando nada tinha a perder, por que usaria essetipo de arma quando a resposta garantida seria a destruição certa do país e doregime? Jamais houve qualquer base para se supor que o regime de Bagdáfosse suicida, e as evidências existentes sugerem o contrário, isto é, uma fortedisposição de subordinar outros objetivos à sobrevivência. Mesmo na faseatual da guerra, de ocupação, um impulso para sobreviver como entidadepolítica e independente parece ser o alicerce fundamental da feroz resistên-cia iraquiana.

De que forma esse padrão de desvio das regras da Carta, combinadocom a relutância do Conselho de Segurança em recorrer à censura paratais violações, deveria ser interpretado do ponto de vista do futuro do direi-to internacional? Existem vários modos sobrepostos de interpretação, cadaum deles iluminando a questão até certo ponto, mas nenhum que pareçaproporcionar uma visão satisfatória da perspectiva do direito internacional:

- Os Estados Unidos, como Estado dominante em um mundounipolar, desfrutam de uma isenção de responsabilidade legalcom relação aos usos da força, inconciliáveis com o sistema daCarta das Nações Unidas; outros Estados, em comparação, seri-am geralmente responsabilizados, a menos que diretamente pro-tegidos pela isenção dos Estados Unidos;

- O padrão de comportamento confirma uma tendência céticaque sugere que o sistema da Carta não corresponde mais, oujamais correspondeu, às realidades da política mundial, e nãotem competência com relação ao comportamento dos Estados11 ;

11 Essa posição é formulada mais claramente por Michael J. Glennon, Why the Security Council Failed, ForeignAffairs 82 (No.3): 16-35 (2003); o argumento geral é desenvolvido mais integralmente no livro Limits of Law,Prerogatives of Power: Interventionism After Kosovo (2001), de Glennon; também são importantes Anthony C.Arend e Robert J. Beck, International Law and the Use of Force: Beyond the UN Charter Paradigm (1993); A.Mark Weisbrud, Use of Force: The Practice of States Since World War II (1997).

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- O padrão de comportamento dos Estados Unidos tem uma certatensão com o sistema da Carta, mas é uma tensão criativa quesugere o respeito aos valores subjacentes da comunidade mun-dial, considerando a legalidade como uma questão de grau, enão uma questão absoluta, e que demanda um ajuste perma-nente à mudança nas circunstâncias. Como tal, as reivindica-ções de prevenção com relação ao megaterrorismo oferecem umaexplicação doutrinária razoável para um direito ampliado deautodefesa;

- Reconhecendo-se as pressões comportamentais do mundo so-bre as diretrizes da Carta com relação ao uso da força, existe apossibilidade de que usos contestados no âmbito dessa Cartasejam “ilegais, mas legítimos”, seja com referência no argumen-to para iniciar a ação sem aprovação do Conselho de Seguran-ça, seja com base no impacto benéfico da intervenção12 . A par-tir dessa perspectiva, o fracasso em encontrar armas de destrui-ção em massa não prejudica definitivamente a afirmação de quea intervenção era “legítima”. Ela ainda pode ser consideradalegítima devido a uma série de efeitos: a emancipação do povoiraquiano de um regime opressor, reforçada pelas enormes evi-dências de que os governantes de Bagdá eram culpados de Cri-mes Contra a Humanidade sistemáticos, amplos e nocivos, euma ocupação que prepara o povo do Iraque para a democraciapolítica e o sucesso econômico13 .

Neste estágio, é impossível prever qual será o impacto da guerra doIraque sobre o sistema da Carta, com relação à regulamentação interna-cional do uso da força. Isso irá depender de como os principais Estadostratarão a questão, especialmente os Estados Unidos. O direito internaci-onal, em seu sentido fundamental, não é mais nem menos do que aquiloque os atores poderosos no sistema, e em menor grau, a comunidade glo-bal de juristas internacionais, bem como o júri global da opinião pública,dizem que ele é. O direito internacional na área do uso da força nãopode, por si só, induzir seu cumprimento consistente, por causa das atitu-des políticas orientadas pela soberania, combinadas com as enormes dis-

12 Vide Anne-Marie Slaughter, “Good Reasons for Going Around the U.N.,” New York Times, 15 de março de2003.

13 Vide Charles Krauthammer, “U.S. cleaning up Hussein’s mess in Iraq,” LA TIMES, 16 de maio 2003; Thomas I.Friedman, “Bored with Baghdad—Already,” The New York Times, 18 de maio de 2003, §4, 13.

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paridades de poder que impedem a lógica da reciprocidade, e dos bene-fícios da mutualidade que operam na agenda de segurança dos Estados.A escola “realista” dominou o processo de política externa dos principaispaíses em toda a existência do sistema do Estado moderno, sendo desafi-ada apenas de forma marginal por uma abordagem wilsoniana, mais base-ada no legalismo e no moralismo1 3a. Como é defendida pelos realistas, arestrição ao uso da força se baseia em avaliações de custo-benefício, in-cluindo a virtude diplomática da prudência e a evitação da aplicaçãoexagerada, que tem sido responsabilizada em toda a história pela deca-dência dos principais Estados14 .

Existem bases para se supor que a postura da administração Bush podenão se adequar ao paradigma realista; em lugar disso, representa umaversão militante reacionária do idealismo wilsoniano1 4a. O presidenteBush tem descrito repetidas vezes a guerra contra o terrorismo em termosde bem e mal, o que funciona até mesmo contra as formas de restriçãobaseadas nos cálculos de interesse próprio e prudência15 . Como essa ori-entação define o futuro próximo da conduta americana, o sistema daCarta das Nações Unidas será desconsiderado, exceto, talvez, naquelascircunstâncias onde o Conselho de Segurança apoiaria uma reivindica-ção norte-americana de uso da força16 .

13a Para a visão segundo a qual o moralismo e o legalismo norte-americanos tiveram um impacto prejudicial napolítica externa dos Estados Unidos na primeira metade do século XX, vide George F. Kennan, AmericanDiplomacy 1900-1950 (1951); e Henry Kissinger, Diplomacy (1994), esp. 218-245, 762-835. Para uma inter-pretação mais geral do componente wilsoniano, como um aspecto concebido em termos mais gerais datradição da política externa dos Estados Unidos, vide Walter Russell Mead, Special Providence: AmericanForeign Policy and how it Changed the World (2001), 132-173.

14 Paul Kennedy, The Rise and Fall of Great Power: Economic Change and Military Conflict 1500-2000 (1987).14a Para um argumento nessa linha, vide Max Boot, “George Woodrow Bush: the president is becoming a

Wilsonian interventionist,” Wall Street Journal, 1o de julho de 2002.15 Além de identificar Estados específicos como “o eixo do mal” no cenário global da guerra contra o terrorismo,

em seu discurso na academia de West Point, o presidente inclui alguma retórica fortemente moralista decaracterística visionária, bastante contrária à tradição realista. O trecho a seguir indica o tom e amensagem: “Estamos em um conflito entre o bem ou mal, e a América chamará a este pelo nome. Aoenfrentar os regimes do mal e fora da lei, não criamos um problema, revelamos um problema, e iremosliderar o mundo contra ele”. Vide supra, nota 1.

16 Vide Richard Perle, “Thank God for the death of the UN: Its abject failure gave us only anarchy, The WorldNeeds Order,” The Guardian, 20 de março de 2003.

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A GUERRA DO IRAQUE E O FUTURO DOSISTEMA DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS

No quadro jurisprudencial apresentado na parte anterior, uma inter-pretação do precedente do Iraque é necessariamente experimental, de-pendendo, em uma primeira análise, da possibilidade da vitória militaramericana no país ser convertida, por meios razoáveis e em um período detempo breve, naquilo que geralmente se interpreta como vitória política.Tal resultado é melhor avaliado no Iraque por fatores como estabilidade,democratização, resgate da soberania do país, desenvolvimento econômi-co e percepções do público. Se a ocupação americana for consideradabem-sucedida, a intervenção provavelmente será tratada como “legíti-ma”, mesmo tendo sido considerada, em termos gerais, como “ilegal”.Alguns considerarão que essa percepção acrescenta uma medida neces-sária de flexibilidade à aplicação do sistema da Carta, em um mundoonde a interação possível de táticas megaterroristas e armas de destrui-ção em massa valida o recurso à autodefesa prévia, e será considerada poroutros como uma rejeição oportunista e racionalizada, de forma retroati-va, das restrições legais por parte da única superpotência do mundo.

Existem duas explicações conceituais principais para essa provável di-vergência de opinião. A primeira está relacionada a questões de plausibi-lidade factual. A doutrina da prevenção, como tal, é menos problemáticado que sua aplicação unilateral em circunstâncias onde o ônus da persu-asão com relação à iminência e à gravidade da ameaça não se sustenta.A rejeição diplomática dos Estados Unidos no Conselho de Segurançaresultou principalmente da falta de capacidade de persuasão factual dosargumentos apresentados sobre as ameaças associadas à posse de armasde destruição em massa por parte do Iraque, e às afirmações de um eloentre o regime de Bagdá e a rede Al Qaeda, supostamente tornandoinaceitável a dependência da política de contenção e dissuasão. Nãorestavam dúvidas sobre a brutalidade do regime de Saddam Hussein, maso recurso a uma guerra internacional em tais bases obteve pouco apoio.Esse ceticismo foi aumentado pelo fracasso, até o momento, em descobriras armas de destruição em massa após a guerra, apesar do livre acesso alocais suspeitos, da cooperação dos cientistas iraquianos e do pessoal en-carregado de armas, e de um imenso esforço de inteligência.

O segundo ponto de divergência está relacionado aos argumentos dejustificação retroativa. Nesse caso, a questão é se uma guerra que sofreu

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objeções porque seus efeitos colaterais pareciam potencialmente perigo-sos e cujo argumento não era convincente o bastante para justificar adilatação do sistema de restrições da Carta poderia ser justificada após ofato. As justificativas combinam a vitória militar rápida no campo debatalha com um número reduzido de baixas, reforçados pela documenta-ção sobre os crimes de Saddam Hussein como líder iraquiano. Esse argu-mento pareceria mais convincente se a coalizão liderada pelos EstadosUnidos tivesse sido mais claramente bem recebida como “os libertado-res”, em lugar de ser vista como “os ocupantes”, e a presença americanano Iraque pós-combate fosse menos desfigurada por incidentes de resis-tência contínua, e até mesmo cada vez mais violenta, e por um númerocrescente de baixas americanas. Continua sendo cedo demais para che-garmos a qualquer tipo de julgamento com relação aos efeitos políticos daguerra e suas ramificações regionais e globais mais amplas. Se a ocupaçãoamericana for relativamente curta e for percebida, em termos gerais, comobenéfica ao povo do Iraque e não aos ocupantes americanos, os argumen-tos baseados na justificação retroativa provavelmente ganharão apoio, e oprecedente iraquiano não será considerado tão destrutivo ao sistema daCarta, e sim como uma extensão dele com base na ampliação que estásurgindo do papel da comunidade internacional de proteger sociedadesvulneráveis a governos violentos17 . Obviamente, a questão do processo éimportante, bem como seu resultado substantivo. A guerra do Iraque re-presentou um desvio dos procedimentos coletivos do sistema da Cartacom relação aos usos da força em contextos não previstos pela concepçãode autodefesa do artigo 51. Em certa medida, uma visão favorável dosefeitos de tal uso da força fragiliza as objeções ao unilateralismo. Ado-tando-se uma visão construtivista do direito internacional, muito depen-de da conduta e das atitudes futuras do governo dos Estados Unidos. Oconstrutivismo é uma avaliação da realidade política e jurídica que situaa ênfase decisória nas percepções mentais dominantes com relação a umconjunto de condições dado, independentemente de sua precisão na ava-liação de outros pontos de vista1 7a. O governo dos Estados Unidos de-monstrará futuramente um respeito geral pelo papel do Conselho de Se-gurança, ou se sentirá justificado por sua decisão de agir de forma unila-teral em conjunto com aliados que colaboram, e continuará a recorrer a

17 Para uma apresentação abrangente e importante nessa linha, vide The Responsibility to Protect: Report of theInternational Commission on Intervention and State Sovereignty (2001).

17a O construtivismo, como abordagem acadêmica ao estudo das relações internacionais, é melhor explicado porAlexander Wendt em sua obra Social Theory of International Politics (1999).

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esse modelo para solução de conflitos? Se esta última interpretação defi-nir a política externa norte-americana no futuro, o sistema da Carta serámarginalizado, pelo menos com relação aos Estados Unidos, e, como essepaís define as regras do jogo, a aceitação geral da proibição do recurso àforça não-defensiva provavelmente será muito enfraquecida.

O sistema da Carta poderia funcionar sem a adesão a seus procedi-mentos e regras restritivas por parte do estado dominante no mundo? Aresposta construtivista é esclarecedora em certa medida. Como outrosEstados continuam a considerar o sistema da Carta como competente, elecertamente continuará a influenciar muito as respostas internacionais aouso questionado da força por parte de outros Estados que não os EstadosUnidos, e irá afetar as atitudes globais com relação à liderança america-na. Haverá reclamações sobre o grau no qual as realidades geopolíticassuperam as restrições do direito internacional, e com relação ao uso dedois pesos e duas medidas, mas essas reclamações têm sido feitas desdeque as Nações Unidas surgiram, e supostamente foram embutidas na Car-ta ao se conceder o poder de veto aos membros permanentes.

A abordagem assumida após o colapso do regime de Bagdá por parte doConselho de Segurança, em sua resolução 1483, indica uma tensão entre aaquiescência e a oposição ao recurso à guerra contra o Iraque por parte dosEstados Unidos e do Reino Unido. A resolução divide responsabilidade eautoridade entre as potências ocupantes e as Nações Unidas, concedendoo controle predominante sobre as questões mais vitais de segurança, re-construção econômica e política, e governança aos Estados Unidos e o ReinoUnido. Ao mesmo tempo, fica muito aquém de endossar retroativamente orecurso à força por parte desses dois países nas circunstâncias factuais exis-tentes e se esquiva da questão da legalidade/legitimidade ao evitar qual-quer pronunciamento formal, enquanto aceita como um dado legítimo asrealidades do resultado aparente da guerra. Como conseqüência, um altograu de ambigüidade cerca a guerra do Iraque como precedente. Semdúvida alguma, essa ambigüidade será reduzida e, possivelmente, elimina-da, por uma idéia mais clara do resultado político da guerra e por padrõesde práticas posteriores por parte do Conselho de Segurança da ONU emfuturos contextos de paz e segurança.

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O SISTEMA DA CARTA, O MEGATERRORISMO EA INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA

Na década de 1990, havia uma tendência definitiva rumo à aceitaçãode um papel mais intervencionista das Nações Unidas com relação à pre-venção da limpeza étnica e do genocídio. O Conselho de Segurança, como apoio dos últimos três secretários-gerais, refletindo uma predominânciamaior da proteção internacional dos direitos humanos e menos ansiedadecom relação aos riscos de escalada presentes durante a Guerra Fria, es-treitou o grau de deferência devida à supremacia territorial de governossoberanos. Como tal, a exclusão da intervenção da ONU com base najurisdição doméstica, expressa no artigo 2(7) foi definitivamente questio-nada pela ampla defesa da intervenção humanitária nos anos seguintes àGuerra Fria, seja na base ou por parte dos governos. Embora os padrõesdas reivindicações e a prática permaneçam contestados, sofrendo resis-tência principalmente da China e de outros países asiáticos, havia o apoioconsiderável à intervenção humanitária, em nível de base e intergover-namental. A ONU foi atacada mais freqüente e contundentemente porfazer pouco para mitigar o sofrimento humano, como na Bósnia em Ruan-da, do que por fazer muito18 .

Uma variante deste debate está relacionada aos casos de uso da forçasob a liderança norte-americana no mundo pós-11 de setembro. Tanto noAfeganistão quanto no Iraque, o recurso à força se baseou em reivindica-ções de defesa contra as novas ameaças de megaterrorismo, mas os efeitosem ambos os casos eram a libertação de populações cativas de governosextremamente opressores, estabelecendo padrões de governança e auto-determinação potencial que pareciam virtualmente impossíveis para acidadania oprimida almejar por meios normais de resistência. Embora asmotivações humanitárias dos Estados Unidos sejam suspeitas em ambos oscasos, devido ao histórico anterior de colaboração com esses regimes noauge sua conduta violenta, o efeito das intervenções foi emancipador, e aintenção declarada da ocupação para apoiar os direitos humanos e a de-mocratização, se implementada, fortaleceria o argumento humanitário.Sem dúvida, essas ligações forçadas não aconteceriam sem o aumentodas pressões e o clima criado pelos ataques de 11 de setembro. Não obs-

18 Para panoramas importantes acerca dessa tendência, vide Sean Murphy, Humanitarian Intervention: The UnitedNations in an Evolving World (1996); Nicholas J. Wheeler, Saving Strangers: Humanitarian Intervention inInternational Society (2000).

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tante, sendo o megaterrorismo associado a formas criminais de autorida-de governamental, não seria razoável interpretar os usos da força queprovocassem “mudança de regime” como parte de uma doutrina amplia-da de intervenção humanitária?

Penso que não, por algumas razões óbvias. O recurso à guerra é umaquestão séria demais para possibilitar que as decisões a seu respeito sejamtomadas a partir de argumentos retroativos, que não tenham sido formu-lados e debatidos na íntegra anteriormente. Também por essa razão, con-siderações com base na prudência já eliminariam a possibilidade de inter-venção humanitária em todos os casos, com exceção dos mais extremos, emesmo na maioria destes, devido à magnitude da operação e à incertezadas conseqüências. Quem seria louco a ponto de defender a intervençãohumanitária, por meios militares, para defender os chechenos, os tibeta-nos, os caxemires? Certamente, existem muitas opções para a comunida-de internacional e seus Estados-membros que não envolvam o uso daforça, indo desde expressões de desaprovação até a imposição de sançõesabrangentes. O argumento em favor da intervenção humanitária por meioda força deve ser tratado como uma exceção com base em princípios e,mesmo assim, rara, à proibição geral da Carta com relação ao uso daforça, corporificada no artigo 2(4)19 . Se o Conselho de Segurança nãoautorizar a intervenção, e a coalizão dos dispostos continuar, a operaçãoainda assim poderia ser substancialmente justificada, como no Kosovo, sehouvesse algum tipo de processo coletivo, e os fatos confirmassem a imi-nência de uma emergência humanitária. A comissão do Kosovo enfren-tou essa questão da intervenção humanitária com base em princípios,como fizeram os estudiosos, buscando proporcionar orientação que pre-servasse o equilíbrio entre a proibição do uso da força contida no direitointernacional e os imperativos morais/políticos de mitigar as catástrofeshumanitárias iminentes ou em andamento, ao dilatar as restrições legais1 9a.

19 Para uma doutrina estrita, bem elaborada, da intervenção humanitária, vide Jack Donnelly, Universal HumanRights in Theory and Practice (2a ed., 2003) 242-260. Para um conjunto de reflexões, em geral, céticas, sobreas afirmações de intervenção humanitária, vide Humanitarian Intervention: Moral and Philosophical Issues(Aleksandar Jokic, org., 2003); para um conjunto um pouco mais otimista de visões, vide HumanitarianIntervention: Ethical, Legal, and Political Dilemmas (J. L. Holzgrefe e Robert O. Keohane, orgs., 2003).

19a Para iniciativas importantes, vide o Relatório Kosovo, nota 3; A responsabilidade de proteger, Relatório daComissão Internacional sobre Intervenção e Soberania dos Estados (2001) 53-57; Lori Fisler Damrosch,org., “Concluding Remarks,” in Enforcing Restraint: Collective Intervention in Internal Conflicts (Damrosch,org.,1993), 348-367; e, esp., Damrosch, “The inevitability of selective response? Principles to guide urgentinternational action,” Kosovo and the Challenge of Humanitarian Intervention (Albrecht Schnabel e RameshThakur, orgs., 2001) 405-419.

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Um argumento pró-intervenção não deveria ser tratado como aceitá-vel em circunstâncias em que o uso da força é associado a supostos riscosà segurança representados pela ameaça do megaterrorismo, mas a justifi-cativa elaborada com base nos fatos enfatiza o argumento em favor daintervenção humanitária. No Afeganistão, o argumento da segurança foisuficientemente convincente para transformar os benefícios humanitári-os da guerra em um bônus político e moral, mas sem influência no argu-mento legal em favor do recurso à força, o qual foi suficientemente con-vincente em sua defesa para satisfazer a maioria dos especialistas em di-reito internacional. No Iraque, por outro lado, os argumentos relaciona-dos à segurança e anti-Al Qaeda não foram convincentes, e os benefícioshumanitários que se afirmam ter resultado da guerra foram enfatizadospelos representantes dos Estados Unidos como forma de esquivar-se dailegalidade do recurso à força capitaneado por seu país. Esses esforçospost hoc de legalização não merecem muito respeito, especialmente nocontexto de uma guerra de grandes proporções, em que as iniciativasanteriores de obter uma autorização para uso da força não foram endossa-das pelo Conselho de Segurança, mesmo diante de enormes pressões di-plomáticas exercidas por Washington nos vários meses que antecederama guerra do Iraque, e no qual o desenrolar dos fatos sugere que a supostaameaça associada às armas de destruição em massa foi deliberadamenteexagerada20 .

UM FUTURO CONSTRUTIVISTA PARA OSISTEMA DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS

A posição defendida aqui é de que os Estados Unidos teriam mais aganhar aderindo ao sistema da Carta das Nações Unidas e ao direito inter-nacional como um todo21 . Esse sistema é flexível o suficiente para acomo-dar imperativos de segurança novos e verdadeiros, incluindo um equilíbrioentre direitos de soberania e responsabilidades da comunidade mundial,

20 Pode ser interessante lembrarmos as fortes objeções do governo dos Estados Unidos à intervenção vietnamitano Camboja, e à subseqüente ocupação, que interrompeu o genocídio do Kmer Vermelho. A posiçãoamericana repudiava as considerações humanitárias, enfatizava a violação vietnamita da soberania doCamboja, exigindo a imediata retirada, apesar do risco de regeneração de um regime genocida.

21 Uma visão mais generalizada dos benefícios oriundos da abordagem orientada pelo direito são bem explicadosem Rule Of Power Or Rule Of Law? (Nicole Deller, Arjun Makhijani e John Burroughs, orgs., 2003).

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em processo de mudança22 . Em ambos os contextos de intervenção huma-nitária e respostas contra o megaterrorismo, o sistema da Carta pode serlegalmente justificado em circunstâncias factuais apropriadas.

A partir dessa perspectiva, o recurso à guerra contra o Iraque não deve-ria ter sido utilizado sem uma autorização anterior do Conselho de Seguran-ça, e, em lugar de um “fracasso” das Nações Unidas, o fato representou umexercício responsável de sua responsabilidade institucional de administrarum sistema de restrições constitucionais23 . Os fatos não davam suporte aoargumento em favor da prevenção, já que não havia iminência nem necessi-dade. Como resultado, a Guerra do Iraque parecia constituir, na melhordas hipóteses, um caso de guerra preventiva, mas havia razões legais, moraise políticas consistentes para se negar tanto a legalidade quando a legitimi-dade de tal uso da força, e mesmo a ameaça mais remota que estaria sendoenfrentada pela “prevenção” não se sustentava factualmente em relaçãoao Iraque. Ela não constitui uma exceção aceitável ao sistema da Carta, eo governo dos Estados Unidos não fez qualquer esforço foi feito para reivin-dicar um direito de guerra preventiva, embora a formulação altamente abs-trata e vaga da doutrina da guerra preventiva na Estratégia de SegurançaNacional dos Estados Unidos fosse mais precisamente formulada e explica-da como “doutrina da guerra preventiva”. Contudo, mesmo nesse contextodoutrinário altamente duvidoso, para ser minimamente convincente, asevidências teriam que, pelo menos, demonstrar uma futura ameaça iraqui-ana que fosse verossímil, e que não seria contida com segurança, o quenunca foi feito, nem ao menos tentado.

Minha posição jurídica construtivista é de que os Estados Unidos (e omundo) teriam a ganhar com uma disciplina auto-imposta de adesão aosistema da Carta das Nações Unidas regendo o uso da força. Tal discipli-na voluntária superaria a ausência de limites geopolíticos associados aoequilíbrio de poder de um mundo unipolar24 , funcionando também con-tra as tendências, por parte dos Estados Unidos e outros, de recorrer de-mais à sua superioridade militar, o que estimula a formação de aliançasdefensivas e, possivelmente, corridas armamentistas.

O direito internacional é flexível o suficiente para possibilitar que os

22 Vide Oscar Schachter, “In Defense of International Rules on the Use of Force,” 53 U. Chi. L. Rev 113 (1986).23 A referência ao fracasso visa a desafiar a conclusão central da análise de Glennon, supra, nota 10.24 Minha afirmação está em oposição direta às inferências feitas por Robert Kagen em seu influente livro. Vide

Kagen, Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order (2003).

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Estados Unidos e outros países satisfaçam novas necessidades de seguran-ça. Além disso, nem os valores americanos nem seus objetivos estratégi-cos deveriam ser traduzidos de forma a validar o uso da força que nãoobtivesse apoio no Conselho de Segurança da ONU. Se considerarmos atrajetória da política externa norte-americana no último meio século, aadesão ao sistema da Carta com relação ao uso da força teria evitado ospiores fracassos, incluindo o do Vietnã. Os desvios do sistema da Cartacom relação às proibições de uso não têm qualquer sucesso visível.

Não é o sistema da Carta que está desorganizado, proporcionando umabase razoável para se declarar o projeto de se regulamentar o recurso àguerra por parte de Estados como uma experiência fracassada que deveriaagora ser abandonada. Em lugar disso, são os principais Estados e, sobretu-do, os Estados Unidos, que precisam ser convencidos de que seus interessessão beneficiados e seus valores, concretizados, pela busca mais diligente deuma política externa orientada pelo direito. O sistema da Carta não é umaprisão ilegal que apresenta aos Estados o dilema da adesão (e derrota) ouviolação e desconsideração (e vitória). Em lugar disso, a adesão é a melhorpolítica, se compreendida em um quadro jurisprudencial que não seja deum legalismo servil nem de um niilismo cínico. A lei pode ser dilatada àmedida que surjam novas necessidades, mas, na medida do possível, issodeve ser feito de acordo com procedimentos e normas contidos no sistemada Carta, com uma explicação factual e doutrinariamente convincente doporquê um determinado caso se justifica. Esse tipo de atitude construtivis-ta virá renovar a confiança no sistema da Carta. Também é verdade que oconstrutivismo pode funcionar negativamente, e, portanto, se os tipos dedesconsideração em relação à estrutura legal, oposição pública e resistên-cia governamental presentes no caso do Iraque forem repetidos no futuro,então, realmente, o sistema da Carta estará em ruínas em breve.

Há poucas dúvidas de que a guerra no Iraque e a ocupação norte-americana que se seguiu representam uma derrota importante para osdefensores de uma abordagem à ordem mundial governada pelo direito,bem como um esforço procedimental de dar ao Conselho de Segurançada ONU uma autoridade básica para permitir exceções à proibição daCarta sobre o uso não-defensivo da força na solução de conflitos interna-cionais. Mas a história pode pregar peças. É possível que o ônus da ocu-pação no Iraque, assim como o descrédito do argumento apresentado parajustificar o recurso norte-americano à guerra, cause mudanças políticasnos Estados Unidos e em outras partes, em direção a um maior respeitopelas regras e pelos princípios primordiais do direito internacional, pelasNações Unidas, e pela opinião pública voltada à paz.

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Documento histórico

Conferência proferida na entrega doPrêmio Nobel da Paz*

© The Nobel Foundation 2003.

SHIRIN EBADI1

Oslo, 10 de dezembro de 2003

Em nome do Deus da Criação e da Sabedoria

Sua Majestade, sua Alteza Real, ilustres membros do Comitê NobelNorueguês, excelências, senhoras e senhores:

Sinto-me extremamente honrada por minha voz chegar hoje às pesso-as do mundo a partir deste lugar nobre. Esta grande honra me foi confe-rida pelo Comitê Nobel Norueguês. Saúdo o espírito de Alfred Nobel e de

1 Nascida em 1947, Shirin Ebadi formou-se em direito pela Universidade de Teerã. Entre 1975 e 1979, foipresidente do tribunal municipal da cidade, tendo sido uma das primeiras mulheres a ocupar o cargo. Foiobrigada a renunciar após a revolução da 1979. Atualmente, trabalha como advogada e leciona naUniversidade de Teerã. Tanto em suas pesquisas quanto na condição de ativista, é conhecida por promoversoluções pacíficas e democráticas para problemas graves da sociedade. Ebadi representa o Islã reformado,e defende uma nova interpretação da lei islâmica, que esteja em harmonia com direitos humanos vitais,como democracia, igualdade diante da lei, liberdade de expressão e liberdade religiosa. Com relação a estaúltima, deve-se observar que Ebadi inclui também os direitos dos membros da comunidade bahai, que têmtido problemas no país desde a sua fundação. Ela defende também dos direitos dos refugiados, bem comoos de mulheres e crianças. É fundadora e líder da Associação de Apoio aos Direitos das Crianças no Irã.Ebadi escreveu uma série de obras acadêmicas e artigos dedicados aos direitos humanos. Entre seus livrostraduzidos ao inglês estão The Rights of the Child. A Study of Legal Aspects of Children’s Rights in Iran (Tehran,1994), publicado com apoio da UNICEF, e History and Documentation of Human Rights in Iran (Nova Iorque,2000). Tendo o Islã como ponto de partida, Ebadi faz campanhas em defesa de soluções pacíficas paraproblemas sociais e promove novas formas de pensar em termos islâmicos, tendo demonstrado disposição ecapacidade de cooperar com representantes de visões seculares e religiosas.

* Traduzido por Roberto Cataldo Costa.

Direito e Democracia Canoas vol.5, n.1 1º sem. 2004 p.275-280

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todos os verdadeiros seguidores de seu caminho. Este ano, o Prêmio No-bel da Paz foi concedido a uma mulher do Irã, um país muçulmano doOriente Médio. Sem dúvida, a escolha da minha pessoa será uma inspira-ção para as massas de mulheres que estão lutando para concretizar seusdireitos, não apenas no Irã, mas em toda a região – direitos esses que lhesforam tirados ao longo da história. Essa escolha fará com que as mulheresiranianas, e muito mais além, acreditem em si mesmas. As mulheres cons-tituem metade da população dos países. Desconsiderá-las e as impedir departicipar ativamente da vida política, social, econômica e cultural seria,na verdade, o equivalente a privar toda a população de qualquer socie-dade de metade de sua capacidade. A cultura patriarcal e a discrimina-ção contra as mulheres, principalmente nos países islâmicos, não podemcontinuar para sempre.

Ilustres membros do Comitê Nobel Norueguês!

Como sabem, a honra e a benção deste prêmio terão um impacto posi-tivo e de longo alcance nos empreendimentos humanitários e genuínosdo povo do Irã e da região. A magnitude dessa benção irá envolver todosos indivíduos amantes da liberdade e empenhados na busca da paz, sejameles homens ou mulheres. Agradeço ao Comitê Nobel Norueguês por estahonra que me foi concedida, e pela bênção que traz ao povo de meu país,amante da paz. A data de hoje coincide com o 55o aniversário da adoçãoda Declaração Universal dos Direitos Humanos, que começa com o reco-nhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis detodos os membros da família humana, a garantia de liberdade, justiça epaz, e promete um mundo no qual os seres humanos desfrutarão da liber-dade de expressão e opinião, e serão salvaguardados e protegidos do omedo e da pobreza.

Infelizmente, contudo, o relatório deste ano do Programa de Desen-volvimento das Nações Unidas (PDNU), assim como em anos anteriores,demonstra o crescimento de um desastre que distancia a humanidade domundo idealista dos autores da Declaração Universal dos Direitos Hu-manos. Em 2002, quase 1,2 bilhão de seres humanos viviam em pobrezagritante, ganhando menos de um dólar por dia. Mais de 50 países estive-ram envolvidos em guerras ou desastres naturais. A aids já tirou as vidasde 22 milhões de indivíduos e transformou 13 milhões de crianças emórfãos.

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Ao mesmo tempo, nos últimos dois anos, alguns estados violaram osprincípios universais e as leis dos direitos humanos ao utilizar os eventosde 11 de setembro e a guerra contra o terrorismo internacional comopretexto.

A resolução 57/219 da Assembléia Geral da ONU, de 18 de dezembrode 2002, a Resolução 1456 do Conselho de Segurança, de 20 de janeirode 2003, e a Resolução 2003/68 da Comissão das ONU sobre DireitosHumanos, de 25 de abril de 2003, estabelecem e destacam que todos osestados devem garantir que quaisquer medidas tomadas para combater oterrorismo cumpram todas as obrigações previstas pelo direito internacio-nal, em particular no que diz respeito aos direitos humanos e ao direitohumanitário. Entretanto, regulamentações que restringem os direitoshumanos e as liberdades básicas, organismos especiais e tribunais extraor-dinários que tornam as decisões judiciais justas difíceis, às vezes, impossí-veis, têm sido justificados e têm adquirido legitimidade sob o manto daguerra contra o terrorismo.

As preocupações dos defensores dos direitos humanos aumentam quan-do eles observam as leis internacionais relacionadas ao tema sendo des-respeitadas, não apenas por seus opositores conhecidos, sob o pretexto darelatividade cultural, mas quando esses princípios também são violadosnas democracias ocidentais, em outras palavras, em países que foram,eles próprios, os proponentes iniciais da Carta e da Declaração Universaldos Direitos Humanos da ONU.

É nesse quadro que, durante meses, centenas de indivíduos presos nocurso dos conflitos militares foram detidos em Guantánamo sem o benefí-cio dos direitos estipulados nas Convenções Internacionais de Genebra,na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacionalsobre Direitos Civis e Políticos [da ONU].

Mais além, uma pergunta que tem sido feita por milhões de cidadãosda sociedade civil internacional nos últimos anos, especialmente nos úl-timos meses, e que continua a ser feita, é: por que algumas decisões eresoluções do Conselho de Segurança da ONU são de cumprimento obri-gatório, ao passo que outras não têm essa força? Por que, nos últimos 35anos, dúzias de resoluções da ONU com relação à ocupação dos territóri-os palestinos pelo estado de Israel não foram implementadas prontamen-te, mas, ainda assim, nos últimos 12 anos, o estado e o povo do Iraque –em um primeiro momento, a partir da recomendação do Conselho de

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Segurança e, em um segundo momento, apesar da oposição deste mesmoConselho – foram sujeitados ao ataque, à agressão militar, a sanções eco-nômicas e, finalmente, à ocupação militar?

Senhoras e senhores,

Permitam-se falar um pouco sobre meu país, minha região, minha cul-tura e minha fé.

Sou iraniana, descendente de Ciro, o Grande, o próprio imperadorque proclamou, no apogeu de seu poder, 2.500 anos atrás, que “... nãoreinaria sobre o povo, se este assim não o quisesse”. Prometeu não forçarqualquer pessoa a mudar sua religião e sua fé, e garantiu liberdade paratodos. A Carta de Ciro, o Grande, é um dos documentos mais importan-tes a ser estudados na história dos direitos humanos.

Sou muçulmana. No Corão, o profeta do Islã é citado: “Vós deveiscrer em vossa fé, e eu, em minha religião”. O mesmo livro divino conside-ra como sendo a missão de todos os profetas convidar todos os seres huma-nos a defender a justiça. Desde o advento do Islã, a civilização e a cultu-ra iranianas também têm se imbuído e têm sido tomadas pelo humanita-rismo, o respeito à vida, à crença e à fé de outros, pela propagação datolerância e pelo compromisso com evitar a violência, o derramamento desangue e a guerra. Os luminares da literatura iraniana, especialmentenossa literatura gnóstica, de Hafiz, Mowlavi [mais conheciudo no Oci-dente como Rumi] e Attar a Saadi, Sanaei, Naser Khosrow e Nezami, sãoemissários dessa cultura humanitária. Sua mensagem se manifesta nestepoema de Saadi:

“Os filhos de Adão são membros dos corpos uns dos ou-tros, tendo sido criados a partir de uma mesma essência”.

“Quando a calamidade do tempo aflige um membro, osoutros não podem permanecer em repouso”.

Por mais de cem anos, o povo do Irã tem lutado contra sucessivosconflitos entre a tradição e a modernidade. Recorrendo a tradições an-cestrais, alguns tentaram, e continuam tentando, ver o mundo pelos olhosde seus predecessores e lidar com os problemas e dificuldades do mundo

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atual por meio dos valores dos antigos. Mas muitos outros, ao mesmo tem-po em que respeitam seu passado histórico e cultural, sua religião e suafé, buscam avançar junto com a evolução do mundo e não perder a cara-vana da civilização, do desenvolvimento e do progresso. O povo do Irã,particularmente nos últimos anos, demonstrou que considera a participa-ção nas questões públicas como sendo seu direito, e deseja ser o senhorde seu próprio destino.

Esse conflito se observa não apenas no Irã, mas também em muitosestados muçulmanos. Alguns muçulmanos, sob o pretexto de que a de-mocracia e os direitos humanos não são compatíveis com os ensinamentosislâmicos e com a estrutura tradicional das sociedades islâmicas, justifi-caram governos despóticos, e continuam a fazê-lo. Na verdade, não é tãofácil governar um povo ciente de seus direitos, utilizando métodos tradi-cionais, patriarcais e paternalistas.

O Islã é uma religião cujo primeiro sermão ao profeta começa com apalavra “recite!” O Corão jura pelo cálamo e pelo que ele escreve. Essesermão e essa mensagem não podem estar em conflito com a consciência,o conhecimento, a sabedoria, a liberdade de opinião e expressão, e opluralismo cultural.

A sina discriminatória das mulheres nos estados islâmicos, seja na es-fera do direito civil ou no domínio da justiça social, política e cultural,também tem suas raízes na cultura patriarcal e dominada pelos homensque prevalece nessas sociedades, e não no islã. Essa cultura não tolera aliberdade e a democracia, da mesma forma que não acredita em direitosiguais para homens e mulheres, e na libertação das mulheres da domina-ção masculina (pais, maridos, irmãos...), pois isso ameaçaria a posiçãohistórica e tradicional dos governantes e guardiões daquela cultura.

Deve-se dizer aos que propuseram a idéia do conflito de civilizações,ou prescreveram a guerra e a intervenção militar para a região, e lança-ram mão da lentidão social, cultural, econômica e política do sul comotentativa de justificar suas ações e opiniões, que, se considerarmos as leisinternacionais sobre direitos humanos como universais, incluindo o direi-to das nações de determinar seus próprios destinos, e se acreditarmos naprimazia e na superioridade da democracia parlamentar sobre outros sis-temas políticos, não poderemos pensar apenas em nossa segurança e con-forto, de forma egoísta e desdenhosa. Com relação aos eventos futuros eàs relações internacionais, as Nações Unidas devem dar máxima priori-

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dade a uma busca de novos meios e idéias para possibilitar que os paísesdo sul também desfrutem de direitos humanos e de democracia, ao mes-mo tempo em que mantêm a independência política e a integridade ter-ritorial de seus respectivos países.

A decisão do Comitê Nobel da Paz de me conceder o prêmio de 2003,como primeira iraniana e primeira mulher de um país muçulmano, inspiraa mim e a milhões de iranianos e cidadãos de estados islâmicos, na espe-rança de que nossos esforços, empreendimentos e lutas rumo à concreti-zação dos direitos humanos e ao estabelecimento da democracia em nos-sos respectivos países tenham o apoio, o amparo e a solidariedade da soci-edade civil internacional. Esse prêmio pertence ao povo do Irã. Ele per-tence ao povo dos estados islâmicos e ao povo do sul, para o estabeleci-mento de direitos humanos e democracia.

Senhoras e senhores

Na introdução de meu discurso, falei de direitos humanos como ga-rantia de democracia, justiça e paz. Sendo assim, se os direitos humanosnão forem expressos nos códigos legais, ou colocados em prática por esta-dos, como expresso no preâmbulo da Declaração Universal dos DireitosHumanos, os seres humanos não terão escolha além realizar uma “rebe-lião contra a tirania e a opressão”. Um ser humano despojado de toda adignidade, um ser humano privado de direitos humanos, um ser humanotomado pela fome, um ser humano abatido pela inanição, pela guerra epelas enfermidades, um ser humano humilhado e espoliado, não está emposição ou situação de recuperar os direitos que perdeu.

Se o século XXI quiser se libertar do ciclo de violência, atos de terrore guerra, e evitar a repetição da experiência do século XX – o mais cheiode desastres da história da humanidade – não há outra forma a não sercompreender e colocar em prática todos os direitos humanos para a hu-manidade como um todo, independentemente de raça, gênero, fé, naci-onalidade ou status social.

Na expectativa desse dia.

Com muita gratidão,

Shirin Ebadi.

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Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo, EditorRevista Direito e DemocraciaUniversidade Luterana do BrasilCurso de DireitoRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 1, sala 2992420-280 - Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]

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