Direito e Saúde Mental

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  • 7/26/2019 Direito e Sade Mental

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    DIREITO E S DE ME NT L

    L W AND MENT L HE LTH

    Dyr ceu guiar Dias Cint r a

    Junior

    RESUMO

    O texto t rata

    da

    assistncia

    aos

    portadores

    de

    t ranstornos mentais.

    Traa breve histrico

    da

    legislao sobre

    o

    assunto, relata

    os

    avanos obti

    dos pela cham ada luta antimanicomial no Brasil, analisaas novidades intro

    duzidas pelaLei n. 10.216,de

    6 -4-2001,

    quedef ine um novo modelo assis-

    tencia l

    em

    sade men tal,

    e, por

    f im, preconiza mudanas

    na

    legislao civil,

    penale t rabalhista para adequ-las ao novo modeloe aos

    Principios para

    a

    proteo depessoas acometidas de transtorno mental epara amelhoria da

    assistncia sade mental daONU.

    Abst rac t

    The paper

    is

    about

    the

    assistence

    to the

    mental ly

    ill.

    Traces

    a

    brief

    historyof the legislat ion about the issue, relatesthe improvement of the mo-

    vement against

    the

    insane asylum model, analyses

    the

    news int roduced

    by

    the Law n. 10.216, of

    6 -4-2001,

    that def ines a new assistencia l model in

    mental health,

    and, in the end,

    comm ends publ ic ly changes

    in the

    civil, cr imi

    nalandlabour legislat ion inordertoadequate themto the newmode land the

    Principles for theprotection ofpersons with men tal il lness and the improve

    ment of mental health careof ONU.

    Palavras chave

    Sade mental , Estabelecimento psiquitr ico, Internao, Reforma psi

    quit r ica. Legis lao sobre portadores

    de

    t ranstornos mentais.

    K ey w o rds

    Mental health, Psychiatric hospital, Psychiatric reform, Legislat ion about

    mental ly ill.

    *)

    Juiz

    no 2

    9

    T r ibuna l

    de

    A lada C iv il

    do

    Estado

    de So

    Pau lo . Membro

    da

    Assoc iao Juizes para

    a Democracia. Membr odo Inst i tuto Brasi lei rodeCinc ias C r iminais .

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    1. INTRODUO: A HISTORIA DA EXCLUSO

    As origens mais remotas da legislao sobre a loucura esto, certa

    mente, vinculadas idia de segregao, ou, mais precisamente, de autori

    zao legal para que o Estado isolasse o portador de distrbio mental.

    At a Revoluo France sa, no havia ainda a conc eituao do louco

    enquanto doente mental. com a psiquiatria, no f inal do sculo

    XVIII,

    que a

    loucura ganha statusde doe na, em decorrncia, sobretudo, de ter ela se torna

    do um problema social nas cidades da Europa, cada vez mais populosas.

    A prtica do isolamento pode ser notada na poca do Renascimento.

    Havia, na Europa renascent ista, o costum e de se conf inar os loucos

    num navio que vagava de porto em porto, sem dest ino. Note-se o sent ido

    simbl ico disso: os insanos embarcavam numa viagem inf indvel, sem

    pon

    to de chegada; o ex l io r i tual ; eram prisioneiros de sua prpria part ida.

    ( 1 )

    A nau dos loucos no encerrava s perturbado s mentais, est claro.

    Nela havia lugar para os bba dos, os deva ssos , os desordeiros, os que in

    terpretavam mal as escri turas , os blasfemadores. A loucura era abordada a

    part ir de um exclusivo sentido moral.

    Assim tambm foram os hospitais gerais cr iados na Frana por ordem

    do rei a part ir de 1656, com a fundao por decreto do Hospital Geral de

    Paris , com o objet ivo de aprisionar no apenas a loucura, mas todos os

    pobres da cidade. Por isso, no dizer de Foucault, o hospital geral no tem

    carter mdico, seno de uma estrutura semijurdica, um a espc ie de enti

    dade administrat iva que, ao lado dos poderes j const i tudos, e alm dos

    tr ibun ais, decide, julga e executa , dir igida por diretores nom eado s p ara toda

    a vida: um poder estabelecido pelo rei entre a polcia e a just ia.

    ( 2 )

    Muitos ant igos leprosarios na Idade Mdia foram reat ivados, nessa

    poc a, pelo clero e por mand o

    real,

    com o objet ivo de ordenar a misria que

    grassava pela Europa. Em mui tos desses hospi ta is gerais, casos mais ex

    t remos de al ienao mental eram t ratados com conf inamento em jaulas,

    re legando homens condio de anima is, como de scr i to em diversas obras

    l i terr ias. A explorao da mo-de-obra em ta is inst i tu ies era fato co

    m u m .

    (1) Joo Fraize-Perei ra, O que loucura, So Paulo, Bras i l iense, 1986, p. 5 1 .

    (2) Com o revela Foucaul t , sabido que o sculo XVII cr iou vastas casas de internm ento; no

    mui to sabido que mais de um habi tante em cada cem da c idade de Par is v iu-se fechado numa

    delas, por alguns meses;. bem sabido que o poder absoluto fez uso das cartas regias e de medi

    das de pr iso arbi trr ias; menos sabido qual a conscincia jurdica que poderia animar essas

    prt icas (His tr ia da Loucu ra,apudJoo Frayse-Perei ra, ob. c i t. , p. 62) . Sob re isso, ta m b m , vide

    Hl io Lauar , Pensando a In ternao, em Le i Car lo em debate , 1995, p . 49 .

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    A Revo luo Francesa procurou dar um carter cient fico que le iso

    lamento, dentro do espr i to do novo regime, desenvolvendo inst i tutos jurdi

    cos inspirados nos valores burgues es que se instalavam , sobre tudo com base

    na Declarao dos Direi tos do Homem e do Cidado, que estabelece a as

    sistncia pbl ica como uma dvida sagrada.

    O internamento ganhou valor teraput ico e virou o asi lo de Phi l ippe

    Pinei, mdico f rancs. Este construa em torno dos portadores de transtorno

    mental um crculo invisvel de julgamentos morais: a observao para cr iar

    um rigoroso controle tico.

    Entendia necessrios ao tratamento: 1) o isolamento para romper com

    o foco permanente de inf luncias incontroladas que a vida social ; 2) o

    estabelecimento da ordem asi lar; 3) uma relao de autoridade entre o m

    dico e seus auxil iares e o doente. Sob estes trs princpios foi institudo o

    manicmio-hospi ta lar para t ratamento mental .

    ( 3 )

    No mesmo perodo, na Inglaterra, Tuke dir igia experincia semelhan

    te ,

    calcada numa comunidade re l ig iosa, para submeter o internado a um

    contro le s imul taneamente socia l e moral .

    ( 4 )

    2. MODEL O EXISTENTE

    De f ins do sculo passado a este sculo, signi f icat ivas descobertas

    foram fei tas a inf lurem no tratamento psiquitr ico: a psicanl ise de Freud e

    a psicofarmacoterapia.

    Mas ,

    apesar d isso, os estabelecimentos de internao pouco muda

    ram. A t ica da excluso social do enfermo mental ainda vigora. Tal exclu

    so impl ica: 1) a excluso jurdica (pela interdio); 2) a excluso nos as

    suntos do crculo famil iar (os segredos, os pactos de dependncia, a vergo

    nha,

    a construo permanente de fracassos); 3) a excluso no trabalho (a

    apo sentad oria por doen a incapac itante, a noo de em prego de favor ); 4)

    a excluso no processo educacional (o est igma das classes especiais ou do

    apontamento pelos colegas da si tuao de hipossuf icincia); 5) a excluso

    teraput ica (hospitais psiquitr icos).

    Os manicmios cont inuam sendo a ponta mais aguda do processo de

    excluso. So uma est rutura de completo desrespei to aos di re i tos funda

    mentais da pessoa humana.

    (3) Ana M ar ia Fernand es Pi tta e Suel i Gandol f i Dal lar i , A c idadania dos doe ntes m entais no s is tema

    de sade do Bras i l , em Sade em debate, n. 36, 1992, p. 19.

    (4) Joo Frayse-Pereira, ob. c i t . , pp. 83/86.

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    Os objet ivos centrais do asi lo pinel iano cont inuam vivos, no Brasi l , por

    fora do velhssimo Decreto n. 24.559/34, que tratava da questo no mbito

    nacional at a edio da recente Lei n. 10.216/2001.

    O modelo que temos, reproduzindo conceitos legais at h pouco vi

    gen tes, procura marcar bem a di ferena entre norm al e ano rma l . A prt i

    ca decorrente de sua apl icao no destoa m uito da nau referida no incio do

    trabalho: a internao const i tui , para o enfermo mental , quase sempre, uma

    porta de entrada, nunca de sada.

    Para que se tenha uma idia do modelo sustentado pelo referido de

    creto,

    basta que se constate quantas vezes aparece em seu texto a palavra

    estab elecim ento psiqu itrico . Por ele, a profi laxia me nta l, [...] ass istnc ia

    e proteo [ ...] dos psicpa tas que objet ivo enun ciado no prem bulo

    parece ter um s nom e: estabelecimen to ps iquitr ico .

    {5 )

    Especial istas que preconizam uma nova t ica sobre a doena mental

    tm denunciado, a par do isolamento f sico dos internados, o uso abusivo

    dos ps ico t rp icos e a a tuao exc lus iva na doena em det r imento de ou

    t ras d imenses do ser humano, que o portador de t ranstorno mental no

    as perde.

    No so poucos os casos de pessoas que, internadas por sofrerem de

    doenas como epi lepsia, enxaque ca, podem ter enlouquecido mes mo no

    hospcio.

    H dados aval iat ivos reveladores de que apenas aproxima dam ente 12 %

    dos internados deveriam permanecer nas inst i tuies.

    3. LUTA ANTIMANICOMIAL NO B RASIL

    A aniqui lao do indivduo portador de problemas mentais em seus

    mais elementares direi tos de cidadania gerou o quest ionamento do modelo

    tradicional, em nvel tcnico, luz da experincia cient f ica contempornea,

    e deu origem a movimento pela reforma da legislao psiquitr ica.

    O objet ivo respeitar os direi tos humanos do doente mental , subme

    tendo-o a um novo complexo de intervenes, em que a preocupa o co m a

    pessoa humana dele a central.

    (5) Segundo o Decreto n. 24.559/34, do governo prov isr io de Getl io Vargas, dentre outras

    co i

    sas , Sem pre que, por qua lquer mo t i vo , fo r i nconven iente a conserva o do ps i cpata em dom i

    c l io, ser o me smo rem ovido para estab elec ime nto ps iquitr ico (ar t igo 9

    Q

    ) . De le cons ta tamb m

    que ,

    O ps icpata ou o indiv duo susp ei to de atentar contra a prpr ia v ida ou a de outrem , que

    per turbar a ordem ou ofender a moral pbl ica, dever ser recolhido a estabelec imento ps iquitr i

    co (art igo 10).

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    Depois de demorada tramitao legislat iva, foi f inalmente aprovado o

    projeto do Deputado Paulo Delgado, surgido na esteira da luta ant imanico-

    mial com o propsito de reformar signi f icat ivamente a assistncia psiquitr i

    ca, em nivel nacional.

    Infel izmente, a internao involuntria no foi abol ida, podendo ocor

    rer mesmo sem ordem judicial . Mas a nova lei t raz avanos na l inha al terna

    t iva internao hospitalar.

    Antes, em diversos Estados, o assunto j havia avanado signi f icat i

    vamente .

    Em So Paulo, os pr incp ios bsicos da reforma psiquit r ica esto

    no ar t igo 33 do Cdigo de Sade do Estado (Lei Complementar Const i

    tuio Paul ista). H, no caput do referido art igo, a diretr iz de superao

    gradat iva do procedimento de internao hospi ta lar , no tocante sade

    mental . Out ras inovaes re lacionadas com o ple i to por reformas ant ima-

    nicomiais esto nos incisos I I I (a previso de t ratamento em ambiente me

    nos rest r it ivo pos svel e o cons ent imen to inform ado), IV (a internao com o

    lt imo recurso teraput ico) e VI (a vigi lncia dos direi tos indisponveis do

    indivduo assist ido de forma ar t iculada com a autor idade sani tr ia e o Mi

    nistrio Pbl ico).

    Em Minas Gerais, a Lei n. 11.802/95, cham ada Lei Ca rlo , tam b m

    tratou adequ adam ente a promoo da sade do portador de sof r imen to men

    tal,

    incorporando disposit ivos do direi to internacional

    Princpios pa ra a pro

    teo de pessoa s acom etidas de transtorno men tal e para a melhoria da

    assistncia sade m ental, da ONU, de 1991) e recomendaes do Relat

    rio final da 2

    Conferncia Nacional de Sade Mental, real izada em 1994.

    A le i m ine i ra , dent re out ras inovaes

    { 6 )

    : 1) d nfase ao direito ao

    tratamento para reinsero social (art igo 1

    9

    ) , cons iderando, quando poss

    vel , a vontade do paciente (art igo 4

    9

    , IV)

    ( 7 )

    ; 2) bane o modelo cent rado na

    excluso, inclusive no ensino (art igo 16), e resgata, como fator auxi l iar do

    t ratamento, a re insero na fam l ia, no t rabalho e na comunidade

    ( 8 )

    ; 3) pre

    v servios de sade mental subst i tut ivos dos hospi ta is psiquit r icos, a

    serem gradat ivamente ext intos (ar t igo 21); 4) v incula os poderes pbl icos

    estadual e munic ipais implementao de um novo sistema, a l ternat ivo

    aos hospi ta is psiquit r icos ambulatr ios, servios de emergncia psi -

    (6) Toda s tam bm co nstantes do projeto paul is ta Projeto de Lei n. 366 , em tram i tao desd e

    1992.

    (7) Trata-se,aqu i , de i ncorporao do 11

    8

    dos Princpios pa ra a proteo de pessoas acometidas

    de transtorno mental e para a melhoria da assistncia sade mental, da O N U, de

    1 9 9 1 ,

    que prev

    o consent imento informado e a formas de supr i - lo em casos excepcionais .

    (8) O di re i to v ida e ao trabalho e m com unida de, sem pre que p ossve l , destacado no Pr incpio n.

    3 do refer ido instrumento internac ional . O Pr incpio n. 7 fa la, a inda, do papel de comunidade e da

    cul tura no t ratamento.

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    quit r ica em pronto-socorros gerais e cent ros de referncia, le i tos em hos

    pi tais gerais, servios de hospital-dia e hospital-noi te, centros de refern

    cia em sade mental , cent ros de convenincia, lares e penses protegidas

    (art igos 2

    9

    e 3

    9

    ) ; 5 ) bane proced imentos desumanos como a camisa-de-

    fora, cela-forte e outros (art igo 5

    9

    ) e regulamenta minuciosamente as pr

    t icas teraput icas psiquitr icas biolgicas (art igo 4

    9

    , pargrafo nico), nas

    quais se incluem a eletroconvu lsoterapia, o choque cardiazlico e o choque

    insulnico, t idos como de apl icao abusiva, at a q u i

    ( 9 )

    ; 6) probe as psicoci-

    rurgias e quaisquer procedimentos que impl iquem efei tos orgnicos i rrever

    sveis a t tulo de tratamento da enfermidade mental

    ( 1 0 )

    (art igo 6

    9

    ); 7) prev a

    internao como lt imo recurso (art igo 9

    9

    ) , vinculando-a existncia de lau

    do mdico especial izado com diagnst ico, autorizao da faml ia ou pacien

    te e previso de tempo de tratamento (art igo 10); 8) prev a separao dos

    portadores de sndrome de dependncia a lcol ica em le i to de c l n ica mdi

    ca,

    em hospitais gerais ou pronto-socorros gerais (art igo 9

    9

    , 2

    9

    ) e a inter

    veno necessria do Ministrio Pbl ico e da autoridade sanitr ia local (ar

    t igos 12 e 13).

    4. LEI N. 10.216/2001

    A lei de mbito nacional recentemente aprovada probe a internao

    em inst ituies com c aracterst icas a si lares , ou seja, aque las desp rovidas

    de servios mdicos, psicolgicos, ocupacionais, de assistncia social , de

    lazer e outros ( 2

    9

    do art igo 4

    9

    ) , e que no assegurem ao paciente os direi

    tos bsicos do sistema.

    Tais direi tos bsicos da pessoa enferma so: I - ter acesso ao melhor

    tratamento do sistema de sade, consentneo s suas necessidades; I I - ser

    tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de benef iciar

    sua sade, visando a alcanar a sua recuperao pela insero na faml ia,

    no trabalho e na comunidade; I I I - ser protegida contra qualquer forma de

    abuso e explorao; IV - ter garant ia de sigi lo nas informaes prestadas; V

    - ter direi to presena mdica, em qualquer tempo, para esclarecer a neces

    sidade ou no de sua hospital izao involuntria; VI - ter l ivre acesso aos

    meios de comunicao disponveis; VI I - receber o maior nmero de infor

    maes a respeito de sua doena e de seu tratamento; VI I I - ser t ratada em

    ambiente teraput ico pelos meios menos invasivos possveis; IX - ser t rata

    da, preferencialmente, em servios comunitr ios de sade mental (pargra

    fo nico do art igo 2

    9

    ) .

    (9) A forma de preservar o respei to dignidade da pessoa acom et ida de t ranstorno men tal est n o

    Pr incpio n. 11 daquele documento.

    (10) A l imitao radical da psicocirurgia est no i tem 14 do Princpio n. 11 do documento.

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    Prev a lei , tambm, a necessidade de autorizao mdica para qual

    quer t ipo de internao e a not i f icao compulsria ao Ministrio Pbl ico, no

    prazo de 72 horas, nos casos em que o internamento se d contra a vontade

    do paciente.

    DESAFIOS PARA IMPLEMENTA O DO NOVO MODELO

    H necessidade de desenvolver pol t icas pbl icas tendentes perfei ta

    apl icao da nova lei .

    Um dos primeiros problemas com que deparamos diz respeito s inter

    naes j existentes.

    O assunto est a demandar uma ampla veri f icao pelo Ministrio da

    Sade e outros rgos, aos quais a Lei n. 10.216/2001 atr ibui funes, no

    sent ido de adequar as internaes em curso nova legislao, veri f icando

    sua necessidade e implementando os controles previstos.

    No se po de es quece r que o sent ido da lei o dedesconstruo de um

    sistema.

    Depois, preciso cuidar para que as desinternaes sejam efet iva

    mente assist idas, evi tando o abandono de pessoas que necessitam de trata

    mento em outro ambiente. Como tem sido assinalado pelo deputado Paulo

    Delgado, autor do projeto, as vagas de hospital psiquitr ico devem ser blo

    queadas apenas mediante a cr iao de vagas correspondentes no servio

    aberto (centros de ateno psicossocial , ncleos, penses protegidas, lares

    abrigados, o hospital-dia, o hospital-noi te, ala psiquitr ica de hospital geral ,

    emergncia psiquitr ica, servio psiquitr ico no posto de sade da peri fe

    ria).

    Outra questo importante a de ordem cultural . A apl icao efet iva da

    le i exige uma mudana de mental idade. preciso empenhar esforos no

    sent ido de demonstrar as vantagens de um maior contado do doente mental

    com a sociedade. preciso superar preconceitos de uma populao que se

    acostumou a pensar no doente mental como uma est ranha simbiose de um

    ser perigoso e incapaz.

    A faml ia deve ser objeto de ateno especial . Sabe-se que o abando

    no do doente mental pelos famil iares se deve, em grande parte, carncia

    de recursos e ao peso que aquele signi f ica. Os hospitais para doentes

    men

    tais nada mais foram, sempre, que depsitos de seres humanos, onde as

    faml ias isolavam os doentes que lhe pareciam inconvenientes e perigosos.

    Mas, se o Estado sempre pde pagar grandes somas de dinheiro aos hospi

    tais,

    por que no poderia canal izar parte desses recursos, de forma controla

    da, para que as faml ias atendam seus doentes?

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    Os transtomos mentais so responsveis pelo terceiro maior gasto anual

    com internao no Sistema nico de Sade (SUS), correspondendo atual

    mente a R$ 450 mi lhes. Cerca de 95% de ta l quant ia ia para o modelo

    manicomial , remunerando internaes que signi f icavam isolamento e perda

    do contato social pelo paciente.

    O novo regime, que investe na recuperao social , deslocando o cen

    t ro da assistncia do hospital para a pessoa, exige o redimensionamento na

    apl icao de tais recursos.

    6. MUDANA S LEGISLA TIVAS NECESSRIAS

    Uma questo que convm abordar alm da mais especf ica legisla

    o sobre estabelecimentos psiquitr icos , a das conseqncias do dis

    trbio mental na si tuao jurdica dos envolvidos, sob os enfoques das legis

    laes civil, penal e t rabalhista.

    Considerando o modelo adotado pela Lei n. 10 .216 /2001, preciso

    promover mudanas em vrios pontos da legislao.

    Segundo o Cdigo

    Civi l ,

    dentre os absolutamente incapazes de exer

    cer os atos da vida civi l esto os loucos de todo o gnero , express o esta

    que tem merecido cr t icas.

    A declarao da incapacidade corresponde chamada interdio.

    O que preciso entender, contudo, que tal interdio visa a proteger

    o doente mental e no destruir seus direi tos, como ocorre com freqncia.

    O Decreto n. 24.559/34 j modif icara parcialmente a discipl ina, pos

    sibi l i tando ao juiz a l imitao da interdio a determinados atos, incluindo o

    portador do distrbio como relat ivamente incapaz conforme o nvel de com

    promet imento de sua psique. De qualquer forma, a legislao ainda deixa a

    desejar no que se refere cidadania do doente mental . preciso adequ-la

    ao que prev a nova lei sobre a assistncia aos doentes mentais e os

    Prin

    cpios para a proteo de pessoa s acom etidas de transtorno men tal e para

    a melhoria da assistncia sade men tal 6aO NU : a sa t is fao de nece ss i

    dades compat veis com a v ida e d ignidade e o perfe i to acompanhamento

    jurdico do interdi tado, impondo-lhe restr ies mnimas adequadas ao seu

    caso.

    A lei penal se ressente de inadequaes mais graves ainda.

    Os portadores de problemas mentais podem ser t idos como: (1) inim-

    putveis ou (2) semi-responsveis.

    Os inimputveis no respondem jur id icamente porque no tm capa

    cidade para sofrer juzo de censurabi l idade. So isentos de pena. Os

    semi-

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    responsveis, por sua vez, so imputve is, ou seja, respo ndem pelo fato.

    Mas sofrem diminuio na pena (de um a dois teros) por terem sua capaci

    dade de discernimento diminuda.

    Quais as conseqncias, para o agente, nas duas hipteses?

    A reforma penal de 1984 adotou o sistema chamado

    vicariante

    ouuni-

    trio (em oposio ao sistema do duplo binario anterior). Apl ica-se a pena ou

    medida de segurana. Um caminho exclui o outro.

    No caso de inimputvel, a soluo sempre a apl icao de medida de

    segurana, que pode ser: 1) internao em hospital de custdia e t ratamen

    to; ou 2)

    tratamento ambulatorial

    (art igo 96 do Cdigo Penal).

    No caso do semi-responsvel, o juiz pode optar entre: 1) diminuir a

    pena (art igo 26, pargrafo nico, do Cdigo Penal); ou 2) substitu-la por

    uma daquelas duas medidas de segurana,

    se o condenado necessi tar de

    especial tratamento curativo (art igo 98 do Cdigo Penal).

    Ocorre que a inimputabi l idade acaba tendo, em razo da lei , um trata

    mento muito mais penal que teraput ico. Se os estabelecimentos psiquitr i

    cos j so ruins, calcule-se como so os manicmios judicir ios.

    H mais. Segundo a lei , se o fato for apenado com recluso, a medida

    de segurana ser sempre de internao. Ora, e se ela for desnecessria?

    Nesse ponto, a legislao penal no levou em conta o ser humano,

    mas o fato de que ele prat icou (mais grave ou menos grave), o que choca

    com as exigncias de internao como l t imo recurso.

    H tempos a jur isprudncia dos t r ibunais paul istas vem admit indo o

    tratamento ambulatorial , por exceo, no caso de indicao de suf icincia

    deste no laudo que af i rma a insanidade mental , abrandando, portanto, o

    r igor e a inadequao da

    l e i .

    ( 1 1 )

    Outro problema reside no tempo da internao ou do tratamento am

    bulatorial . A lei fala em tempo indeterm inado e prazo mnimo de trs anos

    (art igo 97, 1

    g

    ).

    12 )

    Mas, dentro da prpria dogmtica penal, parte da doutr i

    na vem denunciando tal sistema como violador dos princpios const i tucio

    nais da legal idade e da igualdade. De fato, no pode haver submisso de

    pessoa a constrangimento que a internao no deixa de ser , alm da

    pena mxima prevista para o del i to.

    ( 1 3 )

    (11) Julgados do Tr ibunal de A lada Cr iminal , 93/181 e 98/203; Revis ta dos Tr ibunais 634/272.

    (12) Esta prev iso ass im como a or igem da me dida de segurana te m por base o concei to de

    temibilidade

    ou

    periculosidade

    do del inqen te com problem as mentais , no sent ido de uma cer ta

    pervers idade constante e at iva dele, formulado por Garofalo, penal is ta i ta l iano do f inal do sculo

    XIX, que projetou para o Di rei to Penal concepes antropolgicas e soc iolgicas do pos i t iv ismo.

    (13) Luiz F lv io Gome s, Med idas de seguran a e seus limi tes , em

    Revista Brasileira de Cincias

    Criminais, 2, 1993, p. 64.

  • 7/26/2019 Direito e Sade Mental

    10/11

    A inadequao no para a : a disposio se choca com a nova legisla

    o brasi leira, como j se chocava, antes, com os Princpios para a proteo

    de pessoa s acom etidas de transtorno m ental e para a me lhoria da assistn

    cia sade

    mentcd

    da ONU.

    A Lei n. 10.216/2001 prev o direi to de acesso ao melhor t ratamento,

    consentneo com as suas necessidades (art igo 2

    9

    , pargrafo nico, I), que

    pode no ser a internao. A recuperao pela insero na faml ia o obje

    t ivo preconizado (art igo 2

    9

    , pargrafo nico, I I ) , os meios de tratamento de

    vem ser os menos invasivos (art igo 2

    g

    , pargrafo nico, VIII) e a internao

    t ida como lt imo recurso (art igo 4

    9

    , caput).

    A lei se preocupou, ainda, em evi tar ou superar a dependncia inst i tu

    cional,

    que deve ser objeto de polt ica especf ica de alta planejada e reabil i

    tao psicossocial assist ida (art igo 5

    9

    ) .

    Por outro lado, o item 6 do Princpio n. 17 do documento da ONU diz

    que Se, a qualquer m om ento, o prof issional de sad e men tal respon svel

    pelo caso est iver convencido de que aquelas condies para a reteno de

    uma pessoa como paciente involuntrio no so mais apl icveis, este deve

    r determinar a al ia dessa pessoa da condio de paciente involuntrio .

    Tais pr incp ios se apl icam tambm a pessoa cumprindo sentenas de

    priso por cr imes [ . . . ] e nas quais tenha sido determinada a presena de

    transtorn o me ntal (i tem 1 do Princpio n. 20).

    Por f im, de se destacar a inexistncia de legislao trabalhista ver

    sando sobre a questo do doente mental .

    Sabe-se que o t rabalho um fator importante no tratamento dos dis

    trbios mentais. O reconhecimento da apt ido que o doente tenha para um

    determinado t rabalho d- lhe autoconf iana. Mas a perspect iva de autono

    mia f inanceira mnima, que deveria corresponder apt ido, pode f icar preju

    dicada pela fal ta de legislao especf ica, que no torna possvel a real iza

    o de contratos de trabalho com ele.

    CONCLUSO

    Como se v, h muita coisa ainda a ser fei ta para o aprimoramento da

    legislao sobre sade mental .

    A Lei n. 1 0.216/2001 foi o com eo . claro que um a lei no faz m ilagres .

    O process o de desinstitucionalizao deve se apoiar em cond ies esp ecf i

    cas de capacitao profissional e material. E deve ter o apoio da sociedade.

    Mas tambm no se pode falar que a lei no muda a realidade, pois,

    hoje,

    o direi to tem tambm um sent ido promocional e no apenas declarat ive

  • 7/26/2019 Direito e Sade Mental

    11/11

    O desenvolvimento de pol t icas pbl icas tendentes apl icao da Lei

    n. 10.216/2001 pode ser cobrado inclusive por meio de ao para tutela de

    interesse colet ivo.

    A implementao adequada do novo modelo provocar mudanas ins

    t i tucionais e sociais. E deve servir de parmetro para modif icaes legislat i

    vas quanto ao

    status

    do doente mental no mbito do Direi to Civi l , do Direito

    Penal e do Direi to do Trabalho.

    O assunto interessa a todos. Af inal , como dizia o grande escri tor espa

    nhol

    Miguel de Unamuno:

    Cada um tem seu mtodo, com o cada um tem

    sua loucura; apenas est imamos cordato aquele cuja loucura coincide com a

    da maioria .

    8. BIBLIOGRAFIA

    FRAIZE-PEREIRA, Joo. O que loucura. So Paulo, Brasi l iense, 1986.

    GOMES, Luiz Flvio. Medidas de segurana e seus l imites.

    In Revista Brasi

    leira de Cincias Criminais, n. 2, 1993.

    LAUAR, Hl io. Pensando a Internao. In Lei Carlo em debate. Belo

    Hori

    zonte, Associao Mineira de Psiquiatr ia e Secretaria Municipal de Sade,

    1995.

    PITTA, Ana Maria Fernandes; DALLARI, Sueli Gandolf i . A cidadania dos doen

    tes mentais no sistema de sade do Brasi l .

    In Sade em debate

    n. 36, 1992.

    . Organizao das Naes Unidas. Princpios pa ra a proteo de

    pessoa s acom etidas de transtorno m ental e para a me lhoria da assistncia

    sade mental, So Paulo, Revista dos Tribuna is, 19 91 , vo l . 634 , p. 27 2.

    Tribunal de Alada Criminal. Julgados do

    TACRIM,

    vo l . 93 /181 ; Julgados do

    TACRIM,

    vol . 98/203.