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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 1 Direito Internacional Privado O Direito internacional privado, enquanto ramo de Direito, é o complexo normativo que regula situações transnacionais mediante um processo conflitual. A cada Estado soberano corresponde um sistema jurídico e nos sistemas internacionais temos áreas de correspondência e de divergência; assim, por exemplo, pode e acontece que exista um sistema que atribua um direito que outro proíbe, ou um sistema que tenha requisitos de validade mais rígidos do que outros. Estas diferenças entre sistemas devem-se a opções diferentes quanto aos valores ou finalidades a alcançar. Outras vezes, usam-se técnicas diferentes. As situações jurídicas podem ocorrer apenas na esfera de um Estado soberano – nesses casos, dizemos que as situações jurídicas são internas. A sociabilidade humana não para nas fronteiras; há muito que os seres humanos estabelecem contactos além-fronteiras. As relações internacionais acentuaram-se a partir do séc. XX, o que se deve a diversos fatores: A internacionalização da economia; Os movimentos migratórios; O surgimento de novos Estados; Os processos de integração regional; O desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação. Verificação de mais movimentos de pessoas, capitais e bens incorpóreos, de direitos, designadamente dos direitos representados por realidades como os valores mobiliários. Pensemos nos movimentos migratórios. Dois portugueses residem em França, onde se casam? Qual será a lei reguladora? Pensemos no tráfico internacional de bens e serviços. Uma sociedade sedeada em Portugal vende um lote de cortiça a uma da Suíça, qual será a lei reguladora? Enfim, a regulação jurídica das situações transnacionais coloca três problemas: 1. Em primeiro lugar, o órgão de aplicação tem de escolher a lei aplicável ao caso, sendo que a lei escolhida vai ter fortes impactos na decisão da questão; 2. Quando surge um litígio transnacional, torna-se também necessário, na falta de convenção de arbitragem, determinar os tribunais internacionalmente competentes para a questão – coloca-se assim a questão da determinação da jurisdição competente/competência internacional; 3. Há ainda o problema dos efeitos que as decisões proferidas por tribunais estrangeiros podem produzir na OJ portuguesa – surge assim o problema do reconhecimento de decisões estrangeiras.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

1

Direito Internacional Privado

O Direito internacional privado, enquanto ramo de Direito, é o complexo normativo que regula

situações transnacionais mediante um processo conflitual. A cada Estado soberano corresponde um

sistema jurídico e nos sistemas internacionais temos áreas de correspondência e de divergência;

assim, por exemplo, pode e acontece que exista um sistema que atribua um direito que outro proíbe,

ou um sistema que tenha requisitos de validade mais rígidos do que outros. Estas diferenças entre

sistemas devem-se a opções diferentes quanto aos valores ou finalidades a alcançar. Outras vezes,

usam-se técnicas diferentes. As situações jurídicas podem ocorrer apenas na esfera de um Estado

soberano – nesses casos, dizemos que as situações jurídicas são internas.

A sociabilidade humana não para nas fronteiras; há muito que os seres humanos estabelecem

contactos além-fronteiras. As relações internacionais acentuaram-se a partir do séc. XX, o que se deve

a diversos fatores:

A internacionalização da economia;

Os movimentos migratórios;

O surgimento de novos Estados;

Os processos de integração regional;

O desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação.

Verificação de mais movimentos de pessoas, capitais e bens incorpóreos, de direitos,

designadamente dos direitos representados por realidades como os valores mobiliários.

Pensemos nos movimentos migratórios.

Dois portugueses residem em França, onde se casam? Qual será a lei reguladora?

Pensemos no tráfico internacional de bens e serviços.

Uma sociedade sedeada em Portugal vende um lote de cortiça a uma da Suíça, qual será a lei

reguladora?

Enfim, a regulação jurídica das situações transnacionais coloca três problemas:

1. Em primeiro lugar, o órgão de aplicação tem de escolher a lei aplicável ao caso, sendo que a

lei escolhida vai ter fortes impactos na decisão da questão;

2. Quando surge um litígio transnacional, torna-se também necessário, na falta de convenção de

arbitragem, determinar os tribunais internacionalmente competentes para a questão –

coloca-se assim a questão da determinação da jurisdição competente/competência

internacional;

3. Há ainda o problema dos efeitos que as decisões proferidas por tribunais estrangeiros podem

produzir na OJ portuguesa – surge assim o problema do reconhecimento de decisões

estrangeiras.

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O DIP depara-se assim com três problemas: a determinação do direito aplicável, a determinação da

jurisdição aplicável, e o reconhecimento das decisões. Vamos estudar apenas os problemas da

determinação do direito aplicável e o reconhecimento das decisões.

♢ Regulação de situações transnacionais

Relativamente à regulação das situações transnacionais, é importante ter em conta o aspeto da

internacionalidade e ainda um outro que se prende com o carácter privado das situações.

Será que o DIPrivado não regula questões de DIPúblico?

Para o Regente, o DIPrivado regula todas as situações em que se coloque um problema de

determinação do Direito aplicável que deva ser resolvido pelo DIPrivado.

A ideia de que apenas se prende com questões de Direito privado prendia-se por uma antiga

lógica de territorialidade do Direito público: o Direito público seria territorial pelo que toca aos

seus órgãos de aplicação, que só aplicariam o Direito público interno. Por outro lado, começou a

desenvolver-se uma lógica de imunidade absoluta de jurisdição dos Estados, segundo a qual um

Estado não poderia ser acionado nos tribunais de outro Estado, salvo em casos verdadeiramente

excecionais – o que significava que os litígios emergentes de uma relação estabelecida por um

Estado ao abrigo do seu Direito público só podiam ser apreciados pelos tribunais desse Estado.

Quando muito, dizia-se que o Estado podia estabelecer relações como se de um privado se

tratasse.

Isto não é exato atualmente, tendo este dogma sido ultrapassado, pois a ideia de territorialidade

foi abandonada, e hoje admite-se que quando se aplica uma norma estrangeira podemos aplicar

não só normas de Direito privado, mas também normas de Direito público com incidência sobre

essas questões. Por outro lado, evoluiu-se de uma conceção ampla de imunidade para uma

estrita, considerando-se que o Estado só tem imunidade no exercício de iure imperii, e não no

âmbito da gestão privada, sendo que nestes últimos os conflitos podem ser regulados.

Relativamente à admissibilidade de pretensões formuladas por Estados estrangeiros, com

fundamento no seu Direito público, nos tribunais locais, regista-se uma vincada diferença de

opiniões:

Na opinião do Regente, a OJ de um Estado é inteiramente livre de decidir se tutela ou não

juridicamente a pretensão de um Estado estrangeiro fundada no seu Direito público. É de

esperar que um Estado, na falta de motivos especiais, designadamente de solidariedade ou

cooperação judiciária entre os Estados, não admita nos seus tribunais pretensões de Estados

estrangeiros que digam respeito a situações ou aspetos de situações que, em princípio, só

podem ser objeto de regulação na OJ destes Estados.

o O Direito Internacional coloca alguns limites à regulação das situações em que estão

implicados entes públicos no âmbito de outras OJ; para a determinação desses

limites deve estabelecer-se um paralelo com o regime da imunidade de jurisdição.

Em resultado, não será admitida a pretensão de um Estado estrangeiro nos

tribunais portugueses quando esse Estado estrangeiro goze de imunidade de

jurisdição relativamente a litígios emergentes da mesma situação.

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A distinção entre os atos praticados iure imperii e atos praticados iure gestionis não corresponde sempre

ao caráter jurídico-público ou jurídico-privado do ato. Isto por três ordens de razões:

1) Muitos litígios emergentes das relações entre os Estados são arbitrários: se temos um contrato

internacional em que uma das partes é um sujeito público, e em que foi convencionada a

arbitragem, os árbitros têm de determinar o direito aplicável.

2) A imunidade de jurisdição relativamente aos atos praticados iure imperii é renunciável: o

Estado renuncia, por exemplo, quando celebra um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais

de outro Estado.

3) A distinção entre atos iure imperii e iure gestionis releva do DIPúblico e não corresponde

necessariamente ao critério de classificação dos atos como sendo de DPúblico ou DPrivado

adotado por uma OJ nacional e, em particular, não corresponde aos critérios seguidos na OJ

portuguesa.

Distinção entre iure imperium e iure gestionis

O critério de distinção iure imperiu/iure gestionis não corresponde à distinção entre DIPúblico e

DIPrivado: neste ponto há muita controvérsia.

Importa salientar que a imunidade resulta do costume internacional, e por isso o critério de distinção

é um critério de DIPúblico. A ideia base é a de que há determinado tipo de relações que podem ser

estabelecidas por particulares, e que a maioria dos sistemas são regulados por DIPrivado.

o Se um Estado estabelece uma relação deste tipo, essa relação considera-se como sendo

estabelecida no quadro de iure gestiones;

o Mas se a atuação na maioria dos sistemas é regulada por Direito público, não se tratará de

uma questão de Direito privado.

Nesta matéria há uma convenção das Nações Unidas (2005) sobre imunidades, que ainda não está em

vigor, mas que codifica o costume internacional, e vai além dele.

O que daqui decorre é que pode facilmente suceder que um Estado estabeleça um regime especial de

Direito público para um tipo de relação, mas que essa relação para o Direito internacional beneficie

da imunidade de jurisdição.

Esta convenção das Nações Unidas é uma convenção perante a qual o regime jurídico que o Estado

estabeleça para o contrato não é relevante para a qualificação da transação como comercial ou não

comercial. O que daqui decorre é que uma relação que é conformada por Direito público pode ser

para o Direito internacional ser considerada como iure gestiones, para que o Estado não beneficie de

jurisdição, pelo que pode ser julgada pelos tribunais de outro Estado.

Concluindo,

A participação de um sujeito público só obsta ao caráter transnacional da relação quando:

(a) A relação fique diretamente submetida ao Direito público interno;

(b) A relação, por força do DIPúblico, se insira exclusivamente na OJ de um Estado estrangeiro,

por se tratar de uma atuação iure imperii, não ter sido celebrada convenção de arbitragem

válida nem ter ocorrido renúncia à imunidade de jurisdição.

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Em suma, o DIPrivado português é aplicável a todas as relações que, embora implicando Estados ou

entes públicos autónomos estrangeiros, organizações internacionais ou agentes diplomáticos ou

consulares de Estados estrangeiros, sejam suscetíveis de regulação na esfera interna.

Caráter transnacional das situações reguladas

Se uma situação se insere na esfera de um Estado soberano de forma exclusiva, o Direito que a regula

diretamente é o direito em vigor nesse Estado soberano.

Muitas vezes diz-se que a situação é internacional. O Prof. fala antes de situação transnacional, que

permite evitar a ambiguidade da palavra “internacional”. A situação transnacional é uma situação

que transcende a esfera social de um Estado soberano, entrando em contacto com outras sociedades

estaduais.

Na maior parte das vezes, as situações transnacionais são apreciadas através da aplicação do

DIPrivado de uma OJ estadual. Daí que a internacionalidade da situação seja vista, na perspetiva

desta OJ, como uma estraneidade, i.e., numa formulação muito divulgada, como produto de certos

elementos de estraneidade. Os elementos de estraneidade são os laços que ligam a situação a outros

Estados.

Contudo, o critério de transnacionalidade relevante depende das normas de DIPrivado em causa. A

relevância dos contactos com mais de um Estado soberano pode variar conforme o setor do DIPrivado

em jogo e consoante a matéria em causa.

o No que toca ao Direito de Conflitos geral, a determinação da transnacionalidade está facilitada

quando os laços que se verificam com mais de um Estado soberano constituem elementos de

conexão utilizados pelas normas de conflitos aplicáveis.

Processo conflitual

O DIPrivado regula as situações transnacionais através de um processo conflitual.

Tradicionalmente, entende-se que o núcleo essencial do DIPrivado é constituído por normas de

conflitos, que são proposições que, perante uma situação em contacto com mais de um Estado

soberano, determinam o Direito aplicável. O que estas normas fazem é indicar a lei que vai fornecer

a regulação material da situação.

Assim, o DIPrivado é um Direito de conflitos. Este conceito não deve confundir-se com três outros,

que são:

- Conflitos de soberania;

- Conflitos de normas;

- Conflitos de sistemas de DIP.

O Direito de conflitos opera a regulação de situações transnacionais por meio de um processo de

regulação indireta: regula as situações transnacionais mediante a remissão para o Direito aplicável.

Na regulação das situações transnacionais, o DIPrivado não opera apenas através do Direito de

conflitos, mas também mediante o reconhecimento das situações jurídicas fixadas por decisão

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estrangeira, sob certas condições – assim, o DIPrivado engloba o Direito de conflitos e o Direito de

Reconhecimento.

♢ Caracterização das normas de conflitos de leis no espaço

São tradicionalmente atribuídas às normas de conflitos de leis no espaço três características:

1. Normas remissivas ou de regulação indireta;

2. Normas de proteção;

3. Normas fundamentalmente formais.

A grande maioria das normas apresentam estas 3 características, mas a característica

verdadeiramente essencial é a de que sejam normas remissivas ou de regulação indireta.

Normas materiais vs normas de regulação indireta

As normas materiais/de regulação direta desencadeiam efeitos jurídicos que modelam as situações

jurídicas das pessoas. Estas normas materiais estabelecem o regime para as situações descritas na

sua previsão e como tal definem situações jurídicas. É o caso dos arts. 483º, 875º e 1672º CC.

As normas de regulação indireta mandam aplicar à situação descrita na sua previsão outras normas

ou complexos normativos. No que toca às normas no DIPrivado, o que fazem é remeter para um

determinado Direito a disciplina da situação. Assim, a função destas normas é designar a OJ que

fornecerá a disciplina material. É o caso dos arts. 25º e 31º/1 e 2 CC.

Há quem entenda que só as normas materiais são normas de conduta, enquanto as normas de

conflito, em princípio, só têm por destinatários os órgãos de aplicação do Direito, sendo meras

normas de decisão. O Prof. não concorda, pois entende que os sujeitos das situações

transnacionais necessitam de determinar o Direito aplicável para poderem orientar por ele as

suas condutas; ou seja, antes de surgir um litígio. Assim, as normas de conflitos são normas

de conduta, embora de regulação indireta (o Regente segue a orientação de ISABEL DE

MAGALHÃES COLLAÇO): cumprem a sua função reguladora, mas não diretamente e sim

através da remissão para o Direito que vai regular diretamente a situação. As normas de

conflito devem ser entendidas, na sua maioria, enquanto normas de conexão, que estabelecem

uma ligação entre uma situação da vida e um Direito, através de um determinado laço – o

elemento ou fator de conexão. No dizer de RAAPE, o legislador lança a ponte entre uma

situação da vida e uma norma jurídica.

Normas de conexão

As normas de conflitos que integram o sistema de Direito de conflitos são, de forma geral, normas de

conexão, porque conectam uma situação da vida ou um seu aspeto com o Direito aplicável, mediante

um elemento ou fator de conexão.

Esta conexão estabelece-se mediante a seleção de determinados laços que o DIPrivado considera

juridicamente relevantes e decisivos para a determinação do Direito aplicável.

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Os elementos de conexão apresentam fações bastante diversas em relação ao carácter jurídico do seu

conteúdo. Podem consistir em:

(a) Vínculos jurídicos – por exemplo, a nacionalidade;

(b) Laços fácticos – por exemplo, o lugar de residência habitual;

(c) Consequências jurídicas que se projetam num determinado território – por exemplo, o lugar

do efeito lesivo;

(d) Factos jurídicos – por exemplo, a designação da lei aplicável pelos interessados.

A designação dos elementos de conexão em função das matérias implica uma valoração, em que se

avalia qual o elemento de conexão mais adequado à matéria. Como tal, há aqui uma justiça da

conexão, que se exprime na escolha do elemento de conexão mais adequado (às vezes também se fala

de justiça formal).

Todas as normas de DIPrivado são deste tipo. Pode não ser utilizado um laço objetivo, mas sim um

laço subjetivo, como é o laço que resulta da designação pelas partes. Por outro lado, há normas de

conflitos que não utilizam um elemento de conexão determinado. Mas há outras normas de conflitos

que não são decididamente normas de conexão (como é o caso do art. 33º/2 LAV, em que falta por

absoluto o elemento de conexão).

Aquilo que se pode questionar é: devemos manter a característica norma de conexão como

característica essencial? Ou devemos adotar um conceito mais amplo?

O Prof. considera que se temos normas que não são de conexão, mas que desempenham a mesma

função, devemos considerar também normas de conflito, pelo que a única característica deve ser a

de se tratar de uma norma de remissiva ou de regulação indireta.

Norma formal

As normas de conflito são fundamentalmente formais. No dizer de CAVERS, no método conflitual,

o juiz atua de olhos vendados, porque vai determinar a lei aplicável sem olhar para o conteúdo das

leis em presença, ou seja, não vai atender ao resultado material a que conduz a aplicação de cada uma

das leis em presença.

Este formalismo tem limitações:

o Desde logo, pode questionar-se se só é norma de conflito a fundamentalmente privada –

houve autores que disseram que a escolha se devia fazer em função do conteúdo da norma

em presença;

o Reserva de ordem pública internacional (art. 22º CC) – esta afasta o resultado que conduz à

aplicação da lei estrangeira quando esse for manifestamente incompatível com normas e

princípios fundamentais da OJ nacional. Há aqui um limite de carácter geral.

o Há normas de conflito materialmente orientadas, que atendem ao resultado material – por

exemplo, temos normas em matéria de forma de negócios jurídicos e temos também as normas

em matéria de responsabilidade parental e proteção de crianças da Convenção de Haia.

Verificamos que as normas de conflito apontam para várias leis, sendo suficiente a verificação

de forma escrita por uma dessas leis. Estas normas utilizam elementos de conexão.

o As normas de conflito, mesmo quando são normas formais, são normas que exercem uma

certa função modeladora na disciplina das situações jurídicas – verificamos que

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relativamente a diversos problemas de concretização do elemento de conexão e conjugação

de várias leis, vamos ser orientados pelas normas de conflito. Vamos buscar resposta à

interpretação das normas de conflito. O direito de conflitos não se desinteressa

completamente da resolução do caso e das suas especificidades.

Outros Direitos de conflitos

O DIPrivado não é o único Direito de conflitos – existem outros, como o Direito de conflitos

interlocal e o Direito de conflitos interpessoal. Estes existem nas OJ que são complexas (em que

coexistem diferentes sistemas de Direito privado):

a) A OJ complexa será de base territorial quando comportam diversos sistemas aplicáveis em

diversas circunscrições territoriais – art. 20º/1 e 2 CC;

b) Será de base pessoal quando comportam diferentes sistemas aplicáveis a diversas categorias

de pessoas, a que se refere o art. 20º/3 CC.

Por exemplo:

1. Nos EUA, cada Estado federal tem o seu sistema.

2. No Reino Unido, temos vários sistemas.

3. Em Espanha, o art. 149º/1 CRP permite, dentro de certos limites, que as comunidades

autónomas preservem os direitos locais, e esta permissão foi aproveitada pelas comunidades

gerais para o desenvolvimento de regimes locais.

4. Portugal também é uma OJ complexa porque as ALR têm autonomia legislativa, que diz

respeito às matérias previstas nos respetivos estatutos e que não estejam reservadas aos órgãos

de soberania.

Sistemas de base pessoal:

A pluralidade de sistemas de base pessoal pode ser estabelecida em função da religião. Foi o que

aconteceu em Portugal até ao séc. XV. Pode depender também de uma opção do interessado.

O art. 20º CC refere-se a “ordenamentos plurilegislativos”, mas é mais correta a expressão

“ordenamento complexo”. Desde logo, porque o ordenamento pode ser complexo em resultado de

outras fontes do Direito que não sejam a lei.

Podemos também distinguir entre os ordenamentos complexos aqueles em que existe uma

pluralidade de sistemas materiais (ex: Espanha) e os em que existe uma pluralidade de sistemas

conflituais (ex: EUA e Reino Unido).

ATENÇÃO: não se deve confundir ordens jurídicas complexas com os Estados compostos. Há

Estados federados sem ordens jurídicas complexas e há Estados comunitários com ordens complexas.

Perante as atuais características da OJ portuguesa, não se coloca ainda o problema do estudo das

ordens interlocais. O direito interlocal e interpessoal irá interessar-nos quando uma norma remeter

para uma ordem complexa, em que o problema será qual dos sistemas internos aplicar.

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Temos ainda o Direito intertemporal, que resolve os problemas de aplicação da lei no tempo, e o

Direito de conflitos público. As normas de Direito público também suscitam a questão da aplicação

da lei no espaço.

PLANOS, PROCESSOS E TÉCNICAS DE REGULAÇÃO DAS SITUAÇÕES TRANSNACIONAIS

⭐ Processos de regulação das situações transnacionais:

Relativamente aos processos de regulação, existe:

1) Um método conflitual;

2) Métodos materiais, como:

o Aplicação direta do Direito material comum;

o Criação de um Direito especial de fonte interna;

o Unificação material de Direito material aplicável.

Muitos autores consideram que o DIPrivado se caracteriza pelo pluralismo metodológico. Também

para estes autores, o “método conflitual”, reportado ao sistema de Direito de conflitos, se contrapõe

a uma série de “métodos de regulação material”.

Para o Regente, isto não é assim: a distinção entre regulação indireta e direta deve fazer-se em função

da necessidade ou desnecessidade de uma valoração conflitual. A valoração conflitual consiste

tradicionalmente na avaliação do elemento de conexão mais adequado para a determinação do

Direito aplicável a uma categoria de situações ou a uma questão jurídica com vista a formular uma

norma de conflitos; mas pode consistir também numa apreciação casuística dos laços que uma

situação concreta apresenta com os Estados envolvidos ou num juízo sobre a adequação material de

determinado Direito para reger uma determinada categoria de situações.

Só temos uma verdade regulação direta material – sem mediação de uma valoração conflitual – em

três casos:

(1) Quando aplicamos o Direito material comum do foro a quaisquer situações

independentemente de comportarem elementos de estraneidade;

(2) Quando se criam soluções ad hoc ou Direito material especial de fonte interna para situações

que comportem determinados elementos de estraneidade, independentemente dos laços que

apresentem com o Estado local – suponha-se que os órgãos legislativos do Estado Y criam um

Direito material especial para regular todos os contratos internacionais ou os tribunais do

Estado Y desenvolvem caso a caso soluções para os problemas jurídicos suscitados por

quaisquer contratos internacionais;

(3) Quando Direito material especial de fonte supraestadual for aplicado a situações

transnacionais, independentemente de uma conexão entre estas situações e um dos Estados

em que vigora esse Direito – é o caso das Convenções internacionais que estabelecem um

Direito material unificado aplicável a certo tipo de contrato internacional na OJ dos Estados

contratantes mesmo que o contrato não tenha uma ligação significativa com nenhum Estado

contratante.

A regulação das situações transnacionais na OJ estadual é, em regra, indireta. A grande maioria dos

ditos “métodos de regulação material” são técnicas de regulação indireta. Por conseguinte, a

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assinalada “pluralidade de métodos” tem mais que ver com uma pluralidade de fontes de regulação

e de técnicas de regulação conflitual do que com um verdadeiro pluralismo metodológico.

Uma OJ tem, entre outras, uma dimensão normativa e uma dimensão institucional:

Do ponto de vista normativo, as situações transnacionais são reguladas numa OJ estadual

quando as normas e princípios em primeira linha aplicáveis são os que vigoram na OJ desse

mesmo Estado.

Do ponto de vista institucional, as situações transnacionais são reguladas numa OJ estadual

quando os órgãos competentes para a aplicação do Direito a estas situações pertencem ao

respetivo Estado.

Ex: Uma sociedade sedeada em Portugal celebra com uma sociedade sedeada no Brasil um contrato

para ser executado em Angola. Durante a execução do contrato surge uma controvérsia entre as

partes em que se suscita um problema de interpretação do contrato. Se esta controvérsia não for

resolvida amigavelmente, e na falta de convenção de arbitragem, a questão terá de ser dirimida pelos

tribunais estaduais que forem internacionalmente competentes: como sabemos qual é a lei que regula a

interpretação do contrato?

a) Em primeiro lugar, temos de determinar os tribunais internacionalmente competentes.

b) A questão complica-se quando há vários tribunais competentes (competências

concorrentes). Neste caso, deverá ter-se em conta os sistemas conflituais das diferentes

jurisdições estaduais competentes que podem divergir entre si e atribuir competência a

leis diferentes. Esta avaliação pode ser relevante para decidir qual a jurisdição estadual

que é mais conveniente para a propositura da ação.

(1) Regulação no plano do Direito estadual

Entende-se por regulação pelo Direito estadual aquela que opera na esfera da OJ estadual. Isto

significa que a situação é em primeira linha regulada pelo Direito vigente na OJ estadual em causa e

que este Direito é aplicado pelos tribunais estaduais ou por outros órgãos estaduais de aplicação do

Direito.

ATENÇÃO: planos de regulação ≠ fontes de regulação!

Na medida em que numa OJ estadual vigorem, a par das normas de fonte interna, normas de fontes

supraestaduais, esta regulação pode ser feita tanto por normas internas como por normas

internacionais ou europeias – é o que se verifica com a OJ portuguesa.

Tradicionalmente, todas as situações transnacionais eram reguladas na OJ estadual pelo sistema de

Direito de conflitos.

Em OJ como a portuguesa, o sistema de Direito de conflitos é formado essencialmente por um

conjunto de normas de conflitos bilaterais (i.e., que remetem tanto para o Direito do foro como para

o Direito estrangeiro) e de normas sobre a interpretação e aplicação destas normas bilaterais.

Atualmente:

o Em matéria de Direito pessoal – designadamente, estado, capacidade, direitos de

personalidade, família e sucessões –, as situações transnacionais continuam a ser na sua

generalidade reguladas na esfera de uma OJ estadual;

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o O mesmo não se pode dizer com respeito às relações comerciais internacionais e, em especial,

no que toca aos contratos comerciais internacionais.

Por outro lado, no seio da OJ estadual, surgiram alternativas à regulação pelo sistema do Direito de

conflitos:

Aplicação direta do Direito material interno comum:

Neste caso, as situações internacionais seriam reguladas como se de situações puramente internas se

tratasse. Por exemplo, em Portugal, a validade do casamento celebrado na Holanda por um holandês

e uma belga, residentes na Holanda à data do casamento, mas que posteriormente estabeleceram

residência em Portugal, seria apreciada segundo o Direito material português.

Trata-se de uma técnica de regulação direta que prescinde de normas de conflitos.

Vantagem: é a via mais fácil para os órgãos de aplicação do Direito que, além de não terem de aplicar

o Direito de conflitos, estão mais familiarizados com o Direito material interno do que com Direito

estrangeiro.

Desvantagem: esta é uma solução que colide com a segurança jurídica e com a harmonia internacional

de soluções, e é incompatível com o DIPúblico:

(a) O Direito aplicável não seria previsível, porque variaria consoante o Estado em que a questão

se colocasse. A aplicação de um Direito diferente em cada Estado fomentaria a desarmonia

internacional de soluções;

(b) Isto conduziria à incerteza sobre as situações jurídicas existentes, o que poderia levar à

frustração de expectativas objetivamente fundadas dos interessados, em contradição com o

princípio da confiança;

(c) Por acréscimo, esta técnica de regulação fomentaria o forum shopping, i.e., a escolha do foro

mais conveniente à pretensão.

Pode questionar-se: não seria possível elaborar as normas sobre competência internacional por forma a que os

tribunais de cada Estado tivessem competência internacional só em relação às situações que apresentam uma

conexão com esse Estado suficientemente forte para justificar a aplicação do seu Direito material?

Alguns autores apontam nesse sentido. Um Estado pode ter “interesse” em que certas

situações sejam apreciadas pelos seus tribunais mesmo que não exista uma conexão

suficientemente forte para determinar a aplicação do sei Direito material. Isto verifica-se

designadamente em dois grupos de casos:

i. Casos em que a ligação ao Estado do foro, embora insuficiente para determinar a aplicação

do Direito material do foro, chega para justificar a intervenção da ordem pública

internacional;

ii. Casos em que a incompetência dos tribunais do foro conduziria, apesar de não ser

competente o Direito material do foro, a uma denegação de justiça.

É, pois, frequente que as finalidades prosseguidas pelo Direito da competência internacional

justifiquem competências concorrentes de várias jurisdições estaduais. Ao passo que, à luz das

finalidades prosseguidas pelo Direito de conflitos, uma situação deve ser submetida à mesma lei,

qualquer que seja o Estado em que venha a ser apreciada.

Por conseguinte, não é possível assegurar em todos os casos uma coincidência entre a competência

internacional dos tribunais de um Estado e a aplicabilidade do seu Direito material.

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Criação de um Direito material especial de fonte interna:

Em lugar de aplicar o seu Direito material comum, os Estados podem criar um Direito material

especial aplicável exclusivamente às relações transnacionais.

Nos sistemas em que a lei é a principal fonte do Direito, este Direito material especial terá de ser fonte

legal. Algumas conceções favoráveis à “regulação” das relações do comércio internacional por meio

de soluções materiais especiais de origem jurisprudencial só parecem ser defensáveis perante aquelas

OJ em que vigora um sistema de precedente vinculativo.

Vantagem: oferece uma maior adequação à especificidade das relações internacionais.

Mas até que ponto teremos aqui uma alternativa ao sistema de Direito de conflitos?

Só constituirá uma técnica de regulação direta se for aplicável a quaisquer situações que

comportem elementos de estraneidade independentemente de uma ligação com o Estado do

foro.

Desvantagem: todas as que foram apontadas supra relativamente à aplicação direta do Direito

material comum.

Na opinião do Regente, se esta técnica de regulação direta é de rejeitar como alternativa global ao

processo conflitual, já nada obsta a que relativamente a certas questões bem delimitadas se possa

justificar a formulação de normas de Direito material especial diretamente aplicável – poderemos

designa-las por normas de Direito Internacional Privado material. Como exemplo temos o art. 54º/2

CC.

Assim, em regra, o Direito material especial vê a sua aplicação depender de uma ligação com o Estado

do foro – trata-se de uma das técnicas de regulação indireta, que não prescinde de normas de

conexão.

No quadro da regulação indireta, a aplicabilidade do Direito material especial pode depender:

(a) Do sistema de normas de conflitos – neste caso, diz-se que o Direito material especial é

dependente. Este não constitui qualquer alternativa à regulação pelo sistema de Direito de

conflitos. A única especialidade está em que o objeto da remissão operada pelo Direito de

conflitos, quando este remete para o Direito do foro, não é Direito material comum mas sim

Direito material especial.

(b) De normas de conexão especiais – neste caso, o Direito material especial é independente. É a

regra. Este Direito material especial delimita o seu âmbito de aplicação no espaço através de

dois pressupostos:

i. Uma conexão com um Estado estrangeiro (ou elemento de estraneidade);

ii. Uma conexão com o Estado do foro – definida por normas de conexão ad hoc (normas

de conflitos unilaterais que se reportam a normas ou conjuntos de normas materiais

individualizadas).

A evolução mais recente não se mostra favorável à criação de corpos de Direito material especial de

fonte interna, que constituam uma alternativa à aplicação do Direito material comum por via do

sistema de Direito de conflitos. Os esforços têm sido principalmente dirigidos à criação de Direito

material unificado ou de modelos de regulação.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Isto não exclui que se criem normas de Direito material especial para resolver determinados conflitos

específicos, que sejam aplicadas a todas as situações transnacionais. Podemos agrupar estas em dois

grupos:

(i) Normas de aplicação dependente do sistema de Direito de conflitos – é o caso do art.

2223º CC: uma vez que esta norma é aplicável no quadro do título de vigência conferido à

lei portuguesa pelo art. 65º/2 CC, não há qualquer especialidade relativamente ao sistema

de Direito de conflitos. Parece que esta norma deixará de ser aplicável às sucessões

reguladas pelo Regulamento sobre sucessões (art. 27º).

(ii) Normas cuja aplicação resulta de normas de conexão especiais – é o caso das normas que

estabelecem um tratamento específico para os estrangeiros. Geralmente estas normas são

aplicáveis com base num elemento de conexão com o território português, por exemplo, a

localização em Portugal do lugar da execução do contrato de trabalho.

Unificação internacional do Direito material aplicável

Falamos normalmente de Convenções Internacionais – têm sido as principais fontes de Direito

uniforme. Mas não são as únicas, há também fontes europeias, como dois Regulamentos de transporte

aéreo.

Para averiguar do significado desta unificação internacional para a regulação das situações

transnacionais é fundamental distinguir entre diferentes métodos de unificação internacional. São

estes:

i. Uniformização – consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito uniforme, i.e.,

Direito aplicável tanto nas relações internas como nas internacionais. Nas matérias reguladas

por este Direito uniforme, cessa-se ou suspende-se a vigência do Direito comum interno.

É o que se verifica com as Convenções de Genebra contendo:

- A Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças;

- A Lei Uniforme em Matéria de Cheques.

Estas convenções uniformizam o Direito material aplicável. Não devem ser confundidas com as

Convenções de Genebra sobre:

- Os Conflitos de Leis em Matéria de Letras e Livranças;

- Os Conflitos de Leis em Matéria de Cheques.

Estas últimas convenções unificam o Direito de conflitos, são fonte de DIPrivado e não de Direito

material aplicável.

ii. Unificação stricto sensu – consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito

material unificado, i.e., Direito material especial de fonte supraestadual. Ao lado do Direito

comum de fonte interna passa a vigorar na ordem interna um Direito especial aplicável às

situações internacionais.

As principais áreas de unificação do Direito material são a venda internacional de mercadorias, os

transportes internacionais, os direitos sobre embarcações e aeronaves, outras áreas do Direito

Marítimo, o Direito da Propriedade Intelectual e o testamento.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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iii. Harmonização – traduz-se no estabelecimento de regras e princípios fundamentais comuns.

Os regimes continuam a ser diferentes de um Estado para outro, visando-se apenas aproximar

os diversos sistemas nacionais.

A harmonização tem instrumentos específicos tais como:

- Diretivas europeias – atos normativos de DUE que vinculam os EM quanto ao resultado a atingir,

mas deixam aos mesmos EM a escolha da forma e dos meios para o realizar no âmbito da OJ interna.

- Leis-modelo – corpos de regras uniformes propostos ou recomendados para a adoção no Direito

interno ou para que a legislação interna neles se inspire.

Além destes instrumentos específicos, há instrumentos que desempenham outras funções, mas

também constituem um instrumento de harmonização, como os princípios (conjunto sistematizados

de regras emanados por uma base predominantemente comparativa), que servem para influenciar a

OJ de cada Estado.

iv. Criação de Direito material especial optativo de fonte supraestadual (recente) – trata-se de

regimes privativos de situações transnacionais, cuja aplicação depende de uma opção dos

interessados. O Direito comum continua a ser aplicável não só às situações internas mas

também às situações transnacionais em que os interessados não optem pela aplicação do

Direito especial. Exemplos disso são matérias relativas ao Direito das pessoas coletivas e ao

Direito da propriedade intelectual.

Vantagens do Direito material unificado especial supraestadual:

1) Oferece soluções adequadas à especificidade das situações transnacionais e o processo da sua

elaboração tende a conduzir à adoção das soluções mais adequadas;

2) A partir do momento em que uma situação transnacional caia diretamente dentro da esfera

espacial e do domínio material de aplicação do regime convencional, elimina-se o problema

da escolha do sistema local aplicável, com todas as dificuldades que acarreta;

3) Os Estados contratantes assumem uma posição uniforme sobre a regulação jurídica da

situação transnacional, o que contribui para uma harmonia e previsibilidade de soluções;

4) Com o mesmo regime material aplicável nos diferentes Estados contratantes, facilita-se o

conhecimento desse regime pelos interessados, diminuindo os custos de transação.

Esta parece assim uma solução que garante a justiça, adequação à especificidade das situações

transnacionais e a segurança jurídica e facilidade do regime.

Porém, esta solução tem um alcance limitado:

a) Por razões práticas – o processo de unificação é difícil: é moroso, complicado, com custos

elevados.

b) A unificação só permitiria afastar o sistema de Direito dos conflitos se a unificação fosse geral

(se abrangesse todas as matérias) e universal (se as convenções estivessem em vigor para

todos os Estados):

o Ora, a unificação não é geral, dizendo respeito principalmente ao comércio

internacional, progredindo muito pouco noutras áreas, como no Direito da família,

pessoas ou sucessões, o que se entende, visto que nestas situações estão em causa

valores ético-jurídicos.

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Por outro lado, nem todas as áreas do comércio internacional se prestam a uma

unificação internacional. Para haver unificação tem de estar em causa determinada

matéria que possa ser delimitada com clareza com base em várias notas. Tal não se

verifica em áreas que assumem grande variação de conformações como alguns

contratos (ex: contrato de consórcio).

o A unificação também não é universal. O número dos Estados que aceita cada

convenção é muito variável. Por outro lado, as convenções são modificadas por

protocolos, que unificam a convenção originária e nem todos os Estados partes na

convenção se tornam partes nos protocolos. Saber qual o regime aplicável torna-se

muito difícil em certos casos.

c) A unificação gera uma certa petrificação do regime aplicável – é muito mais difícil alterar um

regime internacional do que um regime interno/nacional, daí não ser muito recomendável

unificar certas matérias que estejam em expansão ou evolução.

d) Mesmo quando temos uma unificação de determinada matéria, muitas vezes essa unificação

tem um caráter fragmentário ou parcial.

Uma das áreas em que tem havido mais unificação é a do transporte marítimo de mercadorias. Houve

a Convenção de Bruxelas de 1924 para unificação de certas regras de conhecimento; contudo, não

temos um regime geral do contrato de transporte de mercadorias.

e) Há casos de sobreposição de domínio aplicável a certas convenções – se duas convenções

regulam a mesma matéria mas vigoram em Estados diferentes do ponto de vista de aplicação

entre esses Estados, não há problema; mas há casos em que no mesmo Estado vigoram duas

ou mais convenções cujo domínio de aplicação se sobrepõe pelo menos parcialmente. Tal leva

a um conflito de convenções que tem de ser resolvido.

f) Divergências na interpretação e integração – quem aplica o Direito material unificado são os

órgãos estaduais ou os tribunais arbitrais; tal levanta problemas. Na interpretação e integração

do Direito aplicado deve ser preservada a especialidade e autonomia do Direito material

unificado, de forma a tanto quanto possível estabelecer uma uniformidade de interpretação e

integração, independentemente do Estado contratante no qual a questão se coloca.

Neste sentido, é importante o art. 7º da Convenção de Viena sobre venda de

mercadorias.

O que daqui decorre é que quando interpretamos uma proposição de uma convenção deve fazer-se

uma interpretação autónoma, e não uma interpretação à luz do direito do Estado material do foro.

Essa interpretação deve fazer-se através de critérios próprios, abstraindo-se do conteúdo do Direito

interno do Estado do foro.

Contudo, é inevitável que existam e surjam divergências nos vários Estados:

Quando surjam diferentes correntes interpretativas nos vários Estados, o problema que se coloca é:

quando o órgão de aplicação tem de apreciar um problema dessa natureza, deve seguir a orientação dos tribunais

do foro ou a orientação jurisprudencial da OJ competente segundo o sistema de Direito de conflitos?

1. Quando o órgão de aplicação for um tribunal estadual, há razões para seguir a orientação

interpretativa da OJ competente segundo o sistema de Direito de conflitos. Se procedermos

dessa forma, seguiremos uma orientação com que as partes geralmente poderão contar e onde

há a ligação mais significativa com a situação.

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2. Situação diferente é se o órgão de aplicação for um tribunal arbitral, na medida em que este

tem mais liberdade. Estes poderão ter em conta os princípios comuns aos sistemas em

presença, podendo também atender à própria jurisprudência arbitral. Só será pertinente

atender à orientação de uma particular jurisprudência nacional quando as partes tenham

escolhido o respetivo sistema jurídico para reger a situação.

Relação do Direito material especial optativo com o sistema de Direito de conflitos:

Em princípio, a aplicabilidade destes regimes especiais não depende do sistema de Direito de

conflitos, mas da verificação de pressupostos autónomos que incluem necessariamente um domínio

material de aplicação e uma opção dos interessados.

Entre estes pressupostos podem também contar-se laços relevantes com mais de um Estado, que

exprimem um determinado critério de internacionalidade.

Regulação por normas de Direito comum do foro autolimitadas

Como referido anteriormente, existem normas de Direito material especial de fonte interna cuja

aplicação, por resultar de normas de conexão especiais, não depende do sistema de Direito dos

conflitos.

A partir de meados do séc. XX, a doutrina chamou a atenção para que a aplicação de certas normas

de Direito material comum também não depende do sistema de Direito de conflitos. Fala-se de

normas autolimitadas e de normas de aplicação imediata ou necessária.

Quando é que se diz ser autolimitada? Quando é uma norma material que, apesar de incidir sobre

situações reguladas pelo DIPrivado, tem um âmbito de aplicação no espaço que não

corresponde ao que seria atribuído pelo sistema de Direito de conflitos.

Isto pode resultar:

(i) Em primeiro lugar, de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos

especial (explícita ou implícita) – por exemplo, com respeito ao contrato de agência, o art.

38º do DL 178/86 determina que aos contratos regulados por este diploma que se

desenvolvam exclusiva ou preponderantemente em território nacional só será aplicável

legislação diversa da portuguesa, no que respeita ao regime da cessação, se a mesma se

revelar mais vantajosa para o agente; encontramos aqui uma norma de conflitos unilateral

que alarga a competência atribuída à lei portuguesa pelas normas de conflitos gerais.

(ii) Em certos sistemas nacionais admite-se que a “autolimitação” também possa ser o produto

de uma valoração casuística, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstâncias do

caso.

O Prof. LIMA PINHEIRO entende que isso só é aceitável no nosso sistema em

situações excecionais, em que seja necessário integrar uma lacuna através da criação

de uma solução conflitual ad hoc.

A regulação por normas autolimitadas configura uma técnica de regulação das situações

transnacionais em que o sistema de Direito de conflitos é substituído por normas de conflitos ad hoc

ou por uma valoração conflitual casuística.

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A norma é de aplicação necessária quando o sistema de conflitos, por exemplo, designa uma

norma estrangeira, mas uma norma portuguesa se sobrepõe a essa norma internacional

estrangeira optada.

Na opinião do Regente, o processo é conflitual. Não é um processo material de regulação, mas uma

diferente técnica conflitual que em vez de passar pelo sistema de norma de conflitos passa por uma

norma de conflitos ad hoc ou por uma valoração conflitual casuística.

Este problema não é específico das normas autolimitadas, mas coloca-se também em normas

imperativas em Estados que reclamam a aplicação, de acordo com o Regente.

Em todo o caso, na opinião do Prof., estas técnicas de regulação são excecionais e não estão ao lado

do sistema de Direito de conflitos.

Reconhecimento de situações definidas perante uma OJ estrangeira:

Como verificámos, o DIPrivado também regula as situações transnacionais mediante o

reconhecimento autónomo das situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira.

Alguns autores estendem esta técnica de regulação a situações constituídas ou consolidadas numa OJ

estrangeira – ou pelo menos na OJ de um Estado da EU –, independentemente de uma decisão

estrangeira.

O problema é o seguinte: temos uma situação, independentemente de qualquer decisão

estrangeira, que se constitui ou consolida numa OJ estrangeira – será que se deve sempre verificar

essas decisões quando tal ocorre? Ou só reconhecemos as decisões dessas que estejam de acordo com a

nossa CRP?

A ideia geral é a de que a situação, a partir do momento em que se constituiu ou consolidou numa OJ

estrangeira, o Estado do foro deve reconhecer essa situação, sem fazer depender esse reconhecimento

da lei competente segundo o Direito de conflitos geral. Fala-se num método de reconhecimento.

Tal já inspirou a legislação holandesa, por exemplo, em que um casamento que seja celebrado fora da

Holanda e que seja válido segundo a lei do Estado em que teve lugar ou que se tenha tornado válido

posteriormente de acordo com a lei desse Estado, é reconhecido na Holanda como um casamento

válido.

Esta técnica de regulação apresenta diferenças em relação ao sistema de Direito de conflitos:

a) Só opera quando uma situação “privada” foi previamente definida perante uma OJ

estrangeira. Por conseguinte, esta técnica nunca pode constituir uma alternativa global ao

sistema de Direito de conflitos, visto que é inaplicável quando é apreciada uma situação que

não foi previamente definida por uma decisão estrangeira nem constituída ou consolidada

perante uma OJ estrangeira;

b) Em lugar das normas de conflitos gerais, são atuadas normas de reconhecimento, que

integram uma categoria especial de regras remissivas. As normas de reconhecimento só

remetem para o Direito estrangeiro e condicionam a sua aplicação à produção de um efeito

ou de uma determinada categoria de efeitos.

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Deverá esta técnica ser amplamente admitida?

De acordo com o Regente, não:

1) Só se devem reconhecer decisões da OJ de um Estado estrangeiro quando haja uma ligação

especialmente significativa entre esse Estado e a situação. Caso contrário, aceitar-se-ia que

a situação fosse definida pela OJ de qualquer Estado, ainda que com base numa conexão

fortuita ou arbitrária, e mesmo que esta situação não fosse reconhecida por nenhuma das OJ

mais bem colocadas para a regular.

2) Por outro lado, não se deve sempre favorecer a OJ que afirma a validade de uma situação

relativamente a uma OJ que nega essa validade, nem se deve favorecer sempre determinado

sujeito jurídico com posição ativa contra o sujeito jurídico com posição passiva; tal levaria

sempre a reconhecer uma decisão quando se constitui ou consolida e tal levaria a um

favorecimento injustificado.

O Regente entende que parece preferível que se reconheça apenas certas categorias de situações que

se constituíram validamente segundo o Direito de conflitos de um Estado que apresenta determinada

conexão especialmente significativa com essas situações, apesar de não ser a conexão primariamente

relevante para o Direito de conflitos do Estado do foro (ex: o art. 31º/2 CC aponta para este sentido).

A técnica de reconhecimento atua a par do Direito de conflitos nesses casos, e atua em dois casos:

a) Quando se trate de reconhecimento da decisão estrangeira;

b) Quando há tutela da confiança depositada na situação consoante o Direito de conflitos no

Estado estrangeiro e quando haja uma relação e ligação significativa com a situação.

Concluindo:

(1) A regulação das situações transnacionais é, em regra, indireta ou conflitual;

(2) Só o Direito material unificado constitui uma alternativa global ao sistema de Direito de

conflitos;

(3) A atuação do sistema de Direito de conflitos é não só uma solução de recurso, mas também a

resposta mais adequada naquelas matérias em que as divergências entre os sistemas jurídicos

resultam de diferentes valorações ético-jurídicas e, mais em geral, do respeito da identidade

cultural das diferentes sociedades estaduais;

(4) O reconhecimento de situações definidas perante um OJ estrangeira constitui uma técnica de

regulação conflitual.

(2) Regulação pelo Direito Internacional Público

Trata-se da regulação que opera na esfera da OJ internacional. A situação é regulada na esfera da OJ

internacional quando:

o Lhe for imediatamente aplicável normas e princípios do DIPúblico (ponto de vista

dogmático);

o Os litígios que lhe dizem respeito forem apreciados por instituições internacionais (ponto de

vista institucional).

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Relação entre DIPúblico e DIPrivado

As situações transnacionais que tradicionalmente recorrem ao DIPrivado são situações que, embora

tenham contacto com mais do que um Estado, relevam primariamente nas esferas institucional e de

regulação dos Estados: (i) inscrevem-se na esfera institucional dos Estados porque os órgãos de

aplicação do Direito que são chamados a apreciá-las são órgãos estaduais; (ii) relevam primariamente

da esfera de regulação dos Estados porque não são imediatamente reguladas por normas de Direito

Internacional.

A par destas situações surgem agora outras que ao mesmo tempo que colocam um problema de

determinação do Direito aplicável, são relevantes na OJ internacional.

Na atualidade, abstraindo da responsabilidade penal internacional, que não interessa ao DIPrivado,

os particulares podem ser partes na arbitragem quási-internacionalpública e em algumas jurisdições

de organizações internacionais e têm acesso a certas jurisdições internacionais em matéria de direitos

fundamentais, designadamente.

O que é a arbitragem quási-internacionalpública? É uma arbitragem organizada pelo Direito

Internacional, mas tendo por objeto litígios emergentes de relações estabelecidas com

particulares. Nesta, o mérito da causa não tem de ser decidido obrigatoriamente segundo o

DIPúblico e, portanto, coloca-se um problema de determinação do Direito aplicável.

Perante estas arbitragens quási-internacionalpúblicas parece seguro que o DIPúblico mostra vocação

para regular certas situações transnacionais e que aos particulares sujeitos destas relações é conferida

uma personalidade jurídica internacional limitada.

Em conexão com o acesso dos particulares à arbitragem quási-internacionalpública surge a categoria

das situações quási-internacionalpúblicas, que é mais vasta, uma vez que pode incluir situações em

que os sujeitos particulares têm acesso a jurisdições sem caráter arbitral.

Passe-se agora às relações com organizações internacionais. Em alguns casos as jurisdições

internacionais estabelecidas pelos atos constitutivos de organizações internacionais, ou por atos dos

seus órgãos fundados nos atos constitutivos, para conhecerem de litígios emergentes de relações

internas, também são competentes para os litígios emergentes de relações estabelecidas com

particulares. É o que se verifica, por exemplo, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Não se deve confundir a regulação pelo DIPúblico com a aplicação do DIPúblico à causa. Se tiver

uma situação abrangida por uma convenção arbitral, as normas primariamente aplicáveis são as da

convenção, mas essa convenção permite que as partes acordem a aplicação da lei de uma determinada

ordem estadual.

A hipótese mais frequente é, porém, a de os litígios emergentes de relações estabelecidas pelas

organizações internacionais com particulares serem submetidos à arbitragem transnacional. Trata-

se então de uma arbitragem que não é organizada pelo DIPúblico.

Novos casos de regulação imediata de situações transnacionais pelo DIPúblico foram introduzidos

pela Convenção das Unidas sobre o Direito do Mar (1982).

Também se verifica o acesso de particulares a jurisdições internacionais em caso de violação por

Estados contratantes de Convenções em matéria de direitos fundamentais.

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É muito controverso se além dos casos em que se institui uma jurisdição internacional para apreciar

litígios com particulares há outras situações transnacionais que sejam reguladas imediatamente pelo

DIPúblico.

NOTA: não se deve confundir regulação no plano do DIPúblico com aplicação de um regime material

de DIPúblico. A OJ internacional pode regular a situação, ou um aspeto da situação, mediante a

remissão para um Direito estadual. Inversamente, no plano da OJ estadual, uma situação pode ser

submetida a normas internacionais.

Os casos de regulação pelo DIPúblico aqui visados são outros: aqueles em que o DIPúblico é

imediatamente aplicável, independentemente da mediação de uma OJ estadual.

Importa ainda sublinhar que são ainda limitados os casos em que situações transnacionais são

reguladas imediatamente pelo DIPúblico; é justamente isso que permite distinguir o DIPrivado do

DIPúblico. Estes casos dizem fundamentalmente respeito a certos contratos internacionais celebrados

entre Estados ou entes públicos autónomos e nacionais de outros Estados, ou entre organizações

internacionais e particulares, ou a certos aspetos de situações s transnacionais que dizem respeito a

direitos fundamentais protegidos internacionalmente.

(3) Regulação pelo Direito da União Europeia

Uma vez que o DUE constitui uma OJ autónoma – a OJ da UE – coloca-se o problema da relevância

direta de situações transnacionais perante esta OJ, em termos paralelos ao da relevância direta perante

a OJ internacional.

A primeira impressão é a de que o DUE tem uma vocação mais ampla para regular imediatamente

situações transnacionais, porque de acordo com o entendimento do TJUE e de alguma doutrina, o

DUE auto-executório tem eficácia para os particulares independentemente do Direito interno dos

EM. A seguir-se este entendimento, o DUE é suscetível de eficácia direta para os particulares e, por

conseguinte, certas relações entre particulares podem ser imediatamente conformadas e reguladas

pelo DUE.

Uma parte da doutrina distingue este “efeito direto” da “aplicabilidade direta” ou “vigência direta”

das normas comunitárias na ordem interna:

Uma norma tem efeito direto (ou é auto-executória) quando os particulares a podem invocar

na ordem interna sem que sejam necessárias medidas internas de execução;

A dita aplicabilidade direta das normas europeias significa que tais normas vigoram imediata

e automaticamente na ordem interna, sem necessidade de interposição de qualquer ato. Se

por “aplicabilidade direta” se entender a desnecessidade de um ato individualizado de

receção na ordem interna, esta identifica-se com a receção automática do DUE na ordem

interna que resulta dos art. 8º/4 CRP. Por vezes, porém, entende-se a “aplicabilidade direta”

no sentido de o DUE vigorar na ordem interna independentemente de qualquer receção, por

força do próprio primado do DUE; isto leva alguns autores a considerar que não é necessário

distinguir no DUE aplicabilidade direta e efeito direto (ANDRÉ GONÇALVES

PEREIRA/FAUSTO QUADROS).

A relevância das situações entre particulares na esfera institucional da EU é limitada: as jurisdições

competentes para conhecerem dos litígios emergentes das relações entre particulares são

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normalmente estaduais ou arbitrais. Estas jurisdições não estão hierarquicamente subordinadas ao

TUE.

Pode assim dizer-se que há uma regulação imediata dessas situações pelo DUE?

O mecanismo do reenvio prejudicial, embora faculte, e imponha em certos casos, que o tribunal

nacional solicite o concurso da jurisdição do TUE com respeito à validade de disposições de Direito

derivado e à interpretação do DUE (art. 267º TFUE), representa ainda uma forma de cooperação entre

instâncias nacionais e europeias.

Na verdade, o TUE não pode anular a decisão do tribunal estadual e o incumprimento pelo

Estado das suas obrigações com respeito à conformação do Direito interno ou o

incumprimento pelo tribunal estadual das suas obrigações só desencadeia o processo geral

previsto nos arts. 258º e ss. TFUE, em que o Estado responde por tais violações do DUE.

Há quem diga, assim, que quando os órgãos estaduais aplicam o DUE estão a agir como órgãos da

UE. LP não concorda – para isso era preciso que o seu estatuto fosse definido pelo DUE e não pela

legislação nacional.

O Regente considera que a posição mais correta será a de entender que o DUE é superior à lei

ordinária, mas tem valor inferior à CRP (é infraconstitucional). Por conseguinte, as jurisdições

estaduais, quando aplicam o DUE, fazem-no por força de normas da OJ estadual.

Em suma, a situação atual caracteriza-se por um certo compromisso ou transição entre o quadro que

corresponde ao relacionamento do Direito Internacional derivado clássico com o Direito interno dos

Estados por ele vinculados e o que resulta da integração das OJ destes Estados numa OJ complexa.

Em certos casos, porém, as jurisdições europeias têm competência para dirimir litígios emergentes de

relações transnacionais (ex: o TUE tem competência para conhecer dos litígios relativos à

responsabilidade extracontratual). Nestes casos, um tribunal da UE tem competência para decidir, a

título principal, certas questões transnacionais, sendo facultado o acesso de particulares a esta

jurisdição.

Acontece, no entanto, que o DUE ainda não tem regimes jurídico-materiais aplicáveis a estas questões.

Para a obtenção do critério de decisão do caso, o TFUE aponta em dois sentidos diferentes:

(a) No que respeita à responsabilidade extracontratual, o art. 340º/2 TFUE remete para os

princípios gerais comuns aos Direitos dos EM;

(b) No que se refere aos litígios emergentes de contratos de Direito privado ou de Direito público

celebrados pela UE ou por sua conta, o art. 340º/1 TFUE determina que a responsabilidade

contratual da UE é regulada pela lei aplicável ao contrato em causa.

As normas da UE primariamente aplicáveis a estas situações são normas de conflitos.

(4) Regulação pelo Direito Autónomo do Comércio Internacional

A formação de regras e princípios, no seio da comunidade dos operadores de comércio internacional,

que regulam as relações que entre si se estabelecem, é uma constante na história do Direito comercial

e de todo o Direito relativo ao tráfico corrente de bens e serviços.

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LIMA PINHEIRO entende por Direito autónomo do comércio internacional aquelas regras e

princípios aplicáveis às relações do comércio internacional que se formam independentemente da

ação dos órgãos estaduais e supraestaduais, a nova lex mercatoria. Tem em vista, designadamente,

os usos e costumes do comércio internacional e as regras criadas no âmbito da autonomia associativa

dos operadores do comércio internacional ou por entidades gestoras de mercados regulamentados

de instrumentos financeiros.

Estas fontes podem ter determinada relevância para OJ estadual.

A regulação imediata de situações transnacionais pelo Direito autónomo do comércio internacional

(i.e., independentemente da mediação de uma OJ estadual) merece considerável atenção, porque se

verifica a aplicação de normas e princípios de Direito autónomo a muitas relações comerciais

internacionais. Na verdade, a arbitragem transnacional é o modo normal de resolução jurisdicional

de litígios no comércio internacional.

Teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional:

1. SCHMITTHOFF

Para este, a lex mercatoria é encarada essencialmente como Direito material especial do comércio

internacional dotado de um certo grau de uniformidade internacional.

Este autor invoca a falta de flexibilidade dos mecanismos legislativos estaduais e interestaduais na

regulação das relações do comércio internacional e alega que o Direito de conflitos constitui uma

“barreira artificial criada pelo homem à condução dos negócios e à resolução de dificuldades de um

modo prático”. Precisaríamos assim de um Direito comercial internacional autónomo, fundado em

regras uniformes aceites em todos os países – em suma, de uma nova lex mercatoria.

Para SCHMITTHOFF, o Direito autónomo tem de se basear principalmente na autonomia privada no

domínio contratual e no recurso privilegiado à arbitragem comercial internacional. Na conjugação

das duas coisas, decorre o papel do Direito transnacional.

As fontes do Direito transnacional seriam a legislação internacional (Convenções Internacionais de

Direito material unificado e leis-modelo elaboradas por instituições internacionais que os Estados

poderão unilateralmente adotar) e o costume comercial internacional (costume em sentido estrito,

práticas comerciais, usos, cláusulas padronizadas, que foram formulados por agências

internacionais).

Nesta conceção, o acento é colocado na criação jurídica feita pelo legislador internacional e pelas

organizações privadas.

A soberania nacional não se oporá a que, no âmbito da liberdade contratual, as partes possam

desenvolver um Direito autónomo do comércio internacional, contanto que este Direito respeite,

na esfera de cada Estado, os limites impostos pela ordem pública.

Para SCHMITTOF, este Direito transnacional assenta no reconhecimento direto ou indireto pelos

próprios Direitos estaduais, apesar de ocupar um espaço pelo qual os Direitos estaduais à partida se

desinteressam.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Nesta visão das coisas, a lex mercatoria não é concebida como uma OJ autónoma na qual os contratos

internacionais se encontrem radicados. A lex mercatoria desempenha essencialmente uma função

interpretativa e integrativa do negócio jurídico e, eventualmente, o papel de fonte subsidiária da OJ

estadual.

2. GOLDMAN

Segundo a conceção apresentada por este autor, a lex mercatoria é uma OJ autónoma do comércio

internacional – societas mercatorum – ou, pelo menos, é uma OJ em formação.

A lex mercatoria consistirá num conjunto de princípios gerais e regras costumeiras espontaneamente

referidas ou elaboradas no quadro do comércio internacional, sem referência a um particular sistema

jurídico nacional, que exprime conceções jurídicas partilhadas pela comunidade dos sujeitos do

comércio internacional.

Esta conceção também encontra pontos de apoio na autonomia dos operadores do comércio

internacional e na regulação autónoma por eles operada a nível das relações individuais ou por via

de organizações que prosseguem os seus fins coletivos.

Esta tese coloca o acento nas fontes espontâneas:

(a) Numa primeira fase, GOLDMAN e os seus seguidores colocam em primeiro lugar, no elenco

dos elementos da lex mercatoria, as regras de costume internacional, os usos, cláusulas

contratuais gerais e modelos contratuais.

(b) Numa segunda fase, surgem os “princípios gerais de Direito”, encarados como fonte

subsidiária, a que é atribuída uma função integrativa de lacunas deixadas pelas “fontes”

anteriormente mencionadas, e as regras desenvolvidas pela jurisprudência arbitral.

As contribuições mais recentes, porém, tendem a acentuar a natureza pretoriana da lex mercatoria. Os

princípios gerais de Direito e os princípios comuns aos sistemas nacionais envolvidos surgem como

elementos primordiais desta OJ autónoma e a jurisprudência arbitral é elevada à categoria das

principais fontes da lex mercatoria, se não considerada a fonte mais importante desta OJ autónoma do

comércio internacional.

A adesão massiva dos operadores do comércio internacional à arbitragem como modo normal de

resolução jurisdicional dos litígios do comércio internacional e a observância das suas decisões pelos

sujeitos do comércio internacional, aliadas à autonomia que lhe é reconhecida por grande número de

sistemas nacionais, constituem a espinha dorsal desta tese.

Os tribunais arbitrais desempenhariam duas funções: a de dirimir os litígios emergentes das relações

do comércio internacional segundo as regras e princípios transnacionais (órgãos de aplicação da lex

mercatoria) e a de desenvolvimento dessa mesma lex.

Os partidários desta tese concedem que a lex mercatoria não constitui uma “ordem jurídica completa”,

i.e., de uma ordem que regule, no seu conjunto, as relações do comércio internacional:

i. Primeiro, a lex mercatoria limita-se às questões de natureza contratual, na aceção ampla

retida na arbitragem transnacional. Trata-se, na verdade, de um Direito autónomo dos

contratos do comércio internacional.

ii. Segundo, as questões relativas aos pressupostos de formação do consentimento, aos

requisitos de validade do objeto e do fim do contrato e ao poder de representação não

seriam, em geral, reguladas pela lex mercatoria.

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As relações entre a lex mercatoria e a OJ estadual são entendidas segundo duas ideias fundamentais:

1) Por um lado, há uma certa primazia de princípio da OJ estadual em relação à lex mercatoria;

2) Por outro lado, existe uma sobrelevância prática da lex mercatoria, em virtude do recurso à

arbitragem transnacional e da contenção dos Estados no exercício das suas competências

normativas.

Quando se verifique um ponto de contacto entre a lex mercatoria e a OJ estadual, é a OJ estadual que

prevalece.

Para GOLDMAN, a lex mercatoria também é aplicável segundo uma norma de conflitos. Se as partes

escolherem a lex mercatoria, o tribunal arbitral deve aplicá-la e essa aplicação afasta a aplicação das

normas imperativas estaduais. Só não será assim quando se trate de norma de aplicação necessária

que o tribunal estadual deva aplicar ou que o árbitro deva respeitar por se revestir do caráter de

ordem pública transnacional.

Se as partes não escolherem a lex mercatoria, os tribunais arbitrais podem ainda assim decidir aplicá-

la. A lex mercatoria não se apresenta assim como uma mera opção que está a par do Direito nacional,

mas deve ser a opção de preferência, pois é a mais apta a regular as relações económicas

internacionais.

⭐ Significado real da lex mercatoria na regulação das relações comerciais internacionais

Quanto a esta questão existem opiniões díspares:

1) Uma corrente doutrinária entende que os contratos internacionais tendem a ser regulados

principalmente por Direito autónomo do comércio internacional – a lex mercatoria assume

assim real importância;

2) Para os seus principais oponentes, a lex mercatoria não passa de uma fantasia, e não passa, na

melhor das hipóteses, de uma soma de usos setoriais e fragmentários cuja relevância depende

inteiramente do Direito estadual designado pela norma de conflitos.

Onde está a razão?

Existe vasto consenso sobre a existência de ramos da atividade económica marcados por um elevado

grau de internacionalização, de padronização do conteúdo negocial dos contratos e de recurso à

arbitragem para resolução dos litígios deles emergentes. São exemplos os contratos bancários

internacionais, as operações sobre instrumentos financeiros, a venda internacional de mercadorias,

os contratos de prospeção e exploração de petróleo, etc.

Já a averiguação do grau de desenvolvimento da lex mercatoria à escala mundial tem conduzido a

resultados em certa medida contraditórios: a maioria dos estudos assinala que os usos do comércio

internacional se formam, em princípio, no âmbito de cada um dos setores do comércio internacional

e que, por vezes, se revestem igualmente de caráter regional. Afirma-se que raramente os usos obtêm

um reconhecimento à escala mundial.

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Quanto ao significado da jurisprudência arbitral para o desenvolvimento da lex mercatoria:

Numa primeira fase, as soluções autónomas desenvolvidas pela jurisprudência arbitral incidiram

principalmente sobre questões de caráter processual ou que se suscitam a título prejudicial, à

determinação do Direito aplicável e à relevância dos usos do comércio internacional. Assim, nesta

primeira fase, a jurisprudência arbitral contribuiu mais para o desenvolvimento do Direito

Transnacional da Arbitragem do que para a formação de um Direito material conformador e

regulador dos contratos internacionais.

Nos últimos anos, contudo, o acervo de soluções autónomas formuladas pela jurisprudência arbitral

em crescido consideravelmente.

É preciso sublinhar dois pontos:

1. É limitado o número de casos em que a decisão foi proferida exclusivamente com base em

Direito autónomo do comércio internacional;

2. A jurisprudência arbitral não constitui per si uma fonte do Direito autónomo do comércio

internacional em sentido técnico-jurídico. As decisões arbitrais não constituem precedente

vinculativo, tendo importância imediata apenas para o caso concreto a resolver. As soluções

desenvolvidas pela jurisprudência arbitral só se positivam (ganham validade normativa)

quando integram um costume jurisprudencial: para tal, é necessário que se forme uma

convicção geral, no círculo dos interessados, de que essas soluções são juridicamente

vinculantes.

Ora, o assinalado progresso da lex mercatoria na regulação dos contratos internacionais traduz-se

principalmente no desenvolvimento de soluções arbitrais baseadas na concretização de princípios

gerais e de “princípios” comuns aos sistemas nacionais e em modelos de regulação; mas a maior parte

destas soluções ainda não integra um costume jurisprudencial.

NOTA: a questão da vigência de regras e princípios atribuídos à lex mercatoria não deve ser

confundida com a sua “aplicabilidade” na decisão de litígios pelos árbitros transnacionais.

Princípios dos contratos comerciais internacionais

Dois passos de grande importância para a evolução da lex mercatoria são:

a) Publicação dos Princípios Relativos ao Comércio Internacional do UNIDROIT – trata-se de

um conjunto sistematizado de soluções, que um vasto grupo de especialistas provenientes de

diferentes culturas jurídicas considerou serem comuns aos principais sistemas nacionais e

mais adequadas aos contratos nacionais.

Para que servem?

i. Há quem entenda que estes princípios devem ser aplicados quando as partes estipularam

nesse sentido ou quando estipularam que os litígios emergentes de um determinado contrato

sejam resolvidos com recurso à lex mercatoria ou forma semelhante.

ii. Outros entendem que estes princípios podem servir como elemento de interpretação e

integração das convenções internacionais de Direito material unificado e Direito material

interno, oferecendo um modelo em que o legislador nacional ou internacional se pode basear.

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b) Publicação dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos, a cargo de uma comissão ad hoc

que se formou sob o impulso de LANDO – também estes não são princípios jurídicos gerais,

mas apresentam uma base comparativa mais marcada que os “princípios” do UNIDROIT.

Para que servem?

i. Procuram refletir um fundo comum aos sistemas jurídicos dos EM da EU, embora

pretendam simultaneamente ser “progressivos”.

ii. O principal objetivo dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos é o de constituírem

um sistema geral de regras de Direito dos Contratos na UE baseado nos Direitos

nacionais dos seus EM. Enquanto tal, os princípios poderão servir para a criação de uma

“infraestrutura” para a legislação da europeia sobre contratos e inspirar eventualmente

um Código Europeu de Direito dos Contratos.

iii. Destinam-se ainda a ser aplicados quando as partes o convencionem e podem ser

aplicados quando as partes estipulem que o seu contrato será regido pelos “princípios

gerais de Direito”, pela lex mercatoria ou utilizem uma expressão similar e quando as partes

não escolham o sistema ou as regras jurídicas que devem reger o seu contrato.

iv. Podem ainda auxiliar a obtenção da solução em caso de lacuna do sistema ou das regras

jurídicas aplicáveis.

No entanto, note-se que as indicações relativas à aplicabilidade dos princípios são ambíguas e podem

induzir em erro: os “princípios” são meros modelos de regulação que podem ser incorporados no

contrato, com o valor de cláusulas contratuais, ou podem ser recebidos no conteúdo de normas

materiais de um Direito estadual, de uma Convenção Internacional ou de um instrumento da UE.

Contêm uma regulação sistemática para aspetos gerais, mas isso não significa que eles vigorem por

não serem uma codificação de usos ou costumes.

⭐ Apreciação crítica das teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional

As teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional têm deparado com a oposição da

doutrina tradicional, i.e., daqueles autores para quem as situações transnacionais são sempre

reguladas ao nível da OJ estadual por meio da remissão para um Direito estadual.

Assim, a opinião dominante na Alemanha encara a lex mercatoria como um “fenómeno

sociológico” – as cláusulas contratuais gerais, os usos do comércio e a jurisprudência arbitral

são realidades sociais, mas estas realidades só relevariam juridicamente mediante a sua

“receção” pelo Direito dos conflitos ou pelo Direito material dos sistemas nacionais

individualmente considerados.

A crítica movida à lex mercatoria assenta em dois postulados:

1. As situações transnacionais só seriam imediatamente relevantes perante as OJ estaduais;

2. A permissão para a criação de Direito por particulares dependeria sempre do legislador

estadual.

Na opinião do Regente, estes postulados são equivocados:

i. Há um determinado círculo de contratos do comércio internacional que são direta e

imediatamente regulados na OJ internacional e na OJ da UE;

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ii. A doutrina tradicional parte do princípio de que não pode haver fontes do Direito autónomas

relativamente aos Direitos estaduais e supraestaduais, concluindo que as fontes da lex

mercatoria só podem ter relevância se essa lhes for dada pelas OJ estaduais, o que é falacioso,

pois contém a conclusão nas premissas;

À OJ estadual corresponde a sociedade perfeita que integra, na sua globalidade, a vida social e

apresenta um elevado nível de institucionalização e de autossuficiência. Mas a institucionalização de

grupos sociais que prosseguem fins limitados a uma certa esfera de vida (sociedades imperfeitas ou

de fins específicos) também pressupõe a existência de complexos normativos.

Onde se há de encontrar o fundamento dessas regras e princípios autónomos?

No processo de estabilização da sociedade paraestadual (formada por pessoas ligadas a diferentes

Estados), na referência à consciência dos membros da sociedade paraestadual e na conformidade do

ordenamento dessa sociedade perante os princípios gerais do Direito e os princípios geralmente

acolhidos na comunidade internacional.

Nesta visão das coisas, não é inconcebível que exista uma OJ autónoma do comércio internacional ou

uma pluralidade de OJ autónomas. O que ficou exposto é suficiente, na ótica de LP, para concluir que

os postulados em que assenta a crítica da doutrina tradicional à tese da OJ autónoma do comércio

internacional são infundadas.

Ainda assim, da rejeição dos postulados em que assenta a crítica da doutrina tradicional não decorre

necessariamente a aceitação das teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional.

Que dizer destas teses?

Em relação à tese de SCHMITTHOFF:

1) Ajusta-se relativamente bem à realidade da arbitragem transnacional, uma vez que os

tribunais arbitrais geralmente atribuem aos usos do comércio uma função interpretativa e

integrativa dos contratos do comércio internacional que é autónomo relativamente à lex

contractus (a lei primariamente aplicável ao contrato). Mas saber se eles desempenham essa

função para os tribunais estaduais, já depende da OJ estadual;

2) Esta tese não justifica a autonomia do Direito transnacional – por um lado, as Convenções

internacionais de Direito material unificado são fontes de DIPúblico, e uma vez recebidas na

OJ interna dos Estados, fontes da sua OJ; por outro lado, esta tese admite que o Direito

transnacional se fundamenta, em última análise, nos sistemas jurídicos estaduais;

3) A teoria das fontes em que assenta esta tese também é deficiente – não podemos considerar

que quaisquer práticas contratuais, leis-modelo, modelos contratuais, cláusulas gerais, são per

se fontes do Direito em sentido técnico-jurídico.

4) Em conclusão, SCHMITTHOFF e os seus seguidores deram um impulso prático importante

para o desenvolvimento do Direito transnacional, mas o seu contributo para a análise

científica e justificação teórica deste fenómeno é bastante limitado.

Em relação à tese de GOLDMAN:

1) Procuraram fundamentar a lex mercatoria como uma OJ autónoma.

Na opinião do Regente, só podemos aceitar que haja um OJ autónoma do comércio internacional se:

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a) Houver um espaço transnacional adequado para o efeito (esfera de ação com autonomia) –

podemos dizer que existe: os principais sistemas jurídicos nacionais e as OJ supraestaduais

permitem que as relações do comércio internacional seja, em primeira linha, reguladas pelos

respetivos sujeitos (autorreguladas), por costumes e usos do comércio internacional, pelo

costume jurisprudencial arbitral e por regras criadas por centros autónomos, só intervindo

para suprir as insuficiências da autorregulação e da heterorregulação autónoma na realização

dos valores da OJ.

b) Existir um determinado consenso básico sobre um certo núcleo de valores comuns, de uma

disposição para prosseguir fins comuns por parte dos operadores do comércio internacional

– temos de saber se o conjunto de operadores do comércio internacional é suficientemente

homogéneo e coeso para dar origem a uma OJ autónoma. O Regente acha que este pressuposto

não se verifica:

i. Os operadores são muito heterogéneos (temos PME, empresas nacionais comuns,

empresas privadas, operadores que vêm de áreas geográficas muito diferentes).

ii. Os pólos organizativos centrais são muito incipientes.

iii. Diferença entre os vários setores do comércio internacional.

Assim, o Regente conclui que não existe uma OJ autónoma do comércio internacional. E entende que

o presente grau de desenvolvimento do comércio internacional está em coerência com esta visão: o

que temos são regras vigentes em determinados setores do comércio internacional ou usos (que não

são fonte imediata de Direito e sim mediata).

Quais serão as fontes imediatas do direito autónomo de comércio internacional?

1. Costume comercial internacional;

2. Costume jurisprudencial arbitral;

3. Regras criadas por centros autónomos de regulação.

Para que se forme uma OJ autónoma de comércio internacional não basta que os tribunais arbitrais

possam encontrar critérios de solução, mas têm de se positivar num costume jurisprudencial. Tal não

exclui, contudo, que possam existir ordenamentos autónomos sectoriais.

Interessa contudo assinalar que a formação por via consuetudinária ou no quadro de organizações

setoriais de regimes jurídicos fragmentários do comércio internacional não depende da sua integração

numa OJ autónoma, na societas mercatorum, nem da sua inclusão num ordenamento autónomo

sectorial.

Como assinalou ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, a vigência de regras jurídicas da lex

mercatoria não supõe necessariamente a sua inserção numa OJ. Estas regras vigoram automaticamente

na medida em que:

a) Exprimem certos valores partilhados pela generalidade dos operadores do comércio

internacional;

b) São aptas para a realização desses valores perante a consciência desses operadores;

c) São formadas por processos autónomos geralmente reconhecidos como idóneos para a criação

de regras juridicamente vinculativas pelos mesmos operadores.

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Valor do Direito autónomo do comércio internacional:

O Regente entende que este Direito deve ser favorecido, porque se traduz em soluções que são mais

adequadas às relações comerciais internacionais.

Como é um Direito com um certo grau de uniformidade internacional, é mais fácil de ser conhecido

pelos interessados, dispensando o recurso ao sistema de Direito de conflitos, o que evita a necessidade

de averiguar o conteúdo da norma jurídica estrangeira. É um Direito que vigora em todo o lado, ou

pelo menos em todo o setor do comércio internacional.

Com isto, aumenta a previsibilidade jurídica e diminui os custos de transação resultantes da

transnacionalidade da relação.

⭐ Relevância da lex mercatoria na arbitragem transnacional

Uma vez que a arbitragem transnacional é a jurisdição normal dos litígios do comércio internacional,

importa averiguar se, e até que ponto, a lex mercatoria é fonte de Direito imediatamente aplicável nesta

jurisdição.

Para o efeito, há que fazer uma distinção entre:

i. Estatuto da arbitragem – conjunto de regras e princípios primariamente aplicáveis pelo

tribunal arbitral. Compreende as proposições aplicáveis a todos os aspetos, quer

processuais quer substantivos, do processo arbitral, designadamente a validade da

convenção de arbitragem, a constituição, competência e funcionamento do tribunal

arbitral, etc.

Os tribunais arbitrais internacionais não são criados pelo Direito de um Estado e, por isso, não têm

uma lex fori e também não estão submetidos a um particular sistema nacional de Direito privado. Isso

não significa que a arbitragem fique imune às competências normativas dos Estados que têm laços

significativos com a arbitragem, mas a autonomia de que goza relativamente às OJ estaduais

singularmente consideradas permite que o seu estatuto seja em primeira linha definido por Direito

autónomo. Ou seja, os árbitros devem ter em conta diretrizes emanadas pelos Estados que têm uma

ligação significativa com a arbitragem, mas devem também, tanto quanto possível, respeitar as regras

e princípios do Direito Transnacional da Arbitragem.

Fontes do Estatuto da Arbitragem:

a) Regulamentos dos centros de arbitragem – na arbitragem personalizada, os árbitros aplicam

em primeira linha as regras destes regulamentos.

b) Costume jurisprudencial.

c) Certos princípios fundamentais em matéria de processo, que são comuns à vasta maioria dos

sistemas nacionais, tais como o do contraditório e da igualdade das partes.

ii. Direito aplicável ao mérito da causa – regras e princípios que são aplicados para decidir o

mérito da causa. A questão que se coloca é a de saber se a lex mercatoria pode ser aplicada

à relação controvertida independentemente da sua receção por uma OJ estadual.

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A resposta é sim – o Direito transnacional é aplicado imediatamente por dois processos:

1) Por força de normas de conflitos de Direito transnacional da arbitragem. Perante este Direito,

a decisão será proferida com base no Direito autónomo do comércio internacional quando as

partes o designarem. Na falta de designação, parece de reconhecer que o Direito transnacional

da arbitragem permite que os árbitros recorram à lex mercatoria.

Em ambos os casos não é necessário determinar o Direito estadual aplicável e, por

conseguinte, a aplicação do Direito transnacional não depende da sua receção pelo Direito

estadual.

Trata-se aqui de um processo de regulação indireta ou conflitual, porque a lex mercatoria é

aplicável por força de proposições conflituais de Direito transnacional da arbitragem.

2) E não haverá casos de aplicação direta, em que o mérito da causa seja resolvido através de regras e

princípios autónomos?

Em princípio, a resposta será negativa. Tem-se geralmente por evidente que o tribunal arbitral não

tem poder para decidir exclusivamente segundo a lex mercatoria contra a vontade manifestada pelas

partes.

Mas há uma regra que se desenvolveu como costume jurisprudencial arbitral que foi depois acolhida

em Convenções Internacionais e em algumas legislações, segundo a qual em qualquer caso (qualquer

que seja o Direito aplicável), os árbitros têm de ter em conta as cláusulas do contrato e os usos do

comércio internacional. Quanto a esta solução existe divergência, mas a maioria da doutrina entende

que os usos do comércio têm um valor interpretativo e integrativo do negócio jurídico,

independentemente da importância que lhe seja dada pela lei aplicável.

De acordo com LP, há que fazer uma distinção consoante:

(i) A questão seja apreciada segundo o Direito estadual – os usos têm esse valor interpretativo

e integrativo, independentemente da lei estadual aplicável, mas tem como limite as

normas imperativas dessa lei estadual;

(ii) A questão seja apreciada segundo o Direito autónomo do comércio internacional ou

segundo princípios comuns – neste caso, a relevância dos usos não é limitada pelas normas

imperativas dos Estados, mas apenas pela ordem pública internacional.

Assim, LP conclui que o Direito autónomo do comércio internacional também acaba por ser aplicado

diretamente, independentemente de uma norma de conflitos, a contratos comerciais internacionais.

Conclusões sobre a regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional:

1) Há um setor importante das relações comerciais internacionais que são reguladas

imediatamente pelo Direito autónomo do comércio internacional, independentemente da

relevância que lhe seja dada pelo Estado em causa;

2) Na falta de convenção de arbitragem, a lei aplicável é a estadual;

3) Esta regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional não subtrai totalmente a

regulação pelo Direito estadual: (i) há matérias que não podem ser sujeitas a arbitragem, sendo

nesses casos competentes os tribunais estaduais e (ii) os tribunais arbitrais devem ter em conta

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as diretrizes emanadas dos Estados que apresentam um laço especialmente significativo com

a arbitragem ou em que possa previsivelmente ser pedida a execução da sentença;

4) Esta regulação é em parte conflitual – na determinação do Direito aplicável recorremos em

princípio a normas de conflitos – e em parte material/direta – valor autónomo que os usos do

comércio têm na arbitragem transnacional.

DIREITO DE CONFLITOS – PARTE GERAL

⭐ Órgãos de aplicação do Direito de conflitos

São órgãos supraestaduais quando relevam da OJ internacional ou da OJ da UE. É o caso das

jurisdições internacionais (ex: Tribunal Internacional de Justiça), quási-internacionais (ex: Tribunal

Permanente de Arbitragem) e da União Europeia (ex: TJUE).

São órgãos estaduais quando relevam das OJ estaduais. Na OJ portuguesa, os órgãos nacionais são

jurisdicionais e administrativos (ex: conservadores, notários, agentes diplomáticos).

São órgãos transnacionais quando nem relevam de uma ordem supraestadual nem relevam da OJ

portuguesa. É o caso dos tribunais da arbitragem transnacional (em sentido estrito).

Em regra, os órgãos de aplicação do Direito de conflitos são estaduais e transnacionais; os

supraestaduais ainda são a exceção.

⭐ Fontes do Direito de conflitos

O Direito de conflitos tem fontes internacionais, europeias, transnacionais e internas. O DIPrivado e

o DIPúblico não se distinguem, assim, pelas suas fontes (que podem ser as mesmas), mas sim pela

sua regulação.

O Direito de conflitos de fonte internacional pode ser relevante:

i) No plano da OJ internacional – quando se trata de Direito internacional de conflitos, ou

seja, Direito de conflitos que se destina a ser aplicado por jurisdições internacionais ou

quási-internacionais (ex: art. 42º Convenção de Washington).

ii) No plano da OJ estadual – o DIPrivado vigente num Estado também pode ser relevante

no Direito estadual (ex: art. 8º CRP). As normas de Direito de conflitos internacionais

constantes de Convenções Internacionais de que Portugal seja parte vigoram na OJ interna

como normas internacionais (art. 8º/2 CRP). Também vigoram como normas

internacionais as normas de Direito derivado constantes de Convenções Internacionais de

que Portugal seja parte (art. 8º/3 CRP); e o mesmo se diga em relação às normas de

conflitos constantes de regulamentos europeus (art. 8º/4 CRP).

Por conseguinte, num sistema de relevância do Direito internacional na esfera interna, como o nosso,

só é interno o Direito de conflitos que é “originariamente” de fonte interna.

1) Fontes de Direito Internacional

Qualquer dos processos específicos de criação de normas pela comunidade internacional poder ser

fonte de Direito internacional de conflitos. Mas a fonte mais importante são as Convenções

Internacionais, nomeadamente a Convenção de Washington. É uma evidência que na determinação

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do Direito aplicável os órgãos internacionais devem aplicar as regras de conflitos que constem do

próprio Tratado que os cria ou enquadra.

E em caso de omissão do ato institutivo sobre a determinação do Direito aplicável, como devem proceder

os órgãos internacionais?

Nesses casos, os órgãos internacionais terão de formular regras de conflitos próprias.

1.1) Fontes internacionais do Direito de conflitos vigentes na OJ interna

A primeira questão que se coloca é a de saber se o costume internacional integra uma destas fontes.

Houve uma escola – universalista – que entendeu que existia um sistema universal de

DIPrivado de resolução de litígios, que se basearia no DIPúblico ou no próprio conceito de

Direito e vincularia os legisladores nacionais. Esta conceção foi abandonada porque se

percebeu que os Direitos de conflitos eram muito divergentes de Estado para Estado.

O que se questiona hoje é principalmente a existência de certas diretrizes de DIPúblico geral sobre a

conformação global dos sistemas estaduais de DIPrivado e a possibilidade de, por via

consuetudinária, se terem formado algumas poucas regras de conflitos internacionais, que já se

consolidaram como costume internacional:

a) Para uma primeira tese, afirmada pelo nacionalismo mais radical, do DIPúblico geral não

decorreriam quaisquer diretrizes sobre a conformação dos sistemas estaduais de DIPrivado,

sendo os Estados inteiramente livres na sua conformação;

b) Para outros autores, de certos princípios gerais de DIPúblico (em especial dos que dizem

respeito à proteção dos direitos dos estrangeiros e à igualdade dos Estados enquanto membros

da comunidade internacional) é possível extrair diretrizes para a conformação dos Direitos de

conflitos nacionais – o Regente concorda:

o Tem de ser conferida um mínimo de tutela aos direitos dos estrangeiros. Este princípio

é incompatível com a exclusiva aplicação do Direito material do foro às situações

comportando elementos de estraneidade; tal levaria a negar, injustificadamente, aos

estrangeiros direitos que validamente adquiriram no estrangeiro através de uma lei

estrangeira.

o Além disso, ao participar na comunidade internacional, um Estado não pode ignorar

a vigência de outros ordenamentos estaduais nem pode ter a pretensão de

competência exclusiva de regulação das relações que atravessam as suas fronteiras.

o Por estas razões, cada Estado deve reconhecer às ordens jurídicas estrangeiras uma

esfera razoável de aplicação e abster-se de discriminar a aplicação de uns Direitos

estrangeiros relativamente a outros.

Indo mais além, podemos dizer que a tutela dos direitos dos estrangeiros combina com a tutela dos

direitos dos nacionais, no sentido em que o sistema de DIPrivado tem de estar racionalmente

orientado para soluções que sejam conformes com a tutela desses direitos.

Nesta visão das coisas, o DIPrivado tem o seu fundamento no DIPúblico e no reconhecimento de uma

coexistência entre várias OJ.

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Outra questão que se coloca é a seguinte: há normas de conflitos, tendo por base costume internacional, que

vinculem os Estados?

a) A maioria dos autores nega ou põe em dúvida a existência de tais normas de conflitos;

b) LP afirma que não parece indefensável que algumas regras ou princípios de conexão,

geralmente consagrados pelos sistemas de DIPrivado nacionais, sejam já acompanhados de

uma convicção de vinculatividade, como é o caso da regra da lex rei sitae em matéria de direitos

reais imobiliários;

c) Há uma linha de pensamento que também entende que a relevância do DIPúblico vai além de

Diretrizes globais de conformação dos Estados, mas segue um caminho diverso: o DIPúblico

fundamenta e limita a competência legislativa dos Estados com base na territorialidade e a

personalidade (designadamente a nacionalidade e o domicílio). Este entendimento encontra-

se muito divulgado entre os autores ingleses.

Os Tratados internacionais são a principal fonte internacional de Direito de conflitos vigente na OJ

interna. Há Tratados que contêm direito material unificado, destinado a construir regimes materiais.

Há ainda as Convenções sobre matéria de Direito dos estrangeiros.

A jurisprudência internacional é fonte de Direito internacional de conflitos. Mas as soluções

desenvolvidas pela jurisprudência internacional dirigem-se em primeira linha aos órgãos

internacionais e não aos órgãos estaduais, pelo que só indiretamente – mediante a formação de

costume jurisprudencial – pode ser fonte de Direito de conflitos que opere na ordem interna.

Os princípios comuns aos sistemas nacionais podem ser fonte de Direito internacional de conflitos.

Também tendem a desempenhar algum papel como fonte de DIPrivado da arbitragem transnacional.

Mas já não são fonte de Direito de conflitos aplicável a situações que só relevem na OJ estadual.

2) Fontes da União Europeia

Encontramos normas de DIPrivado quer no Direito derivado emanado pelos órgãos da EU, quer nos

tratados instituintes.

As normas da UE que consagram as liberdades fundamentais (de circulação e de estabelecimento)

têm incidência sobre o Direito dos estrangeiros, mormente no que toca aos princípios gerais sobre a

condição jurídica dos estrangeiros nos domínios do Direito da economia e da entrada, permanência

e saída de estrangeiros. Estas normas da UE também podem assumir algum significado para o Direito

privado, designadamente no caso do princípio da igualdade de tratamento dos trabalhadores

nacionais de outros EM da UE.

Questão controvérsia é a da incidência destas normas sobre o Direito dos conflitos:

a) Em paralelo com o que se verifica com as fontes internacionais, também o Direito de

conflitos de fonte europeia pode operar ao nível da OJ da UE ou das OJ dos EM;

b) É indiscutível que opera ao nível da OJ europeia nos casos em que se trata de Direito de

conflitos aplicável pelas jurisdições europeias. É o que se verifica com o Direito de

conflitos contido no TFUE.

Normas de conflitos que devem ser aplicadas pelas jurisdições da UE: responsabilidade

extracontratual, litígios relativos a contratos celebrados pela UE.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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c) O DUE também é fonte de Direito de conflitos na OJ interna. O TFUE não contém normas

de conflitos que se dirijam aos órgãos de aplicação do Direito dos EM.

No que toca ao Direito derivado, este é uma fonte de Direito de conflitos da OJ dos EM. Podem

distinguir-se, quanto a esta fonte, três fases:

i. Até à entrada em vigor do Tratado de Amsterdão, em que a maior parte das disposições

contratuais estavam contidas em Diretivas da UE, tratando-se de medidas de harmonização

dos Direitos de conflitos dos EM, o TJUE reconhece uma eficácia direta para os particulares

das diretivas que não sejam transpostas dentro do prazo estabelecido para o efeito, mas essa

eficácia direta limita-se à eficácia direta vertical: na falta de medidas de execução pelos

Estados estes atos apenas podem ser opostos pelos particulares aos Estados que os não

cumpram e não nas relações interparticulares.

ii. Entrada em vigor do Tratado de Amsterdão (1999) à entrada em vigor do Tratado de Lisboa

(2009) – embora o alcance da competência legislativa e da competência externa atribuída aos

órgãos comunitários em matéria de DIPrivado oferecesse dúvidas, e o fundamento jurídico

para certos atos nessa matéria fosse discutível, os EM não se opuseram à ação dos órgãos

comunitários, que se orientou no sentido de uma ampla comunitarização do DIPrivado.

Assim, com fundamento nos arts. 61º/c) e 65º do Tratado da CE, com a redação dada pelo

Tratado de Amsterdão, foram adotados numerosos Regulamentos no domínio do DIPrivado.

iii. Entrada em vigor do Tratado de Lisboa (2009) – o TFUE passou a estabelecer a liberdade de

circulação (art. 3º/2 TUE). O espaço de liberdade, segurança e justiça é autonomizado

relativamente ao mercado interno. O reconhecimento mútuo de decisões é elevado ao aspeto

essencial da cooperação judiciária em matéria civil e é relacionado com o direito de acesso à

justiça, que constitui um direito fundamental na OJ da EU. O raciocínio subjacente parece ser

o de que estas liberdades levam a um crescimento das relações transnacionais, que criam

dificuldades e incertezas (designadamente, os custos do reconhecimento de decisões) que

consubstanciam limites a essa liberdade.

Os atos em matéria de DIPrivado são, em princípio, decididos por maioria qualificada no quadro do

processo legislativo ordinário (art. 81º/2 TFUE). O TUE e TFUE permitem que haja cooperações

reforçadas (art. 20º e arts. 326º e ss., respetivamente).

Continuou a haver normas de conflitos nas Diretivas, e o que se tem discutido é a necessidade de

uma codificação europeia de DIPrivado. O que se verifica é que a maioria das matérias já estão

codificadas na UE, mas em diversos instrumentos, o que torna difícil o seu conhecimento e a

harmonia de soluções.

A coerência sistemática do sistema de Direito de conflitos também é posta em causa com respeito a

problemas que, em princípio, são abrangidos por esses instrumentos, tais como a remissão para OJ

complexas, a devolução, a ordem pública internacional, as regras de aplicação necessária do Estado

do foro e as regras imperativas de terceiros Estados.

O Regente entende que será necessária a criação de um Regulamento que trate da parte geral; a

situação atual frustra em certa medida as liberdades visadas pelo legislador europeu.

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A competência dos órgãos da UE em matéria de DIPrivado não é exclusiva, e sim partilhada com os

EM. Nas matérias do DIP em que o DUE não tenha ainda exercido uma competência reguladora, é

possível aos EM legislarem. Mas uma vez exercida esta competência pelos órgãos da UE, ela exclui

ou limita a competência dos EM (art. 2º/2 TFUE).

Por acréscimo, a jurisprudência do TCE estabeleceu que a Comunidade Europeia tinha ainda uma

competência externa relativamente às matérias em que exerceu as suas competências internas – art.

216º TFUE.

Era controverso, antes do Tratado de Lisboa, se esta competência externa era exclusiva dos órgãos do

UE, no sentido em que só a Comunidade podia celebrar acordos com Estados terceiros que afetassem

as normas europeias. Os órgãos comunitários tenderam para a posição afirmativa e no mesmo sentido

se pronunciou o TCE, concluindo que a celebração da nova Convenção de Lugano relativa à

competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial era

da competência exclusiva da Comunidade Europeia.

Também parece ter sido esse o entendimento acolhido e desenvolvido pelo Tratado de Lisboa no

TFUE, quando determina que a competência da UE para celebrar acordos internacionais com Estados

terceiros é exclusiva quando (art. 3º/2):

(a) Tal celebração esteja prevista num ato legislativo da UE;

(b) Seja necessária para lhe dar a possibilidade de exercer a sua competência interna;

(c) Seja suscetível de afetar regras comuns ou de alterar o alcance das mesmas.

3) Fontes Transnacionais

As fontes transnacionais são as que resultam de um processo específico de criação de proposições

jurídicas no seio da comunidade dos operadores do comércio internacional, que são independentes

da ação dos órgãos estaduais e supraestaduais.

No que toca ao Direito de conflitos, estas fontes são fundamentalmente os regulamentos dos centros

de arbitragem e o costume jurisprudencial arbitral.

Estas fontes têm desempenhado um papel significativo na criação de normas e princípios de

DIPrivado da arbitragem transnacional.

4) Fontes Internas

Apesar do avanço das fontes internacionais, europeias e transnacionais, ainda é importante o Direito

de conflitos de fonte interna.

As fontes a considerar são a lei, o costume, a jurisprudência e a ciência jurídica.

o Em relação à lei, temos em primeiro lugar a CRP. Esta não contém normas de Direito de

conflitos, mas não deixa de ser fonte de DIPrivado, por força dos vários planos de incidência

sobre o Direito de conflitos e domínios conexos (arts. 8º, 13º, 14º, 15º, 87º, 99º/d) e 100º/a) e

e)). Na lei ordinária, a principal fonte é o Código Civil, designadamente o cap. III do Tít. I do

Livro 1. No CCom devem considerar-se em vigor as normas contidas nos arts. 4º/2, 6º, 7º, 12º,

110º, 255º, 488º, 606º, 650º e 674º.

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As normas de conflitos do CCom foram revogadas tacitamente pelo CC?

Em princípio, as normas de conflitos do CC não revogariam as normas de conflitos do CCom, uma

vez que, e de acordo com o art. 7º/3 CC, a lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a

intenção inequívoca do legislador.

O que justifica a não revogação da lei especial pela lei geral é a especialidade substancial, que decorre

do estabelecimento de um regime específico mais adequado a circunstâncias particulares e não uma

especialidade meramente formal. Ora, a especialidade de algumas normas de conflitos contidas no

CCom é meramente formal. Assim, as normas do art. 4º CCom vieram preencher uma lacuna da lei

civil, sendo substancialmente normas gerais. Assim, considera-se que estas normas foram revogadas

pelo CC.

Existem ainda normas de DIPrivado em numerosas leis avulsas.

o Em relação ao costume, pode dizer-se que o costume é uma fonte importante de DIPrivado

nos países em que este não se encontra codificado (ex: França). Perante um sistema de Direito

de conflitos codificado, como o português, o costume pode ainda ter algum relevo, posto que

limitado, no desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema. Mas trata-se hoje

fundamentalmente de costume jurisprudencial, que se forma com base numa jurisprudência

uniforme e constante.

o No que toca à jurisprudência, esta é uma importante fonte de Direito de conflitos, seja em

países onde vigora um sistema de precedente, seja em países em que o sistema de Direito de

conflitos não está codificado. Na falta de norma legal ou consuetudinária, os tribunais tiveram

frequentemente de formular normas de conflitos, porventura com apelo a certas ideias

orientadoras ou princípios gerais, e consolidaram soluções numa jurisprudência constante.

Quando estas soluções jurisprudenciais se impuseram como soluções vinculativas perante a

consciência jurídica geral, formou-se um costume jurisprudencial.

O papel desempenhado pela jurisprudência portuguesa recente no desenvolvimento e

aperfeiçoamento do DIPrivado tem sido, porém, modesto, sendo de registar que não raramente as

decisões aplicam diretamente o Direito material português a situações transnacionais, o que por vezes

sacrifica os valores e princípios que enformam a justiça deste ramo do Direito.

o A ciência jurídica tem desempenhado um papel importante no desenvolvimento do Direito

de conflitos. Em Portugal, antes da entrada em vigor no novo CC, muitas soluções foram

estabelecidas pelo labor conjunto da ciência jurídica e da jurisprudência, tendo o novo CC

retido muitas dessas soluções.

NOTA: a tendência na maioria dos sistemas é para que a principal fonte interna seja a lei.

Natureza pública ou privada do Direito de conflitos:

A tese clássica sobre o objeto e a função da norma de conflitos encara-a como uma norma de

delimitação de competências legislativas que resolve conflitos de soberanias estaduais – esta tese

mostra-se adversa à natureza privada do Direito de conflitos.

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Neste âmbito, desenvolveram-se as seguintes teorias:

Construções universalistas – defendem a inclusão do DIPrivado no DIPúblico, reclamando-se

a existência de um sistema de DIPrivado com validade universal que se impõe aos

ordenamentos nacionais;

Construções particularistas – segundo estas, a norma de conflitos tem por função a

delimitação da competência legislativa dos Estados, ainda que o DIPrivado tenha carácter

interno;

Ainda a favor da natureza pública do Direito de conflitos encontram-se alguns setores da

doutrina italiana.

A opinião dominante, contudo, é a de que o DIPrivado é Direito privado, sendo um Direito privado

especial regulador das situações privadas transnacionais. Há situações transnacionais que, apesar

de conformadas por Direito público, devem ser resolvidas pelo DIPrivado (ex: no caso de as partes

estabelecerem uma cláusula de arbitragem).

O Regente entende que a posição mais ajustada às características atuais e às tendências de

desenvolvimento do DIPrivado, é a de o considerar, essencialmente, como um Direito privado, sem

excluir o surgimento de certas áreas especializadas em que podem desenvolver-se soluções

específicas para relações que comportam elementos públicos.

OBJETO E FUNÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS

⭐ Objeto e função das normas de conflitos bilaterais

O objeto da norma é a realidade que a norma regula. Por função da norma pode entender-se o fim

que prossegue, a sua teleologia. A função que agora se tem em vista é a função jurídica ou técnico-

jurídica: o problema jurídico que a norma tem por missão resolver e o processo por que o resolve.

Para analisar o objeto e função da norma de conflitos, é necessário distinguir entre:

i) Normas unilaterais – só determinam a aplicação do Direito do próprio foro, ou seja, o

sistema destinatário é o do Estado da lei do foro. Como exemplos temos os art. 3º/3 CC e

61º LAV.

ii) Normas bilaterais/plurilaterais – tanto remetem para o Direito do foro como para o

Direito estrangeiro, ou seja, o sistema destinatário é o da Lei do foro ou um sistema

estrangeiro. É o caso do art. 50º CC e é o que se verifica, por forma geral, com as normas

de conflitos contidas no CC.

⇒ Objeto da norma de conflitos

O objeto da norma de conflitos é o mesmo que o objeto do DIPrivado enquanto ramo de Direito: a

situação transnacional, na medida em que é esta a realidade que regulam.

A Escola de Coimbra segue um entendimento diferente, sustentando que o objeto da norma de

conflitos são as normas materiais, porquanto as normas de conflitos são encaradas como normas

sobre normas e não como normas de regulação indireta.

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⇒ Teleologia/fins da norma de conflitos

É certo que a norma de conflitos não prossegue só interesses do Estado. É a realização da justiça do

Direito privado que está primeiramente em causa no DIPrivado. Os interesses particulares assumem

grande importância para este ramo do Direito.

No próprio Direito privado material não estão apenas em causa interesses particulares. O DIPrivado

não pode ser alheio à prossecução, na regulação das situações transnacionais, de políticas estaduais

de índole social, económica, ambiental, cultural, designadamente, bem como de fins políticos em

sentido estrito.

⇒ Função técnico-jurídica

O que há em comum em todas as normas de conflitos é o facto de regularem situações transnacionais

através de um processo conflitual/indireto.

Num segundo momento, surgem aspetos específicos da função dos diferentes tipos de normas de

conflitos: normas bilaterais, normas unilaterais gerais, normas unilaterais ad hoc.

Dupla função técnico-jurídica das normas de conflitos bilaterais:

Diz-se que as normas de conflitos bilaterais têm uma dupla função técnico-jurídica, na medida em

que:

a) Determinam o Direito aplicável;

b) Confere um título de aplicação na OJ interna ao Direito estrangeiro, caso seja este o aplicável.

Através da atribuição de competência a uma ordem local, a norma de conflitos contribui para

reconhecer determinada esfera de aplicação no espaço quer ao Direito do foro quer ao Direito

estrangeiro. Por exemplo, da norma de conflitos que submete a sucessão por morte à lei da última

nacionalidade do de cuius decorre que, na perspetiva do nosso Direito de conflitos, o Direito

sucessório português se aplica à sucessão dos portugueses e o Direito sucessório italiano à sucessão

dos italianos.

Contudo, a remissão operada pela norma de conflitos é não recipienda, i.e., quando remete para a lei

estrangeira, a lei estrangeira não é incorporada na lei do foro. O que acontece é que recebemos na OJ

do foro os efeitos jurídicos desencadeados pela lei estrangeira.

⭐ Objeto e função das normas de conflitos unilaterais. Bilateralização

⇒ Bilateralismo e unilateralismo

Sistemas unilateralistas

Os universalistas defenderam a existência de um sistema de DIPrivado com validade universal que

se impunha aos ordenamentos nacionais. A partir de finais do séc. XIX fez-se sentir uma reação

nacionalista/particularista a estes sistemas, que chamou a atenção para as diferenças dos vários

sistemas nacionais de DIPrivado.

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Mas os particularistas não divergem dos universalistas quanto à função do Direito de conflitos:

repartir a competência legislativa entre os Estados.

Então, como conciliar esta função com a natureza interna da norma de conflitos?

Um Estado não pode, por meio das suas normas de conflitos, delimitar a competência legislativa de

outros Estados. Daí que no final do séc. XIX uma corrente doutrinal tenha salientado que o legislador

de DIPrivado deve unicamente fixar os limites de aplicação do seu próprio Direito material. Isto é

dizer que todas as regras de conflitos deveriam ser unilaterais.

As tendências unilateralistas mais próximas já não se baseiam na conceção clássica sobre o objeto e a

função do DIPrivado, mas, em primeira linha, na vocação da norma material para um determinado

domínio especial de aplicação. Cada norma material conteria, necessariamente, a par da

determinação do seu domínio material de aplicação, também a determinação dos limites da sua

aplicação no tempo e no espaço. Se a norma material fosse aplicada sem preencher esses pressupostos,

não seria admissível. As normas de conflitos seriam indissociáveis das suas normas materiais.

Enfim, o unilateralismo, ao tomar em conta a vontade de aplicação da lei estrangeira, serviria melhor

a promoção da harmonia internacional de soluções que o bilateralismo.

Contudo, na opinião de LP, os argumentos a favor do unilateralismo merecem muitas reservas:

1) Não há uma ligação mecânica entre as normas materiais e as normas de conflitos – nas normas

materiais o legislador consagrou a solução que considerou mais adequada para certa situação.

Para determinar o âmbito de aplicação do espaço tem de se fazer um juízo para além da

situação concreta em que foi pensada. Daqui decorre que:

i. O relacionamento entre normas materiais e normas de conflitos não obriga ao

unilateralismo;

ii. É concebível que apliquemos as normas materiais de uma lei estrangeira que não se

considera competente por via do respetivo Direito de conflitos.

2) A vantagem do unilateralismo quanto à prossecução da harmonia internacional de soluções

só pode ser invocada perante um sistema em que se negue a devolução (como era o caso do

sistema italiano). Para um sistema que admita a devolução quando tal seja justificado, não há

qualquer vantagem do unilateralismo sobre o bilateralismo no que toca à harmonia

internacional. Pelo contrário: o bilateralismo favorece mais a harmonia internacional; muitas

vezes, o unilateralismo serve para conferir um âmbito de aplicação mais vasto à lei do Estado

do foro em detrimento do Direito estrangeiro.

Relativamente às situações que se encontram fora da esfera de aplicação da lei do Estado do foro, há

situações que se colocam, como saber que lei se aplica se mais que uma for aplicável, ou se nenhuma

lei estrangeira for aplicável.

Sob pena de denegação de justiça, o juiz tem de escolher entre os Direitos em presença que reclamam

a aplicação, no primeiro caso e, no segundo caso, de chamar à aplicação algum dos Direitos em

presença, apesar de nenhum deles mostrar disposição para o efeito.

Concluindo, o unilateralismo como sistema universal continua a ser uma solução teórica que

contrasta com a realidade prática dos sistemas bilaterais.

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O que se verificou face às normas de conflitos unilaterais foi que os tribunais dos diferentes Estados,

quando chamados a apreciar situações que caíam fora da esfera de aplicação do Direito do foro,

integraram as lacunas mediante uma bilateralização das normas unilaterais.

⇒ Coexistência de bilateralismo e unilateralismo nos atuais sistemas de DIPrivado:

O nosso sistema de conflitos é essencialmente bilateralista, mas não é puramente bilateralista: em

algumas situações, de forma a garantir à parte mais fraca uma proteção que não resultaria do sistema

bilateral, formulam-se soluções unilaterais (ex: art. 38º regime contrato de agência).

A opção por soluções unilaterais ainda se justifica em relação a matérias novas, complexas, em que o

legislador ainda não quer formular soluções bilaterais (como é o caso da matéria dos valores

mobiliários).

O unilateralismo também influenciou as soluções para os casos de relevância de normas imperativas

estrangeiras.

A renovação do unilateralismo que se tem assistido em muitos ordenamentos distingue-se do

unilateralismo clássico por não se colocar como alternativa global ao sistema de Direito de conflitos

de base bilateral, mas a par deste sistema ou como seu elemento. Temos aqui um unilateralismo

limitado.

⇒ Normas unilaterais gerais vs especiais

As normas unilaterais gerais referem-se normalmente a estados ou categorias de relações jurídicas.

As normas unilaterais especiais encontram-se numa relação de especialidade com outras normas de

conflitos, bilaterais ou unilaterais. Estas podem assumir três modalidades:

a) Normas unilaterais que se reportam a estados ou categorias de relações jurídicas – ex: art. 3º/1

CSC (a sua primeira parte é bilateral; a segunda parte é unilateral especial – está em

especialidade com a primeira parte – que se reporta a certas relações jurídicas).

b) Normas unilaterais que se reportam a questões parciais – ex: questões relacionadas com a

validade de determinadas cláusulas de um contrato.

c) Norma de conflitos ad hoc – ex: regra do art. 38º do regime do contrato de agência ou art. 61º

da LAV. Estas normas têm normalmente uma relação íntima e direta com a norma ou lei

material a que se reportam. Estão “impregnadas” de preocupações jurídico-materiais,

segundo o juízo de valor do legislador.

Um sistema de Direito de conflitos como o português assenta em normas de conflitos bilaterais que

estão conjugadas com normas sobre a sua interpretação e aplicação. As normas unilaterais especiais

e, em especial, as normas de conflitos ad hoc são frequentemente encaradas como normas adversas

em relação ao “sistema de normas de conflitos”.

LP – este é um modo simplista de ver as coisas. Devemos considerar as normas unilaterais

como um complemento necessário do sistema de Direito de conflitos de base bilateral.

Devemos assim procurar inseri-las no sistema através de uma generalização e bilateralização.

No caso das normas unilaterais especiais ad hoc, a bilateralização tem de ter em conta as

finalidades gerais do sistema de conflitos.

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⇒ Normas autolimitadas:

Diz-se “autolimitada” aquela norma material que, apesar de incidir sobre situações reguladas pelo

DIP, tem uma esfera de aplicação no espaço diferente da que resultaria da atuação do sistema de

Direito de conflitos.

Isto pode resultar de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos unilateral ad

hoc, que se reporta exclusivamente a uma norma ou a uma lei material determinada da OJ do foro, ou

de uma valoração casuística, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstâncias do caso.

As normas autolimitadas podem ser divididas em quatro categorias:

1) As que têm uma esfera de aplicação no espaço mais vasta do que aquela que decorreria do

Direito de conflitos geral (Normas de tipo I) – estas normas são aplicáveis sempre que o

Direito do foro é chamado pelo Direito de conflitos geral e ainda noutros casos (ex: normas

relativas à cessação do contrato de agência).

2) As que têm uma esfera de aplicação no espaço que só em parte coincide com aquela que

decorreria do Direito de conflitos geral (Normas de tipo II) – estas normas aplicam-se em

alguns casos em que o Direito do foro é chamado pelo Direito de conflitos geral, mas não em

todos, e também se aplicam noutros casos em que o Direito do foro não é competente (ex:

normas do Direito da concorrência).

3) As que têm uma esfera de aplicação no espaço mais restrita do que aquela que decorreria do

Direito de conflitos geral (Normas de tipo III).

4) As que têm uma esfera de aplicação no espaço inteiramente diferente da que decorreria do

Direito de conflitos geral (Normas de tipo IV).

LP começou por entender que as normas de aplicação imediata/necessária eram uma modalidade de

norma autolimitada, que se verifica quando a norma autolimitada tem uma esfera de aplicação mais

vasta do que resultaria do SDC. Mas aquela tipologia de normas autolimitadas levou LP a rever a sua

posição: a norma de aplicação imediata é antes um modo de atuação de certas normas autolimitadas.

Assim, o Prof. prefere a designação “normas suscetíveis de aplicação necessária” e não “normas de

aplicação imediata/necessária”.

Nesta visão, as normas suscetíveis de aplicação necessária são definidas por um critério formal: são

normas que em determinados casos reclamam aplicação apesar de ser competente, segundo o Direito

de conflitos geral, uma lei estrangeira.

NOTA: este critério formal surge no art. 30º do Regulamento sobre os efeitos patrimoniais das

parcerias registadas e nos arts. 9º/1 Reg. Roma I e 16º Roma II.

Questão que se coloca: a aplicabilidade de uma norma imperativa – que pressupõe que ela implique a sua

aplicação para além da sua esfera de aplicação delimitada pelo SDC – tem de preencher também um critério

material?

Há autores que entendem que as normas de aplicação necessária, para serem aplicadas, têm de

preencher também um critério material: serem necessárias para tutelar a organização política, social

ou económica do Estado e interesses públicos.

Estas conceções respondem com uma preocupação legítima: a de restringir a aplicabilidade de

normas imperativas enquanto normas de aplicação imediata, mas segundo LP, este caminho não é o

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melhor: é certo que a atual importância das normas autolimitadas suscetíveis de aplicação necessária

está até certo ponto relacionada com o fenómeno da ordenação e intervenção estadual por via

normativa nas relações privadas. Mas nem sempre tais normas autolimitadas são expressão do

intervencionismo estadual; as normas de aplicação necessária podem prosseguir várias finalidades.

LP aceita como normas autolimitadas suscetíveis de aplicação imediata:

o Normas cuja preocupação é a de tutelar a parte contratual mais fraca – ex: normas sobre a

cessação do contrato de agência.

o Normas que se encontram nos embargos e outras sanções económicas decretadas por

organizações internacionais ou supranacionais, maxime a ONU e a UE – trata-se de normas

imperativas de fonte supraestadual que operam como um limite autónomo à aplicação do

Direito competente.

Assim, LP conclui que não parece possível caracterizar as normas suscetíveis de aplicação necessária

pelo seu conteúdo e fim, dado que podem prosseguir múltiplas finalidades. Assim:

i) Dentro dos limites que resultam de normas internacionais ou europeias, se, por indicação

expressa do legislador português, uma norma se sobrepõe à OJ chamada pelo Direito de

conflitos geral, esta norma é suscetível de aplicação necessária, independentemente de

quaisquer outras considerações.

Tem importância o critério que foi adotado pelo TJUE (Ac. Arblade, 1999): estas normas são disposições

nacionais cuja observância é necessária para salvaguardar a integridade social, política e económica do Estado-

membro.

Esta definição passou para o Reg. Roma I, para o art. 9º/1, que vem definir estas normas como

disposições que visam proteger interesses do Estado de onde emana – essas normas, em função das

finalidades que prosseguem, reclamam a sua aplicação ao caso concreto, mesmo não sendo da lei

aplicável.

NOTA: o art. 9º não é uma norma imperativa/norma de aplicação imediata – trata-se de normas de

conflitos que dão relevância às normas internacionalmente imperativas.

Quando é que o intérprete sabe se a norma em questão é autolimitada?

1. Se o legislador expressamente formular uma norma de conflitos unilateral ad hoc com

referência a uma norma material, então não há dúvidas de que se trata de uma norma de

aplicação necessária.

2. Se não encontrarmos uma solução expressa, são três as vias que se abrem para a qualificação

de uma norma material como autolimitada:

i. Por inferência de uma norma de conflitos unilateral ad hoc implícita – esta norma

deve inferir-se das disposições legais ou das práticas com convicção de

obrigatoriedade. Pode inferir-se também das regras materiais que sejam concretização

de direitos fundamentais, da norma de conflitos especial que tenha sido estabelecida

com respeito à aplicação no espaço da regra constitucional que consagre este direito

fundamental (ex: art. 53º CRP, do qual se pode inferir uma norma de conflitos especial

sobre o âmbito de aplicação no espaço das regras portuguesas sobre despedimentos).

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ii. Por criação de uma solução conflitual ad hoc à luz da teoria das lacunas da lei – se

chegarmos à conclusão que não se identifica no caso concreto uma norma de conflitos

implícita, a criação de uma situação conflitual pelo intérprete pressupõe a existência

de uma lacuna. A maioria das lacunas em DIP são lacunas ocultas, na medida em que

a situação se encontra, em princípio, abrangida por uma norma do sistema de Direito

de conflitos, mas face ao caso concreto, os princípios subjacentes ao sistema não se

compadecem com a aplicação da norma de conflitos geral bilateral, porque da

aplicação dessa norma iria resultar uma contradição com os princípios e valores do

sistema. Ou seja, a revelação dessa lacuna pressupõe uma interpretação restritiva ou

uma redução teleológica. Por exemplo, as normas de conflitos em matéria de contratos

obrigacionais (contidas no Reg. Roma I), embora aplicáveis aos contratos de

arrendamento de imóveis, não atendem ao fim de proteção da parte contratual mais

fraca (o arrendatário) de muitas normas imperativas que integram o regime português

do arrendamento; por isso, perante estas normas de conflitos, a aplicação das normas

protetoras do arrendatário pode ser afastada, relativamente ao arrendamento de

imóveis situados em Portugal, designadamente mediante a escolha de uma lei

estrangeira para reger o contrato.

iii. Vigência de uma cláusula geral que permita colocar o problema da aplicabilidade

da norma material em função das circunstâncias do caso concreto – este é um ponto

controverso, porque não encontramos no nosso sistema de Direito de conflitos uma

norma geral (daí que LP não veja fundamento para a vigência desta cláusula geral).

Encontramos algumas regras especiais, como o art. 9º Reg. Roma I, 16º Convenção de

Haia sobre a regulação de contratos de mediação e encontramos no ordenamento

italiano o art. 17º. O Prof. Regente entende ainda que a introdução desta cláusula geral

no nosso OJ não seria desejável, dado o sacrifício da certeza e previsibilidade jurídicas

e pela potencial restrição injustificada da autonomia negocial que acarretaria. As

normas autolimitadas são, por isso, excecionais, sendo a missão do legislador a de

formular as normas de conflitos ad hoc apropriadas e não a de passar um cheque em

branco aos tribunais: uma cláusula geral que permita ao órgão de aplicação do Direito

estabelecer a “autolimitação” com base numa valoração casuística prejudica

gravemente a certeza e a previsibilidade jurídicas e limita muito a função orientadora

de condutas do Direito de conflitos. Ou seja, a norma “autolimitada” só pode relevar

através da cláusula de ordem pública internacional, como limite à aplicação do

Direito estrangeiro; mas para isso é preciso que se trate de uma norma fundamental

da OJ portuguesa e que o resultado concreto a que conduza o Direito estrangeiro

competente seja manifestamente incompatível com esta norma.

⇒ As funções das normas de conflitos unilaterais no Direito vigente:

As normas de conflitos unilaterais também têm por função realizar um processo de regulação indireta

de situações transnacionais. Mas realizam esta função exclusivamente por meio do chamamento do

Direito do foro. Por conseguinte, não têm uma dupla função nem podem servir para conferir um

título de aplicação às normas do ordenamento estrangeiro.

A função da norma de conflitos unilateral assume certa especificidade conforme o tipo de norma

unilateral em causa.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Em Portugal, não encontramos uma norma geral de DIP, mas apenas algumas normas especiais, como

os arts. 28º/1 CC e 3º/1 2ª parte CSC.

A maior parte das normas de conflitos unilaterais especiais vigentes na OJ portuguesa são, contudo,

normas de conflitos ad hoc.

⇒ Bilateralização das normas unilaterais; A generalização de normas unilaterais ad hoc:

Tem-se entendido que a bilateralização só é possível quando a regra unilateral valha como revelação

de um “princípio geral”, i.e., como conexão adequada à situação ou questão parcial em causa.

ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO afirma que a bilateralização não é admissível quando a

norma unilateral visa estender o âmbito de aplicação da lei interna, quer com vista à

proteção de certos interesses locais, quer com vista à defesa de interesses dos seus nacionais

no estrangeiro. Neste caso poderá apenas haver uma generalização da ratio subjacente. É o

que se verificaria com o art. 28º CC.

Na opinião de LP, o problema tem de ser colocado em dois níveis diferentes:

1. Existe uma lacuna?

Para responder a esta questão, é importante distinguir os diferentes tipos de normas unilaterais –

normas unilaterais gerais, normas unilaterais especiais que se referem a estados ou categorias de

situações jurídicas e normas unilaterais especiais que se referem a questões parciais:

i. Quando, relativamente a certos estados ou categorias de relações jurídicas, um

sistema jurídico não dispõe de normas bilaterais, mas apenas de normas unilaterais,

surge uma lacuna sempre que não seja aplicável o Direito do foro. Se a norma de

conflitos se limitava, por exemplo, a estabelecer a competência do Direito do foro

para reger o estado e a capacidade dos nacionais, surge uma lacuna a partir do

momento em que se coloca o problema do Direito aplicável ao estado e capacidade

de um estrangeiro.

ii. Mas é mais controverso o caso em que tais normas de conflitos unilaterais, embora se

refiram a estados ou categorias de relações jurídicas, tenham caráter especial

relativamente a normas de conflitos bilaterais. Aí cabe questionar, quando não é

aplicável ao estado ou à relação jurídica visados na norma unilateral o Direito do

foro, se há uma lacuna ou se deve simplesmente aplicar-se a norma de conflitos geral.

Por exemplo, o art. 3º/1 2ª parte CSC só contempla diretamente a hipótese em que a

sociedade tem sede da administração no estrangeiro e sede estatutária em Portugal;

quando se tenha de determinar o Direito aplicável ao estatuto pessoal da sociedade

nas relações com terceiros e a sociedade tenha a sua sede estatutária num país

estrangeiro que não é aquele onde se situa a sede da administração, deverá aplicar-se a

regra geral segundo a qual o estatuto pessoal é regido pela lei da sede da administração, ou

bilateralizar-se a norma unilateral especial, por forma a que releve a lei da sede estatutária

estrangeira?

LP entende que, por meio desta norma, o legislador português atendeu à

confiança depositada por terceiros na competência da lei da sede

estatutária. De acordo com o plano legislativo, a confiança de terceiros

também deve ser tutelada quando a sede estatutária esteja situada no

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estrangeiro. Há, por conseguinte, uma lacuna, que deve ser suprida

mediante a bilateralização da norma.

iii. As dúvidas sobre a existência de uma lacuna também são prementes quando as

normas de conflitos unilaterais se refiram a questões parciais que, em princípio,

estariam englobadas no domínio de aplicação de normas de conflitos bilaterais. E o

mesmo se diga das normas unilaterais ad hoc, que se reportam a normas

individualizadas ou conjuntos determinados de normas. Segundo LP, nestes casos

tem de se demonstrar que há lacuna, que, na impossibilidade de determinar o Direito

aplicável às referidas situações ou aspetos de situações por meio da norma de

conflitos unilateral, não se deverá recorrer às normas de conflitos gerais.

2. Integração da lacuna: a lacuna deve ser preenchida do mesmo modo que a suscitada pelas normas

unilaterais gerais, ou seja, por meio de uma bilateralização?

Para LP, a resposta é, em princípio, positiva, mas importa atender ao tipo de norma unilateral em

causa e às finalidades por ela prosseguidas.

No que toca às normas unilaterais ad hoc, que se reportam a normas materiais determinadas, parece

que a bilateralização terá sempre de ser condicionada à existência no sistema designado de normas e

regimes com o mesmo conteúdo e função, embora se possa não ver aí mais que uma concretização

dos princípios gerais em matéria de qualificação.

Assim, procedendo a uma bilateralização da norma unilateral contida no art. 2º/2 Lei nº 19/2012,

parece que poderemos aplicar à questão da validade de um contrato restritivo da concorrência, fora

do âmbito de aplicação do Direito europeu e interno da Concorrência, as normas do país estrangeiro

em que ocorra a prática restritiva da concorrência ou em que se produzam os efeitos dessa prática.

A bilateralização das normas de conflitos unilaterais deve ser condicionada à “vontade de aplicação” de tais

normas e regimes materiais estrangeiros por forma distinta da devolução?

Poderá pensar-se que para um sistema de base bilateralista não se deve partir da “vontade de

aplicação” de quaisquer normas estrangeiras. Em princípio, a circunstância de as normas e regimes

materiais em causa não serem aplicáveis perante as normas de conflitos gerais ou especiais da OJ a

que pertencem só pode relevar no quadro da devolução, uma vez que está em causa a competência

desta OJ.

Mas também nada obsta a que, no interesse da harmonia internacional e da confiança

objetivamente fundada das partes, a OJ do foro possa condicionar a aplicação de tais normas

estrangeiras à posição assumida pela ordem estrangeira. É o que se verifica, por exemplo, no art.

28º/3 CC.

Por estas razões, e também porque frequentemente há uma impregnação da norma unilateral ad hoc

por preocupações materiais, parece defensável, de iure condendo, que a “bilateralização” desta norma

se venha a traduzir na formulação de regras de remissão condicionada. Isto justifica-se, em especial,

quando a norma unilateral tem por finalidade a proteção da confiança depositada no Direito local.

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Assim, quanto ao modo de proceder à bilateralização:

Para bilateralizar uma norma, temos de encontrar o elemento de conexão que está a funcionar

implicitamente e depois formular uma norma utilizando esse mesmo elemento de conexão, mas de

forma a que ele designe Direito material do foro e estrangeiro.

Temos os exemplos do art. 28º/1 CC e, com mais utilidade prática, o art. 3º/1 2ª parte CSC.

Qual é a grande diferença entre uma norma de conflitos unilateral geral e uma norma de conflitos unilateral

especial? Sempre que temos uma norma em relação de especialidade, a lacuna pode não ser evidente,

pois pode não estar preenchida a norma de conflitos unilateral especial, mas estar a norma de

conflitos unilateral geral, que é bilateral.

A norma de conflitos unilateral traz assim um problema novo, que é prévio: determinar a lacuna

oculta. Como fazemos isso? Olhando para a teleologia da norma de conflitos unilateral especial. Por

isso é que o art. 3º/1 2ª parte CSC gera uma discussão doutrinária sobre se a norma deve ser

bilateralizada ou não:

i. LP entende que a teleologia é a tutela da confiança de terceiros, daí que entenda que a

tutela da confiança no registo de outros países também é merecedora de tutela,

sustentando a bilateralização.

ii. Já MARQUES DOS SANTOS entende que a razão desse artigo não é a tutela da confiança

de terceiros, mas apenas a tutela do registo português, daí que não haja razão para

bilateralizá-la.

No caso das normas de conflitos unilaterais ad hoc, relativas às normas suscetíveis de aplicação

imediata: o problema da bilateralização prende-se igualmente com a determinação de se se deve

bilateralizar ou não. Para bilateralizar, tenho de mexer não só no elemento de conexão, mas na

menção da norma de conflitos unilateral ad hoc que identifica quais são as normas de Direito

material a que ela se aplica. É o caso do art. 23º/2 LCCG.

Que impedimentos podem colocar-se à bilateralização?

Adversos à bilateralização apresentam-se em geral os regimes que vão em primeira linha orientados

a promover:

i. Interesses públicos nacionais ou interesses privados locais perante interesses estrangeiros

ou em função de condições específicas de âmbito estritamente local – a prossecução de

interesses nacionais ou locais não é, por si, incompatível com o Direito de conflitos

bilateral. Também não constitui impedimento a prossecução de interesses públicos, uma

vez que há interesses públicos comummente tutelados pela generalidade das OJ. O que

pode constituir um impedimento dirimente à bilateralização é a circunstância de os

“interesses nacionais” serem protegidos perante interesses estrangeiros ou em função

de condições específicas de âmbito estritamente local. Note-se que no DIP português não

existe nenhum exemplo de norma unilateral que esteja nestas circunstâncias. Por

conseguinte, perante a verificação de uma lacuna, as normas unilaterais são, em regra,

bilateralizáveis (LP).

ii. Interesses que digam respeito à organização administrativa ou a atividades realizadas por

entes públicos no âmbito da gestão pública – a unilateralidade associada a normas

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organizativas e a certas atividades públicas é um problema específico que diz

essencialmente respeito à aplicação no espaço do Direito público e não ao DIP.

As normas unilaterais insuscetíveis de bilateralização podem ser designadas por normas de

delimitação.

A bilateralização das normas unilaterais ad hoc envolve um processo – generalização – que

compreende dois processos:

a) O “alargamento da previsão”, com a passagem de uma norma ou lei individualizada para

uma categoria de relações jurídicas ou questão parcial – a norma ad hoc reporta-se a normas

materiais determinadas do Direito do foro. É necessário então que a sua previsão seja

reformulada, por forma a abranger normas materiais estrangeiras com o mesmo conteúdo e

função. Por exemplo, enquanto a norma ad hoc contida no art. 2º/2 do regime jurídico da

concorrência se refere apenas às normas materiais contidas nesta lei, a norma bilateralizada

terá de reportar-se à generalidade das normas que visem promover e proteger a concorrência

(função) através da proibição de práticas restritivas e do controlo das operações de

concentração de empresas (conteúdo).

b) A bilateralização.

⇒ Normas bilaterais imperfeitas:

São aquelas que, podendo determinar a aplicação tanto do Direito do foro como de Direito

estrangeiro, limitam o seu objeto a certos casos que têm uma ligação especial com o Estado do foro,

não fornecendo diretamente a solução para as situações do mesmo tipo abstrato, mas em que falta a

referida ligação.

É o caso do art. 51º CC, que prevê o casamento de dois estrangeiros em Portugal (nº 1) e o casamento

de dois portugueses ou de um português e de um estrangeiro no estrangeiro (nº 2), mas deixa de fora

o casamento de dois estrangeiros em país terceiro.

Estas normas colocam ainda a questão de saber se há uma lacuna. Caso a resposta seja afirmativa,

esta lacuna pode, em princípio, ser integrada mediante uma aplicação analógica da norma bilateral

imperfeita. Mas tem de ser examinado, relativamente a cada caso, se por esta via é possível formular

uma norma bilateral perfeita, ou se a bilateralização perfeita é limitada e, eventualmente,

condicionada a pressupostos adicionais.

⇒ Normas de remissão condicionada e Normas de reconhecimento:

i) Normas de remissão condicionada:

LP adota um conceito restrito, segundo o qual é regra de remissão condicionada aquela que tem em

conta a competência da lei estrangeira segundo o respetivo DIP. Isto permite relacionar estas normas

com um reforço atual do unilateralismo.

Mas tal não obsta a que a remissão possa ser cumulativamente condicionada a um determinado

resultado material ou à existência de normas com determinado conteúdo ou intencionalidade

normativa. Por exemplo, o art. 31º/2 CC remete para a lei da residência habitual do interessado ou

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interessados não só sob a condição de esta lei se considerar competente, mas também de conduzir à

validade de um negócio do estatuto pessoal que seria inválido segundo a lei da nacionalidade.

Assim, devem considerar-se normas de remissão condicionada as seguintes normas do CC: arts.

28º/3, 31º/2, 36º/1 in fine, 45º/3, 47º e 65º/2.

Uma vez que na remissão condicionada está sempre em causa a posição do DIP, cabe perguntar: qual

é a diferença entre a remissão condicionada e a devolução?

Aceitar a devolução significa que se a lei estrangeira designada pela nossa norma de conflitos não

aceitar a competência, porque o seu Direito de conflitos remete para a lei portuguesa (retorno de

competência) ou para uma terceira lei (transmissão de competência), nós vamos aplicar a lei

portuguesa ou a terceira lei.

No caso da remissão condicionada:

i. Nuns casos, a consideração do DIP estrangeiro parece limitar-se à vontade de aplicação,

já não se atendendo ao retorno de competência ou à transmissão de competência.

Manifestar-se-ia aqui uma abordagem unilateralista, que se distingue da devolução (ex:

art. 47º CC).

ii. Noutros casos, designadamente aqueles em que se prefigura um determinado resultado

material, parece que o DIP estrangeiro pode ser considerado ilimitadamente (ex: art. 31º/2

CC).

A técnica da remissão condicionada parece justificar-se principalmente em dois tipos de situações:

1) Quando se admita um desvio excecional à lei normalmente competente, que só se justifica

quando a situação esteja ligada por determinado elemento de conexão a outro Estado e a OJ

deste Estado reclame aplicação. Por exemplo, quando os interessados devam poder confiar na

aplicabilidade desta OJ (como é o caso do art. 28º/3 CC) ou quando esta OJ esteja em posição

privilegiada para impor o seu ponto de vista sobre a solução do caso (como é o caso do art.

47º CC).

2) No que diz respeito à remissão para normas ou regimes imperativos contidos numa OJ

estrangeira que não é a primariamente competente para reger a situação – este tipo de

situações diz respeito ao tema da relevância das normas imperativas de terceiros Estados.

ii) Normas de reconhecimento:

Segundo LP, as normas de reconhecimento são aquelas que estabelecem um determinado resultado

material ou que estabelecem que determinados efeitos de determinada categoria se vão produzir

na OJ do foro caso elas também se verifiquem noutro Direito estrangeiro.

É o caso das normas sobre o reconhecimento de efeitos de sentenças estrangeiras e também o caso

das normas que reconheçam situações constituídas ou consolidadas segundo uma OJ estrangeira,

mesmo que não se tenham constituído validamente segundo a lei primariamente competente por

força do nosso Direito de conflitos.

Estas normas de reconhecimento são ainda normas de remissão, porque determina a aplicação do

Direito estrangeiro ou extraestadual à produção do efeito. Mas não são simples normas de remissão,

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na ótica de LP: a norma de reconhecimento distingue-se das normas de remissão gerais porque se

reporta a um resultado material ou a uma categoria de efeitos jurídicos e porque conserva um maior

controlo sobre a solução material. Este maior controlo da solução material pode resultar de a norma

de reconhecimento se reportar a um resultado material determinado.

Quando a norma de reconhecimento se reportar a uma categoria de efeitos jurídicos (como é o caso

das normas substantivas de reconhecimento de efeitos de atos públicos estrangeiros), a consequência

jurídica que se produz na OJ do foro pode ser modelada, não sendo sempre uma pura receção de

efeitos jurídicos produzidos na OJ estrangeira. Assim, deve entender-se que no reconhecimento de

efeito de caso julgado da sentença estrangeira são excluídos certos efeitos desconhecidos da OJ do

Estado de reconhecimento.

A norma de reconhecimento pode ainda ser ou não uma norma de conexão. Assim, as normas de

reconhecimento de efeitos de atos públicos estrangeiros serão normas de conexão se condicionarem

o reconhecimento à existência de uma conexão adequada entre o Estado de origem da decisão e a

situação.

⭐ O problema da relevância das normas imperativas de Estados terceiros

De acordo com LP, as normas imperativas estrangeiras só podem ser aplicadas na OJ local por força

do título de aplicação que uma proposição vigente nesta OJ lhes conceda.

A esta luz cabe distinguir entre normas imperativas da lex causae (lei designada pelo sistema do

Direito de conflitos) e normas imperativas de terceiros ordenamentos.

As normas imperativas lex causae são, em princípio, aplicáveis no quadro do título de aplicação

conferido a essa lei pelas normas de conflitos gerais.

Mas há quem defenda que a aplicabilidade de certas categorias de normas imperativas,

designadamente as chamadas “normas de intervenção” põem em jogo “interesses conflituais

específicos”, diferentes dos que são tutelados pelas normas de conflitos gerais, devendo por isso

depender exclusivamente de normas de conflitos especiais.

Com efeito, as normas de conflitos especiais delimitam o âmbito de aplicação das normas de conflitos

gerais, o que comina na inaplicabilidade das normas imperativas da lex causae que sejam

reconduzíveis à categoria normativa prevista na norma de conflitos especiais.

Por exemplo, caso se entenda que, pelo que toca aos efeitos sobre a validade de um contrato,

são aplicáveis as normas de defesa da concorrência do Estado em que ocorram as práticas

restritivas da concorrência ou em que produzam os seus efeitos, não serão chamadas as

normas de defesa da concorrência do Direito regulador do contrato, quando não seja o do

mesmo Estado.

o Só não será assim se for configurada uma conexão cumulativa, por forma a que tais

normas imperativas sejam aplicáveis quer quando integram a lex causae quer quando

vigoram na ordem jurídica do Estado que apresenta a conexão especial com a situação.

o Este raciocínio, porém, pressupõe a vigência de uma norma de conflitos especial ou

a possibilidade de o intérprete introduzir um desvio às normas de conflitos gerais

mediante a criação de uma solução ad hoc.

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Outra dificuldade quanto à aplicação de normas imperativas da lex causae surge quando estas normas

forem “autolimitadas”, excluindo a sua aplicação à situação que são chamadas a aplicar. Esta

dificuldade deve resolver-se segundo duas regras:

1) Se a negação de aplicabilidade da norma não põe em causa a competência da OJ a que pertence

a “autolimitação”, deve ser respeitada. Na maioria dos casos a norma “autolimitada” é uma

norma especial. A negação da sua aplicabilidade significa apenas que serão aplicáveis apenas

as outras normas da lex causae que forem reconduzíveis à categoria normativa prevista na

norma de conflitos geral.

2) Se a negação de aplicabilidade da norma põe em causa a competência da OJ a que pertence, a

“autolimitação” só poderá relevar no quadro das regras sobre devolução.

Quanto às normas imperativas de terceiros ordenamentos, coloca-se a questão de saber se a OJ local

lhes confere um título de aplicação mediante proposições jurídicas especiais ou se, de outro modo,

permite a sua tomada em consideração.

O art. 9º/3 Reg. Roma I contém uma norma relevante nesta matéria, mas que permite apenas dar

prevalência às normas de aplicação imediata do país da execução do contrato, na medida em que

segundo essas normas a execução do contrato seja ilegal.

Este preceito só confere relevância às normas imperativas de terceiro Estado que sejam de aplicação

necessária. Se as normas imperativas do terceiro Estado forem aplicáveis a título de Direito regulador

do contrato, estes preceitos não lhes conferem relevância.

LP não concorda com este entendimento: por que razão se há de tratar diferentemente as normas

imperativas de terceiros Estados, que apresentam uma ligação significativa com a situação, conforme

na OJ estrangeira sejam ou não encaradas como “normas de aplicação necessária”?

Segundo o autor, a distinção conduzirá, designadamente, a que normas imperativas de conteúdo e

finalidades semelhantes e que são consideradas aplicáveis no caso pelo DIPrivado do sistema de onde

promanam sejam tratadas de modo diferente, consoante a sua aplicação dependa ou não, segundo o

mesmo DIPrivado, de integrarem o estatuto obrigacional.

Por conseguinte, o problema dirá respeito à relevância de quaisquer normas imperativas

estrangeiras, que não estejam integradas na OJ competente segundo o Direito de conflitos geral.

⇒ Principais teses sobre a relevância das normas imperativas estrangeiras:

1) Teoria do estatuto obrigacional

Segundo este entendimento tradicional, as normas imperativas estrangeiras só serão aplicadas

quando integrarem a lex causae. Normas de terceiros ordenamentos só poderão relevar enquanto

pressupostos de facto de normas da lex causae.

Na opinião de LIMA PINHEIRO:

i. Esta teoria promove a harmonia internacional entre a ordem jurídica do foro e a lei

primariamente aplicável à situação, que é aquela que apresenta ligação mais significativa

com a situação considerada no seu conjunto;

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ii. Evita o cúmulo de normas imperativas de diferentes Estados;

iii. Contudo, não tem em conta o bem comum universal, que postula uma determinada

relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos que prossigam finalidades

relevantes para a OJ do foro ou amplamente acolhidas na comunidade internacional;

iv. Também não tem em conta a harmonia internacional com outros ordenamentos que

podem ter uma conexão significativa com o caso;

v. E também não considera as exigências que podem decorrer da cooperação entre EM da

UE;

vi. Levada às últimas consequências, esta teoria impediria qualquer desenvolvimento e

aperfeiçoamento do sistema pela jurisprudência e pela ciência jurídica – estaria vedado o

desenvolvimento de normas de conflitos especiais ou de cláusulas gerais, com caráter

bilateral.

2) Teoria da conexão especial

Entre nós têm sido defendidas conceções próximas da original, designadamente por MARQUES DOS

SANTOS, que partindo da ideia básica de reconhecimento no Estado do foro da vontade de aplicação

das normas de aplicação imediata estrangeira propôs a adoção de uma “regra de reconhecimento”

que dê um título e legitime a relevância, no Estado do foro, de tais regras, de acordo com as condições

e dentro dos limites fixados por este último Estado.

o Como limites ao reconhecimento, MS refere:

i. A exclusão de pretensões de aplicação exorbitantes;

ii. Normas que colidam com interesses do Estado do foro;

iii. Normas com interesses afins aos do Estado do foro.

Na opinião de LP:

a) Esta teoria permite ter em conta a harmonia internacional com Estados terceiros que tenham

uma conexão significativa com o caso;

b) Permite também, eventualmente, ter em conta o bem comum universal, dependendo do modo

como seja entendida;

c) Permite também considerar as exigências da cooperação regional;

d) Contudo, também não é adequada:

i. Não tem suficientemente em conta a importância da harmonia com a lei

primariamente aplicável à situação por força do Direito de conflitos geral;

ii. Recorre à técnica da cláusula geral, que deixa uma larga margem de apreciação ao

intérprete, com as correlativas incerteza sobre o regime jurídico aplicável e

imprevisibilidade de soluções;

iii. Aumenta o risco de cúmulo de normas imperativas de diferentes Estados que, além

dos conflitos de deveres que podem originar, implica uma desigualdade de tratamento

das situações transnacionais e uma indesejável restrição da autonomia privada nestas

situações.

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3) Tese intermédia

LIMA PINHEIRO entende que uma maior clareza, previsibilidade e adequação das soluções só pode

ser alcançada mediante uma determinação das conexões relevantes e das exigências que devem ser

postas ao conteúdo e fim das normas imperativas estrangeiras – o que aponta para o

desenvolvimento de normas de conflitos especiais.

Assim:

i) De iure condendo:

Dá preferência à criação de normas de remissão condicionada a certas categorias de normas

imperativas vigentes em Estados que apresentam determinada conexão com a situação.

A remissão será condicionada à “disposição de aplicar-se” das normas em causa, quer se trate de

normas suscetíveis de aplicação necessária ou de outras normas imperativas “que reclamam

aplicação” por força do respetivo sistema de Direito de conflitos.

Na elaboração destas normas entrarão em linha de conta não só as finalidades de política legislativa

de normas e regimes materiais individualizados, mas também o conjunto de princípios e ideias

orientadoras do DIPrivado, designadamente os princípios relativos à conformação global do sistema

e a tutela dos interesses típicos das partes.

ii) De iure constituto:

Não vigora na OJ portuguesa, na opinião de LP, qualquer regra geral sobre a relevância de normas

imperativas de terceiros ordenamentos.

Todavia, o DIPrivado português contém algumas regras relevantes em domínios específicos:

(a) A mais importante é a que consta do nº 3 do art. 9º Reg. Roma I

Este preceito converge com a posição que o autor defende de iure condendo, embora esteja redigido de

forma mais restritiva e apenas permita a relevância de “normas de aplicação imediata”. Não obstante,

parece defensável o entendimento segundo o qual abrange não só as normas de aplicação imediata

relativas à execução do contrato, mas também as que estabeleçam requisitos de validade do

conteúdo e do fim do contrato. Também é sugerido que possam ser aplicadas não só regras

imperativas proibitivas, mas também regras imperativas prescritivas que regulem as obrigações das

partes.

LP defende ainda que parece também de admitir que não exclui em absoluto a própria aplicabilidade

de normas imperativas que não pertençam à lei do lugar da execução, quando se demonstre

claramente uma lacuna no Regulamento, como parece verificar-se, por exemplo, com a incidência

sobre a validade do contrato das normas de Direito da Concorrência.

(b) Art. 23º Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

LP entende que, na falta de norma especial que dê um título de aplicação a normas imperativas de

terceiros ordenamentos, os tribunais portugueses estão, em princípio, vinculados pelo sistema de

Direito de conflitos a aplicar exclusivamente as normas imperativas da lei competente. Mas isto não

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excluirá, em absoluto, a possibilidade de se fundamentar a aplicação de normas imperativas de

terceiros ordenamentos na analogia ou em soluções especiais criadas pelo intérprete.

A criação, pelo intérprete, de soluções conflituais especiais, que atribuam um título de aplicação a

normas imperativas de terceiros Estados, deve ser orientada por diretrizes metodológicas estritas:

1) Pressupõe a revelação de uma lacuna oculta, mediante interpretação restritiva ou redução

teleológica das normas de conflitos gerais em causa;

2) Deve obedecer aos critérios estabelecidos na OJ para a sua integração.

ESTRUTURA GERAL DA NORMA DE CONFLITOS

⭐ Elementos da Norma de Conflitos

⇒ Previsão:

1) Objeto da norma de conflitos:

A previsão da norma de conflitos define os pressupostos de cuja verificação depende a sua aplicação.

Através destes pressupostos, a previsão da norma delimita o seu objeto e delimita o alcance material

da remissão. O objeto da norma de conflitos é, como referido, a situação transnacional ou um seu

aspeto.

As normas de conflitos do tipo utilizado no Direito de conflitos geral delimitam as situações da vida

através de conceitos técnico-jurídicos que atendem ao conteúdo típico e a notas funcionais. Assim,

as normas de conflitos deste tipo determinam a aplicação de certa ordem local a uma categoria de

situações ou a uma dada questão parcial, por exemplo, a capacidade ou a forma do negócio jurídico.

Os conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos são de extensão variável. Em média, esta

extensão depende do maior ou menor número de normas de conflitos que compõem o sistema: num

sistema que disponha de umas poucas normas de conflitos, os conceitos tendem a ter um alcance

muito vasto; num sistema muito especializado, o objeto de cada uma das normas tende a ser muito

mais restrito.

A extensão do objeto da norma de conflitos deve ser aquela que convenha à sua estatuição, à remissão.

Ao eleger os diferentes elementos de conexão, o legislador tem em vista aqueles que, em função da

especificidade das diferentes categorias de situações ou dos seus diferentes aspetos, são os mais

adequados para designar o Direito que lhes há de ser aplicado. Importa pois que a previsão de uma

norma de conflitos compreenda aquelas situações, e só aquelas, para as quais, segundo o juízo de

valor legislativo, é adequada a conexão.

Na formação dos conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos o legislador deve atender

ao Direito Comparado:

i. Por um lado, no interesse da harmonia internacional de soluções, importa ter em conta a

tendência seguida por outros Direitos de Conflitos;

ii. Por outro lado, estes conceitos devem tanto quanto possível abranger a generalidade dos

institutos jurídicos, incluindo institutos jurídicos desconhecidos do ordenamento do foro.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Já se falou em normas unilaterais ad hoc, que se reportam à aplicação do Direito material unificado ou

de determinadas normas ou leis de fonte interna: estas normas também têm por objeto situações da

vida, ou aspetos de situações da vida. A principal diferença relativamente às normas de conflitos do

tipo anteriormente referido decorre de a delimitação destas situações da vida ser feita, no caso das

normas de conexão do Direito material unificado, por normas sobre o domínio material de

aplicação da Convenção e, no caso de outras normas de conexão ad hoc, pela previsão da norma

material cuja aplicabilidade está em causa.

Uma parte das Convenções de unificação do Direito de conflitos também utiliza, na previsão das suas

normas de conflitos, conceitos técnico-jurídicos que se reportam a categorias de situações jurídicas e

a questões parciais. Noutras Convenções, porém, manifesta-se uma preferência por conceitos

eminentemente fáticos, que procuram evitar as dificuldades suscitadas pelos conceitos técnico-

jurídicos e preservar a unidade funcional entre normas e regimes de diferentes ramos do Direito. A

preferência por conceitos funcionais deste tipo é manifestada por alguns autores, mas dificilmente se

poderia generalizar a todas as matérias.

Os conceitos utilizados na previsão da norma de conflitos não desempenham apenas a função de

delimitar o objeto da norma. Eles também delimitam o alcance material da remissão operada pela

norma, na medida em que a norma de conflitos só chama à aplicação as normas e princípios materiais

que sejam reconduzíveis a esses conceitos (art. 15º CC). Neste sentido, pode dizer-se que os conceitos

utilizados na previsão da norma de conflitos desempenham uma dupla função:

i. Delimitam o objeto da norma;

ii. Delimitam o alcance material da remissão.

2) O fenómeno do dépeçage e suas implicações:

Muitas normas de conflitos não se reportam a situações típicas globalmente consideradas mas apenas

a certos aspetos parcelares. Estas normas reportam-se a questões parciais.

Muitas normas de conexão ad hoc também se reportam só a aspetos parcelares (ex: art. 23º LCCG).

Mesmo as normas de conflitos que se reportam a categorias de relações jurídicas causam

fracionamento na regulação das situações da vida dado o cruzamento de diferentes domínios do

Direito material na disciplina de uma concreta situação da vida.

Para definir a disciplina aplicável, por exemplo, a uma relação internacional de compra e venda é

necessário atuar uma pluralidade de normas de conflitos, designadamente as relativas à substância

do contrato, à forma do contrato e aos efeitos reais. Estas normas de conflitos podem desencadear a

aplicação de uma pluralidade de Direitos a diferentes aspetos da relação.

A especialização do Direito de Conflitos acentua o fracionamento na regulação das situações

transnacionais. Este fenómeno de fracionamento das situações nacionais pelo Direito de conflitos é

geralmente designado por dépeçage, que vem realçar a função reguladora do Direito de conflitos.

A conceção savignyana de DIP favorece a ideia segundo a qual cada relação jurídica está inserida

numa determinada ordem jurídica, que é justamente aquela onde tem a sua sede. Esta ideia não

corresponde à realidade jurídico-positiva. Em regra, a globalidade da disciplina de uma concreta

relação da vida internacional só pode ser definida pela atuação de uma pluralidade de normas de

conflitos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Acresce que, por vezes, a mesma norma de conflitos admite o chamamento de mais de um Direito

para reger diferentes questões. Daí decorre que, em regra, cada relação da vida internacional é

suscetível de ser regulada mediante a remissão para uma pluralidade de Direitos.

Esta realidade jurídico-positiva exprime uma preocupação de justiça conflitual objetiva, de busca

das soluções mais adequadas à matéria a regular.

A regulação das situações transnacionais pelo Direito de conflitos não se traduz, por conseguinte, na

sua inserção numa determinada ordem jurídica, mas no estabelecimento de uma disciplina material

coerente com base numa pluralidade de remissões para diferentes Direitos. A busca de soluções

mais adequadas à matéria, que leva a uma crescente especialização de soluções, colide com outra

exigência da justiça conflitual, que é a da harmonia material. Com efeito, o dépeçage traz consigo o

risco de contradições normativas ou valorativas, ou de dessintonias, entre as proposições jurídicas

que são pedidas a diferentes ordens jurídicas; este risco é tanto menor quanto mais vasto for o alcance

da previsão da norma de conflitos.

Na formação dos conceitos que delimitam o objeto da norma este risco pode ser atenuado. É

necessário que estes conceitos respeitem, tanto quanto possível, as unidades de regulação em que

estão inseridas as normas singulares e os conjuntos normativos interdependentes.

Mesmo que se siga este caminho, porém, o risco de antinomias não pode ser evitado. A preservação

da harmonia material exige então que as normas de conflitos desempenhem uma função modeladora

do resultado material, que pode passar nomeadamente por uma adaptação.

⇒ Estatuição:

1) A estatuição da norma de conflitos:

A estatuição da norma de conflitos, a consequência jurídica que desencadeia, é tradicionalmente

identificada com a conexão. A conexão é o chamamento de um ou mais Direitos a regular a questão.

A estatuição da norma de conflitos carece de uma concretização; esta resulta da concretização do

elemento de conexão que é co-gerador da consequência jurídica concreta.

Pode todavia pensar-se que à dupla função técnico-jurídica da norma de conflitos corresponde uma

dupla consequência jurídica ou uma consequência jurídica complexa. Por um lado, a norma de

conflitos remete para um Direito. Esta remissão é geralmente feita através de uma conexão, mas como

sabemos que nem todas as normas de conflitos são normas de conexão, é preferível designar esta

primeira consequência por remissão.

Quando a remissão é feita para uma OJ estrangeira, suscita-se o problema da determinação do

alcance conflitual da remissão, i.e., a questão de saber se a remissão abrange o DIP da OJ designada.

Um segundo problema, que se coloca tanto quando a remissão é feita para o Direito estrangeiro como

quando é feita para o Direito do foro, diz respeito ao alcance material da remissão; trata-se de

determinar, no seio do Direito designado pela norma de conflitos, quais as proposições jurídico-

materiais que são chamadas por esta norma.

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Quando a remissão é feita para um Direito estrangeiro ou extraestadual, produz-se uma segunda

consequência jurídica que se traduz na atribuição de um título de aplicação ao Direito material

estrangeiro ou extraestadual.

O conjunto de proposições jurídico-materiais que são chamadas por uma norma de conflitos é

geralmente designado por estatuto. Em certos casos a palavra “estatuto” também pode designar o

conjunto de proposições jurídico-materiais que são chamadas pelas várias normas de conflitos que

regulam determinado âmbito de matérias.

Já as expressões “Direito aplicável”, “lei aplicável” ou “lex causae” são polissémicas: tanto podem

significar o mesmo que estatuto como podem abranger o DIP aplicável da OJ designada pela norma

de conflitos.

2) Modalidades de conexão em geral:

A conexão pode ser:

a) Singular, quando, em resultado, desencadeia a aplicação de um só Direito para reger a

questão. Esta conexão singular subdivide-se em:

i. Simples: a norma de conflitos designa por forma direta e imediata um único Direito

aplicável à questão (ex: art. 46º CC);

ii. Subsidiária: a norma de conflitos dispõe de uma série de elementos de conexão que

operam em ordem sucessiva, por forma a que a atuação do elemento de conexão

seguinte depende da falta de conteúdo concreto do elemento de conexão anterior (ex:

arts. 3º e 4º Reg. Roma I e 52º CC);

iii. Alternativa: a norma de conflitos contém dois ou mais elementos de conexão,

suscetíveis de designarem dois ou mais Direitos, sendo efetivamente aplicado aquele

que, no caso concreto, se mostrar mais favorável à produção de determinado efeito

jurídico (ex: art. 11º Reg. Roma I);

iv. Optativa: a norma de conflitos também dispõe de dois ou mais elementos de conexão,

suscetíveis de designarem dois ou mais Direitos, mas é agora a vontade de uma

determinada categoria de interessados que vai determinar o Direito efetivamente

aplicável. Esta modalidade de conexão é pouco frequente no Direito de Conflitos

português. Ex: art. 7º Reg. Roma II. A norma de conexão optativa pode favorecer

resultados materiais. É certo que na conexão optativa também há uma manifestação

da autonomia privada, mas há uma diferença importante com outras manifestações

da autonomia da vontade na escolha da lei aplicável: geralmente, quando se fala de

liberdade de escolha da lei aplicável, tem-se em vista um acordo entre os sujeitos de

uma relação; na conexão optativa a escolha pertence a um dos sujeitos da relação.

Esta escolha, se for feita para uma relação determinada, favorece os resultados

materiais pretendidos por um dos seus sujeitos.

b) Plural, quando, em resultado, desencadeia a aplicação de mais de um Direito para regular a

questão. Esta conexão, que não se deve confundir com a aplicação distributiva de dois

Direitos, pode assumir duas modalidades:

i. Cumulativa simples: a norma de conflitos exige, para que se produza certo efeito

jurídico, a concorrência de dois ou mais Direitos; o efeito tem de ser desencadeado ou

reconhecido simultaneamente por dois ou mais Direitos (ex: art. 33º/3 CC). A conexão

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cumulativa simples apresenta-se como simétrica relativamente à conexão alternativa.

A alternativa favorece a produção de um efeito jurídico, a cumulativa simples dificulta

a sua produção. Em certos casos, este desfavorecimento de um efeito jurídico pode ser

intencional, mas nem sempre é assim: por vezes, a conexão cumulativa simples resulta

de certos problemas específicos de regulação, sem exprimir uma valoração negativa

do legislador de DIP relativamente a determinado efeito jurídico.

ii. Cumulativa condicionante: difere da cumulativa simples porque não há uma

atribuição de competência paritária a dois ou mais Direitos. A norma de conflitos

chama um Direito como primariamente competente, mas atribui a outro sistema uma

função limitativa ou condicionante quanto à produção de certo efeito (ex: art. 60º CC).

Também a conexão condicionante pode resultar de um juízo de valor desfavorável

específicos de regulação ou na promoção da harmonia jurídica internacional. Assim, a

necessidade de conjugar estatutos, i.e., conjuntos normativos que se vão pedir a

Direitos diferentes para reger diversos aspetos de uma mesma situação, pode

frequentemente levar a conexões condicionantes. Do mesmo modo, a conexão

condicionante pode ter subjacente a preocupação de evitar a criação de situações

coxas, i.e., que não são reconhecidas num dos Estados com elas mais estreitamente

conexos.

Segundo um outro critério, as conexões podem classificar-se como:

c) Autónomas, porque a respetiva norma de conflitos dispõe de um elemento de conexão que

opera a designação do Direito aplicável;

d) Dependentes, quando é necessário recorrer a outra norma de conflitos para determinar o

Direito aplicável, porque a norma de conflitos não dispõe de um elemento de conexão

autónomo (ex: art. 11º Reg. Roma I e 40º CC).

⇒ Elemento de conexão:

1) Noção e função:

Segundo a noção tradicional, o elemento de conexão é um laço entre uma situação da vida e dado

ordenamento de um Estado soberano que se entende ser o determinante para a escolha do

ordenamento aplicável.

Esta noção tradicional suscita a LP alguma reserva: a situação da vida, enquanto realidade social,

situa-se num plano da realidade diverso do das OJ, que são realidades jurídicas. Razão por que, no

seu entender, o elemento de conexão pode consistir:

1. Num laço fático entre um dos elementos da situação da vida e um determinado lugar no

espaço que permita individualizar o Direito aí vigente (ex: lugar da situação da coisa);

2. Num vínculo ou qualidade jurídica que permita individualizar o Direito que o estabelece (ex:

nacionalidade e domicílio);

3. Numa consequência jurídica que se projeta num determinado lugar no espaço possibilitando

a individualização do Direito aí vigente (ex: lugar do efeito lesivo);

4. Num facto jurídico, tal como a designação pelas partes do Direito aplicável.

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O elemento de conexão é diferente da conexão:

O elemento de conexão individualiza o Direito a ser aplicado. O elemento de conexão

estabelece a ponte entre a situação e a ordem jurídica aplicável e tem um caráter bifrontal.

Para estabelecer a ponte tem de relacionar-se, mergulhar as suas raízes na situação da vida

em causa (ex: arts. 25º e 31º/1 CC). Por outro lado, se o elemento de conexão participa da

previsão, também aponta, individualiza, serve a estatuição. Nesta medida integra também a

estatuição. O elemento de conexão é um elemento essencial da norma de conexão.

A conexão é o chamamento de uma ou mais ordem jurídicas. A norma de conexão tem uma

estrutura tripartida (previsão/estatuição/elemento de conexão) que a distingue das restantes

normas que têm uma estrutura bipartida (previsão/estatuição). Para quem adota um conceito

restritivo de norma de conflitos, todas as normas de conflitos serão normas de conexão e,

portanto, poderá pensar que a estrutura tripartida é característica da norma de conflitos. Não

será assim para quem adote uma conceção ampla de norma de conflitos, que inclua todas as

proposições sobre a determinação do Direito aplicável. Segundo esta conceção ampla, atrás

adotada, há normas de conflitos que não são normas de conexão e que, portanto, não têm

elemento de conexão. Também há normas que contêm um elemento de conexão e que não são

normas de conflitos, como é o caso das normas de competência internacional. Estas normas

também não são normas de conexão, porque o elemento de conexão nelas contido não serve

para conectar uma situação com o Direito aplicável.

2) Classificações do elemento de conexão:

Segundo uma primeira classificação, os elementos de conexão podem ser:

1. Pessoais – referem-se às pessoas, i.e., aos sujeitos da relação. Referem-se às pessoas a

nacionalidade, o domicílio, a residência habitual e a sede da pessoa coletiva;

2. Reais – referem-se ao seu objeto ou a factos materiais:

i. Referem-se ao objeto o lugar da situação da coisa e o lugar do destino das coisas em

trânsito.

ii. Referem-se a factos materiais, designadamente, o lugar onde é praticado o delito, o

lugar da celebração de um ato e o lugar onde se desenrola um processo.

Esta classificação não é exaustiva. Uma segunda classificação atende ao modo como os elementos de

conexão realizam a sua função de designação do Direito aplicável. Esta função é realizada:

3. Por via direta – quando o elemento de conexão aponta diretamente o Direito aplicável, sem a

mediação de um preciso ponto no espaço;

4. Por via indireta – quando o elemento de conexão aponta para um determinado lugar no

espaço, como via para, indiretamente, designar como aplicável o Direito vigente nesse lugar.

Uma terceira classificação atende à estrutura do elemento de conexão. Segundo vimos, o elemento

de conexão pode consistir num laço fático, num vínculo jurídico, numa consequência jurídica e num

facto jurídico. Deste ponto de vista, também se podem classificar os elementos de conexão conforme

os conceitos designativos sejam:

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5. Descritivos (ou de facto) – a determinação do conteúdo dos conceitos descritivos baseia-se na

experiência social do intérprete e nos usos linguísticos gerais;

6. Técnico-jurídicos (ou normativos) – a determinação do conteúdo dos conceitos técnico-

jurídicos exige o recurso a outras normas ou à elaboração realizada pela ciência jurídica.

Repare-se que os conceitos técnico-jurídicos se podem reportar tanto a dados normativos,

designadamente vínculos jurídicos como a nacionalidade e factos jurídicos como a designação

pelas partes, como a dados puramente fáticos.

Esta distinção tem um alcance relativo, uma vez que a determinação do alcance dos conceitos fáticos

utilizados numa norma pode suscitar problemas de interpretação a resolver, entre outros critérios, à

luz da intenção do legislador histórico e do fim de política legislativa prosseguido com a norma.

Uma quarta classificação atente à modificabilidade temporal do conteúdo concreto do elemento de

conexão. Segundo este critério os elementos de conexão são:

7. Móveis – são os elementos de conexão cujo conteúdo concreto é suscetível de variar no tempo.

Não se devem confundir os elementos de conexão móveis com elementos cujo conteúdo

concreto pode ser modelado pelos interessados;

8. Imóveis – são os elementos de conexão cujo conteúdo é invariável no tempo. Esta categoria

de elementos de conexão tem relevância para a fraude à lei. Mas há elementos de conexão

que são imóveis apesar do seu conteúdo concreto poder ser modelado pelos interessados.

⭐ A Determinação da Remissão em Função das Circunstâncias do Caso Concreto

A determinação do Direito aplicável não resulta da concretização do elemento de conexão fixado

numa norma de conflitos, mas de critérios flexíveis que deixam uma margem de apreciação ao

intérprete.

Esta justiça do caso concreto pode ser material, “conflitual” ou mista. Os sistemas positivos de DIP,

embora consagrem certas normas de conflitos materialmente orientadas, não admitem uma escolha

do Direito aplicável exclusivamente em função do resultado material.

Já em certos casos se admite que a escolha do Direito aplicável se baseie inteiramente numa justiça

da conexão do caso concreto:

É o que se verifica no Regulamento Roma I quando, subsidiariamente, se submete o contrato

à lei do país com o qual apresente a conexão mais estreita (art. 4º/4).

Noutros casos, admite-se que sem prejuízo de considerações de tipo conflitual também possa de

algum modo ser tido em consideração o conteúdo das leis em presença.

A tendência recente para soluções individualizadoras vem a exprimir-se em proposições conflituais

de novo tipo:

o Na estrutura destas proposições conflituais não encontraremos um conceito designativo do

elemento de conexão; este é substituído por um conceito altamente indeterminado, como o

de conexão mais estreita (art. 4º/4 Reg. Roma I), Direito mais apropriado ao litígio (artigo 33.º,

n.º2 LAV 1986) ou centro dos principais interesses do devedor (arts. 3º/1 e 4º/1 Regulamento

sobre processos de insolvência).

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o Trata-se de conceitos carecidos de preenchimento valorativo, uma vez que a sua concretização

exige uma valoração conflitual e, por vezes, também uma valoração jurídico-material.

o Algumas destas proposições jurídicas poderão ser consideradas cláusulas gerais, dado que a

sua previsão, muito ampla, carece de ser preenchida com recurso a critérios valorativos.

Nestes casos, verifica-se uma elevada indeterminabilidade quer com respeito à previsão da

norma quer pelo que toca à sua estatuição. Estas cláusulas gerais distinguem-se das outras

normas de conflitos por não utilizarem na sua previsão categorias de situações jurídicas ou

de questões parciais.

o Outras normas de conflitos delimitam a sua previsão com recurso a categorias de situações

jurídicas, tais como obrigações contratuais, relações entre cônjuges e processos de insolvência,

mas utilizam conceitos indeterminados para designarem critérios gerais de conexão, tais

como a lei do país com o qual o contrato apresente uma conexão mais estreita, a lei com a qual

a vida familiar se ache mais estreitamente conexa ou a lei do país em que se situa o centro dos

principais interesses do devedor.

⇒ O critério da conexão mais estreita:

O critério da conexão mais estreita surge, no nosso Direito de Conflitos:

i. No art. 4º/4 Reg. Roma I, em matéria de contratos obrigacionais;

ii. No art. 52º/2, 2.ª parte CC, em matéria de relações entre cônjuges;

iii. No art. 60º/2, in fine CC, em matéria de adoção;

iv. No art. 52º/2 LAV, para a determinação do Direito aplicável ao mérito da causa na

arbitragem.

O conceito de conexão mais estreita é um conceito carecido de preenchimento valorativo. Trata-se,

em primeira linha, de uma valoração conflitual, que atende aos laços existentes entre a situação em

causa e a esfera social dos Estados. Esta valoração não se destina necessariamente a determinar qual

o laço mais significativo; a conexão mais estreita pode resultar de uma combinação de diferentes

laços.

Qual o peso relativo que o intérprete deve atribuir aos diferentes laços, designadamente aos laços objetivos e

subjetivos? Esse é um problema de interpretação da norma de conflitos que utiliza o conceito. É

também um problema de interpretação o de saber se, e até que ponto, podem ser levadas em conta

considerações legadas ao conteúdo dos Direitos em presença.

⇒ Cláusula de exceção:

É uma proposição que permite afastar a lei primariamente aplicável de um Estado, quando existe

uma ligação manifestamente mais estreita com outro Estado, aplicando esta última lei. Assim, nas

cláusulas de exceção a equidade conflitual intervém para corrigir a designação do Direito estadual

primariamente aplicável.

É o caso do art. 15º da Lei Suíça. Também vingou em algumas Convenções da Haia, como é o caso da

Convenção sobre a lei aplicável aos contratos de venda internacional de mercadorias.

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Podemos distinguir:

i) Cláusula geral de exceção – aplica-se na generalidade das categorias de situações

transnacionais que não sejam dela excluídas. No Direito de Conflitos português não vigora

uma cláusula geral de exceção.

Certamente que quem entenda as normas de conflitos como simples critérios instrumentais, que

podem ser afastados quando se demonstre que a conexão mais estreita se estabelece com um Direito

diferente do por elas designado, admitirá, no mínimo, a vigência de uma cláusula de exceção

implícita. Não se estranhará, por isso, que MOURA RAMOS defenda a vigência desta cláusula de

exceção, com base no princípio da proximidade e em algumas soluções particulares que, em seu

entender, constituem cláusulas de exceção fechadas.

Não é este o entendimento de LIMA PINHEIRO:

1) Considera as normas de conflitos tão vinculativas como as normas materiais.

2) O legislador de 1966 optou conscientemente por regras de conflitos de tipo tradicional que,

em geral, utilizam conceitos designativos do elemento de conexão determinados, mostrando-

se desfavorável a critérios de remissão flexíveis. A introdução por via interpretativa de uma

cláusula de exceção não se afigura compatível com a intenção do legislador histórico.

ii) Cláusulas especiais de exceção – privativas de matérias específicas.

Embora hoje vigorem na nossa OJ cláusulas de exceção especiais, em matérias bem delimitadas, não

se pode inferir daí uma cláusula geral de exceção. Antes dos Regulamentos Roma I e Roma II, era

discutível que vigorasse no Direito de Conflitos português qualquer cláusula especial de exceção.

O n.º 5 do art. 4º Convenção Roma tem sido encarado, pela doutrina dominante, como uma cláusula

de exceção, mas LP não concorda, porque resulta da conjugação dos n.º 1 e 5 do art. 4º que a lei da

conexão mais estreita é, na falta de escolha pelas partes, a conexão primária em matéria de contratos

obrigacionais.

Com os Regulamentos de Roma I e Roma II passaram a integrar o Direito de Conflitos português

diversas cláusulas especiais de exceção em matéria de contratos obrigacionais e obrigações

extracontratuais (designadamente, art. 4º/3 de ambos os Regulamentos).

De iure condendo, o Regente defende a introdução de uma cláusula geral de exceção no OJ

português, por tal ser exigível pela justiça da conexão: esta é posta em causa quando a norma

de conflitos remete para o Direito de um Estado e a situação apresenta uma ligação

manifestamente mais estreita com outro Estado.

Mas esta cláusula geral de exceção deve ser excecional, sendo apenas aplicada quando o laço com a

lei primariamente aplicável é ostensivamente fraco e o laço com a outra lei é manifestamente mais

forte.

Esta ideia é reforçada pelo crescente número de situações em que existe uma dispersão dos elementos

de conexão ou em que estes são difíceis de concretizar ou são dificilmente cognoscíveis pelos

interessados, como sucede recorrentemente nos contratos celebrados pela internet.

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A sua aplicação deve ainda ser acompanhada de certos critérios orientadores, com influência do

Código Belga:

i. Se a nossa norma de conflitos designa a Lei X, e se vamos aceitar o funcionamento da

cláusula de exceção, aplicando a Lei Y, não se está a frustrar a confiança depositada na nossa

norma de conflitos? Se a situação tem uma ligação mais estreita com o Estado Y, em

comparação com o Estado X, e se o Direito de conflitos do Estado Y considera competente

a sua lei material, aplicar essa lei não frustra a confiança; as pessoas não confiam apenas

no Direito de conflitos português, mas confiam também no Direito de conflitos do Estado

com que a situação apresenta uma conexão mais estreita.

ii. Se temos situações que se constituíram ou consolidaram de acordo com as regras de DIP

de um Estado que apresenta uma conexão significativamente mais estreita com a situação,

devemos aplicar a técnica de reconhecimento.

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS

⭐ Interpretação da Norma de Conflitos

No Direito de Conflitos português vigoram essencialmente normas de fonte supraestadual e de fonte

interna. Os critérios de interpretação aplicáveis são os que regem a interpretação de cada uma destas

categorias de fontes.

i. Relativamente às normas de fonte interna deve ter-se em conta o disposto nos arts. 8º e 9º

CC e a metodologia desenvolvida pela ciência jurídica.

ii. Quanto às normas de fonte internacional há que atender às regras próprias que se

estudam no DIPúblico e, designadamente, ao disposto no art. 31º Convenção de Viena

sobre o Direito dos Tratados.

iii. No que toca às normas de fonte europeia valem os critérios de interpretação reconhecidos

pela jurisprudência e pela doutrina europeias, em que se salientam os critérios teleológicos

que atendem às finalidades prosseguidas com os tratados instituintes e aos princípios

gerais de DUE

iv. Também podem suscitar-se problemas de interpretação de normas de conflitos

estrangeiras quando haja lugar à aplicação de DIP estrangeiro, como sucede,

designadamente, na devolução e na aplicação de normas de remissão condicionada. As

normas de conflitos estrangeiras devem ser interpretadas segundo os critérios que lhes

forem aplicáveis no sistema a que pertencem.

Os problemas de interpretação podem dizer respeito a qualquer dos elementos da norma de conflitos:

a) Com respeito aos conceitos utilizados na delimitação do objeto da remissão;

b) Quanto aos conceitos que exprimem o elemento de conexão, sobretudo quando forem

conceitos técnico-jurídicos.

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⇒ Normas de conflitos de fonte interna:

As normas de conflitos de fonte interna têm de ser interpretadas como parte do sistema jurídico

português. Na determinação do sentido e alcance dos conceitos técnico-jurídicos utilizados quer para

delimitar o objeto da remissão quer para designar o elemento de conexão há que partir do Direito

material interno, do conteúdo aí atribuído, por exemplo, a capacidade, forma, obrigações, direitos reais,

nacionalidade, etc.

Mas se a interpretação é ancorada no Direito material interno, ela não lhe está subordinada. A

especialidade do Direito de Conflitos, que tem de lidar com OJ estrangeiras e, por vezes, com Direito

extra-estadual, obriga a que a interpretação dos conceitos da norma de conflitos tenha em conta os

fins próprios do DIP. Daí decorre que se possa atribuir a estes conceitos um sentido e alcance

diferente do dos conceitos homólogos do Direito material interno.

A interpretação da norma de conflitos é, por isso, uma interpretação autónoma relativamente ao

Direito material interno.

⇒ Normas de conflitos de fonte supraestadual:

Quanto às normas de conflitos de fonte supraestadual, temos especialmente as que constam de

Convenções Internacionais de unificação do Direito de Conflitos e de Regulamentos europeus:

i. No caso das normas de conflitos convencionais, decorre do sentido e do fim das

Convenções de unificação do Direito de Conflitos que a interpretação da norma de

conflitos tem de ser autónoma relativamente às OJ nacionais individualmente

consideradas e assentar numa comparação de Direitos. Só desta forma se pode promover

a uniformidade de interpretação das normas convencionais pelas diferentes jurisdições

nacionais. A Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais contém

no seu art. 18º um preceito sobre interpretação, inspirado no n.º 1 do art. 7º da Convenção

das Nações Unidas sobre Venda Internacional de Mercadorias. Naturalmente que nesta

interpretação deverão ser tidos ainda em conta os fins do DIP que estão subjacentes ao

Direito de Conflitos unificado, bem como os fins gerais do DIP comuns aos sistemas

dos Estados contratantes.

ii. Também a interpretação das normas de conflitos contidas em Regulamentos da União

Europeia deve ser autónoma. Isto significa que não deve ser feita referência ao Direito de

um EM em presença, mas antes ter em conta o contexto da disposição e o objeto

prosseguido pelas normas e causa e a conformidade com os direitos fundamentais

protegidos pela OJ comunitária ou com outros princípios gerais do Direito

Comunitário. Tratando-se de Convenções que estão ligadas à União Europeia ou de

regulamentos da União Europeia justifica-se, a par de outros critérios de interpretação

relevantes, o recurso a uma interpretação comparativa que atenda aos princípios gerais

que resultam do conjunto das ordens jurídicas dos Estados Membros. Na falta de

concordância geral seria defensável que se atendesse às soluções reconhecidas nos Estados

Membros mais interessados, mas o TJUE e a doutrina tendem a ter em conta as soluções

reconhecidas na maioria dos Estados Membros.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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⭐ A Integração de Lacunas no Direito de Conflitos

Podemos dizer que há uma lacuna da lei no Direito de Conflitos quando não encontramos uma norma

de conflitos de fonte legal que indique a lei reguladora de determinada situação transnacional que,

segundo o sentido regulador do sistema, deve estar submetida ao regime especial constituído pelo

Direito de Conflitos.

O problema em causa coloca-se de maneira muito diferente consoante tenhamos um sistema não

codificado ou um sistema codificado (que se verifica hoje na OJ portuguesa):

i. Aparentemente, perante um sistema codificado as lacunas seriam raras. Sucede, porém,

que a lacuna pode não ser patente, mas oculta, que se descobre mediante a interpretação

restritiva ou a redução teleológica de uma norma de conflitos existente.

Afirma-se frequentemente que as lacunas de DIP são necessariamente patentes (BAPTISTA

MACHADO e MOURA RAMOS): quer-se com isto significar que, perante a falta de uma norma de

conflitos aplicável a uma situação transnacional, surge necessariamente uma lacuna, sendo de

excluir que a situação deva ser regulada por uma aplicação direta do Direito material interno.

É ponto controverso; LIMA PINHEIRO entende que o Direito material de um Estado não tem, em

princípio, uma vocação de aplicação universal que justifique a sua aplicação direta a situações

transnacionais e que a função reguladora do Direito de Conflitos abrange potencialmente todas as

situações transnacionais. Pelo menos à face do sistema português de Direito dos Conflitos, pode

assentar-se que todas as situações transnacionais carecidas de regulação jurídica colocam um

problema de determinação do Direito aplicável. Na falta de normas de conflitos que resolva o

problema surge necessariamente uma lacuna que deve ser integrada por uma solução conflitual.

Mas isto não significa que não possa haver lacunas ocultas: pode suceder que uma situação

transnacional se encontre à primeira vista abrangida pela previsão de uma norma de conflitos, mas

que por via de uma interpretação restritiva ou de uma redução teleológica se venha a concluir que

existe uma lacuna. Isto é particularmente importante em ligação com os temas das normas suscetíveis

de aplicação necessária do foro e da relevância de normas imperativas de terceiros Estados.

Na integração da lacuna, devem ter-se em conta os critérios referidos no art. 10º CC e a metodologia

desenvolvida pela ciência jurídica:

Em primeiro lugar, deve recorrer-se à norma aplicável a caso análogo (analogia legis). Suscita

alguma dificuldade a distinção entre a interpretação dos conceitos utilizados na previsão de

uma norma de conflitos e a aplicação analógica da norma. E isto porque o conteúdo destes

conceitos é, em elevado grau, determinado teleologicamente. Daí que alguns autores, como

BAPTISTA MACHADO e MOURA RAMOS, entendam que o raciocínio por analogia

intervém no próprio plano da interpretação da norma de conflitos, por forma que a norma

de conflitos é diretamente aplicável a todos os casos análogos. De onde resultaria que a

analogia legis não constitui um processo de integração de lacunas em DIP.

LIMA PINHEIRO não segue este ponto de vista, entendendo antes que a fronteira entre

interpretação e aplicação analógica é ainda aqui traçada em função do sentido literal

possível da proposição jurídica. Uma extensão do âmbito de aplicação da norma ou uma

redução deste âmbito que vá além ou fique aquém do sentido literal possível não é

interpretação mas, respetivamente, aplicação analógica e redução teleológica.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Na falta de norma aplicável a um caso análogo, a solução do caso deve ser obtida mediante

uma concretização dos princípios e ideias orientadoras do Direito de Conflitos (analogia

iuris). Também aqui LIMA PINHEIRO diverge de BAPTISTA MACHADO, quando este

entende que o conjunto das normas de DIP vigentes num dado ordenamento não dá vida a

um sistema jurídico dominado por princípios gerais específicos aptos a colmatarem lacunas.

Assinale-se ainda que este processo de integração de lacunas tem grande afinidade com a

metodologia a seguir na aplicação das normas que utilizam critérios gerais de conexão.

Não sendo possível integrar a lacuna por um dos processos anteriores, caberá ao intérprete

criar um critério de decisão dentro do espírito do sistema. Na formulação do critério de

decisão o intérprete tem de respeitar os valores e os princípios do DIP, sem que, porém, a

solução decorra da concretização destes valores e princípios. A solução tem de ser compatível

com o sistema. Acrescente-se que o intérprete tem de formular o critério de decisão sob a

forma de uma proposição geral e abstrata, de uma regra de conflitos, que seja suscetível de

ser seguida em casos semelhantes.

Embora o costume interno não seja uma fonte importante de DIP português, importa ainda

observar que as lacunas do Direito de Conflitos de fonte legal podem ser integradas pelo

costume praeter legem e que, por conseguinte, só haverá lugar para o recurso aos processos

de integração atrás referidos na falta de norma de conflitos de fonte consuetudinária que

seja aplicável.

⭐ Aplicação no Tempo e no Espaço das Normas de Conflitos

Afirma-se frequentemente que todo o Direito estadual é situado no tempo e no espaço. O Direito

estadual é relativo no espaço (havendo pluralidade de sistemas) e no tempo (dada a mutabilidade

das OJ).

Mas esta afirmação é geralmente pensada para as normas materiais de conduta: poderá ela ser

transposta para o Direito de Conflitos? Uma primeira questão que se suscita é a de saber se as normas

de conflito serão normas de conduta, i.e., se têm por missão orientar a atuação dos sujeitos jurídicos.

Existe uma controvérsia quanto à determinação dos principais destinatários das normas de

conflitos:

i) Para a Escola de Coimbra, designadamente FERRER CORREIA e BAPTISTA

MACHADO, as normas de conflitos têm por principais destinatários os tribunais e não os

particulares; são normas que teriam por principal escopo resolver um conflito de leis, i.e.,

eliminar uma situação de concorrência ou de concurso entre preceitos materiais

procedentes de ordenamentos distintos. Segundo esta doutrina, a norma de conflitos em

sentido estrito, enquanto norma que tem por função específica resolver um concurso de

leis, tem um âmbito de aplicação ilimitado no espaço e no tempo, e é de aplicação

imediata. No entanto, estes autores admitem que a norma de conflitos pode eventual e

indiretamente operar como norma de conduta quando a lex fori for uma das leis

interessadas, i.e., quando há uma conexão entre a situação da lei do foro. Enquanto norma

agendi, a norma de conflitos tem o âmbito de aplicabilidade limitado pela existência de

uma conexão espacial e temporal; com efeito, as partes só podem ter orientado a sua

atuação pelo Direito de Conflitos do foro se no momento da conduta havia um laço

significativo entre a situação e o Estado do foro. Mas para esta doutrina, a existência de

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um laço com o Estado do foro não é um pressuposto de aplicação no espaço do Direito

de Conflitos. O ponto de partida é antes o oposto: em regra, as normas de conflitos são de

aplicação universal e são de aplicação imediata às situações que no momento da

constituição não apresentavam conexão com o Estado do foro. A escola de Coimbra

modera as consequências deste entendimento mediante o recurso à doutrina dos direitos

adquiridos (BAPTISTA MACHADO) ou de um sistema e conexões alternativas (FERRER

CORREIA).

ii) De acordo com LIMA PINHEIRO, as normas de conflitos são normas de regulação

indireta e que, por regra, têm por função orientar a conduta dos sujeitos jurídicos. Só

excecionalmente as normas de conflitos são aplicadas como meros critérios de decisão.

Quando se coloca a questão da regulação de uma situação face ao Direito de Conflitos

português, há normalmente algum laço com o Estado português. Isto é claro quando

pensamos nos casos submetidos a tribunais portugueses: a competência internacional

pressupõe uma ligação, por ténue ou indireta que seja, da situação com o Estado do foro.

Normalmente há mais do que uma ligação ténue ou indireta, há uma ligação significativa.

Do reconhecimento de uma função reguladora à norma de conflitos hão de advir

consequências para as questões sobre a aplicação no tempo e a aplicação no espaço do

Direito de Conflitos: designadamente, não há razão para a priori considerar que as normas

de conflitos portuguesas sejam, no tempo, de aplicação imediata e que, no espaço,

reclamem uma esfera de aplicação universal.

⇒ Aplicação no tempo do Direito de Conflitos:

O início e termo da vigência das normas de conflitos não suscita dificuldades especiais, resolvendo-

se por aplicação das regras gerais, designadamente as da vacatio legis.

O problema que aqui interessa examinar é o da sucessão no tempo das normas de conflitos. Este

problema coloca-se quando muda a regulação conflitual de uma situação transnacional.

Qual a norma de conflitos aplicável? Trata-se de determinar se a situação transnacional a regular está

submetida à norma de conflitos antiga ou à norma de conflitos nova, ou de distinguir os aspetos das

situações que continuam a ser regidos pela norma de conflitos antiga daqueles que passam a ser

regulados pela norma de conflitos nova.

Quanto às situações jurídicas que são em parte regidas pela lei antiga e em parte pela lei nova

torna-se ainda necessário coordenar as duas leis por forma a fornecer uma regulação coerente e a

evitar que, sem justificação suficiente, se comprometa a continuidade das situações.

Não deve, assim, confundir-se a questão da aplicação no tempo das normas de conflitos com o

problema da sucessão no tempo das normas materiais do Direito aplicável.

⇒ Solução:

O problema pode ser resolvido pelo legislador por meio de normas transitórias que disponham

expressamente sobre a aplicação no tempo do Direito de Conflitos.

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Na omissão do legislador, deve recorrer-se ao Direito Intertemporal da OJ em que estão integradas

as normas de conflitos em causa – esta é a tese dominante na Alemanha e em França, defendida, entre

nós, por ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO e seguida pelo STJ e pelo TC.

o Este entendimento foi contestado por autores que defenderam a aplicação imediata do novo

Direito de Conflitos:

a. BATISTA MACHADO entende que a norma de conflitos não tem uma função reguladora

de situações transnacionais e, por isso, não constitui uma norma de conduta, não havendo

razão para a intervenção do princípio da retroatividade. Restringe, contudo, esta solução

aos casos em que se trata de relações constituídas no estrangeiro sem conexão com o

Direito do foro e modera as suas consequências com base na doutrina dos direitos

adquiridos.

b. FERRER CORREIA admite que, se a situação foi constituída no Estado do foro ou num

momento em que existia uma conexão relevante com o Estado do foro, deve aplicar-se a

regra de conflitos antiga, sob pena de retroatividade.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, o legislador pode formular regras especiais de Direito Intertemporal

sobre a sucessão no tempo das normas de conflitos; tais regras, porém, não existem no Direito de

fonte interna. Por conseguinte, são em princípio aplicáveis as regras gerais contidas nos arts. 12º e

13º CC:

i. O art. 12º CC consagra a doutrina do facto passado: a valoração jurídica dos factos

ocorridos na vigência da lei antiga não é, em princípio, prejudicada pela lei nova.

ii. A existência destas regras gerais não obsta, contudo, a que o legislador adote normas

especiais de Direito transitório, e também não significa que, na omissão do legislador, a

doutrina e a jurisprudência não possam desenvolver soluções adequadas às

especificidades dos diferentes complexos normativos, dentro de certos parâmetros: em

princípio, também se aplicam as regras especiais de Direito Transitório sobre a aplicação

no tempo de certo diploma legal que contenha normas de conflitos.

iii. Mas pode suceder que um diploma legal, contendo normas materiais e normas de

conflitos, só inclua regras especiais de Direito Transitório relativamente às suas normas

materiais. Neste caso, a aplicação às normas de conflitos de regras especiais de Direito

Transitório que se reportem apenas a normas materiais tem de se fundamentar em

analogia.

iv. A menos que os comandos da lei fundamental reclamem aplicação retroativa, o que, em

princípio, não se verifica, não há que estender o império da lei fundamental a factos

passados.

v. Por outro lado, os problemas de sucessão no tempo das normas de conflitos têm sempre

de ser examinados à luz da sucessão de sistemas materiais por ela desencadeada: a

aplicação da norma de conflitos antiga é imposta pelo princípio da continuidade das

situações jurídicas, que é um princípio fundamental de Direito Intertemporal – esta

doutrina foi acolhida pelo TC, no seu Ac. n.º 90/03, 14 fevereiro 2003, bem como pelo STJ

no seu Ac. de 12/9/2006.

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⇒ Aplicação no espaço do Direito de Conflitos:

Cada OJ tem o seu próprio DIP. Os progressos realizados na unificação do Direito de Conflitos e do

regime de reconhecimento de decisões estrangeiras não eliminaram as divergências entre os sistemas

nacionais de DIP.

Ora, nos casos em que não há harmonia entre os sistemas nacionais em presença quanto à

determinação do Direito aplicável a uma situação transnacional, fala-se em conflitos de sistemas de

DIP. A divergência entre sistemas nacionais de Direito Internacional Privado, designadamente a

utilização de elementos de conexão diferentes, podem conduzir a dois resultados diversos:

1. Se a atuação dos dois ou mais sistemas conduz à competência de dois Direitos para regular a

mesma situação, temos um conflito positivo;

2. Se nenhum dos Direitos em presença reclama aplicação, temos um conflito negativo.

Os conflitos de sistemas de DIP podem levar à existência de situações coxas. Por exemplo, suponha-se

que a capacidade matrimonial é regida no Estado X pela lei da nacionalidade e no Estado Y pela lei

da residência habitual; um casamento celebrado por dois nacionais do Estado X, no Estado Y da sua

residência habitual, pode ser válido perante o sistema jurídico do Estado da residência habitual, mas

inválido perante o sistema jurídico do Estado da nacionalidade.

Os conflitos de sistemas também podem conduzir a conflitos de deveres, quando dois ou mais

Direitos que se consideram aplicáveis à situação impõem a um sujeito obrigações de conduta

diferentes e inconciliáveis entre si.

O atual DIP não é alheio a estes problemas:

i) Em alguns casos, o DIP de um Estado permite tomar em consideração o Direito de

Conflitos estrangeiro:

a. O instituto da devolução, nomeadamente, relaciona-se com o conflito negativo de

sistemas.

b. O princípio da maior proximidade opera em casos de conflito positivo (ex: art. 47º

CC).

c. O problema da questão prévia tanto pode relacionar-se com um conflito negativo

como com um conflito positivo.

Mas num momento logicamente anterior ao da resolução dos problemas suscitados pelos conflitos de

sistemas de DIP, coloca-se o problema da aplicação no espaço de cada sistema de DIP: pergunta-se

agora:

1) O Direito de Conflitos vigente numa OJ estadual regula todas as situações transnacionais que ocorram

no mundo, quaisquer que sejam os seus laços com o Estado do foro, e mesmo que não haja qualquer

conexão entre a situação e o Estado do foro?

2) Ou existem certos limites à sua esfera de aplicação no espaço?

Por outras palavras: este Direito de Conflitos tem validade universal?

Alguns autores entendem que a esfera de aplicação do Direito de Conflitos de um Estado é

limitada casos em que são internacionalmente competentes os respetivos órgãos de aplicação

do Direito. Por isso haveria coincidência entre a competência dos tribunais de um Estado e a

aplicabilidade do seu Direito de Conflitos. Esta tese foi atrás refutada.

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Rejeitada a coincidência necessária entre a competência internacional e o Direito de Conflitos

aplicável, coloca-se a questão de saber se os órgãos de aplicação do Direito de um Estado devem

aplicar, em certos casos, em lugar do Direito de Conflitos do foro, Direito de Conflitos estrangeiro.

Note-se que a questão é colocada exclusivamente com respeito à regulação conflitual de situações

transnacionais na esfera estadual.

E quanto ao Direito Internacional de Conflitos, que opera a regulação das relações transnacionais na OJ

internacional? O Direito Internacional de Conflitos também pode ter limites à aplicação no espaço,

designadamente quando for de fonte convencional. Estes limites decorrem das normas sobre

aplicação no espaço da Convenção que o contém. Mas também pode ser de aplicação universal, como

sucede quando se trate de regras ou princípios conflituais de DIPúblico geral.

Na exposição que se segue refere-se exclusivamente quanto ao Direito de Conflitos que regula

situações que só relevam na OJ estadual.

São duas as conceções tradicionais nesta matéria:

1. Alcance universal e territorialismo quanto aos órgãos de aplicação do Direito de Conflitos

– toda e qualquer designação da lei competente para regular uma situação transnacional passa

exclusivamente pelo Direito de Conflitos do foro. Associa caráter universal e territorialismo

quanto aos órgãos de aplicação: as normas de conflitos de uma ordem estadual são as únicas

que podem ser aplicadas pelos órgãos do respetivo Estado. O fundamento desta posição

encontram-no uns na função internacional exercida pelo legislador estadual de DIP e outros

no alegado caráter público das normas de conflitos. Não importam as divergências com

outros Direitos de Conflitos estaduais e, designadamente, a existência de situações

constituídas com base em Direitos diferentes dos designados pela norma de conflitos do foro

e que se considerem competentes. Para quem aceite que o Direito de Conflitos Internacional

Privado tem uma função reguladora de relações transnacionais e é fundamentalmente Direito

Privado, esta tese é privada do seu fundamento. O objeto, função e natureza da norma de

conflitos não obstam à existência de limites à sua aplicação no espaço como também não

obstam a que uma norma da ordem jurídica do foro atribua relevância ao Direito de Conflitos

estrangeiro;

2. Limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos direitos adquiridos – para a escola de

PILLET, que contou com MACHADO VILLELA como um dos seus continuadores, o conflito

de leis e o reconhecimento dos direitos adquiridos são problemas perfeitamente distintos:

i. O problema dos conflitos de leis suscita-se quando no momento da constituição de

uma situação é necessário escolher entre várias leis em contacto com os factos

constitutivos.

ii. O respeito internacional dos direitos adquiridos concerne ao efeito no estrangeiro de

um direito subjetivo regularmente adquirido. Quando os factos constitutivos, ao

tempo da sua verificação, estavam todos em contacto com um só país, surgiria um

problema de reconhecimento da situação. Isto é, porém, contestado. O problema do

reconhecimento de uma situação que se constitui exclusivamente em contacto com um

Estado só se coloca quando a situação entra em contacto com outros Estados; a partir

do momento em que a situação está em contacto com vários Estados coloca-se um

problema de determinação do Direito aplicável.

O órgão de aplicação terá de determinar o Direito aplicável à constituição da situação. Só

depois de aplicada a lei competente pode afirmar-se que há um direito adquirido.

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Resta saber se as proposições sobre a determinação da lei competente aplicáveis nestas

hipóteses serão as normas de conflitos gerais ou se atuarão aqui normas ou princípios

especiais:

a) Para FERRER CORREIA, há uma lacuna no sistema jurídico do foro, lacuna que se deve

preencher com a formulação de uma norma específica que determine a aplicação da lei

estrangeira da qual a relação sub iudice exclusivamente dependa.

Com respeito à regulação das situações transnacionais, a doutrina de PILLET não introduz

qualquer limitação à esfera de aplicação no espaço do Direito de Conflitos: quando a situação

se constitui em contacto com vários Estados, não se pode colocar o respeito dos direitos como

limite ao Direito de Conflitos. Tem de se saber com base em que OJ é adquirido o direito: o

Direito é sempre adquirido à sombra de determinada lei; para o efeito, é necessário escolher a

lei aplicável.

Daí que a doutrina dos direitos adquiridos esbarre com a objeção do círculo vicioso. Uma

forma de evitar esta objeção é a adoção de uma perspetiva unilateralista: será aplicável toda

a OJ que se considere aplicável e que constitui um direito subjetivo.

Mas contra esta variante da doutrina dos direitos adquiridos procede agora a objeção, já

oposta ao unilateralismo, segundo a qual em caso de conflito positivo o órgão de aplicação

tem de escolher entre as leis em conflito.

Enfim, a teoria parece supor que em todos os conflitos de leis está em causa um direito,

quando na verdade também entram em jogo expectativas jurídicas, interesses legalmente

protegidos e requisitos de validade de negócios jurídicos.

3. Novas doutrinas dos direitos adquiridos – estas doutrinas são dominadas pela ideia de

autolimitação geral da esfera de aplicação no espaço dos sistemas nacionais de Direito de

Conflitos. O que distingue as normas de referência ao ordenamento competente das normas

de conflitos gerais é a circunstância de o ordenamento referido ser considerado em bloco,

incluindo as normas sobre competência internacional e sobre reconhecimento de efeitos de

sentenças estrangeiras e de outros atos públicos. A delimitação do campo de aplicação destes

dois tipos de normas deve orientar-se segundo a proximidade destas situações em relação ao

ordenamento do foro. As situações jurídicas mais próximas deverão ser valoradas mediante

uma técnica internacionalprivatística de referência ao Direito aplicável, as situações

predominantemente estrangeiras mediante a técnica da referência ao ordenamento

competente.

A criação de situações estrangeiras no país do foro depende da suscetibilidade do seu

reconhecimento no ordenamento para que remete a norma de referência ao ordenamento

competente. As situações estrangeiras criadas no estrangeiro serão reconhecidas automaticamente

no ordenamento do foro caso sejam válidas e eficazes no ordenamento para que remete a norma de

referência ao ordenamento competente. Serão situações estrangeiras aquelas em que o elemento de

conexão individualiza um ordenamento estrangeiro, ou, mais restritivamente aquelas em que se

verifique um elemento de estraneidade adicional.

Na ótica de LIMA PINHEIRO:

1) É certo que a norma de conflitos, como norma de regulação indireta, não tem a pretensão de

regular todas as situações transnacionais que se verifiquem no mundo. Mas as construções

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que se acabam de expor têm uma visão demasiado abstrata do problema que, em sua opinião,

não propicia a obtenção das soluções mais adequadas.

2) É concebível que um sistema jurídico estabeleça um regime especial para as situações que se

constituem sem qualquer contacto ou sem um contacto significativo com o Estado do foro,

excluindo a aplicação das normas de conflitos gerais. Este regime especial pode consistir,

designadamente, numa remissão global para os sistemas de DIP dos Estados que apresentam

um laço significativo com a situação no momento relevante. Mas esta via mostra-se

desnecessária para um sistema de DIP que admita a devolução: se todas as leis estrangeiras

interessadas estiverem de acordo na aplicação da lei com base no qual a situação se constitui,

a devolução permite solucionar o problema, o órgão de aplicação do Direito português irá

sempre aplicar esta lei.

3) Se a devolução não permite resolver o problema é porque não há harmonia entre as leis

estrangeiras em presença. Neste caso é irrenunciável a escolha pelo Direito de Conflitos do

foro.

4) Estas teses apresentam ainda as desvantagens anteriormente assinaladas com respeito a uma

visão unilateralista da teoria dos direitos adquiridos.

5) Como assinala FERRER CORREIA, dificilmente se concebe o reconhecimento de direitos

adquiridos no estrangeiro sem um controlo, pelo DIP do foro, do título de competência da OJ

ao abrigo da qual se constitui a situação; sem uma valoração, pelo Direito do foro, da

relevância da conexão existente entre a situação e essa OJ.

6) A partir do momento em que a relevância da lei com base na qual determinada situação se

constitui dependa da verificação da conexão definida por uma norma de DIP do foro, será

equívoco entender o princípio de reconhecimento dos direitos adquiridos como um limite ao

Direito de Conflitos, uma vez que se trata afinal da limitação de uma norma de conflitos geral

por outra norma de conexão do foro.

7) Para ultrapassar esta dificuldade, MOURA RAMOS defendeu que devem ser reconhecidos no

Estado do foro os direitos ou situações jurídicas que no estrangeiro produziram os seus efeitos

típicos, à luz de um sistema legal que apresente, na ótica do DIP do foro, uma conexão

suficientemente forte com a situação da vida a regular, e se repute aplicável, quer de um outro

a quem o primeiro considere competente.

8) Mas estas soluções trazem consigo as incertezas e dificuldade que normalmente acompanham

a renúncia a normas de conflitos com elemento de conexão determinado: se mediante o

recurso às soluções geralmente reconhecidas fosse possível chegar a um resultado mais

previsível para as partes que aquele a que se chegaria por aplicação da norma de conflitos

geral do Estado do foro, tais incertezas e dificuldades poderiam ser contrabalançadas. Mas é

justamente naquelas matérias em que há desacordo entre os sistemas em presença que é

mais difícil encontrar soluções geralmente reconhecidas.

9) Toda a norma de conexão procura ir ao encontro da inserção social e económica da situação

da vida num determinado sistema jurídico.

Enfim, a tutela da confiança justificada é uma consideração com grande peso no reconhecimento de

determinadas situações, mas a justificação da confiança, em caso de divergência dos Direitos de

Conflitos dos Estados envolvidos, pressupõe a constituição ou consolidação da situação perante a

OJ de um Estado que apresenta uma ligação especialmente significativa com a situação. Da

articulação da tutela da confiança com os valores da certeza e previsibilidade decorre que esta ligação

especialmente significativa deve ser determinada pelo legislador.

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Na UE, um setor da doutrina, invocando as liberdades de circulação e o direito de estabelecimento

consagradas nos Tratados instituintes, e certa jurisprudência TCE/TJUE, sobretudo a partir de 1999,

tem defendido uma técnica de reconhecimento que se inspira, pelo menos até certo ponto, na teoria

dos direitos adquiridos. No entender de LIMA PINHEIRO, esta técnica de reconhecimento não é

imposta pelo Direito europeu originário; por conseguinte, o papel que a técnica de reconhecimento

deve desempenhar no DIP depende inteiramente dos valores e princípios que o inspiram.

⇒ Posição adotada por LIMA PINHEIRO:

O núcleo de verdade comum às diferentes teorias dos direitos adquiridos parece estar a necessidade

de, em certos casos, tutelar a confiança depositada pelas partes na existência de situações que se

constituíram ou consolidaram perante a OJ de um Estado que apresenta um laço particularmente

significativo com a situação, embora não seja o Direito considerado competente por aplicação do

sistema conflitual do foro.

Mas as teorias dos direitos adquiridos não são a resposta mais adequada para esta preocupação:

i. Ao falarmos de aplicação no espaço do Direito de Conflitos poderemos ter em vista o DIP

no seu conjunto ou apenas as normas de conflitos.

É óbvio que um sistema de DIP pode conter regras que limitem a aplicação no espaço de normas de

conflitos gerais e (ou) que deem relevância na ordem interna ao Direito de Conflitos estrangeiro; são

técnicas de que o DIP pode lançar mão para a realização dos seus fins na regulação das situações

transnacionais. Se uma norma especial de DIP limita a aplicação no espaço de uma norma de conflitos

geral, não há um limite à aplicação no espaço do sistema estadual de DIP.

ii. A aplicação de DIP estrangeiro por força do Direito Internacional do foro tanto pode estar

ligada à limitação da esfera espacial de aplicação de uma norma de conflitos como ser

independentemente desta limitação.

Os limites à aplicação no espaço de um sistema estadual de DIP no seu conjunto, a existirem, são

necessariamente limites externos à OJ estadual: será o caso dos limites que sejam impostos pelo

DIPúblico, por um princípio suprapositivo ou por uma razão ontológica, ligada à natureza da norma

de conflitos.

Quanto ao DIPúblico, o que nos interessa são os limites que porventura existam quanto à própria

aplicação no espaço do DIP vigente na ordem jurídica estadual. Estes limites decorrem, segundo LP,

do anteriormente exposto quanto aos princípios internacionais em matéria de competência

legislativa. Em matéria de regulação de situações transnacionais, a atuação destes princípios deve

dizer respeito à aplicação no espaço do DIP e não à aplicação no espaço do Direito material. A seguir-

se este raciocínio, e de acordo com o então exposto, o sistema de DIP de um Estado não será, em

princípio, aplicável:

1. A situações relativamente internacionais, i.e., puramente internas a outro Estado;

2. A situações que, por dizerem respeito à atuação iure imperii de um sujeito público estrangeiro,

se inscrevem exclusivamente na sua OJ;

3. A outras situações transnacionais quando não se verifique um dos títulos de competência

legislativa anteriormente referidos.

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Assim, em princípio, o DIP de um Estado não será primariamente aplicável a uma situação

transnacional, que não apresente um laço pessoal ou territorial com o Estado do foro nem produza

aí efeitos.

Mas já será aplicável:

i) Caso se trate de uma matéria em que se admite o pacto de jurisdição;

ii) As partes tenham atribuído competência aos tribunais deste Estado;

iii) Quando estiverem preenchidos os pressupostos do critério da universalidade.

O DIPúblico já não exclui que o DIP de um Estado regule uma situação que após se ter constituído

como situação interna de um Estado estrangeiro venha a entrar em contacto, pelos seus elementos ou

efeitos, com o Estado local. O mesmo se diga do caso em que uma situação que se constitui

exclusivamente em contacto com dois ou mais Estados estrangeiros vem posteriormente a conectar-

se com o Estado local.

É possível que os órgãos de aplicação de um Estado sejam chamados a decidir questões relativas a

situações que estão subtraídas ao seu DIP. Coloca-se então a questão de saber como é que se

processará a determinação do Direito aplicável: não será afinal necessário recorrer a normas ou princípios

do DIP deste Estado?

LP entende que a solução para este problema se deve procurar no próprio DIPúblico. Deve ser

aplicado o DIP de um Estado que tenha competência legislativa:

(a) Se houver um concurso de competências legislativas de Estados estrangeiros, serão

aplicáveis os princípios comuns dos seus Direitos de Conflitos.

(b) Em última instância, se houver uma divergência dos Direitos de Conflitos dos Estados que

têm competência legislativa, dever-se-á aplicar o DIP do Estado que se apresenta com melhor

competência legislativa, o que poderá envolver uma ponderação de bens e interesses no caso

concreto.

Quanto à existência de um princípio suprapositivo ou razão ontológica, há vários entendimentos dos

quais se salientam os que dizem respeito ao princípio dos direitos adquiridos e à manifestação social

do Direito como ordem reguladora de condutas:

Resulta do anteriormente exposto que o princípio dos direitos adquiridos não se mostra

idóneo para constituir um limite à aplicação no espaço de um sistema estadual de DIP.

No que toca à atuação da norma de conflitos como norma de conduta, não há dúvida que se

aferirmos até onde os particulares podem ou não orientar-se por dada norma ou complexo

normativo chegamos a limites mais ou menos claros de aplicação da norma no espaço.

Mas os particulares podem orientar-se, ao menos teoricamente, por todas as OJ dos Estados

em contacto com a situação. A ideia de norma de conduta pouco vem acrescentar aos limites

que já decorrem do DIPúblico.

Poderia argumentar-se que a constituição de uma situação relativamente internacional não

pode ser apreciada à luz do Direito de Conflitos do Estado local porque os sujeitos não se

poderiam ter orientado por esse Direito de Conflitos. Mas o argumento reflete uma visão

abstrata do problema. A ideia de norma de conflitos, aliada à tutela da confiança, intervém

aqui como critério para a determinação do momento relevante da conexão e não como limite

à aplicação no espaço da norma de conflitos do foro. Caso se pretendesse ver aqui um limite

à aplicação no espaço da norma de conflitos geral, sempre haveria que formular, como parte

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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do sistema de DIP do foro, uma norma ou princípio aplicável à determinação do Direito

aplicável a situações deste tipo. Mas este passo parece desnecessário.

Por outro lado, se a norma de conflitos desempenha por regra uma função reguladora, esta

regra conhece exceções, à semelhança do que verifica no Direito material. Também no Direito

Intertemporal há razões que em certos casos justificam a retroatividade da lei. Por

conseguinte, não é de excluir que excecionalmente a norma de conflitos possa aplicar-se como

puro critério de decisão, independentemente da previsibilidade da sua aplicação.

Assim, se no momento da ocorrência do facto constitutivo a situação estava exclusivamente

conectada com dois ou mais Estados estrangeiros, mas posteriormente a situação entrou em

contacto com o Estado local, a norma de conflitos do Estado local atua, relativamente à

valoração do facto constitutivo, como um puro critério de decisão. Por conseguinte, parece

que a ideia de norma de conduta não se retira qualquer limite externo que não decorra já do

DIPúblico.

Resta examinar até que ponto normas de DIP do foro estabelecem limites internos, i.e., limites à

aplicação no espaço das normas de conflitos gerais:

o No sistema português, como parece ser o caso da maior parte dos sistemas estrangeiros, não

há limites genéricos à aplicação no espaço das normas de conflitos gerais. Designadamente,

as situações que se constituem sem um contacto relevante com o Estado do foro não estão, em

regra, subtraídas à aplicação das normas de conflitos gerais. Se estas situações vêm

posteriormente a entrar em contacto com o Estado do foro, por forma a fundamentar a sua

competência legislativa, aplicam-se-lhes as normas de conflitos gerais.

o Pode todavia ser questionado se o regime da competência internacional dos tribunais

portugueses e o sistema essencialmente formal de reconhecimento de sentenças

estrangeiras não constituem limites ao âmbito de aplicação no espaço do sistema de Direito

de Conflitos.

i. De acordo com o sistema essencial formal de reconhecimento de sentenças

estrangeiras, o reconhecimento não depende da lei aplicada pelo tribunal. Não se trata

aqui de um limite à aplicação no espaço do sistema de Direito de Conflitos com respeito às

situações que sejam objeto de uma decisão estrangeira? Importa aqui distinguir dois

aspetos:

a. Na regulação das situações transnacionais, o DIP não opera apenas através do

Direito de Conflitos, entendido stricto sensu, mas também mediante o

reconhecimento das situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira, sob certas

condições. O regime de reconhecimento de sentenças estrangeiras, na medida em

que permite reconhecer situações jurídicas fixadas por decisão judicial estrangeira

com base num Direito de conflitos estrangeiro, limita o âmbito de aplicação do

Direito de Conflitos do foro.

b. Mas, para o reconhecimento de uma situação fixada por uma decisão judicial

estrangeira é indiferente que a situação tenha ou não tenha um contacto

significativo com o Estado do foro no momento da constituição, pelo que não se

trata de um limite ao âmbito de aplicação no espaço do Direito de Conflitos. A

situação até pode ter um contacto mais significativo com o Estado português do

que com o Estado em que a decisão foi proferida. Pode, por conseguinte, tratar-se

de situações reguladas pelo Direito de Conflitos português.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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A OJ portuguesa já conhece limites específicos à aplicação no espaço de certas normas de conflitos.

Com efeito, vigoram na OJ portuguesa certas normas de conflitos que de um ou outro modo limitam

o campo de aplicação no espaço de outras normas de conflitos. É o que se verifica com as seguintes

normas de conflitos:

1. O art. 31º/2 CC, quando limita a competência da lei nacionalidade para salvar a validade de

negócios que tenham sido celebrados no país da residência habitual segundo o Direito deste

país que se considere competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º

com o art. 31º/1 CC);

2. O art. 47º CC, quando consagra um desvio à lei pessoal em matéria de capacidade para

constituir direitos reais sobre imóveis ou para dispor deles quando a lex rei sitae se considere

competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º com os arts. 31º/1 e

32º CC em que se manifesta o princípio da maior proximidade);

3. O art. 61º LAV, quando limita o DIP especial da arbitragem transnacional às arbitragens que

tenham lugar em território português.

Observe-se que as duas normas primeiramente referidas são normas de remissão condicionada que

dão relevância ao Direito de Conflitos de estrangeiro. LP considera que, na omissão do legislador,

não pode o órgão de aplicação do Direito derrogar as normas de conflitos vigentes através da

formulação jurisprudencial de soluções inspiradas em teorias doutrinais.

DO ELEMENTO DE CONEXÃO

⭐ Princípios Gerais de Interpretação e Aplicação

⇒ Interpretação:

Do ponto de vista da interpretação, há uma diferença relativa entre os conceitos técnico-jurídicos e

os conceitos fáticos:

i. A interpretação dos conceitos técnico-jurídicos suscita dificuldades particulares: perante

a diversidade do conteúdo atribuído a estes conceitos nos diferentes sistemas nacionais

torna-se necessário determinar quais as regras e princípios jurídicos a que se deve recorrer.

A norma de conflitos deve ser interpretada segundo os critérios aplicáveis em função da

sua fonte (internacional, europeia, transnacional ou interna):

a. Os conceitos designativos dos elementos de conexão contidos em Convenções

Internacionais e Regulamentos europeus devem ser objeto de uma interpretação

autónoma em relação às OJ dos Estados Contratantes/Membros singularmente

consideradas, designadamente o ordenamento do foro.

b. As normas de fonte interna devem ser interpretadas no contexto do sistema a que

pertencem, mas também com autonomia relativamente ao Direito material vigente

neste sistema. Há que partir das regras e princípios de Direito material interno para

obter as notas dos conceitos designativos técnico-jurídicos, tais como a nacionalidade.

Mas as finalidades prosseguidas pelas normas de conflitos podem justificar a

atribuição a estes conceitos de um sentido e alcance diferente do atribuído aos

conceitos homólogos de Direito material interno. Esta diferença traduzir-se-á

normalmente numa maior indeterminação dos conceitos designativos, o que lhes dá

uma maior abertura a realidades jurídicas estrangeiras.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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⇒ Concretização:

I- Aspetos gerais:

A determinação do conteúdo concreto do elemento de conexão pode não oferecer especiais

dificuldades, sobretudo quando se trata de elementos de conexão que consistem em laços fáticos

como o lugar da situação da coisa ou o lugar da celebração de um contrato entre presentes. Em

princípio, trata-se apenas de estabelecer os factos relevantes.

Diferentemente, a concretização de elementos de conexão que se reportam a um vínculo jurídico, a

consequências jurídicas ou a factos jurídicos suscita diversas questões jurídicas:

a) No caso de elementos de conexão que se reportam a um vínculo jurídico – como a

nacionalidade – suscita-se desde logo a questão de saber se o elemento de conexão se

concretiza lege fori (com base na OJ do foro) ou lege causae (com base na OJ cuja designação

está em causa).

b) No que se refere aos elementos de conexão que se referem a consequências jurídicas que se

projetam num determinado lugar, também é necessário determinar se a consequência jurídica

se estabelece lege fori ou lege causae. Aqui a determinação do conteúdo concreto do elemento

de conexão relaciona-se com a recondução da situação da vida à previsão da norma de

conflitos e, por conseguinte, deve ser orientada pelos mesmos critérios que presidem à

qualificação. Assim, LP entende que se interpreta com base no Direito de Conflitos em jogo,

mas também tem de se apreciar perante a lei potencialmente aplicável se ocorre no território

do respetivo Estado a lesão de um bem jurídico.

c) Como elemento de conexão que consiste num facto jurídico temos a designação pelos

interessados do Direito aplicável. Geralmente a designação é objeto de um acordo das partes,

caso em que se suscita a questão de saber se a formação e a validade do consentimento são

apreciadas segundo o Direito material do foro ou segundo a lei escolhida. Seguindo a melhor

doutrina, os Regulamentos europeus optam geralmente pela segunda solução (arts. 4º/5 Reg.

Roma I, 6º/1 Reg. Roma III e 22º/3 Regulamento sobre sucessões).

II- Conteúdo múltiplo e falta de conteúdo:

Há um problema de conteúdo múltiplo quando no caso concreto surgem vários laços, que se

estabelecem com diferentes Estados, reconduzíveis ao mesmo conceito designativo.

Na hipótese inversa, há falta de conteúdo quando não existe no caso concreto o laço designativo.

Vejamos quais os critérios de resolução destes problemas:

1. O problema de conteúdo múltiplo:

i. Pode ser resolvido por uma norma especial. É o que se verifica com a nacionalidade:

os arts. 27º e 28º Lei Nacionalidade estabelecem critérios de resolução dos concursos

de nacionalidades:

- Nos termos do art. 27º, se uma das nacionalidades for a portuguesa é esta que

prevalece. E é assim mesmo que seja mais efetiva a nacionalidade estrangeira. É uma

solução adotada na maioria das legislações e também em Convenções Internacionais

nesta matéria (de que Portugal não é parte).

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- Por força do art. 28º, em caso de concurso de duas ou mais nacionalidades

estrangeiras releva apenas a nacionalidade do Estado em cujo território o plurinacional

tenha a sua residência habitual. Se não tiver residência habitual num dos Estados de

que é nacional, releva a nacionalidade do Estado com que mantenha a vinculação mais

estreita. Manifesta-se aqui o princípio da nacionalidade efetiva, há muito acolhido em

Convenções Internacionais e pela jurisprudência internacional. A mesma solução é

seguida, para os casos de concurso de nacionalidades estrangeiras, pela maioria dos

sistemas nacionais. Na determinação da vinculação mais estreita haverá que atender a

todos os laços, de caráter objetivo ou subjetivo, que exprimam ligação a uma sociedade

estadual. Deverá dar-se especial importância aos laços que exprimam a identidade

cultural do plurinacional, designadamente a língua por ele falada.

Levanta-se a questão de saber se o art. 28º LN também se aplica quando uma das

nacionalidades estrangeiras for a de um Estado da UE. No acórdão Micheletti

(1992), o TCE entendeu que para efeitos de direito de estabelecimento a

nacionalidade relevante é sempre a do EM. Valerá isto para outros efeitos,

designadamente para a aplicação das normas de conflitos? MARQUES DOS SANTOS

defendeu que sim. Este entendimento parece de seguir (LP), pois seria indesejável

que em Portugal um plurinacional fosse tratado como nacional de um Estado para

uns efeitos e como nacional de outro Estado para outros. Na falta de norma

especial, o problema deve resolver-se com base na interpretação da norma de

conflitos.

2. O problema da falta de conteúdo:

i. Quando se conclui pela falta de conteúdo concreto do elemento de conexão há que

atender, em primeiro lugar, à norma especial que resolva o problema. Assim, o art. 12º da

Convenção de Nova Iorque Relativa ao Estatuto do Apátrida determina que a lei pessoal

do apátrida é a do país do domicílio que deve ser entendido no sentido de residência

habitual. Se o apátrida não tiver residência habitual, releva a lei do país da residência

ocasional.

LP entende que esta solução é criticável e contrária às exigências que a conexão deve

satisfazer em matéria de estatuto pessoal; seria preferível que na falta de residência

habitual se recorresse à lei do pais com o qual o apátrida apresenta a conexão mais

estreita (tendo especialmente em conta a sua inserção num determinado meio

sociocultural).

ii. Não havendo norma especial que resolva o problema há que atender ao critério geral

estabelecido pelo art. 23º/2, 2ª parte CC, que manda recorrer à lei que for

subsidiariamente competente.

iii. Na falta de conexão subsidiária, resta o recurso ao Direito material do foro, por aplicação

analógica do disposto no art. 348º/3 CC.

iv. Hipótese algo diversa que se pode configurar é a de o conteúdo concreto do elemento de

conexão ser incerto. Por exemplo, não se consegue apurar ao certo se um indivíduo tem

ou não a nacionalidade de determinado Estado. Se for possível determinar que o

indivíduo tem a nacionalidade de outro Estado, deverá aplicar-se a lei deste Estado. Caso

contrário, LP afirma que são aplicáveis as soluções que foram expostas para o caso de falta

de conteúdo concreto do elemento de conexão.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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III- Concretização no tempo:

O problema da concretização no tempo é colocado pelos elementos de conexão móveis que são

aqueles cujo conteúdo concreto é suscetível de sofrer alteração no tempo.

Com a alteração do conteúdo concreto do elemento de conexão surge uma sucessão de estatutos ou

conflito móvel; daí que se fale de uma sucessão de estatutos. Em matéria de sucessão de estatutos há

duas teses fundamentais:

1. Há analogia entre a sucessão de estatutos e o conceito de leis no tempo e, por conseguinte,

são aplicáveis analogicamente as regras gerais do Direito Intertemporal (BAPTISTA

MACHADO);

2. Não é possível formular regras gerais em matéria de sucessão de estatutos. Para a solução dos

problemas de sucessão de estatutos deve recorrer-se a uma interpretação da norma de

conflitos que suscita o problema (FERRER CORREIA e ISABEL DE MAGALHÃES

COLLAÇO).

Como ponto de partida, esta segunda tese oferece uma base metodológica mais segura. A fixação dos

momentos relevantes da conexão deve depender, em última instância, do complexo de fins que

subjaz à norma de conflitos em causa e ao sistema de DIP em que se integra.

O que muda é a situação da vida: há um deslocamento da situação da vida relativamente aos Estados

em presença, que leva a que o laço, considerado relevante para designar o Direito aplicável, se passe

a estabelecer com um Estado diferente. Este elemento espacial está ausente no conflito intertemporal.

Embora a sucessão de estatutos não se confunda com a sucessão de leis no tempo, LP admite que

possa haver uma certa analogia entre os critérios valorativos que presidem à escolha do momento

relevante da conexão e os que fundamentam as soluções do Direito Intertemporal, bem como no que

toca à salvaguarda da continuidade das situações jurídicas constituídas.

Mas a aplicação analógica de regras gerais de Direito Intertemporal terá como limite a

compatibilidade dos resultados a que conduz com as finalidades prosseguidas pela norma de

conflitos em causa e com os princípios gerais do Direito de Conflitos que ela integra.

Na resolução dos problemas de sucessão de estatutos importa distinguir dois aspetos:

1) A determinação do momento relevante da conexão: em certos casos o legislador fixou o

momento relevante; por exemplo, os arts. 53º/1 e 2, 2.ª parte, 56º/1, 2 e 3 CC ou art. 21º/1 Reg.

sobre sucessões. Na omissão do legislador, a fixação do momento relevante da conexão é um

problema de interpretação da norma de conflitos em causa. No entanto, na medida em que

outra coisa não resulte desta interpretação, são de aplicar analogicamente as regras gerais de

Direito Intertemporal. De onde decorre que releva a conexão no momento da verificação dos

factos (constitutivos, modificativos ou extintivos das situações jurídicas) que estejam em

causa.

2) A conjugação dos estatutos em presença: nesta matéria a doutrina internacional privatista

tem afirmado, à face dos diferentes sistemas locais de DIP, a existência de um princípio da

continuidade das situações jurídicas preexistentes. À semelhança do Direito Intertemporal,

a destruição ou modificação essencial das situações constituídas tem de firmar-se em valores

ou princípios supraordenados às exigências gerais da segurança jurídica e à confiança dos

sujeitos jurídicos (quando objetivamente justificada) na permanência da situação existente.

Assim, a situação validamente constituída sob o império do estatuto anterior deve persistir

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em caso de mudança de estatuto, a menos que se lhe oponham razões suficientemente

ponderosas. Certas disposições especiais sobre sucessão de estatutos podem ser vistas como

manifestações particulares deste princípio: por exemplo, o art. 29º CC. O Princípio da

continuidade também pode reclamar o desenvolvimento de soluções materiais especiais para

certos problemas de sucessão de estatutos; encontramos exemplos destas soluções materiais

especiais nos nºs 2 a 5 do art. 3º CSC, no caso de transferência internacional da sede da

sociedade.

REMISSÃO PARA ORDENAMENTOS JURÍDICOS COMPLEXOS

O DIPrivado não é o único Direito de conflitos – existem outros, como o Direito de conflitos

interlocal e o Direito de conflitos interpessoal. Estes existem nas OJ que são complexas (em que

coexistem diferentes sistemas de Direito privado):

c) A OJ complexa será de base territorial quando comporte diversos sistemas aplicáveis em

diversas circunscrições territoriais – art. 20º/1 e 2 CC;

d) Será de base pessoal quando comporte diferentes sistemas aplicáveis a diversas categorias de

pessoas, a que se refere o art. 20º/3 CC.

Por exemplo:

5. Nos EUA, cada Estado federal tem o seu sistema.

6. No Reino Unido, temos vários sistemas.

7. Em Espanha, o art. 149º/1 CRP permite, dentro de certos limites, que as comunidades

autónomas preservem os direitos locais, e esta permissão foi aproveitada pelas comunidades

gerais para o desenvolvimento de regimes locais.

8. Portugal também é uma OJ complexa porque as ALR têm autonomia legislativa, que diz

respeito às matérias previstas nos respetivos estatutos e que não estejam reservadas aos órgãos

de soberania.

Sistemas de base pessoal:

A pluralidade de sistemas de base pessoal pode ser estabelecida em função da religião. Foi o que

aconteceu em Portugal até ao séc. XV. Pode depender também de uma opção do interessado.

O art. 20º CC refere-se a “ordenamentos plurilegislativos”, mas é mais correta a expressão

“ordenamento complexo”. Desde logo, porque o ordenamento pode ser complexo em resultado de

outras fontes do Direito que não sejam a lei.

Podemos também distinguir entre os ordenamentos complexos aqueles em que existe uma

pluralidade de sistemas materiais (ex: Espanha) e os em que existe uma pluralidade de sistemas

conflituais (ex: EUA e Reino Unido).

ATENÇÃO: não se deve confundir ordens jurídicas complexas com os Estados compostos. Há

Estados federados sem ordens jurídicas complexas e há Estados comunitários com ordens complexas.

Perante as atuais características da OJ portuguesa, não se coloca ainda o problema do estudo das

ordens interlocais. O direito interlocal e interpessoal irá interessar-nos quando uma norma remeter

para uma ordem complexa, em que o problema será qual dos sistemas internos aplicar.

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Temos ainda o Direito intertemporal, que resolve os problemas de aplicação da lei no tempo, e o

Direito de conflitos público. As normas de Direito público também suscitam a questão da aplicação

da lei no espaço.

⇒ Os ordenamentos jurídicos complexos suscitam ao Direito de conflitos dois problemas:

1) Quando é que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico complexo?

2) Supondo que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico complexo, como se determina,

entre os vários sistemas que nele vigoram, o aplicável ao caso?

Temos de considerar, para responder a estas questões:

Art. 20º CC;

Art. 19º/1 Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais;

Art. 22º/1 Reg. Roma I;

Art. 25º Reg. Roma II;

Art. 19º Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e à

Representação;

Arts. 14º e 15º Reg. Roma III;

Arts. 36º e 37º Regulamento sobre sucessões.

Passando às questões:

1) Quando é que a norma de conflitos remete para o OJ complexo no seu conjunto?

O art. 20º CC só se refere à remissão feita pelo elemento de conexão nacionalidade. Então, como

proceder quando o elemento de conexão seja a residência habitual, o domicílio, o lugar da celebração, o lugar do

efeito lesivo, o lugar da situação da coisa, etc.?

Há duas posições:

i. FERRER CORREIA entende que quando o elemento de conexão aponta diretamente para

determinado lugar no espaço, será competente o sistema em vigor neste lugar. Nos casos

em que haja uma norma de Direito interlocal que estabeleça uma lei diferente, este Prof.

defende um reenvio interno;

ii. ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO defende que a remissão da norma de conflitos é feita,

em princípio, para o ordenamento do Estado soberano. LP subscreve esta posição, pois ao

DIPrivado compete determinar o Direito aplicável, quando a situação está em contacto

com mais de um Estado soberano, e não resolver conflitos internos. Em princípio, a norma

de conflitos de DIPrivado, quando remete para o Direito estadual, fá-lo para o Direito de

um Estado soberano. A Prof. reconhece que a norma tem capacidade para determinar a

lei aplicável, mas não deve ainda assim fazê-lo. Tem em conta o objeto e função da norma

de conflitos: determinar o Direito estadual aplicável. Assim, a Prof. propõe a analogia com

o art. 20º/1 e 20º/2 primeira parte. Se a analogia não funcionar (se não houver DIP

unificado nem Direito interlocal), aí sim recorre-se à capacidade de aplicação da norma de

conflitos.

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o Neste sentido, apontam o art. 5º/3 da Lei austríaca de DIPrivado, o art. 18º da Lei

italiana de DIPrivado, os arts. 19º e 20º da Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável

às Sucessões por Morte e os arts. 36º e 37º do Regulamento sobre sucessões.

Já em matéria de obrigações contratuais e extracontratuais e de “contratos de mediação” e

representação resulta do disposto nos arts. 22º/1 do Reg. Roma I, 25º/1 Reg. Roma II e 19º Convenção

de Haia que a remissão feita pelas normas de conflitos contidas nestes instrumentos é entendida como

uma referência direta a um dos sistemas locais.

O legislador internacional e europeu, porém, não contemplou a hipótese em que as partes designem

a OJ complexa no seu conjunto (por exemplo, o Direito do Reino Unido). Neste caso, será inevitável

considerar a remissão feita ao ordenamento do Estado soberano e proceder à determinação do

sistema aplicável nos termos que se seguem.

O Reg. Roma III adotou uma posição intermédia em matéria de divórcio e separação judicial:

i. A remissão feita pelas normas de conflitos no caso de uma OJ complexa de base territorial

é, em princípio, entendida como uma referência direta a um dos sistemas locais (art.

14º/a) e b));

ii. A referência à lei da nacionalidade, bem como a referência no caso de OJ complexa de base

pessoal são entendidas como uma referência feita, em princípio, à OJ complexa no seu

conjunto (arts. 14º/c) e 15º).

2) Como determinar, de entre os sistemas que vigoram no OJ complexo, o aplicável?

Os princípios que orientam a determinação do sistema aplicável, dentro do OJ complexo, são dois:

i. Pertence ao OJ complexo resolver os conflitos de leis internos e, por isso, determinar qual

o sistema interno aplicável;

ii. Se, porém, o ordenamento complexo não resolver o problema, deve aplicar-se, de entre os

sistemas que vigoram no âmbito do ordenamento complexo, o que tem uma conexão mais

estreita com a situação a regular.

Vejamos como estes princípios se concretizam quando a remissão para o OJ complexo é feita pelo

elemento de conexão nacionalidade:

a) No caso de ordenamentos complexos de base territorial:

Em conformidade com o primeiro princípio, o art. 20º/1 CC determina que pertence ao ordenamento

complexo fixar o sistema interno aplicável. No mesmo sentido dispõem os arts. 36º/1 e 37º do

Regulamento sobre sucessões.

1. É o que se verifica quando a OJ complexa dispuser de um sistema unitário de Direito

Interlocal ou quando todos os ordenamentos locais estejam de acordo sobre o ordenamento

aplicável. Parece que na falta de concordância entre todos os ordenamentos locais será

suficiente o acordo daqueles que estão em contacto com a situação sobre a competência de um

deles.

2. Não sendo possível resolver a questão com base no Direito Interlocal vigente na OJ complexa,

o n.º 2 do art. 20º presume analogia com o DIPrivado e prescreve o recurso ao DIPrivado

unificado.

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3. E se não houver DIPrivado unificado? O n.º 2 do art. 20º manda atender à lei da residência

habitual. Esta parte do preceito suscita divergências de interpretação:

i. MAGALHÃES COLLAÇO entende que só releva a residência habitual dentro do

Estado da nacionalidade – para esta autora, existe uma lacuna descoberta através de

interpretação restritiva do art. 20º/2 in fine: a função deste preceito é indicar o sistema

aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo; como este preceito não

fornece um critério para determinar o sistema aplicável quando a residência habitual

se situa fora do Estado da nacionalidade, surge uma lacuna. Esta lacuna deve ser

integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita.

o LIMA PINHEIRO crê ser este o melhor entendimento: por certo que o recurso à lei

da residência habitual, quando o ordenamento complexo não dispõe de Direito

Interlocal ou de DIPrivado unificados, evita certas dificuldades na determinação

da lei aplicável. Mas é de rejeitar, porque significa tratar como apátrida quem tem

uma nacionalidade e menospreza a primazia da nacionalidade em matéria de

estatuto pessoal.

Por conseguinte, em matéria de estatuto pessoal, quando a residência habitual for

fora do Estado da nacionalidade, devemos aplicar, de entre os sistemas que

integram o ordenamento complexo, aquele com que a pessoa está mais ligada.

Para determinar esta conexão mais estreita há que atender a todos os laços

objetivos e subjetivos que exprimam uma ligação entre a pessoa em causa e um

dos sistemas vigentes no ordenamento complexo e, designadamente, ao vínculo

de subnacionalidade que nos Estados federais se estabeleça com os Estados

federados, ao vínculo de domicílio e, na sua falta, à última residência habitual ou

último domicílio dentro do Estado da nacionalidade.

o LP: no caso de a remissão para a OJ complexa ter sido operada pelo art. 45º/3 CC,

deve aplicar-se o art. 20º CC, seja diretamente seja por analogia. Na falta de Direito

Interlocal e de DIPrivado unificado e se os interessados não tiverem residência

habitual comum na mesma unidade territorial dentro do Estado da nacionalidade,

deve regressar-se ao art. 45º/1 CC. Em sentido próximo, MS.

o DMV: a parte final do art. 20º/2 deve ser alvo de uma redução teleológica e não

de uma interpretação restritiva, pois este Prof. entende que o legislador, no art.

20º/2 parte final quis abranger a residência habitual fosse ela onde fosse. IMC e LP

não aceitam esse argumento e por isso é que defendem uma interpretação

restritiva.

ii. A Escola de Coimbra entende que se aplica a lei da residência habitual mesmo que esta

se situe fora do Estado da nacionalidade. Esta tese abandona o elemento de conexão

nacionalidade e passa para o elemento subsidiário.

b) No caso de ordenamentos complexos de base pessoal:

O art. 20º/3 CC também consagra o princípio de que pertence ao ordenamento complexo determinar

o sistema pessoal competente.

Assim, são aplicáveis as normas de Direito Interpessoal da OJ designada, incluindo tanto as normas

de conflitos interpessoais como as normas de Direito material especial como, por exemplo, as que

regulem o casamento entre pessoas de religião diferente.

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O legislador supôs que o ordenamento complexo de base pessoal disporá sempre de critérios para

determinar o sistema pessoal aplicável. Mas isto pode não se verificar: neste caso, devemos aplicar o

sistema com o qual a situação a regular tem uma conexão mais estreita.

⇒ Determinação do sistema aplicável quando a remissão para o ordenamento complexo é

operada por um elemento de conexão que não seja a nacionalidade:

Este caso não é contemplado pelo art. 20º CC. Quer isto dizer que, no caso de remissão para um

ordenamento complexo de base territorial se deve sempre atender ao Direito Interlocal e ao DIPrivado

unificados de que o ordenamento complexo disponha.

E como proceder se não houver Direito Interlocal nem DIPrivado unificados?

1. Se a remissão operada pela norma de conflitos apontar para um determinado lugar no espaço

ou diretamente para determinado sistema local, há que entender a remissão operada pela

norma de conflitos como uma remissão para o sistema local.

Quando os elementos de conexão apontam para um determinado lugar no espaço, há que considerar

os sistemas locais como se fossem autónomos e entende-se que a norma de conflitos, ao remeter para

um lugar no espaço, está a remeter indiretamente para o sistema que aí vigora.

2. Quanto aos elementos de conexão que não indiquem um preciso lugar no espaço – por

exemplo, a designação pelas partes –, atender-se-á igualmente ao sistema local para que

diretamente remetam.

No caso de o elemento de conexão ser a designação pelas partes e de as partes terem designado a OJ

complexa no seu conjunto, dever-se-á aplicar o sistema local que representa a conexão mais estreita

com a situação.

Na prática, a diferença entre as doutrinas de MAGALHÃES COLLAÇO e FERRER CORREIA é menor

do que parece, por duas razões:

i) FERRER CORREIA admite a transmissão de competência dentro do ordenamento

complexo, dando assim relevância às soluções dos conflitos interlocais aí vigentes;

ii) MAGALHÃES COLLAÇO concede que quando a OJ complexa não resolve o problema

haverá que entender a remissão feita pela norma de conflitos como referência a um dos

sistemas locais.

No caso de remissão para um ordenamento complexo de base pessoal operada por um elemento de

conexão que não seja a nacionalidade deve sempre atender-se, por aplicação analógica do art. 20º/3

CC, às normas de Direito Interpessoal da OJ designada. Na falta de normas de Direito Interpessoal

que resolvam o problema deve ser aplicado o sistema com o qual a situação a regular tem uma

conexão mais estreita (esta é a solução consagrada pelo art. 37º do Regulamento sobre sucessões).

A DEVOLUÇÃO OU REENVIO

Quando a norma de conflitos portuguesa remete para uma OJ estrangeira pode suceder que esta OJ,

por ter uma norma de conflitos idêntica à nossa, também considere aplicável o seu Direito material.

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Mas pode suceder igualmente que esta OJ, por ter uma norma de conflitos diferente da nossa, não se

considere competente e remeta para outra lei. Surge então o problema da devolução.

O problema é o seguinte: devemos aplicar a lei designada, mesmo que esta não se considere competente, ou

devemos ter em conta o DIPrivado da lei designada?

A resposta a dar a este problema depende do sentido e alcance que atribuímos à referência feita pela

nossa norma de conflitos. Será que esta referência se dirige direta e imediatamente ao Direito material da lei

designada (referência material) ou será que, diferentemente, esta referência pode abranger o DIPrivado da lei

designada (referência global)?

Um problema de devolução tem três pressupostos:

1) Que a norma de conflitos do foro remeta para uma lei estrangeira;

2) Que a remissão não possa ser entendida como uma referência material;

3) Que a lei estrangeira designada não se considere competente – verifica-se quando a norma de

conflitos estrangeira utiliza um elemento de conexão diferente da norma de conflitos do foro

ou quando, embora utilizando o mesmo elemento de conexão, seja interpretada de forma

diferente.

⭐ Tipos de Devolução

i. Retorno de competência:

Também designada por “reenvio de primeiro grau”, sucede quando o Direito de conflitos estrangeiro

remete a solução da questão para o Direito do foro.

É o que se verifica, por exemplo, quanto à lei aplicável à capacidade de um brasileiro domiciliado em

Portugal: o Direito português remete para o Direito brasileiro a título de lei da nacionalidade, mas o

Direito de conflitos brasileiro submete a capacidade à lei do domicílio, devolvendo, por esta razão,

para o Direito português.

ii. Transmissão de competência:

Também designada por “reenvio de segundo grau”, verifica-se quando o Direito de conflitos

estrangeiro remete a solução da questão para outro ordenamento estrangeiro.

Por exemplo, em matéria de sucessão por morte, a lei reguladora da sucessão imobiliária de britânico,

com última residência habitual em Londres, que deixa imóveis sitos num Estado dos EUA: o Direito

de conflitos português remete para a lei inglesa, a título de lei da última nacionalidade do de cuiús

(art. 62º CC) ou, no futuro, a título de lei da última residência habitual (art. 21º/1 do Regulamento

sobre sucessões), mas o Direito de conflitos inglês submete a sucessão imobiliária à lei da situação

dos imóveis, devolvendo, por esta razão, para o Direito do Estado dos EUA.

Podemos ainda ter:

(a) Retorno indireto quando L2 (lei designada) remete para L3 (lei estrangeira designada por L2)

com referência global e L3, por sua vez, devolve para o Direito do foro.

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(b) Transmissão em cadeia quando L2 remete para L3 com referência global e esta lei também

não se considere competente, devolvendo para uma quarta lei.

(c) Transmissão com retorno quando, por exemplo, L3 remeta para L2.

⭐ Critérios Gerais de Solução

⇒ Tese da referência material

Segundo esta tese, a referência feita pela norma de conflitos é sempre e necessariamente entendida

como uma referência material, i.e., como uma remissão direta e imediata para o Direito material da

lei designada, não interessando o Direito de conflitos da lei designada.

A tese da referência material não se contrapõe apenas à tese da referência global; contrapõe-se a

qualquer sistema de devolução, a qualquer sistema em que se tenha em conta o Direito de conflitos

estrangeiro, ainda que este Direito de conflitos não seja sempre e necessariamente aplicado.

Esta tese encontra-se consagrada em matéria de obrigações no art. 15º da Convenção de Roma sobre

a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, no art. 20º Reg. Roma I e no art. 24º Reg. Roma II; e no art.

11º Reg. Roma III em matéria de divórcio e separação.

Hoje, o principal argumento a favor da tese da referência material é o respeito pela valoração feita

pelo legislador na escolha da conexão mais adequada, a justiça da conexão veiculada pelo Direito de

conflitos. Aceitar a devolução implica abdicar da escolha consagrada na norma de conflitos do foro.

Contra a tese da referência material pode, no entanto, invocar-se o princípio da harmonia jurídica

internacional: ao ignorar o Direito de conflitos estrangeiro, a tese da referência material fomenta a

desarmonia internacional de soluções.

⇒ Tese da referência global

Segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos para uma OJ estrangeira abrange sempre e

necessariamente o seu Direito de conflitos.

Embora as normas de conflitos tenham por função designar o Direito material competente, quando

remetam para uma OJ estrangeira a designação das normas materiais aplicáveis não é feita direta e

imediatamente, é antes feita com a mediação do Direito de conflitos da OJ estrangeira.

Os fundamentos desta teoria são:

♢ Princípio da harmonia jurídica internacional – ao ter-se em conta o Direito de conflitos da lei

para que se remeta fomenta-se a harmonia de soluções, pelo menos com esta lei.

♢ Incindibilidade ou indissociabilidade das normas de conflitos em relação às normas materiais

– tal decorreria da unidade do sistema jurídico ou da integração das normas de conflitos na

previsão das normas materiais. Na opinião de LP, este entendimento deve ser rejeitado:

dentro do sistema jurídico, o Direito material e o Direito de conflitos são subsistemas

suficientemente autónomos para que seja perfeitamente concebível que outra OJ determine a

aplicação desse Direito material apesar de ele não ser competente segundo o Direito de

conflitos do sistema a que pertence.

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Contra a referência global podem invocar-se:

1) Objeções de fundo:

i. É de rejeitar a objeção que se estriba no alegado territorialismo do Direito de conflitos,

segundo a qual o órgão de aplicação está sujeito ao Direito de conflitos do foro, não

podendo aplicar Direito de conflitos estrangeiro – nada obsta a que uma norma de

DIPrivado do foro confira relevância ao Direito de conflitos estrangeiro.

ii. A verdadeira objeção de fundo é quanto ao facto de, ao fazer referência global, o

Direito de conflitos do foro vai renunciar ao seu juízo de valor sobre a conexão mais

adequada para acompanhar o critério de conexão do Direito de conflitos estrangeiro.

2) Objeções de natureza prática:

i. Transmissão ad infinitum – pode acontecer que a L2 remeta para L3, L3 para L4, L4 para

L5 e assim sucessivamente, sem que se chegue definitivamente a nenhuma lei. LP

considera o valor desta objeção diminuto: em toda a regra as situações internacionais

estão em contacto com um número limitado de Estados, pelo que as hipóteses de

transmissão em cadeia são raras e não colocam outra dificuldade que não seja a

necessidade de ter em conta dois ou três Direitos de conflitos estrangeiros.

ii. Pingue-pongue perpétuo – em caso de retorno entre dois sistemas que praticam

referência global, L1 acompanha a remissão feita por L2 para L1 e L2 acompanha a

remissão feita por L1 para L2. Só é possível quebrar o círculo vicioso se um deles

praticar referência material.

Dentro da tese de referência global temos:

i. Teoria da devolução simples

Segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos de foro abrange as normas de conflitos da

ordem estrangeira, mas entende-se necessariamente a remissão operada pela norma de conflitos

estrangeira como uma referência material.

Em Portugal, parece que esta teoria foi sempre aplicada em casos de retorno.

A devolução simples tem a vantagem de ser relativamente fácil de aplicar e de evitar as situações de

pingue-pongue perpétuo.

Mas verifica-se que só casualmente a devolução simples leva à harmonia internacional de soluções:

a) A devolução simples leva a aceitar o retorno direto mesmo que L2 não aplique L1. Por

exemplo, na situação de retorno direto entre dois sistemas que pratiquem devolução simples

cada um aplica o seu próprio Direito;

b) A devolução simples também leva a aceitar a transmissão de competência para L3 mesmo que

esta lei não seja aplicada por L2 nem se considere competente. Por exemplo, quando L1 e L2

pratiquem devolução simples e L3 remeta para L2 com referência material, L1 aplica L3,

enquanto L2 e L3 aplicam L2.

Truque para devolução simples – contar sempre duas setas e dá o resultado. Quando remeta para

ela própria, contamos a seta duas vezes.

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ii. Teoria da devolução integral, foreign court theory ou dupla devolução

Na devolução integral, o tribunal do foro deve decidir a questão transnacional tal como ela seria

julgada pelo tribunal do país da OJ designada. Ou seja, vai copiar a solução da OJ para a qual remete.

Em princípio, a devolução integral assegura que o tribunal de L1 aplicará a mesma lei e dará a mesma

solução ao caso que o tribunal de L2 – garante a harmonia entre L1 e L2.

Esta teoria é aceite no Direito de conflitos inglês, mas não parecer ser aí de aplicação geral,

dependendo, designadamente, das matérias em causa – as decisões que a seguem dizem

respeito ao estatuto pessoal.

Embora tradicionalmente o Direito de conflitos dos EUA não seja pró-devolucionista, tende

a admitir-se a devolução em certas matérias em que é importante alcançar a harmonia de

soluções com a lei estrangeira designada, especialmente no caso de retorno para o Direito dos

EUA. Nas matérias em que, como a sucessão por morte, se tende a admitir a devolução, esta

é geralmente entendida em termos de devolução integral.

Além disso, segundo uma orientação influente nos tribunais dos EUA, só se aplica a lei

estrangeira designada pela norma de conflito quando esta tem “interesse” na regulação do

caso; ora, no caso de a lei estrangeira remeter para o Direito dos EUA tende a entender-se que

a lei estrangeira não tem “interesse” na regulação do caso, tratando-se pois de um “falso

conflito”, em que se deve simplesmente aplicar o Direito material do foro na medida em que

tenha algum “interesse” no caso.

A grande novidade da devolução integral reside no facto de a norma de conflitos remeter para a

ordem estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas de L2 sobre a devolução. Assim,

atende ao tipo de referência feito por L2.

A tese da devolução integral é dificilmente generalizável. Pressupõe, em caso de retorno, que a OJ

designada não pratica também devolução integral, sob pena de círculo vicioso ou pingue-pongue

perpétuo. Para quebrar o círculo é preciso recorrer à devolução simples ou à referência material.

⇒ Balanço:

O sistema português parte de uma regra geral de referência material mas aceita a devolução em certos

casos. Também uma parte das codificações recentes se mostra desfavorável à admissão geral do

reenvio, mas não o exclui em determinadas hipóteses.

Por forma geral, pode dizer-se que a devolução deve ser admitida como um mecanismo de correção

do resultado a que conduz no caso concreto a aplicação da norma de conflitos do foro, quando tal

seja exigido pela justiça conflitual.

No quadro da justiça conflitual, é principalmente o princípio da harmonia internacional de soluções

que pode fundamentar a aceitação da devolução – este princípio está subjacente ao regime

consagrado nos arts. 17º/1 e 18º/1 CC.

No entanto, o princípio favor negotii e a ideia de favorecimento de pessoas que são merecedoras de

especial proteção também têm um papel a desempenhar e justificam, designadamente, que perante

normas de conflitos que visam favorecer estes resultados materiais, a devolução só seja admitida

quando favoreça ou, pelo menos, não prejudique estes resultados materiais.

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Em esquema:

Norma de Direito Material

Norma de Conflitos Sistema de Devolução

Referência Material

Devolução Simples

Dupla Devolução

⭐ Regime vigente

⇒ A regra geral da referência material:

O art. 16º CC estabelece que “a referência das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira determina apenas,

na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei”.

Quando o art. 16º se refere a “Direito interno” quer significar o Direito material, e o Direito material

de L2 tanto pode ser de fonte interna, como de fonte supraestadual ou transnacional. O mesmo se

diga da utilização da mesma expressão nos arts. 17º e 18º CC.

Deste preceito resulta que a referência material é enunciada como regra geral. Mas não resulta a

adoção da tese da referência material, visto que se admite “preceito em contrário”, i.e., que se aceite a

devolução nos casos em que a lei o determine. Isto verifica-se desde logo nos arts. 17º, 18º, 36º/2 e

65º/1 in fine.

O legislador português consagrou então um sistema atípico de devolução.

⇒ Transmissão de competência:

O art. 17º permite, sob certas condições, a transmissão de competência.

Nos termos do seu nº 1, “se, porém, o direito internacional privado da lei referida pela norma de conflitos

portuguesa remeter para outra legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o direito interno

desta legislação que deve ser aplicado”.

“Remeter” deve entender-se “aplicar”; o que interessa é que L2 aplique uma terceira lei.

Os pressupostos da transmissão de competência são dois:

1) Que o Direito estrangeiro designado pela norma de conflitos portuguesa aplique outra OJ

estrangeira;

2) Que esta OJ estrangeira aceite a competência.

A transmissão de competência também é de admitir num caso de transmissão em cadeia, em que L2

aplique L4 e L4 se considere competente. Esta hipótese não é diretamente visada pelo texto do art.

17º/1, mas é abrangida pela sua ratio.

Sistemas de Referência Global

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Isto é de admitir mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por exemplo, quando L2

aplicar L4, e L4 se considerar competente, mas L3 aplicar L3; se não se atinge a harmonia com todas

as leis do circuito, alcança-se, pelo menos, a harmonia com L2 e com a lei aplicada por L2.

Logo, pode dizer-se, como diz MARQUES DOS SANTOS, que os pressupostos são:

i) Que L2 aplique Ln (pode ser L3, L4, etc.);

ii) Que Ln se considere competente.

Só podemos aplicar através da transmissão de competência uma lei que L2 aplique e que se considere

competente.

Vejamos o seguinte exemplo:

Sucessão mobiliária de francês, ainda não regida pelo Regulamento sobre sucessões, que falece com

último domicílio na Alemanha.

i. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês, a título de lei da última

nacionalidade do de cuiús;

ii. O Direito francês submete a sucessão mobiliária à lei do último domicílio do de cuius,

remetendo por isso para o Direito alemão;

iii. O Direito alemão, por seu turno, regula a sucessão pela lei da última nacionalidade,

remetendo para o Direito francês;

iv. Como tanto os tribunais franceses como os alemães praticam devolução simples, o

sistema francês aceita o retorno operado pela lei alemã, aplicando o seu Direito, e o sistema

alemão aceita o retorno operado pela lei francesa, aplicando o seu Direito;

v. Logo, L2 aplica L2 e L3 aplica L3;

vi. Neste caso não há transmissão de competência, porque L2, apesar de remeter

primariamente para L3, não aplica L3. Funciona a regra da referência material do art. 16º,

nos termos da qual se deve aplicar a lei francesa.

O art. 17º/2 determina que “cessa o disposto no número anterior, se a lei referida pela norma de conflitos

portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em território português ou em país cujas

normas de conflitos considerem competente o Direito interno do Estado da sua nacionalidade”.

Este preceito aplica-se em matéria de estatuto pessoal. Nesta matéria, a transmissão de competência,

estabelecida nos termos do nº 1, cessa em duas hipóteses:

i) O interessado tem residência habitual em Portugal;

ii) O interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica o Direito material do

Estado da nacionalidade.

Uma primeira dificuldade de interpretação deste preceito surge quando a lei pessoal não for

a lei da nacionalidade:

A 2ª parte do art. 17º/2 revela que o legislador representou L2 como sendo a lei da nacionalidade. À

luz da ratio deste preceito, também não faria sentido aplica-lo quando a lei pessoal fosse a da

residência habitual.

Em princípio, L2 tem de ser a lei da nacionalidade chamada a reger a matéria do estatuto pessoal.

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Outra dificuldade é determinar o interessado. Deve entender-se que é interessado aquele que

desencadeou o funcionamento do elemento de conexão que designou L2. Por exemplo, na

sucessão o interessado é o de cuius.

A concretização no tempo do elemento de conexão residência habitual também pode

suscitar dificuldades. Por exemplo, perante o art. 53º CC que, em matéria de substância e

efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, manda atender à lei nacional dos

nubentes ao tempo da celebração do casamento. Se entretanto mudou a residência habitual,

qual é a relevante para a aplicação do art. 17º/2: a residência habitual à data do casamento ou a

residência habitual atual? Parece que é a residência habitual ao tempo do casamento, pois de

outro modo a mudança de residência habitual poderia desencadear uma mudança do regime

de bens.

Enfim, a lei da residência habitual pode remeter para a lei da nacionalidade (L2), mas não a aplicar,

por aceitar a transmissão de competência operada pela lei da nacionalidade, ou pode remeter para o

Direito português e vir a aplicar a lei da nacionalidade, também através da devolução.

Qual a razão de ser do art. 17º/2? Por que razão se dificulta a transmissão em matéria de estatuto pessoal?

Aqui dá-se relevância ao elemento de conexão residência habitual, mas para dificultar a aplicação de

uma lei diferente da lei da nacionalidade. É a primazia da conexão nacionalidade que sai realçada.

São estas as razões apresentadas no anteprojeto de 1964, que é da autoria de FERRER CORREIA e

contou com a colaboração de BATISTA MACHADO:

1) Quando o interessado tem residência habitual em Portugal, existe uma conexão estreita com

o Estado do foro. “Se o Estado do foro é o da residência do interessado, o Estado do foro não deve

abdicar da solução que elegeu por mais justa: a lei competente continuará a ser para ele a lei nacional”.

2) Quando o interessado tem residência habitual no Estado da nacionalidade ou no Estado para

que remete a lei da nacionalidade, o problema não se coloca, visto que obviamente neste caso

a lei da residência habitual não aplica a lei da nacionalidade.

A 2ª parte do 17º/2 releva quando o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica a

lei da nacionalidade. Nesta hipótese, verificamos que a lei da nacionalidade remete para um Estado

que não é o da residência habitual. Portanto, a lei da nacionalidade não consagra, em princípio,

relativamente a dada matéria que para nós se integra no estatuto pessoal, os elementos de conexão

normalmente relevantes nesta matéria: a nacionalidade, o domicílio ou a residência habitual.

E verificamos que face à lei da residência habitual, é aplicável a lei da nacionalidade. Neste caso, se

aplicarmos L3 conseguimos harmonia com a lei da nacionalidade, mas não com a lei da residência

habitual; e vamos aplicar uma lei que porventura não tem uma ligação íntima nem estável com o

interessado.

Nestas circunstâncias, a harmonia internacional não justificaria o abandono da conexão julgada mais

adequada para reger o estatuto pessoal, a lei da nacionalidade. Por isto cessa a devolução e aplicamos

a lei da nacionalidade.

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LP: esta fundamentação tem a sua lógica, mas suscita algumas reservas:

i. Por um lado, observe-se que o art. 17º/2 também faz cessar a devolução quando L3 for

a lei do domicílio, se este não coincidir com a residência habitual, e a lei da residência

habitual aplicar a lei da nacionalidade.

ii. Por outro lado, a harmonia internacional é especialmente importante em matérias do

estatuto pessoal e, em princípio, é mais importante a harmonia com a lei da

nacionalidade do que a harmonia com a lei da residência habitual.

Em certos casos, porém, o art. 17º/3 vem repor a transmissão de competência. Assim como o art.

17º/2 só se aplica quando há transmissão de competência face ao art. 17º/1, o art. 17º/1 só se aplica

quando antes se tenham verificado as previsões das normas contidas nos nºs 1 e 2.

Determina este preceito: “Ficam, todavia, unicamente sujeitos à regra do n.º 1 os casos da tutela e curatela,

relações patrimoniais entre os cônjuges, poder paternal, relações entre adotante e adotado e sucessão por morte,

se a lei nacional indicada pela norma de conflitos devolver para a lei da situação dos bens imóveis e esta se

considerar competente”.

São quatro os pressupostos de aplicação deste preceito:

1. Que se trate de uma das matérias nele indicadas;

2. Que a lei da nacionalidade aplique a lex rei sitae;

3. Que a lex rei sitae se considere competente;

4. Que se verifique um dos casos de cessação da transmissão de competência previstos no nº 2.

Temos aqui um afloramento do princípio da maior proximidade. Nos termos do art. 17º/3, o Direito

de conflitos português admite abandonar o seu critério de conexão para assegurar a efetividade das

decisões dos seus tribunais, quando o Direito da nacionalidade estiver de acordo na aplicação da lex

rei sitae.

⇒ Retorno:

O art. 18º CC vem admitir, sob certas condições, o retorno de competência. Este art. estabelece que

“Se o direito internacional privado da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno

português, é este o direito aplicável”.

O retorno de competência depende, pois, em princípio, de um único pressuposto: que L2 aplique o

Direito material português.

A razão de ser deste pressuposto prende-se com o facto de só neste caso o retorno ser condição

necessária e suficiente para assegurar a harmonia com L2. Logo, se L2 remete para o Direito

português, mas não aplica a lei portuguesa, não aceitamos o retorno.

Por exemplo, a sucessão mobiliária de um francês, ainda não regida pelo Regulamento sobre

sucessões, com último domicílio em Portugal:

i. A norma de conflitos portuguesa remete para a lei francesa como lei da última

nacionalidade do de cuius;

ii. A lei francesa submete a sucessão mobiliária à lei do último domicílio, razão por que

remete para a lei portuguesa;

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iii. Mas, como pratica devolução simples, aceita o retorno operado pela lei portuguesa e

considera-se competente;

iv. Como L2 não aplica L1, não aceitamos o retorno, e aplicamos L2, nos termos do art. 16º

CC.

Por forma geral, podemos dizer que nunca aceitamos o retorno direto operado por um sistema que

pratica devolução simples.

NOTA: o retorno pode ser indireto; o que interessa é que L2 aplique o Direito material português.

Assim, se L2 remete para L3, com devolução simples, e L3 remete para o Direito português, L2 aplica

o Direito material português.

Maiores dificuldades suscita a hipótese de retorno direto em que L2 não remeta direta e

imediatamente para o Direito material português, mas antes condicione a resposta ao sistema de

devolução português. Ou seja, um sistema que aplique ou não o Direito material português conforme

o nosso Direito de conflitos aceite ou não o retorno:

o Isto pode suceder no caso de retorno direto operado seja por um sistema que faça devolução

integral seja por uma lei que tenha um sistema de devolução igual ao nosso. Pode ser um

PALOP, uma vez que alterámos certos elementos de conexão com a reforma de 1977.

Para o caso de L2 fazer devolução integral, BATISTA MACHADO defendeu que seria

de aceitar o retorno, porque se o Direito português aceitar o retorno, L2 aplicará o Direito

material português. Invocou ainda, neste sentido, que a aplicação da lei portuguesa

facilita a administração da justiça.

LP entende que este argumento encerra um paralogismo, uma vez que tem de entrar

com a conclusão nas premissas: nós aceitamos o retorno se L2 aplicar Direito material

português; L2 aplica o Direito material português se nós aceitarmos o retorno.

O retorno também é limitado em matéria de estatuto pessoal. Com efeito, o art. 18º/2 estabelece que

“Quando, porém, se trate de matéria compreendida no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o

interessado tiver em território português a sua residência habitual ou se a lei do país desta residência considerar

igualmente competente o direito interno português”.

Este preceito só se aplica quando há retorno nos termos do nº 1. Em matéria de estatuto pessoal, o

retorno só é aceite em duas hipóteses:

i) Quando o interessado tem residência habitual em Portugal;

ii) Quando o interessado tem residência habitual num Estado que aplica o Direito material

português.

A razão de ser deste preceito também é a ideia de primazia da conexão lei da nacionalidade. Mas é

difícil de entender a razão por que se dificulta mais o retorno do que a transmissão de competência:

perante o art. 17º/2, a transmissão de competência só cessa em duas hipóteses; perante o art. 18º/2, o

retorno só se mantém em dois casos.

Nos casos em que a lei da residência habitual se considera competente ou aplica uma lei estrangeira

que não é a da nacionalidade, há transmissão mas não há retorno.

Segundo a nota do anteprojeto, a explicação está em que, em caso de retorno, se o elemento

de conexão da lei da nacionalidade designa a lei portuguesa, tal significa, em regra, que há

uma conexão forte com a OJ do foro. Se há, por regra, forte conexão com o foro, também por

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regra a harmonia com a lei da nacionalidade não justifica o abandono do critério de conexão

do foro. A harmonia internacional só justificaria neste caso o retorno quando este for condição

necessária e suficiente para se alcançar a harmonia entre a lei portuguesa, a lei da

nacionalidade e a lei da residência habitual.

⭐ Favor negotii como limite à devolução

O art. 19º CC dispõe que “Cessa o disposto nos dois artigos anteriores, quando da aplicação deles resulte a

invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz segundo a regra fixada no artigo 16.º,

ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo seria legítimo”.

Neste preceito, o favor negotii paralisa a devolução. A nota do anteprojeto manifesta a preocupação

de facilitar e desenvolver o comércio internacional por meio do favorecimento da validade e eficácia

dos negócios jurídicos. Isto significa, na prática, uma primazia do favor negotii sobre a harmonia

jurídica internacional.

Este preceito tem um enorme alcance: sempre que haja devolução por força dos arts. 17º ou 18º, esta

devolução é paralisada se L2 for mais favorável à validade ou eficácia do negócio ou à legitimidade

de um Estado que a lei aplicada através da devolução.

FERRER CORREIA e BATISTA MACHADO vieram defender uma interpretação restritiva

que limita o alcance do preceito com base na ideia da tutela da confiança: o art. 19º/1 só seria

aplicável às situações já constituídas – e não à sua constituição em Portugal com a intervenção

de uma autoridade pública –, e desde que a situação esteja em contacto com a OJ portuguesa

ao tempo da sua constituição. Só neste caso o interessado ou interessados poderiam ter

confiado na válida constituição da situação segundo a lei designada pela nossa norma de

conflitos.

LP não concorda com esta interpretação restritiva. A interpretação terá que respeitar o sentido

possível do texto legal. A restrição proposta parece ir além de uma interpretação restritiva,

tratando-se antes de uma verdadeira redução teleológica, que teria de ser justificada à luz do

fim da norma ou de outros princípios ou valores do sistema de Direito de conflitos.

i. Ora, tudo indica que o legislador quis dar primazia ao princípio do favor negotii

relativamente à harmonia internacional.

ii. Por outro lado, fundamentar o disposto no art. 19º/1 na tutela da confiança

pressuporia que os sujeitos das situações transnacionais se podem orientar pelas

nossas normas de conflitos, mas não pelas nossas normas sobre devolução.

⭐ Casos em que Não é Admitida a Devolução

1) À face do Direito de conflitos de fonte interna, a devolução não é admitida quando a remissão

é feita pelo elemento de conexão designação pelos interessados, utilizado mormente nos arts.

34º CC (pessoas coletivas internacionais) e 41º CC (obrigações voluntárias).

Com efeito, o nº 2 do art. 19º determina que “Cessa igualmente o disposto nos mesmos artigos, se a lei

estrangeira tiver sido designada pelos interessados, nos casos em que a designação é permitida”. Em rigor não

se trata de fazer cessar ou paralisar a devolução. Não se aplicam os arts. 17º ou 18º dada a natureza

do elemento de conexão.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Pode ver-se aqui um afloramento da ideia de que há conexões adversas ao reenvio.

2) A devolução também não é admitida em certas matérias reguladas por Direito de conflitos

europeu e internacional.

No que toca às obrigações, o art. 15º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações

Contratuais, o art. 20º Reg. Roma I (em princípio) e o art. 24º Reg. Roma II excluem o reenvio, quer

se trate da lei designada pelas partes, quer da lei objetivamente determinada. O mesmo se verifica

com o art. 11º Reg. Roma III em matéria de divórcio e separação judicial.

Pelo menos em matéria de obrigações, estes preceitos não excluem que as partes designem como

aplicável um sistema globalmente considerado, incluindo o respetivo Direito de conflitos. É o que

se verifica, por exemplo, quando as partes remetam para o “Direito aplicável nos tribunais do Estado X”.

Neste caso, tem de ser tomado em conta o Direito de conflitos da lei designada, mas trata-se de

respeitar a vontade das partes e não de devolução.

Outras matérias em que a devolução não é admitida por Convenções internacionais de unificação do

Direito de conflitos são as obrigações alimentares, a representação voluntária e os “contratos de

mediação”. Assim, a referência feita pelas normas de conflitos das Convenções sobre estas matérias

deve ser entendida como referência material.

LP considera, por princípio, injustificada a exclusão geral do reenvio feita nas Convenções

internacionais atrás mencionadas e Regs. Roma I, II e III. O objetivo visado com a unificação

justifica a exclusão do reenvio quando as normas de conflitos unificadas remetam para a lei

de um Estado vinculado pelo instrumento de unificação, mas já não quando remetam para a

lei de um terceiro Estado. É assim correta a mudança de orientação ocorrida com o

Regulamento sobre sucessões.

O art. 24º CVM exclui a devolução em certas matérias relativas a valores mobiliários, introduzindo

assim um desvio em relação ao regime aplicável a outras normas de conflitos internas que é

dificilmente compreensível à luz das finalidades prosseguidas pelo Direito de conflitos.

⭐ Regimes Especiais de Devolução

No Código Civil encontramos disposições especiais sobre devolução em matéria de forma, nos arts.

36º/2 e 65º/1 in fine.

Aqui o favor negotii atua como fundamento autónomo de devolução. É o favorecimento da validade

formal do negócio e não apenas a harmonia jurídica internacional o objetivo que é prosseguido pela

admissibilidade da devolução nestes casos.

O nº 1 do art. 36º contém uma conexão alternativa, que abre a possibilidade de o negócio obedecer

à forma prescrita por uma das duas leis aí indicadas. O nº 2 cria uma terceira possibilidade: a

observância da forma prescrita pela lei para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da

celebração.

Não se exige que L3 se considere competente, e é aí que reside a grande diferença com o regime

contido no nº 1 do art. 17º.

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Tem-se entendido que o art. 36º/2 adota um sistema de devolução simples:

Neste sentido pode argumentar-se que o preceito manda atender à norma de conflitos da lei

do lugar da celebração, nada referindo sobre o seu sistema de devolução.

Mas será de entender o termo “remete” de forma diferente no art. 36º/2 e no art. 17º/1? LP entende

que não: o que releva é a lei aplicada pela lei do lugar da celebração. O favorecimento da

validade formal não deve ser cego à importância da harmonia com L2 e à confiança depositada

no DIP desta lei. Assim, o Prof. entende que este caso de devolução deve ser considerado em

termos de devolução integral.

E se a lei do lugar da celebração aplicar o Direito material português? A ideia reguladora parece

abranger esta hipótese. Mas para quem entenda, como é o caso de LP, que não está excluída a

aplicação do art. 18º à remissão operada pela norma de conflitos do art. 36º/1, pode

configurar-se uma hipótese de retorno nos termos desse preceito, sem que seja necessário

recorrer ao art. 36º/2.

O que ficou exposto em relação ao art. 36º/2 aplica-se à hipótese de devolução admitida pelo art.

65º/1 in fine. Aqui a devolução vem abrir uma quarta possibilidade para salvar a validade formal de

uma disposição por morte.

Fora do Código Civil encontramos regimes especiais de devolução, em matéria de nome, direitos

de propriedade intelectual e sucessões.

o A Convenção de Munique sobre a Lei Aplicável aos Nomes Próprios e Apelidos remete para

a lei da nacionalidade; esta remissão deve ser entendida como uma referência global, que

abrange o Direito de conflitos desta lei.

o Também em matéria de direitos de propriedade intelectual, a remissão para o Direito do

Estado de proteção deve ser entendida como referência global; isto decorre do fundamento

desta conexão.

o O Regulamento sobre sucessões, alterando a orientação até aí seguida pelos regulamentos

europeus, admite a devolução em caso de remissão para a lei de um terceiro Estado (i.e., de

um Estado que não é vinculado pelo Regulamento). Neste caso, a devolução é admitida

quando as normas de DIP do terceiro Estado remetam (art. 34º/1):

i. Para a lei de um EM; ou

ii. Para a lei de outro Estado terceiro que se considere competente.

A devolução não opera quando a lei aplicável à sucessão resultar da cláusula de exceção (art. 21º/2)

ou escolha pelo autor da sucessão (art. 22º), em matéria de validade formal das disposições por

morte feitas por escrito (art. 27º) e da aceitação ou repúdio da herança (art. 28º), nos termos do art.

34º/2.

O preceito contido no art. 34º/1 suscita diversos problemas de interpretação:

i) Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se a remissão operada pela lei do Estado

terceiro para outro ordenamento deve ou não ser entendida em termos de aplicabilidade

da lei deste ordenamento.

Ou seja:

a) Há quem entenda que basta que a lei do Estado terceiro remeta para a lei de um EM (al. a)) –

critério literal;

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b) A maioria da doutrina portuguesa (incluindo LP), entende que não basta que a lei do Estado

terceiro remeta para a lei de um EM, é necessário também que aplique essa lei do EM. O Prof.

LIMA PINHEIRO apresenta dois argumentos neste sentido:

i. A expressão “normas de direito internacional privado” é suficientemente ampla para abarcar

não só as normas de conflitos mas também as normas do sistema de devolução.

ii. Considerando 57 – este Regulamento só admitiu o reenvio para assegurar a coerência

internacional com Estados-terceiros; isso significa conseguir harmonia internacional de

julgados com os Estados-terceiros. Assim, se é esse o objetivo, não faz sentido interpretar

“remeter” literalmente; desse modo acabaríamos por usar o reenvio para aplicar uma lei

diferente daquela que seria aplicada pelos tribunais do Estado-terceiro.

ii) Em segundo lugar, parece que o preceito admite a devolução sempre que a lei de um

terceiro Estado considera aplicável a lei de um EM, mesmo que não seja o EM do foro. Isto

abrange, por conseguinte, casos de transmissão de competência (para a lei de um EM que

não é o do foro) e casos de retorno.

Na opinião de LP, a aceitação do retorno parece justificada, neste caso, desde que se entenda que ele

só opera quando a lei do terceiro Estado considere aplicável o Direito material do foro ou de outro

EM.

⭐ Caracterização do Sistema de Devolução

São três as características do sistema de devolução vigente na OJ portuguesa:

♢ A regra geral é a da referência material. Isto decorre não tanto dos pressupostos da devolução

enunciados nos nºs 1 dos arts. 17º e 18º, mas dos limites colocados à devolução pelos seus nºs

2, em matéria de estatuto pessoal, pelo art. 19º e pela maioria dos instrumentos internacionais

e europeus.

♢ Os arts. 17º e 18º contêm regras especiais, que admitem a devolução, configurando um

sistema de devolução sui generis, visto que não corresponde à devolução simples nem à

devolução integral. No entanto, parece mais próximo da inspiração da devolução integral,

visto que a devolução depende sempre do acordo com L2.

♢ Em matéria de forma do negócio jurídico, admite-se a transmissão de competência para uma

lei que não esteja disposta a aplicar-se para obter a validade formal do negócio (arts. 36º e 65º

CC).

⭐ Apreciação Crítica (LP)

O sistema de devolução configurado pelos nºs 1 dos arts. 17º e 18º tem a sua lógica: à semelhança da

devolução integral, promove a harmonia com L2, mas mostra-se superior à devolução integral

porquanto evita o círculo vicioso em caso de retorno direto por parte de um Direito que faça

devolução integral ou tenha um sistema de devolução semelhante ao nosso e faz depender a

transmissão de competência da harmonia com a lei aplicada por L2.

No entanto, suscitam reservas os limites colocados à devolução em matéria de estatuto pessoal, como

anteriormente referido. É justamente em matéria de estatuto pessoal que a harmonia internacional é

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mais importante; estes limites vão ao arrepio da tendência geral que se manifesta nos principais

sistemas estrangeiros.

LP afirma que ainda mais difícil de entender é que, nesta matéria, se dificulte mais o retorno que a

transmissão. A razão de ser desta diferença de tratamento reside no facto de nos casos de retorno

haver em regra uma conexão mais significativa com o ordenamento do foro, visto que o elemento de

conexão da lei da nacionalidade aponta para o nosso ordenamento.

Contudo, LP entende que este argumento não oferece uma explicação suficientemente satisfatória:

tem de haver sempre uma conexão com o ordenamento português tanto nos casos de retorno como

nos de transmissão, pois caso contrário o Direito de conflitos português não será aplicável.

O Prof. entende que apenas em domínios como o do Direito patrimonial se justifica que o princípio

do favor negotii tenha um valor superior àquele que lhe é de conceder em matéria de estatuto pessoal.

Mas mesmo aí crê que não se justifica sempre um favorecimento da validade do negócio jurídico.

A FRAUDE À LEI

A fraude à lei é conhecida como um instituto jurídico de alcance geral em alguns sistemas (como o

francês). Não é o caso dos sistemas do Common Law nem do Direito alemão. No Direito português, o

ponto é controverso:

A favor da autonomia do instituto: ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, CASTRO

MENDES, entre outros;

Contra esta autonomia: VAZ SERRA, MENEZES CORDEIRO, PPV, entre outros.

O problema da fraude à lei em Direito privado material surge-nos principalmente no domínio dos

negócios jurídicos, quando os sujeitos procuram tornear uma proibição legal através da utilização de

um tipo negocial não proibido. Para quem admite a autonomia da fraude à lei, esta apresenta-se,

então, como uma violação indireta de uma norma proibitiva.

No Direito de conflitos internacional privado, a ideia geral é a mesma, mas o processo é diferente.

Trata-se geralmente de alcançar o resultado que a norma proibitiva visa evitar, mas a manobra

defraudatória consiste no afastamento da lei que contém essa norma proibitiva, na “fuga de uma

ordem jurídica para outra”.

Mas também é concebível a defraudação de normas imperativas não proibitivas (por exemplo, as

que estabeleçam requisitos de forma de negócios jurídicos) através do afastamento da lei que as

contém – é o caso das normas que contêm requisitos de forma para os negócios jurídicos.

O instituto da fraude à lei suscitou sempre muita controvérsia no Direito de conflitos internacional

privado:

i. A doutrina dominante na Itália e alguns autores germânicos negam a relevância autónoma

da fraude à lei neste ramo do Direito. Mas isto tem por consequência ou a complacência

com as manobras defraudatórias ou remeter para o plano da interpretação de cada norma

de conflitos a questão de saber se a manobra contra a lei normalmente competente é ou

não eficaz, o que gera uma indesejável incerteza.

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ii. Um importante setor da doutrina menos recente encarava a fraude à lei como um caso

particular da ordem pública internacional. Hoje tende-se a estabelecer uma clara distinção

entre os dois institutos:

a. Na ordem pública internacional está em causa a compatibilidade do resultado a que

conduz a aplicação da lei estrangeira com a justiça material da ordem jurídica do foro;

b. Na fraude à lei está em causa o afastamento da lei normalmente competente e o

desrespeito da norma imperativa nela contida, ainda que o Direito do foro não

contenha uma norma equivalente.

iii. Os regulamentos europeus também são omissos sobre a relevância da fraude à lei no

Direito de Conflitos. Para além de ser desejável que este instituto fosse abrangido por uma

codificação europeia do DIP, LP entende que a jurisprudência do TCE/TJUE não

condiciona a atuação das normas internas dos Estados Membros nesta matéria. Será,

porém, bem vinda uma clarificação do TJUE sobre a possibilidade de a fraude à lei ser

autonomamente sancionada dentro do domínio de aplicação destes Regulamentos.

iv. Tal como é conformado pelo Direito de Conflitos português, o instituto da fraude à lei

constitui um instrumento da justiça da conexão e um limite ético colocado à autonomia

privada na modelação do conteúdo concreto dos elementos de conexão.

Quanto à tipologia da fraude à lei em Direito dos Conflitos, podemos distinguir:

Manipulação do elemento de conexão – para afastar a lei normalmente competente, o agente

da fraude vai modelar o conteúdo concreto do elemento de conexão.

Internacionalização fictícia de uma situação interna – para afastar o Direito material vigente

na OJ interna, que é exclusivamente aplicável a uma situação interna, estabelece-se uma

conexão com um Estado estrangeiro, por forma a desencadear a aplicação de Direito

estrangeiro. Por exemplo, dois portugueses, residentes em Portugal, para fugirem aos limites

fixados pela lei portuguesa à taxa de juros do mútuo, vão celebrar um contrato interno a

Badajoz e escolhem a lei espanhola para reger o contrato.

Os elementos da fraude são dois:

i) Elemento objetivo – consiste na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na

internacionalização fictícia de uma situação interna.

Para que se verifique a manipulação com êxito do elemento de conexão, tem de haver, em primeiro

lugar, uma manobra contra a lei normalmente aplicável. Tal não ocorre quando se dá às partes a

possibilidade de escolher a lei normalmente competente, como sucede, designadamente, em matéria

de contratos obrigacionais (desde que o contrato seja internacional). Entende-se geralmente que é

necessário que na lei normalmente competente exista efetivamente uma norma imperativa que é

objeto da fraude.

Como conciliar isto com a afirmação de que é a norma de conflitos o objeto da fraude feita por autores como

Kegel, Ferrer Correia e Baptista Machado? Segundo LP, importa esclarecer em que sentido se fala de

objeto de fraude: a fraude visa afastar uma norma material utilizando a norma de conflitos como um

instrumento. A norma de conflitos não é objeto de fraude no sentido de ser afastada pela manobra

defraudatória; mas já será objeto da fraude no sentido em que há uma atuação sobre esta norma que

conduz à frustração das suas finalidades. A instrumentalização da norma de conflitos põe em causa

a justiça da conexão que ela veicula.

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A manipulação tem de ter êxito, i.e., tem de desencadear o chamamento de uma lei diferente. Com

FERRER CORREIA, podemos ainda afirmar que não haverá fraude no caso de a conduta fraudulenta

consistir na mudança de nacionalidade e o naturalizado se integrar seriamente na sua nova

comunidade nacional. Neste caso, poderá dizer-se que há inicialmente fraude à lei – porque a

naturalização é feita com o intuito de afastar a lei da nacionalidade anterior –, mas que a fraude é

sanada pela integração efetiva na nova comunidade nacional.

ii) Elemento subjetivo – consiste na vontade de afastar a aplicação de uma norma imperativa

que seria normalmente aplicável. É necessário dolo, não há fraude por negligência. O dolo

incide sobre a modelação do conteúdo concreto do elemento de conexão ou sobre a

internacionalização fictícia da situação interna. Este elemento subjetivo tem geralmente de

ser inferido dos factos, com base em juízos de probabilidade fundados em regras de

experiência.

Ao consagrar este elemento subjetivo, o Direito de conflitos português adota uma conceção

subjetivista de fraude à lei.

Casos em que o legislador qualifica o elemento de conexão de modo a evitar ou dificultar a fraude;

fala-se, a este respeito, de medidas preventivas da fraude:

Assim, no art. 33º/1 CC, quanto à lei pessoal da pessoa coletiva, o legislador manda atender

à sede principal e efetiva da administração da pessoa coletiva. Evita-se assim a relevância de

uma sede fictícia, i.e., de uma sede em que não funcionam quaisquer órgãos da pessoa coletiva.

Não é de excluir, porém, que possa verificar-se uma manipulação fraudulenta da própria sede

da administração, caso em que a fraude deve ser sancionada.

Assim também em certos casos de imobilização do elemento de conexão em que se fixa

definitivamente o momento da sua concretização. Por exemplo, no art. 55º/2 CC, quando se

determinava que em caso de mudança de lei competente na constância do matrimónio só pode

fundamentar a separação ou o divórcio algum facto relevante perante a lei competente ao

tempo da sua verificação. Pretendia-se evitar a alteração da relevância do facto mediante a

mudança da lei aplicável. Hoje esta matéria é regulada pelo Regulamento Roma III.

⭐ Sanção da Fraude

Quanto à sanção da fraude existem duas posições:

i. Fraus omnia corrumpit (FERNANDO OLAVO), considera que todos os atos integrados no

processo fraudulento, incluindo, por exemplo, a própria naturalização no estrangeiro, são

nulos ou, para todos os efeitos, inoperantes (desenvolvida pela jurisprudência francesa e

seguida, entre nós, por Fernando Olavo);

ii. Outra posição, aceite posteriormente na doutrina portuguesa, assinala que o Estado do

foro não pode declarar inválida a aquisição de uma nacionalidade estrangeira. O que o

Direito de Conflitos do foro pode fazer é recusar a essa naturalização qualquer efeito na

aplicação da norma de conflitos.

O caminho seguido pelo legislador português, no art. 21º CC, vai neste segundo sentido. Dispõe este

preceito que “na aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas

com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente”.

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Do texto deste artigo decorre claramente que a sanção da fraude à lei no Direito de conflitos se

confina àquilo que respeite à aplicação das normas de conflitos. Sendo irrelevante a manipulação

do elemento de conexão ou a internacionalização fictícia com intuito fraudulento, a sanção da fraude

consiste em aplicar a lei normalmente competente.

Mas note-se, irrelevante é a manipulação ou a internacionalização, não os atos praticados.

Outro ponto controverso tem sido o da sanção da fraude à lei estrangeira, que acontece quando é o

elemento de conexão da lei estrangeira que é manipulado:

o Segundo uma orientação, que no passado foi dominante na Alemanha e em Franca, só deveria

ser sancionada a fraude à lei do foro.

o Hoje é geralmente aceite que a fraude à lei estrangeira também deve ser sancionada.

Outra questão é a de saber se no tratamento da fraude à lei estrangeira se deve ter em conta a posição

da lei defraudada. Esta questão divide a doutrina portuguesa:

FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO não diferenciam entre a sanção da fraude à lei

do foro e a sanção da fraude à lei estrangeira;

ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO defende que enquanto a fraude à lei do foro é sempre

sancionada, a fraude à lei estrangeira só é sancionada em dois casos:

i. Se a lei estrangeira defraudada também sanciona a fraude;

ii. Se embora a lei estrangeira defraudada não sancione a fraude, está em causa, na

perspetiva do DIP do foro, um princípio do mínimo ético nas relações internacionais,

que não se conforma com o desrespeito da proibição contida na lei normalmente

competente.

A favor desta diferenciação pesa a harmonia internacional de soluções: se não atendermos à posição

da lei estrangeira defraudada perante a fraude, arriscamo-nos a sancionar uma fraude que esta lei

não sanciona, o que conduz à desarmonia de soluções.

Claro que este resultado também poderia ser evitado mediante a aceitação da devolução operada pela

lei normalmente competente quando esta não reage à fraude. Mas perante um sistema de devolução

como o nosso, em que a regra geral é a referência material, parece necessário atender à harmonia

internacional no próprio plano da sanção da fraude.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, a fraude à lei estrangeira que não reaja à fraude deve ser sancionada,

excecionalmente, quando seja eticamente intolerável à face do Direito de Conflitos português. O

afastamento de uma norma imperativa estrangeira através de uma manipulação do elemento de

conexão pode ser inaceitável à luz de valores éticos que integram a justiça da conexão. Mesmo neste

caso, portanto, é a justiça da conexão e não a justiça material que está em causa, mantendo-se uma

distinção clara entre fraude à lei e ordem pública internacional.

QUALIFICAÇÃO

⭐ Enquadramento e Método

Numa aceção ampla, trata-se de resolver os problemas de interpretação e aplicação da norma de

conflitos que dizem respeito aos conceitos técnico-jurídicos utilizados na sua previsão, como

“estado”, “capacidade”, etc.

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Estes conceitos delimitam o objeto da remissão. O que é objeto da remissão, a matéria que a norma de

conflitos remete para dado Direito? O objeto da remissão são situações da vida ou aspetos de situações

da vida transnacional.

Em sentido estrito, a qualificação é tradicionalmente concebida como a operação pela qual se

subsume uma situação da vida, ou um seu aspeto, no conceito técnico-jurídico utilizado para

delimitar o objeto da remissão.

O interesse e a dificuldade da qualificação está, em primeira linha, em saber se dada realidade se

reconduz à previsão de determinada norma, designadamente se é reconduzível à norma x ou à norma

y. É o problema da delimitação do âmbito de aplicação das diferentes normas.

A qualificação é um processo que se verifica quer na aplicação das normas de conflitos quer na

aplicação das normas materiais. Para o DIP vale muito da temática geral, mas soma-se-lhe uma

problemática específica que advém de não se operar apenas com um sistema de normas materiais. A

qualificação em Direito Internacional Privado tem de ter em conta dois níveis:

i. O Direito material;

ii. O Direito de Conflitos;

e a pluralidade de ordens jurídicas em presença.

O nosso sistema de Direito de conflitos dispõe de uma norma relevante em matéria de qualificação.

Nos termos do art. 15º CC, “a competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu

conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.

⇒ Operações envolvidas na qualificação:

Não deve isolar-se a interpretação da aplicação, nem a delimitação do âmbito de aplicação da norma

do apuramento das circunstâncias do caso relevantes para a sua aplicação. O aplicador tem de fazer

um “vaivém” entre a norma e o caso, o qual se vem a traduzir quer numa adaptação da norma às

circunstâncias do caso quer num enriquecimento do conteúdo dos conceitos a que recorre a previsão

normativa.

Os problemas que estudamos dentro da qualificação em sentido amplo são, fundamentalmente,

problemas de interpretação da norma de conflitos. Tradicionalmente, a qualificação é encarada

segundo um esquema subsuntivo, baseado na lógica formal, o silogismo de subsunção. Assim, em

sentido amplo, o problema da qualificação envolve três momentos:

1) Estabelece-se a premissa maior, que é a previsão da norma de conflitos. O estabelecimento

desta premissa envolve a interpretação da proposição jurídica, por forma a determinar a

previsão normativa, mediante um enunciado das suas notas concetuais.

2) Estabelece-se a premissa menor, por meio de uma delimitação do objeto da remissão, i.e., a

determinação das situações da vida (alguns autores sustentam que o objeto da remissão é a

caracterização das normas materiais aplicáveis a essa situação da vida) que se vão subsumir.

Esta delimitação é feita tendo em atenção notas características jurídicas, envolvendo uma

caracterização das situações da vida. Em rigor, a premissa menor não é constituída por factos,

mas por um enunciado de que as notas características da previsão normativa se encontram

preenchidas em determinada situação da vida.

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3) Subsunção, traduzindo-se na recondução da matéria delimitada na previsão normativa.

Corresponde à qualificação em sentido estrito. É um momento largamente pré-determinado

pelos dois anteriores.

Relativamente a este esquema subsuntivo cabe fazer duas advertências:

i. Tende hoje a admitir-se que na maioria dos casos a interpretação-aplicação não poderá

ser reconduzida exclusivamente a operações lógico-formais. Frequentemente será

necessária uma valoração. Isto assume especial importância perante conceitos

caracterizados por uma elevada indeterminabilidade, como são os conceitos utilizados na

previsão das normas de conflitos.

Já é controverso se o esquema subsuntivo pode ou não ser mantido:

o Alguns autores entendem que a recondução dos factos à previsão normativa pode assentar

não só numa subsunção mas também num raciocínio de coordenação valorativa;

o Outros defendem que as operações envolvidas na aplicação da regra, apesar de envolverem

uma valoração, ainda podem ser configuradas segundo um esquema subsuntivo.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, pela simples circunstância de o preenchimento de uma nota

concetual ser objeto de uma valoração não fica excluída a sua idoneidade para a subsunção. Todavia,

há conceitos carecidos de preenchimento valorativo que são insuscetíveis de uma definição, mesmo

perante as modernas teorias de definição, daí que o Prof. considere duvidoso que ainda se possa falar

de subsunção a respeito da recondução dos factos a estes conceitos.

Enfim, é certo que isto diz respeito ao estabelecimento da premissa menor do silogismo judiciário – a

recondução dos factos à previsão normativa – e não impede que a aplicação destas regras seja

silogisticamente fundamentada. Por outras palavras, o silogismo judiciário parece possível sem o

silogismo de subsunção. Sendo também certo que este silogismo judiciário não permite fundamentar

a solução segundo processos lógico-formais, mas tão-somente assegurar a racionalidade desta

fundamentação.

A elevada indeterminabilidade dos conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos não

obsta, de per si, ao enunciado das suas notas características. Estas notas tanto podem ser estruturais

como funcionais e na apreciação do seu preenchimento é frequentemente necessária uma valoração.

O esquema subsuntivo pode geralmente ser mantido (em sentido contrário, DÁRIO MOURA

VICENTE), mas a aplicação da norma de conflitos transcende frequentemente as operações lógico-

formais.

ii. O esquema subsuntivo apresentado não é um esquema para a resolução de casos práticos,

serve apenas para a compreensão das várias operações incluídas na qualificação em

sentido amplo.

⇒ Interpretação dos conceitos que delimitam o objeto da remissão:

No Código Civil, o legislador optou por utilizar na previsão das normas de conflitos conceitos

técnico-jurídicos que se reportam a categorias de situações jurídicas definidas pelo seu conteúdo

típico e por notas funcionais ou a questões parciais.

A secção do Código Civil dedicada ao Direito de conflitos reproduz grosso modo toda a sistemática do

Código Civil e, com ela, a classificação germânica das situações jurídicas em obrigações, direitos reais,

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relações de família e sucessões por morte. Esta classificação não obedece a um critério unívoco, nem

permite uma inserção adequada de todas as figuras. É uma classificação que reparte as matérias em

centros de regulação numa ótica pragmática e que reflete certos elementos culturais.

As obrigações e os direitos reais são situações jurídicas agrupadas segundo um critério estrutural,

i.e., atendendo ao conteúdo da situação jurídica. Em matéria de obrigações, a secção do Código

dedicada ao Direito de conflitos também distingue, seguindo o critério das fontes das obrigações,

entre obrigações provenientes de negócio jurídico, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa

e a responsabilidade extracontratual. Esta distinção também é seguida pela Convenção de Roma, pelo

Regulamento Roma I e Roma II.

Já o critério de agrupamento seguido relativamente às relações de família e às sucessões parece ser

outro; é um critério de pendor funcional e institucional. Nas sucessões, a transmissão de direitos

mortis causa; no Direito da família, as situações jurídicas que respeitam à instituição familiar.

A propósito da estrutura da norma de conflitos já observámos que certas normas de conflitos se

reportam a questões parciais, tais como a capacidade negocial e a forma, que são requisitos de

validade de negócios jurídicos. A extensão do objeto da norma de conflitos deve ser aquele que

convenha à sua estatuição, à remissão. A interpretação da norma de conflitos tem assim de atender

às finalidades por ela prosseguidas, designadamente ao fundamento da conexão. Mas também deve

atender aos fins gerais do sistema de DIP.

Primeira questão: a que Direito devemos recorrer para a interpretação dos conceitos técnico-jurídicos

utilizados na previsão das normas de conflitos de fonte interna?

1) Teoria da lege fori

A solução clássica consiste no recurso aos conceitos homólogos do Direito material do foro. Neste

sentido, invoca-se a união pessoal entre o legislador do Direito de conflitos e o legislador de Direito

material interno ou o princípio da unidade do sistema jurídico.

Contra esta tese é de assinalar que se os conceitos que delimitam o objeto da remissão tiverem o

conteúdo que decorre expressamente ou por via da construção jurídica do Direito material interno,

eles vão deixar de fora realidades jurídicas diferentes existentes no Direito estrangeiro.

Em suma, há a necessidade de uma maior abertura dos conceitos das normas de conflitos.

2) Teoria do Direito comparado

Esta insuficiência clássica levou RABEL a formular uma conceção diferente, segundo a qual na

formulação e, em todo o caso, na interpretação dos conceitos das normas de conflitos nos

deveríamos basear no Direito Comparado. A esta conceção é de objetar que não pode ser o Direito

Comparado a decidir qual o sentido e alcance dos conceitos das normas de conflitos.

De iure condendo, é uma questão de política jurídica; depende dos fins que se querem prosseguir, como

se conformam as previsões das normas de conflitos, qual a extensão que lhes deve ser dada. O Direito

Comparado pode ser um instrumento útil para este efeito, mas não é ele que decide.

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De iure constituto, como o Direito comparado não é Direito positivo, não pode ser o Direito comparado

a decidir qual o alcance do conceito de uma norma de conflitos. Saber até onde o conceito utilizado

na previsão da norma de conflitos abarca conteúdos jurídicos estrangeiros estranhos ao Direito do

foro é um problema de interpretação da norma que o intérprete tem de resolver mediante o emprego

dos critérios de interpretação do sistema em que se integra a norma de conflitos. O Direito comparado

apenas auxilia esta tarefa.

Enfim, como afirma ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO, o método da comparação de Direitos é um

instrumento e não uma solução. Pelas mesmas razões, também não se deve, em princípio, abandonar

a determinação do conceito utilizado pela norma de conflitos do foro à lex causae. O sentido e alcance

do conceito utilizado na norma de conflitos depende das finalidades prosseguidas pelo DIP do

foro, e não das opções feitas pela lex causae.

3) Teoria da interpretação autónoma

A posição adotada por LIMA PINHEIRO com respeito às normas de conflitos de fonte interna é, e

seguindo ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO, a de partir do Direito material do foro, retirando da

sua análise notas para a determinação do conceito empregue pela norma de conflitos, mas tendo

em conta as finalidades específicas prosseguidas pelo Direito de Conflitos.

A especialidade do Direito de conflitos leva, em primeiro lugar, a uma certa indeterminabilidade dos

conceitos aqui utilizados, de modo a poderem abranger realidades jurídicas diferentes ou

desconhecidas do Direito material do foro.

Por exemplo, perante um direito sobre uma coisa desconhecido do Direito material português,

devemos atender a notas que se retiram do Direito material interno. Como notas relevantes para a

determinação do conteúdo do conceito de direito real utilizado no art. 46º CC ocorrem a atribuição

de uma coisa corpórea independentemente de uma relação intersubjetiva (oponibilidade erga omnes)

que funda pretensões perante terceiros que exprimem a sequela. Se o direito conformado pela lex rei

sitae apresentar estas notas, será possível reconduzir a situação à previsão da norma de conflitos do

art. 46º CC.

Em suma, a interpretação das normas de conflitos de fonte interna é ancorada no Direito material do

foro, mas autónoma.

Esta abertura dos conceitos utilizado para delimitar o objeto da remissão a realidades jurídicas

estrangeiras diferentes ou desconhecidas do Direito material do foro é por vezes expressamente

enunciada no texto legal: por exemplo, o art. 30º CC quando se reporta à tutela e instituições análogas

de proteção aos incapazes.

Quando as finalidades do DIP e a necessidade de prevenir ou solucionar certos problemas técnico-

jurídicos de atuação da norma de conflitos o exigirem, pode mesmo justificar-se a formulação de

regras especiais que se reportam exclusivamente a institutos jurídicos estrangeiros desconhecidos

do Direito do foro: por exemplo, o art. 64º CC reporta-se à validade de um testamento de mão

comum, que não é admitido pelo nosso Direito material.

No que toca às normas de conflitos de fonte supraestadual, a interpretação dos conceitos utilizados

na sua previsão deve obedecer aos critérios atrás enunciados. No caso das normas de conflitos

contidas em Convenções internacionais, a interpretação tem de ser autónoma relativamente às

ordens jurídicas nacionais individualmente consideradas e assentar numa comparação de Direitos;

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mas antes de proceder a uma interpretação comparativa, é necessário tentar uma interpretação tendo

em conta o contexto e as finalidades; a interpretação comparativa é subsidiária. No que toca às

normas de conflitos contidas em Regulamento da UE, a interpretação também deve ser autónoma:

não deve ser feita referência ao Direito de um dos Estados em presença, mas antes ter em conta o

contexto da disposição e o objetivo prosseguido pelas normas em causa e a conformidade com os

direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária ou com outros princípios gerais

do Direito comunitário. A “interpretação comparativa” também constitui um importante critério de

interpretação destes instrumentos.

⇒ Delimitação do objeto da remissão:

Coloca-se agora uma segunda questão: como delimitamos as situações da vida que se hão de reconduzir aos

conceitos interpretados nos termos atrás expostos?

Já sabemos que o objeto da norma de conflitos são situações da vida ou aspetos destas situações mas,

para a sua delimitação, a previsão das normas de conflitos utiliza conceitos técnico-jurídicos que

atendem ao conteúdo jurídico típico e (ou) a critérios funcionais.

O objeto da remissão é um concretum, uma situação da vida ou um seu aspeto. A caracterização tem

de incidir sobre a situação da vida em causa e consiste na determinação da relevância jurídica desta

situação.

A que sistema pedir a caracterização da situação da vida? São possíveis duas respostas fundamentais:

i. Ao Direito material do foro, mas tal opção apresenta vários inconvenientes e é contrária

à ideia de paridade de tratamento entre a lei e a lei estrangeira. Com efeito, se

determinarmos a relevância da situação segundo o Direito material do foro e, nesta base,

designarmos uma lei estrangeira como competente, podemos ser levados a aplicar, por

força de uma norma de conflitos, normas materiais estrangeiras que não correspondem à

categoria normativa utilizada na previsão da norma de conflitos. Isto contraria a justiça da

conexão e a ideia de adequação que lhe está ínsita, pois o nexo de adequação entre a

previsão e a estatuição da norma não seria respeitado. A competência atribuída a um

Direito deve ter em conta o conteúdo e os fins das normas materiais que, neste Direito, são

aplicáveis à situação; só assim se garante a adequação do elemento de conexão à

especificidade do domínio jurídico-material a regular. Por conseguinte, só devemos

aplicar por força de uma norma de conflitos as normas materiais que correspondem à

categoria normativa utilizada na previsão da norma de conflitos. É por esta razão que o

alcance material da remissão é limitado.

ii. Ao Direito material da lex causae, i.e., da lei competente. Se determinarmos a relevância

jurídica da situação segundo o Direito material do foro, para nesta base designarmos a lei

estrangeira competente, mas excluirmos a aplicação das normas desta lei, quando não

corresponderem à categoria normativa utilizada pela previsão da norma de conflitos,

vamos gerar, desnecessariamente, problemas de falta de normas aplicáveis. Pode

acontecer que a situação seja juridicamente relevante perante o sistema ou sistemas com

que está mais estreitamente conexa e não o seja perante o Direito material do foro. Uma

caracterização lege fori levaria neste caso a negar tutela jurídica de uma situação que é

tutelada pelo sistema ou sistemas com que está mais conectada, o que contradiz a justiça

da conexão. Daí que pareça preferível a caracterização lege causae.

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Mas não haverá aqui um círculo vicioso, visto que não sabemos qual é a lei competente antes de completarmos

o processo de qualificação? Não há círculo vicioso porque procedemos segundo um raciocínio

hipotético, atendendo à relevância jurídica dos factos perante cada uma das ordens jurídicas

potencialmente aplicáveis.

Quais são as ordens jurídicas potencialmente aplicáveis? São as de todos os Estados com as quais a situação

concreta tenha alguma das conexões relevantes para o Direito de Conflitos português. Procederemos

segundo um método de tentativas (para saber qual a norma de conflitos que vai ser aplicada), à

semelhança do que fizemos para a determinação da nacionalidade de uma pessoa, em que fomos

perguntar ao Direito dos Estados cuja nacionalidade pudesse estar em causa se consideram ou não

essa pessoa como seu nacional.

Na delimitação do objeto da remissão, perguntamos às várias OJ em presença qual a relevância

jurídica que dariam aos factos se lhes fossem aplicáveis: a caracterização só tem de ser feita segundo

o Direito material do foro quando a OJ do foro for uma das potencialmente aplicáveis, i.e., quando

a lex fori for também uma potencial lex causae.

A caracterização é feita por via de uma indagação acerca das proposições jurídico-materiais aplicáveis

ao caso em cada uma das ordens jurídicas potencialmente competentes. Nesta indagação, atendemos

ao conjunto dos efeitos jurídicos estatuídos pelas normas materiais em causa, designadamente à

definição de poderes e deveres. Atendemos, necessariamente aos institutos em que estas normas se

inserem, e, mais em geral, aos nexos intrassistemáticos existentes, às finalidades prosseguidas por

essas normas ou institutos e à função jurídica dos institutos, i.e., ao papel que desempenham no

sistema jurídico.

A importância relativa das notas estruturais (relativas ao conteúdo) e das notas funcionais pode

depender da categoria normativa em causa. Foi anteriormente assinalado que há categorias que são

definidas pelo seu conteúdo típico e categorias agrupadas segundo critérios funcionais. Isto não quer

dizer que face a categorias como obrigações contratuais, responsabilidade extracontratual ou direitos

reais sejam irrelevantes as notas funcionais, até porque essas categorias não são apenas definidas

estruturalmente.

A inserção na sistemática legal de um preceito pode constituir um indício para a qualificação. Mas

mesmo que se trate de um preceito de Direito material português a sua inserção numa parte do

Código Civil apenas indicia a sua qualificação.

⇒ Qualificação em sentido estrito:

No terceiro momento, trata-se de reconduzir a matéria, o concretum caracterizado juridicamente nos

termos anteriormente expostos, ao conceito empregue na previsão da norma de conflitos.

Esta operação tem:

i. Vertente positiva: a recondução da matéria ao conceito utilizado na previsão da norma

de conflitos, que desencadeia a aplicação desta norma;

ii. Vertente negativa: não recondução da matéria aos conceitos utilizados na previsão de

outras normas de conflitos, que determina o seu afastamento; isto sem prejuízo da

possibilidade concurso de normas de conflitos.

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Assim, por exemplo, se concluirmos que a exigência de consentimento de outros filhos, na venda feita

pelos pais a um dos filhos, que consta do art. 877º CC, é de reconduzir à categoria de relações entre

pais e filhos prevista no art. 57º, excluímos a qualificação obrigacional e, por isso, afastamos as normas

de conflitos reguladoras das obrigações contratuais da resolução ao caso. Se o Direito português for

chamado a título de lei reguladora das obrigações contratuais e o Direito inglês a título de lei

reguladora das relações entre pais e filhos, o art. 877º não é aplicável. Não existindo no Direito inglês

preceito equivalente, a venda é válida independentemente de consentimento dos outros filhos.

Entre Direitos vizinhos, i.e., sistemas jurídicos pertencentes à mesma família de Direitos, pode

presumir-se a equivalência de qualificações: uma matéria que no Direito italiano, alemão ou francês

é vista como relativa aos Direitos Reais, é presumivelmente de qualificar do mesmo modo perante o

Direito de Conflitos português.

Mas atenção: é uma presunção que pode e deve ser ilidida sempre que, à luz do conteúdo e função

do instituto jurídico estrangeiro, se imponha uma qualificação diferente perante o Direito de conflitos

português.

Por exemplo, qual a norma de conflitos reguladora de um negócio de disposição de um direito real sobre uma

coisa situada na Alemanha?

No Direito alemão vigora o princípio da separação entre efeitos reais e efeitos obrigacionais. Mesmo

uma relação complexa real-obrigacional, como a compra e venda (em que há obrigações e efeitos

reais), é fracionada em termos tais que se distingue o negócio obrigacional, submetido à lei reguladora

das obrigações, do negócio de disposição, submetido à lex rei sitae.

A presunção de equivalência de qualificações levaria a reter a qualificação real e, portanto, a aplicar

a norma de conflitos reguladora dos direitos reais. Porém, no entendimento de LIMA PINHEIRO,

quando há um negócio com efeitos reais e obrigacionais, ou outra correlação íntima entre negócio

obrigacional e real, a formação e validade destes negócios é regulada pelas normas de conflitos

contidas no Reg. Roma I. A norma do art. 46º CC apenas controlará a produção de efeitos reais.

Em suma, embora o objeto da qualificação, as situações da vida ou aspetos parcelares, tenha de ser

caracterizado à face da lei ou leis potencialmente aplicáveis, a última palavra sobre a qualificação do

objeto deve ser proferida segundo o critério de qualificação do sistema a que pertencem as normas

de conflitos em jogo. Este critério de qualificação é definido com base na estrutura e nas finalidades

prosseguidas pelo sistema de Direito de conflitos aplicável.

Como o Direito de Conflitos aplicável é, em primeira linha, o Direito de Conflitos do foro, o

critério de qualificação é, em primeira linha, o critério de qualificação do foro.

Mas nos casos em que haja aplicação do Direito de Conflitos estrangeiro, o critério de

qualificação há de ser definido perante o respetivo sistema de Direito de conflitos.

Quando as normas de conflitos em presença forem de fonte supraestadual, o critério de

qualificação deve fundar-se, em primeira linha, na estrutura e finalidades do Direito de

Conflitos contido na Convenção Internacional ou Regulamentos europeus. Mas porquanto,

frequentemente, entram em jogo simultaneamente normas de conflitos supraestaduais e

internas, o critério de qualificação tem de resultar de uma integração sistemática das normas

de conflitos de diferentes fontes.

NOTA: A circunstância de a lex causae qualificar dado instituto como processual não obriga a que o

Direito de conflitos do foro também o qualifique como processual. Embora a caracterização seja feita

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lege causae, a qualificação é feita lege fori, rectius segundo o sistema de Direito de conflitos que for

aplicável.

⇒ Especialidades das normas de conflitos ad hoc e das normas de remissão condicionada:

A norma de conflitos ad hoc tem uma característica estrutural própria: não carece de delimitar ela

própria a categoria de situações jurídicas ou a questão parcial a que se reporta, visto que só atua em

função de uma determinada norma ou conjunto de normas materiais. A norma de conflitos ad hoc

tem por objeto as situações ou aspetos de situações suscetíveis de serem disciplinadas pela norma ou

conjunto de normas materiais a que está indissociavelmente ligada.

Não se coloca, portanto, um problema específico de qualificação no plano do DIP.

Em relação às normas de remissão condicionada, diga-se que para operar a remissão condicionada

tem, em princípio, de se encontrar uma situação da vida ou um aspeto de uma situação da vida,

juridicamente caracterizada, que seja reconduzível à previsão da norma; isto é comum às normas de

conflitos tradicionais.

Se houver uma condição adicional relativa ao resultado material, esta condição integra a previsão da

norma e, por conseguinte, a previsão não se verifica se no Direito estrangeiro não se verificar o

resultado ou não existirem determinadas normas. Todavia, pode acontecer que na previsão da

norma de remissão condicionada não se encontre outro conceito delimitador do objeto da remissão

que não seja o conceito relativo à condição material da remissão. Por exemplo, quando a validade de

um negócio seja objeto de uma remissão condicionada para determinada lei, na condição de esta lei

considerar o negócio válido.

⭐ Dificuldades suscitadas pelo Fracionamento Conflitual das Situações da Vida; Delimitação

Este fracionamento suscita vários tipos de problemas. Cuidando, por agora, apenas daqueles

problemas que concernem diretamente à qualificação, temos, por um lado, as dificuldades que suscita

a delimitação dos aspetos que são abrangidos por uma e outra das normas de conflitos em jogo e, por

outro, o do concurso e falta de normas aplicáveis.

O problema da delimitação surge principalmente quando as situações, com o conteúdo que

lhes é atribuído pelas leis em presença, têm um caráter misto, pondo em jogo mais do que

uma norma de conflitos que se reporta a categorias de situações jurídicas. Por exemplo, um

contrato de compra e venda que gera obrigações e vai orientado à produção de efeitos reais.

As questões jurídicas suscitadas por diferentes aspetos de uma mesma situação da vida são

designadas questões parciais. A delimitação vem a traduzir-se na recondução das questões parciais

a uma ou outra das normas de conflitos aplicáveis.

O problema não se coloca em relação às questões parciais que são objeto de normas de conflitos

especializadas. Noutros casos o legislador indica que determinadas questões estão submetidas a uma

norma de conflitos. Por exemplo, o art. 12º Reg. Roma I. Relativamente a estas questões o problema

de delimitação está resolvido.

Em muitos casos, porém, não se pode contar com uma indicação do legislador. Podemos distinguir

entre um:

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i. Núcleo ou conteúdo mínimo determinado do conceito utilizado para delimitar pela

previsão da remissão, que abrange o conjunto de questões jurídicas que são

indubitavelmente abrangidas pela previsão da norma, razão por que não suscitam

dificuldades de delimitação;

ii. Zonas cinzentas ou periféricas, que suscitam um problema específico de interpretação

dos conceitos que delimitam o objeto da remissão das normas de conflitos em jogo. A

resolução deste problema exige uma apreciação dos fundamentos que subjazem às normas

de conflitos em presença, tendo também em atenção os fins gerais do Direito de Conflitos.

Esta apreciação há de fornecer o critério orientador, que deve exprimir os nexos

funcionais e axiológicos entre as normas de conflitos em presença. Estes nexos podem

corresponder, por exemplo, a uma preordenação de uma norma relativamente a outra ou

a uma prejudicabilidade. Por vezes estes nexos poderão valer como critério geral, para a

resolução de todos os problemas de delimitação que venham a surgir; outras vezes será

mais difícil superar uma apreciação casuística.

O legislador, pode, em vasta medida, obviar a este tipo de dificuldades por meio de uma

especialização de soluções, i.e., adotando normas de conflitos especializadas para as questões que

suscitam tais dificuldades.

Em todo o caso, não é de excluir que certas questões parciais, que se inscrevem na zona cinzenta entre

duas normas de conflitos, possam, conforme o contexto em que se suscitam no caso concreto, ser

apreciadas segundo uma ou outra das normas de conflitos em jogo – isto vem sublinhar que o objeto

da remissão está ancorado na realidade e que, em última instância, não há uma equivalência entre a

perspetiva da norma de conflitos bilateral e a da determinação da esfera de aplicação no espaço de

normas ou categorias de normas.

Um segundo tipo de problemas decorre de uma combinação do fracionamento com valorações

contraditórias dos mesmos aspetos das situações da vida ou do recurso a meios técnico-jurídicos

diferentes para tutelar valores substancialmente idênticos por parte das leis em presença. Da ação

combinada destes fatores vai resultar que, pelo menos em primeira linha, nos possam surgir como

simultaneamente aplicáveis ao mesmo aspeto de uma situação da vida duas ou mais leis, por força

de duas ou mais normas de conflitos, ou que, ao contrário, não surjam como aplicáveis quaisquer

normas das leis em presença.

⭐ Exegese do art. 15º CC; Articulação entre a Qualificação e o Alcance Jurídico-material da

Remissão

Segundo o art. 15º CC, “A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo

e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.

Este preceito só faz alusão ao primeiro momento da qualificação – interpretação dos conceitos que

delimitam o objeto da remissão –, quando se refere ao regime do instituto visado na regra de conflitos.

“Instituto” é um termo pouco feliz, na opinião de LP, porque grande parte dos conceitos que

delimitam o objeto da remissão não se reportam a institutos. Assim, “instituto” tem de ser entendido

como referindo qualquer uma das categorias normativas utilizadas para delimitar o objeto da

remissão.

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O preceito não define um critério de interpretação destas categorias normativas, tarefa que tem sido

desempenhada pela ciência jurídica.

Quanto à delimitação do objeto da remissão, o art. 15º já contém uma indicação importante: manda

atender ao conteúdo das normas aplicáveis e à função que têm no sistema a que pertencem. Aponta-

se aqui claramente no sentido de uma caracterização lege causae. Acentua-se a necessidade de inserir

as normas da lei competente no sistema a que pertencem e de atender a notas funcionais.

A qualificação em sentido estrito é indiretamente visada no início do preceito: “a competência

atribuída a uma lei abrange somente”. Diretamente esta parte do preceito diz respeito ao alcance jurídico-

material da remissão e, por conseguinte, à sua estatuição.

Como referido, não podem ser reconduzidas à previsão de uma norma de conflitos situações da vida

que, com a relevância jurídica que lhes seja atribuída pela lei para que aponta o respetivo elemento

de conexão, não sejam reconduzíveis ao conceito que delimita o objeto da norma.

A letra do art. 15º parece sugerir que o objeto da qualificação são normas, e não situações da vida.

Mas ao legislador não cabe tomar posição em questões de dogmática jurídica; o que interessa é que

na caracterização e qualificação em sentido estrito a lei aponta no sentido que vem sendo defendido

pela doutrina portuguesa, designadamente por ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO e FERRER

CORREIA: a formulação dada ao art. 15º CC deve antes ser entendida à luz da correlação entre

qualificação e estatuição da norma de conflitos. A determinação do sentido e alcance do conceito

utilizado na previsão da norma e a delimitação do objeto da remissão (que ocorrem nos dois primeiros

momentos da qualificação) pré-determinam o alcance jurídico-material da remissão (que integra a

estatuição da norma de conflitos).

Com efeito, da repartição de matérias operada pelas categorias normativas utilizadas nas normas de

conflitos pode resultar que diversos aspetos da mesma situação sejam reconduzíveis a normas de

conflitos diferentes. Essas categorias normativas delimitam o objeto da remissão com recurso a notas

jurídicas e, por conseguinte, a recondução de diversos aspetos da situação a várias categorias

normativas é feita em função da conformação jurídica da situação por diferentes complexos

normativos contidos no Direito ou Direitos aplicáveis. Daí resulta que a remissão operada por cada

uma das normas de conflitos em causa para determinado Direito só pode, em princípio, abranger

o complexo normativo que conforma o aspeto da situação que é reconduzível à categoria normativa

utilizada na sua previsão. No mesmo sentido depõe o nexo de adequação entre a previsão e a

estatuição da norma de conflitos.

Para utilizar uma imagem, os conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos para delimitar

o objeto da remissão atuam como uma janela através da qual o aplicado do Direito olha duas vezes:

o Num primeiro olhar, a janela recorta as situações da vida que podem ser reconduzidas à

previsão da norma;

o Num segundo olhar, a janela delimita as proposições jurídico-materiais que podem ser

chamadas pela norma.

Por isso se afirmou que estes conceitos desempenham uma dupla função:

i. Delimitam o objeto da norma;

ii. Delimitam o alcance material da remissão.

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Daí resulta que as normas de conflitos portuguesas desencadeiam uma remissão de alcance jurídico-

material limitado. Sublinhe-se, de novo, que esta consequência, embora interrelacionada com a

qualificação, diz respeito à estatuição da norma de conflitos.

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO

Tradicionalmente, o Direito aplicável às situações transnacionais é necessariamente o Direito vigente

numa ordem jurídica estadual: a ordem jurídica do foro ou uma ordem jurídica estrangeira. Quando

a norma de conflitos remete para uma ordem jurídica estrangeira levantam-se certas questões,

designadamente quanto à interpretação, conhecimento e prova do Direito aplicável.

⇒ Direito estrangeiro aplicável:

É aplicável o Direito estrangeiro que vigora na OJ designada pelo Direito de conflitos. Não têm de ser

normas que emanam diretamente de fonte estadual; podem ser normas de fonte não estadual que

segundo o sistema de fontes da ordem jurídica estrangeira, incluindo o seu sistema de relevância

do Direito Internacional na ordem interna, vigoram nessa ordem jurídica. Para saber quais são as

normas juridicamente vigentes atende-se ao sistema de fontes da ordem jurídica em causa: assim, se

na ordem jurídica estrangeira designadas vigora um sistema de precedent law, em que as decisões

dos tribunais superiores estabelecem um precedente que deve ser respeitado em decisões futuras

(pelo menos dos tribunais inferiores), o órgão de aplicação do Direito Português também respeitará

as decisões proferidas nos casos precedentes.

Já é discutido se o órgão de aplicação português deve respeitar a jurisprudência estrangeira constante

ou dominante, quando na ordem jurídica em causa não vigora um sistema de precedente vinculativo.

LIMA PINHEIRO entende que, em princípio, a questão deve ser respondida afirmativamente.

Também será respeitada a hierarquia das fontes da ordem jurídica estrangeira, o que pode ser

importante, designadamente, quanto à relação entre o costume e a lei.

Quanto ao controlo da constitucionalidade das normas materiais estrangeiras à face da Constituição

estrangeira, é de entender que o tribunal português o pode exercer em dois casos:

i. Se a inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória geral na ordem jurídica

estrangeira;

ii. Se, e nos termos em que, os tribunais do Estado estrangeiro possam exercer este controlo,

como se verifica com o sistema de controlo difuso da constitucionalidade. Já não perante

os sistemas de controlo concentrado de constitucionalidade em que este controlo está

reservado a um órgão especial (é o caso dos ordenamentos francês e suíço).

O Direito estrangeiro aplicável não tem de ser emanado de órgãos estaduais legítimos ou

reconhecidos pelo Estado português. Neste contexto sobrelevam as considerações de efetividade,

designadamente a aplicação dos complexos normativos em causa pelos órgãos do poder político e

um mínimo de observância destes complexos normativos, considerados no seu conjunto, pelos

destinatários.

Não é sequer inconcebível a aplicação do Direito de um Estado não reconhecido pelo Estado

português. O Direito que é aplicado por um poder político juridicamente organizado e que

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efetivamente vigora num território será em princípio aplicável por força do Direito de Conflitos

português mesmo que o Estado português não reconheça o Estado em causa.

Note-se ainda que não tem de ser necessariamente privado. Também serão aplicáveis as normas de

Direito Público e que ocupam zonas cinzentas entre o público e o privado que regulem ou tenham

incidência sobre situações reguladas pelo Direito Internacional Privado. É frequentemente o caso de

normas de Direito Económico, por exemplo, em matéria de concorrência, de titularidade de certos

bens, etc.

Decorre do exposto relativamente à qualificação, que a circunstância de o Direito estrangeiro

competente conter um instituto jurídico desconhecido da OJ do foro não obsta ao seu chamamento

pelo Direito de conflitos português. A divergência entre o conteúdo do Direito estrangeiro

competente e o Direito material do foro só excecionalmente releva como limite à sua aplicação.

Resta acrescentar que a aplicação do Direito estrangeiro pode também não ser possível em dois casos:

Quando este Direito exija a intervenção de uma autoridade pública e não exista, no Estado

local, nenhuma autoridade com competência para praticar os atos necessários;

Quando a sua aplicação requeira procedimentos especiais que sejam de todo incompatíveis

com o Direito processual do foro. O art. 27º CC pode ser entendido como uma manifestação

deste princípio.

⇒ Interpretação do Direito estrangeiro:

Como determina o art. 23º/1 CC, o Direito estrangeiro tem de ser interpretado em conformidade com

os critérios de interpretação seguidos no país de origem e com a jurisprudência e doutrina aí

dominantes.

O intérprete encontra-se menos familiarizado com o Direito estrangeiro e, por isso, deve atuar com

especial prudência. GOLDSCHMIDT afirmou que na construção do próprio Direito somos arquitetos

ao passo que apenas “fotografamos” o Direito estrangeiro. LP entende que há algum exagero nesta

afirmação: o intérprete local tem a margem de apreciação e a competência de um desenvolvimento

do Direito que a OJ estrangeira reconhece aos seus juízes e, mais em geral, aos seus intérpretes. Mas

devem ser mais prudente e seguir a opinião dominante na cultura jurídica estrangeira.

A ideia por detrás do art. 23º é a de que, por força da norma de conflitos, o juiz português terá os

mesmos poderes que o juiz estrangeiro teria para apreciar o caso.

A circunstância de o mesmo preceito vigorar simultaneamente em várias OJ não impede que a

respetiva interpretação seja diferente. Por exemplo, o art. 970º CC francês, que manda datar o

testamento ológrafo, foi literalmente transcrito no CC belga: enquanto o texto francês é interpretado

no sentido da nulidade do testamento ológrafo erroneamente datado, o texto belga é interpretado no

sentido da sua validade.

⇒ Conhecimento e prova do Direito estrangeiro:

Para decidir, o tribunal precisa de conhecer os factos e o Direito.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

112

Segundo o princípio do dispositivo, os factos têm, em regra, de ser alegados e provados pelas partes.

Já o Direito deve ser conhecido pelo tribunal, deve ser investigado e determinado por sua própria

iniciativa, em conformidade com o princípio da oficiosidade (art. 412º CPC).

Pergunta-se: poderá exigir-se o conhecimento oficioso do Direito estrangeiro?

o Nos Direitos anglo-saxónicos, entende-se tradicionalmente que não. Há um ónus de alegação

e prova do Direito estrangeiro pelas partes.

o Este entendimento mantém-se no sistema inglês.

o Já nos EUA existe legislação que modificou a regra da Common Law em muitos Estados

federados e especialmente em relação aos tribunais federais, em muitos casos aproximando-

se dos sistemas que encaram a lei estrangeira como Direito, sem, contudo, dispensar a

colaboração das partes.

o Em Portugal, a questão é resolvida pelo art. 348º/1 e 2 CC: há um dever de colaboração da

parte que invoca o Direito estrangeiro na determinação do seu conteúdo; não há ónus da

prova. O incumprimento do dever de colaboração não tem por consequência o indeferimento

da pretensão nem, necessariamente, a aplicação do Direito material português, embora possa

contribuir para uma situação de impossibilidade de determinar o conteúdo da lei estrangeira.

O Direito estrangeiro é de conhecimento oficioso, tem o estatuto de Direito.

o A mesma posição é assumida pelos sistemas alemão e italiano, bem como pelos sistemas dos

países africanos de expressão oficial portuguesa, em que vigora o art. 348º CC, e pelo Direito

de Macau.

Por conseguinte, os tribunais portugueses, quando conheçam de uma relação controvertida

transnacional, seja em primeira instância seja como instância de recurso, estão obrigados a aplicar ex

officio o Direito de Conflitos vigente na OJ portuguesa e, sendo o caso, o Direito estrangeiro

designado por este Direito de conflitos. Note-se que não existe qualquer ónus de alegação da

competência da lei estrangeira quer perante o tribunal de primeira instância quer perante tribunais

de recurso.

A aplicação oficiosa do Direito de Conflitos e o conhecimento oficioso do Direito estrangeiro para que

remeta são, em princípio, postulados pela justiça do DIP, que inclui valores e princípios que

transcendem a vontade das partes:

Ela assegura que a situação transnacional é apreciada segundo o Direito designado pelo

elemento de conexão mais adequado à matéria.

Ao mesmo tempo, porém, deve atender-se à primazia que o princípio da autonomia privada

tende a alcançar neste ramo do Direito em matéria de relações disponíveis, que são a regra

no Direito patrimonial.

Deve também ter-se em conta as dificuldades para a administração da justiça que resultam

do crescente peso das situações transnacionais no conjunto de casos submetidos aos tribunais.

Contra uma aplicação facultativa do Direito de Conflitos e/ou um ónus de alegação e prova do

Direito estrangeiro por ele designado em matérias disponíveis, pode invocar-se o risco de que as

partes, ou os seus representantes forenses, não prestem a devida atenção à relevância da questão

para a decisão do litígio.

No entender de LP, uma solução equilibrada poderia consistir no seguinte:

i. O Direito de conflitos continuaria a ser, como todo o Direito, de aplicação oficiosa.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

113

ii. Em matérias disponíveis, no caso de o Direito de conflitos remeter para uma lei

estrangeira e de nenhuma das partes o ter invocado, o tribunal convidaria as partes a

alegarem e provarem o conteúdo desta lei, sob pena de ser aplicada a lei do foro.

iii. Isto poderia ser complementado por soluções especiais, que poderiam restringir esta

regra relativamente a determinadas matérias disponíveis, ou estendê-la a determinadas

matérias indisponíveis.

Os sistemas nacionais de DIP também se dividem quanto ao controlo pelos tribunais supremos da

interpretação e aplicação do Direito estrangeiro:

Este controlo não é em princípio efetuado em países como a Alemanha e a França.

Solução contrária é adotada entre nós, à semelhança do que se verifica em Itália. Com efeito,

o art. 674.º CPC estabelece que o erro na determinação e aplicação das normas legais

estrangeiras constitui fundamento do recurso de revista (nº 2). Já o erro na determinação de

costume, nacional ou estrangeiro, é excluído do recurso de revista. Mas isto não prejudica que

o costume estrangeiro tenha estatuto de Direito: o tribunal, ao determinar o conteúdo do

Direito estrangeiro, deverá contentar-se com um conhecimento suficiente para formar a sua

convicção; a dúvida não deve levá-lo a concluir pela impossibilidade.

Quanto aos meios de averiguação do conteúdo do Direito estrangeiro, os tribunais, devem contar:

i. Em primeiro lugar, com a colaboração das partes, que podem juntar aos articulados

elementos tais como textos legais traduzidos, pareceres jurídicos, cópias de decisões

judiciais, informações prestadas pelas representações diplomáticas ou consulares do

Estado de origem do Direito em causa, bem como solicitar depoimentos de peritos sobre

o conteúdo do Direito estrangeiro.

ii. Se os elementos trazidos ao processo pelas partes não forem suficientes ou conclusivos, os

tribunais também podem tomar a iniciativa de obter esses elementos e têm ao seu dispor

certos mecanismos para o conhecimento do Direito estrangeiro estabelecidos em

Convenções internacionais – Protocolo Relativo à Comissão Internacional do Estado Civil

(Berna, 1950), Convenção Europeia no Campo da Informação sobre o Direito estrangeiro

(Londres, 1968) e Convenção sobre Informação em Matéria Jurídica com Respeito ao

Direito Vigente e sua Aplicação (Brasília, 1972).

iii. No âmbito da UE, há também a referir o sítio na internet da Rede Judiciária Europeia em

Matéria Civil e Comercial, que contém informações sobre os EM, sobre o DUE e sobre

certas matérias de Direito Civil e Comercial nas OJ dos EM. Está prevista a migração desta

informação para o Portal Europeu da Justiça. Estes mecanismos deveriam ser reforçados.

Seria também desejável que Portugal dispusesse de uma instituição independente que

fornecesse aos tribunais pareceres sobre o Direito estrangeiro. O Gabinete de

Documentação e Direito Comparado, dependente da Procuradoria Geral da República,

tem a atribuição de prestar informação jurídica, designadamente sobre Direito estrangeiro,

mas os seus recursos são bastante limitados.

iv. Tem sido defendido que, em caso de dificuldade, o tribunal pode mesmo recorrer a

presunções para fixar o conteúdo do Direito estrangeiro. Assim, o tribunal poderia

recorrer aos sistemas jurídicos da mesma família que presumivelmente sejam mais

semelhantes (KEGEL e SCHURING falam do princípio da maior semelhança).

LP tem muitas dúvidas sobre a conveniência deste recurso a presunções, uma vez

que pode conduzir a soluções completamente diferentes das que decorreria do

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Direito competente. Em qualquer caso, não lhe parece que o Direito positivo

autorize o recurso a presunções sobre o conteúdo do Direito estrangeiro.

v. Havendo real impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável,

art. 23º/2 CC manda passar à conexão subsidiária. Só na falta de conexão subsidiária é

que, de acordo com o art. 348º/3 CC, há lugar à aplicação do Direito material português –

isto vale apenas para o Direito material estrangeiro. Se, para efeitos de devolução, não

for possível determinar o conteúdo do Direito de Conflitos estrangeiro, deve entender-

se a remissão operada pela nossa norma de conflitos como uma referência ao Direito

material da OJ estrangeira designada, em conformidade com a regra geral do art. 16º

CC.

a. A impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável pode ser

parcial, quando o tribunal só obtenha conhecimento de certos princípios gerais ou de

algumas regras que não permitem resolver inteiramente o caso. Nesta hipótese, LP

entende que o tribunal deve aplicar as regras do Direito competente que conhece. O

Direito subsidiariamente aplicável ou o Direito material do foro só devem ser

aplicados às questões que não sejam resolvidas por essas regras e, em qualquer caso,

desde que não contrariem os princípios fundamentais do Direito competente. Atenua-

se assim o risco de a solução do caso ser manifestamente contrária à que decorreria do

Direito que apresenta a ligação mais significativa com a situação.

b. Quanto aos outros órgãos de aplicação do Direito, designadamente aos notários e

conservadores, a lei não exige expressamente que conheçam oficiosamente o Direito

estrangeiro aplicável.

o Parece ao Prof. que perante o Direito vigente, os notários não estão obrigados a

conhecer oficiosamente do Direito estrangeiro aplicável (art. 85º/2 C. Not.). Desta

solução particular parece inferir-se que, por forma geral, os notários não têm o

dever de conhecer oficiosamente o Direito estrangeiro aplicável. Mas isto não

significa que, na falta de prova pelos interessados do Direito estrangeiro

competente, os notários possam realizar o ato segundo o Direito material

português. Deve entender-se que, perante situações transnacionais, os notários

estão sempre obrigados a determinar o Direito competente e que, no caso de ser

competente um Direito estrangeiro, só devem realizar o ato se conhecerem o

conteúdo deste Direito ou se as partes fizerem a prova do mesmo.

o Quanto aos conservadores, parece que, na falta de disposições especiais, se lhes

deva aplicar analogicamente o regime estabelecido para os tribunais. Como

solução especial, avulta o art. 43º-A CRPr. No caso do casamento de estrangeiro,

o CRCivil determina que o nubente deve apresentar um certificado passado pela

entidade competente do Estado da nacionalidade, destinado a provar que a lei

pessoal não coloca impedimento à celebração do casamento (art. 166º/1). Se, por

falta de representação diplomática ou consular do país da nacionalidade, ou por

outro motivo de força maior, o nubente não puder apresentar o certificado, a sua

falta pode ser suprida por um processo de verificação de capacidade matrimonial

de estrangeiros, organizado na conservatória (arts. 166º/2 e 261º e ss.), em que o

Direito estrangeiro competente é de conhecimento oficioso.

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LIMITES À APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO OU TRANSNACIONAL

⭐ Reserva de Ordem Pública Internacional

⇒ A reserva de ordem pública internacional enquanto cláusula geral que veicula princípios e

normas fundamentais da OJ do foro:

A reserva de ordem pública internacional encontra-se desde logo consagrada no art. 22º CC. Há

outras disposições de fonte interna que se referem à ordem pública internacional, designadamente:

i. Art. 1651º/2 CC;

ii. Art. 980º/ f) CPC;

iii. Art. 6º/1 CRC.

A reserva de ordem pública internacional consta ainda de diversas Convenções internacionais e

Regulamentos europeus de unificação do Direito de Conflitos e sobre reconhecimento de sentenças

estrangeiras vigentes na ordem jurídica portuguesa.

A reserva de ordem pública internacional é um limite à aplicação do Direito estrangeiro ou

transnacional competente segundo o Direito de Conflitos ou ao reconhecimento de uma decisão

estrangeira.

Perante a diversidade das situações em que o resultado a que conduz a aplicação do Direito

estrangeiro ou transnacional ou o reconhecimento de decisão estrangeira pode ser intolerável

perante a conceção de justiça do foro, o legislador formulou uma cláusula geral.

A cláusula geral da ordem pública internacional é um veículo para a atuação dos princípios e normas

fundamentais da OJ portuguesa. Não é possível determinar, a priori, o conteúdo desta cláusula geral,

i.e., formular um conjunto de regras que esgotem o seu conteúdo:

Isto resulta não só da dificuldade em enumerar taxativamente os princípios e normas

fundamentais da ordem jurídica portuguesa;

Mas também, e principalmente, de a atuação da reserva de ordem pública internacional

depender do conjunto das circunstâncias do caso. Só perante as circunstâncias do caso

concreto se pode dizer se uma determinada violação de um princípio ou norma fundamental

é intolerável.

Esta ordem pública é internacional porquanto é específica do DIP, e não, porventura, por ser uma

ordem pública de Direito Internacional. Pelo contrário, diz-se que a ordem pública internacional é

nacional, porque veicula princípios e normas fundamentais da OJ do foro.

Mas não deve confundir-se a OJ do foro com o Direito de fonte interna. O caráter nacional da ordem

pública internacional presta-se a equívocos:

o Numa OJ em que o Direito Internacional é objeto de receção automática, como é o caso da OJ

portuguesa (art. 8º CRP), a ordem pública internacional é também informada por normas e

princípios fundamentais de Direito Internacional.

A ordem pública de Direito Internacional integra necessariamente a OJ portuguesa.

Os princípios fundamentais de DUE e a Carta dos Direitos Fundamentais da União

Europeia (art. 6º TUE) também enformam a nossa ordem pública internacional. O

mesmo se diga de Convenções internacionais em vigor na OJ portuguesa.

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Por outro lado, os Estados podem obrigar-se por Convenção internacional a só recorrerem a esta

reserva em situações especialmente qualificadas: o art. 16º Convenção Roma, o art. 21º Reg. Roma I,

o art. 26º Reg. Roma II, o art. 12º Reg. Roma III e o art. 35º Reg. sobre Sucessões exigem uma manifesta

incompatibilidade da lei designada com a ordem pública do foro.

Além disso, o TJUE pode exercer algum controlo sobre os limites no quadro dos quais um EM pode

invocar a ordem pública internacional ao abrigo destes preceitos, designadamente quando esteja em

causa a aplicação do Direito de outro EM:

i. Este controlo prende-se, por um lado, com o caráter necessariamente excecional da

intervenção da ordem pública internacional.

ii. Por outro lado, o Considerando n.º 25 do Reg. Roma III refere que os tribunais de um EM

“não deverão poder aplicar a exceção da ordem pública para recusar uma disposição da lei de outro

Estado quando tal seja contrário à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em especial

ao seu artigo 21º, que proíbe qualquer forma de discriminação”.

A ordem pública internacional estrangeira pode ser relevante nos casos em que o Direito de Conflitos

estrangeiro seja aplicado por força do Direito Internacional Privado do foro. É o que se verifica em

sede de devolução.

É usual contrapor-se a ordem pública internacional à ordem pública de Direito material, referida

designadamente nos arts. 271º/1, 280º/2 e 281º CC. Há algo de comum a estes dois preceitos de ordem

pública: certos princípios e regras, pela sua importância, não podem ser afastados na solução de um

caso. Mas há diferenças óbvias entre os dois conceitos:

O conceito de ordem pública de Direito material é controverso. Parece que, enquanto conceito

científico, incluirá as regras e os princípios gerais imperativos, ao passo que nos preceitos

atrás referidos se reportará apenas aos princípios gerais imperativos.

A ordem pública de Direito material constitui um limite à autonomia privada no contexto do

Direito material e, em especial, à liberdade contratual de estipulação.

Os princípios e regras veiculados pela ordem pública internacional representam um núcleo

mais restrito do que aqueles que subjazem à ordem pública de Direito material. Mesmo que

se trate de um princípio que é veiculado tanto pela ordem pública de Direito material como

pela ordem pública internacional (por exemplo, o princípio da confiança), nem todas as

violações sancionadas pela ordem pública de Direito material são suficientemente graves para

justificarem a atuação da ordem pública internacional.

Enquanto contraproposta à ordem pública de Direito material, a ordem pública internacional

constitui um reduto de princípios e normas do ordenamento do foro de cuja aplicação esta

ordem jurídica não abdica posto que se trate de uma situação transnacional e que seja

estrangeiro ou transnacional o Direito chamado a regê-la. Daí que a ordem pública

internacional constitua um limite excecional à aplicação do Direito estrangeiro ou

transnacional.

Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente os que tutelam

direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a ordem pública internacional.

A cláusula de ordem pública internacional é um limite à aplicação do Direito estrangeiro ou

transnacional ou ao reconhecimento de uma decisão estrangeira. Neste momento, interessa, em

primeira linha, a reserva de ordem pública internacional enquanto limite à aplicação do Direito

estrangeiro ou transnacional:

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A atuação da reserva de ordem pública internacional pressupõe que o Direito de Conflitos português

chama o Direito estrangeiro ou transnacional a regular a situação. O problema só se coloca depois

de resolvidas todas as questões de concretização do elemento de conexão, de devolução, de fraude

à lei e de qualificação. É no fim do processo que se aprecia a compatibilidade da solução a que conduz

o Direito estrangeiro ou transnacional designado com a ordem pública internacional.

O art. 22º CC acolhe a conceção aposteriorística de ordem pública internacional.

Nem sempre a ordem pública internacional foi assim entendida:

Em finais do séc. XIX e princípios do séc. XX, autores como MANCINI e PILLET defenderam

uma conceção apriorística, segundo a qual certas leis do foro teriam como qualidade inerente

serem de ordem pública. A ordem pública constituiria uma categoria autónoma de conexão,

a par do estatuto pessoal.

Na conceção vigente no Direito português, a reserva de ordem pública internacional só

intervém a posteriori, quando a solução material concreta a que o Direito estrangeiro ou

transnacional conduz é intolerável face a certos princípios e normas da OJ portuguesa. A

atuação da reserva de ordem pública internacional requer assim uma comparação dos efeitos

desencadeados pela lei estrangeira ou pelo Direito transnacional com os que seriam

ordenados pela lei do foro.

A reserva de ordem pública internacional não fundamenta um juízo de desvalor da lei estrangeira ou

da norma transnacional. Ela atua perante o resultado da aplicação do Direito estrangeiro ou

transnacional. Não pode dizer-se, em rigor, que uma lei estrangeira viola a ordem pública

internacional portuguesa; pode é dizer-se que não é aceite a solução a que esta lei conduza num caso

concreto.

Há um setor da doutrina que encara as normas de aplicação imediata ou necessária como normas

de ordem pública internacional, manifestando assim uma abertura à conceção apriorística de ordem

pública internacional:

BAPTISTA MACHADO entende que as leis de Direito público estão fora do âmbito do

problema específico da ordem pública internacional, já que o primeiro pressuposto do recurso

à ordem pública internacional é que se esteja em presença de um caso de competência normal

da lei estrangeira.

LIMA PINHEIRO não concorda com este entendimento, pois a ordem pública internacional

portuguesa pode veicular quaisquer princípios e normas fundamentais que encontrem

aplicação a situações transnacionais.

Como se referiu, trata-se aqui de normas materiais da OJ do foro que reclamam aplicação a uma

situação que, em princípio, está submetida a um Direito estrangeiro por força do sistema de Direito

de Conflitos. A inclusão ou exclusão destas normas do âmbito da ordem pública internacional pode

relacionar-se com a delimitação dos valores jurídico-materiais em jogo: para alguns autores, a

ordem pública internacional só teria que ver com valores ético-jurídicos e específicos do Direito

privado; as normas de aplicação necessária prosseguiriam fins de polícia economia e social e

interesses políticos em sentido estrito, enfim, finalidades de natureza pública.

Mas nem a cláusula de ordem pública internacional se tem acantonado aos valores ético-jurídicos,

nem a realidade das normas suscetíveis de aplicação necessária se circunscreve a fins económicos,

sociais e políticos.

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A ordem pública internacional é apta para veicular todos os princípios e normas fundamentais da OJ

do foro que tenham aplicação a situações transnacionais. Não pode fazer-se uma limitação a

princípios ético-jurídicos. Também pode fazer-se uma limitação a princípios ético-jurídicos.

Também pode ser veiculados, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência, princípios e normas

que prosseguem finalidades económico-sociais, políticas ou outras.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, porém, é justificada a tendência para separar a ordem pública

internacional da temática das normas suscetíveis de aplicação necessária:

o A norma de aplicação necessária sobrepõe-se ao sistema de Direito de Conflitos por força de

uma norma de conflitos unilateral que prevalece, como norma especial, sobre a norma de

conflitos geral ou de uma solução conflitual especial criada para integrar uma lacuna do

sistema de Direito de Conflitos. Pode não ser uma norma fundamental no sentido de

desencadear a intervenção da ordem pública internacional em razão do seu conteúdo de

justiça material.

o Por conseguinte, não é correto considerar as normas suscetíveis de aplicação necessária, na

sua generalidade, como expressão de uma ordem pública internacional apriorística.

Vem a propósito referir as chamadas cláusulas especiais de ordem pública. Estas cláusulas especiais

constituem, segundo LP, normas autolimitadas que por força de normas de conflitos unilaterais ad

hoc, são aplicáveis qualquer que seja o conteúdo da lei estrangeira que, na ausência delas, seria

competente.

Mas, de acordo com o anteriormente exposto, só faz sentido qualificar como cláusula especial de

ordem pública a norma autolimitada que possa ser vista como concretização legislativa ou

jurisprudencial da cláusula geral de ordem pública internacional.

⇒ Outras características da ordem pública internacional:

i) Uma característica fundamental da cláusula de ordem pública internacional consiste na

sua excecionalidade: esta cláusula só intervém como limite à aplicação do Direito

estrangeiro ou transnacional quando a solução dada ao caso for não apenas divergente da

que resultaria da aplicação do Direito português, mas também manifestamente

intolerável.

Em rigor, a natureza manifestamente intolerável da solução também não se confunde com o grau de

divergência entre a OJ interna e o Direito estrangeiro ou transnacional. Com efeito, a solução dada ao

caso pelo Direito estrangeiro ou transnacional pode ser incompatível com a OJ do foro mesmo que

esta contenha disposições semelhantes, quando estas disposições tutelam interesses públicos

nacionais ou interesses privados locais e entram em contradição no caso concreto com as normas

estrangeiras ou transnacionais.

Enquanto limite ao reconhecimento de uma decisão estrangeira, a cláusula de ordem pública

internacional só intervém quando o reconhecimento for manifestamente incompatível com normas

e princípios fundamentais da OJ do foro.

A distinção entre ordem pública internacional e ordem pública interna, ou de Direito material e o

caráter excecional da primeira são, aliás, impostos pela grande maioria das Convenções de unificação

do Direito de Conflitos vigentes na OJ portuguesa e pelos Regulamentos europeus e têm sido

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reiteradamente afirmados pela jurisprudência dos tribunais portugueses relativa ao reconhecimento

de decisões judiciais estrangeiras.

Nas OJ em que a Constituição constitui a sede dos valores básicos da comunidade, como sucede com

a CRP, o conteúdo da ordem pública internacional tende a ser determinado à luz dos princípios

constitucionais.

Excecionalmente, poderão existir princípios fundamentais estruturantes da OJ portuguesa que não

tenham dignidade constitucional, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação em

setores importantes da OJ, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela

vontade coletiva manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo

consenso social. Meras soluções particulares, que resultam de opções conjunturais ou pontuais do

legislador em matéria de Direito privado, não se revestem destas características; o mesmo se diga, em

princípio, de soluções excecionais nesta matéria.

Por maioria de razão, meras construções doutrinais ou jurisprudenciais, de sentido e alcance

controversos, nunca poderão constituir conceções fundamentais de justiça relevantes para a ordem

pública internacional.

Todo o órgão público que aplique esta cláusula tem de fundamentar claramente a sua decisão em

conformidade com estas diretrizes.

ii) Uma outra característica da cláusula de ordem pública internacional é o seu caráter

evolutivo: o conteúdo da ordem pública internacional acompanha a evolução da OJ,

designadamente dos seus valores fundamentais que se encontram consagrados

constitucionalmente.

O tribunal tem de atender ao conteúdo atual da ordem pública internacional, no momento em que

aprecia a questão.

iii) A cláusula de ordem pública internacional caracteriza-se ainda pela sua relatividade, i.e.,

pela sua atuação depender da intensidade dos laços que a situação apresenta com o Estado

do foro. A importância dos diversos elementos de conexão que a situação possa apresentar

com o Estado do foro depende, em certa medida, da matéria em causa: em matéria de

estatuto pessoal avulta a nacionalidade e a residência habitual dos interessados; noutras

matérias podem ser importantes outros laços, tais como a localização de bens com especial

valor económico, histórico ou cultural.

Em muitos casos, a situação tem laços significativos com o Estado do foro, fundando-se nestes laços

a competência internacional dos tribunais deste Estado. Mas isto pode não se verificar,

designadamente quando a competência internacional resultar de um pacto de jurisdição.

Um determinado resultado pode ser manifestamente intolerável quando a ligação com o Estado do

foro for mais intensa e já não o ser quando a ligação for menos intensa. Em todo o caso, a cláusula de

ordem pública internacional deve intervir mesmo na falta de laços significativos quando estejam

em causa direitos fundamentais de especial importância.

A este respeito, também parece de atender à ligação que a situação apresente com outro Estado em

que vigorem normas ou princípios fundamentais convergentes como aqueles que integram a ordem

pública internacional do Estado do foro: na falta de uma conexão suficiente com o Estado do foro, a

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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atuação de uma norma ou princípio fundamental deste Estado pode ser justificada pela

intensidade da ligação existente com outro Estado em que vigore uma norma ou princípio de

ordem pública internacional convergente.

Já oferece certa margem para dúvida a “variabilidade” da ordem pública internacional conforme se

trate da constituição de uma situação ou do reconhecimento de efeitos de situações constituídas no

estrangeiro:

A doutrina francesa (BATIFFOL), seguida por muitos autores portugueses, como ISABEL DE

MAGALHÃES COLLAÇO, BAPTISTA MACHADO ou MARQUES DOS SANTOS, fala de

um efeito atenuado da ordem pública internacional quanto ao reconhecimento de situações

constituídas no estrangeiro. Por exemplo, enquanto a celebração de um segundo casamento

ao abrigo de um Direito que admite a poligamia violaria a ordem pública internacional, esta

cláusula já não se oporia à pretensão de alimentos deduzida por uma das mulheres quando

o casamento poligâmico tenha sido celebrado no estrangeiro.

Mas uma certa flexibilização da ordem pública internacional em relação aos efeitos não significa que

a própria constituição da situação no estrangeiro não possa ser considerada contrária à ordem pública

internacional. Assim, o n.º 2 do art. 1651º CC condiciona o registo do casamento celebrado por

estrangeiros no estrangeiro à sua conformidade com os princípios fundamentais da ordem pública

internacional do Estado português. Por conseguinte, a ordem pública internacional pode opor-se ao

reconhecimento de um casamento celebrado no estrangeiro. Mesmo nesse caso, porém, a ordem

pública internacional não obsta a que o mesmo casamento seja indiretamente reconhecido para efeitos

de obrigação alimentar ou de direitos sucessórios. Ou seja, o que a doutrina do efeito atenuado

defende é: eu não reconheço o casamento poligâmico, mas vou reconhecer apenas alguns dos seus

efeitos.

Em última análise, o que releva não é tanto a distinção entre constituição de uma situação e

reconhecimento de uma situação, mas a intensidade da ligação que a situação apresenta com o

Estado do foro em cada momento. Em muitos casos que se relacionam com o dito efeito atenuado da

ordem pública internacional verifica-se que no momento da constituição a situação não tinha laços

significativos com o Estado do foro; já no momento em que se coloca o problema da produção de

certos efeitos, estes laços significativos existem mas, então, já não está em causa a título principal a

válida constituição da situação (ex: do casamento), mas efeitos que pressupõem, a título prejudicial,

essa válida constituição (ex: o direito a alimentos ou os direitos sucessórios) e que configuram outras

situações que são compatíveis com os princípios fundamentais da OJ do foro.

Esta teoria, contudo, cria um critério geral e abstrato, o que é contrário à conceção aposteriorística da

ordem pública internacional. No fundo, a teoria do efeito atenuado mais não é do que uma

concretização da ideia da relatividade.

⇒ Consequências da intervenção da reserva de ordem pública internacional:

A ação preclusiva da cláusula de ordem jurídica internacional incide sobre os efeitos jurídicos

desencadeados pelo Direito estrangeiro ou transnacional ou por uma decisão estrangeira.

As consequências da intervenção da cláusula são o afastamento do resultado a que conduz a

aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional ou o não reconhecimento de uma decisão

estrangeira.

Page 121: Direito Internacional Privado - AAFDL...Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 5 estrangeira, sob certas condições – assim, o DIPrivado engloba o Direito de conflitos

Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

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Quando a cláusula atua como um limite à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional vale um

princípio do mínimo dano à lei estrangeira ou ao Direito transnacional.

o Se do afastamento da solução contrária à ordem pública internacional não resultar uma

lacuna, continua a aplicar-se o Direito estrangeiro ou transnacional. É o que se verifica quando

a solução contrária à ordem pública internacional resulta da atuação de uma norma especial.

Neste caso passa-se à aplicação do regime geral contido no Direito estrangeiro ou

transnacional.

o Se surgir uma lacuna, deve procurar obter-se a solução nos quadros do Direito estrangeiro

competente ou do Direito Transnacional, mediante o recurso à analogia ou aos princípios

jurídicos.

Estes ajustamentos da solução desencadeada pelo Direito estrangeiro ou transnacional às exigências

da nossa ordem pública internacional configuram casos de adaptação. Só em último caso,

subsidiariamente, é que se recorre às regras de Direito material do foro (art. 22º/2 CC):

O recurso ao Direito material do foro é necessário, designadamente, quando a cláusula de

ordem pública internacional intervém por falta no Direito estrangeiro ou transnacional de

norma que desencadeie uma obrigação de conduta, por exemplo, uma obrigação de

alimentos.

De iure condendo, LIMA PINHEIRO entende que na impossibilidade de resolver o caso nos quadros

do Direito estrangeiro competente se deveria recorrer ao Direito subsidiariamente competente e só

na falta deste, ou se na sua aplicação também fosse incompatível com a ordem pública internacional,

se passaria ao Direito material do foro. Com efeito, a justiça da conexão postula que se aplique à

situação transnacional, tanto quanto possível, o Direito que apresenta a ligação mais significativa

com a situação.