Direito Internacional Privado e Cultura Pós-moderna

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Direito Internacional Privado e Cultura Pós-moderna

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  • DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E CuLTURA Ps-MoDERNA

    Prof. Dr. Dr. h.c. mult. ErikJayme

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    Excelentssimo Senhor Diretor da Faculdade de Direito da UFRGS, Excelentssimo Coordenador do Mestrado em Direito/UFRGS e Excelentssimo Senhor Juiz de Direito Diretor da Escola Supctior da Magistratura do RS, caros colegas, senhoras e senhores:

    Antes de falar do tema Direito Internacional Privado e Cultura Ps-Moderna desejo agradecer profundamente esse convite da Faculdade de Direito da UFRGS, falando tambm em nome de meu assistente Alexander Geckler. Nossas Universidades tm estreitas relaes de colaborao e estamos aqui para discutir problemas os mais recentes de direito, os quais se apresentam muitas vezes como semelhantes em nossos pases.

    Pessoalmente, seja-me permitido mencionar que a primeira vez que venho ao Brasil e h muito tempo desejava vir. O Brasil o pas dos meus sonhos, pas que eu conheci na literatura, nos filmes e, naturalmente, do direito civil c direito internacional privado. Agradeo particularmente Professora Cludia Lima Marques, que esteve em Heidelbcrg para o seu doutorado c que preparou minha primeira estada brasileira.

    Durante esta semana teremos vrias lies sobre o direito de familia alemo atual no mbito da ps-modernidade e espero muitas discusses sobre as questes suscitadas nestas lies.

    Senhoras e senhores, passo conferncia: O objeto- um pouco temerrio- dessa conferncia o seguinte: direito internacional

    privado e cultura ps-moderna.2 Durante este curso na UFRGS, sero abordados o direito

    1 Verso da aula apresentada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do rio Grande do Sul, em 2 de setembro de 1996, como abertura do Curso "Direito Patrimonial de Famlia na Ps-Modernidade". Traduo livre, autorizada e no revista pelo autor, de Lisiane Feitcn Wingert (Bacharel em Direito pela UFRGS, Mestranda/UFRGS, Bolsita da CAPES), reviso e notas da Profa. Dra. Claudia Lima Marques, Professora Titular de Direito (UFRGS). A forma oral foi preservada e acrescentadas notas, com base no texto publicado no ano seguinte por Erik Jayme, "Internationales Privatrecht und postmoderne Kultur, in ZfVR-Zeitschrift fr die Rechtsvergleichung (Viena) 1997, p. 230-236.

    2 Veja Etik Jayme, Identit culturelle et intgration: le droit internacional priv postmoderne, Recuei! des Cours 251 (1995), 9 ss.

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    de famlia e tambm de contratos, em tomo da questo geral do direito internacional privado e da cultura ps-moderna.

    De inicio, algumas consideraes preliminares: o direito faz parte da cultura geral. Tem razes profundas na tradio, mas tambm sofre influncias pelo desenvolvimento de nossa sociedade e da comunidade internacionaL Dessa maneira, nosso direito atual , em certa medida, uma reproduo de nossa cultura contempornea, quer dizer, da cultura ps-moderna.3

    Se ns falamos do ps-modernismo ou da condio ps-moderna- como chama o autor francs Lyotard4 - ns pensamos inicialmente na arqu.itetura de nossos dias e em nossa arte. 5

    A arte abstrata da arquitetura do cubismo, concebida ao conhecimento da arte figurativa.6 No que concerne arquitetura de prdios, descreve sua funo pelos seus elementos clssicos, bem como pela fachada. De outra parte, podemos notar um pluralismo de estilos, que podemos chamar mesmo de ecletismo, isto , os artistas escolhem os elementos clssicos, que ento so misturados ou combinados com outros elementos modernos.7 Encontramos tambm movimentos similares na literatura e na filosofia.

    O ponto de encontro entre a cultura ps-moderna e o direito so os valores que tm em comum.8 Para essa conferncia, permito-me escolher quatro valores ou elementos demonstrados na cultura ps-moderna.

    O primeiro deles, j mencionado, o pluralismo (Pluralismus). No apenas o pluralismo de formas, mas tambm de estilos. E tambm de estilos de vida, a idia de autonomia em escolher seu prprio modo de vida. O mundo ps-moderno caracterizado por um "direito diferena" (droit la dif!erence), para citar a expresso do senhor professor R.-J. Dupuy, do colgio de Frana, atualrnente presidente do Instituto de Direito Internacional. 9

    O segundo valor: o mundo ps-moderno caracterizado pela comunicao (Kommunikation) e por no ter mais fronteiras. De outra parte, no so apenas os meios tecnolgicos que permitem a troca rpida de informao e imagens, mas tambm a vontade (Wille) e o desejo (Wunsch) de se comunicar dessas pessoas. Esse desejo emerge como valor comum. 10

    A terceira caracterstica a "narrao" (Narration) 11 : comunicar tarn bm descrever, contar, narrar, observe-se o j alto nvel da arte figurativa.

    3 Veja Remo Ceserani, Raccontare i! postmodemo (Iorino, 1997), p. 127. Veja Jean-Franois Lyotard, La condition postmoderne (Paris 1979), p. 8ss. Sobre a volta de elementos clssicos na arquitetura de Berlim, veja reportagem "Hauptstadt Renaissance: Aido Rossis Berlin", in Frankfurter Allgemeine Zeitung 9.9.1997, p. 42.

    6 Sobre arte figurativa e as recordaes, Jayme, ZfRV 1997, p. 232. 7 Veja sobre o elemento central da arquitetura ps-moderna, o 'double coding' , Charles Jencks, What

    is Postmodernism? (3.Ed., Londres/New york 1989), p. 14. 8 Lyotard, nota 88: "La science postmoderne comme recherche des instabilits." ~ Expresso de Ren-Jean Dupuy, La clture du systfme international La cit terrestre (Paris 1988), p. 115. 10 Veja detalhes in Erik Jayme, e "Internationales Privatrecht und posttnoderne Kultur, in ZfVR

    Zeschrift for die Rechtsvergleichung (Viena) 1997, p. 231. 11 A narrao legitima tambm a cincia, veja discusses de Lyotard e Steven Connor, in Postmodernist

    Culture (Oxford 1989), p. 2 e seg.

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    O quarto valor o retorno dos sentimentos (!e retour des sentiments, Rckkehr der Gefhle), 12 algumas vezes descrito em um sentido pejorativo, como emergncia de um novo irracionalismo. Podemos, porm, constat-lo em relao identidade cultural, que pode conduzir a conflitos culturais, baseados em um sentimento forte de defesa de sua prpria identidade cultural, de sua religio e de todas as outras expresses do individualismo.

    A escolha desses quatro valores da cultura ps-moderna- pluralismo, comunicao, narrao e retorno dos sentimentos- pode parecer arbitrria, mas essa escolha permite pr em evidncia a ligao entre o direito e a cultura ps-moderna. 13

    Entre as matrias de direito, 14 escolho o direito internacional privado - o direito do conflito das leis- que compreende hoje em dia tambm o conflito de jurisdio, as questes de processo em matria de competncia e execuo de julgamentos estrangeiros. 15

    O Direito Internacional Privado clssico tem como finalidade principal a garantia da harmonia na comunidade jurdica internacional e na execuo de decises estrangeiras. um ideal formal e objetivo, devido autoridade de grandes autores do sculo XIX como, por exemplo, Savigny. A justia conflitual baseia-se na idia de conexo (Anknpfung), no caso concreto, com um pas, que justifique a aplicao do direito desse pas, qualquer que seja o resultado concreto da aplicao dessa nonna. 16

    Crtica a essa idia desenvolveu-se na doutrina moderna, sobretudo com os autores americanos, que favoreceram com uma certa materializao (Materialisierung des Kollisionsrechts) do direito internacional privado, no sentido de que a melhor lei (em ingls, better law) 17 - a lei mais favorvel ao sujeito mais vulnervel - deve ser a aplicada. Por exemplo, a lei que melhor protege a vtima de um acidente. Aqui, a finalidade material da norma (Sachnormen und ihre Zwecke) tem precedncia c leva flexibilizao dos mtodos do direito internacional privado.18

    Passamos agora ao tema objetivamente proposto para esse trabalho. As coisas mudaram: existem fenmenos novos na viso ps-moderna do direito

    internacional privado e que refletem os quatro valores expostos no incio dessa apresentao.

    12 VejaJayme, Recuei! des Cours, p. 36 e 261ss. E veja tambm Arthur Kaufmann, Rechstphilosophie in der Nach-Neuzeit (Heidelberg 1990), p. 6.

    13 Veja defesa desta deciso in Jayme, Recuei! des Cours, p. 36ss. 14 Veja por exemplo Ladeur, Post-modern Constitmonal Theory: A propect for the self-organising

    society, The Modem Law Review 60 (1997), p. 617. 13 Veja detalhes in Jayme, ZfRV 1997, p. 232. 16 Jayme, ZfRV 1997, p. 232. 17 Veja Erik Jayme, Diritto cparato e teoria de! progresso, Rivista de! Dirtto Commerciale e de! Dritto

    Generale delle Obligazione, nr. 1-2/3-4 (gennaioaprile) 1995,p. 4Sss. 18 Assim Jayme, ZfRV 1997, p. 232: "Das Internationale Privatrecht hatte nach der klassischen einc moderne

    Phase. Diese bestand in einer gewissen Materialisierung des Kollisionsrechts. Waren in der klassischen Zeit die Kollisionsnormen Instrumente eines autonomen Verweisungsrechts, so traten in der moderne die Sachnormen und ihre Zwecke in den Vordergrund. Es kam zu einer Verrnischung der Kategorien. Die Suche nach der Gercchtigkeit des Einzelfalles verdrngte bergeordnetc Ziele, wie die Rechtssicherheit und die Vorhersehbarkeit. Ergebnisbestimmte, flexible Kollisionsnormen waren die Folge."

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    Para ilustrar esse fenmeno, permito-me mencionar dois casos da Corte Federal alem (BGH): um caso alemo-brasileiro e urna deciso inglesa.

    O primeiro caso, datado de 28 de fevereiro de 1996, da Corte Federal alcm,19 concerne ao seguinte: um alemo demanda o pagamento de uma soma em dinheiro e a restituio de alguns bens, entre os quais um automvel, em razo de ruptura de noivado. A demandada, uma brasileira, domiciliada na Espanha.

    A pretenso se baseava em vrios dispositivos, como enriquecimento sem causa, responsabilidade por delito e revogao de doao.

    As partes viveram juntas por um perodo e por duas vezes fixaram a data para a realizao da cerimnia de casamento. A parte demandada, a brasileira, no apenas renunciou ao casamento no ltimo momento, como tambm teve um filho no Brasil- cujo pai no era o noivo, mas outro homem.

    A primeira questo importante saber se os tribunais alemes eram competentes para apreciar esse caso, uma vez que h limites quanto competncia internacional dos tribunais alemes em questo de eventual responsabilidade delitual da parte r - apesar de que os outros fundamentos, sobretudo a demanda baseada no enriquecimento sem causa, no se incluam na competncia dos tribunais alemes.

    A Corte motivou sua deciso da seguinte maneira: primeiro, explicou que a Conveno de Bruxelas sobre jurisdio e execuo de jutgamentos no aplicvel a esse caso, uma vez que as causas que derivam de rupturas da noivados esto excludas do campo da aplicao dessa conveno; cm segundo lugar, porque, ao momento da demanda, a Conveno de Bruxelas no estava em vigor entre a Espanha e a Repblica Federal da Alemanha.A Corte, ento, aplicou a lei nacional, quer dizer, o Cdigo de Processo Civil alemo. De outra parte - e ns nos aproximamos agora do ps-modernismo- a Corte aplicou normas da Conveno por anatogia.20

    A Conveno de Bruxelas no favorece o demandante. Existem algumas excees como, por exemplo, formas contratuais, lugar de execuo das obrigaes etc. Mas essas excees so interpretadas pela Corte de Justia da Comunidade Europia de maneira restritiva. A Corte justificou a aplicao desse princpio da Conveno de Bruxelas pelo interesse da comunidade dos estados europeus cm alcanar princpios comuns e uniformes nos procedimentos civis.21

    19 BGH 28.2.1996, N]W1996,p. 1411, tambm in !PRAX 1997, p. 187; veja Peter Mankowski, Verlibnisbruch, konkurriende Deliktsansprche und Rckforderung von Geschenken im Internationalen Privar~ und Zivilprozessrecht, IPRAX 1997, p. 174.

    2D O texto da deciso, no original reproduzido in ZFRV 1997, p. 233 : "Das gebietet das Interesse des internationalen Rechtsanwendungseinklang und der EinheitLichkeit der Auslegung von Staatsvertiigen ( ... ). Es wii.re nicht vesrindlich, eine intemationale Zustiindigkeit kraft Sachzusammenhangs in Eillen, die der Geltung des EuGV unterliegcn, auszuschliessen, sie dagegen in Fii!len ausserhalb scines Geh.ungsbercichs allgemeinen zumlassen, obwohl das Interesse der Europiischen Staatengemeinschaft gerade darauf ab:ielt, in Fii.llen mit auslandsbezug zu mglichst einheitlichen Verfahrensgrundsiitzen zu gelangen."

    Zl Veja tambm Erik Jayme, Staatsvertrii.ge als ratio scripta lm Internationalen Privatrecht, in: Collisio Legum, Fs Broggini (Mailand 1997), p. 211.

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    Senhoras e senhores: primeira vista, a aplicao de uma conveno internacional que no est em vigor pode parecer um absurdo. Por outro lado, esse mtodo (normas narrativas)22 faz parte do direito internacional privado ps-moderno.

    As regras de um tratado internacional assumem duas funes: a primeira funo, no que concerne s questes da prpria conveno, onde tem fora obrigatria; a segunda funo, narrativa. Isto quer dizer, os princpios enunciados pela Conveno podem ser tomados em considerao, para decidir questes que a Conveno reserva ao direito nacional.

    Afirmei que esse fenmeno narrativo- e no o nico caso. Existem outros casos com o mesmo mtodo, inclusive o que um caso recente da Corte Suprema Austraca, em que foi aplicada a Conveno de Lugano, a qual no estava em vigor ao momento da deciso,23

    chegado o momento de efetuar algumas observaes no que tange teoria: o sistema jurdico pressupe uma certa coerncia- o direito deve evitar contradio. O juiz, na presena de duas fontes - uma europia transnacional e outra nacional - com valores contrastantes, deve buscar coordenar as fontes, num dilogo das fontes (Dialog der Quellen). 24

    O direito europeu agora favorece o ru, conforme o princpio geral da Conveno de Bruxelas, que indica o domiclio do ru; enquanto o direito alemo nacional favorece - um pouco, mas favorece claramente - a parte demandante.

    H um conflito de valores e a Corte Federal resolveu esse conflito de valores da seguinte maneira: preferiu o direito europeu, a fim de buscar uma uniformidade de solues no sistema europeu. 25

    Existem nesse julgado outras questes interessantes: mencionei o problema de ruptura do noivado, onde se trata tambm de determinar a lei aplicvel a essa ruptura. A Lei de lntroduo ao Cdigo Civil .Alemo (EGBGB) no prev regra escrita sobre a lei aplicvel a noivados. De outro lado, a Corte Federal favoreceu o princpio da nacionalidade, quer dizer, aplicada a lei da nacionalidade da demandada, brasileira.

    muito interessante observar a Corte alem aplicando a lei brasileira, justamente porque a demandada com domiclio na Espanha tem nacionalidade brasileira. V-se que no mundo do direito internacional privado h um conflito eterno entre o princpio da nacionalidade (do direito alemo) e o princpio do domiclio (do direito braisleiro).

    Em tempos ps-modernos, para proteger a identidade cultural (kulturelle Identitdt),26

    n Veja a criao desta expresso, in Erik Jayme, Narrative Nonnen im lnternationalen Privat und Verfahrensrecht (fbingen 1993). E tambm Rouhette, Le style de la loi: normes narratives et normes contraignantes, in Acadmie lnternationale de Droit Compar, Rapports gnraux X!Ve Congres !nternationale Athenes 1994 (Athen/Den Haag 1996), p, 37.

    23 Veja casos anteriores in Erik Jayme e Alexander Geckler, sterreich und das Europiiische Kollisionsrecht: Die Parallelitat als Rechtsfrage, IPRAX 1993, p. 131 e seg.

    24 Jayme, ZfRV 1997, p. 235, 21 Jayme, Staatsvertrge als ratio scripta im lnternationalen Privatrecht, in: Collisio Legum, Fs Broggini

    (Mailand 1997), p. 211. 26 Jayme, ZfRV 1997, p. 234.

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    preferimos novamente o principio da nacionalidade- gue est sendo renovado e renascendo -tal como vemos nessa deciso da Corte Federal Alem que indicou aplicvel a lei brasileira ao caso de ruptura de noivado, em virtude da nacionalidade da demandada.

    Retomando ao valor "narrao", gostaria de mc-'11cionar tambm um caso ingls, recente e muito interessante, no qual encontramos a mesma tcnica de normas narrativas.27 Trata-se de um conflito de competncia intcr-local, uma vez que o Reino Unido tem diferentes unidades territoriais com leis prprias- a Inglaterra e a Esccia, nesse caso.

    Em um tribunal ingls, um banco ingls foi demandado para restituio de uma soma paga por uma autoridade escocesa, com base num contrato, que era nulo. A questo era saber se um juiz ingls competente para o julgamento de um caso como esse, O Reino Unido, em lei especial, prev a aplicao de regras da Conveno de Bruxelas tambm para a resoluo de conflitos inter-locais.

    A parte r, domiciliada na Esccia, tem uma nica possibilidade de encontrar uma base para competncia judicial de juzes ingleses, que o artigo 5, nmero 128 da Conveno de Bruxelas, que prev para as obrigaes contratuais, a competncia no lugar de execuo de contratos.

    O ponto em questo determinar se essa disposio deve ser considerada, ainda que nulo o contrato, no sentido do que prescreve o art. 5, 1 da Conveno de Bruxelas incorporada no Reino Unido. Ou seja, uma obrigao constante de um contrato nulo uma obrigao contratual, ou no?

    A Corte decidiu que juzes ingleses eram competentes, tomando em considerao a Conveno de Roma sobre as Leis Aplicadas s Obrigaes Contratuais, assumindo as conseqncias da nulidade do contrato quanto lei aplicvel ao contrato.

    Dessa maneira, a Corte resolveu a questo da competncia judicial nesse caso ingls-escocs, em relao a duas convenes europias - a de Bruxelas e de Roma. O direito convencional assumiu, assim, um papel de argumentao, figurando essa disposio como norma narrativa.29

    Vemos essa tendncia de tomar em considerao as convenes nos casos nacionais -aos quais no seriam aplicveis- como parte do ps-moderno, porque as normas assumem duas funes: obrigatria e narrativa.

    27 Caso relatado in Jayme/Kohler, Europiiisches Kollisionsrecht 1997- Vergemeinschaftung durch Siiulenwechsel? IPRAX 1997, p. 385 ss.

    2s Conveno de Bruxelas: artigo 5", 1 - Em matria contratual, perante o tribunal do lugar onde a obrigao que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida; em matria de contrato individual de trabalho, esse lugar o lugar onde o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho e, se o trabalhador no efetuar habitualmente o seu trabalho no mesmo pas a entidade patronal pode igualmente ser demandada perante o tribunal do lugar onde se situa ou se situava o estabelecmento que contratou o trabalhador.

    29 Veja Erk Jayme, Osservazion per una teoria postmoderna della comparazione giurdica, in Rivista di Diritto Civile, ano XLIII, 1997, nr. 6- parte prima, p.816ss.

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    Aps analisar estes dois exemplos da jurisprudncia, passo agora a tratar de uma figura nova. O contrato ps~moderno por excelncia, o contrato de time-sharing, que a multi-propriedade. 30

    No momento, este modelo contratual tem recebido muita ateno da jurisprudncia na Europa, tendo sido objeto de uma enormidade de casos e muitas decises ou julgados que buscam solucionar o problema da lei aplicvel e tambm o problema da competncia jurisdicional aplicvel a essa matria. 31

    O time-sharing um contrato que normalmente tem elementos de estraneidade porque, geralmente, so turistas de pases do norte da Europa, os quais adquirem um imvel situado num pas no mar mediterrneo, ou nas ilhas canrias. Nesse contrato - cujo imvel est comumente perto de uma praia ou stio turstico - deve-se considerar os problemas de proteo do consumidor adquirente desse imvel, em caso de concluso desse contrato fora do local comercial da venda. 32

    Esse contrato consiste na transferncia de um direito de uso (ou habitao) de um imvel por um perodo determinado. Trata-se de um contrato complexo, que inclui normalmente alguns servios, pois o adquirente paga uma soma para a manuteno do prdio, para a administrao do imvel, etc.

    uma associao de troca que pode proporcionar uma semana na Espanha ou em Portugal, por exemplo. um contrato que apela tambm ao sentimento, porque o turista permite 'sentir-se' proprietrio por uma semana de uma casa perto de uma praia. 33

    Esse contrato, o contrato de time-sharing, ps-moderno, pois misto e de difcil classificao, uma vez que no observa a distino clssica entre mvel e imvel.

    Na Europa existem pases que dispem de uma legislao especial em matria de multi-propriedade - sobretudo Portugal, que regulou de maneira exaustiva esses problemas que concernem multi-propriedade -, dando-se conta da necessidade de proteo do adquirente na comunidade europia. 34

    Existe ainda uma diretiva da Comunidade Europia, de 26 de outubro de 1994, concernente proteo do adquirente em alguns aspectos do contrato de aquisio de direito de utilizao por tempo parcial de propriedade imobiliria. 35

    30 Jayme, Recueil des Cours, pg. 247 e seg. 31 Veja Jayme/Kohler, Europiiisches Kollisionsrecht- Der Dialog der Quellen, !PRAX 1995, p. 343. 32 Veja detalhes in Erik Jayme, "Europiiische Kollisionsrecht: Neue Aufgaben, neue Techniken",

    Europische Binnenmarkt, !PR und Rechstangleichung, Hommelhoff/Jayme/Mangold (Ed.), CE Mller, Heidelberg, 1995, p. 42-43.

    33 Veja Erik Jayme, Neues Internationales Prlvatrecht fr Time-Sharng-Vertriige- Zum Teilzeit-Wohnrechtegesetz vom 20.12.1996, !PRAX 1997, p, 233.

    34 Jayme, ZfRV 1997, p. 235. 35 Diretiva 94/47/CE de 26 de outubro de 1994.

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    Mister algumas palavras sobre a direriva: afinal, o que uma diretiva no direito europeu? Bem, a Diretiva um ato legislativo da comunidade que vincula os Estados ao que concerne finalidade da diretiva, obrigando os Estados-Membros a transp-la nos sistemas nacionais. Os Estados, porm, ficam livres para determinar que medidas sero tomadas para atender essa diretiva.

    uma legislao - podemos afirmar ps-moderna- porque b trs textos que assumem simultneamente importncia para resolver os casos: em primeiro, h a lei nacional, que transpe a diretiva; em segundo, a diretiva em si e suas normas, porque o juiz livre para interpretar a lei nacional luz do direito europeu (logo, da Diretiva); em terceiro, existem os considerandos das diretivas (prembulos semelhantes aos dos Tratados Internacionais), os quais fixam sua finalidade e so importantes porque motivam a norma internacional.

    Os considerandos so muitos importantes, porque no direito comunitrio europeu, as dirctivas sem motivao so nulas.

    Ento, so trs textos a consultar para resolver um s caso. A diretiva, a qual mencionei, sobre multi-propriedade, contm uma regra de

    direito internacional privado.36 O artigo 9 dessa diretiva afirma que os Estados-Membros devem tomar as medidas necessrias para- qualquer que seja a lei aplicvel no caso de time-sharing- que a pessoa que o adquire no fique desprovida da proteo da diretiva europia (mnimo standard de proteo europeu), quando o imvel estiver situado no territrio de outro Estado-Membro.

    No direito internacional privado ps-moderno, esta uma regra unilateral, que protege o adquirente, considerado a parte mais vulnervel, porque 'pressionada' pelo desejo de ter uma propriedade no estrangeiro dessa forma.

    Por outro lado, a diretiva visa tambm uma finalidade completamente diferente: promover o bom funcionamento do mercado interno, evitando distores de concorrncia nos mercados nacionais. Sob essa tica, tem sentido limitar essa proteo sobre contratos concernentes a imveis situados em certos territrios na EuropaY O 'double coding'- principal caracterstica da arquitetura ps-moderna- emerge claramente aqui em direito internacional privado.

    Passo a um outro ponto da diretiva que uma questo- tambm muito interessante -da proteo ao adquirente por meio da determinao da lngua utilizada na redao de um contrato, gue tambm est regulada pela Europa.

    O contrato documento que porta informaes prescritas pela diretiva e- eu cito-deve ser redigido um entre uma das lnguas oficiais da Comunidade Europia, numa lngua de um dos Estados-Membros, para proteger o adquirente, que no deve ser privado do uso da lngua que conhece.

    36 A Veja Jayme, Erik, Europisches Schuldvertragsbercinkommen, vergleichendes bersctzen, Time-Sharing-Vertdige, IPRAX 1995, pg. 135_

    "' Jayme ZfRV 1997, p. 235.

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    Com efeito, a lnbrua nacional que se impe, para proteg-lo, bem como a lnt,rua do pais onde reside ou que escolheu. uma regra inovadora, protegendo a identidade cultural do consumidor. urna inovao, podemos dizer, em direito europeu comunitrio.

    Passo agora ao ltimo ponto dessa conferncia, que o direito internacional privado das obras de arte. Logo ao inicio da conferncia, mencionei a arte ps-moderna. muito interessante verificar que o fenmeno ps-moderno cultural. As obras de arte tornaram-se objetos com regra especial no direito internacional privado.38

    Na concepo clssica do direito internacional privado, as obras de arte, como as pinturas, por exemplo, eram consideradas coisas mveis. Em geral, se aplicaria a lei do local da situao da coisa, para determinar, por exemplo, a questo da propriedade.

    Na Europa, agora, temos uma direriva relativa restituio de bens culturais ilegalmente exportados, datada de 1993, e que possui disposio especial de conflito de leis.39 O regramento da propriedade cultural e tambm de sua restituio regulado pela legislao do Estado-Membro.40

    Segundo essa disposio, aplicamos, ento, a lei do pas de origem da obra de arte.41 uma inovao, devido proteo das obras de arte nacionais: o bem cultural assume grande importncia para a identidade cultural das pessoas que formam a nao. Essa idia uma idia ps-moderna.

    muito interessante observar que o Tratado de Roma de instituio da Comunidade Europia (Tratado de Roma) tem no artigo 36 uma regra sobre a proteo desses bens culturais (Exceo livre circulao de bens na comunidade), reservando-a aos Estados nacionais. Ou seja, a legislao nacional a que importa.42

    uma idia ps-moderna, porque essa disposio bem reflete o respeito identidade cultural das pessoas e aos sentimentos das pessoas que formam uma nao. Naturalmente, existem muitos problemas para determinar a nacionalidade de uma obra de arte. Temos discutido bastante na Europa o problema da nacionalidade das obras de arte, e vocs podem ima,b>inar como difcil de determinar a nacionalidade delasn.

    Em direito internacional privado, a regra clssica era a da situao da coisa, ou seja, a aplicao da lei de onde est localizado o bem (lex loci rei sitae). Da ser muito importante esta exceo, a qual determina a aplicao da lei de origem do bem cultural, sendo uma inovao que reflete o esprito ps-moderno. 44

    JB Erik Jayme, The Status of cultural Property in German Priva te Internacional Law, in Erik Jayme (Ed.) German Nacional Rtports in Civil Law Matters for the X!Vth Congress of Comparatve Law in Athens 1994, Heidelberg, p. 8ff.

    39 Richtlinie 93/7 /EWG ber die Rckgabe von unrechtmiissig aus dem Hoheitsgebiet eines Mitgedstaats verbrachten Kulturgtern, Abl EG L 74, p. 74.

    40 Veja Mussgnug, Das Kunstwerk im internationalen Recht, b Kunst und Recht, Heidelberg, 1985, p. 1Sss. 41 Veja Erik Jayme, Anknpfungsmaximen fr den Kulturgterschutz im Internacionalen Privatrecht, in

    tudes de Droit lntematiorutl en l'Honneur de Pierre Lalive, Helbbg & Uchtenhahn, Basilia, 1993, p. 717ss. 42 Jayme, tudes de Droit lnternational en l'Honneur de Pierre Lalve, p. 720. 43 Jayme, tudes de Droit lnternational en l'Honneur de Pierre Lalive, p. 723. 44 Jayme, tudes de Droit lnternational en L'Honneur de Pierre Lalive, p. 719.

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    Senhoras e senhores, chego concluso. Mencionei quatro elementos caractersticos da cultura ps-moderna: o pluralismo, a

    narrativa, a comunicao e o retorno dos sentimentos -um certo irracionalismo dos tempos ps-modernos. Observamos que esses fenmenos, que caracterizam o mundo ps-moderno, transformaram, em certa medida, o nosso direito internacional privado.

    O pluralismo reforou a idia de autonomia da vontade das partes. Por outro lado, protege-se identidade cultural da pessoa, de um nacional, por exemplo, e da nacionalidade das obras de arte. Essa idia de pluralismo encontrou um lugar de honra no direito internacional privado ps-moderno. A comunicao, segundo os valores do ps-modernismo, conduz idia de integrao. A jurisprudncia alem e inglesa citadas bem demonstram este desejo de atingir solues uniformes na Europa. A tcnica nova do dilogo entre fontes legslativas: existem as convenes internacionais, a lei nacional e as diretivas - as quais, por sua vez, dispem de trs textos. Esse dilogo das fontes um fenmeno novo e impactante, porque antes se considerava apenas a idia de hierarquia entre as fontes, e no a de uma aplicao simultnea, de um dilogo entre elas.

    Tambm as convenes internacionais assumem dupla funo: regulam conflitos, que podemos chamar de inter-regionais, porque na Europa agora pensamos nesses termos; mas tambm servem como modelo para transformar os sistemas nacionais.

    O terceiro valor, a narrao, demonstra-se na emergncia de normas narrativas. Isto quer dizer que, nas regras de direito, o juiz deve considerar vrias normas como, por exemplo, a questo dos trs textos das diretivas, para resolver um s caso prtico.

    O quarto valor: o retorno dos sentimentos e a proteo da identidade cultural, tm uma certa influncia no direito internacional privado, tal como se viu no caso brasileiro, no qual, segundo a Corte, deve-se aplicar a lei nacional senhora brasileira domiciliada na Espanha para determinar a sua responsabilidade. o renascimento do princpio da nacionalidade, em virtude da proteo da identidade cultural do indivduo.

    Gostaria, ao fim dessa conferncia, de salientar que devemos muito aos autores da Amrica Latina no que concerne discusso sobre a relao entre a cultura ps-moderna e o direito. 45 Na Espanha, tambm se discute muito esses problemas: h alguns meses, uns jovens professores de Granada publicaram um artigo sobre o direito internacional privado e ps-modernismo. 46

    um tema apaixonante e eu agradeo muito Faculdade de Direito da Universiade Federal do Rio Grande do Sul de ter escolhido esse tema para a primeira conferncia que fao no BrasiL Muito obrigado.

    45 Veja, por todos, Ghersi, Carlos Alberto, La Posmodernidad Jurdica, Buenos Aires, 1995. 46 SANCHEZ LORENZO, Postmodernismo y Derecho internacional privado, Revista espanola de

    Derecho internacional XLVI (1994), 557 ss