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29ª Reunião Brasileira de Antropologia 1 Direito: posse e maestria entre os Cocama da foz do Jutaí/AM 1 Rafael Barbi Costa e Santos (IDSM-OS) Resumo: Partindo de uma experiência etnográfica entre os Cocama da região da foz do rio Jutaí, Amazônia Central, esse trabalho propõe uma reflexão em torno de seu conceito de direito, parte dos modos nativos de regulação da posse e acesso a porções de terra e áreas de pesca. Minha hipótese é de que o direito se articula em torno das formas de socialidade locais e de uma cosmologia de maestria e domínio, expressas, respectivamente, no idioma do parentesco e das categorias de pessoas e na interação com os encantados. Me atento aqui para as contribuições recentes a respeito desse tema na antropologia das Terras Baixas da América do Sul. Palavras-Chave: Regimes de Posse, Paisagem, Cocama Prelúdio Minha primeira incursão numa comunidade Cocama foi marcada por uma curiosa disputa de política interna. A comunidade estava dividida em dois núcleos, um na beira rio Solimões, composto por 15 casas, e outro localizado na beira de um paraná, composto por quatro casas. O primeiro era composto pelos descendentes de uma antiga e influente liderança local. O segundo era composto pelos irmãos dessa liderança e uma família que vizinhava com eles há décadas. Era o mês de março, no período de cheia, e à medida que a água invadia as roças, as pessoas trabalhavam mais intensamente e se revezavam em torno das casas de farinha. Durante os finais de semana eu observava outras pessoas circulando pela comunidade, colhendo e cevando mandioca, preparando a massa e torrando farinha. Eram Cocama de comunidades ou aldeias vizinhas, e também da cidade de Jutaí. E a disputa interna girava, sobretudo, em torno de opiniões divergentes acerca do direito de usufruto por parte dos Cocama residentes na cidade frente ao processo de regularização de terra indígena. Como acontece em muitas ocasiões, o antropólogo foi chamado a expressar sua opinião sobre um assunto a respeito do qual sabia pouco ou quase nada, já que obviamente meu conhecimento a respeito de legislação indigenista não dava conta da 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de Agosto na cidade de Natal (RN). A pesquisa foi realizada no âmbito do Grupo de Pesquisas em Organização Social e Manejo Participativo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM-OS), com financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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29ª Reunião Brasileira de Antropologia

1

Direito: posse e maestria entre os Cocama da foz do Jutaí/AM1

Rafael Barbi Costa e Santos (IDSM-OS)

Resumo: Partindo de uma experiência etnográfica entre os Cocama da região da foz do rio Jutaí, Amazônia Central, esse trabalho propõe uma reflexão em torno de seu conceito de direito, parte dos modos nativos de regulação da posse e acesso a porções de terra e áreas de pesca. Minha hipótese é de que o direito se articula em torno das formas de socialidade locais e de uma cosmologia de maestria e domínio, expressas, respectivamente, no idioma do parentesco e das categorias de pessoas e na interação com os encantados. Me atento aqui para as contribuições recentes a respeito desse tema na antropologia das Terras Baixas da América do Sul.

Palavras-Chave: Regimes de Posse, Paisagem, Cocama

Prelúdio

Minha primeira incursão numa comunidade Cocama foi marcada por uma curiosa disputa

de política interna. A comunidade estava dividida em dois núcleos, um na beira rio

Solimões, composto por 15 casas, e outro localizado na beira de um paraná, composto por

quatro casas. O primeiro era composto pelos descendentes de uma antiga e influente

liderança local. O segundo era composto pelos irmãos dessa liderança e uma família que

vizinhava com eles há décadas. Era o mês de março, no período de cheia, e à medida que a

água invadia as roças, as pessoas trabalhavam mais intensamente e se revezavam em torno

das casas de farinha. Durante os finais de semana eu observava outras pessoas circulando

pela comunidade, colhendo e cevando mandioca, preparando a massa e torrando farinha.

Eram Cocama de comunidades ou aldeias vizinhas, e também da cidade de Jutaí. E a

disputa interna girava, sobretudo, em torno de opiniões divergentes acerca do direito de

usufruto por parte dos Cocama residentes na cidade frente ao processo de regularização de

terra indígena. Como acontece em muitas ocasiões, o antropólogo foi chamado a expressar

sua opinião sobre um assunto a respeito do qual sabia pouco ou quase nada, já que

obviamente meu conhecimento a respeito de legislação indigenista não dava conta da

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de Agosto na cidade de Natal (RN). A pesquisa foi realizada no âmbito do Grupo de Pesquisas em Organização Social e Manejo Participativo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM-OS), com financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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questão. Além disso, meu esforço em esclarecer que eu não era uma “autoridade” foi em

vão: minhas coletas de genealogias e relações de parentesco muitas vezes eram

interpretadas como um cadastro e a expectativa de que o antropólogo poderia comentar,

justificar ou contestar as prerrogativas de “quem tem direito” podia não se concretizar, mas

fazia das disputas em torno do direito um assunto privilegiado – e inescapável – da

etnografia. Como é canônico na antropologia, deixei que os interesses dos meus

interlocutores acabassem por guiar a pesquisa. Fortuitamente, em torno das discussões

sobre o direito, ou ainda, o direito do índio, se desdobrava o mundo vivido dos Cocama: as

dinâmicas do parentesco, as transformações na paisagem de várzea, os modos de sua

emergência como povo indígena, a produção da vida através da caça e da pesca, as

articulações da política indigenista e indígena, as maneiras de classificar e se relacionar

com os diferentes “tipos de gente” em um mundo repleto de agência de pessoas não-

humanas.

O trabalho de campo

A região da foz do Jutaí abriga dezenas de aldeias e comunidades Cocama, situadas

em Terras Indígenas regularizadas, Terras Indígenas demandadas à FUNAI e Unidades de

Conservação. Entre os anos de 2011 e 2012 estive na região em três ocasiões diferentes:

entre março e abril de 2011 realizei trabalhos de campo nas comunidades Síria e Santa

Luzia; entre outubro e novembro de 2011 pesquisei nas comunidades Santa Luzia e Nossa

Senhora da Saúde; em maio de 2012 durante uma cheia particularmente intensa, passei dez

dias visitando as famílias dessas comunidades na cidade de Jutaí. Em 2011 também estive

nas comunidades Floresta, São Francisco da Ressaca Grande, São Francisco do Xibeco.

Entre 2011 e 2014 estive em outras aldeias e comunidades Cocama ao longo do médio

Solimões: em 2011 visitei a aldeia Mucura, frequentei a Assembléia Geral da Organização

dos Povos Indígenas do Município de Fonte Boa (OPIFB) na aldeia Monte Moriá; em 2013

realizei trabalho de campo na comunidade Assunção, no município de Alvarães. Durante

esse intervalo, mantive o contato com os Cocama de Jutaí através da participação nas

assembléias gerais da Associação de Moradores e Usuários da RDS Mamirauá

(AMURMAM) e tive notícias deles através de Alex Coelho, pesquisador do IDSM que

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esteve na mesma área realizando pesquisas em socioeconomia. Durante esse ensaio, utilizo

primariamente dados do trabalho de campo de maior duração na região da foz do rio Jutaí,

embora eventualmente faça menção a outros lugares. Todas as localidades que pesquisei e

visitei, com exceção de Monte Moriá e Bugayo, estão em ambiente de várzea e situadas às

margens do rio Solimões e seus paranás. As palavras grafadas em itálico no decorrer do

texto são empregadas sob a condição de expressões registradas ou categorias locais.2

Os Cocama

Distribuídos de Pucallpa a Manaus, em uma grande extensão da bacia Amazônica,

os Cocama são conhecidos na literatura antropológica por sua “invisibilidade” (Stocks,

1978), resiliência (Petesch, 2003) e pela relativa negação de sua condição de “índios”

(Lathrap, 1970; Gow, 2003, 2010). Discute-se a filiação dos Cocama ao tronco lingüístico

Tupi, hipótese que tem sido assunto de controvérsia do ponto de vista da lingüística

histórica nas últimas duas décadas (Cabral, 1995, 2003; Vallejos Yopán, 2010; O’Hagan,

2011). A maior parte da população Cocama se encontra na Amazônia peruana,

especialmente ao longo do rio Ucayali e no baixo Huallaga, mas a presença desse povo na

Amazônia brasileira é documentada desde a primeira metade século XIX (Osculati, 1854;

Marcoy, 1875 [1862]; Bates, 1944[1863]; Koch-Grunberg, 2005 [1909]; Tastevin, 2005

[1928]; Nimuendaju, 1952). No Brasil os Cocama só se fizeram visíveis como um “povo

indígena” frente ao Estado à partir década de 1980, exigindo direitos por ocasião da

regularização de terras indígenas Ticuna no Alto Solimões, uma vez ambos os povos

viviam nas mesmas áreas. Suas reivindicações por reconhecimento e direitos, no entanto,

são mais antigas.

À primeira vista, os Cocama não parecem muito diferentes de outros ribeirinhos que

habitam as beiradas do Solimões. São cristãos, vivem em casas de madeira elevadas do

solo, com cobertura de zinco ou palha, organizam seus assentamentos sob a forma de 2 As áreas dos municípios de Jutaí e Fonte Boa, ora são enquadrados como parte do médio Solimões, ora como parte do alto Solimões. No entanto, para efeitos da política indigenista e indígena, Jutaí e Fonte Boa fazem parte do médio Solimões, sendo atendidas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Médio Solimões e Afluentes e também pela Coordenação Técnica Local da FUNAI em Tefé. Os levantamentos genealógicos realizados entre os Cocama de Jutaí demonstram ainda uma predominância em manter relações a montante, algo que se deve tanto à história da diáspora cocama quanto aos matrimônios mais recentes. A maioria dos parentes situados a jusante vivem em Manaus.

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comunidades, a maioria fala exclusivamente o português, mantém relações de comércio e

trabalho com diferentes patrões, enfatizam as atividades da pesca e a produção de farinha

de mandioca. Embora se reconheçam como Cocama, freqüentemente opõem seu etnônimo

à categoria de índio, e se descrevem como civilizados.

As narrativas dos Cocama da região da foz do rio Jutaí remetem à região da tríplice

fronteira Brasil, Peru e Colômbia. Na década de 1930, Peru e Colômbia guerrearam pela

possessão da área chamada Trapézio Amazônico, que incluía a então vila de Letícia, que

havia se tornado possessão colombiana através do Tratado Lozano-Salamón em 1922

(Sarmiento, 2009). Os indígenas então passaram a ser recrutados compulsoriamente para

servir nas frentes de batalha. Muitos fugiram para evitar a morte em combate. “Nesse tempo

eles vinham descendo de lá porque estava uma briga doida. Ninguém sabia atirar, brigar

de arma, foi por isso que vieram” conta Seu Rufino, morador mais velho da comunidade

Nossa Senhora da Saúde, na Ilha do Xibeco. A migração desses grupos foi gradual e

distribuída, uma vez que o fluxo continuou após a guerra e muitos parentes ficaram em

outras partes do alto Solimões brasileiro. Foi nessa época que um grande contingente de

Cocama, representado pelas famílias Maricaua, Panduro, Corico, Acho, Januário e

Anaquiri, se instalou na foz do Jutaí. Escolheram essa região, porque já havia alguns

parentes morando na região. Essas famílias já mantinham relações de compadrio e

casamento entre si, motivo pelo qual seu êxodo foi organizado em conjunto.

Até o ano de 2012 existem 15 Terras Indígenas (TIs) habitadas pelos Cocama na

Amazônia brasileira, destas, 9 constam como oficialmente regularizadas exclusivamente

para este povo e as 6 restantes incluem também os povos Ticuna, Cambeba (Omágua) e

Kaixana. Na região da foz do rio Jutaí, estado do Amazonas, há cinco TIs que contam com

a presença dos Cocama: Estrela da Paz, Espírito Santo, Acapuri de Cima, e São Domingos

do Jacapari/Estação. Atualmente a TI Riozinho encontra-se em processo de regularização e,

segundo lista da Diretoria de Assuntos Fundiários da FUNAI, datada de 2009, do total de

197 reivindicações de TIs encaminhadas no Estado do Amazonas, 69 constam o etnônimo

Cocama – aproximadamente um terço do total. Na região do médio Solimões, dentre 57

localidades (comunidades, aldeias ou sítios) que integram reivindicações de TIs, 42 se

identificam como Cocama. Apesar da ampla distribuição de coletivos Cocama e da

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abrangência de sua busca por reconhecimento do Estado, há poucos trabalhos em

antropologia sobre esse povo na Amazônia brasileira. Dentre estes destaco o trabalho de

Luciana Ramos (2002), que atuou como coordenadora dos Grupos Técnicos da Fundação

Nacional do Índio responsáveis pela demarcação das TIs Sapotal, Espírito Santo e São

Domingos do Jacapari. Buscando descrever os modos cocama de se “estar na história”,

Ramos também coloca em evidência temas como parentesco, interação com o ambiente da

várzea e a duradoura e interessante relação entre os Cocama e Ticuna. Os coletivos Cocama

retratados no trabalho de Ramos são próximos, relacional e geograficamente, àqueles entre

os quais estive.

A emergência dos Cocama como atores indígenas nos séculos XX e XXI não é

exclusiva para a Amazônia brasileira. Processos similares são descritos por Reig (2012) na

Amazônia Peruana. Os coletivos Cocama no médio Solimões cabe ressaltar, são compostos

de pessoas que também congregam outras origens indígenas, especialmente Ticuna,

Cambeba, Miranha e Kaixana. A demanda desses povos por reconhecimento e direitos está

inter-relacionada, de modo que a totalidade das organizações indígenas na região é

composta por vários povos diferentes.

A política indigenista e o direito do índio

No médio Solimões, durante assembleias, reuniões e em outras ocasiões formais

envolvendo comunidades que estão passando para indígena, a palavra “direito” é usada

recorrentemente. O que buscam os movimentos indígenas regionais é a garantia da

efetivação do direito do índio, seja ele a regularização de uma terra indígena, atendimento

de saúde adequado, a busca por uma educação diferenciada de qualidade e infra-estrutura

para as comunidades e aldeias, além de providenciar os meios através dos quais os

indígenas têm acesso a determinados direitos garantidos a todos os cidadãos brasileiros,

como salário maternidade ou aposentadoria. A maioria das demandas indígenas no médio

Solimões é constituída por direitos básicos, mas não é raro que a população regional se

refira à tais direitos como exclusivos aos índios. E não deixa de ser digno de nota que

apesar de todos os problemas enfrentados pela saúde indígena, ela é considerada uma

conquista para os povos do médio Solimões (Souza, 2012: 50-59).

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Afirmações como “todo índio recebe um salário do governo”, “os indígenas têm

muito dinheiro”, ou “os indígenas têm direito de tudo” são ouvidas nas conversas com

moradores de comunidades e cidades no médio Solimões. Os indígenas, no entanto,

percebem suas conquistas como fruto de uma luta organizada e de reivindicações, algo que

é especialmente verdadeiro no contexto do médio Solimões.

“É a lei que nos ampara! Não só nós indígenas, como todos os cidadãos

brasileiros. É igual na saúde: falam que a gente é privilegiado, mas eles não lutam.

Porque eles têm direito igual, só que eles não sabem!” – Arnaldo Maricaua, Jutaí,

Março de 2011

Nesse sentido, a atuação do movimento indígena torna possível aos índios se

articular para garantir a efetivação de seus direitos à revelia da negligência de diversas

instâncias do Estado no médio Solimões.

“Acabou isso de indígena ficar por baixo! Acabou o tempo da escravidão do índio.

Até vereador nosso, se ele quiser que a gente vote, ele tem que botar a cara aqui.

Tem que discutir conosco! – Francisco Ramo, Monte Moriá, Agosto de 2011

A política praticada pelos movimentos indígenas tem a vantagem de contornar os

entraves das instituições regionais e dialogar diretamente com instâncias federais, de onde

surge a máxima de que “o índio é federal”. Assim, as aldeias ou comunidades indígenas de

terras já regularizadas geralmente possuem uma infra-estrutura compatível com aquela de

comunidades antigas, bem estabelecidas e que mantêm uma relação próxima com políticos

atuantes na região.

Feitorias, Povoados, Comunidades, Aldeias: temporalidade e regimes de posse

As comunidades Síria, Santa Luzia e Pinheiro integram a área requisitada junto à

Fundação Nacional do Índio para a regularização da Terra Indígena de Santa Luzia. A TI

leva o nome da primeira comunidade a se mobilizar no movimento indígena, e encontra-se

100% sobreposta à Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Do outro lado do

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Solimões, em frente à área da TI Santa Luzia, está a Ilha do Xibeco, na qual as

comunidades Nossa Senhora da Saúde, São Francisco e Nova Esperança requisitaram

juntas como sua TI. Sua área não é sobreposta à RDSM, mas seus moradores participam na

organização política da UC. As requisições conjuntas, nos dois casos, se iniciaram à partir

de uma mobilização duradoura de duas lideranças locais: Pedro Paiva Corico, da Santa

Luzia, e Glória Maricaua, da Nossa Senhora da Saúde. A mobilização conjunta, como se

pode imaginar, contribui para organização em prol de um objetivo comum mas não anula

disputas e discussões internas acerca de modos de uso e posse das áreas que integram as

TIs.

O exemplo do prelúdio se deu na comunidade Síria, reconhecida na região como

organizada, antiga e influente. Síria parece um nome curioso para uma comunidade

indígena, mas sua origem está relacionada às primeiras décadas do século XX, quando Seu

Jorge “Ararão” Abdala e Seu Elias “Turco”, migrantes sírios, estabeleceram naquela área

como patrões. A eles se juntaram Clemente Carvalho e Constância, que viviam no paraná

do Envira, em cujas margens abundam estradas de seringa. Logo outros vieram se agregar

em torno dos patrões e suas mercadorias, e um povoado foi se formando. Os moradores

cortavam seringa, pescavam e salgavam pirarucu, arrancavam couro de jacaré, pegavam

bichos de casco para tirar gordura, colhiam mel de abelha e óleo de copaíba e andiroba.

Entregavam esses produtos aos patrões em troca do açúcar, o café, o sal, o sabão e o tecido.

Nesse tempo, Elias e Jorge eram os donos da Síria.

“Eles vendiam facim e mescla, que eram um pano grosso. Quando faziam uma

calça comprida ela já ia zoando “zou! zou!” batendo uma perna na outra. (...) O

tecido que eles traziam era uma cor só então, quando freguês vestia, parecia um

time de futebol!” - Seu Sabá e Dona Francisca, Síria, abril de 2011.

Os patrões foram embora dali e se firmaram onde hoje é a comunidade de Porto

Alegre, na outra margem do Solimões. Mais famílias vieram a se agregar em volta de Seu

Clemente e seus descendentes. Continuaram a trocar as mercadorias com os regatões que

passavam na beira. Um dos filhos de Seu Clemente, chamado Clementino foi o único a

permanecer ali, e os outros se espalharam pelas margens do rio. Seu Clementino morava na

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boca do cano do Envira quando “lá era a beira do rio!”. À medida a terra crescia, ele

mudava sua casa de lugar. Casou-se com Julia Marinho e teve 12 filhos, dos quais apenas

três encontram-se vivos. Um de seus filhos, Seu Otávio Carvalho, foi uma figura de

liderança fundamental para os moradores daquela área. Ele remava até Fonte Boa todo ano

para pagar o imposto, o que o tornava o dono daquelas terras. Otávio, por sua vez, casou-se

com Iracilde Cordeiro, filha de Cássio Cordeiro (turco da comunidade Porto Alegre) e

Agripina Aparício. Quando a Síria passou a ser uma comunidade, por ocasião do trabalho

do Movimento de Educação de Base (MEB) nas décadas de 1960 e 70, ele transferiu as

terras para a associação local, da qual naturalmente tornou-se o presidente. Após a sua

morte, outros parentes assumiram o posto e, atualmente é Ronildo Carvalho, seu neto,

quem exerce o cargo de presidente. A Síria é uma comunidade católica, sendo um local

onde se festeja a Santa Tereza.

A Santa Luzia foi fundada pela família do senhor Pedro Omoña Lomas, também

conhecido por Pedro Corico, e Angélica de Oliveira Cavalcante – nascidos em Benjamin

Constant e Caballococha, respectivamente. Na década de 1940, passaram a morar no paraná

da Síria, vizinhando com as famílias Gomes e Januário. Essa primeira ocupação é lembrada

pelos mais velhos de hoje como tempo de muito trabalho, no qual Seu Pedro Corico [pai]

saía para pescar de pela manhã, rodando os lagos da região, e os filhos iam com Dona

Angélica para a roça.

“Meu pai aguentava fome Rafael. Ele saía cedinho para ir pescar nos lagos. Fazia

o Aratituba, fazia o Envira. Voltava para casa só no finalzinho do dia [à tarde]. Ia

só com o tabaco (...) Minha mãe dizia ‘Vamos trabalhar que não se come nem

caderno nem lápis.” A gente acordava cedinho, trabalhava o dia inteiro, chegava

em casa só às sete ou oito horas da noite e quando era no outro dia já estava de pé

de novo. Eu não trabalho mais assim não, estou de pé depois que o sol nasceu. Por

que o senhor sabe: o camarada morre e o trabalho não acaba!” - Seu Pedro

Corico [filho], Santa Luzia, abril de 2011

Naquele tempo, os lagos pertenciam a Luís Barreto e Seu Pedro Corico pescava para ele.

Alguns moradores da Santa Luzia disseram que ele teria sido dono dos lagos Aratituba,

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Envira e outros mais próximos à Acapuri de Cima. Barreto é descrito como “um regatão

que passava aí na porta” e é mais provável que fosse entendido como dono por deter o

privilégio do comércio do pescado que saía desses lagos. O lago Aratituba também estava

registrado como propriedade de Seu Otávio Carvalho, embora eu não consiga estabelecer se

havia uma disputa entre Carvalho e Barreto ou se eles foram donos em momentos

diferentes. A família de Pedro Corico abandonou o Paraná-Síria após a morte de Arquilau

Paiva Corico, um dos filhos do casal, devido a uma picada de cobra. Após desgostar do

lugar, Seu Pedro e Dona Angélica se mudaram para um local rio acima, na beirada do

Paranã-do-Pinheiro.

Naquela área vivia o Senhor Aristóteles, um fazendeiro que criava gado e tinha um

pequeno barco para comércio, e também a família de Seu João Batista, agricultou piauiense

casado com uma indígena Cocama que vivia às margens da ressaca que batizou de

Manauzinho.3 A Santa Luzia desse tempo ainda não era propriamente uma comunidade e as

famílias viviam em casas separadas. Eventualmente, alguns filhos do casal se mudaram

dali, rumando para as cidades de Manaus e Benjamin Constant, para outras comunidades na

região e também se engajando no trabalho da navegação comercial. A comunidade se

constituiu gradualmente, quando os filhos foram retornando e o casal já se encontrava em

idade avançada.

Desde a fundação da comunidade é Seu Pedro Paiva Corico, filho mais novo do

casal Pedro e Angélica, o presidente da Santa Luzia. Seu Pedro foi o principal articulador

do pleito de passar a área indígena, e continua mobilizando os vizinhos na esperança de

que isso seja possível. A maior parte das famílias da comunidade segue os preceitos

católicos fundamentados por algumas regras da Irmandade de Santa Cruz. Mais

recentemente uma das famílias se converteu a uma denominação protestante.

A ocupação da Ilha do Xibeco é antiga e remonta ao êxodo dos Cocama na década

de 1930. Os moradores mais velhos da ilha, como Seu Rufino Maricaua Acipar (74 anos)

nasceram ali, mas seus pais e avós vieram de Caballococha no tempo da guerra. Nesse

primeiro período de ocupação do Xibeco havia um só povoado, como afirma Dona Clarisse

3 João Batista se tornaria, mais tarde, uma liderança fundamental para a criação da RESEX rio Jutaí (Aparício, 2006).

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Carvalho “Antes não havia comunidades, era tudo uma coisa só”. O Xibeco não tinha

dono e os patrões da região eram os “turcos da Síria”.

Um testemunho dessa ocupação é a plantação de cacau que hoje se encontra dentro

da mata devido ao fenômeno da terra crescida. O cacau era plantado por quase todos os

antigos moradores e vendido para os donos das lanchas a vapor que passavam pela região.

Como para os outros Cocama da foz do Jutaí, esse tempo da primeira ocupação é lembrado

pelos mais velhos marcado pela fatura e festa. As relações dos moradores do Xibeco se

estendiam a diversos lugares, especialmente os povoados Petrolina, Síria e Sevalho. À

partir do esvaziamento progressivo dessas localidades, o Xibeco dividiu-se em diversas

pequenas ocupações que mais tarde se organizaram como comunidades.

Embora Seu Rufino e Dona Clarisse jamais tenham se mudado dali – apenas

deslocaram sua casa de restinga em restinga progressivamente rumo à beira do rio à

medida que a terra crescia – foi somente em 1995 que a Nossa Senhora da Saúde se

organizou enquanto comunidade (Domingues, 2007). Havia ali uma igreja de uma

denominação evangélica e diversas famílias passaram a ocupar o lugar, vindas da

comunidade Espírito Santo.

Com o avanço da regularização da TI Espírito Santo, diversos moradores da Nossa

Senhora da Saúde abandonaram a ilha do Xibeco e atravessaram o rio Solimões para fundar

as aldeia Novo Progresso junto a outras famílias Cocama. Os atuais moradores da

comunidade escolheram ficar ali e iniciar um movimento, junto às outras comunidades da

ilha para que esta também fosse regularizada como Terra Indígena do Povo Cocama.

O êxodo ocasionado pela Guerra Colombo-Peruana é o evento marcante da maioria

das narrativas de ocupação dos Cocama na região da foz do Jutaí. A presença dos Cocama

na região, no entanto, é anterior a isso. Localidades como o antigo Sítio Maricaua, eram

ocupadas pelos Cocama em momentos anteriores ao êxodo. E aqueles cuja origem não

remete à região do Trapézio Amazônico? Os descendentes de Clemente Carvalho, por

exemplo, afirmam que ele teria vindo do Paraná do Urutuba, situado a montante. Alguns

indígenas de outras comunidades dizem que Clementino seria um Ticuna civilizado, outros

afirmam que ele seria Kaixana. Seu Olímpio Gomes de Souza, índio Kaixana e morador da

Síria, conta uma história parecida. Nasceu no Copeçu – hoje dentro da TI Uatí-Paraná – e

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veio morar na beirada do Solimões. Seu pai, como outros indígenas Ticuna e Kaixana

daquela região, vivia da pesca e salga do pirarucu. Ele conta que a facilidade de

comercializar com os vapores foi o que levou seu pai a deixar o Copeçu e assentar na

margem do Solimões. Outras categorias de pessoas presentes na composição dos

assentamentos Cocama são os arigó, migrantes do Nordeste brasileiro cuja presença na

região está associada à economia gomífera; e os paisanos, categoria que nomeia a

ribeirinhos ou indígenas nativos do Peru e Colômbia.

Os modos de ocupação do início do século XX eram as feitorias e os povoados. As

primeiras eram locais nos quais os fregueses se estabeleciam durante um período para

realizar atividades extrativas para seus patrões. Os povoados eram os lugares de morada,

onde se festejavam os santos. Lima & Alencar (2000) afirmam que o comércio de gêneros

extrativos no médio Solimões teve seu ápice entre as décadas de 1920 a 1950, entrou em

declínio à partir da década de 1960. A partir de então o êxodo rural se intensifica e os

povoados começam a entrar em decadência. Na mesma época se inicia o trabalho do

Movimento de Educação de Base (MEB) para a organização das comunidades, e também a

organização de comunidades à partir da conversão à Cruzada ou Santa Cruz – religião cristã

profética iniciada através do Irmão José Francisco da Cruz (Oro, 1989; Regan, 2011). A

partir da década de 1980 as primeiras terras indígenas são regularizadas e seus

assentamentos passam a ser chamados de aldeias.

No tempo das feitorias e povoados o principal ponto a ser observado era a

exclusividade de comércio com os patrões, os donos da área, por parte dos fregueses, de

modo que os Cocama associam essa época a uma relativa liberdade de caçar e pescar.4 A

participação nas festas de santo e a adesão aos ajuris – mutirões de trabalho coletivo – nos

quais os parentes de outras localidades plantavam roçados junto aos residentes, também são

relatados pelos Cocama como ações que colaboravam para a manutenção de boas relações

entre moradores de povoados diferentes.

“Antigamente irmão, a gente fazia um ajuri. Saía de casa e ia derrubar, abrir roça

lá na Petrolina, no Sevalho. (...) Depois os parentes vinham derrubar roça com nós.

4 O modelo de colonização do aviamento preza primeiro o controle da mão de obra através do monopólio do comércio e força de trabalho estabelecido entre os patrões e seus fregueses através da aquisição de dívidas pelos últimos.

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(...) Aí quando derrubavam eles pediam “Ô parente, não pode me dar um

pedacinho de terra para eu plantar não?” – Dona Clarice Carvalho, Nossa Senhora

da Saúde, Novembro de 2011

No processo de organização das comunidades, há áreas que seus moradores

reclamam para uso exclusivo. Os modos de reclamar essa posse incluem a ocupação

contemporânea da área, as relações de parentesco com antigos ocupantes, o uso pregresso

através do vínculo com um patrão ou dono. A ocupação contemporânea é legitimada

através os atos de morar e trabalhar nos lugares, sobretudo através dos cultivos da

agricultura itinerante, que produzem roças, capoeiras e sítios, e também na ocupação de

ambientes de pesca, marcada não só pela despesca, como pelo ato de guardar essas áreas.

No caso de comunidades situadas em Unidades de Conservação de Uso Sustentável, como

a RDS Mamirauá, a participação nas instâncias de organização política da UC também é

uma forma de legitimar a posse e buscar a resolução de eventuais disputas.

Sítio tem um duplo sentido. É um tipo de paisagem resultante da agricultura

migratória, na qual se encontram espécies cultivadas perenes (açaí, fruta-pão, kamo-kamo,

limão, ingá, araçá, etc) manejadas e colhidas regularmente, as quais os Cocama chamam de

plantas – em oposição às espécies vegetais em estado selvagem, chamadas de mato. Uma

localidade na qual reside um grupo familiar extenso, com poucas residências e em regime

multilocal5 (Piñedo-Vasquez, 2008), também é chamada de sítio. Para que um sítio seja

reconhecido como uma comunidade é necessária uma ocupação permanente, formalidades

como o registro em cartório, além de infra-estrutura: uma igreja, uma escola, e um salão

comunitário – que podem, inclusive, funcionar todos em um mesmo espaço. As aldeias,

por outro lado, são dotadas das prerrogativas jurídicas das Terras Indígenas que

estabelecem o usufruto exclusivo dos que nelas residem. Mesmo nesses casos, os atos de

morar e trabalhar ainda são fundamentais, embora exista a garantia de que eventuais

invasores não vão reclamar a posse dessas áreas.

A oposição entre as categorias de morador e invasor é relacional. O invasor é

aquele que, do ponto de vista do morador, se encontra em uma área sobre a qual não teria

5 Alternando entre o interior e a cidade.

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direito. Nos impasses acerca do direito, os invasores podem ser moradores de outras

comunidades ou aldeias, inclusive parentes dos moradores. Uma vez que as formas de

socialidade dos Cocama estabelecem a co-residência (morar junto) e a consubstancialidade

(comer junto) como elementos-chave para ser parente, as alianças e rivalidades não estão

dadas na genealogia, mas nas possibilidades de convívio e distância. O panorama de

relações está em constante transformação, devido às conversões religiosas e às mudanças

na composição das comunidades e aldeias – migração ou incorporação de novos membros.

A própria paisagem está em constante transformação. A terra da beirada pode

crescer ou cair, lagos e ressacas podem furar abrindo novos caminhos, praias somem ou

surgem, paranás abrem ou fecham. Os Cocama entendem essas mudanças como resultantes

da força da água e do rio, e também da agência das Cobras Grandes, encantados do fundo

que habitam lagos, rios e enseadas. Em geral, às Cobras são atribuídas as transformações

violentas e súbitas, como o fenômeno da terra caída, quando enormes porções de terra são

arrastadas para dentro do rio gerando um estrondo intenso e duradouro.

A seguir, forneço ao leitor uma descrição de alguns elementos importantes para

entender a paisagem de várzea do Solimões e discuto especificidades dos regimes de posse

e maestria entre os Cocama partindo de casos relatados ou vivenciados em campo. Em

muitas destas passagens nomes de pessoas, e por vezes de lugares, serão deliberadamente

suprimidos, de modo a não comprometer os interlocutores.

Paisagem e Toponímia

A várzea é um ambiente em transformação. As planícies aluviais do Solimões são

alagadas todos anos durante a estação das cheias. Quando a água começa a baixar a começa

a sair terra. Os sedimentos arrastados pelo rio fertilizam os solos, diminuindo o intervalo

de tempo necessário para se abrir novas roças para plantio. As duas formas mais gerais de

classificar os ambientes são a beirada e o centro. A beirada é onde se localizam os

assentamentos dos Cocama, ribeirinhos e outros indígenas civilizados. O centro, ou centro

da mata são os locais de florestas distantes da beira e dos assentamentos das pessoas

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humanas, lar de bichos e encantados.6 Por rio os Cocama denominam os canais do

Solimões e seus afluentes que não secam durante a estação seca, que possuem canais de

navegação ativos durante todo o ano. O paraná é um braço do rio que fica entre a terra e

uma ilha ou ressaca, é navegável durante a maior parte do ano, mas pode durante uma

estação seca intensa. Os furos são pequenos canais que ligam lagos, paranás e rios, onde só

se é possível pode transitar usando canoas. Praia é uma porção de solo argiloso ou arenoso

que fica exposta apenas durante alguns meses do ano – quatro a seis meses segundo Ramos

(2002). As praias são local de desova dos bichos de casco e de aves migratórias, e também

usado pelos Cocama no cultivo de feijão, melancia e milho.

O igapó, ou simplesmente gapó, é a floresta inundada periodicamente. É onde

muitas espécies de peixes se refugiam durante a estação das cheias, onde consomem

diversos frutos. O igapó, especialmente igapó de centro, distante da beira, é habitado por

encantados e visagens. Encontros com seres como a Onça d´Água e indícios da presença de

visagens são narrativas comuns entre os Cocama. A Onça d´Água é similar a uma Onça

Preta (Panthera onca), embora tenha membranas natatórias nas patas e se desloque com a

cabeça embaixo da água, deixando apenas o lombo de fora. Alguns indígenas afirmam que

Onça d´Água é o cachorro dos encantados do Fundo. Visagem é como os Cocama chamam

as aparições ou manifestações das almas dos mortos. Podem ser vistos ou escutados nos

lagos, praias e florestas alagadas, lugares nos quais podem estar caminhando, remando ou

trabalhando em alguma atividade – pesca, caça ou derrubada de madeira. As visagens

conversam entre si, embora sua fala seja ininteligível aos vivos.

As restingas são as áreas mais altas e menos suscetíveis à inundação, as últimas a

ser alagadas durante as cheias e as primeiras a despontar quando as águas começam a

baixar. É sobre esse tipo de paisagem que os Cocama estão assentados, e onde fazem as

roças de cultivos de ciclo mais longo, como a mandioca. As restingas são classificadas

como alta e baixa, de acordo com sua resistência à alagação. As matas da restinga são

diferentes do igapó porque são fechadas, já que apresentam abundância de espécies

vegetais no estrato arbóreo inferior, necessitando que trilhas e varadouros sejam abertos

6 Indígenas considerados como bravos pelos Cocama também são descritos como habitantes do centro, embora vivam em áreas de terra firme, ou seja, aquelas que não sofrem a alagação periódica.

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com terçados. As barreiras são as áreas na beira do rio que não são inundadas

periodicamente.

Os topônimos relevam características dos lugares e também dizem respeito à

história da ocupação. No caso das comunidades e aldeias, os nomes podem estar

relacionados ao lugar de origem de um dos fundadores (Petrolina, Síria), tipos de paisagem

(Floresta), espécies vegetais (Acapuri, Feijoal, Bugari), nomes dos santos festejados (Santa

Luzia, São Francisco do Xibeco, Santa Helena da Ressaca Grande), nomes de locais

retirados da Bíblia (Monte Moriá, Jerusalém), nomes relativos à Irmandade da Santa Cruz

(Santa Cruz da Nova Aliança, Cruzeiro) espécies animais (Guariba), nomes que indicam

aspirações ou sensações (Porto Alegre, Nova Esperança do Xibeco, Novo Progresso), ou

sobrenomes dos habitantes pioneiros (Costa do Sevalho, Sítio Maricaua). Alguns nomes

são acompanhados de referências à paisagem na qual os assentamentos estão situados, tais

como paranás, ilhas ou ressacas (Nova Esperança do Urutuba, Nova Esperança do Xibeco,

São Francisco da Ressaca Grande) ou referências à ordem de assentamento nos cursos

d´água (Acapuri de Cima, Acapuri de Baixo).

Os lagos, ressacas e canos têm nomes relacionados ao seu formato (Lago Poção,

Lago Comprido, Lago Atravessado, Ressaca Grande, Lago Fundo, Lago do Furado, Lago

Paraná), à espécies vegetais abundantes em suas margens (Lago do Ingá, Lago Aratituba,

Cano do Açaí, Lago Javarizinho), à espécies animais (Lago do Marreco, Lago do Boi, Cano

do Mutum, Cano do Japim), e nomes de moradores ou donos do lugar (Lago Geraldão,

Lago do Leandro).

Português e Nheengatu são as línguas mais usadas para nomear os lugares. Marcos

mais importantes são nomeados em Nheengatu, e portam nomes muito antigos, muitos dos

quais estão presentes em relatos e mapas de viajantes dos séculos XVII e XIX (La

Condamine, 1745; Wilckens, 1994[1781]; Marcoy, 1875[1862]). Isso é válido para os

grandes lagos da região do médio Solimões e afluentes (Amanã, Mapichari, Caruara,

Buiuçu, Mamirauá, Anarucu, Aratituba, Mari-Mari, Tamanicuá, Caiambé) e os também os

paranás (Auatí-Paraná, Aranapu, Coraci, Aiupiá, Aiucá).

Da mesma maneira, outras unidades de paisagem podem ser nomeadas e, em geral,

os moradores de uma área têm nomes para lugares que são irrelevantes para seus vizinhos e

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eventuais invasores (como varadouros, restingas e capoeiras). Um morador antigo não

apenas conhece os nomes dos lugares, mas pode saber quem os nomeou, quando e porquê.

Nomear um lugar é também uma maneira de se apropriar dele, fazer com que o

nome seja reconhecido por outros é uma forma de garantir o direito sobre aquele lugar.

Nomes diferentes para um mesmo lugar podem indicar disputas, e a maneira diferentes

grupos se referem a esses lugares são indicadores de suas alianças.

“E quem tem direito?”

Atravessando o paraná do Pinheiro, em frente à Santa Luzia chegamos à Ilha do

Xibeco, na parte oposta àquela na qual se encontram as comunidades. Ali se encontram os

esteios de uma antiga casa, diversas plantas cultivadas, e um enorme cruzeiro de madeira,

testemunho de que seus moradores eram devotos da Irmandade da Santa Cruz. A alguns

passos dali está o lago do Ingá, e uma pequena canoa repousa em suas margens. O casal

que fundou o lugar e morou ali acompanhado dos filhos e outros parentes hoje habita a

comunidade de Santa Luzia. Abandonaram a área em 2001 e se dirigiram para a cidade de

Benjamin Constant. Na época, a matriarca da família conta que tinha problema de sangrar.

Ela procurava os hospitais na cidade de Jutaí, mas mesmo sob medicação não conseguia se

curar. Eles desmontaram sua casa e venderam a madeira, se estabelecendo na cidade. Como

demoraram a voltar, os filhos os seguiram em 2007. A matriarca atribui sua enfermidade à

feitiçaria e inveja, afirmando que em parte a culpa é do olho dos outros. Quando em

Benjamin Constant ela descobriu ter um cisto, sendo operada e eventualmente se

recuperando. Quando finalmente retornaram à área em 2009, lideranças das comunidades

do Xibeco disseram que não queriam que eles morassem ali. “Eles diziam que a gente ficou

fora muito tempo, perdemos o direito”. Na época da minha visita, eles ainda mantinham

uma pequena roça de mandioca e macaxeira e também coletavam frutos do sítio. Certa vez

os moradores do Xibeco encontraram a canoa e a malhadeira de um dos filhos do casal no

lago do Ingá, e ele foi acusado de invadir o lago, sendo mais tarde intimado a comparecer

no Posto Indígena da FUNAI em Jutaí. Perguntei a eles se entendiam que a perda de

direitos estaria relacionada ao processo de passar a área indígena da Ilha do Xibeco, eles

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responderam que não: afirmaram que perderam o direito a esse sítio porque se ausentaram

por tempo demais.

Meses mais tarde, durante o campo nas comunidades do Xibeco, a disputa em torno

desse sítio voltou à pauta. Moradores daquele lado justificaram sua decisão afirmando que

os vizinhos tinham ido embora e que eles não haviam mandado notícia. Na época da

mudança para Benjamim Constant, o sítio do casal estava em processo de se registrar como

comunidade, e os outros moradores do Xibeco os apoiavam na solicitação de uma escola

junto à prefeitura de Jutaí. Visto que a ausência prolongada, somada ao contato

interrompido, foram as justificativas dadas por ambas as partes para a perda do direito. O

fato de que ausência, por si só, está relacionada à uma enfermidade causada por feitiçaria e

inveja, indica a possibilidade de alguma tensão prévia.

As disputas em as comunidades da TI Xibeco e as da TI Santa Luzia também

tomam outras formas. A costa do Xibeco é ideal para o plantio de roças de mandioca e

macaxeira pelos moradores que vivem nas margens do paraná do Pinheiro: ficam em áreas

suficientemente altas para garantir a colheita na cheia, e também estão acessíveis de canoa

durante esse período reduzindo a penosidade do trabalho. Os moradores do Xibeco

questionam o direito dos vizinhos em fazer essas roças, como também os acusam de

colocam malhadeiras na boca dos canos e furos dos lagos na costa do Xibeco – prática

geralmente feita em áreas de domínio de outros, considerada reprovável. Os moradores das

comunidades da TI Santa Luzia, por sua vez, reclamam que alguns jovens da Ilha do

Xibeco cortam suas malhadeiras quando estão de passagem pelo paraná do Pinheiro.

Em 2011, durante a estação seca, uma das comunidades da Ilha do Xibeco se

engajou num projeto de conservação de quelônios promovido pelo Instituto de

Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. O projeto consistia em separar parte de uma

praia, marcar esse intervalo com bandeiras, sinalizar onde estariam os ninhos, avisar os

vizinhos que naquela área não deveriam coletar bichos de casco e seus ovos, e fazer

vigilância para evitar que outros viessem perturbar os ninhos protegidos. Os moradores da

comunidade não viram maior problema já que entendiam que os vizinhos deveriam coletar

em suas respectivas praias, e não teriam direito àquela – que fica muito próxima à

comunidade. Regionalmente, a vigilância de praias não necessariamente está associada a

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iniciativas de conservação, sendo uma forma de garantir a exclusividade e permanência de

acesso aos bichos de casco e seus ovos. Embora essas iniciativas possam reduzir o número

de invasores nas praias, estes eventualmente terão oportunidade de coletar nessas praias

uma vez que a vigilância não pode ser constante, e os moradores também podem permitir

de bom grado que outros compartilhem com eles os bichos de casco e seus ovos.

A iniciativa teve sucesso reduzido, uma vez que os vizinhos não respeitaram a

porção protegida. Bandeiras foram quebradas e recados acusando os moradores de

ambiciosos foram deixados na areia. Os vizinhos entenderam que a comunidade estaria

sovinando os ovos e os bichos de casco, reservando a parcela da praia apenas para si

mesmos.7 A comunidade foi capaz de preservar poucos ninhos, e durante minha passagem

por ali eles se preparavam para a soltura dos filhotes. Reclamavam da ignorância dos

vizinhos, e diziam que persistiram na vigilância da praia, a qual aliás, já faziam desde antes

do ingresso no projeto. Cabe esclarecer que, no Solimões, os bichos de casco são

considerados iguarias por indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades. Oferecidos como

presentes para parentes queridos e consumidos em celebrações tais como casamentos,

aniversários, batizados e festas de santo. Durante minha estadia na comunidade Síria, uma

família Cocama de uma aldeia situada próximo à Santo Antônio do Içá chegou para fazer

visita a um primo que se casara com uma moça local e residia ali há 10 anos. Os visitantes

trouxeram consigo um tracajá (Podocnemis unifilis), que comeram juntos num almoço. Em

outra ocasião, quando viajava para uma assembléia, assisti um senhor tentar comprar um

tracajá no porto de Fonte Boa por R$ 200,00. Ele queria presentear seu sogro, mas o

animal que o dono carregava já estava destinado a outro parente. Dada a importância dos

bichos de casco para as relações de parentesco, como dádiva e substância, mesmo a decisão

de guardar uma porção de praia da qual os moradores entendem no seu direito exige a

negociação com vizinhos para ser bem-sucedida.

Disputas desse tipo não incomuns e fazem parte do são assunto de conversas

informais, embora raramente os dois disputantes se confrontem abertamente a respeito.

Quando isso acontece, e agressões verbais ou físicas acontecem, tem início o que os

Cocama chamam de briga ou conflito. Entendo que a não-confrontação é uma forma de

7 Antes que o conceito fosse difundido pelas políticas de conservação, reserva se referia à porção de lago, praia ou castanhal que o patrão guardava para seu usufruto exclusivo (REF).

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evitar uma maior indisposição com pessoas estruturalmente próximas, relacionadas por

parentesco, visto que essas disputas podem ser resolvidas ou apaziguadas através de

acordos firmados durante assembléias e reuniões, ou desaparecer mediante transformações

na paisagem ou na composição dos assentamentos.

Além disso, no caso da praia supracitada, há outros donos em jogo. A porção do

Solimões em frente à ponta da Ilha do Xibeco é conhecida localmente por abrigar uma

cidade dos encantados. No médio Solimões, locais onde há rebojeiro, ou seja, onde a água

dos rios forma pequenos redemoinhos, são apontados pelos moradores da beirada como

aqueles nos quais há cidades encantadas no Fundo.8 Vários Cocama descreveram a ponta

da Ilha como perigosa para a navegação, por causa do rebojo. Moradores do Xibeco

afirmam avistar figuras humanas andando na praia durante a noite, quando faziam

vigilância. Algumas delas parecem flutuar sobre água ou areia, outras desaparecem

repentinamente. Contam que uma antiga moradora da ilha, Dona Eulália, chegou a avistar a

cidade e quase foi levada para o Fundo. Um velho pescador Cocama me contou que quando

passava por ali, remando de noite, escutava a música do Fundo e sabia que os encantados

estavam em festa. Em 2011, num episódio trágico, um morador da comunidade Floresta

desapareceu na mesma área quando sua canoa naufragou à noite. Na ocasião ele

transportava dois Cocama da aldeia Novo Progresso depois de uma festa. O corpo nunca

foi encontrado, e o episódio gerou acusações e acirrou tensões entre os Cocama do Novo

Progresso, Floresta e demais os parentes das partes envolvidas. Entre as várias versões que

escutei para o acontecido, houve quem sugerisse que o corpo desaparecera porque o homem

tinha sido levado para o Fundo pelos encantados. Seu Francisco Mashico, notório curador

Cocama com quem conversei longamente em duas ocasiões, afirmou que muitas coisas do

fundo, incluindo os bichos de casco são as criações [animais domésticos] dos encantados:

É que eles [os bichos de casco] são criação deles, eles são os donos. Eles querendo esconder, escondem tudinho, você não vê nenhum. Porque são os donos, eles que manobram. Tem uma nação de gente encantando no fundo. Do jeito que nós tem aqui, tem encante no fundo. Só que nós não pode se unir, porque aí é outra coisa, é diferente. É por isso que some muita gente. – Jutaí, novembro de 2011.

8 O Fundo é, ao mesmo tempo, um lugar físico e um outro mundo.

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Algumas situações de conflito estavam em curso durante o ano de 2011. A primeira,

de longa duração, dizia respeito à posse do lago Aratituba. O lago estava incluído dentro da

propriedade registrada por Seu Otávio Carvalho, logo é considerado como sendo de direito

da comunidade Síria. No entanto, todo ano, durante a estação seca, vários os moradores de

outra comunidade cocama do situada às margens do Auatí-Paraná, pegam o cano do Japim

e se dirigem para o Aratituba. Os moradores da Síria acusam os invasores, de levar bichos

de casco, ovos de gaivota e quelônios, mantas de pirarucu e matar centenas de jacarés. O

jacaré é pouco apreciado localmente, sendo referido como comida de paraense em relação

a uma suposta apreciação de sua carne na região do baixo Amazonas. Os moradores da

Síria afirmam que os invasores salgam a carne do jacaré e vendem para um patrão atuante

nas regiões de Jutaí e Fonte Boa. Como o cano do Mutum, que dá acesso do Solimões ao

Aratituba é inavegável durante a estação seca, os moradores da Síria se dirigem ao lago

usando um varadouro nessa época, precisando andar até quatro horas para chegar até lá.

Por esse motivo, afirmam que é muito difícil guardar o Aratituba.

Desde o tempo da liderança de Otávio Carvalho, os moradores da Síria confrontam

os invasores. Pedem que eles se retirem, colocam placas avisando que o lago pertence à

comunidade, reclamam dessa invasão às autoridades. Eles afirmam que os invasores

justificam seu direito através da alegação que seu antigo patrão já teria sido dono da área, e

afirmam que sempre pescaram ali. Por esse motivo, os moradores da Síria planejam

construir um flutuante na beirada do lago, para tentar manter ativa a vigilância durante a

estação seca e minimizar os prejuízos causados pelos invasores. Embora as duas

comunidades façam parte de duas Terras Indígenas requeridas, não consegui informações

concretas de que os moradores da área do Auatí-Paraná reclamam a inclusão da área do

Aratituba em sua TI.

Em frente à comunidade Santa Luzia há uma ressaca, que seus moradores chamam

de Ressaca de Santa Luzia. Há quase uma década ela tem sido foco de disputa entre uma

família de ex-moradores do Pinheiro do Meio, que atualmente reside em Jutaí, e os

moradores da Santa Luzia. Os primeiros clamam que a área é sua propriedade, no sentido

formal, e afirmam possuir um título definitivo para tanto. Durante a minha estadia em

campo, notei que havia uma placa pendurada na boca da ressaca, afirmando o nome da

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propriedade, sua área total e com a afirmação “*FORA INVASOR”. Os ditos proprietários

haviam construído uma casa dentro da ressaca, impediam os moradores da Santa Luzia de

pescar em seu interior e também próximo à boca da mesma. Também houve disputas entre

os proprietários e os moradores dos sítios Pinheiro de Baixo e Pinheiro do Meio, que

costumavam fazer roças na área da ressaca. Os moradores da Santa Luzia se sentem

traídos, porque afirmam que deixaram que os reclamantes pescassem no local porque todo

mundo tem necessidade, não imaginavam que eles pudessem tentar se apossar da área.

Diversos confrontos ocorreram, em geral resumidos à troca de agressões verbais e ameaças

de agressão física. Os moradores da Santa Luzia se queixavam que seus algozes chamavam

nomes, expressão regional para ofensas mais sérias, e cometiam injúrias de cunho racista,

usando a categoria caboclo de forma pejorativa. Mais tarde outras casas foram construídas

na boca da ressaca e, atualmente os proprietários mudaram de estratégia. Mediante sua

constatação da nulidade dos títulos definitivos para as áreas de várzea do Solimões, buscam

legitimar seu direito através da formação de uma comunidade, do apoio de uma associação

municipal de manejadores de pesca e do reconhecimento na organização política dos

moradores da RDS Mamirauá – para a qual antes eram considerados invasores da reserva.

Os moradores da Santa Luzia contestam o direito de seus adversários argumentando que

eles não são moradores da área, através de solicitações à FUNAI e intervenções junto à

organização política da RDSM. Embora os confrontos tenham cessado recentemente, uma

resolução a impasse parece cada vez mais relacionada à eventual regularização da TI Santa

Luzia.

O último caso diz respeito a uma localidade dentro da TI Santa Luzia com uma

trajetória particular. No passado, aquele local abrigara um grande povoado, mais tarde

organizado em comunidade. Nos últimos vinte anos, no entanto, os moradores foram

progressivamente se mudando para a cidade de Jutaí. Em 2007, havia ali apenas um sítio,

composto por um flutuante e uma casa (Domingues, 2007). Em 2011 o último morador

havia abandonado o local e se mudado para Jutaí, deixando ali apenas o flutuante. Ele

reclamava que moradores de uma comunidade vizinha vinham cometendo pequenas

sabotagens, tentando expulsá-lo dali permanentemente, havendo inclusive cortado o cabo

de seu flutuante. Estes por outro lado, diziam que a comunidade em questão estava acabada

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e o acusavam de tirar madeira ilegalmente e fora da área à qual teria direito. O ex-morador

se justificava dizendo que a madeira que estava retirando havia sido plantada no passado, e

que ali havia um sítio muito rico pelo qual sua família havia trabalho durante muito tempo

ao qual ele não pretendia abrir mão. Coincidência ou não, os moradores desse lugar haviam

rejeitado se mobilizar em prol da regularização da TI. Essa situação me intrigava, e certa

vez perguntei a um Cocama mais velho quem eram aquelas pessoas que um dia residiram

naquela localidade, ao que ele respondeu: “Aqueles lá são gente nossa, são Cocama como

nós. Mas eles saíram dali, seguindo um parente mais velho deles. Se mudaram lá para Jutaí

e formaram um bairro por lá.”

Esses casos ilustram alguns temas centrais relativos ao direito e como se dá a

regulação dos regimes de posse entre os Cocama. Morar em um lugar é uma forma

inequívoca de requerer o direito sobre aquele lugar, e a despeito de qualquer disputa, os

Cocama não entendem como desejável a idéia de expulsar um morador de outra localidade:

aqueles que perderam seu direito o fizeram justamente por deixar de morar em

determinado lugar. Trabalhar num lugar implica deixar nele marcas de ocupação como

roças, capoeiras e sítios, que por sua vez contribuem para fazer um lugar rico/farto (cf.

Ramos, 2002: 35-36). Guardar um lago ou uma praia também são formas de trabalho, uma

vez que geram abundância de peixes e bichos de casco e, por conseguinte, lugares

ricos/fartos. Essas ações criativas, produzir comida e gerar espaços de abundância, tem

uma relação estreita com as formas de cultivar o parentesco: o trabalho sempre é conjunto,

seja pelos membros de uma unidade doméstica, seja por parentes de outras comunidades.

Embora meus interlocutores afirmem que o atualmente não se realiza ajuris como

antigamente, em diferentes momentos de campo pude observar Cocama que chegavam e

partiam das comunidades e aldeias com o objetivo de abrir, plantar ou tirar uma roça de

mandioca com seus parentes.

Os grupos locais, moradores das comunidades ou aldeias são aqueles dos parentes

por excelência. Entre os Cocama de localidades diferentes, mesmo quando se existe o

parentesco de ordem genealógica, a relação pode ser próxima ou distante dependendo do

quanto eles se dispõe a conviver. E as possibilidades de convivência estão marcadas por

outros fatores, por exemplo, a adesão a diferentes religiões. As festas de santo entre os

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católicos, ou as festas de aniversário da igreja entre os protestantes reúnem parentes

distantes e próximos. Isso também acontece em ocasiões de reuniões da mobilização

indígena ou de moradores da RDSM. A opção política por se reconhecer como indígena e a

adesão à diferentes religiões tem um impacto significante sobre os modos de enfatizar e

manter relações. Ou seja, embora as relações de ordem genealógica sejam reconhecidas,

quando os Cocama pensam em uma descendência comum, as relações preferenciais são

construídas entre os parentes que moram e/ou trabalham juntos. Isso faz com que co-

residentes distantes genealogicamente sejam parentes mais “verdadeiros” do que aqueles

que não moram juntos. No entanto, não é a simples convivência aquela a responsável por

produzir as relações de parentesco, mas também o cumprimento de uma etiqueta adequada:

trabalhar junto e, sobretudo, não sovinar os frutos do trabalho. Embora fatores climáticos

como uma grande alagação possam produzir escassez9, a beirada é um lugar da comida

abundante, uma vez que cada temporada trás consigo um tipo de colheita específico e

possibilidades particulares de caça e pesca.

Comer junto é uma implicação importante do convívio e do compartilhar a comida,

sendo parte da conduta adequada do que é ser parente. A comida consumida nessas

ocasiões, idealmente, deve ser aquela produzida na beirada: farinha, peixes, bananas e

pimentas preparados em diversas combinações possíveis. O comer junto também torna

possível a manutenção do parentesco mesmo em situações de convívio reduzido.

Ao mesmo tempo, desavenças e acusações diversas (especialmente as de feitiçaria)

bem como a adesão a uma religião diferente ou um novo alinhamento político, tendem a

fazer com que as comunidades passem por separações internas. Estas podem resultar na

criação de uma nova comunidade em local diferente, ou na dissolução da comunidade e na

dispersão de seus membros em vários assentamentos existentes. A ênfase na co-residência e

na consubstancialidade é contrabalançada pela necessidade de uma boa distância, de modo

a minimizar tensões e evitar os perigos da convivência inadequada.

9 o peixe se refugia no igapó durante as cheias, tornando a pesca mais dificultosa. As manivas estão sujeitas a não amadurecer por completo caso as roças sejam inundadas em momento anterior, gerando um baixo rendimento da farinha. Outros cultivos importantes, como a banana, também podem ser afetados.

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