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29ª Reunião Brasileira de Antropologia
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Direito: posse e maestria entre os Cocama da foz do Jutaí/AM1
Rafael Barbi Costa e Santos (IDSM-OS)
Resumo: Partindo de uma experiência etnográfica entre os Cocama da região da foz do rio Jutaí, Amazônia Central, esse trabalho propõe uma reflexão em torno de seu conceito de direito, parte dos modos nativos de regulação da posse e acesso a porções de terra e áreas de pesca. Minha hipótese é de que o direito se articula em torno das formas de socialidade locais e de uma cosmologia de maestria e domínio, expressas, respectivamente, no idioma do parentesco e das categorias de pessoas e na interação com os encantados. Me atento aqui para as contribuições recentes a respeito desse tema na antropologia das Terras Baixas da América do Sul.
Palavras-Chave: Regimes de Posse, Paisagem, Cocama
Prelúdio
Minha primeira incursão numa comunidade Cocama foi marcada por uma curiosa disputa
de política interna. A comunidade estava dividida em dois núcleos, um na beira rio
Solimões, composto por 15 casas, e outro localizado na beira de um paraná, composto por
quatro casas. O primeiro era composto pelos descendentes de uma antiga e influente
liderança local. O segundo era composto pelos irmãos dessa liderança e uma família que
vizinhava com eles há décadas. Era o mês de março, no período de cheia, e à medida que a
água invadia as roças, as pessoas trabalhavam mais intensamente e se revezavam em torno
das casas de farinha. Durante os finais de semana eu observava outras pessoas circulando
pela comunidade, colhendo e cevando mandioca, preparando a massa e torrando farinha.
Eram Cocama de comunidades ou aldeias vizinhas, e também da cidade de Jutaí. E a
disputa interna girava, sobretudo, em torno de opiniões divergentes acerca do direito de
usufruto por parte dos Cocama residentes na cidade frente ao processo de regularização de
terra indígena. Como acontece em muitas ocasiões, o antropólogo foi chamado a expressar
sua opinião sobre um assunto a respeito do qual sabia pouco ou quase nada, já que
obviamente meu conhecimento a respeito de legislação indigenista não dava conta da
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de Agosto na cidade de Natal (RN). A pesquisa foi realizada no âmbito do Grupo de Pesquisas em Organização Social e Manejo Participativo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM-OS), com financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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questão. Além disso, meu esforço em esclarecer que eu não era uma “autoridade” foi em
vão: minhas coletas de genealogias e relações de parentesco muitas vezes eram
interpretadas como um cadastro e a expectativa de que o antropólogo poderia comentar,
justificar ou contestar as prerrogativas de “quem tem direito” podia não se concretizar, mas
fazia das disputas em torno do direito um assunto privilegiado – e inescapável – da
etnografia. Como é canônico na antropologia, deixei que os interesses dos meus
interlocutores acabassem por guiar a pesquisa. Fortuitamente, em torno das discussões
sobre o direito, ou ainda, o direito do índio, se desdobrava o mundo vivido dos Cocama: as
dinâmicas do parentesco, as transformações na paisagem de várzea, os modos de sua
emergência como povo indígena, a produção da vida através da caça e da pesca, as
articulações da política indigenista e indígena, as maneiras de classificar e se relacionar
com os diferentes “tipos de gente” em um mundo repleto de agência de pessoas não-
humanas.
O trabalho de campo
A região da foz do Jutaí abriga dezenas de aldeias e comunidades Cocama, situadas
em Terras Indígenas regularizadas, Terras Indígenas demandadas à FUNAI e Unidades de
Conservação. Entre os anos de 2011 e 2012 estive na região em três ocasiões diferentes:
entre março e abril de 2011 realizei trabalhos de campo nas comunidades Síria e Santa
Luzia; entre outubro e novembro de 2011 pesquisei nas comunidades Santa Luzia e Nossa
Senhora da Saúde; em maio de 2012 durante uma cheia particularmente intensa, passei dez
dias visitando as famílias dessas comunidades na cidade de Jutaí. Em 2011 também estive
nas comunidades Floresta, São Francisco da Ressaca Grande, São Francisco do Xibeco.
Entre 2011 e 2014 estive em outras aldeias e comunidades Cocama ao longo do médio
Solimões: em 2011 visitei a aldeia Mucura, frequentei a Assembléia Geral da Organização
dos Povos Indígenas do Município de Fonte Boa (OPIFB) na aldeia Monte Moriá; em 2013
realizei trabalho de campo na comunidade Assunção, no município de Alvarães. Durante
esse intervalo, mantive o contato com os Cocama de Jutaí através da participação nas
assembléias gerais da Associação de Moradores e Usuários da RDS Mamirauá
(AMURMAM) e tive notícias deles através de Alex Coelho, pesquisador do IDSM que
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esteve na mesma área realizando pesquisas em socioeconomia. Durante esse ensaio, utilizo
primariamente dados do trabalho de campo de maior duração na região da foz do rio Jutaí,
embora eventualmente faça menção a outros lugares. Todas as localidades que pesquisei e
visitei, com exceção de Monte Moriá e Bugayo, estão em ambiente de várzea e situadas às
margens do rio Solimões e seus paranás. As palavras grafadas em itálico no decorrer do
texto são empregadas sob a condição de expressões registradas ou categorias locais.2
Os Cocama
Distribuídos de Pucallpa a Manaus, em uma grande extensão da bacia Amazônica,
os Cocama são conhecidos na literatura antropológica por sua “invisibilidade” (Stocks,
1978), resiliência (Petesch, 2003) e pela relativa negação de sua condição de “índios”
(Lathrap, 1970; Gow, 2003, 2010). Discute-se a filiação dos Cocama ao tronco lingüístico
Tupi, hipótese que tem sido assunto de controvérsia do ponto de vista da lingüística
histórica nas últimas duas décadas (Cabral, 1995, 2003; Vallejos Yopán, 2010; O’Hagan,
2011). A maior parte da população Cocama se encontra na Amazônia peruana,
especialmente ao longo do rio Ucayali e no baixo Huallaga, mas a presença desse povo na
Amazônia brasileira é documentada desde a primeira metade século XIX (Osculati, 1854;
Marcoy, 1875 [1862]; Bates, 1944[1863]; Koch-Grunberg, 2005 [1909]; Tastevin, 2005
[1928]; Nimuendaju, 1952). No Brasil os Cocama só se fizeram visíveis como um “povo
indígena” frente ao Estado à partir década de 1980, exigindo direitos por ocasião da
regularização de terras indígenas Ticuna no Alto Solimões, uma vez ambos os povos
viviam nas mesmas áreas. Suas reivindicações por reconhecimento e direitos, no entanto,
são mais antigas.
À primeira vista, os Cocama não parecem muito diferentes de outros ribeirinhos que
habitam as beiradas do Solimões. São cristãos, vivem em casas de madeira elevadas do
solo, com cobertura de zinco ou palha, organizam seus assentamentos sob a forma de 2 As áreas dos municípios de Jutaí e Fonte Boa, ora são enquadrados como parte do médio Solimões, ora como parte do alto Solimões. No entanto, para efeitos da política indigenista e indígena, Jutaí e Fonte Boa fazem parte do médio Solimões, sendo atendidas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Médio Solimões e Afluentes e também pela Coordenação Técnica Local da FUNAI em Tefé. Os levantamentos genealógicos realizados entre os Cocama de Jutaí demonstram ainda uma predominância em manter relações a montante, algo que se deve tanto à história da diáspora cocama quanto aos matrimônios mais recentes. A maioria dos parentes situados a jusante vivem em Manaus.
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comunidades, a maioria fala exclusivamente o português, mantém relações de comércio e
trabalho com diferentes patrões, enfatizam as atividades da pesca e a produção de farinha
de mandioca. Embora se reconheçam como Cocama, freqüentemente opõem seu etnônimo
à categoria de índio, e se descrevem como civilizados.
As narrativas dos Cocama da região da foz do rio Jutaí remetem à região da tríplice
fronteira Brasil, Peru e Colômbia. Na década de 1930, Peru e Colômbia guerrearam pela
possessão da área chamada Trapézio Amazônico, que incluía a então vila de Letícia, que
havia se tornado possessão colombiana através do Tratado Lozano-Salamón em 1922
(Sarmiento, 2009). Os indígenas então passaram a ser recrutados compulsoriamente para
servir nas frentes de batalha. Muitos fugiram para evitar a morte em combate. “Nesse tempo
eles vinham descendo de lá porque estava uma briga doida. Ninguém sabia atirar, brigar
de arma, foi por isso que vieram” conta Seu Rufino, morador mais velho da comunidade
Nossa Senhora da Saúde, na Ilha do Xibeco. A migração desses grupos foi gradual e
distribuída, uma vez que o fluxo continuou após a guerra e muitos parentes ficaram em
outras partes do alto Solimões brasileiro. Foi nessa época que um grande contingente de
Cocama, representado pelas famílias Maricaua, Panduro, Corico, Acho, Januário e
Anaquiri, se instalou na foz do Jutaí. Escolheram essa região, porque já havia alguns
parentes morando na região. Essas famílias já mantinham relações de compadrio e
casamento entre si, motivo pelo qual seu êxodo foi organizado em conjunto.
Até o ano de 2012 existem 15 Terras Indígenas (TIs) habitadas pelos Cocama na
Amazônia brasileira, destas, 9 constam como oficialmente regularizadas exclusivamente
para este povo e as 6 restantes incluem também os povos Ticuna, Cambeba (Omágua) e
Kaixana. Na região da foz do rio Jutaí, estado do Amazonas, há cinco TIs que contam com
a presença dos Cocama: Estrela da Paz, Espírito Santo, Acapuri de Cima, e São Domingos
do Jacapari/Estação. Atualmente a TI Riozinho encontra-se em processo de regularização e,
segundo lista da Diretoria de Assuntos Fundiários da FUNAI, datada de 2009, do total de
197 reivindicações de TIs encaminhadas no Estado do Amazonas, 69 constam o etnônimo
Cocama – aproximadamente um terço do total. Na região do médio Solimões, dentre 57
localidades (comunidades, aldeias ou sítios) que integram reivindicações de TIs, 42 se
identificam como Cocama. Apesar da ampla distribuição de coletivos Cocama e da
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abrangência de sua busca por reconhecimento do Estado, há poucos trabalhos em
antropologia sobre esse povo na Amazônia brasileira. Dentre estes destaco o trabalho de
Luciana Ramos (2002), que atuou como coordenadora dos Grupos Técnicos da Fundação
Nacional do Índio responsáveis pela demarcação das TIs Sapotal, Espírito Santo e São
Domingos do Jacapari. Buscando descrever os modos cocama de se “estar na história”,
Ramos também coloca em evidência temas como parentesco, interação com o ambiente da
várzea e a duradoura e interessante relação entre os Cocama e Ticuna. Os coletivos Cocama
retratados no trabalho de Ramos são próximos, relacional e geograficamente, àqueles entre
os quais estive.
A emergência dos Cocama como atores indígenas nos séculos XX e XXI não é
exclusiva para a Amazônia brasileira. Processos similares são descritos por Reig (2012) na
Amazônia Peruana. Os coletivos Cocama no médio Solimões cabe ressaltar, são compostos
de pessoas que também congregam outras origens indígenas, especialmente Ticuna,
Cambeba, Miranha e Kaixana. A demanda desses povos por reconhecimento e direitos está
inter-relacionada, de modo que a totalidade das organizações indígenas na região é
composta por vários povos diferentes.
A política indigenista e o direito do índio
No médio Solimões, durante assembleias, reuniões e em outras ocasiões formais
envolvendo comunidades que estão passando para indígena, a palavra “direito” é usada
recorrentemente. O que buscam os movimentos indígenas regionais é a garantia da
efetivação do direito do índio, seja ele a regularização de uma terra indígena, atendimento
de saúde adequado, a busca por uma educação diferenciada de qualidade e infra-estrutura
para as comunidades e aldeias, além de providenciar os meios através dos quais os
indígenas têm acesso a determinados direitos garantidos a todos os cidadãos brasileiros,
como salário maternidade ou aposentadoria. A maioria das demandas indígenas no médio
Solimões é constituída por direitos básicos, mas não é raro que a população regional se
refira à tais direitos como exclusivos aos índios. E não deixa de ser digno de nota que
apesar de todos os problemas enfrentados pela saúde indígena, ela é considerada uma
conquista para os povos do médio Solimões (Souza, 2012: 50-59).
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Afirmações como “todo índio recebe um salário do governo”, “os indígenas têm
muito dinheiro”, ou “os indígenas têm direito de tudo” são ouvidas nas conversas com
moradores de comunidades e cidades no médio Solimões. Os indígenas, no entanto,
percebem suas conquistas como fruto de uma luta organizada e de reivindicações, algo que
é especialmente verdadeiro no contexto do médio Solimões.
“É a lei que nos ampara! Não só nós indígenas, como todos os cidadãos
brasileiros. É igual na saúde: falam que a gente é privilegiado, mas eles não lutam.
Porque eles têm direito igual, só que eles não sabem!” – Arnaldo Maricaua, Jutaí,
Março de 2011
Nesse sentido, a atuação do movimento indígena torna possível aos índios se
articular para garantir a efetivação de seus direitos à revelia da negligência de diversas
instâncias do Estado no médio Solimões.
“Acabou isso de indígena ficar por baixo! Acabou o tempo da escravidão do índio.
Até vereador nosso, se ele quiser que a gente vote, ele tem que botar a cara aqui.
Tem que discutir conosco! – Francisco Ramo, Monte Moriá, Agosto de 2011
A política praticada pelos movimentos indígenas tem a vantagem de contornar os
entraves das instituições regionais e dialogar diretamente com instâncias federais, de onde
surge a máxima de que “o índio é federal”. Assim, as aldeias ou comunidades indígenas de
terras já regularizadas geralmente possuem uma infra-estrutura compatível com aquela de
comunidades antigas, bem estabelecidas e que mantêm uma relação próxima com políticos
atuantes na região.
Feitorias, Povoados, Comunidades, Aldeias: temporalidade e regimes de posse
As comunidades Síria, Santa Luzia e Pinheiro integram a área requisitada junto à
Fundação Nacional do Índio para a regularização da Terra Indígena de Santa Luzia. A TI
leva o nome da primeira comunidade a se mobilizar no movimento indígena, e encontra-se
100% sobreposta à Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Do outro lado do
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Solimões, em frente à área da TI Santa Luzia, está a Ilha do Xibeco, na qual as
comunidades Nossa Senhora da Saúde, São Francisco e Nova Esperança requisitaram
juntas como sua TI. Sua área não é sobreposta à RDSM, mas seus moradores participam na
organização política da UC. As requisições conjuntas, nos dois casos, se iniciaram à partir
de uma mobilização duradoura de duas lideranças locais: Pedro Paiva Corico, da Santa
Luzia, e Glória Maricaua, da Nossa Senhora da Saúde. A mobilização conjunta, como se
pode imaginar, contribui para organização em prol de um objetivo comum mas não anula
disputas e discussões internas acerca de modos de uso e posse das áreas que integram as
TIs.
O exemplo do prelúdio se deu na comunidade Síria, reconhecida na região como
organizada, antiga e influente. Síria parece um nome curioso para uma comunidade
indígena, mas sua origem está relacionada às primeiras décadas do século XX, quando Seu
Jorge “Ararão” Abdala e Seu Elias “Turco”, migrantes sírios, estabeleceram naquela área
como patrões. A eles se juntaram Clemente Carvalho e Constância, que viviam no paraná
do Envira, em cujas margens abundam estradas de seringa. Logo outros vieram se agregar
em torno dos patrões e suas mercadorias, e um povoado foi se formando. Os moradores
cortavam seringa, pescavam e salgavam pirarucu, arrancavam couro de jacaré, pegavam
bichos de casco para tirar gordura, colhiam mel de abelha e óleo de copaíba e andiroba.
Entregavam esses produtos aos patrões em troca do açúcar, o café, o sal, o sabão e o tecido.
Nesse tempo, Elias e Jorge eram os donos da Síria.
“Eles vendiam facim e mescla, que eram um pano grosso. Quando faziam uma
calça comprida ela já ia zoando “zou! zou!” batendo uma perna na outra. (...) O
tecido que eles traziam era uma cor só então, quando freguês vestia, parecia um
time de futebol!” - Seu Sabá e Dona Francisca, Síria, abril de 2011.
Os patrões foram embora dali e se firmaram onde hoje é a comunidade de Porto
Alegre, na outra margem do Solimões. Mais famílias vieram a se agregar em volta de Seu
Clemente e seus descendentes. Continuaram a trocar as mercadorias com os regatões que
passavam na beira. Um dos filhos de Seu Clemente, chamado Clementino foi o único a
permanecer ali, e os outros se espalharam pelas margens do rio. Seu Clementino morava na
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boca do cano do Envira quando “lá era a beira do rio!”. À medida a terra crescia, ele
mudava sua casa de lugar. Casou-se com Julia Marinho e teve 12 filhos, dos quais apenas
três encontram-se vivos. Um de seus filhos, Seu Otávio Carvalho, foi uma figura de
liderança fundamental para os moradores daquela área. Ele remava até Fonte Boa todo ano
para pagar o imposto, o que o tornava o dono daquelas terras. Otávio, por sua vez, casou-se
com Iracilde Cordeiro, filha de Cássio Cordeiro (turco da comunidade Porto Alegre) e
Agripina Aparício. Quando a Síria passou a ser uma comunidade, por ocasião do trabalho
do Movimento de Educação de Base (MEB) nas décadas de 1960 e 70, ele transferiu as
terras para a associação local, da qual naturalmente tornou-se o presidente. Após a sua
morte, outros parentes assumiram o posto e, atualmente é Ronildo Carvalho, seu neto,
quem exerce o cargo de presidente. A Síria é uma comunidade católica, sendo um local
onde se festeja a Santa Tereza.
A Santa Luzia foi fundada pela família do senhor Pedro Omoña Lomas, também
conhecido por Pedro Corico, e Angélica de Oliveira Cavalcante – nascidos em Benjamin
Constant e Caballococha, respectivamente. Na década de 1940, passaram a morar no paraná
da Síria, vizinhando com as famílias Gomes e Januário. Essa primeira ocupação é lembrada
pelos mais velhos de hoje como tempo de muito trabalho, no qual Seu Pedro Corico [pai]
saía para pescar de pela manhã, rodando os lagos da região, e os filhos iam com Dona
Angélica para a roça.
“Meu pai aguentava fome Rafael. Ele saía cedinho para ir pescar nos lagos. Fazia
o Aratituba, fazia o Envira. Voltava para casa só no finalzinho do dia [à tarde]. Ia
só com o tabaco (...) Minha mãe dizia ‘Vamos trabalhar que não se come nem
caderno nem lápis.” A gente acordava cedinho, trabalhava o dia inteiro, chegava
em casa só às sete ou oito horas da noite e quando era no outro dia já estava de pé
de novo. Eu não trabalho mais assim não, estou de pé depois que o sol nasceu. Por
que o senhor sabe: o camarada morre e o trabalho não acaba!” - Seu Pedro
Corico [filho], Santa Luzia, abril de 2011
Naquele tempo, os lagos pertenciam a Luís Barreto e Seu Pedro Corico pescava para ele.
Alguns moradores da Santa Luzia disseram que ele teria sido dono dos lagos Aratituba,
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Envira e outros mais próximos à Acapuri de Cima. Barreto é descrito como “um regatão
que passava aí na porta” e é mais provável que fosse entendido como dono por deter o
privilégio do comércio do pescado que saía desses lagos. O lago Aratituba também estava
registrado como propriedade de Seu Otávio Carvalho, embora eu não consiga estabelecer se
havia uma disputa entre Carvalho e Barreto ou se eles foram donos em momentos
diferentes. A família de Pedro Corico abandonou o Paraná-Síria após a morte de Arquilau
Paiva Corico, um dos filhos do casal, devido a uma picada de cobra. Após desgostar do
lugar, Seu Pedro e Dona Angélica se mudaram para um local rio acima, na beirada do
Paranã-do-Pinheiro.
Naquela área vivia o Senhor Aristóteles, um fazendeiro que criava gado e tinha um
pequeno barco para comércio, e também a família de Seu João Batista, agricultou piauiense
casado com uma indígena Cocama que vivia às margens da ressaca que batizou de
Manauzinho.3 A Santa Luzia desse tempo ainda não era propriamente uma comunidade e as
famílias viviam em casas separadas. Eventualmente, alguns filhos do casal se mudaram
dali, rumando para as cidades de Manaus e Benjamin Constant, para outras comunidades na
região e também se engajando no trabalho da navegação comercial. A comunidade se
constituiu gradualmente, quando os filhos foram retornando e o casal já se encontrava em
idade avançada.
Desde a fundação da comunidade é Seu Pedro Paiva Corico, filho mais novo do
casal Pedro e Angélica, o presidente da Santa Luzia. Seu Pedro foi o principal articulador
do pleito de passar a área indígena, e continua mobilizando os vizinhos na esperança de
que isso seja possível. A maior parte das famílias da comunidade segue os preceitos
católicos fundamentados por algumas regras da Irmandade de Santa Cruz. Mais
recentemente uma das famílias se converteu a uma denominação protestante.
A ocupação da Ilha do Xibeco é antiga e remonta ao êxodo dos Cocama na década
de 1930. Os moradores mais velhos da ilha, como Seu Rufino Maricaua Acipar (74 anos)
nasceram ali, mas seus pais e avós vieram de Caballococha no tempo da guerra. Nesse
primeiro período de ocupação do Xibeco havia um só povoado, como afirma Dona Clarisse
3 João Batista se tornaria, mais tarde, uma liderança fundamental para a criação da RESEX rio Jutaí (Aparício, 2006).
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Carvalho “Antes não havia comunidades, era tudo uma coisa só”. O Xibeco não tinha
dono e os patrões da região eram os “turcos da Síria”.
Um testemunho dessa ocupação é a plantação de cacau que hoje se encontra dentro
da mata devido ao fenômeno da terra crescida. O cacau era plantado por quase todos os
antigos moradores e vendido para os donos das lanchas a vapor que passavam pela região.
Como para os outros Cocama da foz do Jutaí, esse tempo da primeira ocupação é lembrado
pelos mais velhos marcado pela fatura e festa. As relações dos moradores do Xibeco se
estendiam a diversos lugares, especialmente os povoados Petrolina, Síria e Sevalho. À
partir do esvaziamento progressivo dessas localidades, o Xibeco dividiu-se em diversas
pequenas ocupações que mais tarde se organizaram como comunidades.
Embora Seu Rufino e Dona Clarisse jamais tenham se mudado dali – apenas
deslocaram sua casa de restinga em restinga progressivamente rumo à beira do rio à
medida que a terra crescia – foi somente em 1995 que a Nossa Senhora da Saúde se
organizou enquanto comunidade (Domingues, 2007). Havia ali uma igreja de uma
denominação evangélica e diversas famílias passaram a ocupar o lugar, vindas da
comunidade Espírito Santo.
Com o avanço da regularização da TI Espírito Santo, diversos moradores da Nossa
Senhora da Saúde abandonaram a ilha do Xibeco e atravessaram o rio Solimões para fundar
as aldeia Novo Progresso junto a outras famílias Cocama. Os atuais moradores da
comunidade escolheram ficar ali e iniciar um movimento, junto às outras comunidades da
ilha para que esta também fosse regularizada como Terra Indígena do Povo Cocama.
O êxodo ocasionado pela Guerra Colombo-Peruana é o evento marcante da maioria
das narrativas de ocupação dos Cocama na região da foz do Jutaí. A presença dos Cocama
na região, no entanto, é anterior a isso. Localidades como o antigo Sítio Maricaua, eram
ocupadas pelos Cocama em momentos anteriores ao êxodo. E aqueles cuja origem não
remete à região do Trapézio Amazônico? Os descendentes de Clemente Carvalho, por
exemplo, afirmam que ele teria vindo do Paraná do Urutuba, situado a montante. Alguns
indígenas de outras comunidades dizem que Clementino seria um Ticuna civilizado, outros
afirmam que ele seria Kaixana. Seu Olímpio Gomes de Souza, índio Kaixana e morador da
Síria, conta uma história parecida. Nasceu no Copeçu – hoje dentro da TI Uatí-Paraná – e
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veio morar na beirada do Solimões. Seu pai, como outros indígenas Ticuna e Kaixana
daquela região, vivia da pesca e salga do pirarucu. Ele conta que a facilidade de
comercializar com os vapores foi o que levou seu pai a deixar o Copeçu e assentar na
margem do Solimões. Outras categorias de pessoas presentes na composição dos
assentamentos Cocama são os arigó, migrantes do Nordeste brasileiro cuja presença na
região está associada à economia gomífera; e os paisanos, categoria que nomeia a
ribeirinhos ou indígenas nativos do Peru e Colômbia.
Os modos de ocupação do início do século XX eram as feitorias e os povoados. As
primeiras eram locais nos quais os fregueses se estabeleciam durante um período para
realizar atividades extrativas para seus patrões. Os povoados eram os lugares de morada,
onde se festejavam os santos. Lima & Alencar (2000) afirmam que o comércio de gêneros
extrativos no médio Solimões teve seu ápice entre as décadas de 1920 a 1950, entrou em
declínio à partir da década de 1960. A partir de então o êxodo rural se intensifica e os
povoados começam a entrar em decadência. Na mesma época se inicia o trabalho do
Movimento de Educação de Base (MEB) para a organização das comunidades, e também a
organização de comunidades à partir da conversão à Cruzada ou Santa Cruz – religião cristã
profética iniciada através do Irmão José Francisco da Cruz (Oro, 1989; Regan, 2011). A
partir da década de 1980 as primeiras terras indígenas são regularizadas e seus
assentamentos passam a ser chamados de aldeias.
No tempo das feitorias e povoados o principal ponto a ser observado era a
exclusividade de comércio com os patrões, os donos da área, por parte dos fregueses, de
modo que os Cocama associam essa época a uma relativa liberdade de caçar e pescar.4 A
participação nas festas de santo e a adesão aos ajuris – mutirões de trabalho coletivo – nos
quais os parentes de outras localidades plantavam roçados junto aos residentes, também são
relatados pelos Cocama como ações que colaboravam para a manutenção de boas relações
entre moradores de povoados diferentes.
“Antigamente irmão, a gente fazia um ajuri. Saía de casa e ia derrubar, abrir roça
lá na Petrolina, no Sevalho. (...) Depois os parentes vinham derrubar roça com nós.
4 O modelo de colonização do aviamento preza primeiro o controle da mão de obra através do monopólio do comércio e força de trabalho estabelecido entre os patrões e seus fregueses através da aquisição de dívidas pelos últimos.
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(...) Aí quando derrubavam eles pediam “Ô parente, não pode me dar um
pedacinho de terra para eu plantar não?” – Dona Clarice Carvalho, Nossa Senhora
da Saúde, Novembro de 2011
No processo de organização das comunidades, há áreas que seus moradores
reclamam para uso exclusivo. Os modos de reclamar essa posse incluem a ocupação
contemporânea da área, as relações de parentesco com antigos ocupantes, o uso pregresso
através do vínculo com um patrão ou dono. A ocupação contemporânea é legitimada
através os atos de morar e trabalhar nos lugares, sobretudo através dos cultivos da
agricultura itinerante, que produzem roças, capoeiras e sítios, e também na ocupação de
ambientes de pesca, marcada não só pela despesca, como pelo ato de guardar essas áreas.
No caso de comunidades situadas em Unidades de Conservação de Uso Sustentável, como
a RDS Mamirauá, a participação nas instâncias de organização política da UC também é
uma forma de legitimar a posse e buscar a resolução de eventuais disputas.
Sítio tem um duplo sentido. É um tipo de paisagem resultante da agricultura
migratória, na qual se encontram espécies cultivadas perenes (açaí, fruta-pão, kamo-kamo,
limão, ingá, araçá, etc) manejadas e colhidas regularmente, as quais os Cocama chamam de
plantas – em oposição às espécies vegetais em estado selvagem, chamadas de mato. Uma
localidade na qual reside um grupo familiar extenso, com poucas residências e em regime
multilocal5 (Piñedo-Vasquez, 2008), também é chamada de sítio. Para que um sítio seja
reconhecido como uma comunidade é necessária uma ocupação permanente, formalidades
como o registro em cartório, além de infra-estrutura: uma igreja, uma escola, e um salão
comunitário – que podem, inclusive, funcionar todos em um mesmo espaço. As aldeias,
por outro lado, são dotadas das prerrogativas jurídicas das Terras Indígenas que
estabelecem o usufruto exclusivo dos que nelas residem. Mesmo nesses casos, os atos de
morar e trabalhar ainda são fundamentais, embora exista a garantia de que eventuais
invasores não vão reclamar a posse dessas áreas.
A oposição entre as categorias de morador e invasor é relacional. O invasor é
aquele que, do ponto de vista do morador, se encontra em uma área sobre a qual não teria
5 Alternando entre o interior e a cidade.
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direito. Nos impasses acerca do direito, os invasores podem ser moradores de outras
comunidades ou aldeias, inclusive parentes dos moradores. Uma vez que as formas de
socialidade dos Cocama estabelecem a co-residência (morar junto) e a consubstancialidade
(comer junto) como elementos-chave para ser parente, as alianças e rivalidades não estão
dadas na genealogia, mas nas possibilidades de convívio e distância. O panorama de
relações está em constante transformação, devido às conversões religiosas e às mudanças
na composição das comunidades e aldeias – migração ou incorporação de novos membros.
A própria paisagem está em constante transformação. A terra da beirada pode
crescer ou cair, lagos e ressacas podem furar abrindo novos caminhos, praias somem ou
surgem, paranás abrem ou fecham. Os Cocama entendem essas mudanças como resultantes
da força da água e do rio, e também da agência das Cobras Grandes, encantados do fundo
que habitam lagos, rios e enseadas. Em geral, às Cobras são atribuídas as transformações
violentas e súbitas, como o fenômeno da terra caída, quando enormes porções de terra são
arrastadas para dentro do rio gerando um estrondo intenso e duradouro.
A seguir, forneço ao leitor uma descrição de alguns elementos importantes para
entender a paisagem de várzea do Solimões e discuto especificidades dos regimes de posse
e maestria entre os Cocama partindo de casos relatados ou vivenciados em campo. Em
muitas destas passagens nomes de pessoas, e por vezes de lugares, serão deliberadamente
suprimidos, de modo a não comprometer os interlocutores.
Paisagem e Toponímia
A várzea é um ambiente em transformação. As planícies aluviais do Solimões são
alagadas todos anos durante a estação das cheias. Quando a água começa a baixar a começa
a sair terra. Os sedimentos arrastados pelo rio fertilizam os solos, diminuindo o intervalo
de tempo necessário para se abrir novas roças para plantio. As duas formas mais gerais de
classificar os ambientes são a beirada e o centro. A beirada é onde se localizam os
assentamentos dos Cocama, ribeirinhos e outros indígenas civilizados. O centro, ou centro
da mata são os locais de florestas distantes da beira e dos assentamentos das pessoas
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humanas, lar de bichos e encantados.6 Por rio os Cocama denominam os canais do
Solimões e seus afluentes que não secam durante a estação seca, que possuem canais de
navegação ativos durante todo o ano. O paraná é um braço do rio que fica entre a terra e
uma ilha ou ressaca, é navegável durante a maior parte do ano, mas pode durante uma
estação seca intensa. Os furos são pequenos canais que ligam lagos, paranás e rios, onde só
se é possível pode transitar usando canoas. Praia é uma porção de solo argiloso ou arenoso
que fica exposta apenas durante alguns meses do ano – quatro a seis meses segundo Ramos
(2002). As praias são local de desova dos bichos de casco e de aves migratórias, e também
usado pelos Cocama no cultivo de feijão, melancia e milho.
O igapó, ou simplesmente gapó, é a floresta inundada periodicamente. É onde
muitas espécies de peixes se refugiam durante a estação das cheias, onde consomem
diversos frutos. O igapó, especialmente igapó de centro, distante da beira, é habitado por
encantados e visagens. Encontros com seres como a Onça d´Água e indícios da presença de
visagens são narrativas comuns entre os Cocama. A Onça d´Água é similar a uma Onça
Preta (Panthera onca), embora tenha membranas natatórias nas patas e se desloque com a
cabeça embaixo da água, deixando apenas o lombo de fora. Alguns indígenas afirmam que
Onça d´Água é o cachorro dos encantados do Fundo. Visagem é como os Cocama chamam
as aparições ou manifestações das almas dos mortos. Podem ser vistos ou escutados nos
lagos, praias e florestas alagadas, lugares nos quais podem estar caminhando, remando ou
trabalhando em alguma atividade – pesca, caça ou derrubada de madeira. As visagens
conversam entre si, embora sua fala seja ininteligível aos vivos.
As restingas são as áreas mais altas e menos suscetíveis à inundação, as últimas a
ser alagadas durante as cheias e as primeiras a despontar quando as águas começam a
baixar. É sobre esse tipo de paisagem que os Cocama estão assentados, e onde fazem as
roças de cultivos de ciclo mais longo, como a mandioca. As restingas são classificadas
como alta e baixa, de acordo com sua resistência à alagação. As matas da restinga são
diferentes do igapó porque são fechadas, já que apresentam abundância de espécies
vegetais no estrato arbóreo inferior, necessitando que trilhas e varadouros sejam abertos
6 Indígenas considerados como bravos pelos Cocama também são descritos como habitantes do centro, embora vivam em áreas de terra firme, ou seja, aquelas que não sofrem a alagação periódica.
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com terçados. As barreiras são as áreas na beira do rio que não são inundadas
periodicamente.
Os topônimos relevam características dos lugares e também dizem respeito à
história da ocupação. No caso das comunidades e aldeias, os nomes podem estar
relacionados ao lugar de origem de um dos fundadores (Petrolina, Síria), tipos de paisagem
(Floresta), espécies vegetais (Acapuri, Feijoal, Bugari), nomes dos santos festejados (Santa
Luzia, São Francisco do Xibeco, Santa Helena da Ressaca Grande), nomes de locais
retirados da Bíblia (Monte Moriá, Jerusalém), nomes relativos à Irmandade da Santa Cruz
(Santa Cruz da Nova Aliança, Cruzeiro) espécies animais (Guariba), nomes que indicam
aspirações ou sensações (Porto Alegre, Nova Esperança do Xibeco, Novo Progresso), ou
sobrenomes dos habitantes pioneiros (Costa do Sevalho, Sítio Maricaua). Alguns nomes
são acompanhados de referências à paisagem na qual os assentamentos estão situados, tais
como paranás, ilhas ou ressacas (Nova Esperança do Urutuba, Nova Esperança do Xibeco,
São Francisco da Ressaca Grande) ou referências à ordem de assentamento nos cursos
d´água (Acapuri de Cima, Acapuri de Baixo).
Os lagos, ressacas e canos têm nomes relacionados ao seu formato (Lago Poção,
Lago Comprido, Lago Atravessado, Ressaca Grande, Lago Fundo, Lago do Furado, Lago
Paraná), à espécies vegetais abundantes em suas margens (Lago do Ingá, Lago Aratituba,
Cano do Açaí, Lago Javarizinho), à espécies animais (Lago do Marreco, Lago do Boi, Cano
do Mutum, Cano do Japim), e nomes de moradores ou donos do lugar (Lago Geraldão,
Lago do Leandro).
Português e Nheengatu são as línguas mais usadas para nomear os lugares. Marcos
mais importantes são nomeados em Nheengatu, e portam nomes muito antigos, muitos dos
quais estão presentes em relatos e mapas de viajantes dos séculos XVII e XIX (La
Condamine, 1745; Wilckens, 1994[1781]; Marcoy, 1875[1862]). Isso é válido para os
grandes lagos da região do médio Solimões e afluentes (Amanã, Mapichari, Caruara,
Buiuçu, Mamirauá, Anarucu, Aratituba, Mari-Mari, Tamanicuá, Caiambé) e os também os
paranás (Auatí-Paraná, Aranapu, Coraci, Aiupiá, Aiucá).
Da mesma maneira, outras unidades de paisagem podem ser nomeadas e, em geral,
os moradores de uma área têm nomes para lugares que são irrelevantes para seus vizinhos e
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eventuais invasores (como varadouros, restingas e capoeiras). Um morador antigo não
apenas conhece os nomes dos lugares, mas pode saber quem os nomeou, quando e porquê.
Nomear um lugar é também uma maneira de se apropriar dele, fazer com que o
nome seja reconhecido por outros é uma forma de garantir o direito sobre aquele lugar.
Nomes diferentes para um mesmo lugar podem indicar disputas, e a maneira diferentes
grupos se referem a esses lugares são indicadores de suas alianças.
“E quem tem direito?”
Atravessando o paraná do Pinheiro, em frente à Santa Luzia chegamos à Ilha do
Xibeco, na parte oposta àquela na qual se encontram as comunidades. Ali se encontram os
esteios de uma antiga casa, diversas plantas cultivadas, e um enorme cruzeiro de madeira,
testemunho de que seus moradores eram devotos da Irmandade da Santa Cruz. A alguns
passos dali está o lago do Ingá, e uma pequena canoa repousa em suas margens. O casal
que fundou o lugar e morou ali acompanhado dos filhos e outros parentes hoje habita a
comunidade de Santa Luzia. Abandonaram a área em 2001 e se dirigiram para a cidade de
Benjamin Constant. Na época, a matriarca da família conta que tinha problema de sangrar.
Ela procurava os hospitais na cidade de Jutaí, mas mesmo sob medicação não conseguia se
curar. Eles desmontaram sua casa e venderam a madeira, se estabelecendo na cidade. Como
demoraram a voltar, os filhos os seguiram em 2007. A matriarca atribui sua enfermidade à
feitiçaria e inveja, afirmando que em parte a culpa é do olho dos outros. Quando em
Benjamin Constant ela descobriu ter um cisto, sendo operada e eventualmente se
recuperando. Quando finalmente retornaram à área em 2009, lideranças das comunidades
do Xibeco disseram que não queriam que eles morassem ali. “Eles diziam que a gente ficou
fora muito tempo, perdemos o direito”. Na época da minha visita, eles ainda mantinham
uma pequena roça de mandioca e macaxeira e também coletavam frutos do sítio. Certa vez
os moradores do Xibeco encontraram a canoa e a malhadeira de um dos filhos do casal no
lago do Ingá, e ele foi acusado de invadir o lago, sendo mais tarde intimado a comparecer
no Posto Indígena da FUNAI em Jutaí. Perguntei a eles se entendiam que a perda de
direitos estaria relacionada ao processo de passar a área indígena da Ilha do Xibeco, eles
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responderam que não: afirmaram que perderam o direito a esse sítio porque se ausentaram
por tempo demais.
Meses mais tarde, durante o campo nas comunidades do Xibeco, a disputa em torno
desse sítio voltou à pauta. Moradores daquele lado justificaram sua decisão afirmando que
os vizinhos tinham ido embora e que eles não haviam mandado notícia. Na época da
mudança para Benjamim Constant, o sítio do casal estava em processo de se registrar como
comunidade, e os outros moradores do Xibeco os apoiavam na solicitação de uma escola
junto à prefeitura de Jutaí. Visto que a ausência prolongada, somada ao contato
interrompido, foram as justificativas dadas por ambas as partes para a perda do direito. O
fato de que ausência, por si só, está relacionada à uma enfermidade causada por feitiçaria e
inveja, indica a possibilidade de alguma tensão prévia.
As disputas em as comunidades da TI Xibeco e as da TI Santa Luzia também
tomam outras formas. A costa do Xibeco é ideal para o plantio de roças de mandioca e
macaxeira pelos moradores que vivem nas margens do paraná do Pinheiro: ficam em áreas
suficientemente altas para garantir a colheita na cheia, e também estão acessíveis de canoa
durante esse período reduzindo a penosidade do trabalho. Os moradores do Xibeco
questionam o direito dos vizinhos em fazer essas roças, como também os acusam de
colocam malhadeiras na boca dos canos e furos dos lagos na costa do Xibeco – prática
geralmente feita em áreas de domínio de outros, considerada reprovável. Os moradores das
comunidades da TI Santa Luzia, por sua vez, reclamam que alguns jovens da Ilha do
Xibeco cortam suas malhadeiras quando estão de passagem pelo paraná do Pinheiro.
Em 2011, durante a estação seca, uma das comunidades da Ilha do Xibeco se
engajou num projeto de conservação de quelônios promovido pelo Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. O projeto consistia em separar parte de uma
praia, marcar esse intervalo com bandeiras, sinalizar onde estariam os ninhos, avisar os
vizinhos que naquela área não deveriam coletar bichos de casco e seus ovos, e fazer
vigilância para evitar que outros viessem perturbar os ninhos protegidos. Os moradores da
comunidade não viram maior problema já que entendiam que os vizinhos deveriam coletar
em suas respectivas praias, e não teriam direito àquela – que fica muito próxima à
comunidade. Regionalmente, a vigilância de praias não necessariamente está associada a
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iniciativas de conservação, sendo uma forma de garantir a exclusividade e permanência de
acesso aos bichos de casco e seus ovos. Embora essas iniciativas possam reduzir o número
de invasores nas praias, estes eventualmente terão oportunidade de coletar nessas praias
uma vez que a vigilância não pode ser constante, e os moradores também podem permitir
de bom grado que outros compartilhem com eles os bichos de casco e seus ovos.
A iniciativa teve sucesso reduzido, uma vez que os vizinhos não respeitaram a
porção protegida. Bandeiras foram quebradas e recados acusando os moradores de
ambiciosos foram deixados na areia. Os vizinhos entenderam que a comunidade estaria
sovinando os ovos e os bichos de casco, reservando a parcela da praia apenas para si
mesmos.7 A comunidade foi capaz de preservar poucos ninhos, e durante minha passagem
por ali eles se preparavam para a soltura dos filhotes. Reclamavam da ignorância dos
vizinhos, e diziam que persistiram na vigilância da praia, a qual aliás, já faziam desde antes
do ingresso no projeto. Cabe esclarecer que, no Solimões, os bichos de casco são
considerados iguarias por indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades. Oferecidos como
presentes para parentes queridos e consumidos em celebrações tais como casamentos,
aniversários, batizados e festas de santo. Durante minha estadia na comunidade Síria, uma
família Cocama de uma aldeia situada próximo à Santo Antônio do Içá chegou para fazer
visita a um primo que se casara com uma moça local e residia ali há 10 anos. Os visitantes
trouxeram consigo um tracajá (Podocnemis unifilis), que comeram juntos num almoço. Em
outra ocasião, quando viajava para uma assembléia, assisti um senhor tentar comprar um
tracajá no porto de Fonte Boa por R$ 200,00. Ele queria presentear seu sogro, mas o
animal que o dono carregava já estava destinado a outro parente. Dada a importância dos
bichos de casco para as relações de parentesco, como dádiva e substância, mesmo a decisão
de guardar uma porção de praia da qual os moradores entendem no seu direito exige a
negociação com vizinhos para ser bem-sucedida.
Disputas desse tipo não incomuns e fazem parte do são assunto de conversas
informais, embora raramente os dois disputantes se confrontem abertamente a respeito.
Quando isso acontece, e agressões verbais ou físicas acontecem, tem início o que os
Cocama chamam de briga ou conflito. Entendo que a não-confrontação é uma forma de
7 Antes que o conceito fosse difundido pelas políticas de conservação, reserva se referia à porção de lago, praia ou castanhal que o patrão guardava para seu usufruto exclusivo (REF).
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evitar uma maior indisposição com pessoas estruturalmente próximas, relacionadas por
parentesco, visto que essas disputas podem ser resolvidas ou apaziguadas através de
acordos firmados durante assembléias e reuniões, ou desaparecer mediante transformações
na paisagem ou na composição dos assentamentos.
Além disso, no caso da praia supracitada, há outros donos em jogo. A porção do
Solimões em frente à ponta da Ilha do Xibeco é conhecida localmente por abrigar uma
cidade dos encantados. No médio Solimões, locais onde há rebojeiro, ou seja, onde a água
dos rios forma pequenos redemoinhos, são apontados pelos moradores da beirada como
aqueles nos quais há cidades encantadas no Fundo.8 Vários Cocama descreveram a ponta
da Ilha como perigosa para a navegação, por causa do rebojo. Moradores do Xibeco
afirmam avistar figuras humanas andando na praia durante a noite, quando faziam
vigilância. Algumas delas parecem flutuar sobre água ou areia, outras desaparecem
repentinamente. Contam que uma antiga moradora da ilha, Dona Eulália, chegou a avistar a
cidade e quase foi levada para o Fundo. Um velho pescador Cocama me contou que quando
passava por ali, remando de noite, escutava a música do Fundo e sabia que os encantados
estavam em festa. Em 2011, num episódio trágico, um morador da comunidade Floresta
desapareceu na mesma área quando sua canoa naufragou à noite. Na ocasião ele
transportava dois Cocama da aldeia Novo Progresso depois de uma festa. O corpo nunca
foi encontrado, e o episódio gerou acusações e acirrou tensões entre os Cocama do Novo
Progresso, Floresta e demais os parentes das partes envolvidas. Entre as várias versões que
escutei para o acontecido, houve quem sugerisse que o corpo desaparecera porque o homem
tinha sido levado para o Fundo pelos encantados. Seu Francisco Mashico, notório curador
Cocama com quem conversei longamente em duas ocasiões, afirmou que muitas coisas do
fundo, incluindo os bichos de casco são as criações [animais domésticos] dos encantados:
É que eles [os bichos de casco] são criação deles, eles são os donos. Eles querendo esconder, escondem tudinho, você não vê nenhum. Porque são os donos, eles que manobram. Tem uma nação de gente encantando no fundo. Do jeito que nós tem aqui, tem encante no fundo. Só que nós não pode se unir, porque aí é outra coisa, é diferente. É por isso que some muita gente. – Jutaí, novembro de 2011.
8 O Fundo é, ao mesmo tempo, um lugar físico e um outro mundo.
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Algumas situações de conflito estavam em curso durante o ano de 2011. A primeira,
de longa duração, dizia respeito à posse do lago Aratituba. O lago estava incluído dentro da
propriedade registrada por Seu Otávio Carvalho, logo é considerado como sendo de direito
da comunidade Síria. No entanto, todo ano, durante a estação seca, vários os moradores de
outra comunidade cocama do situada às margens do Auatí-Paraná, pegam o cano do Japim
e se dirigem para o Aratituba. Os moradores da Síria acusam os invasores, de levar bichos
de casco, ovos de gaivota e quelônios, mantas de pirarucu e matar centenas de jacarés. O
jacaré é pouco apreciado localmente, sendo referido como comida de paraense em relação
a uma suposta apreciação de sua carne na região do baixo Amazonas. Os moradores da
Síria afirmam que os invasores salgam a carne do jacaré e vendem para um patrão atuante
nas regiões de Jutaí e Fonte Boa. Como o cano do Mutum, que dá acesso do Solimões ao
Aratituba é inavegável durante a estação seca, os moradores da Síria se dirigem ao lago
usando um varadouro nessa época, precisando andar até quatro horas para chegar até lá.
Por esse motivo, afirmam que é muito difícil guardar o Aratituba.
Desde o tempo da liderança de Otávio Carvalho, os moradores da Síria confrontam
os invasores. Pedem que eles se retirem, colocam placas avisando que o lago pertence à
comunidade, reclamam dessa invasão às autoridades. Eles afirmam que os invasores
justificam seu direito através da alegação que seu antigo patrão já teria sido dono da área, e
afirmam que sempre pescaram ali. Por esse motivo, os moradores da Síria planejam
construir um flutuante na beirada do lago, para tentar manter ativa a vigilância durante a
estação seca e minimizar os prejuízos causados pelos invasores. Embora as duas
comunidades façam parte de duas Terras Indígenas requeridas, não consegui informações
concretas de que os moradores da área do Auatí-Paraná reclamam a inclusão da área do
Aratituba em sua TI.
Em frente à comunidade Santa Luzia há uma ressaca, que seus moradores chamam
de Ressaca de Santa Luzia. Há quase uma década ela tem sido foco de disputa entre uma
família de ex-moradores do Pinheiro do Meio, que atualmente reside em Jutaí, e os
moradores da Santa Luzia. Os primeiros clamam que a área é sua propriedade, no sentido
formal, e afirmam possuir um título definitivo para tanto. Durante a minha estadia em
campo, notei que havia uma placa pendurada na boca da ressaca, afirmando o nome da
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propriedade, sua área total e com a afirmação “*FORA INVASOR”. Os ditos proprietários
haviam construído uma casa dentro da ressaca, impediam os moradores da Santa Luzia de
pescar em seu interior e também próximo à boca da mesma. Também houve disputas entre
os proprietários e os moradores dos sítios Pinheiro de Baixo e Pinheiro do Meio, que
costumavam fazer roças na área da ressaca. Os moradores da Santa Luzia se sentem
traídos, porque afirmam que deixaram que os reclamantes pescassem no local porque todo
mundo tem necessidade, não imaginavam que eles pudessem tentar se apossar da área.
Diversos confrontos ocorreram, em geral resumidos à troca de agressões verbais e ameaças
de agressão física. Os moradores da Santa Luzia se queixavam que seus algozes chamavam
nomes, expressão regional para ofensas mais sérias, e cometiam injúrias de cunho racista,
usando a categoria caboclo de forma pejorativa. Mais tarde outras casas foram construídas
na boca da ressaca e, atualmente os proprietários mudaram de estratégia. Mediante sua
constatação da nulidade dos títulos definitivos para as áreas de várzea do Solimões, buscam
legitimar seu direito através da formação de uma comunidade, do apoio de uma associação
municipal de manejadores de pesca e do reconhecimento na organização política dos
moradores da RDS Mamirauá – para a qual antes eram considerados invasores da reserva.
Os moradores da Santa Luzia contestam o direito de seus adversários argumentando que
eles não são moradores da área, através de solicitações à FUNAI e intervenções junto à
organização política da RDSM. Embora os confrontos tenham cessado recentemente, uma
resolução a impasse parece cada vez mais relacionada à eventual regularização da TI Santa
Luzia.
O último caso diz respeito a uma localidade dentro da TI Santa Luzia com uma
trajetória particular. No passado, aquele local abrigara um grande povoado, mais tarde
organizado em comunidade. Nos últimos vinte anos, no entanto, os moradores foram
progressivamente se mudando para a cidade de Jutaí. Em 2007, havia ali apenas um sítio,
composto por um flutuante e uma casa (Domingues, 2007). Em 2011 o último morador
havia abandonado o local e se mudado para Jutaí, deixando ali apenas o flutuante. Ele
reclamava que moradores de uma comunidade vizinha vinham cometendo pequenas
sabotagens, tentando expulsá-lo dali permanentemente, havendo inclusive cortado o cabo
de seu flutuante. Estes por outro lado, diziam que a comunidade em questão estava acabada
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e o acusavam de tirar madeira ilegalmente e fora da área à qual teria direito. O ex-morador
se justificava dizendo que a madeira que estava retirando havia sido plantada no passado, e
que ali havia um sítio muito rico pelo qual sua família havia trabalho durante muito tempo
ao qual ele não pretendia abrir mão. Coincidência ou não, os moradores desse lugar haviam
rejeitado se mobilizar em prol da regularização da TI. Essa situação me intrigava, e certa
vez perguntei a um Cocama mais velho quem eram aquelas pessoas que um dia residiram
naquela localidade, ao que ele respondeu: “Aqueles lá são gente nossa, são Cocama como
nós. Mas eles saíram dali, seguindo um parente mais velho deles. Se mudaram lá para Jutaí
e formaram um bairro por lá.”
Esses casos ilustram alguns temas centrais relativos ao direito e como se dá a
regulação dos regimes de posse entre os Cocama. Morar em um lugar é uma forma
inequívoca de requerer o direito sobre aquele lugar, e a despeito de qualquer disputa, os
Cocama não entendem como desejável a idéia de expulsar um morador de outra localidade:
aqueles que perderam seu direito o fizeram justamente por deixar de morar em
determinado lugar. Trabalhar num lugar implica deixar nele marcas de ocupação como
roças, capoeiras e sítios, que por sua vez contribuem para fazer um lugar rico/farto (cf.
Ramos, 2002: 35-36). Guardar um lago ou uma praia também são formas de trabalho, uma
vez que geram abundância de peixes e bichos de casco e, por conseguinte, lugares
ricos/fartos. Essas ações criativas, produzir comida e gerar espaços de abundância, tem
uma relação estreita com as formas de cultivar o parentesco: o trabalho sempre é conjunto,
seja pelos membros de uma unidade doméstica, seja por parentes de outras comunidades.
Embora meus interlocutores afirmem que o atualmente não se realiza ajuris como
antigamente, em diferentes momentos de campo pude observar Cocama que chegavam e
partiam das comunidades e aldeias com o objetivo de abrir, plantar ou tirar uma roça de
mandioca com seus parentes.
Os grupos locais, moradores das comunidades ou aldeias são aqueles dos parentes
por excelência. Entre os Cocama de localidades diferentes, mesmo quando se existe o
parentesco de ordem genealógica, a relação pode ser próxima ou distante dependendo do
quanto eles se dispõe a conviver. E as possibilidades de convivência estão marcadas por
outros fatores, por exemplo, a adesão a diferentes religiões. As festas de santo entre os
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católicos, ou as festas de aniversário da igreja entre os protestantes reúnem parentes
distantes e próximos. Isso também acontece em ocasiões de reuniões da mobilização
indígena ou de moradores da RDSM. A opção política por se reconhecer como indígena e a
adesão à diferentes religiões tem um impacto significante sobre os modos de enfatizar e
manter relações. Ou seja, embora as relações de ordem genealógica sejam reconhecidas,
quando os Cocama pensam em uma descendência comum, as relações preferenciais são
construídas entre os parentes que moram e/ou trabalham juntos. Isso faz com que co-
residentes distantes genealogicamente sejam parentes mais “verdadeiros” do que aqueles
que não moram juntos. No entanto, não é a simples convivência aquela a responsável por
produzir as relações de parentesco, mas também o cumprimento de uma etiqueta adequada:
trabalhar junto e, sobretudo, não sovinar os frutos do trabalho. Embora fatores climáticos
como uma grande alagação possam produzir escassez9, a beirada é um lugar da comida
abundante, uma vez que cada temporada trás consigo um tipo de colheita específico e
possibilidades particulares de caça e pesca.
Comer junto é uma implicação importante do convívio e do compartilhar a comida,
sendo parte da conduta adequada do que é ser parente. A comida consumida nessas
ocasiões, idealmente, deve ser aquela produzida na beirada: farinha, peixes, bananas e
pimentas preparados em diversas combinações possíveis. O comer junto também torna
possível a manutenção do parentesco mesmo em situações de convívio reduzido.
Ao mesmo tempo, desavenças e acusações diversas (especialmente as de feitiçaria)
bem como a adesão a uma religião diferente ou um novo alinhamento político, tendem a
fazer com que as comunidades passem por separações internas. Estas podem resultar na
criação de uma nova comunidade em local diferente, ou na dissolução da comunidade e na
dispersão de seus membros em vários assentamentos existentes. A ênfase na co-residência e
na consubstancialidade é contrabalançada pela necessidade de uma boa distância, de modo
a minimizar tensões e evitar os perigos da convivência inadequada.
9 o peixe se refugia no igapó durante as cheias, tornando a pesca mais dificultosa. As manivas estão sujeitas a não amadurecer por completo caso as roças sejam inundadas em momento anterior, gerando um baixo rendimento da farinha. Outros cultivos importantes, como a banana, também podem ser afetados.
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