Direito Resumo do Livro - As Misérias do Processo Penal - Francesco Carnelutti

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O direito e o direito penal, em particular, diferenciam-se da natureza. Enquanto, no âmbito não jurídico, as conseqüências associadas às causas são absolutamente naturais, o direito é uma arte precisamente porque à causa, prevista na lei jurídica, propõe uma conseqüência artificial.

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AS MISRIAS DO PROCESSO PENAL Francesco Carnelutti

Prefcio A lei uma consecutio necessria, ou seja, um liame entre um fato (prius) e uma conseqncia (post) a ele associado. No h possibilidade de a conseqncia no se seguir causa. O direito e o direito penal, em particular, diferenciam-se da natureza. Enquanto, no mbito no jurdico, as conseqncias associadas s causas so absolutamente naturais, o direito uma arte precisamente porque causa, prevista na lei jurdica, prope uma conseqncia artificial. Para Carnelutti, o prprio ato de julgar com base em normas jurdicas j artificial. Para julgar um processo penal, seria preciso ver o todo, seria preciso conhecer a vida inteira do acusado. Como o ser humano no pode antever o futuro, e o passado se apresenta inapreensvel, devido ao volume e complexidade das tramas que o compem, todo julgamento est fadado ao insucesso. Todo julgamento a revelao da miservel condio humana. O processo morre sem alcanar a verdade. Cria-se, ento, um substitutivo para a verdade: a coisa julgada. Os fatos tm comprovado que as penas tradicionais raramente curam o condenado. A priso o maior exemplo. Ela pune, mortifica, degenera, faz aumentar o cio, multiplica os ressentimentos e as revoltas. A priso s no recupera. O direito necessrio, mas no suficiente.

INTRODUO

O que se pretende com este livro fazer do processo penal um motivo de introspeco, e no de diverso. O processo penal a pedra de toque da civilidade no apenas porque o delito, de diferentes maneiras e em diferentes intensidades, o drama da inimizade e da discrdia, mas porque ele representa a relao que se desenvolve entre quem o comete, ou se supe que o comete, e aqueles que assistem sua perpetrao. Coisificar o homem: pode haver frmula mais expressiva da incivilidade? No entanto, o que ocorre, nove a cada dez vezes, no processo penal. Na melhor das hipteses, os acusados, encerrados em jaulas como os animais no jardim zoolgico, assemelham-se a seres humanos fictcios, no verdadeiros.

A TOGA

A toga, assim como o traje militar, desune e une, ela separa os magistrados e advogados dos leigos para uni-los entre si. A unio dos juzes entre si, em primeiro lugar. O juiz, como se sabe, no sempre um homem s. Nas causas mais graves, comum atuar um colegiado de juzes. No entanto, dizemos juiz tambm quando os juzes so mais de um, precisamente, porque se unem uns aos outros, assim como as notas emitidas por um instrumento musical se fundem nos acordes. Em relao ao juiz, o acusador e o defensor esto do outro lado da barricada. Dir-se-ia que, se a toda um smbolo de autoridade, eles no deveriam us-la. No processo, necessrio fazer a guerra para garantir a paz. As togas do acusador e do defensor significam que atuam a servio da autoridade. Aparentemente, eles esto divididos, mas na realidade esto unidos, no esforo que cada um realiza para alcanar a justia.

As togas dos magistrados e dos advogados se perdem na multido. So cada vez mais raros os juzes que usam da severidade necessria para reprimir tal desordem.

O PRESO Para mim, o mais pobre de todos os pobres o preso, o encarcerado. As algemas, tambm elas, so um smbolo do direito. Talvez elas sejam, pensando bem, o mais autntico emblema jurdico, mais expressivo do que a balana e a espada. necessrio que o direito sujeite as nossas mos. As algemas servem para desnudar o valor do homem. Segundo um grande filsofo italiano, esta a razo de ser e a funo do direito. Quidquid latet apparebit, repete ele: tudo o que est oculto ser revelado. Basta tratar o delinqente como um ser humano, e no como besta, para se descobrir nele a chama incerta do pavio fumegante que a pena, em vez de extinguir, deve reavivar. Cada um de ns prisioneiro, na medida em que est encerrado em si mesmo, na solido do seu eu e no amor prprio. O delito no seno uma exploso do egosmo. O outro no conta; o que conta apenas o eu. Somente quando se abre para os outros, o homem sai da priso. Nesse momento, a graa de Deus penetra pela porta que se abriu. Ser homem no no ser, apenas poder no ser animal. Essa potncia a potncia de amar.

O ADVOGADO

O preso no necessita de alimentos, nem de vestidos, nem de casa, nem de remdio. O nico remdio, para ele, a amizade. As pessoas no sabem, nem o sabem os juristas, que o que se pede ao advogado a esmola da amizade, mais do que qualquer outra coisa. A simples palavra advogado soa como um grito de ajuda. Advoctus, vocatus ad, chamado a socorrer.

O que atormenta o cliente e o impulsiona a pedir ajuda a inimizade. As causas civis e, sobretudo as penais so fenmenos de inimizade. A inimizade ocasiona um sofrimento ou, pelo menos, um dano comparvel ao de certos males que, quando no revelados pela dor, minam o organismo. Por isso, da inimizade surge necessidade da amizade. A dialtica da vida assim. A forma elementar da ajuda, para quem se encontra em guerra, a aliana. O conceito de aliana a raiz da advocacia. O acusado sente ter contra si a averso de muita gente. Algumas vezes, nas causas mais graves, parece-lhe que o mundo inteiro est contra ele. necessrio se colocar no lugar dos acusados, para compreender a sua espantosa solido e a sua conseqente necessidade de companhia. A essncia, a dificuldade, a nobreza da advocacia situar-se no ltimo degrau da escada, junto ao acusado. A soberba o verdadeiro obstculo a rogativa. A soberba uma iluso de poder. Em concluso, necessrio submeter o juzo prprio ao alheio, ainda quando tudo faz crer que no h razo para se atribuir a outro uma maior capacidade de julgar. No plano social, isso significa colocar-se junto ao imputado. A poesia algo que um advogado sente em dois momentos de sua carreira: quando veste pela primeira vez a toga e quando, se ainda no se aposentou, est para aposent-la na alvorada e no crepsculo. Na alvorada, defender a inocncia, fazer valer o direito, fazer triunfar a justia, esta a poesia. Depois, pouco a pouco, perecem as iluses, como as folhas das rvores durante a estiagem. Porm, atravs do emaranhado dos ramos cada vez mais desnudos, o azul do cu sorri.

O JUIZ E AS PARTES

O homem uma parte. Aqueles que esto diante do juiz para serem julgados so partes, quer dizer que o juiz no parte. Os juristas dizem que o juiz est super partes.

Porm, o juiz tambm um homem. E se homem, tambm ele uma parte. Ser e no ser, simultaneamente, parte: esta a contradio em que se debate o juiz. Ser um homem e dever ser mais que um homem o seu drama. Nenhum ser humano, se pensasse no que necessrio julgar outro ser humano, aceitaria ser juiz. Somente a conscincia da sua indignidade pode ajudar o juiz a ser menos indigno. O princpio do colegiado um remdio contra a insuficincia do juiz, no sentido de que, se no a elimina pelo menos a reduz. O juiz, para ser juiz, preciso crer que no se pe a alma humana sobre a mesa de Anatomia, como se pe o corpo. No se deve confundir o esprito com o crebro.

A PARCIALIDADE DO DEFENSOR

Todo ser humano parte. Por isso, ningum chega a se apoderar da verdade. O que cada um de ns cr ser a verdade no mais do que um aspecto da verdade algo como uma minscula faceta de um diamante. As razes so aquela frao de verdade que cada um de ns julga haver alcanado. Quanto mais razes se exponham, mais ser possvel que, conciliando-as, algum se aproxime da verdade. Acusador e defensor so, em ltima anlise, dois argumentadores. Eles constroem e expem razes. O seu ofcio argumentar, mas argumentar de um modo peculiar, para atingir uma concluso preconcebida. O raciocnio do acusador e do defensor diferente do raciocnio do juiz. O defensor e o acusador devem buscar as premissas para chegar a uma concluso preconcebida. Se o advogado fosse um argumentador imparcial, no apenas trairia o seu prprio dever, como se colocaria em contradio com a sua razo de ser no processo, de maneira que este ficaria desequilibrado. No fundo, a proposta contra os advogados a proposta conta a parcialidade do ser humano. Examinando bem, eles so os Cireneus da sociedade. Carregam a cruz pelos outros. Esta a sua nobreza.

AS PROVAS

preciso saber, antes de tudo, o que um fato. Um fato um pedao da histria. Fato um pedao do caminho. Do caminho efetivamente trilhado. As provas servem, exatamente, para se voltar ao passado, para se reconstruir a histria. Um trabalho de habilidade, no qual colaboram a polcia, o Ministrio Pblico, o juiz, os defensores, os peritos. As testemunhas so acuadas como a lebre pelo co de caa. Todos, no raro, terminam explorados, induzidos, comprados. Os advogados so alvo dos fotgrafos e jornalistas. Freqentemente, nem os magistrados conseguem opor, a esse frenesi, a resistncia que o ofcio exige. Essa degenerao do processo penal um dos sintomas mais graves da civilizao. O sintoma mais evidente a falta de respeito ao acusado. Quando recai sobre um homem a suspeita de haver cometido um delito, ele entregue ad bestias, a multido. Assim se converte em pedaos o indivduo que a civilidade deveria salvar. Friamente, os juristas classificam a testemunha, junto com o documento. Todos sabem que a prova testemunhal a mais falaciosa de todas. A lei a rodeia de muitas formalidades destinadas a prevenir os perigos. A cincia jurdica chega ao ponto de consider-la um mal necessrio.

O JUIZ E O ACUSADO Quando, num processo de homicdio, se estabelece a certeza de que o acusado matou um homem com um tiro de pistola. Ainda no se conhece todo o necessrio para se proferir a condenao. O homicdio no somente matar. o querer matar. certo que no se pode julgar a inteno a no ser pela ao. preciso, porm, que consideremos toda a ao, no apenas uma

parte dela. A ao humana no um ato singular, mas todos os atos, em seu conjunto. Isso significa que, depois de haver reconstrudo um fato, o juiz percorreu apenas a primeira etapa do caminho. Para alm dessa etapa, o caminho prossegue, porque a vida inteira do acusado ainda est por ser explorada. O ofcio de historiador, que a lei atribui ao juiz, torna-se to mais impossvel quanto mais se reconhece que, para obter a histria do acusado, ele precisa superar a desconfiana, que impede o relato sincero. A desconfiana no vencida seno com a amizade, porm a amizade entre o juiz e o acusado no passa de um sonho. O processo penal uma pobre coisa qual foi confiada uma misso pode demais elevada para poder ser cumprida. Isso no quer dizer que se possa prescindir do processo penal, ma, se temos de reconhecer a sua necessidade, tambm devemos reconhecer a sua insuficincia. Essa uma condio para a civilizao, que exige que se trate com respeito no apenas o juiz, mas tambm o ru e at o condenado.

O PASSADO E O FUTURO NO PROCESSO PENAL

O homem no dispe de outro meio para resolver o problema do futuro a no ser olhar para o passado. Se h um passado que se reconstri para dele fazer-se a base do futuro, no processo penal, esse passado o do preso. No existe razo para se estabelecer a certeza de que o delito ocorreu, a no ser para se aplicar a pena. O delito est no passado; a pena est no futuro. No basta reprimir os delitos; necessrio preveni-los. O cidado deve saber primeiro quais sero as conseqncias de seus atos, para pode conduzir-se. Tambm preciso algo que assuste os homens, para salv-los da tentao. H casos em que fica claro que o processo, ou melhor, aquela parte voltada para a reconstruo da histria, como todos os seus sofrimentos, com todas as suas angstias, com todas as suas vergonhas, basta para assegurar o porvir do acusado, no sentido de que ele compreendeu o seu erro, e no s o compreendeu como

ainda o expiou com aquele peso de sofrimento, de angstia, de vergonha. No se deve protestar contra a lei. Estou de acordo com isto. Contra a necessidade, no cabem protestos. Mas no se pode ocultar que direito e processo so uma pobre coisa e que da conscincia dessa limitao que precisamos para que a civilizao avance.

A SENTENA PENAL

Uma vez reconstruda a histria e aplicada a lei, o juiz absolve ou condena. O juiz absolve por insuficincia de provas. No que o acusado seja culpado ou inocente. Quando ele inocente, o juiz declara que o acusado no cometeu o ato, ou que o ato no constitui delito. Porm, nos casos de insuficincia de provas, o juiz declara que nada pode declarar. O processo se encerra com uma inconcluso acera da matria de fato. E esta parece a soluo mais lgica do mundo. Os equvocos no atribuveis impercia, negligncia, imprudncia, mas insupervel limitao humana no do lugar responsabilidade de quem os comete. Porm, esta irresponsabilidade que assinala um outro aspecto em demrito do processo penal. Esse terrvel mecanismo, imperfeito e imperfectvel, expe um pobre homem humilhao de ser levado perante o juiz, investigado, no raro arrancado de sua famlia e dos seus negcios, prejudicado, para no dizer arruinado, perante a opinio pblica, para depois nem sequer ouvir as desculpas de quem, embora sem dolo, perturbou e algumas vezes despedaou a sua vida. No conheo um jurista, com exceo deste que lhes fala, que haja advertido que toda sentena de absolvio envolve um erro judicial. A coisa julgada no a verdade, mas considerada a verdade. Ela um substitutivo da verdade.

O CUMPRIMENTO DA SENTENA

Com a absolvio, o processo termina, por certo. Em caso de condenao, porm, o processo absolutamente no termina. Absolvido, ainda que surjam novas provas contra ele, o acusado permanece seguro. J o condenado, em certos casos, tem o direito reviso. Observando-se bem, a sentena condenatria no mais do que um diagnstico. costumeiro dizer-se que a pena no tem somente a funo de redimir o culpado, mas tambm a de admoestar as demais pessoas, que poderiam ser tentadas a delinqir e que precisam ser assustadas, a fim de que no o faam. necessrio se pequenino para compreender que o delito se deve falta de amor. Os sbios procuram a origem do delito no crebro, os pequeninos no se esquecem de que, como Cristo disse os homicdios, os roubos, os atos de violncia, as falsificaes vm do corao. Para curarmos o delinqente, devemos chegar ao seu corao. E no h outra via par se chegar a ele, seno a do amor. No se supre a falta do amor, a no se com o amor. A cura de que o preso necessita a cura do amor. No obstante, a pena deve ser um castigo. O castigo no incompatvel com o amor.

A LIBERTAO

O processo termina com a sada da priso, mas a pena no. O sofrimento e o castigo continuam. Ao sair da priso, o ex-condenado cr no ser mais um preso, mas as outras pessoas no o vem assim. Para as pessoas, ele sempre um preso, um encarcerado. Costumeiramente se diz expreso: nesta frmula residem a crueldade e o engano. Crueldade por se pensar que algum deve continuar a ser para sempre o que foi. As pessoas crem que o processo penal termina com a condenao, o que no verdade. As pessoas pensam que a pena termina com a sada do crcere, o que tampouco verdade. As pessoas pensam que a priso perptua a nica pena que se estende por toda a vida: eis uma outra iluso. Seno sempre, pelo menos

nove a cada dez vezes, a pena jamais termina. Quem pecou est perdido. Cristo perdoa, os homens no.

CONCLUSO ALM DOS DOMNIOS DO DIREITO

Civilizao, humanidade, unidade so uma nica coisa: a possibilidade alcanada pelos homens de viver em paz. O processo penal o espcime que melhor exemplifica as deficincias e as importncias do processo. medida que tem acesso a uma experincia processual penal mais profunda e refinada, o jurista comea a apreciar as linhas da verdade no esplendor alucinante da admoestao divina. As misrias do processo penal so um aspecto da misria fundamental do direito. No se trata de desvalorizar o direito, mas de evitar que ele seja valorizado em excesso. Tudo o que se poderia obter, se o direito fosse construdo e manejado da melhor maneira possvel, seria o respeito de um ser humano pelo outro. Os homens no podem ser divididos em bons e maus, mas que eles tampouco podem ser divididos em livres e presos, pois fora do crcere h presos mais presos do que os que esto dentro dele, assim como dentro do crcere h pessoas mais livres do que as que esto fora dele. Todos estamos presos no nosso egosmo. Para sermos libertos, talvez no possamos contar com maior ajuda do que a que nos oferecem os pobres fisicamente encerrados numa penitenciria.

Bibliografia: CARNELUTTI, Francesco As Misrias do Processo Penal Campinas: Edicamp, 2002.

Texto retirado do site: Cola da Web Trabalhos Escolares Prontos http://www.coladaweb.com